LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
A carteira de um neurastênico, de Antônio Lobo
Edição de Base
Biblioteca Virtual Brasileira
ÍNDICE
Julgam-me todos sadio e forte, com uma aparência de quem vende saúde. E, na verdade, eu próprio, quando por vezes me contemplo ao espelho, sou forçado a conceder todas as carradas de razão imaginadas e por imaginar aos que assim pensam. Brilham no meu rosto a mocidade e a vida, sob a minha epiderme corre um sangue oxigenado e quente, nem um cabelo branco, nem uma ruga precoce a trair aos estranhos o que me vai no íntimo.
E, no entanto, eu sofro talvez como ninguém, sofro de um modo bárbaro e cruel. Por quê? De quê? Eis aí o que eu queria que me dissessem, que me explicassem por miúdo, detalhadamente, sem rebuços e sem subterfúgios, com uma franqueza rude de médico que desengana um moribundo. São tão bizarros e complicados os fenômenos que em mim se desenrolam, de tal forma se entrechocam e contradizem as manifestações mórbidas que me acabrunham, que eu, quando os quero passar pelo cadinho de uma análise percuciente e sistemática, sujeitá-los a uma classificação discriminada e metódica, perco-me invariavelmente num labirinto interminável de cogitações abstrusas, num dédalo infernal de suposições e de dúvidas, dos quais consigo por fim emergir, com o cérebro a arder e ainda mais desorientado e vacilante do que d’antes.
Porque é preciso notar que eu sempre tive a mania da intuspecção, vivo sempre a observar-me, a notar escrupulosamente todas as minhas sensações, procurando explicá-las de um modo racional e lógico.
Passo às vezes, despreocupado e calmo, por uma rua qualquer, e, repentinamente, a vista de um objeto banal e insignificante: um leque na montra de uma loja ou um perfume que se evola do lengo de uma transeunte elegante, que comigo se cruza, desperta inconscientemente, numa evocação brusca e vívida, no fundo da minha memória adormecida, a lembrança de um fato passado comigo há longos anos e que eu julgava para sempre esquecido. Por quê? pergunto a mim mesmo; que ligação misteriosa existirá entre aquele objeto vulgaríssimo, que sob o meu raio visual insidio, entre aquele aroma conhecidíssimo que me ferio o olfato e essa cena longínqua da minha vida?
E eis-me perdido num mundo extraordinário de averiguações, até conseguir resolver o problema que me preocupa; o que, seja dito de passagem, consigo sempre.
Uma vez, lembro-me ainda como se fosse ontem e, no entanto, já lá vão sobre esse fato um montão de anos...
Era um domingo, dia de festa na cidade. Eu acordara admiravelmente bem-disposto, com uma fanfarra de alegria sã a cantar-me hilariante n’alma. Sentia-me à vontade na vida, como dentro do amplo e macio robe de chambre que me resguardava a carcaça. Os sinos das igrejas tintinabulavam festivos, pondo na radiosa transparência daquela manhã de sol uma nota deliciosa de convite para a felicidade. Ergui-me direito num pulo, trauteando uma canção alegre, mergulhei num banho rápido e comecei a vestir-me para sair. Ansiava, palpitante e pressuroso, por ganhar a rua e ir misturar-me àquela onda borborinhante de povo que desfilava, em toaletes domingueiras, na direção do arraial onde se festejava a santa tão milagrosa e boa a quem o calendário consagrava aquele dia.
Já quase pronto, cheguei naturalmente à janela, atraído por um tropel qualquer que se fazia ouvir na rua: era uma banda de música que passava, com os instrumentos silenciosos, e precedida pela infalível garotada. Fiquei por um momento a apreciar aquele movimento e quando me dispunha a recolher-me dou com a vista numa família aburguesada, que se adiantava do lado oposto aquele por onde seguira a banda.
Compunha-se de um sujeito pançudo e balofo, com umas calças brancas retesadas de goma, a caírem sobre umas enormes botas, reluzentes de polimento, colete e fraque pretos e um enorme chapéu de pelo na cabeça; era naturalmente o esposo do estafermo que lhe caminhava ao lado e o pai da criançada que os precedia.
E, de repente, sem que eu soubesse porque, à vista daquela cara inexpressiva, de grossos bigodes maltratados, de olhos mortos, semi-encobortos por umas pálpebras gordas e flácidas, uma boca que mais parecia talhada para expelir os alimentos em decomposição do que para os receber perfeitos, senti-me triste, estupidamente triste, bruscamente afogado numa onda invencível de desânimo e de tédio. Foi-se-me como pôr encanto toda aquela franca alegria com que eu amanhecera, fugiram-me logo os desejos em que ardia do correr ao arraial da festa, todo o meu entusiasmo se dissipou e pouco a pouco, numa maré montante de angústia e de desconforto, pôs-se-me a chorar no íntimo, desconsoladamente, a saudade infinita de alguém que eu conhecera em tempos, alguém que fora talvez a afeição mais casta e mais sincera da minha vida e que o destino, injusto e mau, para bem longe de mim conduzira.
Despi-me, porque não mais me sentia com forças de procurar a companhia dos homens. O meu único desejo naquele instante era ficar só, isolado no meu quarto, separado da vida e do mundo, e perder-me naquele amargurado torvelinho de reminiscências e de saudades.
Passei o resto do dia em casa, insociável, estúpido, agressivo. E, a pôr um requinte perverso na minha desdita, lá estava, inquisidora e terrível, a curiosidade doentia de conhecer o porquê daquela brusca mudança de humor que se me operara n’alma. Que laço prendia aquela cara fofa de burguês apatacado e imundo à deliciosa criatura cuja ausência eu deplorava? Que comparação plausível entre os dois se poderia estabelecer, que paridade entre os dois existia, a não ser a mesma que se possa notar entre um verme e uma estrela? E, no entanto, fora a aparição daquele tipo que me viera acordar na memória todas aquelas coisas adormecidas. Como explicar essa esquisita associação de ideias, como? D’onde viera ele? Que queria na vida? Oh! desespero inaudito! De que modo resolver um tão inquietante problema?
Chegou a noite e o movimento da cidade aumentou. Os foguetes atroavam os ares, os sinos bimbalhavam desesperadamente, e aos meus ouvidos chegavam, amortecidos pela distância, os ruídos festivos do largo que bem perto ficava da minha casa. Precipitei-me para o meu guarda roupa, enverguei às pressas o primeiro fato que me caiu debaixo das mãos e corri ao arraial. Era possível que lá se me deparasse um ensejo qualquer de saciar aquela avidez dolorosa em que me debatia.
Dito e feito! Quem supõem os senhores que eu havia de encontrar logo ao chegar ao arraial da festa? Ele, o tipo pançudo que me havia estragado o dia. Lá estava, cheio de si, de bem com Deus e com os homens, repoltreado numa cadeira, a fumar beatificamente. Desta vez abandonara a cartola, e a cobrir-lhe o crânio vazio e esterquilínio, branquejava um reles, um miserável, um infeto chapéu de palha!
Haverá em todo o vasto mundo do Senhor uma coisa mais asquerosa, mais repugnante, mais sarrafaçal e mais imbecil, uma coisa mais em oposição com a sã moral e com os bons princípios do que seja um chapéu de palha? Eu posso perdoar — Aquele que ali está de chapéu de palha? Não conheces? É o Miranda Lopes, o dono daquele armazém de secos e molhados, fronteiro à casa do Rubim.
— Fiquei na mesma.
— Esteve em Lisboa muitos anos. Olha, até por sinal embarcou no mesmo vapor em que seguiu a Marieta.
— Hein? Que dizes? Tens bens a certeza disso? Ele foi no mesmo vapor em que ela? Responde depressa...
— Mas que diabo tens tu? Em que te interessa esse negócio?
— É que não sabes o que se passou comigo...
E ali mesmo, sem pestanejar, pu-lo ao fato de tudo o que me havia sucedido naquele dia.
— Nada mais natural, disse-me o Carlos, sorrindo, quando terminei a minha história: tu foste a bordo, com certeza viste por lá o Lopes, se bem que não te lembres disso; mas a sua imagem ficou, embora inconscientemente, gravada num recanto da tua memória, juntamente com as outras impressões que nesse momento recebeste. Passaram-se os anos, cuidaste doutras coisas, e agora, repentinamente, das cara a cara com ele, e logo, por esse misterioso e inexplicável fenômeno que se chama associação de ideias, veem-te de novo a memória todas as cenas que contigo se passaram naquela ocasião...
— É isso mesmo, concordei.
E uma paz imensa espalhou-se-me por dentro. Saíra daquela ansiedade em que ardia desde a manhã; resolvera afinal o problema que me preocupava.
Querem muitos dos que me conhecem de perto, dos que na minha intimidade penetram, que essa preocupação constante de analisar-me, de possuir em absoluto as causas primárias de todas as minhas ideias e de todas as minhas sensações constitua já, por si só, a exteriorização palpável de um estado mórbido do meu espírito.
Mas eu, francamente, discordo de semelhante opinião e discordo baseado num sem número de razões, cada qual mais convincente e poderosa, e que decerto calarão no ânimo de todas as pessoas ajuizadas e refletidas.
Porque é que o hábito das sondagens psicológicas há de constituir uma enfermidade? Por que motivo se deve encarar como uma anormalidade mental a paixão de revolver a alma humana, de sondar-lhe os recessos íntimos, de palpar-lhe os mais secretos escaninhos? O que representam, afinal de contas, esse hábito e essa paixão, além do exercício natural de duas das mais poderosas faculdades da inteligência humana — a observação e o raciocínio? Que importa que elas, em vez de assestarem as suas baterias sobre coisas do mundo externo, escolham de preferência, como campo de ação, o vastíssimo mundo interior? O químico que se debruça sobre uma retorta, o anatomista que disseca um cadáver, o botânico que estuda uma planta, poderão porventura, a sério, sem grave injúria da verdade e manifesto desrespeito ao bom senso, ser taxados de malucos? Pois a alma humana e tudo isso ao mesmo tempo e muitas coisas mais — é retorta, é cadáver e é planta, conforme os seus feitios e as suas predileções especiais.
Mas, mesmo que o não fosse, poderia muito bem fazer as suas vezes e constituir as delícias de um químico, de um anatomista, ou de um botânico.
Vão lá dizer ao Bourget que ele não passa, em última análise, de um refinadíssimo maluco, que o Coeur de Femme e a Terre Promise são dois disparates de desequilibrado, que o André Cornelis e o Disciple nada mais representam do que desvarios de um vesanico... Vão, e vejam se ele os acredita, se lhes não salta logo com a esquerda em frente e com quatro pedras na mão, a dizer-lhes, em calão imundo, quem é desequilibrado e quem é vesanico, se não são aqueles que puseram no mundo imbecis da ordem dos que a dizer tais coisas se atrevem.
Mas, seja lá o que for, ou enfermidade, ou telha, ou feitio especial, o que é certo é que até hoje não me tenho dado mal com semelhante hábito, e seria injusto e cruel para comigo mesmo, se avançasse proposição contrária. Graças ao seu cultivo, logrei conseguir uma coisa que muita gente boa debalde trabalha por alcançar e que o Evangelho preceitua como regra absoluta de conduta a todo o ser humano: conhecer-se a si próprio. Ora eu conheço-me às mil maravilhas. Em coisas que me digam respeito sou assim uma espécie de Deus bíblico: sou onisciente! E em fatos do domínio puramente psíquico sou também onipresente, porque os assisto sempre e com pleno conhecimento de causa.
Como este mundo marcharia direitinho, dentro dos seus eixos, se se desse com todos os mortais o que se dá comigo, isto se todos se conhecessem a si próprios como se deveriam conhecer. Navegaríamos num mar de leite e de rosas, como dizem os poetas, com tendências pronunciadas para náuticos, e que, por se não conhecerem devidamente, se puseram a rimar versos de poemas, quando o seu ofício deveria ser puxar cabos de navios. Não se veria para aí tanta gente a ocupar posições indevidas e a gabar-se de prendas que não possui.
Por exemplo: o meu particularíssimo amigo dr. Feitosa, o homem que desejava saber se a lua que nos aclara as noites aqui seria a mesma que prateava os campos da sua terra lá para as bandas do Paraná, esse teria ido ser carroceiro, em vez de ser, como é, bacharel em ciências jurídicas e sociais.
E o merceeiro ali da esquina, que vive dia e noite a queixar-se dos calos que lhe pregam, do atraso em que vivem os seus negócios, da desídia do governo republicano, que não faz chover dinheiro do céu, como era aliás a sua obrigação e como tinham todos o direito de esperar da sua proverbial munificência, guardando, no entanto, na burra, um montão de apólices da dívida pública e de títulos de propriedade, esse estava talhado para Enviado Extraordinário junto a alguma Potência rapace, que nos quisesse abocanhar gulosamente um trecho qualquer desta nossa fertilíssima região, como dizem os oradores patriotas, com pronunciadas vocações para agricultores. Tanta desgraça choraria o maganão, tanta miséria contaria ao Estrangeiro surripiador, ocultando, no entanto, que nós ainda possuímos muitos outros trechos, iguais, ou melhores, ao cobiçado, que nós temos terras para dar, emprestar e vender, sem que isso nos faça falta de espécie alguma, que o Estrangeiro acabaria certamente por se apiedar do chorão e volveria para outros solos devolutos as suas ambiciosas vistas e os seus aguçados dentes.
Um outro sujeito do meu conhecimento, o Trancoso, noticiarista de um jornal diário, que a propósito de um simples fato de rua, que daria, quando muito, para um quinto de coluna da gazeta, espicha impiedosamente, sem dó das paciências alheias e esquecido talvez de que a resignação humana tem limites, coluna e meia de composição batida e bárbara, num estilo nebuloso e indecifrável como um soneto de poeta simbolista, esse nasceu para professor de matemática, porque possui no mais alto grão as duas condições primordiais, os dois requisitos supremos, que invariavelmente se exigem para o cabal desempenho dessa tão interessante quão divertida profissão: é cacete e é inteligível.
Iria o maganão a matar numa cátedra de Liceu Superior, explicando a teoria dos números primos e os princípios gerais da divisibilidade. Passariam os alunos a vida inteira a ouvi-lo, ficando sempre na mesma, isto é, na mais doce e na mais confortante das ignorâncias de tudo quanto dissesse respeito àquela engraçadíssima teoria e àqueles não menos engraçados princípios. Afinal de contas, tudo bem ponderado, essas coisas de números primos e de divisibilidade foram feitas exatamente para isso mesmo — para serem eternamente ignoradas. Posso lá admitir que se saibam semelhantes estopadas com a mesma segurança e a mesma precisão com que se conhece uma infinidade de coisas práticas, positivas, verdadeiras e a respeito das quais ninguém hoje duvidas, como sejam, por exemplo, os campos onde foi Troia, quem foi o fundador de Roma, quem descobriu o Brasil, de que morreu o Augusto Severo e de que morrerá infalivelmente o Santo Dumont, se não puser, em tempo, um sobressalto às suas desvairadas ambições aéreas?
Por falar no Severo e no Dumont, ninguém poderá jamais medir em toda a sua extensão a imensidade do meu desprezo por todo o homem que, como esses dois maduros, busca criminosamente reagir contra as leis naturais, por todo o vivente racional que, em vez de se resignar a palmilhar por toda a vida está boa terrinha amada, que o céu, por um rasgo generoso de complacência e de bom humor, nos concedeu para regalo dos nossos pés, quer a todo o transe e sem atender aos conselhos dos mais experientes, guindar-se às alturas e pairar suspenso nos espaços.
Conhecem, por ventura, hábitos mais repelentes, inclinações mais perversas do que essas? Ora sim, senhor, para que havíamos de dar, nós outros brasileiros, gente sensata e prudente e que até hoje gozou sempre de uma fama tão bonita no conceito das nações vizinhas... Fosse alguém dizer, aqui há meio século atrás, a um estrangeiro ajuizado e prático, a um inglês, por exemplo: “Você sabe? Eu vi um brasileiro voando”. E veriam se o inglês não repeliria logo, como a mais hedionda das calunias, semelhante insinuação. “Brasileiro voando? Qual! Vmc. está enganado, Vmc. não viu bem... Aquilo é gente que não se desapega do seu torrãozinho bendito. Brasileiro voando? It is impossible! Inda se Vmc. me viesse dizer que viu voando um Boliviano ou um Peruano vá lá, eu poderia talvez dar-lhe credito, porque esses têm nas veias sangue espanhol, e o espanhol, como sabe, nasceu para essas e para muitas outras insolências. Mas os brasileiros? Pois se eles até queimaram vivo um padre que lá tiveram e que entendeu um belo dia de criar asas, dando-lhe depois, por escárnio, o cognome de Voador”.
Não é para fazer subir ao auge a indignação de um homem que preza dignamente o seu país, ver, de um momento para o outro, ir pela água abaixo, ou o que é melhor para a vertente, subir pelos ares acima, como o fumo que o vento dissipa, uma reputação desta ordem, que tanto nos custou adquirir?
E a moda vai-se espalhando de um modo assustador. Creio que, a continuar assim, um belo dia, quando menos se esperar, o país inteiro voa em massa, englobadamente, debanda para os espaços azuis, transforma-se numa nação aérea, volátil, imponderável, indo assentar as suas tendas nas nuvens e sendo depois incluída pelos astrólogos numa nova e interessante categoria, que então se formará, de países aéreos.
Que ninguém se iluda: essas festas que têm feito pela Europa culta ao Santos Dumont nada mais representam, em última análise, do que a mais refinada das traições e a mais negra das falsidades. O que ela quer, ela, a Europa culta, é que nós todos voemos, que desertemos para as alturas, afim de que ela possa vir depois, tranquilamente, comodamente, instalar-se no nosso território, sem para tal ter necessidade de queimar meia dúzia de cartuchos para esmagar o crânio a meia dúzia de idiotas e de visionários que se atravessem a opor-lhe a mais leve das resistências.
O que todos os brasileiros devem agora fazer é queimar o Santos Dumont em efígie em todas as praças, e proclamar, em alto e bom som, como eu já o vou fazendo na roda dos meus amigos, que esse sujeito não é nosso patrício, que ele nunca foi, não é, nem será nunca brasileiro.
Costumado assim a aclarar sempre todas as minhas situações psíquicas, ainda mesmo as mais abstrusas e complicadas, não foi grande a minha preocupação quando comecei a experimentar os prodromos dos bizarros fenômenos que atualmente desfilam, num cortejo estarrecente, pelas intérminas planícies do meu mundo interior. Com um pouco de observação paciente e de concentrada reflexão ser-me-ia fácil classificá-los metodicamente, e mergulhar depois até às causas primárias que lhes haviam dado nascimento. Era apenas uma questão de trabalho e de constância, nada mais.
Infelizmente, porém, logo às primeiras tentativas, vi-me obrigado a confessar-me a mim mesmo o desolador fracasso dos meus esforços e a confrangedora impotência da minha extraordinária atividade analítica. Por mais que cogitasse e reflexionasse, numa prodigiosa tensão de espírito, não lograva assinalar uma razão plausível, uma causa racional e lógica as coisas estupendamente inconcebíveis que comigo se passavam.
Começou então a invadir-me, avassaladora e irresistível, uma grande, uma desconsolada tristeza, e a minha vida, que até então decorrera relativamente calma e feliz, se foi aos poucos transformando num verdadeiro inferno, entre cujas labaredas comburentes eu me contorço hoje, num desespero inaudito, positivamente igual ao do Anjo Rebelde, quando o irritado pontapé divino o arrojou das delícias do Paraíso para as profundezas sombrias que desde então passou a habitar. Tornei-me insolente, estúpido, grosseiro, eu que, por índole e por educação gostava, tanto do convívio dos meus amigos e que era inexcedível no rigor e na minuciosidade com que punha em prática todos os preceitos banais que formam a cartilha de conduta de um homem de sociedade.
Ainda há poucos dias mandei à tábua um sujeito das minhas relações pela simples razão de me perguntar pela minha saúde. Que tinha esse miserável a ver com o meu estado sanitário? Era da sua conta que eu estivesse bom ou doente? Que satisfações tinha a dar-lhe dos meus atos? Creio que as leis do país ainda não tolheram a um cidadão pacífico, rigoroso cumpridor dos seus deveres, amigo da ordem e respeitador das autoridades constituídas, o sagrado direito de cair doente quando muito bem lhe pareça.
Enfaram-me hoje quase todas as coisas que em outros tempos tanto me deliciavam; dei para embirrar com quase todos os meus conhecidos, para antipatizar solenemente com aqueles mesmos de quem eu tanto gostava outrora. Não os posso tolerar, acho-os cacetes, broncos, perversos, capazes das maiores infâmias e das mais negras torpezas. Julgo a cada passo que me querem trair, que vivem a meditar a minha desonra ou a minha morte, que me preparam uma cilada qualquer, na qual incautamente cairei, se não procurar livrar-me em tempo.
Sinto-me por vezes tomado de uns pavores inexplicáveis, de uns medos súbitos e extravagantes, que chego a ter vergonha de confessar. Por exemplo, não há forças humanas que sejam capazes de me fazer atravessar sozinho uma praça qualquer. Por quê? Não o sei, não o posso dizer, mas é superior à minha vontade, não está em mim o poder de dominar esse receio pueril. Dou enormes caminhadas, alongo extraordinariamente o caminho que tenho a seguir, só para evitar a passagem por um largo ou por uma praça. Se algum dia fosse chamado a exercer funções na direção suprema das coisas municipais, o meu primeiro ato seria decretar ditatorialmente a supressão de todas as praças. Para que é que se querem praças numa cidade, para quê? Ruas, muitas ruas, com altos casarões de um lado e do outro, disso é que precisamos. Quem quiser descampados que vá para o campo.
Outras vezes são uns caprichos esquisitos, absurdos, inacreditáveis, coisas de criança ou de doido varrido.
Uma noite destas, já muito tarde, ergui-me do leito, dosei ao meu gabinete de trabalho, acendi a luz, só para mudar O Idiota de Dostoievski de uma estante para outra. Por quê? Não sou capaz de o explicar satisfatoriamente, mas o caso é que, depois de deitado, comecei a lembrar-me de que havia naquele dia recebido do encadernador os dois volumes do romancista russo e que os dispusera na mesma prateleira que ocupavam quando em brochura. Mas eles ali não ficavam bem, o seu lugar deveria ser na outra estante. Bom, na manhã seguinte cuidaria disso; e voltei-me para o outro lado, cerrando as pálpebras e disposto a não mais me preocupar com semelhante frioleira.
Qual! tudo baldado... Os volumes não ficavam bem no seu antigo lugar, urgia mudados e mudá-los quanto antes. Mas aquilo positivamente era um disparate: levantar-me aquelas horas da noite, só para ir mudar um livro de lugar! Como se ririam de mim os meus amigos, se me vissem naqueles apuros! E uma voz íntima, poderosa, sugestiva, a bradar-me imperiosamente:
— Vai mudar o livro, desgraçado, senão...
Senão, quê? A voz não o dizia claramente, mas essas reticências eram mais apavorantes do que o anúncio formal e preciso da desgraça que me aguardava, se O Idiota passasse a noite no mesmo lugar. E, praguejando, furioso, desesperado, lá fui cumprir a intimação daquela voz fatídica.
Além dessas irritações sem causa, desses pavores inexplicáveis, desses caprichos que nada justifica, há ainda a flagelar-me uma multidão de sintomas mórbidos, de impulsões doentias, que se vão aos poucos transmudando em hábitos insuportáveis pelos martírios a que me sujeitam.
Entre essas impulsões há uma que me faz sofrer por vezes de um modo desumano, como aliás o faria a qualquer outro que nas minhas condições se visse. Vivo constantemente e mau grado meu a empreender em espírito confrangedoras peregrinações ao passado, ou melhor, vive o meu passado a erguer-se constantemente, numa lucidez aterradora, ante os olhos doloridos do meu espírito.
Conhecem, por ventura, tortura mais soberana do que essa? A obsessão do passado, a repercussão contínua e dolorosa das coisas idas, dos sonhos extintos, das alegrias mortas; a evocação percuciente e aguda de cenas longínquas, de fatos de há muito esquecidos, de episódios que já dormiam envoltos nas brumas densas da indiferença e do olvido...!
De instante a instante, de momento a momento, quebra-se a lousa de um túmulo, um cadáver se galvaniza, uma sombra imponderável se corporifica, uma flor emurchecida refloresce, um céu brumoso se aclara, e uma voz, há longos anos emudecida, encontra de novo os ecos perdidos e põe-se a modular chorosa as mesmas baladas de outrora. E tudo isso nostalgicamente banhado na grande luz suave e triste de um perene luar de saudade...!
Dir-se-ia que me vou desprendendo aos poucos do presente, que a minha consciência da vida real se vai lentamente obliterando, que eu perco dia a dia a noção exata das coisas atuais, para viver apenas nas nebulosidades indecisas do sonho, a ressuscitar mortos, a povoar desertos, a reverdecer ruínas!
Amarga tortura essa, negro e infindável suplício, o maior talvez dentre todos os que no intérmino catálogo dos flagelos humanos figuram!...
Quem me libertará dele? Que poder carinhoso e compassivo me arrancará das suas garras?...
Oh! que desvairada inveja que eu tenho dos que podem dormir, de todos aqueles a quem é concedida a suprema ventura de saborear à vontade essa incomparável delícia do sono, que de há muito me é cruelmente negada!
As minhas noites são verdadeiros calvários de agonia, por cujas encostas escarpadas e íngremes eu me vou penosamente arrastando, supliciado e infeliz. Anseiam todos por essas heras silenciosas e recolhidas, em que o corpo e o espírito recuperam, num repouso confortante e salutar, todas as forças gastas, todas as energias dispendidas no afanoso e rude labutar da vida.
Todo o homem, por maiores que sejam as suas lutas diárias, por mais inclementes que sejam os embates morais a que o destino o condene, encontra sempre, quando a noite envolve a terra nas dobras pesadas e negras do seu manto de trevas, alguns momentos seguidos de esquecimento e de descanso, livre das garras empolgantes das preocupações que o absorvem, subtraindo às torturas da sorte e às flagelações martirizadoras da vida. E quando emerge dessas tréguas compensadoras, dessa espécie de solução de continuidade, que consoladoramente se abre na série intérmina das suas desditas, é com elementos novos de resistência para opor ao inimigo implacável que o persegue.
Eu, ao contrário do que se dá com toda a gente, tenho um pavor horroroso da noite, um medo inconcebível dessas doze horas de ausência do sol, porque cada uma delas, para mim, representa um século de sofrimento e de desespero.
Enquanto os outros dormem eu velo, agitado e febril, numa superexcitação agudíssima, com o cérebro a escaldar, as fontes latejando, as pálpebras pesadas e doloridas e os olhos a rebrilharem, límpidos e secos. Passo horas seguidas a revolver-me inquieto no leito, mudando de posição de instante a instante, na esperança de encontrar uma em que possa adormecer, afinal.
Mas tudo baldado! Por mais esforços que empregue, não lobrigo nunca vencer a vigília; ao invés d'isso cada vez me sinto mais empolgado por ela.
Abandono então o leito, desesperado e furioso e ponho-me a percorrer o quarto a largas passadas, cruzando-o em todos os sentidos; talvez consiga assim extenuar-me, fatigar estupidamente o organismo e da prestação que a semelhante exercício se seguir, sem grande luta, poderei passar ao sono.
Ainda desta vez não se realizam as minhas previsões; quanto mais caminho, mais vontade tenho de caminhar, sinto-me capaz de fazer léguas e léguas a pé, sem que a fadida me colha.
Oh! com que clareza e com que lucidez eu compreendo nessas horas a extraordinária lenda do judeu errante!
Corro à janela, abro-a de par em par, bruscamente, recebo em cheio no rosto, que a febre requeima impiedosa, a viração fresca da noite. Aspiro-a sofregamente, em longos haustos, e ali me deixo ficar por algum tempo, recostado à sacada, fazendo sobre mim mesmo um esforço enorme para me conservar quieto e calmar um pouco a agitação que me domina.
Um silêncio pesado e lúgubre envolve a rua adormecida, funebremente aclarada pela luz mortiça e triste dos lampiões de gás. De um lado e outro a massa informe e negra dos prédios, a alongar as suas fachadas sombrias, com as janelas e portas hermeticamente fechadas, sem que uma única réstea de claridade pelos seus interstícios se coe.
Quantos felizes, dentro daquelas paredes mudas e desiguais, gozam nesta hora do repouso fortificante pelo qual todo o meu ser cansado e doente desesperadoramente anseia!
De quando em vez chega-me aos ouvidos o uivo longínquo de algum cão, a passear pelas ruas a sua insônia vadia, ou o ruído seco das pisadas de algum transeunte retardatário quase recolhe a casa. Depois, de novo se restabelece o silêncio, mais pesado e mais lúgubre, após aquela passageira interrupção.
Já sobre a madrugada, quando as estrelas começam a empalidecer no céu e uma aragem mais fresca me vem açoitar o rosto, é que eu princípio a experimentar uma certa sensação de calma e de apaziguamento. Invade-me o organismo um torpor invencível, os meus nervos se relaxam, baralham-se-me as ideias, vergam-se-me as pernas, e em todo o meu ser se vai lentamente espalhando uma imperiosa necessidade de repouso.
Será, finalmente, o sono benfazejo e amigo, que me vem cerrar as pálpebras e arrancar-me por algumas horas àquele suplício em que me debato?
Fecho a janela e, trôpego, vacilante, aos trambolhões, dirijo-me para o leito; aí chegando deixo-me cair pesadamente, como uma massa inerte, sobre os lençóis entreabertos, convidativos e atraentes na sua alvura imaculada e fresca.
A princípio tenho quase a certeza deque vou dormir, de que vou, enfim, descansar. Cerro as pálpebras, aconchego voluptuosamente a roupa ao corpo, e fico imóvel, sem uma contração, sem um trejeito, buscando alhear-me de tudo o que me cerca.
Mas, oh! desgraça infinita, oh! inaudito desespero! Não é o sono ainda! O que se apodera de mim é uma sonolência vaga e indecisa, uma espécie de estado intermediário entre a vigília e o sono. Já não estou acordado, mas também não estou ainda dormindo. Ouço distintamente qualquer ruído que se produza em torno a mim, se bem que não possa ao certo dizer o que o produziu.
O cérebro continua a trabalhar, mas desconexamente, aos saltos, sem lógica e sem lucidez. Visões terríveis e assustadoras, fantasmas pavorosos e estarrecentes surgem de todos os lados, passeiam medonhamente lívidos por sobre o meu corpo inerte. Por vezes algum dentre eles, de olhos embaciados e vítreos, desmesuradamente abertos, faces amareladas e fundas, longos cabelos colados às fontes numa pasta pegajosa e repugnante, debruça-se sobre o meu rosto, fita-me longamente os olhos e depois cola à minha fronte os seus lábios ressequidos e frios. Parece-me que estremeço todo ao contato daquele beijo de morte.
Então uma gargalhada estridente e rouca estala de um lado: volto os olhos assustados e dou com uma outra figura, zombeteira e escarninha, uma figura que nada tem de humano, a mostrar-me os dentes aguçados, numa expressão de fera carnívora, que se dispõe a devorar a presa. Outras figuras se agacham aos meus pés, hórridas, disformes, horripilantes; outras ainda percorrem, com os dedos úmidos, flácidos e horrorosamente flexíveis, os meus cabelos que o pavor eriça. E eu não tenho forças para reagir contra aquele ataque de duendes infernais. De repente põem-se todos a dançar ao redor do meu corpo imóvel um sabbat monstruoso e apocalíptico, com trejeitos e momices de gelar o sangue ao mais corajoso. E vão subindo, de mãos dadas, dançando sempre, sempre meneando os seus longos vultos brancos, até que se perdem nas alturas, transformando-se então em grandes nuvens, esbranquiçadas e tristes, que começam a deslizar interminamente por sobre a minha cabeça.
Quando desperto daquele pesadelo é sempre dia claro, já o sol vai alto na sua luminosa ascensão para o zenith. E eu sinto-me fraco, abatido, prostrado, tendo a sensação de que a vida me foge por quantos poros tenho no corpo. São precisos esforços sobrehumanos para vencer a lassidão que me tolhe os movimentos, abandonar o leito e mergulhar de novo neste suplício esgotante, que é atualmente a minha vida!
No entanto, não há no meu rosto vestígios visíveis do medonho e indescritível sofrimento por que acabo de passar. Tenho a aparência sadia e calma, a cor rosada e fresca de quem sai de uma noite de sono reparador e tonificante. Quem me vê certamente invejará a minha saúde e a minha robustez física.
Como tudo isso é horroroso, Deus meu, como tudo isto é medonho e mortificante!
Positivamente eu sou o homem mais desgraçado do mundo. Todos os infortúnios da terra, todos os suplícios que seviciam a humanidade sofredora empalidecem e se nulificam ante a imensidade da desgraça que me fere. Os que gemem como eu sob o latejo fustigante da adversidade, os que como eu se contorcem nas vascas estertorosas de uma agonia inominável, conhecem de certo a causa do mal que os flagela, de certo possuem a origem do martírio a que vivem condenados, embora não lhes esteja ao alcance, na maioria dos casos, por um termo final às suas depredações.
Comigo, porém, o caso é outro: padeço atrozmente, sofro barbaramente e não sei, não posso absolutamente saber o que assim me faz padecer e sofrer.
Tinha até hoje um refúgio onde me ia abrigar medroso dos golpes lacerantes da infelicidade, um oásis confortante e salutar em meio do deserto árido do meu desespero: o amor dos meus, o afeto dedicado da minha esposa, a ternura amorosa dos meus filhinhos. Era a única épave que eu conseguira salvar do pavoroso naufrágio da minha felicidade.
Pois bem, para cúmulo do meu tormento, até isso me foi roubado.
Há momentos em que me sinto tomado de uma aversão sem nome, de uma repugnância inexplicável por essa doce e incomparável mulher, toda feita de abnegação e de bondade, com quem um dia dividi o peso do meu destino, por esses seres pequenitos e débeis, adoráveis na sua candura ingênua, frutos benditos do meu amor partilhado. Que me fizeram eles para que eu os aborreça assim? Que culpa lhes pesa sobre os ombros, que negro crime perpetraram para merecer essa repulsa que por eles experimento em certas ocasiões?
D’ela só tenho recebido até ao presente o soberano conforto de um amor ponderado e firme, isento das oscilações tumultuarias e inconstantes dos afetos passageiros que apenas se firmam na base movediça de uma inclinação dos sentidos ou de um delírio efêmero de imaginações desordenadas; tem sido sempre a nobre e santa companheira da minha vida, em cujos lábios se reflete invariavelmente o sorriso de ventura que nos meus se debuxa e em cujos olhos repontam as mesmas lágrimas de sofrimento que nos meus assomam.
E d’eles, que me tem vindo d’eles a não ser a consciência de que a vida me seria impossível se eu não tivesse sempre ao alcance dos meus beijos aquelas faces rosadas e frescas? E por que é que os odeio, por que é que os abomino agora? Serei eu por acaso um miserável sem entranhas, um monstro hediondo e repulsivo que chegue ao ponto de odiar os seus filhos, de abominar a sua mulher? Mas eu sinto, eu tenho a certeza absoluta de que não serei capaz de tamanha infâmia, de uma tão vil abjeção...
E no entanto — como isto é horroroso! — e no entanto eu os odeio, eu os abomino!
Se algum dia caírem sob olhos estranhos estas desmanchadas memórias, como se hão de sentir tomados de horror os que as lerem, que invencível repugnância que experimentarão pelo monstro que as escreveu!...
Há dias passou-se comigo um fato horroroso, que ultrapassa as raias das piores monstruosidades que uma imaginação perversa possa conceber.
Voltara da rua numa superexcitação insuperável, depois de ter vagado ao acaso por mais de duas horas a fio, sob um sol de abrasar, na esperança de subjugar pela fadiga e pelo cansaço os meus nervos em rebelião.
Despi-me e fui atirar-me sobre uma chaise-longue no meu gabinete de trabalho, cerrando as pálpebras e buscando alhear-me a tudo o que me cercava. Quando me recolho à casa nesse estado, minha mulher, conhecendo que a sua presença ou a de qualquer outra pessoa me será penosa, procura deixar-me na mais completa solidão e no silêncio mais absoluto.
Nesse dia, porém, não sei como, uma das minhas filhinhas, a Mercedes, de três anos de idade, conseguiu iludir a vigilância materna e sorrateiramente se introduziu no meu gabinete e veio, pé ante pé, postar-se defronte de mim, com os seus lindos olhos, entre amorosos e assustados, fitos inquisidoramente no meu rosto.
Quando dei com ela, a pobre criança esboçava um sorriso como que prestes a precipitar-se sobre mim e a cercar-me o pescoço com os seus dois bracinhos alvos, como costumava sempre lazer todas as vezes que em semelhante posição me encontrava.
O que se passou então em mim não sei, nem posso explicar. O meu braço ergueu-se rápido para descer depois, brutal, sacrílego, selvagem... e uma bofetada estalou nas faces de minha filha. Foi horroroso, foi inaudito, foi indescritível!
Quando voltei a mim minha mulher erguia nos braços a criança desmaiada e corria com ela para os fundos da casa. Medi então em todo o seu repugnante alcance a infâmia do meu procedimento; tive asco, tive nojo de mim mesmo! Se tivesse ali um revolver ou um punhal os meus miolos teriam saltado ou o meu coração seria atravessado.
Ergui-me desvairado, impelido por um desejo imenso de correr em busca da criança, da minha filha adorada, da minha estremecida e idolatrada filhinha e ir apagar com beijos e lágrimas a mancha que a minha mão bárbara e desumana nas suas faces deixara. Mas veio-me ao mesmo tempo uma espécie de pudor, um sentimento confuso de vergonha, uma espécie de consciência do meu aviltamento; não, eu não tinha mais o direito de beijar aquela criança, todos os laços que a ela me prendiam tinham sido brutalmente espedaçados, eu era indigno em diante de lhe chamar filha, assim como de ser por ela chamado pai.
Deixei-me cair sobre uma cadeira, ocultei o rosto nas mãos e pus-me a soluçar convulsivamente. Quanto tempo assim passei, não o posso precisar agora; o que me veio despertar foi uma pressão doce que senti no ombro, como se uma mão delicada e leve nele pousasse. Ergui a cabeça e deparei com minha mulher, a fitar-me com os seus grandes e rasgados olhos, nos quais eu bem divisava os vestígios de lágrimas recentes, apesar dos esforços que ela fazia para que me parecessem calmos e sorridentes.
— Vê tu que bárbaro, que monstro que eu sou! foi o grito rouco que me brotou dos lábios.
— Bárbaro! Monstro! Não, meu amigo, é uma injustiça que a ti mesmo te fazes. Dize antes doente e infeliz... respondeu ela pausadamente, tomando entre as suas mãos a minha cabeça num gesto abnegado de proteção e de carinho. E na sua voz havia todo o cálido conforto de um apoio e toda a incomparável doçura de um perdão.
Doente! E se eu fosse na verdade um doente? Se todas essas coisas inexplicáveis que comigo se passam, se todos esses absurdos e todas essas incoerências que em mim mesmo vou diariamente notando, não passassem afinal de contas de fortes e pronunciadíssimos sintomas mórbidos de algum mal cuja origem e diagnóstico desconheço mas que talvez já venha cuidadosamente estudado em todos os tratados de patologia?
Ah! se assim fosse...!
Dispunha-me hoje a continuar estas notas que para aqui vou, com intervalos irregulares, atirando ao papel, desmanchadamente, sem um alvo certo, sem um propósito determinado e firme, nelas apenas buscando um derivativo e um desafogo para as minhas mágoas, para as minhas cóleras e para os meus desesperos — quando me veio terás mãos uma longa carta do Carlos de Menezes, cuja leitura me acordou no espírito um mundo de episódios da minha mocidade.
O Carlos foi um dos melhores camaradas da minha infância e é hoje o mais querido e o mais íntimo dos meus amigos. Travamos conhecimento no Internato de S. Luiz, para onde entrei numa triste manhã de inverno, desconsolada e fria, com grandes lufadas de vento e uma chuva miúda e irritante a peneirar impertinente no espaço.
Oh! com que lucidez e com que previsão de detalhes eu revejo agora em espírito todas as cenas dessa manhã longínqua da minha vida!
Desde a véspera que me sentia agitado por dois sentimentos contrários que dentro em mim lutavam, sem que um conseguisse cantar vitória sobre a derrota do outro: de um lado o desejo alvoroçado do Internato, da convivência dos camaradas que eu lá ia encontrar, das sensações novas e desconhecidas que me aguardavam; do outro a dorida saudade da família e da casa, daquela intimidade e daquele aconchego do lar, dos carinhos e dos afagos de que vivia cercado e que mais apetecedores que nunca se me afiguravam, porque tinha um pressentimento secreto de que eles iam definitivamente acabar para mim. Os diretores do Internato velariam talvez cuidadosamente pela minha saúde e pelo meu bem-estar, procurariam talvez rodear-me de toda a solicitude e de todo o amparo que a inexperiência da minha idade imprescindivelmente reclamava; mas nunca conseguiriam por nesse desvelo e nessa solicitude aquela doçura confortante e meiga a que o amor dos meus já me havia afeito. E era isso sobretudo o que mais me entristecia e magoava, dando-me por vezes ímpetos de correr para junto de minha mãe, abraçar-me estreitamente com ela e pedir-lhe, por entre beijos e lágrimas, que me não desamparasse, que me conservasse sempre ao pé de si, na quentura benfazeja do seu colo amoroso.
Dormi mal a noite, sonhando coisas extravagantes e esquisitas. Quando minha mãe me veio despertar às sete horas da manhã seguinte, dei um pulo do leito, atirei os dois braços ao seu pescoço e pus-me a soluçar desesperadamente. A boa e santa criatura cobriu-me de beijos os cabelos e as faces, estreitou-me fortemente de encontro ao peito, e começou depois a animar-me, a dar-me conselhos, a fazer-me ver que eu já não estava na idade daquelas tolices e daqueles momos, pois já havia completado os meus onze anos, e que era para o meu bem e para a minha felicidade que a semelhante separação me forçava.
Começaram então os preparativos para a minha partida; todo o pessoal da casa andava num reboliço enorme, a abrir e fechar malas, a verificar cuidadosamente se as coisas estavam em ordem, se todos os objetos ocupavam os devidos lugares, se nada faltava ao enxoval completo com que me haviam aparelhado.
Viera do Internato uma lista de tudo o que eu era obrigado a levar; mas minha mãe achou que aquilo ainda era pouco e aumentou, por conta própria, o número dos uniformes, dos lençóis, das toalhas, dos guardanapos e, se não fossem as observações sensatas de meu pai creio que a boa senhora chegaria ao cúmulo de comprar em duplicata todos os livros reclamados para as disciplinas que eu iria cursar naquele ano.
Enquanto tudo isso se passava, fui debruçar-me à sacada da sala e envolver toda a rua e todas as casas próximas num longo e apaixonado olhar de despedida.
Raros transeuntes desfilavam, com as saias arrepanhadas e as bainhas das calças dobradas, abrigados uns sob enormes guarda-chuvas, afrontando outros impávidos o temporal, maldizendo todos a vida que os forçava a começar tão cedo, por um tempo ingrato daqueles, a sua afanosa labuta diária.
Na loja fronteira, deserta ainda de fregueses àquela hora matinal, um caixeiro mandriava espanando preguiçosamente o balcão e as peças de fazendas multicores e vistosas que sobre ele se empilhavam. Um outro, de cara sardenta e amarela, com uma enorme vassoura esfrangalhada, varria o soalho, atirando o cisco para o passeio encharcado, num calmo e inconsciente desdém das posturas municipais.
À porta da taberna da esquina, um negro de pele reluzente e carapinha curta, tendo apenas a encobrir-lhe parte da nudez atlética uns grosseiros calções de estopa amarela, que lhe desciam da cinta aos joelhos, entretinha-se a ver um grupo de crianças nuas a fazer nadar um barco de cortiça numa poça d’água barrenta e suja, que as bátegas furiosas da noite haviam formado numa larga falha do calçamento. Uma delas de ar enfezado e doentio, com o ventre disforme apesar sobre as pernitas magras e bamboleantes, esganiçava-se a transmitir às companheiras umas recomendações imperiosas que a algazarra infernal que faziam lhes não permitia ouvir.
Aos solavancos, num ruído seco de ferros velhos e de tábuas desconjuntadas, uma carroça subia a rua, puxada por uma pileca lazarenta, sobre cujo dorso pelado o carreiro desapiedadamente fazia estalar a todo o instante a sua comprida taca de couro.
Dois polícias, com as botas acalcanhadas, a farda imunda, o boné de lado e o sabre pendente de um cinturão polido, cujas fivelas se achavam substituídas por um cordel passado através de uns largos buracos abertos a trouxe-mouxe, empurravam um bêbedo, ameaçando-o de quando em vez de lhe chegar o ferro às costas. O pobre diabo, que mal se podia ter nas pernas, lá ia cambaleando, a camisa aberta ao peito, as calças remendadas e cobertas de lama, numa passividade submissa de vítima conduzida ao sacrifício. Apenas, quando era mais brutal o empurrão que lhe davam os mantenedores da ordem pública, regougava o infeliz, numa voz tartamudeante e avinhada, umas coisas ininteligíveis que mais pareciam uma queixa humilde do que um protesto indignado.
Vinham do fim da rua as notas plangentes de um piano, martelando a Súplica de uma Virgem e, longínquos, ora abafados e surdos, outras vezes vibrantes e claros, os repiques de um sino de igreja anunciando missa, punham na tristeza daquela manhã de inverno uma suave e mística melancolia.
— Vamos, meu filho, são horas de te ires preparando, veio dizer-me minha mãe, numa voz que se esforçava por tornar firme e alegre, mas através da qual eu bem adivinhava lágrimas contidas e abafados suspiros.
Deixei-me conduzir para o quarto, vesti-me e às nove horas em ponto, feitas as minhas despedidas, tomava, em companhia de meu pai, o carro que nos devia conduzir ao Internato.
Toda a vizinhança correu à janela a ver-me partir, a dizer-me adeus e a desejar-me todas as felicidades possíveis: as filhas do Dr. Sequeira, Juiz de Direito da capital, magritas e insignificantes, já com os cabelos no papel para o namoro da tarde: o Cordeiro, conferente da Alfândega, com a mulher, anafada e balofa e que tinha a prenda rara de conhecer, de cor e salteadas, todas as crônicas escandalosas da terra; a filha do comendador Portela, negociante e diretor de todos os bancos da cidade, uma morenita de quinze anos, de olhos vivos e cabelos de azeviche, espevitada e irrequieta; a D. Amância, viúva, rica e beata, cuja vida consistia em rezar aos Santos nas igrejas, espancar as escravas em casa e falar mal da vida alheia. Ainda na véspera fora ela convidar minha mãe para fazer parte duma nova associação pia que havia fundado sob a inspiração de Fr. Gabriel, o capelão da Igreja da Trindade, e para a qual adotara simbolicamente o nome de um santo qualquer, mudo de nascença, porque um dos fins principais da tal associação era não murmurar contra o próximo.
Quando o carro se pôs em movimento, ouvi ainda a voz de minha mãe, a dizer-me de cima, da sacada, trêmula e comovida, que me não esquecesse do seu pedido. Aludia às recomendações instantes que me fizera de não abandonar no colégio as minhas devoções e de pedir sempre à Senhora de Lourdes que me protegesse e que fizesse de mim um homem.
Achava-se o Internato situado num arrabalde da cidade, num antigo convento de franciscanos, contíguo a uma Igreja, sob a invocação de S. Luiz Gonzaga.
Era um vasto casarão, tristonho e sombrio, de arquitetura pesada e fradesca e forma quadrangular, com uma fila de janelinhas estreitas, quase pegadas ao beiral do telhado e um largo portão de entrada, aberto na extremidade do edifício que confinava com a Igreja. No rés do chão corria um outro renque de janelas, iguais às do sobrado, guarnecidas por uns grossos varais de ferro, vetustos e enferrujados.
Não podia ser mais deprimente nem mais desconsolador do que era o aspecto daquela casa, por traz de cujas paredes seculares toda uma mocidade irrequieta e viva se agitava borborinhante. Era ali que os padres da Companhia do Jesus deformavam as almas tenras e incautas que a crendice ignorante e supersticiosa lhes confiava, fiel ao preconceito reinante de que ninguém como eles dispunha da capacidade necessária à educação e ao ensino.
Quando nos apeamos do carro em frente ao portão de entrada, veio receber-nos um padre esgrouviado e esquelético, que nos fez subir logo para o salão de visitas, pedindo-nos em seguida a fineza de esperar um minuto, enquanto ele ia avisar o Sr. Diretor.
Aproveitei esse instante de folga para inspecionar avidamente os objetos que me cercavam.
A mobília era severa e grave, sem um relevo, e sem um florão, eclesiasticamente solene, como se ali estivesse à espera de um capítulo que se fosse formar para discutir intrincadas questões teológicas. E eu fui logo mentalmente assentando um frade, bojudo e estúpido, em cada uma daquelas cadeiras de alto e respeitável espaldar. Por cima do sofá, a meia altura da parede, pendia um grande retrato a óleo do Papa, com os dois dedos da destra erguidas, na posição apostólica, a abençoar a cristandade.
Na parede oposta e a formar pendant com esse, destacava-se um outro quadro representando um moço, de roupas talares, semblante emagrecido e sofredor, tendo nas mãos um crucifixo sobre o qual se inclinava a sua cabeça e fixavam os seus olhos onde uns clarões sobrehumanos de fervor místico passavam. Conheci-o logo: era S. Luiz Gonzaga, o patrono do Internato e também o Santo da minha devoção particular, cuja vida eu sabia de cor e que sempre me fora apresentado por minha mãe e pelos padres que desde criança me confessavam, como o modelo supremo a quem deveria procurar imitar.
Por cima dos consolos, estendiam-se livros de grande formato e de encadernação rica, patenteando, em gravuras mirabolantes, cenas devotas e milagres assombrosos. Um que abri ao acaso mostrou-me logo maravilhas diante das quais pasmei estarrecido; e quando me dispunha a apreciadas devidamente, senti, ou melhor, tive o pressentimento de que alguém entrava na sala.
Voltei-me rapidamente e dei cara a cara com o sr. Diretor.
Era um padre alto e corpulento, de faces sadias e rosadas, grandes olhos inquisidores e escuros, cabelos cortados à escovinha, lábios carnudos e fortes, que um sorriso afável naquele momento entreabria, pondo à mostra uns dentes alvos e polidos. Todo ele respirava uma santidade evangélica, um misto de seriedade discreta e de atraente cordialidade. Veio para nós de braços estendidos, mas sem perder por um só instante a gravidade serena que lhe parecia habitual.
Trocados os primeiros cumprimentos, foi tomar lugar ao centro do sofá, indicando a meu pai com o gesto uma cadeira de braços que lhe ficava ao lado e chamando-me com um aceno para junto de si.
Aproximei-me algum tanto receoso e tímido, se bem que sentisse já no íntimo toda a minha simpatia e toda a minha confiança definitivamente conquistadas por ele. Tomou-me as duas mãos, com um olhar rápido mirou-me da cabeça aos pés, deu-me depois duas palmadinhas na lace direita e fez-me sentar no sofá, ao seu lado, passando-me o braço por cima dos ombros. E, dirigindo-se a meu pai, num tom convencido e firme:
— Havemos de fazer dele um homem, e fique descansado, um homem às direitas, temente a Deus e amigo dos seus semelhantes.
Relembrando hoje essas palavras que ao tempo em que foram pronunciadas de uma tão grande e rasgada fé no futuro me encheram, e estudando-as à luz do meu critério atual e da minha larga experiência da vida e dos homens, todo eu estremeço de indignação e de revolta, ao desvendar o pensamento diabólico e perverso que por traz delas se ocultava.
Melhor seria que aquele bandido de sotaina traduzisse assim os seus planos, que foram sempre, como continuam ainda a ser, os de toda a sua ordem:
— Havemos de sufocar nesta alma em embrião todos os impulsos generosos, todas as aspirações nobres, todos os anelos elevados; o que nela houver de puro e de franco, tudo o que nela existir de espontâneo e de sincero, será esmagado sob a pressão na nossa disciplina de ferro, corruptora e desmoralizante; substituiremos o seu pendor inato para as emoções sadias da vida por um sentimento de repulsa pelos afetos naturais e fecundos que nobilitam e engrandecem o homem; nela incutiremos o horror da verdade e o culto da mentira, a repugnância da franqueza o amor da hipocrisia, o ódio à virtude sã e a paixão pelo vício disfarçado.
Da criança que agora nos confia, inocente e incauta, faremos mais tarde um monstro de dissimulação e de torpeza, um ser repugnante e baixo, capaz de todas as infâmias, apto para todas as vilezas, idôneo para todas as abjeções, porque o ensinaremos a odiar a humanidade e a repelir, como indigno e pecaminoso, esse nobre sentimento que todo o homem deve cultivar, se quiser ser grande e forte: — o orgulho da sua espécie!
Falasse assim o miserável que teria, talvez pela primeira e única vez na sua vida, praticado essa coisa simples e banal a que todo o homem de bem se habitua, mas que os preceitos da sua ordem proíbem como uma ação culpada e negra: — dizer a verdade. Porque era exatamente essa a tareia que os Jesuítas do Internato S. Luiz desempenhavam entre aquelas paredes vetustas de convento antigo.
Felizes das crianças que pudessem mais tarde, como eu felizmente pude, por um extraordinário trabalho de reação sobre si mesmas, subtrair-se à influência nefasta da educação ali recebida, furtar-se à ação dissolvente dos princípios ali bebidos, para voltar a ocupar, sem preconceitos e sem receios, o lugar que lhes compelisse na vida. Mas ainda assim, sempre alguns vestígios ficariam nas almas da feição hipócrita que lhe procuraram imprimir aqueles insaciáveis abutres tonsurados.
Depois de trocadas mais algumas banalidades, em que o Padre José Maria (era esse o nome do Diretor do Internato) procurava invariavelmente deixar bem clara a excelência dos seus processos de ensino, meu pai ergueu-se para sair.
Abracei-me então estreitamente com ele, fazendo esforços sobrehumanos para conter as lágrimas que me borbulhavam nos olhos e os suspiros que sentia prestes a me escaparem dos lábios. O sr. Diretor afastou-se discretamente como se não quisesse perturbar com a sua presença estranha as nossas expansões íntimas.
— Não chores, meu filho, procura desde já tornar-te digno do conceito que ainda há pouco formava de ti o sr. Diretor. Aqui nada te há de faltar...
— Ah! por esse lado pode ir descansado, sr. Avelar, confirmou, solícito e pressuroso, o Padre José, aproximando-se de novo. O nosso Internato representa sempre um prolongamento natural do lar de cada um dos nossos discípulos. Nada faltará aqui ao nosso Jayme.
E paternalmente, num largo gesto de proteção e de abrigo, passou-me outra vez o braço por sobre os ombros, enquanto meu pai, rapidamente, como para fugir também à emoção que o ganhava, descia as escadas e mentia-se no carro que o esperava à porta.
Desprendi-me bruscamente do amplexo do sr. Diretor e corri à janela no momento em que a portinhola do carro se fechava sobre meu pai, tendo ainda tempo de lhe bradar:
— Muitas saudades à mamã... Diga-lhe que nunca me esquecerei do seu pedido...
E desatei a chorar soluçante, dando por fim livre curso à minha saudade e às minhas mágoas.
Que sorte me aguardaria naquela casa, que dias me estariam ali reservados?
Realizar-se-iam as minhas previsões, encontraria eu nos Padres da Companhia uns segundos pais, como me afirmavam minha mãe e as outras senhoras devotas que frequentavam a nossa casa?
Acudiam-me à mente reminiscências de casos, que ouvira narrados por pessoas que me mereciam todo o crédito, de crianças, rudemente tratadas pelos pais, cuja vida era no lar um verdadeiro calvário de suplícios, de exigências acabrunhantes, de torturas inenarráveis, e que os Padres da Companhia haviam recolhido, compensando com os mais desvelados carinhos e as mais confortantes blandícias tudo o que no passado haviam sofrido. Praticariam na verdade aqueles servos humildes do Senhor, à risca, os preceitos de Cristo, com relação às crianças tão abnegadamente queridas pelo Mártir Nazareno?
Todas estas dúvidas, informes e vagas, me assaltavam o espírito infantil, deixando-me perplexo e triste, num mudo e nebuloso pressentimento de desgraças por vindouras.
E as saudades da casa, do íntimo e aconchegante conforto das carícias que eu lá deixara, cresciam, à proporção que se ia perdendo na distância o ruído do carro que para longe de mim conduzia meu pai.
Momentos depois, conduzido pelo Prefeito e já envergando o uniforme diário do Internato — calça e dolman de brim pardo, com alamares e canhões azul e branco, e uma miniatura de S. Luiz Gonzaga, bordada a lã sobre o peito esquerdo — dava eu enteada no salão de estudo, situado na parte posterior do edifício, com grandes janelas abertas para o vasto quintal arborizado.
À minha aparição estabeleceu-se um ligeiro sussurro na sala. Miravam-me todos os alunos com olhos inquisidores e curiosos, trocando entre si, em cochichos rápidos, as impressões que o meu todo lhes produzia. A alguns deveria talvez a minha presença sugerir ideias gaiatas, a julgar pelos risos abafados que percebi.
Mas um padre obeso, de rosto papudo e severo, picado de bexigas, que, de sobre um tablado, presidia os estudos, reclamou silêncio, agitando um tímpano, e eu fui tomar assento à carteira que me havia sido destinada, quase ao fim da sala.
Depois de instalado e após os primeiros momentos de excitação, naturalíssimos em todo o colegial que pela primeira vez é posto em contato com os seus condiscípulos, comecei, a princípio entre medroso e envergonhado, e depois mais à vontade, a inspecionar os semblantes que mais próximos me ficavam.
O que mais me atraiu a atenção foi o do interno que ocupava a carteira imediatamente contígua à rainha.
Era um rapaz moreno, de aspecto sadio e forte, largos olhos negros e pestanudos, cabelos ligeiramente anelados, lábios carnudos e rubros e uma expressão de alegria comunicativa a aclarar-lhe todo o rosto. Não sei porque, me senti logo atraído por ele e tive um palpite secreto de que iríamos em breve entrar em íntima e franca camaradagem.
Creio que foi idêntica a impressão que lhe causei, porque dali a alguns instantes já conversávamos em voz baixa, procurando iludir a vigilância do padre bochechudo que do alto do seu poleiro percorria de quando em vez com os olhos a sala inteira, a ver se todos nós nos achávamos, como era de dever, entregues ao preparo das lições do dia.
Trocamos as primeiras confidências, buscando cada um, em frases rápidas, por o outro ao fato da sua ascendência e dos seus projetos futuros. Vim então a saber que o meu companheiro se chamava Carlos, que era filho único do Comendador Menezes, um dos mais ricos capitalistas da cidade e a respeito do qual por diversas vezes ouvira meu pai contar umas tantas coisas complicadas, que eu não percebia bem, mas que me davam do homem a ideia de alguém que enfeixasse nas mãos uma soma enorme de poderio e de mando.
Havia já um ano que o Carlos se achava no Internato, não por vontade própria, porque implicava soberanamente com toda aquela padralhada safada, mas porque a mãe, a d. Inês, muito chegada à Igreja, insistia pela sua permanência entre os Jesuítas, na vaga esperança talvez de que os Padres da Companhia conseguiriam realizar o mais alto desejo da sua vida, que era ver o Carlos, de tonsura, a cantar missa nova.
Aquela irreligiosidade do Carlos, aqueles modos insultuosos de tratar os padres, em quem eu me afizera a ver até então santos do céu transviados na terra, me chocaram a princípio e eu tive ímpetos de protestar e de defender os pobrezinhos de Cristo dos lábios que lhes assacava o meu companheiro.
Mas, ou fosse por timidez natural, ou porque começasse já a experimentar, inconscientemente embora, os efeitos daquele meio, surdamente hostil à sotaina, em que penetrava, o certo é que guardei silêncio e a conversa continuou, sem que eu opusesse às investidas do ateísmo do Carlos a barreira forte da minha crença religiosa.
Algumas horas mais tarde, por ocasião do recreio, em seguida ao almoço, conversamos mais desafogadamente, apertando cada vez mais os laços incipientes de simpatia e de atração mútuas que nos começavam a ligar.
O Carlos, como eu, era filho único e, como eu também, adorado pelos pais. Os mesmos princípios estreitamente religiosos, a mesma carolice exagerada e quase doentia que minha mãe, desde os mais tenros anos, me implantara no espírito, também foram semeados no espírito do Carlos pela mãe, a d. Inês, que ele cegamente adorava.
— Tu não avalias, me dizia ele, como eu quero bem à mamã! Ainda hoje, é rara a noite em que ao deitar-me não sinta as lágrimas me acudirem aos olhos, ao lembrar-me de que, apenas uma vez por mês, e isto mesmo quando obtenho boas notas, que é dado ir passar um dia a casa...
E, voltando ao seu tema predileto, desde o nosso primeiro encontro, algumas horas antes — que era falar mal dos Padres do Internato —continuou:
— Esta corja parece que tem medo de que lhe fujamos das garras... Pudera! Ainda se fossem só as mensalidades que lhes pagam os nossos pais... Mas a pechincha são os presentes, os mimos ricos que recebem... Só a mamãe tem gasto uma fortuna com estes safados... Há quatro dias, encomendou ela ao Padre Fernando, àquele que ainda há pouco presidia o estudo, quatro capelas de missas, pagando logo adiantado, e dando mais uns cobres para a cera do altar, porque o patife achou meios de convencer a velha de que, quanto mais luzes houver diante dos santos quando se celebra a missa, mais milagrosa ela se torna para a pessoa que a encomenda. Está claro que ele embolsou logo o cobre e nem uma só das missas da mamãe celebrará...
— Oh! Carlos, contrapus, isso também é demais...
— Duvidas? Pois espera um pouco que já te convences. Ontem de manhã, subia eu da sacristia onde estivera ocupado em arrumar os paramentos, e, ao passar pelo quarto do Padre Fernando, ouvi uma conversa que me despertou a atenção. Um sujeito qualquer, de voz muito grossa, dizia ao Padre: — Então, estamos entendidos: amanhã às 9 horas? — Não há dúvida... Mas, diga-me uma coisa: vem alguém da família assistir à missa? — Ora essa! Venho eu e minha mulher... —Bom, eu perguntei para saber, porque se não viesse ninguém, não havia necessidade de esperar... Ao dar das sete subia logo para o altar... Ah! patife, murmurei comigo, lá se vai à missa da mamãe vendida a outro.
E com efeito, hoje pela manhã, o Padre Fernando foi dizer a missa e recebeu depois, na sacristia, das mãos do mesmo sujeito de voz grossa com quem ontem conversava, um envelope fechado, com uma larga tarja de luto — O que excede a esportula da missa é para distribuir com os pobres em nome do finado... disse-lhe ele. E o Padre, gulosamente, sumiu pelo bolso da batina o envelope com as pelengas... E agora que me dizes a isto, duvidas ainda?
— Mas tu viste o Padre receber o dinheiro? perguntei, ainda nuns restos de dúvida.
— Vi, menino, vi com estes olhos que a terra há de comer. E, como estas, sei de outras muitas, que te hei de contar com vagar.
E, como se lesse nos meus olhos a desilusão que me ia lentamente caindo n’alma àquelas revelações inesperadas, e os laivos de dúvida e de desconfiança que ainda me pairavam no espírito acerca da sua sinceridade, o Carlos acrescentou:
— Parece-te difícil de acreditar tudo isto que te estou contando, não é assim? Também eu duvidei a princípio, quando aqui cheguei e quando os outros, já antigos na casa, me vieram narrar coisas idênticas. Mas dentro de muito pouco tempo convenci-me da verdade, e, digo-te com franqueza, toda esta canalha de padres, nem queimados vivos pagam o que fazem.
E para ali ficamos os dois a tagarelar, até que ressoou o toque de sineta, que nos chamava a fazer a visita diária ao Santíssimo Sacramento.
Formamos todos, dois a dois, e assim nos encaminhamos para a Igreja.
Pela nave deserta, envolta numa meia obscuridade soturna e triste, os morcegos esvoaçavam, espantados pelo tropel que fazíamos. Em frente ao altar mor, onde o sacrário se erguia vistoso e grave, nos seus doirados reluzentes, uma lâmpada pendia, presa ao teto por uma longa e fina corrente de ferro, e dos lados da Igreja, eretos e solenes, nos seus nichos circulados de flores e de franjas de papel prateado, enfileiravam-se os santos, alguns dos quais de uma escultura primitiva e grosseira, com as cores dos hábitos desbotadas e aqui e ali uma arranhadura profana. Um cheiro místico a bafio e incenso contaminava o ar, e da rua, que um sol ardente escaldava, chegavam uns ruídos vagos de população azafamada no trabalho.
Ajoelhamos todos em fila de frente do santuário e o Padre Fernando, genuflexo também, em meio do primeiro degrau do altar, começou em voz pausada e clara a recitar o Ato de Adorarão, que íamos todos repetindo, num sussurro mole e soturno de melopeia.
Do lugar em que me achava, apenas avistava o toutiço forte do padre, rudemente plantado nos ombros, dando-me a ideia esquisita de um cachaço de touro, luzidio e gordo, onde a marca da canga se não tivesse ainda imprimido em sucos inapagáveis.
E, por uma estranha associação de ideias, começaram a acudir-me à mente, aos pedaços, retalhadamente, reminiscências de uma temporada que fora, com meus pais, passar numa fazenda de gado, de uns parentes nossos, no interior da Província. Lembrava-me perfeitamente de um touro malhado, que todas as tardes recolhia ao curral, situado ao lado da casa grande, urrando, escavando furiosamente o solo com uma das patas dianteiras e atirando, de cada vez, para o ar uma nuvem densa de poeira. Era um animal soberbo, um admirável specimen da força bruta, na sua mais completa e rude manifestação. As novilhas, de longe, pareciam namorá-lo medrosas com o olhar, quando ele surgia na extremidade do terreiro, garboso, provocador, invencível, com os chavelhos arqueados, os olhos reluzentes, todo envolto na poeira luminosa e doirada do acaso.
— Se o boi tivesse a consciência da força de que dispõe, seria indomável, disse-me uma tarde meu pai ao ver-me absorto na contemplação do touro. E não sei porque aquela frase, ouvida há tanto tempo, e a qual nunca liguei importância especial, me cantava agora teimosa aos ouvidos.
A Igreja, os santos, os internos ajoelhados, a lâmpada triste pendente do teto, os ruídos da rua, tudo aquilo me ia lentamente desaparecendo da vista e dentro em pouco eu apenas tinha diante dos olhos um imenso terreiro descampado, em meio do qual urrava um touro, um touro bestial e forte, indomável e lúbrico, no qual reconhecia com pasmo as feições do Padre Fernando, lendo-lhe ao mesmo tempo nos olhos a consciência da sua própria força...
Meia hora antes de se recolherem ao dormitório, isto é, às sete e meia da noite, deveriam, invariavelmente, os alunos do Internato assistir a uma leitura pia, feita por um padre, semanalmente designado para tal fim pelo Diretor.
Conhecia eu já essa praxe, pelas repetidas e cuidadosas leituras que do regulamento do Internato havia feito, de forma que me não senti surpreendido quando, nessa primeira noite, três badaladas vibrantes nos chamaram para o piedoso exercício.
Os alunos, num movimento uniforme e quase que simultâneo, fecharam os livros, guardaram nas gavetas os cadernos e os petrechos de escrita e, a um aceno do padre que presidia o estudo, se puseram em marcha, dois a dois, em direção à sala de leitura.
— Quem faz hoje a leitura? perguntei ao Carlos que seguia ao meu lado.
— O Padre Roberto, respondeu-me ele em voz baixa. Tu já o conheces, de certo?
— Muito. E não calculas como gosto dele...
— Também eu... De toda esta canalha que nos cerca é o único com quem simpatizo... Tem uns modos tão delicados e tão singelos de falar à gente... Depois disto não é intrigante, nem anda a espiar o que se faz ou se diz durante o recreio para ir em seguida meter tudo no bico do Diretor.
A sala de leitura era uma vasta peça, de paredes nuas, com duas grandes janelas ao fundo, entre as quais se achava disposta uma mesa de cedro, já ocupada, na ocasião em que entramos, pelo Padre Roberto.
De um lado e outro, deixando apenas uma passagem estreita ao meio, alinhavam-se em fila, pesados bancos de pinho, pintados de verde, onde fomos tomar lugar, por ordem de idade: os menores ocupando as primeiras filas e os maiores as últimas.
Do centro do forro pendia um candelabro de três bicos, por onde o gás se escapava assobiando.
Sobre a banca um fotomobile aceso e um grosso livro de encadernação de couro.
O Padre Roberto era muito moço ainda; poderia ter, no máximo, vinte e seis anos. Magro, franzino, de rosto chupado e pálido, fronte larga e cabelos anelados e escuros, todo ele respirava mansidão e doçura. Os olhos rasgados e negros viviam perenalmente velados por uma sombra de tristeza resignada. Quem o visse pela primeira vez conheceria logo que lhe não tinha sido benfazejo o destino; grandes tempestades de dor deveriam de certo ter brutalmente sacudido aquela existência. Por baixo da sotaina negra, que lhe envolvia agora o corpo descarnado, dormia sem dúvida uma grande e incompreendida desventura, dessas que para sempre envenenam uma vida.
E, na verdade, corria à cerca do Padre Roberto uma lenda dolorosa e triste.
Contava-se que ele fora forçado a ordenar-se pela vontade despótica de um pai que se supunha obrigado a imolar a Deus a mocidade do filho para alcançar a salvação.
O pobre rapaz, sem forças para reagir contra a pressão paterna, abandonou aos quatorze anos a sua vila natal e veio para o Seminário da capital, tomar ordens.
Aumentava ainda mais as saudades que trazia do lugarejo humilde que o vira nascer e onde a sua primeira infância se escoara, a lembrança de uma prima que lá deixara, da mesma idade que ele, de uma prima que fora a companheira de todos os seus folguedos de criança e cuja imagem agora, perdidamente querida, vivia na sua alma, tornando mais pesado e mais negro o sacrifício que lhe impunham.
Depois de ordenado voltou à sua aldeia, para visitar o pai.
Quando lá chegou, porém, o velho havia sucumbido a um ataque de apoplexia, em seguida a uma resigna com um vizinho que lhe mandara atirar a uma vaca de estimação, sob o pretexto de que o pobre animal invadira a sua propriedade, danificando-lhe umas plantações.
A Maria, tal era o nome da prima, estava casada, havia mais de três anos, com um bruto, que vivia quase sempre bêbado e que a espancava noite e dia. Não fora por vontade própria que a infeliz se ligara para sempre a semelhante monstro. Se lhe fosse dado obedecer às suas inclinações, seria Roberto o preferido. Embora não pudesse casar com ele, permaneceria sempre fiel à sua memória, amando-o em silêncio, por entre os refolhos íntimos da sua alma de virgem.
Mas o tio, o pai de Roberto, em cuja companhia vivia a rapariga, desde que lhe haviam morrido os pais, deixando-a na mais nua das misérias, forçou-a àquele enlace, seduzido talvez pela pequena fortuna de que dispunha o noivo. E a pobrezinha sujeitou-se à vontade despótica do tio com a mesma resignação mansa com que Roberto outrora se havia curvado ao capricho opressor do pai.
E começou a sua vida de torturas, e foi iniciado o seu martírio.
Quando o padre a viu de novo parecia ela uma sombra do que fora em tempos. As rosas da mocidade de há muito se lhe haviam desbotado nas faces, o brilho dos olhos se apagara, afogado nas lágrimas, e os seus cabelos, os seus formosos cabelos, castanhos e crespos, estavam já salpicados de inúmeros fios brancos.
Ah! que imensa dor que sentiu o rapaz ao contemplar a prima, a sua querida companheira de infância, a sua inocente e casta amada, como ele imolada à tirania do pai! Estreitou-lhe as mãos em silêncio, encarou-a longamente, num demorado olhar de afeto e de comiseração, e dos seus lábios brotaram afinal palavras amigas de conforto e de animação. O amante desaparecera para dar lugar ao padre, ao supremo consolador das grandes dores morais.
No seu íntimo uma onda de desespero e de revolta borbulhava, soprada pelo demônio, dando-lhe ímpetos de amaldiçoar a memória do pai.
Mas nem um vestígio sequer dessa tempestade secreta se lhe desenhou na face. Encaminhou-se para o cemitério, ajoelhou junto à sepultura humilde do velho e ali permaneceu por mais de quatro horas em fervorosa oração. No dia seguinte, sem rever a prima, voltou à cidade e veio para o seminário.
Começou então a sua vida de apóstolo, inteiramente devotado aos deveres da sua profissão. Uma piedade infinita lhe transbordava d’alma por todas as misérias humanas. Onde houvesse um doente ou um infeliz lá se achava invariavelmente o Padre Roberto, a prodigalizar-lhe os consolos da religião.
Formou-se ao seu derredor uma lenda de santidade, que ele procurava por todos os meios desfazer, porque lhe repugnavam ao espírito reto e simples as superstições grosseiras do carolismo.
Mas tudo debalde. O homem era santo proclamavam as devotas e quando passava pela rua ou atravessava a Igreja em direção ao altar, benziam-se todas, estendendo para ele as mãos e levando-as depois aos lábios.
Eu conhecia toda a história do Padre Roberto e tinha por ele uma veneração cem limites. Naquela noite, enquanto o santo homem ia desfiando a história do santo do dia, entremeando-a de reflexões piedosas, eu, estático, absorto, não despregava dele os olhos. Fazia-me bem, depois das coisas horrorosas que me havia contado o Carlos, contemplar finalmente um padre que em tudo correspondesse às ideias que a respeito desses representantes de Deus na terra me havia semeado n’alma minha mãe.
— Ao menos este, dizia comigo, será incapaz de praticar os horrores cometidos pelo Padre Fernando.
E durante toda a noite sonhei com o Padre Roberto, vendo-o subir lentamente para o céu, cercado de anjos, que entoavam cânticos harmoniosos e doces.
À entrada do Paraíso, toda vestida de branco, risonha e feliz, destacava-se uma mulher muito moça ainda, formosa e meiga.
— É Maria, a Noiva do Padre, que o aguarda para efetuar no céu as suas núpcias místicas — segredava-me uma voz desconhecida. Eu fazia esforços sobrehumanos para descobrir o rosto de quem assim me falava, mas tudo em vão. Não via ninguém, apenas ouvia aquela voz misteriosa a repetir:
— É Maria, a Noiva do Padre...
Quando acordei pela manhã, ao toque da sineta das cinco horas, parecia-me que nunca mais se me apagaria da retina aquela visão extraordinária.
A partir desse dia da minha entrada para o Internato, que foi também o do nosso primeiro encontro, a minha camaradagem com o Carlos se foi cada vez mais estreitando, até degenerar numa amizade sólida e duradora, numa dessas afeições sinceras e dedicadas que estabelecem entre dois homens um laço indissolúvel, tornando a personalidade de cada um como que um complemento e uma extensão da do outro.
Cada dia que se passava um no outro encontrávamos um motivo novo de atração e simpatia. Tínhamos os mesmos hábitos e os mesmos gostos, as nossas inclinações eram semelhantes, idênticas as nossas aspirações. A minha crença religiosa aos poucos foi sendo modificada ao contato do ceticismo do Carlos e ao fim do primeiro ano de convivência já alimentava as mesmas ideias que ele acerca de toda aquela padralhada.
Mas quando fui passar a casa as férias desse ano procurei cuidadosamente encobrir de minha mãe a súbita mudança que no meu íntimo se operava.
Bem sabia avaliar a dor intensa da pobre senhora se pudesse penetrar nos recessos da minha consciência e ver que de lá haviam sido banidos todos os seus ensinamentos; contive-me, pois, para poupar-lhe semelhante desgosto, continuando como dantes e como as mesmas aparências de sinceridade e de fé, a acompanha-la às missas e a todas as outras funções religiosas.
Ao fim de cinco anos deixamos de vez o Internato e fomos completar no Liceu o nosso curso de preparatórios.
Aí continuamos ainda inseparáveis; frequentávamos as mesmas aulas, tomávamos os mesmos professores particulares, prestávamos juntos os mesmos exames e obtínhamos quase sempre as mesmas aprovações.
Terminados os preparatórios, o Carlos para fazer a vontade ao pai, já que não tinha encontrado forças para preencher os desejos secretos da d. Inês — que era vê-lo de tonsura — seguiu para o Recife a conquistar o diploma de Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas.
Eu, depois de quase um ano de indecisão entre os diversos cursos superiores do país, resolvi não seguir nenhum e deixar-me ficar em companhia de minha mãe, já viúva, e mascarar a minha ociosidade com os aparatos de gerente da pequena fortuna deixada por meu pai. A pobre senhora, que nunca soube ter mando sobre mim, concordou imediatamente com todos os meus pianos, exultando talvez no íntimo à ideia de me ter sempre ao lado, apegado à quentura das suas saias.
Iniciei então a minha vida de inútil, na qual permaneci até ao dia em que me casei e constitui família. Os novos encargos e as novas obrigações contraídas me fizeram tornara sério o meu papel de cidadão útil e a sério, por consequência, cuidar dos meus modestos haveres.
O Carlos, no Recife, começou dentro de muito pouco tempo a fazer figura.
A sua alta inteligência, sempre pronta e assimilar e a reter tudo aquilo sobre que se concentrava, e, sobretudo, a farta mesada que invariavelmente, nos começos de cada mês, lhe metia para o bolso a prodigalidade incansável do Comendador Menezes, logo lhe deram um certo ascendente entre os colegas de ano e que mais tarde se estendeu a todos os outros alunos da Faculdade. Era sempre o escolhido para representar o seu ano em todas as funções acadêmicas; a sua opinião em assuntos de interesse geral formava invariavelmente a norma suprema de conduta dos colegas.
Dois anos depois de matriculado na Faculdade, entendeu o Carlos que deveria fundar uma revista literária.
Desde o Internato tivera sempre a mania de rabiscar para o público e por diversas vezes uns jornalecos de estudantes da terra haviam inserido contos e versos da sua lavra, com grande gaudio do Comendador que sonhava já no filho um Rebelo da Silva ou um Herculano, nomes que representavam para o capitalista português as duas mais culminantes glórias mentais da sua pátria.
Esses ensaios literários do Carlos, frouxos e incorretos como de ordinário o são os de todos os principiantes, revelavam contudo no jovem escrevinhador a posse de qualidades raras que, cultivadas e polidas, poderiam mais tarde produzir trabalhos de merecimento. De forma que, quando correu na terra a notícia de que ia aparecer no Recife uma revista sob a direção e a esforços do Carlos, ninguém se sentiu surpreendido e todos pelo contrário auguraram bem da nova publicação.
O Comendador, esse então exultou de alegria e de orgulho.
— É agora, pensava consigo, é agora que me vai o rapaz fazer um novo Eurico ou uns novos Fastos da Igreja.
Mas quando chegou o primeiro número da revista todo o entusiasmo do capitalista esfriou, foram-se por água abaixo todos os seus açodamentos.
O artigo de fundo, traçado pelo Carlos, causou-lhe a princípio uma surpresa estarrecida que em breve degenerou numa fúria sem nome. Nas altas rodas comerciais da terra foi idêntico o efeito causado e, se não fossem o dinheiro e a alta posição do Menezes, os a pedidos dos jornais indígenas se pejariam de insultos virulentos ao acadêmico.
A revista intitulava-se A Nova Pátria e o artigo de apresentação era a mais violenta e mais audaz das catilinárias contra Portugal e a influência do elemento português na constituição da nacionalidade brasileira. O Carlos começava a largos traços e por uma série de proposições, até certo ponto gratuitas e paradoxais, afirmando a incapacidade colonizadora do português.
Para ele, essa brandura e essa humanidade aparentes que alguns publicistas e historiadores estrangeiros reconheciam nos processos de colonização de Portugal, nada mais representavam do que uma inépcia por assim dizer congênita e uma carência absoluta de orientação e de planos a seguir.
Depois do brilho fortuito e esporádico dos finais do XV e dos começos do XVI séculos, Portugal recaiu de novo na sua apatia e no seu marasmo habituais. Deixava correr ao Deus dará o povoamento e a organização das suas colônias, concedendo-lhes uma soma de liberdade em extraordinária desproporção à que era outorgada às suas pelas outras nações da Europa, não por um princípio de humanidade e de justiça, nem porque alimentasse planos que seriam ulteriormente executados, mas simples e exclusivamente porque não sabia o que deveria fazer e nem com semelhante problema se preocupava.
A preguiça inata do português, a indolência que lhe é peculiar e, sobretudo, a sua profunda incapacidade progressiva, lhe não permitiam cuidar a sério da colonização das terras que um acaso venturoso, uma espécie de azar de jogo, lhe fizera cair nas mãos. Calabar fora um herói, o maior estadista, o mais arguto político brasileiro de todos os tempos.
Já naquela época compreendia ele os proveitos imensos que nos adviriam da colonização holandesa e os altíssimos prejuízos que da portuguesa para nós decorriam. A sua memória, longe de ser execrada nos compêndios de história pátria que o governo mandava meter nas mãos dos alunos das escolas públicas do país, deveria pelo contrário ser exaltada como a de um herói e de um benfeitor da nação.
Se os seus planos houvessem vingado seríamos hoje a primeira nação do mundo, ao invés de sermos, como somos, quase que a derradeira. Todos os vícios portugueses haviam passado para o sangue brasileiro e as raríssimas qualidades aproveitáveis que nos legaram não bastam para compensar o inoculamento dos primeiros.
E, depois deste introito disparatado e escandaloso, punha-se a delinear os intuitos da nova publicação. Partindo do princípio de que era o português o inimigo da prosperidade do país, afirmava que o dever de todo cidadão era combater o português. Fizera-se já a emancipação política: pois bem, que se fizesse também a emancipação comercial e a emancipação literária. E era por esta última que vinha pugnar A Nova Pátria.
Semelhante emancipação deveria começar pela língua: já que nos era impossível adotar do pé para a mão uma outra que fosse falada por gente civilizada, na larga e completa acepção do qualificativo, que ao menos se procurasse imprimir a que nos coube por sorte uma feição própria, tornando-a mais leve, mais maleável, mais flexível, mais capaz de se acomodar a todas as nuances e a todas as sutilezas do pensamento moderno.
O português genuíno, o português verdadeiro, o português clássico, só servia para contar coisas pesadas e brutas como pesados e brutos eram os alfanjes dos antigos mata mouros barbudos que haviam partido a conquistar a índia. Para uma Década da Ásia vinha a calhar, parecia mesmo feito de encomenda.
Agora para um livro moderno, para a veiculação de um pensamento leve, ático, elegante, para um efeito de frase artística e burilada, não servia, absolutamente não prestava, era tosco, era primitivo, era fóssil, era antediluviano.
As produções literárias portuguesas ou eram originais ou de imitação estrangeira. No primeiro caso proveito algum nos trariam como fonte inspiradora. Que diabo nos poderiam contar de novo, que já de cor e salteado não soubéssemos, as lucubrações literárias dos raríssimos artistas portugueses dignos deste nome? A tomada de Ceuta, a derrota de Alcacequibir, o sumiço de D. Sebastião, a invasão do espanhol, a fundação da dinastia de Aviz e outros fatos, gloriosos, é certo, mas que só a eles interessavam.
A outra parte, a imitada do estrangeiro, essa apenas nos traria um decalque avariado e grotesco dos modelos franceses. Seria muito melhor que nos emancipássemos de vez, que mandássemos ensinar obrigatoriamente o francês nas nossas escolas primárias e fôssemos depois tratar diretamente com os fornecedores, dispensando a intervenção lusitana. Teríamos assim gêneros de primeira mão, novinhos em folha, sem avarias e sem alterações, e economizaríamos ainda a mais as despesas de comissão e baldeação.
E neste tom seguia o Carlos, paradoxal, absurdo, agressivo, jogando postulados sem lhes buscar primeiro verificar a exatidão histórica, avançando proposições inexatas, afirmando inverdades, sem descer a examinar imparcialmente as bases em que assentavam.
Obedecia cegamente ao jacobinismo literário que soprava desencadeado nos dois principais centros universitários do país, declarando guerra de morte às letras d’além mar.
Mas o Comendador Menezes e os outros portugueses da terra não pensavam assim; não davam o devido desconto ao meio literário em que respirava o Carlos, nem tão pouco à irreflexão e ao fogo da idade. O primeiro apenas via naquela tirada iconoclasta um grave desrespeito à autoridade paterna e cada um dos últimos um insulto pessoal.
As coisas de tal forma se enfarruscaram que o Menezes chegou a pensar em cortar a mesada ao filho, fazê-lo recolher aos penates e forçá-lo a abraçar a carreira comercial. As lágrimas da d. Inês, porém, os conselhos de alguns amigos sensatos e uma carta de retratação do Carlos, chorosa e humilde, abrandaram o velho e o rapaz pode continuar o curso, sacrificando apenas a Revista que morreu no primeiro número.
O Comendador Menezes resolveu só lenisar com um baile suntuoso a formatura do Carlos. E como em tudo o que dissesse respeito ao filho não olhava o dinheiro, abriu os cordões da bolsa e pôs-se a gastar à vontade.
Dez dias antes da chegada do paquete que deveria restituir aos pátrios lares o novo bacharel, começaram a circular pela cidade os convites, impressos em letras douradas, trazendo ao alto, no canto esquerdo, uma vinheta simbólica, em sangiuneo: um cavalheiro empoado, dando a mão à dama, para executar um passo complicado de minuete.
Os jornais que viviam dia e noite a engrossar o Comendador, fazendo-lhe zumbaias de toda a espécie, começaram a boquejar acerca da projetada função. Seria uma festa única, rompendo com a rotina pelo qual se haviam guiado até então todos os outros promotores de solenidades congêneres.
Dançar-se-ia o cotillon, coisa inteiramente nova na terra, porque os anais coreográficos indígenas não registavam ainda semelhante dança. Era uma importação parisiense, trazida pelas filhas do Matoso, umas meninas elegantes e chiques, chegadas havia pouco da Europa, em companhia do pai, e que viviam a embatucar as companheiras pelas suas toaletes à la dernière e pelos seus modos delambidos e es- pevitados.
Durante os dez dias que mediaram entre a distribuição dos convites e a chegada do vapor, o baile do Menezes foi o assunto predileto de todas as rodas. Na porta do botequim do Torres, da farmácia do Villaça, da livraria do Ramada, enfim em todos os pontos de reunião e de cavaco, não se falava de outra coisa. As lojas de modas viviam durante o dia cheias de moças, a comprarem vestidos, a escolherem enfeites, a separarem bordados. As modistas não tinham mãos a medir e os alfaiates da mesma forma.
O Bertoldo, dono da única empresa de carruagens da terra, via-se em palpos de aranha para com os doze carros atender a todos os pedidos. Ainda se os convidados se resolvessem a comparecer uns mais cedo o outros mais tarde, iria tudo muito bem. Mas, qual! queriam todos entrar às dez bocas em ponto, porque as Mattoso haviam propalado que a gente chiques não entrava para um baile de luxo nem antes, nem depois das dez.
E o pobre do Bertoldo já não sabia a quantas andava... Queriam todos os respectivos carros à porta às dez menos um quarto!
Ah! se lhe fosse dado, por um momento, na noite da festa, transformar-se em Cristo e fazer dos carros pães... Multiplicava-os indefinidamente, ficariam assim satisfeitos os fregueses, e ninguém teria razão de queixa.
Chegou finalmente o grande dia e o palácio do Menezes, profusamente iluminado, começou desde as nove da noite a encher-se de convidados, porque a maior parte dos que se viram forçados a quebrar a etiqueta da entrada às dez, preferiu entrar antes a entrar depois. Teriam assim mais uma hora de pandega e de folguedo.
Em frente à porta de entrada, aberta de par em par e flanqueada por dois enormes jarros de plantas, apinhava-se a multidão, acotovelando-se irrequieta e borborinhante, a gozar do espetáculo da entrada dos convidados. Duas charangas militares, acomodadas em pesados bancos de madeira no passeio fronteiro, todas as vezes que um carro parava a despejar convidados, tangiam ensurdecedoramente os instrumentos, a executar, como anunciara o Velloso, redator do Jornal da Lavoura, “as mais escolhidas peças do seu seleto repertório”.
Diversas vendedoras de doces, confundindo o baile do Menezes com qualquer festa de arraial, se haviam instalado nas proximidades, com as bandejas repletas sobre as clássicas banquinhas de madeira e ao lado o infalível pote d’água.
Quem não teve convite para a festa ou quem andava em quebradeira e não se pode por isso preparar para a dita, foi para o sereno, a gozar de longe o que lhe não era dado fruir de perto.
Internamente, era deslumbrante o efeito dos salões do Comendador. Tudo o que havia de mais seleto na cidade lá se achava reunido, a abrilhantar a festa, a adular o capitalista e a cercar de elogios e de mesuras o novo bacharel.
O velho exultava de contentamento e de orgulho, baboso e feliz, com aquele estupendo triunfo. Tinha o filho formado, o que sempre constitui o sonho mais querido de toda a sua vida, e via agora ao redor de si, a partilhar da sua alegria, desde o Governador do Estado até ao mais humilde caixeirito de comércio a retalho. Não cabia em si o Menezes; andava de um para outro lado, a distribuir apertos de mão, a agradecer felicitações, a obsequiar os convidados.
— Que se não acanhassem, que se fossem servindo do que quisessem, à vontade. Era como se estivessem todos em suas casas.
E indicava o bufete, ao fim da varanda, num terraço esplêndido, que dominava o jardim, iluminado a capricho por balõezinhos de papel de cor.
Rompeu o baile com uma sinfonia do maestro Fidelis Borba, uma glória musical da província, que nas horas vagas não desdenhava também a sovela de sapateiro. As suas valsas e as suas botinas gozavam de invejada, fama, eram atestados eloquentes dos seus duplos talentos de artista e de artífice. Se uma menina martelava um piano numa sala, anunciando que estava a executar uma composição do Fidelis, aplaudiam todos incondicionalmente. Se um dandy ostentava umas botas reluzentes e afirmava que fora o Borba quem as havia feito achavam todos o calçado uma maravilha. A única singularidade do caso era que, quando se referiam ao maestro, diziam o Fidelis e, quando tratavam do sapateiro, chamavam o Borba. Nunca houve quem conseguisse atinar com a razão de semelhante esquisitice. Eram coisas, hábitos inveterados do povo, que iam passando de uns a outros, assim uma espécie de idiotismos de linguagem, que toda a gente perpetra e que ninguém sabe explicar como se formou.
A sinfonia intitulava-se: — Honra ao Mérito! e era dedicada “ao exm. sr. Comendador Gastão Menezes, por ocasião da formatura do seu dileto filho, dr. Carlos Ferreira Menezes”.
Quando a orquestra, que o Fidelis, de casaca alugada, dirigia em pessoa, terminou a execução do trecho, uma trovoada de palmas estrugiu, e o Comendador, com os olhos úmidos veio apertar as mãos ao maestro. Este último rejubilava: tinha como certa a facada de cem mil reis que pretendia, no dia seguinte, aplicar ao capitalista.
O baile prosseguiu animado, dançando-se sem cessar até às 5 da manhã. O cotillon foi um sucesso, dirigido pelo Carlos e por uma das Matoso, a Noquinha, que fazia o possível por prender o novo bacharel nas malhas irresistíveis dos seus encantos. Mas a pobrezinha perdia o tempo... e as denguices; o Carlos já estava filado e nunca teria ela o prazer de justapor ao Matoso do apelido um sonoro Menezes.
O serviço do bufete foi feito com asseio e largueza, tanto que ficaram celebres na terra os pifões do baile do Comendador Menezes. Raro foi o convidado que de lá saiu no seu juízo perfeito. Até o dr. Venâncio, Governador do Estado, homem pacato e sério, de rijos costumes e de sobriedade exemplar, tinha a língua um tanto presa ao despedir-se do Comendador e, na porta da rua, tratou por tu o seu ajudante de ordens, mandando-o subir para o carro em primeiro lugar. O Barbalho, professor público do interior, que andava atrasado nos vencimentos, aproveitou-se da ligeira embriaguez governamental para lhe arrancar a promessa de que no dia seguinte seriam transmitidas ordens terminantes ao Inspetor do Tesouro para pôr em dia o zeloso funcionário.
Mas se os efeitos da cerveja e da champagne à vontade não passassem disso, de prisões de língua, de atuamento de empregados subalternos e de promessas de saldar débitos públicos antigos ia tudo muito bem. O pior, porém, é que houve gente que se emborrachou a valer e deu escândalos de toda a sorte.
O mais saliente de todos foi o Cardoso, professor de matemática no Liceu, que ficara sempre com uma pontinha de má vontade ao Carlos desde o exame de Aritmética.
O Carlos foi para o ato numa fosforescência vergonhosa e, na prova oral, pôs-se a provocar o professor. O homem encordoou deveras e quis reprovar o atrevido estudante; mas lembrou-se em tempo de que era inquilino do Comendador e andava atrasado nos alugueis, de forma que teve de tragar a irreverência e aprovar o rapaz.
Mas nunca lhe perdoou aqueles gracejos impróprios com a matemática, de forma que nessa noite, tendo já no cérebro o vapor de uma boa meia dúzia de copos de cerveja e outros tantos grogues de conhaque, reviveu os antigos azedumes.
Conversava num grupo, quando passou o Carlos, dando o braço a uma senhorita.
— Aposto com vocês em como aquele pedante ainda não sabe reduzir duas frações ao mesmo denominador...
— Ora deixa lá as frações e os respectivos denominadores em paz e vamos a cerveja, fizeram os outros conciliadores.
Mas, qual! o Cardoso teimava, embrulhando a língua e cuspindo grosso, em que o Carlos nada sabia de Aritmética e que não podia, portanto, ser um bom bacharel. Todo o homem que possui um título cientifico tem por obrigação saber reduzir frações — é a base de tudo, são as frações. Quem não souber trabalhar com as frações, domesticá-las, chamá-las ao bom caminho, como se faz com os animais e com as crianças malcriadas, que vá ser tudo: carroceiro, carregador de pedras, cocheiro de bonde, mas que nunca se lembre de ir frequentar uma academia. E, como os companheiros rissem, o professor formalizou- se, supondo que estivessem a fazer pouco d’ele e a pôr em dúvidas as suas declarações.
— Ah! vocês duvidam? Pois então esperem...
E, aos tombos, sem que os outros o pudessem conter, partiu na direção, do Carlos que de novo se avizinhava, sempre de braço com o par.
— Olá, seu bacharel das dúzias, você já sabe reduzir frações ao mesmo denominador? foi logo perguntando e interrompendo o passeio dos dois.
Era de fazer rir as pedras o modo por que ele pronunciava a palavra denominador: a língua entaramelada e o queixo preso lhe não deixavam emitir com clareza todo o vocábulo, de forma que só se ouvia o começo da primeira sílaba, a segunda com as letras invertidas, o n antes do o e as duas finais: d’...on...a...dor.
O Carlos estacou rindo, tendo num relance compreendido o estado irresponsável do outro.
— Já, professor, já sei tudo isso... e procurou com brandura desviá-lo.
Mas o professor emperrava:
— Qual! você não sabe nada... você é uma besta... você só tem por si dinheiro... você é mais burro do que uma porta...
E procurava impedir a passagem ao Carlos, plantando-se-lhe em frente, com as pernas trôpegas, o busto oscilante e uma baba grossa a escorrer-lhe pelos cantos da boca.
Foi preciso que a gente que ali estava por perto interviesse, levando o professor à força para os fundos da casa. E no meio da balbúrdia e da confusão escandalosa que se estabeleceu ouvia-se sempre a voz avinhada do Cardoso a berrar e a repetir, como um estribilho burlesco, a palavra d’...on...a...dor...
Formado, rico, inteligente, adulado por todos e por muitos deveras querido, poderia o Carlos quedar-se ocioso numa dessas existências brilhantes e fáceis, a que um verniz artificial de atividade empresta uma tal ou qual justificativa aparente. O dinheiro do Comendador dava-lhe de sobra para isso, porque o homem era rico a valer, ou, pelo menos, gozava de tal conceito, o que vinha a dar no mesmo, para os efeitos da mandriice do Carlos. À sombra do credito do pai, viveria à larga, encontrando abertas todas as portas e de cordões frouxos todas as bolsas.
Montaria, para coonestar as coisas, um escritório de advogado, chamando para o auxiliar, quando a clientela afluísse numerosa, um ou dois solicitadores práticos, sobre os quais descarregaria o grosso da tarefa, reservando apenas para si as incumbências amenas, como a de discursar no júri, assinar as razões redigidas pelos solicitadores, entrevistar as testemunhas bonitas, devassar os segredos e os escândalos das alcovas de amor, atrair sobre o seu todo elegante, sobre as suas botas engraxadas, os seus fraques bem talhados, os seus plastrons corretos, os olhos embasbacados do público nas audiências de sensação, etc., etc. Que melhor vidoca do que essa que muita gente boa invejaria?... E os clientes se não fariam esperar, porque a influência dinheirosa do Menezes, infalivelmente refecida no filho, constituiria um chamariz de primeira ordem... A justiça humana nem sempre é insensível à posição social e aos bens de fortuna dos que a solicitam. Toda a questão reside em fazer valer com habilidade e com jeito a força útil de semelhantes predicados...
Se lhe não agradasse essa intrujice disfarçada, inúmeros outros meios honestos e dignos de mascarar a sua inutilidade se lhe antolhavam, atraentes e fáceis: o jornalismo, as belas letras, o professorado oficial e tantíssimas outras profissões liberais que todos acatam e veneram e que, afinal de contas, bem joeiradas e bem espremidas, nada mais produzem do que isso: o acatamento e a veneração dos outros, exigindo apenas dos que as exercem o insignificante trabalho de declarar em público que as estão exercendo. Ali estava o Jornal da Lavoura que o Velloso de boa vontade torraria por qualquer dinheiro, para ser agraciável ao Comendador o na esperança de apanhar talvez depois, como redator disfarçado, gordos honorários. Para ser jornalista festejado na sua terra, que lhe era necessário fazer l? Duas coisas facílimas e ao alcance de toda a gente: desprezar o bom senso e cultivar o solecismo. Ora, o seu simples diploma de Bacharel em Direito constituía a mais forte das presunções em favor da posse desses dois vantajosíssimos predicados.
Ali tinha a cadeira de Língua Portuguesa do Liceu, vaga pela morte recente do Atanásio, o célebre autor da Gramática Portuguesa ao alcance de todos, obra empanturrada e soporífica, que todos apregoavam como um trabalho papafino, mas que ninguém se sentia com coragem de ler, a não serem os pobres alunos que a tinham de levar na ponta da língua para o exame, se não quisessem apanhar um R. Que diabo lhe custava inscrever-se no concurso que ia ser aberto por aqueles dias e surripiar a cadeira, embora desconhecendo por absoluto o que dos candidatos se exigia, que era apenas analisar mecanicamente o Camões, dizer sem titubear quantas absolutas e quantas subordinadas se continham em cada estrofe do poeta piloto? Haveria lá examinador que tivesse coragem de reprovar o filho do exm. sr. Comendador Menezes, negociante matriculado e Diretor de Ranços?
Não lhe servia o jornalismo ou o professorado? Pois então que enriquecesse a literatura pátria, um outro meio cômodo de ganhar fama sem trabalho. Tinha às ordens a grande casa editora de Bernardes & C., de que era comanditário o Comendador Menezes. Que fizesse livros, que escrevesse romances, que estudasse os nossos costumes locais, tendo apenas em vista aquele preceito verdadeiro, já esboçado outrora pelo orador romano: que toda a palavra impressa não tem, em última análise, outro alvo a não ser o de encher de linhas negras uma coluna branca.
Nada d’isto lhe convinha? Não se sentia tentado ante nenhuma d’estas perspectivas?
Nesse caso ainda havia coisa melhor: era fazer um casamento vantajoso, isto é: desposar uma das herdeiras ricas da terra, aumentando assim o seu patrimônio, irem seguida fazer um giro pela Europa, sob o pretexto de aprofundar na Alemanha os seus estudos jurídicos e na volta, então, escolher a carreira a seguir. Noivas nas condições não faltavam, ali as tinha à mão, aos punhados. As filhas do Matoso, chiques, elegantes, falando o francês como umas parisienses e tocando piano que era mesmo uma maravilha; a neta da d. Virgolina, a Yáyá Vergueiro, uma morena de truz, possuidora de um par de olhos capazes de pôr a arder os miolos de um santo, e de um dote também capaz de acender a cobiça ao mais desinteressado franciscano; a Nhazinha Gomes, pupila e sobrinha do Cônego Sirino, coberta de apólices da dívida pública, de sardas e de pó de arroz; e como essas muitas outras que não desdenhariam em encontrar ao lado, no leito, nupcial, na manhã seguinte ao casamento, aquele belo rapaz, vigoroso e sadio.
Mas nenhum destes alvitres, sugeridos ao Carlos pelo próprio pai e por alguns amigos sinceros e experientes, não com a franqueza com que aí os deixo destrinçados, é certo, e pelo contrário revestidos duma aparência hipócrita de seriedade, encontrou a aquiescência do novo Bacharel. O último, então, indignou-o como uma mercancia ignóbil.
— Vê tu, me veio ele dizer um dia, irrompendo-me pela porta do quarto a dentro, após uma cena um pouco violenta com o pai, que o queria à forca convencer de que deveria desposar a Nhazinha Gomes; vê tu se isto não é em última análise uma transação repugnante que me propõe meu pai. Vende à tua liberdade, sacrifica o teu futuro, estraga de antemão a tua prole, mas casa-te com aquelas apólices da dívida pública, com aquelas sardas e com aquela espessa camada de pó de arroz... É de fazer a gente cometer uma asneira!
Eu achava-me na ocasião numa esplêndida maré de bom humor; fechei o livro que tinha em mão — La Curée, de Zola — e dispus-me a suportar com paciência os desabafos da ira do Carlos.
O rapaz, a largas passadas, percorria todo o aposento.
Decorridos alguns minutos veio de novo postar-se-me em frente.
— Mas, pensa bem nisto, vê a enormidade da abjeção a que me querem condenar...
— Oh! Carlos, não é tanto assim... tu, também, exageras as coisas...
— Exagero, hein? Queria ver-te no meu lugar e que me dissesses depois se tenho ou não razão...
— Em primeiro lugar, a hipótese é absurda...
— Por quê?
— Porque nenhuma d’essas noivas que te dão me quereria por marido, ou, melhor, os seus respectivos papais, ou quem as vezes dos mesmos fizesse, por-me-iam a andar, mal abrisse a boca para lhes manifestar os meus intentos matrimoniais...
— E por que motivo?
— Pela simples razão de não possuir eu nem o teu diploma, nem o teu dinheiro...
— Mas, então, concordas comido? É uma transação mútua que me propõem: tanto eu como a Nhazinha somos vendidos um ao outro?
— Concordo sim. E quem te disse que pensava de forma contraria?
— Quem? Mas foste tu mesmo, que ainda há pouco taxavas de exageradas as minhas palavras...
— E repito: exageras.
— Mas, com todos os diabos! Não te percebo; explica-te melhor.
— Exageras quando chamas de abjecção a proposta de teu pai.
— E não seria com efeito uma abjeção revoltante o meu casamento com a pupila do Cônego Sirino?
— Sê-lo-ia para ti que és um idealista entusiasta e que, ademais, estás apaixonado por outra. Não o é, porém, para o Comendador e para todo o resto do mundo, que não vive como tu nas regiões nebulosas do sonho e do ideal. Essa gente entende, e com razão, que o que se deve, antes de tudo, buscar no casamento é a felicidade e como para eles toda a felicidade se resume no dinheiro, segue-se...
— Queres saber de uma coisa, Jayme? interrompeu-me enfiado o Carlos. Eu não vim aqui para discutir coisas abstratas nem para te ouvir as tiradas filosóficas...
— Mas, então, que vieste fazer, filho? perguntei-lhe rindo.
— Simplesmente isto: dizer-te que meu pai quer à força que eu me case com a Nhazinha, e que eu...
— E que tu por forma alguma te casarás nem com ela, nem com nenhuma das outras noivas que te prepara o Comendador...
— Isso! E, como já estás mais que inteirado dos meus propósitos, fica-te para aí, a refestelar-te à vontade nesse atascadeiro da Curée que eu me vou por aqui fora, a ver se encontro um miserável sobre o qual possa descarregar a ira que me devora.
E, enterrando chapéu na cabeça, saiu furioso, a atirar estupidamente as portas.
O Comendador afinal não teve outro remédio senão adiar para mais tarde os seus projetos e curvar-se na ocasião aos desejos do Carlos, que se cifravam em apanhar uma nomeação de Juiz de Direito para o sertão.
Andava-se a fazer a reforma da Magistratura do Estado e não foi difícil ao Comendador, usando da influência política de que dispunha, obter para o filho a nomeação ambicionada
Foi, pois, o Carlos despachado Juiz de Direito para a Carolina, com grande espanto de todos, que não podiam absolutamente compreender a razão de tão insólito procedimento.
Essa razão, porém, se lhes tornou patente, quando o Carlos, um mês depois de assumido o exercício, obteve três meses de licença e voltou à capital, a comunicar ao pai o seu intento de desposar a Laura Medeiros.
Foi uma bomba inesperada, um escândalo como não registavam igual, naqueles anos mais chegados, os anais da burguesia endinheirada do Maranhão!
E agora, nesta ressurreição continua do passado a que vivo sujeito, surgem-me aos olhos todas as peripécias que a semelhante fato se prendem: o passado da Laura, o seu heroísmo incompreendido e caluniado, as torturas injustas que sofreu, os manejos postos em prática para a perder e, finalmente, o seu deslumbrante, o seu justo, o seu merecido triunfo.
Quando se espalhou pela cidade aquela notícia do casamento do Carlos com a Laura Medeiros, houve quem de tal duvidasse, atribuindo o boato ao desfastio de linguarudos ociosos.
Pois seria possível que aquele rapaz, diante do qual se abria um futuro invejável, rico, inteligente, educado, dispondo de todos os requisitos necessários para contrair um enlace vantajoso e digno da sua posição, se deixasse embeiçar, até ao ponto de a desposar, por aquela rapar guita insignificante, formosa, é certo, mas pobre de uma pobreza abandonada e nua, e, ainda por cima de tudo, de paternidade desconhecida? Entraria na cabeça de alguém que o Comendador e a mulher consentissem em tamanha cabeçada, mesmo no caso do Carlos, com a inexperiência da idade, se sentir disposto a sacrificar assim, impensadamente, toda a sua felicidade futura?
Não, decididamente eram hipóteses essas que o bom senso repelia, que a mais ligeira reflexão dissipava, a menos que se admitisse o princípio do absurdo fazer lei.
E, no entanto, a despeito de toda a sensatez burguesa d’esse modo de pensar e de todas as razões práticas que a seu favor militavam, a verdade é que o Carlos ia efetivamente desposar a rapariga de paternidade desconhecida e que o bom senso do Comendador e da mulher nada puderam, no sentido de o demover de semelhante intento.
A Laura era uma dessas criaturas infelizes, jogada, pelos azares caprichosos e injustos do destino, num meio diametralmente oposto ás suas tendências e às suas inclinações naturais. Poder-se-ia, com toda a propriedade, aplicar-lhe a imagem cediça da flor nascida num pântano.
A mãe era uma rameira de profissão, afeita desde a mais tenra idade ao deboche e a crápula, sem a mais ligeira noção da moral, sem o mais leve vislumbre do decoro. Todos os vícios aviltantes e abjetos acharam muito cedo abrigo na sua alma, onde a perversidade parecia inata.
Passando de mão em mão, desde o momento inicial da queda, ofertando impudicamente a sua carne a toda a voracidade bestial que a solicitava, sem relutância e sem pundonor, sentiu-se um belo dia, sem que soubesse explicar porque, palpitar-lhe nas entranhas uma vida nova.
O seu primeiro sentimento, ao ter a certeza do fato, foi de desespero e ódio. Que vinha fazer ali aquele intruso, quem o chamara para a vida? De que lhe viria servir aquele filho a não ser de obstáculo à continuação da existência folgada que levava? Ah! se ela conhecesse um meio de o eliminar antes de nascer... Mas para tal teria de ir pedir o auxílio de alguém, e o receio de ser descoberta e colhida pelos tentáculos empolgantes da justiça paralisou-lhe os movimentos.
O único recurso que lhe restava era submeter-se ao castigo, porque aquilo decididamente era um castigo, e quando, decorridos os meses da gestação, viesse ao mundo a criança, entregá-la alguma alma caridosa que dela cuidasse, e atirar-se de novo à crápula. Seria um interregno passageiro, uma interrupção efêmera na cadeia dos seus amores baratos, e nada mais.
Ao cabo, porém, do prazo fatal e em seguida aos estertores da dor fecunda, quando viu, estendido ao seu lado, na enxerga humilde e desconfortada, aquele entezinho débil e microscópico, carne da sua carne, sangue do seu sangue, gerado e alimentado nas suas entranhas, uma reviravolta brusca se produziu no ânimo da infeliz. As lágrimas lhe rebentaram dos olhos, os soluços lhe irromperam do peito, e para ali ficou durante uma hora inteira, a desafogar naquele pranto copioso a consciência que afinal lhe chegava dos seus erros passados. A mãe redimia pôr fim a prostituta, o amor da filha repelia, na irradiação salutar da sua pureza, as paixões ignóbeis de outros tempos.
Faltou-lhe a coragem para pôr em prática os seus desígnios desumanos. Que crueldade revoltante que seria a de ir confiar a mãos estranhas os cuidados requeridos por aquela vida incipiente, a de permitir que outros lábios lhe viessem roçar a fronte, que outros ouvidos recolhessem os seus primeiros balbucios, que outros olhos mirassem o seu primeiro sorriso! E como era aveludada e pura aquela fronte, como seriam sonorosos aqueles vagidos, quanta inocência e quanta graça cantariam no entreabrir receoso daqueles lábios pequeninos!
Não, ela não daria a ninguém a sua; filha. Era uma desgraçada, era certo, uma infeliz e uma perdida, mas fora da sua desgraça, da sua infelicidade e da sua perdição que aquela flor imaculada brotara. Todo o seu ser era um atascadeiro lodoso e infecto, mas fora nesse lodo e nessa infecção que aquele lírio casto vicejara.
O mundo a repelia indignado, a sociedade escandalizada lhe trancava as portas, sobre a sua cabeça de pecadora desciam as maldições da moral ofendida; mas fora exatamente no isolamento dessa repulsa, na solidão desse abandono, no esmagamento infamante dessa maldição, que lhe caíra um dia nas entranhas o gérmen daquela existência imaculada, que lhe descera para o seio um dia a semente daquela vida inocente. Era sua aquela existência, pertencia-lhe exclusivamente aquela vida, e, portanto, a guardaria ciosa, e por isso a conservaria zelosamente apegada a si. Era talvez um presente do céu, uma dadiva generosa da providencia, apiedada por fim da miséria da sua sorte e seria um pecado sem remissão repudiar ingratamente aquele auxílio divino.
Não, decididamente ela não daria a outrem a sua filha, a sua filha era dela, dela e de mais ninguém.
Iria pedir ao trabalho honrado o sustento para as duas, iria mesmo, se necessário fosse, bater à porta da caridade benfazeja de algumas almas boas que ainda deveriam existir pelo mundo, e solicitar-lhes de joelhos um auxílio desinteressado para poder educar na virtude a sua pobre filinha. E seria impossível que não houvesse mais na terra quem dela se amiserasse, que não deparasse, na sua jornada de redenção, com alguma mão caritativa que se lhe estendesse solicita, amparando-a na sua queda iminente, salvando-a do naufrágio que a ameaçava.
Quando ela percorresse as ruas esmolando a caridade humana, quando ela contasse aqueles a quem recorresse no seu desespero, os motivos que a arrastavam a pedir hoje aquilo que ela outrora comprava em troca do seu corpo lascivo de barregã descarada, nem uma só boca se abriria para apunhalar, com uma recusa brutal, a sua expectativa ansiosa e humilde, nem uma só face se voltaria, num gesto impiedoso de quem despede um mendigo importuno, negando-lhe a esmola de um pedaço de pão para matar a fome, de um trapo velho para cobrir a nudez.
Os olhos masculinos não mais lhe percorreriam o corpo, buscando adivinhar, por traz dos andrajos que o cobriam, se nele haveria ainda um resquício de encanto que pudesse compensar a esportula que se lhe atirasse; as vistas femininas dele se não desviariam mais escandalizadas, como ante a estadeação impudica da carne corrompida e perversa. Ninguém mais veria nela a certeza de baixa esfera, deixando nos lábios que a procurassem, em paga do beijo que vendia, a podridão embrionária que deveria mais tarde, como um veneno sutil que aos poucos se infiltrasse pelas veias de um organismo sadio, corroer a vida e apressar-lhe a degenerescência mórbida.
Quem nela surgia agora era a mãe redimida, que por todos os meios buscava encobrir à filha as maculas do seu passado, era o ser augusto e nobre, que acabava de preenchera sua missão fisiológica da procriação e iniciava a missão social da educação do ser que gerara. E nesse caráter impunha-se ao respeito de todos, assistia-lhe o incontestável direito de exigir de todos a cooperação e o auxílio para levar a cabo a sua tarefa moralizante e útil.
Semelhantes ideias acudiam em tropel, desordenadamente, confusas e desencontradas, ao espírito da infeliz. A sua inteligência inculta, a carência absoluta de uma forte educação moral que lhe desse a consciência do seu valor de mulher, do nobre papel que poderia ser chamada um dia a exercer na sociedade, lhe não permitiam, com lucidez e com clareza, compreendê-las em absoluto. Mas reconhecia, ou melhor: sentia que o seu dever era aquele. Não podia por forma alguma abandonar a criança, confiar a estranhos a sua educarão. Ela é que se deveria incumbir do tudo: amamentá-la, vesti-la, educá-la, ela só, com o seu trabalho, com o seu amor, com a sua dedicação, e, em último recurso, com o auxílio das pessoas de bem.
Confiou logo o seu proposito às conhecidas que a foram visitar; e o leve sorriso de incredulidade que divisou nos lábios dos que a ouviam ainda mais a confirmam na sua resolução heroica.
— Duvidavam? Era porque não eram mães, não sabiam que amor que a gente consagra a um ser nascido das próprias entranhas... Não acreditavam? Pois então que deixassem correr os tempos e veriam então de que seria capaz uma mãe!
Foi assim crescendo a Laura, ao lado da mãe, naquela atmosfera de misérias e de privações, donde não fora ainda de todo banido o cheiro acre e pestilencial do vício.
Os velhos amantes da Mariana, as suas antigas companheiras de deboche, vinham por vezes bater-lhe à porta, acenando-lhe com promessas falazes, exprobrando-a por aquela penúria a que voluntariamente se condenava, mostrando-lhe que lhe seria fácil conciliar as duas profissões: ser prostituta e ser mãe ao mesmo tempo. De dia cuidaria da pequena, cercá-la-ia de todos os confortos indispensáveis e à noite, enquanto a inocente dormisse, voltaria à vida antiga, recebendo os homens, buscando satisfazer-lhes todos os caprichos e, por esse modo, recheando a bolsa para as despesas futuras.
Isto era até um dever imperioso que lhe incumbia: pois então era justo que ela, por umas susceptibilidades tolas, por uns escrúpulos pueris e injustificáveis, estivesse a sacrificar a filha, a sujeitá-la a sofrer a privação do necessário, a perder forças naquele insuficiente regime de miséria, quando, pelo contrário, deveria ser bem alimentada, bem cuidada, para que o seu organismo se refizesse, ganhasse os recursos vitais que lhe assegurassem a saúde e a rijeza quando fosse mulher?
Que imenso esforço que sobre si mesma fazia a pobre mãe para não ceder à tentação, sobretudo quando lhe começaram a escassear os minguados recursos de que a princípio ainda pode lançar mão com a venda de joias e de atavios dos seus tempos de amor! O trabalho pouco ou nada rendia; as costuras que fazia para um armazém de roupas brancas mal chegavam para o aluguel da casa.
E o sustento, e a roupa, e o leite condensado para a criança, porque as suas tetas haviam dado demasiado amor aos homens para poder dar ainda um pouco de leite à filha? Onde ir buscar o dinheiro, santo Deus, para prover a todas essas necessidades e a outras que por acaso surgissem? E se ela caísse doente do dia para a noite, se se visse repentinamente na impossibilidade de trabalhar, que seria dela e, sobretudo, que seria da criança?
E a desgraçada, quase louça de desespero, desvairada, febril, dolorosa, corria para junto do berço da filha, punha-se a mirá-la embevecidamente, de joelhos pedindo aquela inocência imaculada a força precisa para não resvalar de novo no abismo cuja fauces hiantes pressentia sob os pés.
— Era um heroísmo ignorado e incompreendido aquele, que combatia na sombra, que se imolava no esquecimento e nas ervas e que passaria afinal perdido no grande torvelinho anônimo dos sacrifícios que se realizam sem a quentura de um apoio e sem o incentivo de um aplauso.
Aquela mulher, na sua luta homérica com a miséria e com a fome que se avizinhavam, querendo a todo o transe manter-se pura, a despeito das sugestões do vício que se lhe havia fundamente arraigado na alma e dos conselhos pérfidos que a cada instante lhe vinham cantar tentadoramente aos ouvidos, e tudo isto para poupar a tinha vergonha do presente, já que a não podia subtrair à mácula do passado, rompia com a normalidade e com a rotina da vida, para assumir as proporções lendárias de uma heroína de tragédia antiga.
Quando a Laura completou sete anos, o padrinho, um funcionário público honrado e pobre, que nas vizinhanças morava e a quem inspirou sempre uma comiserada admiração aquele drama que se lhe desenrolava ao lado, conseguiu, por intermédio do chefe da sua repartição, que a pequena entrasse, como pensionista da Província, para o Asilo da Piedade.
À Mariana custou-lhe muito o ter de separar-se da filha, mas cedeu resignada, disposta a todos os sacrifícios para lhe assegurar o futuro; e todos os domingos à tarde ia vê-la, no parlatório do Asilo, pasmando dos rápidos progressos que fazia e de que em minuciosamente informada pela Diretoria.
A menina possuía um engenho admirável, aprendia com uma rapidez espantosa tudo o que se lhe ensinava. Tinha nove anos apenas e já executava trabalhos de bordado e de desenho que eram uma perfeição. Todas as damas ricas da cidade, que patronavam o estabelecimento, queriam a Laura um bem imenso, interessavam-se solícitas pela sua sorte, e, quando mandavam executar no Asilo qualquer trabalho doméstico de valor, exigiam sempre que fosse ela a incumbida da parte mais delicada.
Além disso, como dizia, muito séria e muito compenetrada a Diretora, “a pequena era de um propósito, que parecia mesmo uma senhora”. Muito seriazinha, muito comedida, cumpridora de todos os seus deveres e revelando já, precocemente, uma altíssima sisudez moral. Nunca a haviam apanhado numa falta, nunca se viram na contingência de lhe infligir um castigo. Tinha uma grande comiseração dos pobres e dos infelizes; quando lhe davam algum dinheiro ia sempre entregar à Diretora uma parte para ser repartida com os mendigos que, às sextas-feiras, vinham esmolar à porta do Asilo.
Os olhos da Mariana marejavam-se de lágrimas a ouvir estas coisas, um grande e imenso orgulho lhe intumescia o coração aquela apologia da filha.
E quando voltava a casa, na nudez pobre do seu quarto, punha-se a pensar horas e horas a fio, buscando explicar donde viera a Laura aquela luminosa e rica herança moral. Dela de certo que não. Se a filha lhe houvesse herdado as qualidades seria exatamente o contrário do que se revelava. Pois podia lá admitir que toda aquela pureza d’alma, toda aquela nobreza de sentimentos proviessem dela, ser miserável e abjeto, afeito a todas as podridões, alimentado sempre pelo vírus asqueroso e corruptor do vício?
Pela mente da triste nem sequer de longe passava a suspeita de que foram talvez as contingências fortuitas da vida, a influência perniciosa do meio em que decorrera a sua infância, a ação dissolvente dos exemplos que a cercavam, a tirania abusiva da sociedade que pródiga impiedosa todas as quedas, mas que nunca estende a mão às infelizes que resvalam, que a haviam impelido ao lodaçal em que se afundara, e que era bem possível que na sua alma existissem latentes as mesmas excelsas qualidades que ela agora admirava na da filha. Ela apenas media a profundidade da sua queda, sem buscar conhecer a mão que a impelira, constatava apenas a existência do mal sem entrar na indagação das causas que o haviam gerado. Ser-lhe-ia necessário para tal uma cultura do que não dispunha e uma visão crítica de que era congenitamente incapaz.
Mas, se não era dela que dimanava aquela superioridade moral da Laura, de quem seria então? Do pai, naturalmente. Mas quem era o pai? Pergunta esta que a infeliz se fazia, tremendo de vergonha, apesar da absoluta solidão em que se achava. Esse rubor que lhe subia as faces era o mais irrespondível atestado da transformação porque havia passado a sua alma, ao influxo redentor do seu amor de mãe.
Tantos homens conhecera, com tantos havia coabitado sucessivamente que lhe seria humanamente impossível precisar ao certo qual fora deles que lhe havia fecundado as entranhas. Ocorriam-lhe diversos nomes, cruzavam-se-lhe pela mente suspeitas várias, sem que nenhuma se fixasse, sem que nenhuma lhe acordasse na consciência a certeza de ser essa a verídica.
Só a respeito de um ponto não nutria dúvidas: o pai da sua filha era de certo um homem superior, um homem saído de nobre estripe, de raça apurada e fidalga, em cujas veias corria um sangue sadio e em cuja alma se aninhavam os mais peregrinos sentimentos. Para a prova disto aí estava o produto do seu beijo de amor. A excelência da Laura não se circunscrevia ao moral somente; apresentava igualmente no físico sinais evidentes de uma ascendência superior. A sua cútis aveludada e branca, as suas mãos esguias e finas, o seu busto elegante e bem conformado, os seus pés pequeninos e mimosos, os seus olhos de um azul profundo e límpido, a expressão sobranceira que se lhe lia no rosto e finalmente todo aquele aprumo senhoril que lhe dava o aspecto de uma rainha em miniatura, de sobra indicavam que, por baixo daquela epiderme de lírio imaculado, fervilhava um sangue fidalgo.
E a Mariana, ao repassar pela mente todas estas conjecturas, sentia-se tomada de um desejo febril de conhecer o pai da sua filha, de saber o ponto da terra em que aquelas horas se achava, para se lhe ir ajoelhar aos pés e bendizer-lhe o nome por haver atirado a podridão do seu ventre a semente fecunda donde brotara aquele lírio casto que lhe vinha perfumar a aurora da sua redenção moral.
Entrava Laura nos seus treze anos de idade, quando a Mariana, que desde a sua regeneração gozara sempre de uma saúde razoável, começou inopinadamente a experimentar uns sintomas mórbidos esquisitos.
Eram umas dores de cabeça fortíssima, que a acometiam de preferência durante as noites, acompanhadas por vezes de ligeiros acessos febris, gerando-lhe em todo o organismo um mal-estar inexplicável. Queixava-se de uma prostração infinita, de uma inapetência absoluta para o trabalho e para qualquer exercício físico; o corpo só lhe pedia repouso, uma rede ou uma cama, onde se distendesse à vontade, furtando-se a todo o movimento, alheando-se a toda a ação. Se buscava reagir contra semelhante apatia, via-se dentro em pouco obrigada a reconhecer a ineficácia dos seus esforços: o peco era superior às suas forças, dominava-lhe a vontade, empolgava-lhe invencivelmente o querer.
Veio-lhe, sugerida pela filha, a ideia de consultar um médico, porque aquilo não podia continuar assim; ela carecia de trabalhar e trabalhar muito, não só para obter o indispensável para encher o estomago e encobrir a carcaça, como lambem no intuito de ir formando um pecúlio destinado à pequena, quando fosse mulher. Mas umas amigas a quem comunicou o intento, logo se puseram a aconselha-la em sentido contrário.
— Qual medico, qual nada! Os médicos foram inventados para gente rica, com dinheiro bastante para lhes encher o bandulho, a eles e mais aos boticários. Aquilo não era nada. Que fosse ao Viegas e havia de ver como ficaria pronta com uma só dose de homeopatia.
E a Mariana, cedendo ao poder convincente daquelas opiniões, que no fundo se irmanavam com a sua, lá se dirigiu uma tarde para a rua de S. Antônio, à procura do célebre curandeiro.
O Viegas era um velhote, que já andava orçando pelos sessenta, mas admiravelmente bem conservado. A grande paixão da sua vida fora sempre a homeopatia, a cuja ação terapêutica atribuía uma potência miraculosa. Não havia moléstia, por mais teimosa e grave que fosse, que resistisse a uma dose sabiamente aplicada. A questão era não trocar o acônito pela camomila, ou vice-versa. Quando a doença pedia acônito que se lhe desse acônito, quando reclamava camomila que lhe aplicassem a camomila e assim por diante.
Ele, por exemplo, nunca se enganava: conhecia as predileções do morbos pelo faro, e por isso também só lhe morriam nas mãos os doentes que já viessem estragados pela alopatia. Sabia de cor o Sabino, que proclamava o maior benfeitor da humanidade, e tinha, ademais, uma longa prática clínica.
Aos doze anos de idade já ia aplicando, por conta própria, as suas doses modestas, a princípio em animais domésticos, e mais tarde nos escravos da casa, que se sujeitavam resignados àqueles caprichos clínicos do sinhozinho. Eram tentames inofensivos, porque a homeopatia tinha, além das mais, uma grande virtude: se não curava, também não matava, deixava a moléstia no mesmo pé.
O resultado dessas experiências foi encontrar-se solidamente aparelhado no dia em que resolveu, para bem da humanidade sofredora, por ao serviço de todos o seu saber médico, de cambulhada com os seus glóbulos e as suas tinturas.
Como o homem dava os remédios de graça e fosse feliz nas primeiras curas tentadas, não tardou a formar-se-lhe ao redor do nome uma fama que foi sempre crescendo, à proporção que se escoavam os anos, chegando afinal a ser apontado na terra como um raro portento.
Estabeleceu-se uma verdadeira romaria devota à sua casa modesta da rua de S. Antônio, e muitas famílias ricas da cidade faziam questão de o ter à cabeceira de qualquer doente da casa, de preferência a um diplomado. Tinham fé no homem e era quanto bastava, porque a homeopatia exigia também, para produzir efeito completo, que o doente, ou alguém por ele, depositasse confiança na sua eficácia.
Quando a Mariana chegou à porta do curandeiro já lá encontrou um ajuntamento enorme e se não fosse um cartão do padrinho da Laura, pedindo ao Viegas que a atendesse com solicitude, talvez não houvesse logrado falar nesse mesmo dia ao grande homem. Graças a semelhante apresentação, porém, foi dentro de pouco introduzida na sala das consultas.
O Viegas mirou-a da cabeça aos pés, com os seus olhinhos de míope, fez-lhe uma infinidade de perguntas, examinou-lhe a língua, aplicou-lhe sobre a barriga a mão esquerda espalmada, dando depois sobre a costa desta última duas pancadinhas leves com os dedos da direita, encostou-lhe o ouvido às costas, mandando-a respirar com força, e ao terminar a minuciosa e detalhada inspeção declarou na sua voz de falsete:
— A senhora não tem coisa de cuidado; são incômodos ligeiros, sem caráter algum de gravidade. Vou preparar lhe uma solução de acônito que tomará as colheres de sopa, de duas em duas horas. Quanto ao resguardo abstenha-se de peixe e de comidas salgadas. Verá que ludo isso desaparece dentro de poucos dias.
Mas, a despeito da fé da Mariana, da ciência do Viegas e do miraculoso poder terapêutico da homeopatia, o mal não cedeu; pelo contrário parecia até disposto a agravar-se, de forma que a doente tomou a resolução definitiva de ir ouvir o dr. Palhares, que todas as quintas-feiras, das sete às nove da manhã, dava consultas grátis aos pobres, numa das salas da Santa Casa da Misericórdia.
O dr. Palhares era notado no Maranhão pela rudez brutal no diagnóstico dos seus doentes. Não sabia procurar rodeios, nem revestir de uma aparência animadora as suas opiniões; dizia logo à queima roupa e em frases duras o que pensava a respeito do mal que se lhe estadeava queixoso em frente.
Por isso, quando a Mariana terminou a exposição dos sintomas que a flagelavam, declarou logo, em voz de trovão, e com o seu ar peculiar de carniceiro feroz:
— Então você pensava que era sê viver na pandega, dar folga ao corpo e mais nada, hein? Pois, minha rica, quem vive na crápula acaba sempre assim... Você o que tem é uma medonha carga de sífilis.
A Mariana fez-se lívida ao ouvir as últimas palavras do médico. Com os olhos esgazeados, os beiços a tremer, e uma inenarrável expressão de surpresa e de pavor no rosto, encarava o dr. Palhares, sem encontrar uma palavra, um gesto, para contrapor ao inesperado daquela afirmativa.
— Sim, senhora, uma carga de sífilis de primeira ordem. Causa-lhe isto espanto? Pois acho que o contrário é que a deveria admirar. Ou quereria você que a sífilis derivasse exclusivamente para as virgens e respeitasse sempre as prostitutas? Teria graça, com efeito, teria muita graça...
E uma risada de papo, mais semelhante a um ronco de garganta do que a uma expansão natural de alegria, completou a frase.
— Mas, sr. dr. conseguiu pôr fim objetara Mariana, há mais de treze anos que eu não ando na vida... desde que nasceu a minha filha...
— Ah! você tem uma filha? fez o dr. Palhares brutal. Coitadinha dela!...
A Mariana pôs-se de pé como impelida por uma mola.
— A minha filha?! Que é que tem a minha filha? Que mal a ameaça? Diga-me, sr. dr., diga-me, pelo amor de Deus, que mal ameaça a minha filha!...
E aproximou-se ainda mais do médico, dispondo-se a cair-lhe de joelhos aos pés.
O dr. Palhares, espantado ante aquela mutação rápida dos modos da Mariana, lobrigou, numa intuição fulgurante, a causa real da sua dolorosa ansiedade. E teve compaixão da infeliz, e não se achou com coragem de aprofundar ainda mais o golpe:
— Sossegue, mulher. Que diabo tem você? Ninguém falou aqui em males que ameaçam a sua filha...
— Mas o sr. dr. disse que a minha filha era digna de compaixão?...
— Sim, disse, mas... c’o a breca, não foi porque previsse alguma desgraça futura a ameaçar a pequena... Foi... por habito... É costume meu...
E como visse a Mariana pouco disposta a aceitar aquelas razões:
— C’o a breca! Quer que lhe diga com franqueza? Eu lamentei a pequena justamente por ser sua filha... você uma mulher perdida... Ora aí está!
A Mariana respirou com força como se lhe houvessem retirado dos ombros um peso de cem arrobas. Mas era que o sr. dr. não sabia... Ela, desde que dera a luz a criança, nunca mais recebera um só homem... Regenerara-se por inteiro, e a pequena lá estava a receber uma educação completa no Asilo da Piedade, como se fosse uma menina de família...
— Hão de lhe ensinar bem boas coisas as freiras do Asilo... Mas deixemos isso de parte e vamos ao que nos importa... Lá isso de ter você mudado de vida há mais de não sei quantos anos em nada influi para o caso, faz-lhe apenas honra aos sentimentos, e nada mais. A moléstia não escolhe exclusivamente os desvergonhados e os canalhas. Parece até que a malvada tem uma predileção especial pela gente séria... Você está agora pagando os seus desregramentos passados... Em suma, não é ainda para perder as esperanças... Você me vai ingerir mercúrio à vontade, até ficar toda transformada num espelho... E, depois, veremos o que se há de fazer.
A Mariana voltou a casa mais animada e começou a seguir à risca o receituário do dr. Palhares.
Ao cabo de pouco tempo tinham-lhe desaparecido por completo os síndromas flageladores e a infeliz acreditou-se salva.
A Laura, ao ser informada da doença da mãe, alarmou-se sobremodo, instando com a Diretora para que mandasse diariamente saber notícias da Mariana.
Rompendo com os regulamentos e com a praxe do estabelecimento, em atenção aos méritos especiais da rapariga, que cada vez se tornava mais digna da benevolência e das atenções dos seus superiores, permitiu a Diretora que, duas vezes por semana, fosse à casa da doente o jardineiro do Asilo, em busca de novas.
A Mariana, por sua vez, nos dias em que se sentia melhor, vinha pessoalmente ao parlatório, falar à filha, fazendo-se de forte, buscando demonstrar-lhe com a sua presença que o seu mal não tinha gravidada e afirmando-lhe que dentro em pouco estaria restabelecida.
Apesar de tudo isso, porém, a Laura não sossegava: vivia triste, impressionada, macambuzia, a chorar pelos cantos, a aproveitar todos os momentos de folga para correr à Capela, atirar-se de joelhos aos pés do Altar da Padroeira do Asilo e pedir-lhe com lágrimas que restituísse a saúde à mãe.
Aquela grande ternura filial, aquele imenso e extremoso afeto pela triste criatura de miséria e de dor que lhe dera o ser, cercava a rapariga de uma nova auréola de excelência moral, guindando-a ao respeito e à veneração de todos os que a conheciam e que já se haviam afeito a superior bondade da sua alma.
A Diretora apontava-a constantemente, como um modelo digno de ser imitado, às demais alunas, e servia-se dela como de um exemplo esmagador e frisante a favor excelência dos processos educativos da casa.
— Se não fossem os santos princípios de moral cristã que esta criança veio beber no nosso seio, costumava dizer às frequentadoras do Asilo, acreditam porventura as senhoras que ela pudesse abrigar sentimentos tão nobres e tão dignificadores? Decerto que não, porque os exemplos que encontraria em casa, já não digo da mãe, que essa, segundo afirmam, regenerou-se, mas das amigas e das relações que por lá apareceriam, nada teriam de edificantes.
E o auditório concordava reverente, corroborando a afirmação da Diretora e arriscando por vezes uma ou outra alusão malévola à regeneração da Mariana.
Para aquelas santas matronas, conversão que não fosse obra de padres, que não viesse inspirada pelo confessionário, nenhuma garantia de persistência poderia oferecer. Mais cedo ou mais tarde voltaria o pecado a empolgar a vítima, para a atirar de novo à condenação e ao vício.
E citavam uma infinidade de casos idênticos, coroados sempre por uma nova queda.
— Que a pequena era uma santinha, coitadita! e nenhuma culpa tinha dos desvergonhamentos da mãe, continuava a Diretora. Àqueles extremos pela pecadora eram sentimentos muito meritórios, muito dignos de louvores e de encômios. Contudo, era necessário estar com cinco mil sentidos. Não fosse a inocente conhecer ao certo a verdadeira origem daqueles padecimentos e, levada pela sua grande bondade, perdoar mentalmente os erros maternos. Seria um passo arriscadíssimo esse, porque ao perdão seguir-se-ia talvez a justificação desses mesmos erros e daí, quem sabe? a criatura humana era tão fraca! — o desejo pecaminoso de os imitar.
— Ah! isso é que seria necessário evitar a todo o transe, acudiam solícitas as outras, ainda mesmo que fosse necessário separar de vez a pequena da mãe.
— Por ora não sentimos ainda necessidade de uma medida tão severa e que tanto me custaria a pôr em prática, declarava a Diretora, em tom compungido. Mas fiquem certas de que, se a salvação daquela alma tamanho sacrifício exigisse, eu não trepidaria em fazer violência aos meus Sentimentos de compaixão e cortar o mal pela raiz.
Felizmente, porém, o restabelecimento tia Mariana veio acalmar os receios das piedosas senhoras e restituir ás suas normas, antigas as relações da Mariana com a filha que se cifravam nas visitas regulamentares aos domingos, em presença da diretora ou de alguma outra irmã, por ela para tal fim designada.
A Laura fizera-se mulher, realizando por completo as promessas de beleza da sua infância.
Alta, elegante, distinta, de feições corretas, toda ela admiravelmente conformada, fazia o encanto e a admiração de todos os que a contemplavam.
Por mais rigoroso e exigente que fosse o observador e por mais esforços que em tal sentido empregasse, não lograria descobrir-lhe um único defeito, um senão ligeiro a empanar-lhe a formosura impecável.
Tudo nela era proporcionado, tudo se casava no mais harmonioso e no mais realçante dos conjuntos, desde o brilho dos olhos, de um azul sereno e límpido, até à majestade augusta e nobre do porte.
Da Mariana não tinha um único traço, de forma que quem as visse juntas dificilmente se convenceria de que uma havia nascido da outra. E a velha prostituta, longe de lamentar o fato, parecia, ao contrário, nele regozijar-se, porque, a seus olhos, a simples herança de uma linha física sua constituiria uma mácula para a filha. Assim é que ela a queria, assim é que a desejara sempre, tendo apenas consigo um único ponto de contato, e este mesmo abstrato: a afinidade do seu grande, do seu estupendo, do seu incomensurável amor.
Se lhe viessem dizer que esse mesmo amor, apesar de natural e justo, embaciaria, como um sopro pestilento e mão, a cristalina pureza da filha, ela, se não tivesse forças para o arrancar do coração, buscaria sopitá-lo, recalca-lo para o fundo d’alma, que, lhe custasse embora a vida semelhante tortura.
Para conservar imaculado o seu ídolo seria a triste capaz de todos os sacrifícios.
Logo que se sentiu livre dos incômodos que a perseguiam, entrou a Mariana a relaxar o regime terapêutico traçado pelo Dr. Palhares.
Como toda a mulher do povo, alimentava contra a medicina dos diplomados uma prevenção obstinada e sistemática, vencida temporariamente pela flagelação da enfermidade e pelo imenso desejo de se ver curada, afim de tranquilizar afilha e poder prosseguir no trabalho diário, donde retirava a subsistência.
Mas, apenas logrado o intento, o prejuízo latente retomou o domínio do seu espírito e da sua vontade e dentro de poucos dias havia abandonado por completo as dosagens de mercúrio e a dieta prescrita. De que lhe servia continuar a enriquecer o boticário e por em penitência o estômago? Quem sabe até se foram os remédios que a puseram boa? Era bem possível que o mal houvesse cedido, porque tinha de ceder, e porque ainda não era chegada a sua hora.
Uma mulata velha, a Custodia, madrinha de carregar da Laura e que a Mariana chamara para casa, quando a pequena entrou para o asilo, afim de ter uma companheira com quem desse à língua, nas raras horas de ócio, costumava sempre dizer-lhe:
— Fique umcê certa, nhá comadre, que o que lhe fez bem foi a mopatia de sinhô Viega. Aquele branco é danado p'ra sabê as coisa da gente pur dentro. Quando a Remunda teve a dô não houve médico que desse jeito na molesta... Doutô Tranquedo cansou c’o ela, foi mêmo qui nada. Se não fosse sinhô Viega a triste tava hoje mas era na cova... Agora, acrescentava depois de uma pausa, a mopatia tem uma coisa c’o ela: não faz bem de uma sentada... Demanda paciência que é p’ru mode fazê o efeito bem feito... Umcê não quis espera, foi logo tomá o remédio de doutô Palhare... Mas fique umcê sabendo que foi as dose que umcê Já havia tumado que lhe fizero bem...
A Mariana não carecia de tão comprida ladainha para se convencer. No fundo, tinha já a intuição de todas aquelas verdades que lhe revelava a comadre. Fora incontestavelmente o Viegas o seu salvador. O outro, o Dr. Palhares, não passava de um intrujão e de um malcriado.
Aquela da sífilis não era má! Pois então só agora, depois de mais de quatorze anos de abstinência é que lhe havia de aparecer o venéreo? Sim senhor, tinha muita graça!
E, satisfeita e feliz por se ver de novo restituída ao trabalho e a saúde, reatou a sua vida do costume, passando os dias na costura e na goma e comparecendo invariavelmente aos domingos ao Asilo, a embevecer-se na contemplação extasiada da filha que cada vez se fazia mais formosa e mais distinta.
A Laura completara já, e com um brilhantismo desusado, o seu curso de estudos e fora designada pela diretora para tomar conta, como Adjunta, da cadeira de Prendas e de Economia Doméstica, do Asilo.
E eram de ver os prodígios que a nova professora realizava no desempenho do seu magistério. A proprietária da cadeira, já velha, cansada e doente, pouco ou quase nada podia fazer; era a Laura quem se incumbia de tudo.
A rapariga tinha, com efeito, um talento especial para os bordados, sobretudo o bordado a branco. Inventava padrões, formava relevos novos, criava desenhos especiais, que davam ao seu trabalho um realce e um brilho como nunca se vira na terra em obras idênticas.
Qualquer estofo, por mais insignificante que fosse, transformava-se miraculosamente, ao contato dos seus dedos inspirados e mágicos.
A marca dos lenços de algibeira, com monogramas entrelaçados constituía uma verdadeira especialidade sua. Tinham uma procura insaciável e formavam uma bela fonte de renda para o Estabelecimento.
Adoravam-na as alunas pelo carinho maternal com que as tratava. Nunca empregou na sua aula os meios bárbaros de que então geralmente se serviam todos os professores maranhenses, para meterem na cachola dos brutinhos que lhes eram confiados os rudimentos das disciplinas que professavam.
A palmatória fora abolida, com grande escândalo da Diretora e das outras professas do Asilo, que não concebiam como se poderia ensinar crianças sem as espancar.
— Há de sair-se mal com essas inovações, minha filha, dizia-lhe sempre a Diretora, abanando a cabeça, num ar de larga e superior experiência. As crianças, sem o temor da palmatória, não podem ir para adiante. O castigo é necessário para tudo, tanto para o corpo, como para a alma. Veja filha o próprio Nosso Senhor não trepidou em zurzir os vendelhões do templo...
A Laura inclinava reverente a cabeça, aceitando sem discutir todos aqueles conselhos, recebendo sem protesto todas aquelas lições da experiência, mas pedindo um certo prazo para os começar a pôr em prática.
— Que a deixassem tentar primeiro os meios brandos, a catequese pacífica, os recursos suasórios para trazer ao bom caminho as suas alunas. Se, porém, decorrido algum tempo, visse que não surtiam o desejado efeito, então bem: lançaria mão da palmatória, das orelhas de burro, do quarto escuro, enfim de todos os recursos auxiliares da didática indígena.
A Diretora, que no íntimo sofria a grande ascendência moral exercida pela Laura sobre todos os que a cercavam, calava-se e deixava-a agir à vontade.
Ao cabo do primeiro ano de ensino, tinham as alunas percorrido, com um aproveitamento enorme, todo o curso, sem que a jovem professora houvesse sentido a necessidade de apelar para a palmatória e para os outros clássicos instrumentos de tortura escolar. E quando na grande exposição dos trabalhos, com que ordinariamente se encerrava o ano letivo do Asilo, os visitantes admiravam os almofadões, as colchas, os abafadores, os lenços, as camisas bordadas e toda aquela aluvião de trabalhos domésticos executados pelas alunas da Laura e eram informados pela Diretora, com um sorriso leve, onde havia uma pontinha de despeito, de que a palmatória e as orelhas de burro não haviam sido ouvidos nem cheirados em tudo aquilo, o pasmo e o espanto redobravam e a maior parte se sentia inclinada a conferir à Laura poderes e faculdades sobrenaturais.
O Pimenta, o decano dos professores do Maranhão, e o maior algoz da infância que o mundo tem produzido, esse então recusava-se terminantemente a admitir a veracidade das declarações da Diretora.
— A quem vem a sra. contar semelhante disparate? A mim que envelheci neste inferno de aturar os filhos dos outros e que sei de quanto são capazes esses diabinhos com figura de gente para nos tirar a paciência e por os miolos a arder? Qual, minha senhora, criança, sem pancada e muita pancada, não aprende coisa alguma. É preciso bater-lhes até que nos doam as mãos, para se conseguir tirar deles alguma coisa. Estaria eu bem arranjado se fosse passar a mão pela cabeça daquela sucia que me enche a casa. Seriam até capazes de me dar cabo do pelo, os malvados...
E era uma verdade, embora revoltante e triste, essa que o Pimenta com orgulho e gáudio proclamava. A sua aula dava mais a ideia de um antro de torturas do Santo Oficio do que de uma sala de educação de crianças.
Pelas paredes e por cima das carteiras, ostentavam-se pavorosas as palmatórias, as correias de couro cru, as orelhas de burro, lodo um arsenal de seviciamentos, que diariamente se exercitava nos corpos frágeis que um mal entendido amor paterno vinha confiar pressuroso às suas garras de abutre insaciável.
Quem por lá passasse às horas da classe ouviria logo, desde longe, os berros enfurecidos do animal, cortados de quando em vez pelo estalo da palmatória e da taca e pelos gemidos e soluços sofreados da vítima. Porque o bruto, além de tudo, não admitia que as pobres crianças extravasassem no choro as dores das suas mãos arroxeadas pelos bolos! Tinham de sofrer calados, engolir os soluços, sopitar os gemidos, e oferecer inermes, à sanha bestial do malvado, as suas mãos pequeninas e tenras!
Aos sábados, então, à hora do argumento de tabuada, o berreiro era ensurdecedor. Formavam todos os alunos em filas e tinham de efetuar, com a rapidez do pensamento, as somas e multiplicações dos algarismos que lhes indicava o Pimenta. Se um errava, a pergunta passava adiante e assim sucessivamente, até que surgisse um que a pudesse responder. Era esse então o incumbido de aplicar os bolos a todos os outros que haviam claudicado na operação. E se o bolo não cantava bem alto, erguia-se o Pimenta da banca e ia em pessoa aplicá-los, começando pelo que havia emendado. Os que gritassem mais alto, em vez de um, apanhavam dois, três, quatro, até engolirem o choro.
E, quando terminava o argumento, estava o homem esbaforido, coberto de suor a botar a alma pela boca, e as pobres crianças com as mãos em sangue e os rostos congestionados pelos esforços feitos para conter o pranto e as lamentações.
Era aquele, a seu ver, o único processo de ensino racional e eficaz, e nada mais natural, portanto, do que a sua incredulidade quando lhe vieram contar que alguém consegue ao mesmo, ou melhor, conseguia mais do que que ele e por processos diametralmente opostos aos seus.
Por mais esforços que fizesse a Diretora, ajudada pelas confirmações da Laura e pelas confissões das próprias alunas, para convencê-lo da verdade do que lhe afirmava, o homem abanava a cabeça e recusava-se tenazmente a aceitá-la.
— Não era possível, estavam a caçoar com ele, não era possível! Criança não aprendia sem pancada. Quanto às declarações das alunas, valor nenhum apresentavam aos seus olhos. Ele bem sabia como aquelas coisas se faziam, estava já muito afeito a utilizar-se do testemunho dos seus discípulos. Quando lhes dizia que afirmassem uma coisa, nem que viesse o céu abaixo, seriam eles capazes de proclamar o contrário.
E, final mente, desesperado, quase esbravejando, rematou a sua discussão com esta enormidade inconcebível:
— Querem as senhoras saber de uma coisa? Mesmo que eu conseguisse ensinar os meus alunos sem a palmatória, nem assim lhes deixaria debater, porque a verdade é esta: criança sem pancada não aprende!
E assim decorreram dois anos, quando um belo dia sentiu-se de novo a Mariana empolgada pelos antigos padecimentos. Voltaram as cefalalgias e os acessos febris, acompanhados desta vez por fenômenos novos e complicados. Começaram a aparecer-lhes pelo corpo umas manchas esquisitas, ligeiramente saliente nas bordas e de uma nuance arroxeada. Um formigueiro insuportável exacerbava-lhe a circulação, tornando-a irrequieta, sôfrega, constantemente agitada por um mal-estar indizível, ao mesmo tempo que uma fraqueza infinita, tuna invencível debilidade, lhe relaxava os músculos e os tendões, dando-lhe a sensação da vida a fugir-lhe por todos os poros. Julgava por vezes que lhe ia estalar o crâneo, tal era a violência e a agudeza da dor que o atanazava. A febre também desta vez manifestara-se com mais intensidade, tornando-se mais prolongados e mais frequentes os acessos. Havia ocasiões em que chegava até a delirar, pondo-se a contar coisas incongruentes e disparatadas, misturando o nome da filha a evocações obscenas, a trechos impuros do seu antigo calão de rameira de baixa esfera.
Foi enorme e indescritível o terror que se apoderou da infeliz, quando se viu novamente enlaçada pelos tentáculos da enfermidade.
Correu como louca à casa do Viegas e o grande homeopata, ao ter ciência da interferência do Dr. Palhares na primeira cura, não se conteve e pôs-se logo a esbravejar, desancando impiedosamente todos os profissionais da medicina, classificando-os de ineptos e de criminosos.
— É isto, tudo uma sucia de alarves e de imbecis. Supõem os biltres que por haverem alisado durante alguns anos os bancos da Academia saem de lá uns portentos. E riem-se da gente, e fazem pouco dos que, como eu, se consagram à prática pura e simples da medicina... Mas, tratemos do principal. Que lhe receitou o tal do Dr. Palhares?
A Mariana, intimidada ante aquelas explosões caricatas do Viegas, cujo ridículo dobrava de intensidade pelo grotesco que lhe emprestavam a sua figura microscópica e reles e a sua guinchante voz de falsete, murmurou tremula:
— Eu não sei ao certo o que havia nas pílulas... Mas lembro-me do Dr. me haver falado em mercúrio....
— Mercúrio? Santo Deus! Que animal! Pois o Dr. Palhares mandou-a tomar mercúrio, a sra. que não passa de uma beribérica caracterizada? Eis aí porque se acha agora nesse lastimável estado... Foi o mercúrio que a pôs assim, que lhe deu essas dores de cabeça, esses formigueiros, essas manchas pelo corpo...
— Mas... titubeou a Mariana, a dor de cabeça já eu a tinha desde a primeira vez em que vim cá... antes de começar a tomar as pílulas do Dr. Palhares...
— Sim, mas eram de outra espécie, não eram como agora, retrucou o Viegas meio enfiado ante a flagrância daquela observação. E as manchas, e os formigueiros, também já tinha tudo isso antes dos remédios do Dr. Palhares?
— Ah! lá isso não tinha, não senhor...
— Pois então, já se vê que tenho razão...
E voltando para a banca, meio giboso, aos pulinhos, numa expressão de ironia cáustica e superior:
— E é um médico, um homem que se diz possuidor de um diploma cientifico... Sim, sr., esta cá me fica... O mercúrio receitado a uma beribérica caracterizada!
Fez mais algumas perguntas elucidativas à Mariana, examinou-lhe as manchas da pele através de uma lente com cabo de madrepérola e preceituou-lhe o regime a seguir, isto é: o acônito em doses mais altas para combater a febre, e a dieta do costume — abstenção de peixe e de comidas salgadas. Debelada a febre, dar-lhe-ia então outro remédio destinado a tonificar-lhe o organismo e impedir a manifestação franca do beribéri.
A Mariana, ao chegar a casa, contou logo à comadre o que lhe havia dito o homem e a Custodia, depois de ouvir tudo atentamente, declarou:
— É isso mêmo, nhá comadre. Umcê tá c’o sangue muito carregado... Olhe que uma pruga de jalapa, ou de reluá, não lhe fazia má, pulo contraro, umcê discarregava toda essa purquêra... Mas tá umcê na mão do branco e faça só o que ele mandá... Faça e umcê verá que cum poucas tá arribando. O branco é danado p’ra sabê dos padeci mento da gente!...
Infelizmente, porém, dentro de pouco, a Mariana, em vez de arribar, cada vez mais se afundava no mal.
A sua vida transformou-se num verdadeiro inferno. A febre quase que já a não deixava mais e a cefalalgia, do mesmo modo, dia e noite lhe martelava furiosamente os miolos. As manchas tornaram-se mais pronunciadas, cobrindo-lhe quase todo o corpo, ameaçando abrir-se em chagas. Dores fulgurantes lhe percorriam os ossos, arrancando-lhe gritos agudos que a infeliz não podia conter, por mais esforços que empregasse.
O Viegas vinha vê-la repetidas vezes, mudava os remédios, examinava cuidadosamente as manchas com o auxílio da lente que invariavelmente trazia num dos bolsos do seu paletó de alpaca, já meio coçado nas mangas, e saía despeitado, furioso, atribuindo ao mercúrio o malogro dos seus esforços.
— Foi aquele malvado do Palhares, foi aquela besta quadrada quem me complicou acura... Se não fosse ele, com o seu danado mercúrio, já de lia muito que a pobre mulher estaria pronta...
Uma conhecida, das vizinhanças, lembrou que fizessem benzera Mariana. Aquilo talvez fosse mau olhado ou praga que lhe haviam rogado. Tinham-se visto tantos casos... O Zé das Passadas já estivera muito mal, com um inchaço numa perna, que por um triz não o levou para a cidade dos pés juntos. Não houve medico, não houve drogas de botica, não houve nada que desse volta à inchação. O pobre homem vivia em cima duma cama, a gritar noite e dia, sem um momento de alívio. Era mesmo uma dor de coração! Não comia nada, não bebia nada... Para tomar um triste caldinho, que trabalhão que não era preciso! A mulher por um lado, o irmão pelo outro, os amigos pela outra banda... E bebe, e bebe que não te faz mal, tu estás mesmo mas é precisando de sustância, e labuta daqui e labuta d’acolá, até que afinal o pobrezinho lá se resolvia a engolir o caldo... E a perna a inchar que era mesmo um despropósito.
Um belo dia lembraram abenzidela... Homem, foi água na fervura. Veio a nhá Siríaca, que para benzer mau olhado não tinha outra no Maranhão. Era muito safada, muito inzoneira, muito faladora da vida alheia, mas, no tocante abenzidelas, estava campando sozinha. Chegou junto ao doente, fez as rezas, cobriu-lhe a perna de cruzes traçadas com o polegar da mão direita, e no outro dia já o homem amanheceu melhor, e ali estava agora rija e são, a vender saúde a quem dela carecesse.
Depois de ligeiras discussões, ficou resolvido que se apelasse também para a virtude da Siríaca, da mesma forma por que já haviam apelado para a do Viegas.
E lá veio a mulher, e lá cobriu todo o corpo da Mariana, sobretudo a cabeça, de cruzes e de sinais cabalísticos, como já havia feito à perna do José das Passadas.
Mas teve a mesma sorte do Viegas. Tanto a homeopatia como abenzidela não se davam com a Mariana.
Um terceiro alvitre foi sugerido: ouvir o Polidoro, farmacêutico de nomeada e a cujo ativo, para a benemerência pública, levava a crendice popular, e com ela muita gente boa, um sem número de curas miraculosas. Citavam-se as dezenas os casos graves resolvidos pelo assombroso saber do Polidoro. Eram três palhetadas, e lá se ia escorraçada por uma porta a doença, enquanto que pela outra entrava prazenteira a saúde. Dizia-se, à boca pequena, que a maior parte dos conhecimentos médicos do Polidoro provinham do pai, um cônego da Sé, muito debochado, que por largos anos fora vigário numa localidade do interior, onde exercera a medicina caseira, utilizando-se, como agentes terapêuticos, de diversas ervas e raízes bravias, e deixando por escrito os resultados das suas experiências. Quando o cônego morreu, andava o Polidoro a formar-se era Farmácia e tinha vindo ao Maranhão passar as férias do segundo ano. Recolheu a herança paterna, que consistia nuns casebrisitos meio arruinados para as bandas do Mercado, e com ela toda a papelada, onde vinha minuciosamente estudado o valor curativo das plantas descobertas polo velho clérigo.
Foi graças a esse subsidio importante, que o farmacêutico conseguiu, logo depois de diplomado e estabelecido, realizar as primeiras curas que lançaram com segurança os alicerces da sua fama futura.
Se o boato tinha fundamento, ninguém nunca o soube dizer com certeza. O que era indiscutível, porém, é que o homem tinha uma procura enorme e enricava a olhos vistos com a venda dos seus preparados medicinais, entre os quais se salientava o afamado Xarope de Raiz de Vassourinhas, especifico infalível contra as inchações, fossem elas de que natureza fossem e fosse qual fosse o tempo de duração que já contassem.
Era uma delícia assistir a uma consulta do Polidoro, na sua Pharmacia Modelo...
O homem, às primeiras palavras do doente assumia um ar de gravidade e de circunstância de fazer rir as pedras. Ouvia tudo atentamente, a fazer acenos pausados com a cabeça, fechando lentamente os olhos quando a cabeça descia, para os ir em seguida abrindo aos poucos, à proporção que a mesma cabeça ia subindo, a retomar a posição normal.
Terminada a exposição da doente, começavam as perguntas. Se alguma vez padecera d'aquilo, se alguém da sua família sofrera do mesmo mal, se algum dos seus amigos fora atacado da mesma enfermidade, porque o Polidoro tinha uma teoria especial a respeito do contagio cias moléstias pela vista. Diziam até os seus admiradores que ele preparava em segredo um grande livro, com a exposição metódica e documentada do seu modo de ver a respeito, livro que se destinava a fazer uma revolução completa na profilaxia moderna, demonstrando que se poderia evitar o contagio e a propagação de uma infinidade de moléstias, fugindo simplesmente à contemplação de algum paciente d’elas atacado. Era por isso que ele nunca encarava de frente os seus doentes, a não ser em casos extremos, quando o diagnostico exigia imperiosamente a inspeção visual da vítima.
Respondidos esses primeiros quesitos, atuava o Polidoro na indagação dos passos dados pelo cliente para combater o mal: que remédios já havia tomado, de que recursos já havia lançado mão, se já havia consultado algum outro médico. Quando era afirmativa a resposta a esta última pergunta, desejava logo conhecer o nome do médico e o que dissera a respeito. E, às declarações do doente em semelhante sentido, tinha um risinho de mofa, muito superior e muito alto, onde havia também uns longínquos vislumbres de compaixão, a desculpar aquelas cincadas do colega.
Se se tratava de algum caso que exigisse um exame imediato e detalhado, de um tumor, de uma contusão, de uma ferida, etc., começava então a terceira parte da consulta, que era exatamente a mais interessante e divertida de todas.
O Polidoro erguia-se da sua ampla cadeira de braços e aproximava-se lentamente do cliente, montando sobre o nariz os óculos esfumados; contemplava por alguns instantes a parte afetada e dava em Seguida começo a uma série de movimentos e de trejeitos complicadíssimos, afastando-se e abeirando-se sucessivamente do doente, descrevendo-lhe piruetas ao redor do corpo, tudo entrecortado de monossílabos guturais, que se não percebiam bem, e rematando a função com uma enfiada de afirmativas: “Sim, sr.; perfeitamente; estamos entendidos, não há dúvida alguma, é isso mesmo!”...
E voltava a ocupar a clássica cadeira de braços, que era o seu altar de oráculo charlatão e intrujador.
Foi à custa de muito empenho e de muita solicitação que o grande homem se resolveu afinal a ir ver a Mariana. Sujeitou-a às confissões do costume, inteirando-se do estado sanitário de toda a sua ascendência e de todas as suas amizades, teve o seu risozinho superior ao ouvir, narrada pela doente, a opinião do Dr. Palhares, encolheu os ombros num gesto de desprezo e de pouco caso ao saber dos passos dados pelo Viegas (esse nem se quer merecia as honras do uma ironia, porque não passava, a seu ver de um reles curandeiro, sem valor e sem imputação médica), examinou-lhe as manchas da pele, a língua, os olhos, as urinas e as dejeções, e terminou por afirmar que a despeito da gravidade do mal, comprometia-se solenemente a, em breve prazo, por a doente de pé. Já na sua vasta clínica havia deparado com casos, perfeitamente idênticos, de doentes atacados do mesmo mal, abandonados por todos os médicos do Maranhão e que ele, no entanto, com a simples aplicação dos seus preparados e a prescrição de um regime dietético, rigoroso e salutar, tinha conseguido arrancar das garras da morte.
A má sorte da Mariana, porém, ainda desta vez lhe não permitiu ver realizadas as gratas promessas de cura que de todos os lados lhe faziam. O mal agravava-se a olhos vistos: as manchas da pele começaram a abrir-se em feridas e uma paralisia incipiente entrou, dentro de pouco, a tolher-lhe os movimentos. Era já com certa dificuldade que se conseguia erguer do leito e andar pela casa, arrimada a um bastão. Quanto ao trabalho, viu-se forçada a abandoná-lo por completo e bem assim as visitas semanais à Laura.
Foi talvez este derradeiro sacrifício o que mais custou à infeliz. Tudo suportaria resignada: as dores físicas, as provações corporais, a miséria com todo o seu cortejo de horrores e de suplícios. Mas deixar dever a Laura, privar-se d'aquela benção salutar do céu a cair benfazeja sobre as úlceras doloridas da sua alma, afastar-se d'aquele oásis confortante em meio ao deserto árido da sua desventura, era um sacrifício superior às suas forças.
Que fizera ela, que crimes monstruosos cometera, para merecer da Providência irada tão tremenda punição?
A recaída da Mariana veio de novo jogar a Laura no seu doloroso desassossego.
O seu afeito filial corria parelhas com a intensidade do amor maternal da antiga barregã. Tinha pela mãe uma adoração acrisolada e cega, uma ternura dominadora o Exclusiva... Se lhe notava no rosto, por ocasião das visitas semanais, vestígios, apagados embora, de alguma angustia intima, se lhe lobrigava na expressão do semblante, no modo de olhar, no som da voz, um indício, por mais leve que fosse, de alguma contrariedade secreta, não descansava enquanto, a não forçasse a uma confissão completa do mal que a afligia.
E, de posse das confidencias maternas, que só à custa de muita solicitação carinhosa, e de muito desvelado empenho, conseguia arrancar, iniciava uma campanha hábil de encorajamento e de consolo, pondo em ação todos os recursos da sua alma, essencialmente afetuosa e amante, fazendo-se criança, cobrindo de beijos as faces impuras da Mariana, enlaçando-lhe, ao redor do pescoço, os braços aconchegantes e amorosos, até que recebesse, num riso sincero e franco, a certeza iniludível da eficácia dos seus esforços.
O passado da Mariana não lhe era estranho; sabia-se nascida de um amor ilegítimo, e a sua intuição natural das coisas da vida, ajudada por uma ou outra indireta ferina, atirada pelas companheiras, e por alguns retalhos de conversas surpreendidos à Diretora e às demais professoras do Asilo, lhe haviam gerado no espírito a convicção de que graves culpas contra a moral pesavam na consciência de sua mãe.
Mas não as quis nunca aprofundar, nem sequer averiguar ao certo se o arrependimento as tinha vindo já cancelar, ou se, polo contrário, novas faltas se lhes continuavam dia a dia a incorporar.
Que lhe importava tirar a limpo todas essas vergonhas, se elas em nada influiriam no grande e apaixonado amor que lhe abrasava o coração de filha?
Fosse a Mariana o que fosse, era sua mãe, tinha-a gerado nas suas entranhas, amamentado ao seu seio, partilhado com ela, ao princípio, o negro pão da sua miséria, contribuído, mais tarde, para lhe assegurar uma educação digna, e, sempre, por toda a vida, desde o instante do seu nascimento, sobre ela derramado prodigamente, abnegadamente, todo o desvelo e toda a ternura de que era ainda capaz a sua alma. E era o quanto bastava, para a querer até à loucura, para a adorar até ao sacrifício.
Enquanto a moléstia não tolheu à Mariana as visitas dominicais, a pungente inquietação da rapariga encontrava, para atenuar-lhe a intensidade, a esperança de que em breve a veria de novo restabelecida. Mas, quando se declarou a paralisia, amarrando a casa a infeliz, e privando-a por consequência de ir levar à filha o conforto da sua presença, tocou o auge o desespero e o desassossego desta última.
Os regulamentos do Asilo vedavam expressamente a saída das recolhidas, fosse sob que pretexto fosse, de sorte que só por intermédio de terceiros lhe era dado receber notícias da enferma.
Mas isto por forma alguma a satisfazia; o seu mais ardente desejo era correr para junto da mãe, prodigalizar-lhe o conforto dos seus cuidados, velar por ela, aplicar-lhe os remédios a tempo e a hora, constituir-se a sua enfermeira, enfim. Semelhante ventura lhe não seria concedida, bem o sabia; masque, ao menos, lhe permitissem, por uma vez que fosse, ir ver a mãe, convencer-se pelos seus próprios olhos da verdade do que lhe afirmavam que a doença da Mariana não tinha gravidade alguma, que cederia em breve, que dentro de muito pouco tempo a veria de novo restabelecida e de pé. Que mal viria daí ao estabelecimento, que prejuízo de semelhante quebra regulamentar adviria para ela própria, para as professoras ou para as outras recolhidas? Não seria até, pelo contrário, um belo e nobre exemplo, permitir que uma filha fosse solícita visitar a mãe enferma?
A Diretora do Asilo, depois de muita relutância e de muita hesitação, aconselhando-se com o resto do pessoal docente da casa e indo mesmo ouvir a opinião do Bispo da Diocese, cedeu afinal, e, uma bela manhã, a Laura, em companhia de uma Irmã de Caridade, saiu do Asilo, para ir visitar a Mariana.
Quando esta última viu entrar-lhe pela porta a dentro a filha, chegou a duvidar dos seus olhos. Pois que?! Seria possível? A sua filha, a sua Laura adorada, ali, no seu triste lar maculado, entre aquelas quatro paredes nuas, a respirar abandono e miséria, onde a moléstia a enclausurava? Não, era um sonho de certo, ama visão benfazeja e amiga que lhe enviava o céu, amiserado da sua desdita. Mas a visão falava, beijava-lhe as mãos, enlaçava-lhe o pescoço entre os seus braços macios, colava-lhe ao rosto os lábios, sem repugnância pelas chagas asquerosas que o cobriam, chamava-lhe mãe, cumulava-a de carinhos e de mimos... Não, não estava iludida... Era a sua filha, era a Laura que ali se achava ao seu lado... E um grito espontâneo, misto de alegria, de dor, de triunfo e de orgulho, lhe irrompeu dos lábios:
— Minha filha! Filha querida da minha alma! Ah! como eu chamava por ti, como eu pedia a Deus que me não deixasse morrer sem te ver ainda uma vez!
E as lágrimas, quentes e benfazejas, lágrimas de satisfação e de ventura, desciam, uma a uma, pelas suas faces emagrecidas e encovadas. Tomava entre as suas as mãos da filha, enchia-as de beijos vorazes, mirava-a da cabeça aos pés, sem se fartar nunca, sem nunca se sentir saciada. Palavras entre- cortadas de agradecimento e de amor se lhe vinham misturar às carícias.
Serenadas as primeiras expansões, quis a Laura conhecer os passos que haviam dado para a cura da mãe, e buscou por todos os meios convencê-la de que deveria quanto antes recorrer a um médico. Quis até que fossem imediatamente chamar o Dr. Palhares, ao Hospital da Santa Casa, que ficava fronteiro. Mas a hora da consulta do médico já havia passado, de modo que não mais seria possível encontrá-lo naquele dia.
Exigiu, porém, que, logo bem cedo na manhã seguinte, o fossem procurar e o trouxessem a ver a mãe. E, para mais segurança, fez chamar o padrinho que morava perto, arrancando-lhe a promessa de que iria em pessoa buscar o médico, comprometendo-se também a dar em seguida um pulo ao Asilo, afim de informá-la da opinião do facultativo e do regime que prescrevesse à doente.
A Mariana, presa ao leito pela paralisia absoluta dos membros inferiores, bebia extasiada aquelas palavras da filha. E a velha pergunta, eternamente irrespondida e que por tanto tempo a preocupara, se lhe seguia de novo no espírito. Donde herdara a Laura aquela incontestável e fulgurante superioridade? Quem lhe semeara no sangue o gérmen daquela suprema beleza física e daquela indiscutível ascendência moral?
E quando a rapariga lhe veio beijar as mãos antes de partir, prometendo-lhe, a despeito dos sinais negativos da Irmã, que dentro de poucos dias voltaria de novo a vê-la, uma interrogação, insensata e louca, esteve prestes a fugir-lhe dos lábios:
— Filha, dize-me, pelo amor de Deus, quem é teu pai?...
O padrinho da Laura, o Fialho, da Secretaria, como era geralmente conhecido na terra, realizava por inteiro o tipo do homem a quem costuma o vulgo denominar de uma boa alma.
Viera ao mundo para dois fins apenas: redigir ofícios na Secretaria do Governo e fazer o bem, a mãos largas, desinteressadamente, todas as vezes que para tal se lhe oferecia o ensejo. Estava-lhe aquilo na massa do sangue, não lhe vinha de semelhantes práticas mérito de espécie alguma. Não podia tolerar um ofício em desacordo com as práticas da estilística oficial, nem contemplar indiferente uma penúria a esmolar, da mesma forma porque muitos não sofrem o atrito de uma lima a afiar uma serra; fazia-lhe mal aos nervos, bulia-lhe com o organismo inteiro. Tomava logo o lápis para corrigir o ofício, rebuscava pressuroso as algibeiras para atenuar a penúria.
Já lhe conheciam todas essas duas predileções, e deltas desembaraçadamente se utilizavam sempre aqueles a quem pudessem aproveitar. Amanuense em dificuldades para pôr por escrito o pensamento governamental corria logo à banca do Fialho; pobreza envergonhada, que carecesse de uma esmola, ia sem relutância ater-lhe à porta da casa. A única diferença residia em que os primeiros eram invariavelmente atendidos e nem sempre igual sorte se deparava aos segundos.
Por quê?
Por uma razão muito simples: porque a mulher de Fialho era a antítese completa do marido. Para ela, poderia morrer de fome a humanidade em peso, exceção feita da sua parentela, que pouco ou nada se lhe dava. Que cada um cuidasse de si e dos seus e já não fazia pouco. Quanto aos restantes, que se arranjassem como pudessem; o mundo era vasto e havia nele lugar para todos. Estar a dispender as suas economias para encher o bandulho de gente que nem sequer se sabia de onde vinha e que talvez nem soubesse agradecer o favor que se lhe fazia é que era, a seu ver, a mais rematada das loucuras.
Por esse motivo, todas as vezes que podia, buscava invariavelmente impedir que a munificência do esposo se exercitasse em favor dos necessitados estranhos que o procuravam.
O Fialho, a princípio, tentou por meios brandos dissuadir a mulher dos seus inclementes propósitos; em seguida, vendo que a catequese pacifica não surtia efeito, passou à rispidez, às ameaças, às imprecações.
Convencido afinal da inutilidade deste segundo expediente, adoptou então o terceiro, do qual nunca mais se afastou: a indiferença. Podia a D. Anastácia bradar à vontade, enfezar-se, maldizer-se, cobri-lo de insultos e de impropérios: era o mesmo que nada. Prosseguia, calmo e frio, através da borrasca, como se nada d’aquilo lhe dissesse respeito.
Quando a Mariana os veio convidar, a ele e a mulher, para padrinhos da filha, a D. Anastácia torceu o nariz, farejando logo peditório; mas não teve remédio senão aceitar o convite.
Como, porém, se não verificassem as suas previsões, isto é, como a Mariana nunca recorresse à bolsa do seu marido nem a dela, despiu-se um pouco da sua reserva defensiva e chegou mesmo, por duas ou três vezes, a presentear a afilhada com uns vestidinhos de chita barata.
Mas a trovoada explodiu por ocasião da entrada de Laura para o Asilo.
— Se aquilo tinha jeito: andar o Fialho a meter-se em negócios que não eram da sua conta e que em coisa alguma o interessavam... Deixasse a pequena em paz, em companhia da mãe, que era a única quem incumbia a obrigação de velar pelo seu futuro. Que queria dizer: ele, um homem sério, velho, casado, respeitável, a, meter empenhos para recolher ao Asilo a filha de uma mulher de má vida, de uma desvergonhada que havia dormido com quase todo o Maranhão? Que não iriam pensar dele os seus chefes, o Presidente da Província, o Bispo da Diocese, toda a gente sensata enfim? Dar-lhe-iam talvez até a paternidade da bastarda, porque só por alguém do seu sangue é que a gente trabalha como ele trabalhava pela Laura. E a vergonha afinal de contas era toda para ela, para ela, a D. Anastácia Fialho, descendente de antigos fidalgos portugueses, senhora, em tempos, de uma numerosa récua de escravos, que se não fossem os azares sucedidos ao pai, ainda estariam àquelas horas a gemer debaixo do seu azorrague. Vivera até então sempre de cabeça erguida, sem uma macula e sem um senão, afrontando as vistas de todos, porque quem não deve não teme... E agora, quase no último quartel da vida, é que se veria obrigada a baixar os olhos ante os que a encarassem... E tudo porque? Porque o bom do seu marido entendia a todo o transe que a deveria expor aquela vergonha e aquele ridículo!
E a ladainha seguia, interminável, furibunda, desancadora.
— Não, as coisas não ficariam assim só...
Se ele não sabia velar pela honra e pelo bom nome da casa, ali estava ela, que, apesar de mulher, se sentia, contudo, capaz de tornar sobre os ombros a pesada tarefa. Tinha amigos, tinha parentes, tinha conhecidos, a quem recorreria e que de certo lhe não negariam o preciso auxílio para a salvar daquela triste e enlameante contingência em que se achava. Mas a sua cara não seria envergonhada, nem que viesse o mundo abaixo.
O Fialho, porém, já afeito àquelas trovoadas e àqueles despropósitos, passou por cima de tudo, fez-se nomear tutor da Laura e conseguiu pôr fim o seu nobre intento.
A pequena foi recolhida ao Asilo e ele nunca mais a perdeu de vista, acompanhando-lhe os progressos, velando pelo seu bem-estar, interessando-se pelo seu futuro, exultando com os seus triunfos escolares e querendo-a cada vez mais. Houvera do seu enlace dois filhos, mortos ainda crianças, de forma que toda a sua ternura paternal derivava agora para a Laura, a despeito da tremenda oposição da D. Anastácia.
Depois que se agravou a moléstia da Mariana, privando-a do trabalho, era ele, com as parcas sobras dos seus magros vencimentos, quem fazia quase que todas as despesas da casa. Não pequenos sacrifícios lhe custavam semelhante encargo, sacrifícios pecuniários e sacrifício da sua paz doméstica. Mas, era o caso: a Mariana sem pão e sem agasalho era como os dentes da serra comidos pela lima, contundia-lhe com os nervos, exacerbava-lhe o organismo.
No dia seguinte ao da visita da Laura à mãe, logo muito cedo, partiu o Fialho para o Hospital, em busca do Dr. Palhares e pouco depois entrava com ele em casa da Mariana.
O facultativo, ao dar com a infeliz estendida na cama, coberta de chagas, quase sem movimentos, a não ser nos braços, teve um brusco repelão de cólera:
— Ah! você pensava que havia de caçoar com a moléstia e com o médico? Mal que se sentiu melhor, toca logo a abandonar os remédios e a cair de novo na pandega, hein? Pois aí está o resultado... Agora, minha rica, é daqui para a cova...
E como lançasse os olhos para uma mesa desconjuntada, sobre a qual se achavam enfileiradas as garrafas com os rótulos do Viegas e do Polidoro, a sua cólera subiu ao auge.
— Eu já estava admirado que não andassem por cá também as patas d’aquelas duas bestas! Mas é de arrancar a paciência a um santo! A gente a trabalhar, a esforçar-se por livrar esta canalha das garras da moléstia, e eles a nos traírem, a recorrerem por portas travessas à estupidez d’aqueles dois alarves! Você não se pegou também com S. Benedito? Pois admira... É sempre assim! Corja de patifes e de mal-agradecidos! E quando se pilham livres, graças ao nosso trabalho: —não fomos nós quem os salvamos... Quem os pôs bons foi o Viegas, foi o Polidoro, ambos mancomunados com S. Benedito! É de fazer perder a paciência a um santo!...
As lágrimas da Mariana desciam-lhe quatro a quatro dos olhos e em todo o semblante da infeliz o mais desvairado terror se espalhava.
O Dr. Palhares examinou-lhe as chagas, fez-lhe algumas perguntas e terminou declarando que o mal era incurável. D’aquela não se levantaria mais nunca. O mais que que podia fazer era prolongar-lhe um pouco mais a vida, mediante um regime severo, mas que por forma nenhuma poderia ser posto em prática ali. O verdadeiro era recolhê-la ao Hospital.
— Ao Hospital!? bradou Mariana, fazendo esforços sobrehumanos por se erguer do leito. Ao Hospital?!
— Sim, ao Hospital, retrucou o dr. Palhares. E que tem isso? Será por ventura você a primeira que para lá vai?
— Oh! sr. Dr., tartamudeou suplicante a desgraçada. Ir para o Hospital?! Antes morrer logo!
— Eu não estou dizendo? Só a chicote ou a ferro em brasa! Estão a morrer de fome e de miséria, a largar os pedaços, sem ter quem os trate, quem lhe dê os remédios... Oferece-se-lhes tudo isso, mas qual! é trabalho perdido! Preferem esticar com os dentes arreganhados a aceitar a esmola que se lhes faz! Sucia de mal-agradecidos! Pois arrebente p’ra aí à vontade, que eu é que não tenho obrigação de a aturar!
E, enterrando ainda mais o chapéu na cabeça, abalou o dr. Palhares, furioso, acompanhado até à porta pelo Fialho que por todos os meios procurava acalmá-lo, fazer-lhe ver a ignorância da Mariana, vítima do prejuízo arraigado no povo contra a caridade oficial e coletiva dos Asilos e dos Hospitais. Mas aquilo havia de passar, ela afinal se convenceria de que só teria a lucrar com a adoção do seu alvitre.
— Que se convença ou não, isso para mim é indiferente... Aqui é que não ponho mais os pés! atirou numa derradeira baforada de cólera o dr. Palhares, já na rua, a mover brutal o seu enorme corpanzil adiposo e a brandir furioso a bengala.
Fiel à promessa feita à afilhada, o Fialho, após a visita do Dr. Falhares, dirigiu-se para o Asilo afim de comunicar o resultado à rapariga.
Ia resolvido a dizer-lhe a verdade, na esperança de que ela lhe secundaria os esforços no sentido de ser a Mariana internada no Hospital.
Mas, às primeiras palavras do velho, a Laura insurgiu-se logo:
— Minha mãe no Hospital? Ora, meu padrinho, era só o que faltava! Nem me deveria o senhor propor tal coisa!
O Fialho caiu das nuvens; arregalou os olhos, fitando-os esbugalhadamente no rosto da afilhada, na surpresa inesperada e brusca, que semelhante recusa lhe plantava no espírito. Que?! Era aquela a sua Laura, a rapariga modelo, ponderada, e sensata, que causava, pelo seu sadio equilíbrio moral, a admiração de todos os que a conheciam? Seria possível que a herança psíquica da classe de que emergia, de tal forma nela atuasse, a ponto de lhe obcecar a razão, de anular, de um momento para o outro, fodo o trabalho paciente da educação e do ensino?
Rápidas e fulgurantes, todas essas perplexidades inquisidoras lhe cortaram o espírito, antes que ele se resolvesse a pedir à afilhada a razão daquela declaração.
— Mas, que tem o Hospital, minha filha? Que mal virá à tua mãe de ser lá recebida e tratada? Por que motivo te opões à adopção desse alvitre do Dr. Palhares, o único aceitável na emergência em que nos encontramos?
Por que? Porque o Hospital foi feito para os desamparados e minha mãe, felizmente, ainda não chegou a esse grau extremo de penúria.
— Como assim, minha filha? Palavra que te não compreendo!
— É porque não quer, meu padrinho. Minha mãe tem ainda uma filha válida!
O espanto do Fialho cresceu desmesuradamente; lobrigou, num clarão rápido, as intenções que se ocultavam por trás daquelas palavras decisivas e claras. Mas duvidava ainda da sua argúcia e a pergunta escapou-se-lhe dos lábios:
— Que queres dizer com isso?
— Quero dizer que minha mãe não carece da caridade do Hospital porque tem uma filha para cuidar dela e para alimentar com o seu trabalho! declarou a rapariga, num tom seguro e resoluto, erguendo o busto audacioso e cravando no rosto boquiaberto do padrinho os seus dois olhos fulgurantes, onde luzia naquele instante a orgulhosa e nobre consciência do dever que a solicitava.
— Mas enlouqueceste, pequena! Tu não sabes o que dizes! foi a exclamação que irrompeu dos lábios do Fialho, passado o primeiro momento de estarrecido pasmo.
— Não enlouqueci, meu padrinho e bem sei o que estou dizendo, contrapôs a Laura, cada vez mais resoluta e mais calma. Minha mãe não vai para o Hospital porque eu vou para junto dela, dar-lhe tudo aquilo que o Hospital lhe oferece, e com muito mais amor e com muito mais proveito, de certo: o tratamento e o sustento.
— Mas donde vais tirar recursos para tudo isso, minha filha? Tu não vôs que essas coisas se não fazem sem dinheiro e muito dinheiro?
— Do meu trabalho, simples e exclusivamente comeu trabalho. Para que passei nesta casa tantos anos? Que utilidade teriam as coisas que aqui me ensinaram se me não permitissem desempenhar agora o mais sagrado e o mais grato dos meus deveres? Fique tranquilo, meu padrinho, que não irei mendigar. O que sei me basta para ganhar honradamente o pão, para mim e para minha mãe enferma...
A Irmã que, como de costume, acompanhara a Laura ao locatório, desde o começo da conversa, manifestava sinais inequívocos, a princípio de pasmo, em seguida de dúvida zombeteira e por fim de mal sofrida impaciência. Sentia-se exasperada ante aquelas afirmações independentes da asilada, em franco e ineverente desacordo com a rígida disciplina da casa.
Afinal, não se ponde conter por mais tempo e interveio abertamente no diálogo:
— A menina fala como se essas coisas dependessem apenas da sua vontade; não se lembra talvez de que acima dela se ergue outra mais poderosa e mais forte e com muito mais direitos a ser acatada e obedecida!
— A quem quer aludir com essas palavras, Irmã Tereza? perguntou a Laura volvendo lentamente a cabeça na direção da religiosa, mas sem o mais leve vislumbre de provocação.
— A quem? rugiu a outra, pondo-se de pé, a quem? Admira até que me faça semelhante pergunta! À nossa Madre Superiora, à Diretora do Asilo!
— Oh! a Diretora é uma santa, retorquiu a Laura, no mesmo diapasão manso, porem resoluto, como se não atentasse no todo agressivo da Irmã. Será a primeira a aconselhar me que dê, quanto antes, o passo que premedito, porque ela bem sabe o quanto as filhas devem às mães, sobretudo quando as mães são, como a minha, umas desgraçadas e umas infelizes. A Madre Superiora! Mas ela será a primeira a dizer-me que o meu dever, o dever que a religião, que a moral, que a sociedade, que todas as supremas forças diretoras da consciência humana enfim, me traçam nestora, é correr para junto de minha mãe enferma e levar-lhe pressurosa, agora que a desdita e a miséria sobre ela se abatem impiedosas, o concurso valido do meu trabalho e o grande, o imenso, o inexcedível consolo do meu amor!
— Talvez não sejam as coisas como lhe parecem... É possível que aos olhos da Madre Superiora haja algum outro dever mais alto do que esses que apregoa, bradou a Irmã, já fora de si, com os olhos injetados e a brandir, com os movimentos furiosos da cabeça, as grandes abas do seu capuz, semelhando duas asas agorentas de corvo branco que se aproxima voraz e crocitante da carniça fresca.
— E que dever é esse, Irmã Thereza? inquiriu de novo a Laura, ainda calma, mas deixando já perceber a tempestade de revolta que aos poucos se lhe amontoava no íntimo.
— O dever da sua salvação que lhe manda fugir do contato do pecado e sua mãe, bem o sabemos todos...
Num pulo, pôs-se a Laura de pé, enorme, ameaçadora, formidanda. Transfigurara-se-lhe por completo o semblante. A mansidão e a cordura primitivas foram bruscamente substituídas pela cólera que fulmina, pela revolta que esmaga, e pela coragem ofendida que se afirma, reduzindo a migalhas os obstáculos que se lhe erguem em frente.
A conclusão da frase morreu covarde na garganta da religiosa que recuou apavorada até junto à porta.
— Nem mais uma palavra! Proíbo-lhe terminantemente que insulte minha mãe, foi o grito rouco que explodiu dos lábios frementes da rapariga.
O Fialho correu para ela, procurando acalmá-la, chamá-la à razão:
— Que é isto, minha filha? Acalma-te, sossega... Que é isto?...
A Irmã sumira-se pela porta que comunicava com o interior e a Laura, cedendo à reação natural, após aquela violenta explosão de cólera, atirou-se aos braços do padrinho, soluçando convulsamente.
O velho estreitava-a trêmulo de encontro ao peito, cobrindo-lhe de beijos os cabelos, misturando às dela as suas lágrimas, atingido também pela dor confusa, pela magna indescritível que retalhavam o triste e valente coração de virgem que ele sentia pulsar sobre o seu, sem encontrar uma palavra decisiva que viesse por termo a aflitiva situação, a não ser aquela pergunta banal e sem significação:
— Que é isto, minha filha, que é isto?
— Ah! meu padrinho! conseguiu pôr fim balbuciara Laura, por entre os soluços que a agitavam. Que infeliz e que desgraçada que eu sou! Que vai ser de mim agora, desamparada e só, na medonha luta que se vai travar nesta casa?!
— Não repitas tal coisa, filha... Então de que te sirvo eu? Não me tens aqui ao teu lado, para amparar-te e proteger-te?
A rapariga desenvencilhou-se dos braços do Fialho e fitou-lhe em pleno rosto os olhos iluminados naquele instante por um rápido clarão de esperança.
— Será verdade isso? Poderei contar com o seu apoio, confiar na sua proteção?
O velho teve um momento de hesitação. Travava-se-lhe no íntimo um conflito violento: de um lado a sua moral burguesa, o seu senso prático da vida, a fazer-lhe veios inconvenientes do passo premeditado pela afilhada; do outro o impulso de revolta que no fundo de todos nós se aninha contra a normalidade da vida e que nos leva sempre a aplaudir em segredo, embola, na maioria dos casos, os não secundemos abertamente, todos os atos que com essa mesma normalidade rompem.
A sua imensa ternura pela rapariga, o seu extraordinário desejo de a ver sorrir de novo e aquela disposição inata para consolar os que sofrem, que lhe formava o fundo de caráter, deram ganho de causa ao segundo daqueles sentimentos e, resolutamente, num ar convencido e firme, como que desafiando todos os obstáculos, provocando todas as oposições, declarou em voz pausada e segura:
— Conta comigo, minha filha! Ter-me-ás sempre ao teu lado, sejam quais forem as emergências em que te vires.
Um sorriso triunfante e largo, sorriso de aurora que surge afinal, espancando vitoriosa as derradeiras trevas da noite, espalhou-se por todo o rosto da Laura.
— Sério? É sério isso? Não me retira então o seu apoio?
— Não retiro, filha, pois então eu havia de lá retirar? Não retiro coisa alguma!
— E consente... consente em que eu vá para junto da mamãe?
— Consinto, já te disse... Era só o que faltava: que eu não consentisse! Consinto e exijo até que vás tratar da velha! Sou o teu tutor, o único responsável pelo teu destino e... acabou-se! Consinto e quero ver quem me vem às mãos, por isso! Ora aí está!
Dissiparam-se-lhe os últimos receios, desapareceram-lhe por completo todas as hesitações.
A mágoa da Laura, se ele se lhe opusesse aos intentos, era a lima a comer os dentes da serra... E ele não poderia suportar-lhe o atrito... Estava-lhe aquilo na massa do sangue, não dependia da sua vontade, era superior às suas forças...
N’esta evocação contínua e aguda do passado a que vivo condenado, revendo a cada instante, numa lucidez por vezes dolorosa pela sua extraordinária percuciência, uma multidão de episódios mortos que em torno a mim se desenrolaram em tempos idos, surgem-me agora, vivos e palpitantes, do fundo da memória, todos os enredos, todos os escândalos, todos os falatórios e mexericos que o simples fato de querer uma filha deixar um estabelecimento de caridade oficial para ir cuidar de uma mãe, enferma e pobre, desencadeou, lia alguns anos, no Maranhão.
E com tamanha intensidade me acometem essas reminiscências, que eu creio que enlouqueceria-se-lhes não proporcionasse o derivativo do papel, confidente, discreto e amigo, sempre pronto a receber na sua alvura propícia e casta a mácula violadora de todas as confissões d’alma.
Se eu destinasse ao público esta espécie de memórias parciais e retalhadas, sem um nexo seguido e claro que as concatene e sistematize, que para aqui vou fixando ao acaso, quase que ao correr da pena, no silêncio amodorrado e triste do meu gabinete de trabalho, nas horas em que a insônia me empolga martirizadora e cruel, de certo lhes não poderia dar um cunho tão real de exatidão e de verdade. A preocupação do efeito, o interesse puramente literário da forma, a ambição de realizar um esforço de arte que me fizesse entrar de roldão no Parnaso dos eleitos da pena, cercado logo da fama que auréola os escritores de raça, sobremodo prejudicariam a sinceridade da narração.
A cada linha que escrevesse, a cada episódio que contasse, a cada figura que procurasse debuxar, ante os olhos do espírito se me levantaria logo a imagem do leitor, na ânsia de conhecer de antemão a impressão que lhe iria causar o meu trabalho. E não trepidaria, se necessário fosse, em sacrificar a verdade ao desejo secreto de ser bem recebido por todos os que se dessem ao trabalho de percorrer as páginas do meu livro.
Agora mesmo, no momento em que escrevo — são onze da noite e em casa do coronel Britinho, ali à esquina, meia dúzia de idiotas de ambos os sexos, rodopiam enlaçados, pelo meio da sala, à cadência de uma polca reles e safada, executada por uma orquestra mais reles e mais safada ainda — neste mesmo instante me contempla, de entre as suas molduras modestas, uma aluvião de retratos de escritores nacionais e estrangeiros, que me forram as paredes do gabinete.
Há ali de tudo: poetas, romancistas, historiadores, filósofos, et reliqua... Cada um deles impingiu já e a maior parte continua ainda a impingir à humanidade legente uma boa caterva de livros, uns por desfastio, outros por profissão, outros por necessidade, mas todos animados pela mesma ambição de glória e de renome, pelo prurido invencível de serem aplaudidos pelos contemporâneos e apontados depois aos pósteros como tipos requintados e superiores, destoando, pelo vigor incontestável do seu engenho, do comum dos mortais.
Pois bem, quantos deles não imolaram, como o protagonista dos Maias, do Eça, a exatidão de um sistema à sonoridade de um adjetivo, para arrancar a consagração do público? Quantos dentre eles não mentiram para agradar, não exageraram uma insignificância ou não rebaixaram às proporções de uma bagatela um acontecimento de valor, e tudo isto para impressionar, favoravelmente, o indígena, e poder depois cerrar beatificamente os olhos por entre as nuvens de incenso dos turiferários da crítica?
A coragem do Dr. Stockmann, o inconcebível herói do Inimigo do Povo, de Ibsen, é moeda sem curso no mundo real. Só se encontram d’essas aberrações nas fantasias desordenadas dos poetas. Um médico de carne e osso, circundado por uma auréola de sabedoria, gozando à larga dos proventos abstratos e materiais do seu renome, seria lá capaz de jogar tudo isso pela janela fora, do dia para a noite, simples e exclusivamente por amor da verdade e interesse pelos seus semelhantes? Só mesmo na cachola idiota d’aquele maduro norueguês é que poderia ser gerada uma figura tão absurda!
Não viram, ainda há pouco, o exemplo do Brunetière e do Huysmans?
Quando os dois farejaram que o catolicismo literário fazia a moda em França, constituía um tempero provocante das lucubrações críticas e beletrísticas, garantindo o sucesso e o consumo das produções livrescas com ele condimentadas, toca o primeiro a ir discursar em Lille sobre as razões atuais da fé e o segundo a desenterrar da poeira do Flos Sanctorum a vida de Santa Lydwina de Schiedam.
E assim é tudo o mais...
E o diabo da orquestra do Britinho que não se cala?! Não cansarão aqueles malvados de soprar nos instrumentos? E os miseráveis da dança não sentem ainda as pernas a vergar? Então isto tem jeito: perturbar desta forma o repouso alheio? Quem quiser dançar que dance de dia, com todos os diabos! A noite foi feita para o descanso e para o sono. É bem certo que eu não posso fruir nenhum dos dois; mas daí não se segue que fiquem os Britinhos com direito a abusar desta forma dos meus ouvidos! Se eu não durmo ó porque não posso, mas não tenho que dar por isso satisfações a ninguém! É como se estivesse dormindo: estou dentro da minha casa, sem incomodar ninguém! Ora bolas! Se o bandido continuar d’esta forma, vou amanhã queixar-me d’ele à polícia...
Mas, como ia dizendo, eu, felizmente, acho-me acoberto dessas tentações de falseamento da verdade, na evocação dos episódios que agora confio ao papel.
Escrevo, não por veleidade literária, nem tão pouco por nutrir a ambição de me incorporar também à aluvião de sumos sacerdotes que nos altares das letras brasileiras pontificam, cada qual mais convencido da sua superioridade própria e da insignificante nulidade dos outros, mas simplesmente governado por um impulso doentio, que não sei bem definir e que me força a fazer o que não quero.
Tudo o que para aqui escrevo ó a reprodução fiel de cenas reais, de acontecimentos verídicos, testemunhados uns por mim, chegados outros ao meu conhecimento por informações de terceiros.
A carta do Carlos de Menezes fez ressurgir para mim do pó do esquecimento relativo em que dormiam, toda a série de fatos tragicômicos que o seu casamento determinou no meio rotineiro e burguês da terra.
Desde o momento em que a recebi, não se passa um instante, não decorre um minuto, em que não reveja, numa incrível minuciosidade de detalhes, toda essa longa história, ora dolorosa e trágica, ora grotesca e ridícula, que fez a delícia dos mexeriqueiros indígenas, não há ainda muitos anos.
O peso das reminiscências é tão forte, de tal forma que assoberba e esmaga, que sinto a necessidade imperiosa de o partilhar com alguém ou com alguma coisa.
Se procurasse, para semelhante desabafo, algum dos meus conhecidos, seria certamente mal recebido, porque não há no Maranhão quem desconheça essa história. Não encontraria uma alma caridosa que se sujeitasse, sem uma razão plausível e sensata, à tremenda maçada de a ouvir de novo.
Nestas condições só me resta um recurso: o papel, que é o confidente mais paciente e mais cômodo que conheço para todos os cacetes do mundo.
Ele que me ature, pois, resignado e que se não lembre um dia de ir partilhar com estranhos a insuportável estopada que agora lhe impinjo.
Seria um abuso de confiança de que eu não suponho capaz esse útil e pacífico produto da indústria humana, e que dos seus inventores pode ter herdado tudo, menos essa horripilante qualidade...
Pudesse o Filho prever as consequências da sua aprovação aos projetos da afilhada, dado lhe fosse ler no futuro e medir as contrariedades e os desgostos que daí lhe decorreriam, e teria talvez o bom velho encontrado, a semelhante espetáculo, forças bastantes para reagir contra o seu caritativo e generoso pendor, buscando por outro qualquer meio conciliar as coisas ou reservar-lhes para mais tarde o desfecho.
O primeiro obstáculo que se lhe ergueu em frente foi a vontade inabalável da Diretora do Asilo.
Escudando-se na religião, abroquelando-se inflexível por traz daquilo aquela chamava o seu devei espiritual, a respeitável matrona declarou peremptoriamente ao Fialho que nunca consentiria em semelhante loucura. Ele, se quisesse, que assumisse sozinho aquela tremenda responsabilidade: era o tutor da Laura e, portanto, o único que poderia dispor da sua sorte.
Mas que visse bem, que refletisse bastante, antes de embarcar numa aventura tão lamentável e de consequências tão funestas.
A pobrezinha não sabia o que fazia: a irreflexão da idade, uma compreensão falsa do seu dever filial e, até certo ponto, uma pontinha de orgulho e de insubmissão, que ela e as demais professoras do Asilo bem se esforçaram por corrigir, mas, debalde, é que lhe ditavam aqueles projetos. Compelia aos mais velhos, aos mais experientes, aqueles sobre cujos ombros pesava o encargo do seu destino, abrir-lhes os olhos, fazer-lhe ver a trilha errada pela qual enveredava.
Em primeiro lugar surgiam os inconvenientes que ela chamaria de materiais.
Onde iria a rapariga colher os recursos pecuniários suficientes para fazer face às imensas despesas que o tratamento da mãe acarretaria? Seria um absurdo supor que os seus trabalhos de bordados lhe dessem para tanto. Mas, mesmo que assim fosse, teria ela o tempo suficiente para executar todas as encomendas que lhe fizessem? Não se veria, pelo contrário, com todas as horas tomadas pelos cuidados requeridos pela enferma? E quem poderia garantir que as suas freguesas atuais, que eram exatamente as damas ricas da cidade, que patrocinavam o Asilo, lhe não retirariam o seu auxílio, ao vê-la, com tamanha ingratidão, abandonar a instituição a quem devia tudo o que era e tudo o que sabia? Porque a verdade era que, se a Laura tinha deveres que a prendiam à Mariana, ninguém poderia negar que laços idênticos a acorrentavam aquela casa, para onde entrara um dia, desamparada e ignorante, e donde iria sair aparelhada por uma educação invejável e sólida.
Vinham em seguida os inconvenientes espirituais. A Mariana era uma pecadora impenitente; rompera temporariamente com os seus vícios e os seus desregramentos, mas não havia ainda buscado pela penitencia sincera e constante lavar as culpas do passado. Que queria isto indicar senão o desejo secreto de recair no pecado velho logo que uma ocasião propicia se lhe deparasse? E a que riscos iria ficar exposta a Laura ao seu lado, a que tentações, a que mãos conselhos? Não chegaria ao ponto de avançar que esses conselhos partissem da Mariana, porque afinal, de contas, não lhe era permitido fazer mãos juízos do próximo, sem uma base iniludível, mas das companheiras que lhe frequentavam a casa, das antigas relações que forçosamente lhe haveriam ainda de viver na intimidade. Oh! a virtude humana era tão frágil e o tentador dispunha de tantos meios para perder as almas... Ela que o dissesse, ela que na sua carreira de religiosa, tantos exemplos tristes havia visto, com tantas misérias defrontado! O mundo vivia semeado de armadilhas e de ciladas; só o auxílio divino poderia impedir os homens de se deixarem nelas prender...
Debalde buscou o Fialho contraditar semelhantes argumentos, mostrando-lhe que ela exagerava as coisas, pintava-as mais negras do que na realidade eram, comprazia-se em descobrir obstáculos e dificuldades onde nem de leve existiam. A Diretora foi inflexível; abanava desanimada a cabeça, com um sorriso superior e levemente amiserado, como se no íntimo lamentasse aquela cegueira do velho.
E voltava de novo à carga, reformando os seus argumentos, dando mais energia e mais calor à sua opinião, citando casos quase idênticos à vertente, cujo desenlace eloquentemente confirmava as suas opiniões. Custava-lhe tanto ver uma alma perder-se assim! Pondo mesmo de parte o seu dever de velar pela salvação das suas asiladas, a simples caridade cristã a levava irremissivelmente a empregar todos os meios ao seu alcance para impedir aquela loucura.
O que, porém, a boa senhora não dizia, o que nem sequer deixava transparecer através das suas longas tiradas evangelizadoras, era o móbil secreto d’aquela tenaz oposição em que se empenava.
A saída da Laura do Asilo vinha dar um corte brutal nos réditos do mesmo. Os trabalhos domésticos executados pessoalmente pela rapariga ou pelas alunas sob a sua direção, constituíam uma renda fabulosa, pela qual percebia a Diretora uma percentagem não pequena, de forma que a perspectiva de se ver bruscamente privada desse auxilio às suas esmolas discretas, dava-lhe forças para teimar com o Fialho, sem desesperar de o chamar ao seu partido, de convertê-lo à sua opinião.
Mas o velho havia hipotecado a sua palavra à afilhada; além d'isso, no seu íntimo, começava a dar plena razão à rapariga, achava o seu procedimento de uma nobreza inqualificável, digno de ser aplaudido e secundado. Brigava um pouco, era certo, com o seu critério burguês, com o seu modo habitual de encarar a vida, semelhante sentimento; mas, que diabo! Justamente o lado anormal da ventura é que mais o seduzia.
Se ele houvesse lido aquilo num dos romances do Gabinete Português de Leitura, que constituíam o passatempo das suas noites ociosas, teria balido palmas cie entusiasmo e derramado lágrimas de com- moção. Uma filha que se sacrifica pela mãe, que abandona todos os confortos e todas as comodidades para se ir entregar a uma tarefa de sacrifícios e de martírios e tudo isto por piedade filial, por amor pela criatura que lhe dera o ser, que exemplo mais belo, mais edificante, mais capaz de arrancar aplausos e de provocar admiração?
Pois bem, não era num romance que semelhante caso se lhe deparava, era na vida real; não era entre personagens de ficção que semelhante drama se desenrolava, era entre gente do seu conhecimento, gente com quem ele diariamente lidava, e, mais ainda, gente a quem deveras estimava e queria. E era dele que dependia tudo, dele exclusivamente! E seria capaz, aplaudindo o lance num livro da imaginação, de lhe negar o apoio na realidade? Seria um contrassenso e seria um absurdo.
Por isso, a despeito de toda a catequese paciente e hábil da Diretora, o velho permaneceu firme no seu propósito. Sem se afastar uma linha da delicadeza e das conveniências, significou à digna religiosa que, fazendo toda a justiça aos seus sentimentos e às suas louváveis intenções, convencido mesmo de que ela talvez no fundo não deixasse do ter certa razão, não lhe era, contudo, possível atendê-la. Não se sentia com forças de retirar a palavra dada, de voltar atrás do compromisso tomado.
A virtuosa senhora, ao ver perdida aquela primeira batalha, mordeu imperceptível mente o beiço, e assumiu um ar compungido e grave.
— Já que teimava na sua obstinação, que poderia ela fazer? Resignar-se ante o irremediável. Só o que pedia a Deus é que ele se não viesse arrepender mais tarde do passo impensado que dava. E, se tal hipótese se verificasse, não poderia apelar para a ignorância ou para a irreflexão. Ela bem lhe fizera ver tudo, metera-lhe a verdade pelos olhos dentro... Não a quisera ver? Obstinara-se na sua cegueira? A culpa não era dela; dizia-lhe a consciência que tinha cumprido fielmente o seu dever... Agora, que ele a desculpasse, só entregaria a Laura mediante uma autorização escrita do Juiz de Órfãos. Que não levasse a mal aquela exigência... Era para satisfazer uns derradeiros escrúpulos de consciência. Ela bem sabia que o Juiz não se oporia, mesmo porque se não podia opor... Mas a sua consciência não ficaria tranquila se não tentasse aquele passo....
E, ao pronunciar estas últimas frases, pelos olhos da Diretora perpassou um fugitivo clarão de triunfo, para logo velado pela expressão piedosa e dissimulada que lhe era habitual.
O Fialho, sem lobrigar o ponto secreto de mira da religiosa, concordou logo.
— Não havia dúvida! De muito boa vontade lhe poria em paz em consciência... Se a questão era só essa, no dia seguinte lá teria a autorização do Juiz.
E, depois de uma despedida cortês e afetuosa, em que mais uma vez, a digna senhora lhe pediu humildemente que lhe não levasse a mal aquela exigência, ganhou o homem a rua, supondo terminada a sua missão e vencidos todos os obstáculos que à mesma se opunham.
A Irmã Nazareth, Diretora do Asilo da Piedade, exigindo do Fialho, para lhe entregar a Laura, uma autorização escrita do Juiz de Órfãos, deu mostras de possuir, além das peregrinas virtudes evangélicas que lhe exornavam o caráter, um espírito sagaz e fino, capaz de apanhar de antemão, para os anular de vez, ou, pelo menos, retardar-lhes os efeitos, todos os óbices que se pudessem opor a uma causa que patrocinasse.
O bondoso velho, ao receber a intimação, nem de leve suspeitou do móbil secreto que a ditava; convenceu-se até de que era, com efeito, para descargo de consciência, que a religiosa lhe pedia aquilo. Espírito leal e franco, afeito sempre a dizer a verdade, sem rebuços e sem subterfúgios, era o Fialho congenitamente incapaz de compreender as manhas e as insidias secretas e babeis, em que se comprazem certas almas virtuosas para fazer vingar os seus projetos.
Começou, porém, a lobrigar o erro em que laborava desde a entrevista que leve, na tarde desse mesmo dia, com o Dr. Loureiro, Juiz de Órfãos da Capital.
Já de meia idade, mas ainda forte e bem-disposto, o Dr. Loureiro gozava na Capital do Maranhão de uma bela fama de integridade e de independência, a que se vinha juntar também a de purista impecável na redação das suas sentenças. Citavam-se com entusiasmo diversas passagens de uma decisão proferida pelo honrado Juiz num processo de atentado ao pudor que ficou célebre na terra, onde a justeza e a elevação dos conceitos jurídicos corriam parelhas com a elegância e precisão clássica da forma em que eram vasados. Afirmava-se em todas as rodas que o homem roubava diariamente aos seus afazeres uma ou duas horas para ler os clássicos. E ele mesmo confirmava esses boatos, ostentando em evidencia, nas prateleiras das estantes envidraçadas aquele ornavam a sala das audiências, de mistura com as coleções encadernadas d'O Direito, as obras completas de Filinto Elísio, de Alexandre Herculano, de Castilho, e de quase todos os quinhentistas.
Por diversas vezes o surpreenderam os amigos e as partes atentamente curvado sobre uma página amarelecida e vetusta das Décadas de João de Barros, retirando-se logo discretos, ou indo aguardar pacientes no corredor que o grande homem terminasse a sua proveitosa e dignificadora leitura.
Um escrivão lembrou-se um dia de declarar que, quando o Dr. Loureiro se achava naquela posição, sentado à banca, com os cotovelos fincados sobre a superfície da mesma, descansando a fronte sobre as palmas das mãos e tendo debaixo dos olhos um clássico aberto, num ar de quem se concentra para melhor apanhar o pensamento do autor que lê, estava mas era simplesmente a gozar em paz uma boa soneca. Mas ninguém lhe deu crédito: caíram-lhe, pelo contrário, todos em cima, a chamá-lo de mentiroso e de caluniador, atribuindo a alguma sarabanda do Juiz, por desleixo no cumprimento de deveres, aquela despeitada aleivosia do escrivão.
Tinha, porém, uma especialidade o Dr. Loureiro: era de uma indecisão, de uns escrúpulos e de umas hesitações deveras maçadoras em todos os passos que tinha a dar no desempenho das suas funções de Juiz. Parecia que o homem vivia farejando embuste de longe, sempre na desconfiança de que lhe queriam iludir a boa fé ou ilaquear a consciência. Deforma que era uma luta para lhe arrancar às vezes a decisão mais simples d’este mundo e que outro qualquer juiz teria logo proferido sem pestanejar. Levava um tempo enorme para se decidir, a colher informações disfarçadas de um e de outro, a orientar-se, a esmiuçar bem os prós e contras, afim de não ser apanhado descalço quando lhe quisessem discutir a sentença, ou pôr em dúvida a justiça dos motivos que o levaram a pronunciá-la.
Por esse motivo, quando o Fialho, que ele apenas conhecia de vista, lhe expôs minuciosamente e com a maior clareza possível, todo o caso que o trazia à sua presença, terminando por lhe pedir a autorização requerida pela Irmã Nazareth, o homem concertou os óculos, endireitou-se na cadeira, sorveu uma longa pitada de rapé da sua tabaqueira de tartaruga, com o seu monograma em letras de ouro na tampa, e pigarreou por fim, em voz pausada e lenta, como quem mede bem as palavras:
— Mas... como é isso?... Não o percebo bem... A Diretora do Asilo quer uma autorização minha para lhe entregar a menina?
— Exaclamente.sr. Dr., é isso mesmo... Quer que V. S. a autorize por escrito a confiar-me a pequena...
— Mas, a menina não é sua tutelada?
— É, sim, sr.
— E então, qual a necessidade de uma autorização escrita do Juiz para poder o sr. trazer para a sua companhia uma menor de quem é tutor?
— É... eu também penso assim... Mas a Irmã Nazareth tem umas ideias... Diz que é para descargo de consciência...
— Umm... Acho esquisito, fez o Dr. Loureiro, sorvendo nova pitada. Em suma, veremos; o sr. aparece-me por cá, lá para o fim da semana.
— Mas, sr. Dr, objetou, já meio desconcertado o Fialho, a pequena está inquieta por ir para junto da mãe, e... se lhe fosse possível dar-me agora a tal autorização...
—Tenha paciência, diga à pequena que tenha um pouco de paciência... Essas coisas não se fazem assim no ar... Depois d'isto, eu ando agora atarefadíssimo com um processo de certa monta... Olhe p’ra isto (e mostrava ao Fialho uma pilha de autos que tinha sobre a banca); tenho que ler toda esta papelada com atenção para proferir a minha sentença...
— Mas é que assim..., tentou ainda interpor o Fialho...
— Deixe estar tudo por minha conta... Não se aflija, apareça-me lá para o fim da semana e resolveremos as coisas a contento de todos...
O pobre velho, enfiado e murcho, retirou-se cabisbaixo, prevendo já uma serie invencível de complicações aos seus generosos projetos.
O Loureiro não dizia a verdade quando se desculpava com os autos para adiar a satisfação ao pedido do Fialho. Viu logo naquela exigência da Diretora um motivo oculto que lhe fez encarar como suspeito e escabroso o passo premeditado pelo tutor da Loura; e não se quis comprometer precipitadamente, sem ter primeiro examinado o caso, assenhoreando-se de antemão do terreno em que ia pisar.
Se a Diretora se opunha à saída da Laura, era de certo porque tinha para isso motivos graves e poderosas razões. Quais eram esses motivos? Que razões vinham a ser essas?
Eis aí o que ele precisava a todo o transe conhecer.
Mas, como? Dirigir-se à Diretora não lhe ficava bem; daria assim a entender que duvidava das razões por ela apresentadas ao Fialho, para exigir a tal autorização. E absolutamente lhe não assistia o direito de fazer de uma religiosa, “de um d’esses anjos de Cristo na terra”, semelhante juízo: supô-la capaz de mentir, de encobrir sob aparências hipócritas o seu verdadeiro modo de sentir.
Não, positivamente, ele não iria interrogar, nem direta, nem indiretamente, a Irmã Nazareth; o melhor era procurar, por portas travessas, orientar-se do que havia de verdade naquele conflito de vontades.
E a livraria do Ramada surgiu-lhe ao espírito como o melhor campo de informações. Lá encontraria o Xandico, cujas indiscrições vinham mesmo a calhar para elucidar o caso que o preocupava. Ninguém estranharia a sua presença naquelas prosas matinais do Ramada, porque não era a primeira vez que ele por lá aparecia, a examinar os livros novos e mesmo a gozar dois dedos de cavaco...
Não tinha dúvida: no dia seguinte estaria no Ramada, às oito da manhã em ponto, e era impossível que o Xandico já não soubesse de alguma coisa a respeito d’aquela exigência da Diretora do Asilo da Piedade. Provocá-lo-ia mesmo, se necessário fosse, — indiretamente, já se vê, para não comprometer a sua seriedade de Juiz — e, se o alegre velhote nada dissesse, era porque na verdade nada havia e, nesse caso, poderia talvez conceder ao Fialho a autorização solicitada.
E, com efeito, na manhã imediata, depois do café, dirigiu-se o Dr. Loureiro para a livraria do Ramada.
A livraria Ramada era o ponto predileto de rendez-vous dos ociosos da terra.
Todas as manhãs, invariavelmente, das oito às onze, formava-se ali um grupo de e cavaqueadores, a discutir os casos da véspera, a ventilar os pequenos escândalos e as intrigas da cidade e a comentar os últimos acontecimentos de sensação.
Esgotados os temas de um interesse puramente local, subiam às questões de interesse geral, lembravam alvitres para animar a lavoura abatida e fomentar o incremento das industrias, terminando, quase sempre, por desancar a República, a cuja recente proclamação atribuíam, à uma, todos os males que os flagelavam, desde os achaques caseiros até ao descalabro financeiro que abismava o país.
Quando de todo escasseavam os assuntos, era o próprio ausente (piem pagava as favas: malhavam à vontade sobre a vida alheia.
O primeiro a chegar era o Dr. Manhães, magistrado aposentado e grande sabedor de anedotas históricas. Correto no seu terno de casimira clara, os colarinhos e os punhos reluzentes de goma, um grande alfinete de coral, representando uma ferradura, cravado em meio do plastron, as botas engraxadas de fresco, uma grossa bengala de castão de ouro na mão e um chapéu de feltro mole na cabeça que trazia sempre ereta, o Dr. Manhães dava a quem o visse uma agradável impressão de asseio moral e físico. Poderia orçar pelos sessenta, mas ninguém de certo lhe daria mais de quarenta e poucos, tão bem conservado estava. Os bigodes e a barba, que usava inteira, tinha-os já completamente embranquecidos; mas os cabelos conservavam a cor primitiva e semelhante contraste ainda mais realçava a expressão profundamente simpática do seu rosto bem conformado.
Dizia-se que fora em tempos, nos sertões da província, um austero e imparcial distribuidor da justiça; sofrera até graves pressões dos governos locais por se não querer sujeitar a certas exigências políticas, que contendiam com os seus deveres de magistrado.
Aposentara-se, pouco antes da proclamação da república, e vivia agora parcamente dos ordenados e do aluguel de umas casitas que possuía, por herança materna.
Era celibatário e murmurava-se, à boca pequena, que um fundo desgosto de amor, sofrido na mocidade, dera-lhe a respeito do casamento ideias muito pouco favoráveis. Não lhes quis nunca verificar a exatidão e conservou-se solteiro.
Quase logo em seguida ao Dr. Manhães, chegava o Gouveia, português de origem, mas de há muito naturalizado brasileiro, levando o seu amor pela nova pátria ao ponto de nunca mais ter voltado a visitar a primitiva, desde que de lá havia emigrado.
Havia quem afirmasse que semelhante repulsa pela terra do nascimento tinha uma outra causa mais secreta e mais grave. Falava-se mesmo de uns processos movidos por desvios de dinheiros alheios e abusos de confiança; mas, semelhante história nunca foi tirada a limpo e o homem continuava a gozar do direito de ferrar na cadeia com o primeiro que, em letra redonda ou diante de testemunhas, tal injúria lhe assacasse.
Enriquecido no comércio de secos e molhados e retirado há anos do negócio, disfrutava presentemente o Gouveia a posse dos seus haveres e fazia parte da diretoria de todos os bancos e companhias da terra. Era uma potência no mundo comercial; empresa que se montasse ou companhia que se incorporasse sem trazer o seu beneplácito, morria infalivelmente no nascedouro.
Os jacobinos do lugar exasperavam-se, praguejavam, revoltavam-se, enfureciam- se, mas tudo debalde, porque o homem continuava a mandar chover nas respeitáveis regiões do Deve e Haver. E não raro os que com mais fúria o demoliam pelas costas eram exatamente os que mais rasgadamente se desbaratavam, quando ele passava, pesado, grave, cheio de si, ostentando impávido a sua obesidade dinheirosa.
Vinham depois: o Leonel, antigo capitão de milícias dos tempos do Paraguai e cujos olhos sempre se marejavam de lágrimas ao falar no velho imperador; o cônego Sarmento, mestre de cerimônias na catedral e confidente do Bispo da Diocese, muito sabido em coisas litúrgicas e inimigo implacável de toda esta pouca vergonha moderna; o Filgueiras, conferente da Alfândega aposentado e pai de uma recua de meninas casadeiras e espevitadas; o Simplício Lustosa, autor de uma Gramática da Língua Portuguesa para uso das escolas Primárias, e muito lido nos clássicos; o Barbalho, grande tocador de violão e poeta apreciado, cujas quadrinhas lubricas e choronas haviam feito a delícia de quanta menina sentimental e clorótica viveu no Maranhão há quarenta anos atrás; e, finalmente, mais uma meia dúzia de cavaqueadores que, apesar de não terem a pontualidade daqueles. faziam, contudo, periodicamente, a sua aparição nas prosas matutinas do Ramada.
Mas a alma d’aquelas reuniões, o tipo principal em torno do qual se vinham grupar, como satélites enamorados, Iodos os outros, era o Xandico, o Xandico da Conceição, antigo voluntário do Paraguai, secretario de quase todas as irmandades devotas da cidade, corredor de escravos no tempo da monarquia e agora Tesoureiro do Banco de Credito Rural e fornecedor do Asilo da Piedade e de mais duas ou três instituições pias.
Aquele homem era uma crônica viva de todos os fatos escandalosos e anormais ocorridos no Maranhão, desde os tempos da Independência. Sabia tudo na ponta da língua, enumerava-os um por um, com uma rica profusão de detalhes, imitando o jeito dos protagonistas e acompanhando a narração de uma mimica especial e sugestiva, destinada a aumentar e completar o poder evocador das palavras. Os mais recentes tinha-os ele assistido todos, porque vivera sempre imiscuído em todas as intrigas que cheirassem, mesmo de leve, a escândalo; dos outros, dos mais antigos, tivera conhecimento pelas narrações que lhe faziam os velhos do seu tempo, mas garanha-lhes a veracidade com o mesmo calor com que o faria se deles houvesse sido testemunha ocular.
De estatura mediana, cheio de corpo, o rosto vermelho, no qual branquejavam os bigodes fartos e encanecidos, o cabelo cortado a escovinha e a barba sempre por fazer, o Xandico-prestava honra aos seus cinquenta invernos bem puxados.
Nunca tivera uma doença seria, uma dessas enfermidades graves que abatem e minam os mais sólidos organismos, deixando-lhes no fundo um gérmen mórbido incurável. Afrontava impávido todas as intempéries, não se resguardava das correntes de ar, não fugia à humidade, e o seu estômago, como costumava dizer, “não conhecia quando era dia, nem quando era noite”.
— Hoje já não há disto, gostava de declarar. Esta geração de agora não vale dois caracóis. São todos uns fracalhões, cheios de mazelas e de achaques, derreados ao primeiro encontro. Eu, não, não há mal que me entre... Também soube conservar-me. Não me comecei a estragar muito cedo. Tinha já os meus dezesseis anos e ainda não sabia que gosto tinham: uma fumaça de cigarro, um gole de aguardente e um beijo de mulher.
E por aí seguia, a traçar o panegírico da educação antiga, pela comparação flagrante com a da atualidade.
— É por isso, terminava, que os antigos faziam homem e os modernos apenas logram produzir sombra de gente...
E a propósito lá vinha um caso, narrado com as mímicas e as minudencias do costume, pondo em indiscutível relevo a máxima que acabava de proferir.
Corria como certo que a maior parte das crônicas do Xandico não passavam de invenção pura, sem o mais ligeiro vislumbre de autenticidade. O homem de tal forma se habituara a contar, a propósito de tudo, casos reais que presenciara ou que ouvira narrar, que, afinal, esgotado o repertório, começou a inventar. E como as patranhas lhe surtiam o desejado efeito, deu-se a cultivá-las seguidamente, a ponto de lhe ser já talvez difícil separar ele próprio o joio do trigo, isto é: discernir a verdade da mentira, nas coisas que contava.
Quando o Xandico, por um acaso que só de raro em raro se produzia, faltava uma manhã ao cavaco do Ramada, os companheiros se inquietavam logo, perguntando por ele aos que entravam e buscando cada um descobrir o motivo real d’aquela ausência.
— Estaria o homem porventura doente? Surgira-lhe por acaso alguma complicação nos negócios? Morrera-lhe alguém da família?
Qual! Nada disso! Na manhã seguinte lá estava o Xandico, sendo desde a porta recebido com exclamações amigas e explicando logo a causa da ausência da véspera.
— Vocês ainda não sabem de nada? Também parece que vivem a cochilar; pode o mundo desabar ao redor de vocês que pouco ou nada se lhes dá... Irra! Pois então ouçam lá... Imaginem vocês que ontem, ao sair de casa para cá...
Os companheiros, farejando escândalo, aproximavam-se ávidos e o homem, gozando aquela atenção respeitosa de que o cercavam, entabulava a narração fiel de um novo escândalo ou de uma intriga nova.
Quando, naquela manhã, entrou o Dr. Loureiro na livraria do Ramada, estava a troupe palestrante au grand complet, discutindo com calor os últimos telegramas do Rio, publicados na véspera pelo Jornal da Lavoura e pelos outros órgãos da imprensa diária da capital.
Faltava apenas o Xandico, mas o velhote não deveria tardar, irrompendo pela porta dentro, quando menos se, esperasse, a trazer para o monte da disputa o seu farto contingente de novidades.
— Ora aí está um, foi logo dizendo o Ramada, ao dar com os olhos no Juiz, que se deve também como nós ter sentido desiludido, à vista do novo rumo tomado pelas coisas públicas. Não era esta de certo a República com que ele sonhava nos seus tempos esperançados de rapaz...
O Dr. Loureiro teve um sorriso superior àquela piada do Ramada; conhecia-lhe o vezo trocista, a inesgotável veia brincalhona e lhe não levava a mal aquelas irreverências.
Ocupou a cadeira que lhe ofereceram e dispôs-se a intervir discretamente na palestra, sem comprometer em demasia a gravidade indispensável à sua posição, lançando de vez em quando olhadelas disfarçadas para as portas, a ver se nalguma delas assomava afinal o Xandico.
Como a expectativa se prolongasse, não pode por mais tempo conter a impaciência.
— E o nosso Xandico? Por onde anda ele? Não tem aparecido?
— Não tarda por aí, responderam: ainda ontem esteve cá, a contar-nos algumas das suas...
— O Xandico é o primeiro homem desta terra, declarou o Ramada. Que seria de nós se não existisse o Xandico? Tínhamos por força que inventá-lo...
— Fala e no mau... fez o Barbalho, que havia chegado à porta, inspecionando a rua com o olhar.
— Já aí vem o homem, não é assim? inquiriu o Ramada. Eu bem dizia: o Xandico não se faz rogado. Aparece quando menos se espera... Atende a tudo e a todos, a tempo e a hora... É uma perna forte do governo e dos que precisam ter ao lado um homem de energia e de convicções políticas decididas.
Os outros gargalharam àquela tacada ferina do livreiro, porque era por demais conhecida de todos a firmeza política do Xandico, que consistia em votar invariavelmente, nas eleições, com quem estava de cima.
O homem entrou debaixo desaclimações e dos cumprimentos estrepitosos dos palestrantes. Ao dar com a vista no Loureiro, teve nos olhos um imperceptível lampejo de contentamento, e, depois de serenada a agitação, começou, como era de esperar, a completar as notícias dadas pelos jornais da tarde anterior, aclarando os pontos obscuros, preenchendo as lacunas, sem que ninguém se desse ao trabalho de indagar donde havia ele colhido as informações que ministrava.
Decorridos alguns momentos, perguntou, no ar mais indiferente do mundo:
— Vocês não me sabem dizer se o Fialho já passou para a Secretaria? ...
— Não, não tinham feito reparo.
— Também ainda é muito cedo, fez o Ramada. São apenas nove e meia e o Fialho pensa com muita razão que a Republica não se inventou para matar a gente de trabalho... A República quer quase trabalhe, mas com descanso, com folga, com vagar... Supõe o Xandico que ainda andamos na monarquia, nos tempos do relho... A escravatura já de há muito foi extinta no Brasil... Hoje somos todos livres perante a lei em geral e perante cada um dos nossos semelhantes em particular...
O Loureiro, mal ouviu nos lábios do Xandico o m me de Fialho, pôs logo os ouvidos à escuta...
— Diabo! resmungou o Xandico. E eu que precisava tanto falar ao homem cedo, para obter cá umas certas informações que tenho de remeter hoje mesmo para o Pará...
— E o vapor do Sul já entrou? Interrogou um velho, alto e magro, que entrara havia pouco e se achava junto ao balcão, a escolher uns livros em branco...
— Há que anos!...
— Mas eu não ouvi o tiro...
— Tiro? fez zombeteiro o Ramada. Estava você bem arranjado se fosse esperar pelo tiro do vapor para se aviar, se é que tem alguma coisa a mandar para o Norte... Pois então você cuida que ainda vivemos no tempo da monarquia?
— Então os vapores do sul quando entram não atiram mais? inquiriu espantado o velho.
— Atiram, mas é a ancora para o fundo do mar..., responderam:
— São inovações da Republica, meu velho, fez o Ramada, batendo-lhe no ombro. Entendeu a malvada que havia de dar cabo de tudo o que nos lembra o passado... E os tiros dos vapores foram suprimidos, de cambulhada com os emblemas dos reposteiros das repartições públicas...
E o velho, abanando a cabeça, teve um gesto triste, como se visse n’aquela supressão dos tiros dos vapores brasileiros ao fundearem no ancoradoiro, mais um sinal de desgraças que se viessem juntar a tantas outras que já ameaçavam o sossego e a ventura da sua velhice.
O Xandico, que fazia esforços por conter a contrariedade que lhe causava a interrupção provocada pelo velho, insistiu, passados alguns momentos:
— E o Fialho que não passa...
— Deixa lá o Fialho em paz, homem de Deus. O pobre velho ainda está a estas horas em casa, a mastigar as torradas do almoço, em companhia da mulher.
— Qual mulher? interrogou, num riso misterioso, o Xandico.
— Ora esta é fresca... Então que mulher havia de ser? A mulher d’ele, aquela que recebeu por legitima esposa, aos pés do Altar... O Fialho é um homem sério e de bons princípios...
— Fiem-se nisso... insistiu malicioso o Xandico...
Encararam-no todos intrigados.
O Dr. Loureiro, esse então parecia devora-lo com os olhos.
— Oh! Xandico... Agora falando sério: que diabo queres dizer com isso? perguntou-lhe o Ramada.
— Quero dizer, respondeu o interpelado, acentuando bem as palavras, que perfeito neste mundo só Deus...
— Ora, até aí morreu o Neves... Mas a desculpa não pega... Tu sabes d’alguma coisa que não queres contar... Desembucha, homem, dize lá o que sabes... Olha que estamos aqui em família...
O alvissareiro, depois de muita instância dos companheiros, resolveu-se afinal a soltar a grande nova, que fora exatamente o que o trouxera ali naquela manhã, depois de uma conferência secreta com a Diretora do Asilo da Piedade.
— É que me garantiram que o Fialho tem uma alcoviteira, nas vizinhanças da sua residência... Uma tal de Mariana, ou outro nome com esse parecido... Todas as economias do homem vão para as mãos da megera, para lhe arranjar petisquinhos novos...
— Oh! fizeram todos, aparentemente escandalizados, mas exultando no íntimo ante aquela tirana demolição do próximo e ardendo em curiosidade por lhe conhecer os detalhes picarescos.
— Não sei, meus amigos, não sie, continuava o Xandico hipócrita... Eu não sou capaz de jurar pela veracidade da coisa, porque Deus me livre de murmurar contra o próximo... Mas é o que dizem... é o que afirmam por aí... Eu nunca vi nada... P’ra que hei de levantar um falso testemunho... Não, senhores, eu nunca vi nada... Nunca presenciei coisa alguma... Também raras vezes ando p’ra aquelas bandas, salvo quando tenho de ir ao Hospital, arrematar o fornecimento... Mas há quem afirme ter visto bem boas coisinhas.
E, depois de uma pausa, estalando a língua e sacudindo a cabeça:
Sim, senhor! bem boas coisinhas...
Os do grupo pareciam despencados das nuvens. Pois seria possível? O Fialho, tão pacato, tão moralizado, tão sério, tão cumpridor dos seus deveres, um homem que parecia viver para o emprego e para a família, distribuindo em esmolas as sobras dos seus ordenados... Qual! Ali havia coisa! Alguma confusão de nomes, algum equívoco provocado por uma semelhança física... Não era possível! Se aquilo tosse verdade, então não havia mais ninguém sério no mundo...
E a discussão continuava, cada um por seu lado opondo sérios embargos à veracidade do boato, recusando-se todos terminantemente a dar-lhe crédito.
Mas o Xandico insistia, perfidamente, insidiosamente, avançando afirmações e procurando logo eximir-se à paternidade das mesmas, jogando insinuações malévolas, atribuindo intuitos secretos e inconfessáveis aos atos mais simples do pobre funcionário, escudando-se sempre, beatificamente, em informações de terceiros, dando a ideia de um morcego a abanar refrigeradoramente com as asas as incisões sugadoras que com os dentes abriu.
Era a obra da calúnia que começava, em toda a sua coleante e disfarçada hediondez. A reputação do Fialho deveria mais tarde registar aquele dia como o mais funesto e o mais triste da sua longa existência abstrata.
— Mas... esperem... fez o Ramada; o Fialho não é padrinho daquela menina recolhida há alguns anos ao Asilo da Piedade e que lá exerce atualmente o cargo de professora da cadeira de bordados e prendas domésticas?
— Exatamente, confirmou o Xandico; padrinho e tutor...
— Mas, então, fizeram os outros...
— Homens, vocês querem saber de uma coisa? Interrompeu o Xandico. Basta de falar do próximo... Se o homem tem com efeito nas costas os pecados que lhe atribuem, Deus lh’os tomará em conta um dia... Eu vou cuidar da vida, que a morte é certa.
E num cumprimento rasgado despediu-se dos circunstantes e ganhou a rua.
A sua missão estava cumprida. Lançara a primeira pedra do alicerce de calúnias e de infâmias sobre o qual contava ver surgir mais tarde a vitória da vontade da Diretora. Não lhe convinha prolongar por mais tempo o fogo, sob pena de descobrir as suas baterias.
Os efeitos da revoltante calúnia do Xandico se não fizeram esperar muito.
Cada um dos presentes, espontaneamente, e, mesmo sem intenções perversas, levado apenas por esse amor à bisbilhotice, inato em todo o burguês, se incumbiu de propalar a nova, ligeiramente adulterada para pior. Também seria um absurdo exigir que as suas memórias, já cansadas e enfraquecidas, retivessem, na sua perfeição integral, as confidencias do Xandico, a ponto de as reproduzir sem o acréscimo de uma só vírgula que fosse. Teriam por força de adicionar, por conta própria, alguns detalhes típicos, para tornar mais significativo o caso e facilitar assim a compreensão por parte dos que os ouvissem.
E de tal modo se houveram nessa elucidativa incumbência, que, ao cabo de dois dias, já havia quem afirmasse, e de muito boa fé, que a autoria de todos os atentados ao pudor cometidos na terra nos anos mais chegados, cabia incontestavelmente ao Fialho. O homem era um sátiro insaciável, um monstro de luxúria e de libidinagem, cujo simples olhar bastava para violar as virgens sobre que se fixasse. Aquela sua inveterada mania de fazer esmolas não tinha outro fito senão o de satisfazer, à custa de auxílios pecuniários à orfandade desvalida, os seus instintos bestiais. Nem grelhado vivo pagaria o patife as desgraças que havia semeado no mundo.
Todas essas aleivosas infâmias não tardaram em transpor os batentes do lar do pobre velho, envenenando-lhe cruelmente o sossego doméstico, roubando-lhe a confiança da esposa, suscitando-lhe, a cada instante, cenas terríveis, onde o recinto sagrado da sua vida intima era brutalmente violado pelos ouvidos atentos da vizinhança.
Vivia o homem num inferno perene, a sofrer interrogações dos mais cerimoniosos e olhadelas insultantes dos estranhos. Por onde quer que passasse, sentia-se seguido pelas vistas curiosas de todos, esmagado pelo desprezo superior de uns, chicoteado pelo ridículo zombeteiro de outros, odiado pela inveja perversa dos restantes, os seus próprios colegas de repartição, se bem que no íntimo não dessem credito ás infâmias propaladas, porque o conheciam de sobra e de sobra o sabiam incapaz de as pôr em prática, não se sentiam, contudo, dispostos a reagir abertamente contra a onda caluniadora. Presavam demasiadamente o seu sossego e o seu bem-estar pessoal, para os irem arriscar na defesa aberta do companheiro.
A reação partiu de um grupo de rapazes, na sua quase totalidade composto de empregados do comércio e de estudantes do Liceu, que todas as noites se reuniam a cavaquear na porta do botequim do Torres. Repugnava-lhes à honestidade entusiasta e moça aquela odienta campanha de extermínio da honra de um homem de bem.
Muitos dentre eles o conheciam pessoalmente, sobretudo os que cursavam o Liceu, onde costumava o Fialho, na falta de algum dos membros da mesa, ir examinar Geografia, disciplina que cultivava em segredo e cujo estudo constituía o passatempo predileto das suas horas de ócio. E nunca tiveram ocasião de o apanhar numa injustiça, nem tão pouco de lhe exprobar um rigor demasiado; portava-se sempre, pelo contrário, com toda a dignidade, chegando mesmo, até aos limites do permitido, a facilitar o exame aos mais fracos. De forma que os rapazes, se o não adoravam, porque, afinal de contas, era por demais efêmero o contato que com ele tinham, votavam-lhe, contudo, uma pronunciadíssima simpatia.
Mas o ardor belicoso dos defensores, para fazer ressaltar melhor a inocência do conspurcado, entendeu que deveria usar das mesmas armas empregadas pelos adversários. A Irmã Nazareth, as professoras do Asilo, as senhoras devotas que protegiam o estabelecimento, o Xandico e todos os que mais abertamente o haviam acompanhado, foram arrastados pela rua da amargura. Principiaram a circular horrores a respeito de toda essa gente, sem que ninguém pudesse descobrir ao certo a fonte de onde dimanavam.
A opinião pública, sem discrepância, apaixonou-se pelo caso, formando dois partidos distintos e extremados: o partido das Irmãs do Asilo e o partido do Fialho.
Houve discussões cerradas, trocas acerbas de descomposturas, cenas violentas de pugilato.
A imprensa, se bem que velando o caso sob o manto discreto das conveniências pessoais, veio também tomar parte no conflito.
O Independente inseriu artigos furibundos contra a intolerância católica e os manejos pérfidos do jesuitismo, citando Renan, Strauss e Leo Taxil. Os pobres franciscanos da Igreja da Trindade, que nada tinham a ver com o caso, vieram também para a balha e foram denunciados como os mais sanguinários algozes do mundo.
O Victorino, redator chefe d’ O Independente, a quem o simples espetáculo de uma sotaina fazia espumar de raiva, num artigo que ficou celebre: Os bandidos de tonsura; prédio em altos brados aos poderes supremos da República que mandassem enforcar na praça publica todos os padres e todas as Irmãs de Caridade do Brasil, em nome do progresso e da civilização. O padre Amaro, de Eça, e o padre Faujas, de Zola, vieram dar testemunho de quantas infâmias seriam capazes os “amputados morais” que envergam uma batina.
Em compensação, A Catequese, órgão dos católicos, arregimentados em partido político, não poupava aos livres pensadores e a todos os insurgidos contra o dogma romano. Cascava-lhes de rijo, sem piedade e sem dó, apresentando-os à execução pública como os únicos culpados de todos os males modernos. Enquanto não fosse varrida do Brasil, a coice d’armas, toda essa corja de pedantes insubordinados, de detratores da honra alheia, de roubadores do sossego das famílias, as coisas públicas não entrariam nos devidos eixos, andaria tudo de pernas para o ar, sem que ninguém se pudesse entender e cuidar a sério das suas obrigações.
Contra o Victorino, então, a objurgatória era descabelada e furibunda. Não havia crimes de que não fosse o excomungado capaz. E ainda se animava o biltre a vir citar o Zola e o Eça, como se não soubessem todos que os dois amaldiçoados já em vida se achavam condenados à caldeira de Pedro Botelho.
E neste diapasão seguiam os dois órgãos da imprensa indígena, cada qual mais caricato, mais repugnante e mais imbecil.
Mas o incidente grotesco e irrisório por excelência de toda essa tragicomédia provinciana, foi o conflito do Madureira com o Xandico.
O Madureira, já de meia-idade, guarda-livros de uma importante casa comercial, era figura obrigada dos cavacos noturnos do Torres, assim como o Xandico o era das prosas matinais do Ramada.
Tinham ambos os mesmos hábitos alvicareiros, a mesma mania de conhecer sempre, e melhor do que qualquer outro, todas as novidades de sensação. A única diferença que entre os dois existia residia nas convicções políticas e religiosas de cada um, em completa e agressiva antinomia.
O Xandico, por sistema e por índole, acompanhava invariavelmente o governo; quando um partido caía, encontrava sempre o homem uma série de razões oportunas para mascarar a sua deserção do grupo vencido e coonestar a sua incorporação aos vencedores. Semelhantes razões, na quase totalidade dos casos, cifravam-se em ingratidões, dolorosas e ferinas, por parte dos chefes do partido apeado.
— Que quer você? costumava dizer aos que o interpelavam a tal respeito. Aqueles canalhas portaram-se para comigo de um modo nojento e revoltante!... Eu, que sempre os acompanhei incondicionalmente, prestando-lhes leal e desinteressadamente todos os serviços que de mim exigiam... Mas este mundo é assim mesmo: todo feito de ingratos e de mal agradecidos...
Em que consistiam essas ingratidões, nunca ninguém o soube ao certo. O Xandico, inquirido nesse ponto, retrucava sempre, evasivamente:
— Coisinhas que eu cá sei... Mas deixem estar aqueles patifes que eles me pagarão tudo a seu tempo... Olé se pagam!... Com este velho ninguém brinca!
E com a mão espalmada aplicava ao peito uma serie de pancadas, vibrantes e secas.
Em matéria de fé, dizia-se o velhote católico estremado. Praticava à risca os mandamentos e votava aos protestantes e aos ateus um ódio encarniçado e sanhudo.
O Madureira, por seu lado, também por índole e por sistema, vivia sempre na oposição, a desancar impiedosamente todos os governos que se sucediam.
— Não preciso daqueles safados, declarava habitualmente. Não vivo deles, nem como dos seus respectivos bolsos... Estão vocês bem livres de me verem subir as escadas de qualquer um a pedir emprego. Outro poderá ser... Mas o filho de meu pai? Ixe! Nem que tenha de ir carregar pedras ou puxar a corda de um burro de carroça... Por consequência, casco-lhes a vontade... É tudo uma corja de gatunos e de desbriados.
Quanto a religião, ver-se-ia o Madureira em sérios embaraços se o forçassem a explicar a que professava. Só a respeito de um ponto não nutria duvidas: era no ódio ilimitado que consagrava aos padres em geral e às Irmãs de caridade em particular.
— São umas hipócritas e umas debochadas... Vocês estão vendo aquela cor macilenta, aqueles olhos mortos? Pensam que tudo aquilo é resultado de jejuns e de macerações? Qual, filhinhos! Tudo aquilo não passa de vestígios de muita pouca-vergonha...
Nada mais natural, portanto, à vista de semelhantes princípios, do que o ardor com que o Madureira abraçou a defesa do Fialho e a acusação das Irmãs do Asilo da Piedade. Se pusessem na concha de uma balança as calúnias do Xandico e na outra as do Madureira, de certo que o fiei da mesma ficaria em perfeita verticalidade.
O Xandico, de manhã, no Ramada e o Madureira, à noite, no Torres, semearam a mancheias as aleivosias e os mexericos, complicando cada vez mais a situação e pondo em sérios embaraços os espíritos imparciais que desejassem a respeito formar uma opinião segura.
Uma bela manhã, entrou por acaso o guarda livros na livraria do Ramada, a inquirir dos preços de uns objetos de que carecia para o escritório.
Lá se achava, como de costume, o Xandico, a contar horrores do Fialho e a tecer às Irmãs do Asilo os mais rasgados elogios.
O sangue do Madureira ferveu, como ele depois contou, e não pode ter mão em si. Interveio abertamente na discussão a contrariar o Xandico e a retaliar os insultos que o mesmo atirava a todos os livres pensadores.
A discussão, a princípio em terreno abstrato, azedou-se por fim e desceu a personalidades. Houve troca de insultos pungentes, cada um atribuindo a opinião do outro a moveis pouco dignos.
— Você defende as Irmãs porque quer conservara pechincha dos fornecimentos do Asilo, invectivou o Madureira.
— E você toma o partido do Fialho porque o seu patrão precisa de informações favoráveis da Secretaria, naquela questão de impostos que tem com o Tesouro...
— Canalha! Você não repete...
— Repito e quero ver o que você me faz...
— Parto-lhe a cara!...
— Quero ver se você é homem para tal...
Os dois fizeram menção de marchar um para o outro, mas não se moveram do lugar que ocupavam.
Os circunstantes, entreolhavam-se boquiabertos e indecisos, sem saber que partido tomassem.
E os insultos cruzavam-se, violentos, incisivos, cruéis, de parte a parle, sem que nenhum dos contendores se achasse com coragem de ser o primeiro a recorrer às vias de fato.
Finalmente o Madureira, num movimento brusco, mete a mão no bolso trazeiro das calças para tirar a charuteira, afim de pedir à fumaça de um Exposição a coragem necessária para ir às ventas do Xandico. Este último, porém, equivocou-se a respeito dos intentos do outro e recuou espavorido para a porta.
— Ah! seu assassino, você quer me dar um tiro?!
Num relance, aproveitou-se o Madureira do engano do outro:
— Mato-te, miserável!
E marchou para o velho, num ar furibundo e sanguinário, sempre com a mão no bolso trazeiro das calças.
O Xandico, que apesar da sua apregoada bravura no Paraguai, tinha ao pelo um amor entranhado e excessivo, não esperou pelo cumprimento da ameaça e, sem chapéu, com os olhos esbugalhados de terror, abalou a correr pela rua acima, bradando com a voz entrecortada e quase sem folego:
— Acudam! Acudam! Assassino! Aquele malvado quer me dar um tiro!...
Quis o Madureira seguir-lhe no encalço, mas os presentes agarraram-no, forçando-o a entregar a arma homicida. O guarda-livros, porém, que sentia lisonjeado o seu amor próprio com aquele equivoco grotesco do Xandico, recusava, desejando que os outros o continuassem a supor capaz de sacar de um revólver para dar um tiro num homem.
— Não, tenha paciência... você tem de entregar o revólver... É para evitar desgostos maiores... Do contrário, com esse seu gênio açodado, é capaz de encontrar d’aqui a pouco o Xandico e fazer alguma asneira... declaravam todos ao mesmo tempo.
E quase à força lhe sacaram do bolso, em vez do famigerado revólver, uma inofensiva charuteira de coiro da Rússia!
Uma gargalhada estrepitosa e uníssona explodiu.
O Ramada, a brandir no ar a charuteira e morto de riso ainda, chegou à porta, bradando:
— Vem cá Xandico! Olha que não é revolver, é uma charuteira...
Mas o outro já ia longe àquelas horas, metera-se não se sabia por onde... O único vestígio da sua vertiginosa passagem pela nela rua cifrava-se nos semblantes zombeteiros que assomavam às janelas e nos raros transeuntes que, entre risonhos e curiosos, se aproximavam da livraria...
Quando o Ramada voltou para o balão, não viu mais o Madureira. O guarda-livros, enfiado, azulara também pela porta do canto, abandonando nas mãos do livreiro a sua charuteira de coiro da Rússia...
— Sim senhores! declarou solenemente o incorrigível trocista, abrindo a charuteira. É para que vejam como se faz, com quatro charutos Exposição, fugir espavorido um veterano do Paraguai. E venham depois para cá apregoar a bravura dos homens da Monarquia!
O Dr. Loureiro voltou da livraria do Ramada, após a audição das aleivosias do Xandico, sumamente satisfeito com a perspicácia do seu espírito, que lhe denunciara logo, por traz da recusa da Irmã Nazareth em entregar a pequena, sem uma autorização escrita sua, um motivo superior e grave.
— É isto mesmo, não há dúvida, murmurava o juiz com os seus botões, à proporção que se ia aproximando, respeitável e conselheiral, dos seus amados penates. A virtuosa senhora (para o Loureiro todas as senhoras eram implicitamente virtuosas), tendo ciência dos lamentáveis desregramentos do Fialho, receia confiar-lhe a pequena... E não deixa de ter carradas de razões para assim proceder, porque a honestidade feminina é como um copo de baccarat finíssimo, que ao mais ligeiro choque faz-se logo em estilhaços...
E sorria satisfeito àquela imagem do copo simbolizando a virtude, disposto a aproveitá-la na primeira sentença que tivesse de lavrar.
Mas, lá diz o rifão que não há felicidade perfeita neste mundo: a envenenar-lhe o prazer do amor próprio lisonjeado, surgia sorrateira a terrível indecisão, que invariavelmente o empolgava todas as vezes em que se tinha de pronunciar num caso difícil.
Dizia o Xandico a verdade? Seria com efeito o Fialho o monstro de libidinagem que apregoavam?
Ou, pelo contrário, tudo aquilo não passava de calúnias e de mexericos infames?
Na primeira hipótese, o seu dever seria recusar a autorização pedida e buscar mesmo por todos os meios dissuadir o velho dos seus intentos.
Na segunda, era o procedimento contrário que lhe cabia pôr em prática.
Como, porém, tirar a limpo toda essa embrulhada e aclarar com segurança a trilha a seguir?
À semelhança de todos os tímidos e de todos os irresolutos, apavorados ante a responsabilidade moral de um ato que se possa prestar a mais de uma interpretação, o Dr. Loureiro resolveu apelar para o tempo, o soberano resolutor e de todas as situações complicadas e obscuras. Assim como encontrara naquela manhã o Xandico, que lhe dera o lamiré do caso, poderia, qualquer dia d’aqueles, deparar com outro maestro que lhe indicaria a continuação da aria. Não tinha que ver: o melhor era esperar, dar tempo ao tempo.
Mas desta vez falharam-lhe por completo as previsões; cada dia que se passava trazia para a situação um novo embrulho. Cruzavam-se as mais antinômicas suspeitas, entrechocavam-se os mais desencontrados boatos. O caso, de simples que parecia ao princípio, complicara-se, com uma vertiginosidade assombrosa, e o pobre juiz vivia em cólicas, coberto de suores frios, sem saber o que fizesse.
As opiniões extremaram-se em duas correntes opostas e era dele que, em última análise, viria depender a solução do problema. Mas, azedadas como andavam as coisas, seria difícil que o grupo vencido se submetesse sem protesto à sua decisão. Se consentisse na sabida da rapariga, o partido dos Irmãs cobri-lo-ia de injúrias; se adotasse o alvitre oposto, contava, como certas, com a descompostura da gente do Fialho.
Como emergir dessemelhante entaladela?
Chegou finalmente o dia marcado para a nova entrevista com o Fialho, e o digno magistrado não havia ainda atinado com o rumo a seguir. Dispôs-se por isso a tratar o suplicante com todas as atenções, afim de obter, sem condidos, uma nova delonga.
Quando o Fialho se fez anunciar, foi em pessoa abrir-lhe a porta do gabinete, com um livro na mão.
Depois de trocadas as primeiras saudações, indicou-lhe o juiz uma cadeira e dirigiu-se, pausado e grave, a tomar lugar na sua pesada secretária de baracutiara.
— Sabe o meu amigo o que estava agora a ler, pela centésima vez, quando fui agradavelmente surpreendido pelo anúncio da sua visita? O Fr. Luiz de Sousa, do imortal Garret. Conhece?
E mostrou-lhe o livro.
— Não, o Fialho não conhecia, senão de nome. Do Garrett a única coisa que havia lido fora a “saudade, gosto amargo de infelizes...”, que vinha na Seleta dos Autores Clássicos.
— Pois é pena, meu amigo, é pena realmente... Procure ler todo o Garret! É maravilhoso! É admirável! O Arco de Sant'Anna, as Viagens da minha terra, O Alfageme de Santarém, são joias, meu caro senhor, são joias preciosas, diamantes de primeira água, como se não encontram mais... Não! não lhe posso perdoar semelhante falta! O sr. não ter ainda lido o Garrett? Mas, leia-o, meu presado amigo, leia-o quanto antes... Olhe: eu não lhe ofereço os meus exemplares, porque o Garrett é o meu oráculo, não o largo nunca das mãos...
E, depois de uma pausa, como se refletisse melhor:
— Enfim... como tenho um infinito desejo de que o meu amigo conheça as joias, as verdadeiras joias que os livros do Garrett encerram, posso lhe emprestar alguns, tomando, porém, o meu amigo o compromisso de m’os devolver em breve prazo.
E fez menção de se erguer, dispondo- se a ir colher no escrínio das suas estantes as joias que ofertava ao outro...
Mas o Fialho bem que se importava, naquela hora, com o Garrett e com as joias do mesmo... O que ele queria era a autorização, para sair de vez da tortura em que laborava.
— Que o sr. Dr. se não incomodasse, por quem era. Ele agora não tinha tempo para ler o Garrett... Não faltaria ocasião... Ficaria para outra vez... As joias bem que podiam aguardar momento mais oportuno...
— Pois é pena, meu nobre amigo, é pena... Porque são joias de primeira grandeza, posso lhe afirmar!... São verdadeiras joias de primeira grandeza!... Olhe: neste mesmo Fr. Luiz de Souza que aqui tenho... (E abriu o livro, enquanto o Fialho empalidecia de susto, prevendo a medonha cacetada em que se ia meter). Ah! cá está... É a cena entre Manuel de Souza e Jorge... Isto é uma cena magistral... É admirável! É maravilhoso!... Sobretudo quando Jorge afirma que “os juízos de Deus são imperscrutáveis!”. Veja bem quanta filosofia nestas poucas palavras! Quanta penetração! Quanto saber! Oh! o Garret tem joias como nenhum outro...
E como se se arrependesse em tempo do que avançava:
— Isto é: como nenhum outro, digo mal, porque o Herculano, o Rebello da Silva, o Filinto, não lhe ficam atrás... Mas... enfim... o Garrett... não sei como me exprima... o Garrett tem mais... não... mais também não tem... Mas... em todo o caso... o Garrett tem coisas admiráveis, tem coisas magistrais...
E teve um gesto largo, como se pretendesse com ele indicar o infinito da admiração que deveria provocar em todo o mundo as produções do escritor português.
O Fialho torcia-se na cadeira, inquieto, sôfrego, a mudar de posição a cada instante, avido por se libertar d'aquela tremenda estopada e ganhar a rua, tendo porem antes embolsado a autorização para levar consigo a afilhada.
Aproveitou a ligeira pausa do juiz e, concertando a garganta, arriscou tímido:
— Pois, sr. Dr., eu vinha cá...
Mas o outro interrompeu logo, como se não houvesse dado atenção às suas palavras:
— Sabe o meu amigo quem tinha também uma grande e incondicional admiração pelo Garrett? Veja lá se adivinha...
— Não, o Fialho não adivinhava. Sempre fora muito bronco para adivinhações. Nos seus tempos de rapaz, não conseguira nunca sair-se bem no jogo do: amigo ou amiga?
— O Atanásio, fez o Loureiro em voz de papo. O nosso Atanásio! Quantas vezes me não disse ele, com os olhos húmidos: “Dr.! o Garrett é magistral! O Garrett tem joias de primeira água!”.
E, abanando a cabeça, subitamente entristecido:
— Pobre Atanásio! Aquilo era uma pérola!... E uma inteligência de elite! Era um latinista consumado! Traduzia Virgílio e Cícero dormindo. Quanto ao português, então, nem falemos... Olhe que aquela Gramática do Atanásio é um monumento. Só o que ele estudou, só os autores que compulsou, para escrever tudo aquilo. São novecentas e trinta e cinco páginas de composição batida, e grande formato... Atenda bem para isto: novecentas e trinta e cinco páginas! Não é brincadeira! Diga-me: onde encontrará o meu amigo uma gramática portuguesa com tamanhas proporções? Onde?
O Fialho confessava de antemão a improficuidade de qualquer esforço nesse sentido. Nem valia a pena tentar a busca, era tempo perdido... Em parte alguma do mundo seria encontrado um portento igual.
— É, fazia o outro, abanando orgulhosamente a cabeça, em parte alguma do mundo! Gramática de tamanho calibre só no Maranhão, só na Atenas Brasileira!
E interrompeu-se, para condimentar aquele triunfo gramatical do Maranhão com uma longa e bem sorvida pitada de rapé.
O Fialho, desta vez, criou coragem: se não aproveitasse a pitada não sairia dali tão cedo...
E desembuchou de uma vez:
— Pois, sr. Dr., eu vinha em busca da licença, para retirar a pequena do Asilo...
O Loureiro assumiu repentinamente um ar ponderado e grave. Sacou lentamente o lenço da algibeira, limpou os dedos e o nariz, e declarou, sentencioso:
— Ah! bem sei... É aquele negócio de que me falou na outra vez em que esteve cá...
— Sim, sr., e que o sr. Dr. deixou para resolver hoje...
— Exatamente... é isso mesmo... Mas, diga-me cá uma coisa: ainda persiste nos seus projetos de retirar a rapariga do Asilo?
— Mas, sr. Dr., que hei de fazer? A menina quer por força ir para junto da mãe, não há razões que a convençam do contrário...
— São muito nobres e muito belos esses sentimentos filiais...
O Fialho, já no receio de outra estopada igual à das joias do Garrett, foi logo cortando as tiradas declamatórias do magistrado.
— Então, posso contar com a autorização exigida pela Diretora do Asilo?
— Homem, retrucou o outro embaraçado, eu lhe digo: essas coisas... resolvidas assim de sopetão... Olhe que o caso é grave... Dizem-se por aí tantas coisas...
— Mas, sr. Dr., são infâmias revoltantes é a mais negra das monstruosidades! vociferou o Fialho, deixando afinal extravasar, naquele grito de desesperado protesto, toda a indignada e dolorosa revolta da sua alma de caluniado.
— Bem sei, bem sei, obtemperou o outro, conciliador... Mas precisamos andar com calma, marchar com muita prudência... Vamos esperar mais alguns dias...
— Como se pobre mulher cada vez piora mais e se a justa ansiedade da filha já não pode por mais tempo suportar semelhantes de longas?...
—Tenha paciência, meu amigo, acalme-se! Essas coisas não se resolvem assim... Olhe que o caso é grave e muito grava... Não é mais como juiz que lhe falo, é como amigo... Esperemos mais um pouco... Prometo-lhe resolver tudo no fim da semana vindoura... Dou-lhe a minha palavra de honra que se não ha de arrepender de deferir o meu pedido... Vamos, concorde comigo... A gente nunca perde por esperar...
E, erguendo-se da cadeira, foi bater paternalmente no ombro do Fialho.
— Crie coragem, crie resignação não se deixe abater portão tão pouco...
— Coragem? Resignação? E acha pouca a que já tenho revelado? Olhe, sr. Dr., que se eu não tivesse coragem e não tivesse resignação não sei o que já teria sido de mim...
E um soluço, logo sopitado, veio embargar a voz do pobre velho, enquanto duas grossas lágrimas lhe assomavam ao canto dos olhos.
E pôs-se de pé, como que para dominar a emoção que o ganhava...
— Vamos, acalme-se... Concorde comigo... Voltará cá lá para o fim da próxima semana, não é assim?
— Que remédio tenho eu, se o sr. Dr. assim o julga melhor e assim o quer...
E resignado, cabisbaixo, sofredor despediu-se o Fialho do juiz e ganhou a rua, dispondo-se a entregar-se submisso por mais oito dias ao doloroso martírio que o flagelava...
Aquela segunda semana de moratória, foi toda de cólicas para o Dr. Loureiro.
Rompera já a virulenta polemica d’O Independente com A Catequese, e o honesto Juiz, ao leras furibundas descomposturas, com que diariamente se mimoseavam os dois respeitabilíssimos órgãos da imprensa indígena, ficava sem pinga de sangue, a prever os dissabores e as entaladelas que o ameaçavam, qualquer que fosse a resolução que tomasse no caso dependente da sua jurisdição.
Quando o Victorino, numa retumbância oca de tropos cediços, “desnudava, aos olhos incautos das multidões, a alma torpe dos sotainas e os seus pérfidos manejos reacionários”, flagelando, a chicotadas de retórica barata, “os seculares traidores que os secundavam na campanha ignóbil e surda que moviam contra a República”, o magistrado tremia da cabeça aos pés:
— Olhem lá o que me está reservado se negar a autorização ao Fialho! Passo logo para o rol dos tais traidores e tenho de meter-me, sem mais aquelas, em toda esta medonha descompostura... Não, parece-me que o mais prudente é conceder a licença pedida...
Mas, lá vinha A Catequese a fulminar, pela pena disfarçada do Cônego Sarmento, com as penas do inferno e com a excomunhão dos padres, “todos os ridículos sacripantas e todos os truanescos bigorrilhas do ateísmo moderno”, e o homem mudava de opinião:
— Não tem dúvida: serei sem delongas incluído no número, já vasto, dos sacripantas o dos bigorrilhas, se fizer a vontade ao padrinho da pequena... Esta só pelo diabo! Maldita a hora em que me lembrei de ser Juiz...
E nem sequer se sentia mais com disposição de ler os folhetins dos dois jornais: As doidas em Paris, de Montépin, e O Martyr do Golgotha, de Escrich, que tanto o deliciavam, porque o Dr. Loureiro, em presença de estranhos, lia os clássicos, mas no silêncio do seu gabinete, quando se sentia livre dos olhares extasiados dos admiradores, era na convivência do Montépin, do Escrich, do Ponson e de todas as outras glórias universais do roman feuilleton, que encontrava os mais deliciosos momentos de prazer espiritual. O Garrett, o Herculano e os outros davam-lhe sono, logo às primeiras linhas.
Quis, porém, a sua boa sorte, que saísse incólume do conflito, sem o mais leve arranhão na sua grave respeitabilidade de imparcial aplicador da lei e distribuidor da justiça.
O Bispo Diocesano, assustado ante as proporções tomadas pelo incidente e prevendo já piores complicações futuras para a sua política de conciliação com o novo regime, mandou pedir à Diretora do Asilo que, sem mais delongas, entregasse a Laura ao tutor.
O Sarmento fez o possível para obstar a decisão episcopal, que vinha dar ganho de causa “aos inimigos encarniçados da Igreja” e favorecer sobremodo a propagação “de toda esta pouca vergonha moderna”. Mas o Prelado era inflexível: quando queria, queria mesmo, e o cônego reacionário não teve remédio senão curvar a cabeça e ir em pessoa desempenhara comissão do seu superior espiritual.
A Irmã Nazareth, por seu lado, entrava já numa fase de arrependimento; se lhe fosse dado prever em tempo toda aquela embrulhada, de certo teria sufocado a cobiça que a devorava, tragado em silencio a afronta à sua autoridade ferida e deixado ir em paz a rapariga. Infelizmente, porem, “o futuro só a Deus pertencia” e ali estava agora a pagar a sua falta de tino e a sua desastrada imprevidência.
Por esse motivo, quando o Conego Sarmento lhe veio transmitir a vontade episcopal, levantou intimamente as mãos para o céu, e mandou logo, na tarde desse mesmo dia, chamar o Fialho.
Quando o velho se apresentou na sala do Asilo, a piedosa senhora, depois de alguns rodeios, declarou-lhe, num ar compungido e seráfico, que começava a alimentar, em consciência, certas dúvidas a respeito do valor dos argumentos que a haviam impulsionado a opor-se à saída da Laura. Era bem possível — oh! a criatura humana vivia sempre tão sujeita ao erro! — era bem possível que a sã razão não estivesse do seu lado... Quem poderia afirmar que não fosse o próprio. Deus em pessoa que havia ditado à rapariga aquela resolução de correr para junto da mãe enferma? A caridade cristã não conhecia obstáculos nem dificuldades... Ela que o dissesse... ela que havia trocado os seus atavios risonhos de moça pela tristeza sombria daquele burel que a amortalhava... Abandonara resoluta o convívio reconfortante dos seus, a quentura benfazeja do lar, as delícias atraentes do mundo, para se ir sepultar em vida num convento isolado e triste, a fazer a aprendizagem do martírio, a cursar a escola rude do sofrimento humano... Pensava o Fialho que lhe não havia custado e muito aquele passo?
E teve um sorriso mudo de resignação, um gesto vago de desprendimento.
— Oh! ela bem sabia as calúnias que o mundo atirava sobre ela e sobre as suas pobres companheiras de abnegação cristã... Mas o inundo ó sempre tão injusto... Agora mesmo, a propósito daquele caso tão simples, quantos aleives não haviam sido postos em circulação a seu respeito... Mas ela sabia perdoar... Aceitava todas aquelas provações, que lhe seriam levadas em conta um dia por aquele que tudo vê e tudo sabe...
E numa expressão de vítima quase entrega submissa ao algoz, fitava seraficamente os olhos no teto da sala do Asilo.
Naqueles poucos dias de lutas e de desgostos, ganhara o Fialho mais em experiência do mundo e dos homens do que em toda a sua longa vida passada; de forma que suspeitou logo, por traz daquelas tiradas lamuriantes da Diretora, um móbil qualquer, muito diverso daquele que a religiosa estadeava. Mas pouco lhe importava, para o caso, conhecer as razões de semelhante reviravolta. O que sobretudo desejava era que a Irmã Nazareth chegasse logo ao alvo, em torno do qual escaramuçava.
— Mas então, atalhou um pouco bruscamente, desiste da autorização do Dr. Loureiro para me entregar a pequena?
— Sim... isto é... eu pensava... parece-me... gaguejava a Irmã, a cujo espírito assustadiço e escrupuloso repugnavam as situações definidas...
— Nesse caso, declarou o Fialho, pondo-se de pé, tenha a bondade de avisar a Laura e preparar as coisas que, amanhã, pela manhã, a virei buscar.
E sem mais rodeios, cumprimentando a Diretora com uma ligeira inclinação de cabeça, ganhou as escadas.
No dia seguinte, tomou um carro e dirigiu-se ao Asilo.
Foi logo recebido pela afilhada que se lhe atirou sôfrega ao pescoço, misturando febrilmente as lágrimas com os sorrisos.
No rosto da rapariga divisavam-se patentes os sinais iniludíveis de quanto havia sofrido naqueles dias amargurados. Mas foi sem a mais leve sombra de ressentimento que ela se despediu da Superiora e das outras Irmãs e tomou o carro, em companhia do padrinho, para ir levará infeliz Mariana o grande e insubstituível conforto dos seus cuidados e do seu amor.
Andava o Carlos a cursar, no Recife, o quarto ano de Direito, quando se desenrolaram no Maranhão os fatos que aí ficam perfunctoriamente assinalados.
Os jornais que invariavelmente, por todos os vapores, lhe remetia o Comendador, as cartas minuciosas da D. Inês, francamente favoráveis à Diretora do Asilo e as minhas — escusa dizê-lo — positivamente infensas àquela virtuosa Esposa do Senhor, o puseram ao facto da situação, com todos os seus detalhes e episódios.
À imaginação impressionável do Carlos, ao seu espírito aventuroso e entusiasta, a figura da Laura apresentou-se logo numa auréola irresistível de atração e de simpatia. Emprestou-lhe qualidades sobrenaturais, virtudes singulares, predicados raros só por ela possuídos.
As missivas que me endereçava vinham repletas, da primeira à última linha, de elogios calorosos à rapariga, de fogosos aplausos à impecável correção do seu procedimento, ao fulgor excelso dos seus dotes morais. Lembrava as Virgens Fortes das lendas primitivas, a desmentirem, pelo vigor másculo dos seus atos, a apregoada fraqueza que lhes forma a partilha do sexo. Parecia incrível, aos seus olhos, que uma raça apodrecida e gasta, como a nossa, fosse ainda capaz de produzir um tipo de mulher d’aquela envergadura moral. E nesse altissonante diapasão lírico seguia, a encher folhas e folhas de um burguês e inofensivo papel Diplomata.
— Bom, murmurava comigo, se cá estivesse o Carlos e se conhecesse pessoalmente a rapariga, tínhamos paixão no caso. E se o Comendador não abrisse os olhos, lá se iriam pela água abaixo os enlaces vantajosos que anda a sonhar para o filho. O que lhe vale, porém, é que esse entusiasmo há de passar, como já passaram tantíssimas outros do meu imaginoso amigo.
Mas enganei-me redondamente nesta última previsão. O entusiasmo, em vez de diminuir, cada vez mais recrudescia. O lirismo epistolar continuava a ser cultivado com afã e as cartas apaixonadas sucediam-se, com uma regularidade de cronometro. O caso sentimental complicava-se, assumindo proporções que eu nem por sonhos seria capaz de lhe atribuir por ocasião da sua primeira exteriorização epistolar.
Tremi deveras pela tranquilidade doméstica do meu estremecido camarada de infância. Conhecia de sobra o Comendador, a D. Inês e toda a parentela de Carlos, para poder com segurança prever a medonha oposição que toda essa gente faria a um enlace possível do rapaz com a Laura.
E confiei-lhe abertamente os meus receios, expus-lhe tudo com a maior clareza, mostrando-lhe a conveniência de reagir em tempo contra aquela inclinação amorosa que eu perfeitamente lobrigava através dos seus entusiasmos e das suas loas à conduta da rapariga.
A resposta não se fez esperar. Entrou-me pela porta um dia, num volumoso envelope registado, capeando nada mais nada menos do que cinco cadernos de papel Diplomata!
O Carlos protestava contra a interpretação por mim dada aos seus arrebatados entusiasmos. Não, ele não estava apaixonado pela rapariga. O culto que lhe votava era todo impessoal: para ele, a Laura apenas simbolizava um grupo de sentimentos e de princípios, capazes de levar até ao delírio a veneração e os aplausos de todas as almas moças que ainda acreditassem no Bem, que se não tivessem ainda embotado ao contato da torpeza e do egoísmo humanos. Sentia um orgulho imenso, ao ver que na sua terra nascera e nela mesma se formara aquela nobre e estupenda organização de mulher, que tão alto erguia a indiscutível ascendência moral do seu sexo.
Tinha, além desses, um outro motivo todo especial para se apaixonar pelo caso.
Como eu não devia ignorar, alimentava ele, desde o malogro d’A Nova Pátria, o projeto de escrever um romance, onde a vida do Maranhão se estereotipasse, flagrante e nua. Os episódios secundários, as cenas do segundo plano, que deveriam formar, por assim dizer, o fundo da ação, já ele as tinha todas, devidamente dispostas e grupadas por ordem de alcance significativo. O que lhe faltava era apenas o entrecho central, que as deveria entrelaçar num, todo concatenado e harmônico, numa sequência natural e lógica. É que melhor ensejo se lhe poderia antolhar, de preencher semelhante lacuna, do que o caso da Laura Medeiros? Poderia até dar ao livro esse mesmo título, para com mais clareza e vigor significar os seus intuitos de observador imparcial e frio, que trabalha impessoalmente sobre o documento humano, isento de preocupações idealistas e de caprichos inventivos de fantasias inverossímeis. Dispunha-se apenas a comentar um fato trivial, um incidente característico na sua banalidade rotineira, desses que diariamente se produzem no revolutear caleidoscópico da vida.
E nem se lembrava o ingênuo de que esse novo modo de encarar a situação, brigava berrantemente com o seu critério anterior, que lhe fazia ver na heroína do romance sonhado um tipo anormal e raro e, por consequência, encarar, também, como anormais e raros, todos os seus atos.
Vinha em seguida de novo estadeada a sua velha paixão jacobina, o seu ódio disfarçado ao português, que tão sérios embaraços lhe iam outrora criando, no começo da sua carreira acadêmica. Faria do Xandico, do intrigante caluniador e perverso, um português genuíno, emigrado da terra aos dez anos, na ambição sórdida de fazer fortuna, demandando de preferência o Brasil como o teatro mais apropriado e mais cômodo às suas façanhas de ganhadeiro ganancioso. Estudaria nessa febre de riquezas, que anualmente atira às plagas brasileiras milhares de portugueses expatriados, a degeneração mórbida do antigo gênio aventureiro que outrora levara os seus antepassados às grandes explorações e descobertas marítimas, que abrem os tempos modernos.
Apresentaria depois o Xandico, a princípio com uma bodega imunda, lá para as bandas do Portinho, roubando escandalosamente no peso e na qualidade dos gêneros que vendesse e arruinando, à custa de intrigas nojentas e da proteção surda dos patrícios do grosso comércio, um pobre rapaz, trabalhador e honesto, que se lhe viera estabelecer nas vizinhanças, mas que tinha contra si o grande inconveniente de haver nascido no Maranhão. Mostrá-lo-ia prosperando a olhos vistos, abrindo caderneta na Caixa Econômica, fazendo aquisição do pardieiro infecto onde estabelecera a quitanda e de mais umas portinhas e janelas que lhe ficavam contínuas, comprando ações do Banco de Crédito Rural, começando a ser cortejado e recebido na roda dos grandes financeiros, ao passo que o rival, o maranhense nato, arruinava-se vertiginosamente, terminando por entregar aos credores o estabelecimento, e fazer saltar com um tiro os miolos.
Decorridos alguns anos, viria o homem estabelecer-se à Praia Grande, com um grande escritório de comissões e consignações, continuando a praticar por grosso as suas antigas escamoteações a retalho. Entraria na política, fazendo zumbaias aos Presidentes da Província e comprando, à custa de donativos para o fundo de emancipação da escravatura, um título honorífico qualquer, um baronato ou uma comenda.
Quando explodisse a luta da Laura com as Irmãs do Asilo, ele, como bom e fiei português, amigo incondicional de todas as autoridades bolorentas, sintetizadas no trono e no altar, abraçaria logo o partido das últimas, servindo-se do seu dinheiro e da sua posição para arruinar a primeira e todos os mais que a acompanhassem, que seriam exatamente os republicanos e os nativistas do lugar.
Finalmente, quando a velhice lhe batesse à porta, liquidaria todos os seus haveres e voltaria a Portugal, a fazer figura na sua aldeia e a rir-se com vontade de todos os incautos e imbecis que lhe haviam servido de degraus, para galgar as culminâncias dinheiros as a que chegara.
Os outros comparsas do caso igualmente lhe serviriam para discutir um problema de interesse palpitante, ou por em evidência um princípio de moral social. Mas o que ele não dizia, e nem sequer dava a entender, era que cada um desses problemas e cada um desses princípios nenhum outro interesse lhe apresentaria a não ser o de veicular, caso chegasse a escrever o romance, os seus ressentimentos e as suas opiniões pessoais de filho de português e antigo discípulo de jesuítas, isto é: de jacobino encarniçado e ateu de profissão. Para o caso atual, visavam, além disso, um outro fim: o de me iludir a respeito dos seus verdadeiros sentimentos com relação à Laura, da verdadeira natureza da impressão que lhe havia causado ao espírito o proceder da rapariga.
Mas eu conhecia de sobra o Carlos, e a sua excessiva impressionabilidade, e o seu congênito feitio sentimental e idealista. E tive logo a certeza de que, apenas ele conhecesse a Laura, e verificasse que a sua beleza física correspondia plenamente ou talvez mesmo ultrapassasse o tipo ideal que com certeza já havia atribuído à rapariga — porque o sabia incapaz de conceber uma alma perfeita um corpo defeituoso —, o tal culto impessoal a um determinado grupo de sentimentos e de princípios se transformaria logo na mais violenta e na mais impetuosa das paixões amorosas, tirando dos próprios obstáculos que se lhe erguessem em frente os mais seguros elementos de vida e de triunfo.
E com essa resignação que sempre nos acomete ante as situações irremediáveis, sobretudo quando não é o nosso próprio bem-estar que nelas se acha comprometido, guardei a carta do Carlos e dispus-me a esperar calmamente os acontecimentos, pronto, contudo, a neles intervir abertamente, caso dessa minha interferência dependesse a segurança da felicidade do meu inesquecível amigo.
— Que não fossem atrás daquelas tiradas brilhantes, mas paradoxais... O Carlos de certo não sentia a décima parte do que afirmava. Queria apenas, de antemão, dar o valor exato do futuro advogado, mostrar de que recursos dialéticos poderia dispor para salvar alguma causa difícil que lhe fosse confiada...
E o Dr. Manhães, muito correto e muito limpo, cruzou as pernas, soprando para o ar uma nuvem de fumaça, arrancada ao seu aromatizado charuto.
Era no terraço do Comendador, em seguida ao jantar íntimo com que fora celebrada a chegada do Carlos, para passar as férias do quarto anuo, após a brilhante distinção obtida em todas as matérias que lhe compunham o curso.
Achavam-se presentes, além dos donos da casa, do futuro bacharel e dos respectivos parentes, o antigo magistrado, o cônego Sarmento — atual diretor espiritual da família — o Viegas, que havia pouco salvara a D. Inês de uma bronquite asmática, e mais uns três ou quatro negociantes, amigos do Menezes.
A conversa, habilmente conduzida pelo Carlos, desviara para o escândalo recente, que ainda empolgava, embora com menos violência, a opinião pública da terra. Cada um acrescentava o seu bocadinho ao caso, sentindo-se orgulhoso em oferecer à curiosidade dos parceiros um detalhe novo, por eles ainda desconhecido.
O Viegas, então, foi profuso e minudente, na descrição da moléstia da Mariana. Contou os seus esforços e a sua boa vontade para salvar a enferma, esforços e boa vontade que, infelizmente, ficaram improfícuos, devido à falta de constância da paciente e à desastrada interferência do Dr. Palhares. Se não fosse isso, dogmatizava o velhinho, muito convencido e muito senhor de si, estaria hoje a mulher sã e salva e muitos desgostos e muitas contrariedades teriam sido por esse medo evitados.
— Mas, qual! declarou encolerizada a D. Inês, ao passo que o Cônego Sarmento inclinava ligeiramente a cabeça, num arde assentimento; pois se a desvergonhada já andava premeditando aquele pretexto para de novo trazer a filha para casa... Agora, com que intenções é que ela não sabia... Deus a defendesse de fazer juízos temerários !...
— Oh! minha mãe! Não diga isso! Aquela mulher é uma heroína, digna da admiração e dos aplausos de todos! contrapôs calorosamente o Carlos.
Houve um sussurro de escândalo na roda... A Mariana uma heroína? Mas então ele não sabia do que houvera, não estava ao facto do que se passara, deixara-se levar por informações falsas e adrede espalhadas por indivíduos mal-intencionados, que queriam a todo o transe tirar a razão dos que a tinham.
—Tu não sabes de nada, meu filho, porque andavas por fora... Isto foram informações de amigos só de nome, fez a D. Brígida, uma tia materna do Carlos, solteirona e beata, atirando-me, disfarçadamente, olhadelas furiosas.
Mas o rapaz teimava, cada vez com mais calor e com mais entusiasmo:
— Iludiam-se redondamente os que o supunham mal informado. Pelo contrário, ele buscara com toda a imparcialidade orientar-se, colher dados minuciosos e exatos, afim de poder com segurança firmar o seu juízo a respeito. Aquele caso interessava-o muito particularmente, como sintoma de um estado mórbido social que urgia corrigir. Mas isso não vinha a propósito agora. Tratava-se apenas de uma pobre mulher do povo, enferma e miserável, a quem imputavam como um crime o sentimento mais natural deste mundo: desejar ter ao seu lado, para a tratar e para cuidar dela, a sua filha única...
— Mas, Carlos, atende bem para a qualidade dessa mulher: uma mulher perdida, uma desbriada, que sempre vivera no pecado... explicava muito interessada a D. Inês.
— É, concordava o Conego Sarmento, dispondo-se a sorver uma pitada; uma pecadora impenitente, uma criatura de má vida, que só poderia dar à pequenas exemplos muito pouco edificantes...
— Ah! eis aí finalmente o ponto a que eu queria chegar!
E o Carlos pôs-se de pé, majestosamente belo, aclarado em cheio pela luz projetada da varanda pelo largo portão escancarado, formando-lhe, ao redor do corpo musculoso de atleta moço, um halo resplandecente e glorioso. As palavras irrompiam-lhe dos lábios, claras, vibrantes, sonoras, acordando, num eco percursor e largo, a grande paz serena do jardim adormecido ao luar. Com os olhos húmidos, os lábios frementes, o gesto agressivo, apostrofava os circunstantes, bruscamente emudecidos de pasmo ante aquela inesperada altitude do acadêmico.
— E se eu lhes dissesse que essa pobre mulher, sobre a qual atiram agora, em nome da religião e da moral social, os mais infamantes lábios e as mais negras acusações, que essa infeliz criatura a quem negam neste instante até mesmo o direito de ser mãe e de amar o ser gerado nas suas entranhas, é talvez mais digna do nosso respeito e da nossa compaixão do que toda a sociedade mistificadora e perversa que a expulsa escandalizada do seu seio? Se eu lhes afirmasse, meu pai, minha mãe, sr. Cônego Sarmento, se eu lhes afirmasse que nenhum dos senhores tem o direito de lhe exprobar a abjeção a que desceu, porque a cada um cabe, por sua vez, uma partícula de responsabilidade nessa queda?
Um frêmito de escandalizado pânico percorreu o auditório. Entreolharam-se todos, boquiabertos, fulminados, como que na ânsia de encontrar nos olhos dos outros a explicação daquela insólita e brusca agressão. A maior parte não percebia ainda bem o verdadeiro sentido das palavras do acadêmico, mas tinha a intuição iniludível de que uma absurda enormidade ali fora proclamada, e de que outras piores ainda lhe viriam dentro em pouco ferir os tímpanos. A D. Inês levou as mãos ambas à cabeça, fitando aterrorizada o filho; o Comendador torceu-se na cadeira, a alargar o colarinho, como se receasse a asfixia; a pitada do Sarmento ficou em meio caminho das ventas, comprimida entre o polegar e o indicador; a D. Brígida benzeu-se assustada e o resto dos palestrantes dava igualmente sinais evidentes de quem se vê forçado a pisar sobre brasas.
Foi então que o Manhães, o mais calmo de todos, justamente por ser também o mais inteligente, teve aquela frase de desculpa e de conciliação.
Mas, o Carlos, em ato continuo cortou-lhe o almejado eleito das palavras:
— Engana-se, Dr.; nunca falei tão sério na minha vida. O que acabo de dizer é a manifestação franca e nua do meu modo de: pensar. Aquela mulher é uma vítima da moral de convenção e da religião degenerada dos nossos dias. Qual é afinal de contas o grande crime que lhe imputam? Ter-se deixado embair, na incauta inocência da mocidade, por uma frase de amor, promissora e cantante, que lhe soprou aos ouvidos um qualquer lovelace de esquina... Quando voltou a si do engano, era tarde demais para retroceder... Perdera... — como o devo dizer agora, sem ferir a pudicícia dos ouvidos que me escutam? — perdera... a integridade fisiológica, se assim me posso exprimir, que vem a ser, afinal de contas, o único atestado válido de virgindade que o mundo aceita sem discutir. Porque é também esse o único estupro que o Código pune... O outro, isto é: o desfloramento moral, a campanha torpe da sedução, a infiltração sutil numa alma de virgem do veneno da prostituição, tudo isso não passa de pecadilhos veniais, de faltas desculpáveis a que a sociedade e a lei cerram os olhos, desde que se não traduzam no ato material. E mesmo quando este se produz, só a sanção penal é que apanha o homem; a outra, a da sociedade, é exclusivamente sobre a mulher que se faz sentir. Ora diga-me cá uma coisa: o sr. consentiria que um filho seu desposasse uma mulher violada por outro, fora da sanção matrimonial? Nem é preciso falar, tenho a certeza absoluta de que será negativa a sua resposta. Mas se uma filha sua se quisesse casar com um rapaz de boa família, rico, sadio, em boa posição, mas que já houvesse... desencabeçado duas ou três rapariguinhas do povo...; loucuras de rapaz... irreflexão da idade... compreende-se, não é assim? — veria o sr. nesse facto um motivo sério e poderoso para negar à sua filha o consentimento pedido?
O Manhães fizera-se vermelho, percebendo o terreno firme pisado pelo interlocutor; mas não se queria pronunciar, achava mais cômodo guardar na discussão uma posição neutra, sem se comprometer...
— Homem, isso são coisas que a gente não pode responder assim de pancada... É preciso examinar, ponderar...
— Qual examinar, nem qual ponderar, interrompeu o Carlos, esquentando-se do novo. O sr. consentiria no casamento, porque aos seus olhos, como aos olhos de toda a sociedade atual, o homem que a frio, de caso pensado, seduz uma virgem, desde que essa infeliz ocupe posição social inferior à sua e que a justiça pública o não apanhe, provocando assim o escândalo, continua a encontrar abertas diante de si todas as portas e... todos os corações... Agora, com a mulher, o caso é outro: a que uma voz caiu, embora se verifique que foi o mais falaz e o mais traiçoeiro dos engodos, por parte do sedutor, a causa dessa queda, só acha defronte de si uma porta aberta: a da prostituição. Todas as outras lhe são logo virtualmente trancadas.
— Ainda há outra, objetou o cônego Sarmento: a do arrependimento.
O Carlos teve uma gargalhada estridente ao encarar o clérigo, que encordoou deveras.
— Com que então, sr. cônego, ainda resta para a desgraçada a porta do arrependimento? Ora muito bem! Mas a que chama o sr. afinal de contas arrependimento?
— Ora este não está má! gaguejou o cônego, cada vez mais enfiado... Mas... todo o mundo sabe o que vem a ser o arrependimento... E é até para admirar que o sr., educado por uma mãe tão católica...
— Alto lá! interrompeu agressivo o Carlos; a minha educação religiosa nada tem a ver com o assumpto de que se trata. Quero apenas que o sr. cônego Sarmento me defina, com precisão e com clareza, que vem a ser o arrependimento...
O Sarmento torcia-se todo, numa gana surda de estrangular o bonifrate que tão irreverentemente o atanazava...
— O arrependimento...declarou por fim, com voz mal segura que a raiva contida fazia tremer; o arrependimento... é a consciência do pecado cometido, seguida do firme propósito de o não tornar mais a repetir...
— Mas é esse exatamente o caso da mulher de que agora nos ocupamos...
— Não! vociferou o Sarmento, como se houvesse afinal encontrado o argumento de que carecia para esmagar o adversário; essa mulher deixou apenas de continuar no vício — se é que o deixou, porque nada disto sabemos positivamente — mas ignoram-se os motivos que a semelhante procedimento a levaram, assim como não sabemos lambem se houve da sua parte um arrependimento sincero e o propósito inabalável de não reincidir...
— Quer dizer na sua, completou o Carlos, acentuando bem as palavras, num ar ferino o insultuoso de ironia, que ela o não foi procurar, nem a nenhum dos seus colegas, para que a remissem das culpas passadas e a aconselhassem na trilha a seguir... Pois é pena, na verdade, porque creio que o sr. cônego Sarmento ha do ser um ótimo conselheiro para as Madalenas arrependidas...
— Carlos! fez o comendador repreensivo e sisudo, enquanto a D. Inês rompia a chorar e o Sarmento punha-se de pé, fulo de raiva, interrogando provocadoramente:
— Que quer dizer com essas palavras? Explique-se...
Foi um reboliço indescritível na roda; ergueram-se todos açodadamente, procurando acalmar os ânimos dos dois contendores. A D. Inês veio abraçar-se soluçante com o filho, ao passo que o Manhães buscava por todos os meios chamar à razão o cônego Sarmento, que esbravejava furioso, a declarar que fora cobardemente insultado naquela casa e que lá não poria mais nunca os pés.
A D. Brígida, tropeçando pelas cadeiras, correu a encerrar-se no oratório, a pedir aos santos que a poupassem, ao menos a ela, no tremendo castigo que iriam infligir aquele desacato a “um santo ministro do Senhor”.
O Viegas, cada vez mais pisco, cheirava sofregamente um frasquinho de desinfetante de que nunca se apartava e que bem bons serviços já lhe havia prestado em outros entaladelas iguais.
Afinal, o Carlos, cedendo às instâncias chorosas da mãe e do pai aproximou-se do cônego e pediu-lhe gochemente que lhe desculpasse aquelas palavras, escapadas no fogo da discussão, declarando-lhe que a sua intenção não fora por forma alguma ofendê-lo.
O outro deu-se aparentemente por satisfeito, mas nas olhadelas que deitou ao acadêmico, em todo o resto da noite, luzia disfarçadamente esse inveterado ódio teológico, a cujo clarão comburente se acenderam outrora as fogueiras da Inquisição...
— Dize-me uma coisa: onde poderei conhecer a Laura? foi a primeira pergunta que me dirigiu o Carlos, quando na manhã seguinte, logo às oito horas, me invadiu o quarto, arrancando-me ao mais delicioso dos somos.
— Oh! animal, pois então não te basta teres-me ontem feito presenciar àquele revoltante escândalo, ainda me vens roubar à delícia de um sonho que com certeza se não repetirá tão cedo?
E espreguicei-me na cama, buscando reagir contra o estremunhado entorpecimento que me punha nos nervos uma adorável lassidão.
— Avalia que eu me achava transformado em Imperador da China, no mui poderoso e mui sagrado Kang-chi I, contemporâneo de Luiz XIV, ditando, do alto do meu trono de porcelana azul, a uma multidão de copistas de rabicho, o meu inigualável dicionário, destinado a...
— Vai para o diabo que te carregue, tu, e mais a tua China e mais o teu dicionário... interrompeu o Carlos.
— Oh! filho, então nem sequer me permites o direito de vasar num peito amigo a confidencia das minhas grandezas sonhadas?
E, repelindo o lençol, ergui-me do leito.
— Se estás disposto a fazer pilhéria, vou logo declarando, para o teu governo, que não me acho, eu, disposto a aturá-las... Responde a minha pergunta, e deixar-te-ei em paz, a reatar o sonho interrompido...
— A boas horas! Depois que me pilhas de pé... Com que então, ardes em desejos de conhecer a pequena hein? Para documentar o romance, já se vê, para te aproximares o mais possível da verdade no de buxo do físico da respectiva heroína... Interesse puramente literário, não é verdade?
— Jayme, tu és meu amigo, não é assim? E não tens, portanto, vontade de brigar comigo? Nesse caso, deixa de parte as brincadeiras e falemos seriamente...
— Mas eu creio que ainda me não ri?... Em suma, já que o queres, vamos falar sério. Creio que o único lugar em que podes ver a Laura à vontade é na capela do Hospital...
— Na capela do Hospital?!
— Sim... Há lá todos os domingos, às sete da manhã, uma missa a que a rapariga invariavelmente assiste... Ora, amanhã é exatamente um domingo... Passa por cá às seis e meia e vamos os dois ao Hospital...
— Está feito e muito obrigado...
— Sim, mas não te vás ainda, vamos conversar um pouco, tenho muito que te dizer...
E pra ali ficamos os dois a palestrar a manhã inteira.
A impressão produzida no espírito do Carlos por todos os incidentes de que fora centro a Laura Menezes, agravara-se assustadoramente. A sua imaginação de romântico incorrigível galopara a rédea sola naqueles poucos meses, e a prova do fundo interesse que lhe inspirava já a rapariga residia n’aquela insólita agressão da véspera, ao cônego Sarmento. Todos os recursos da minha dialética foram impotentes para o demover do seu propósito.
— Não te sei dizer ao certo se a amo já; mas o que te posso garantir é que a sua imagem não me abandona o espírito por um só instante que seja... Tenho-a sempre presente à imaginação, cada vez mais formosa e mais digna, prometendo tesouros de ventura ao homem que lhe acordar o coração... Enfim, amanhã será decidida a minha sorte...
E não se iludido o Carlos: foi, com efeito, naquela brumosa manhã de dezembro que a sua sorte se decidiu, porque foi nela exatamente que o seu engodo sentimental e platônico bruscamente se transmudou na mais impetuosa e na mais violenta das paixões.
Quando deixámos o Hospital, em seguida à missa, a que a Laura, como de costume, assistira, no seu simples vestido de cassa branca, sem um atavio e sem um enfeite, mas que lhe modelava admiravelmente as formas de uma perfeição de estatua grega, fazendo realçar ainda mais a sua impecável e nobre formosura, vinha o Carlos doido de entusiasmo, trazendo indelevelmente gravado n’alma o olhar rápido que ela lhe lançara à saída, como se também por sua vez se sentisse agradavelmente impressionada pela sua linha elegante e fina da rapaz da moda.
E tive de o aturar o dia inteiro, porque fomos almoçar ao Central e em seguida percorrer a cidade, ora a bonde, ora a pé, até às horas do jantar. E se não fossem uns convivas de cerimônia, cuja fome deveria o Comendador matar nessa tarde, com um lauto e variado jantar, a que o filho foi forçado a assistir, creio que entrariam pela noite as suas confidencias e as suas expansões.
Um amor como aquele, dizia o Carlos, deveria fatalmente terminar no matrimônio; nem outra solução se lhe antolhava capaz de lhe oferecer uma satisfação enobrecedora e digna. E se bem sabia as dolorosas consequências que semelhante ato lhe acarretaria; não ignorava de certo a furibunda oposição que lhe fariam todos os seus, amarrados ao preconceito, imbuídos de uma moral de convenção, caricata e falha, todos cheios de fumaças ridículas de fidalguia, sonhando para ele uma aliança de dinheiro e de posição. Mas eu deveria concordar que seria uma repugnante cobardia sacrificar a semelhantes princípios a sua felicidade e o seu futuro. Amava a Laura desde em antes de a conhecer, e agora, que a vira já, sentia que nunca mais teria forças para arrancar do coração aquele amor. Ela... ele não o sabia ainda, não o poderia afirmar ao certo..., mas um palpite, secreto e grato, punha-se a segredar-lhe aos ouvidos, que ela também lhe viria retribuir em breve aquela afeição; nestas condições, para que fazer a desgraça dos dois, quando ao alcance das mãos lhes eslava a ventura e a paz?...O Comendador esbravejaria, a D. Inês, a D. Brígida e o resto da parentela e das amizades pelo mesmo conseguinte... Haveria lutos de família, envergonhadas tristezas domésticas, mas tudo afinal passaria quando o vissem feliz, ao lado de uma esposa casta e digna, cercado de uma prole vigorosa e bela...
Deixei-me também, insensivelmente, ganhar pelo calor entusiasta que das palavras do Carlos se desprendia. Que diabo! O rapaz, afinal de contas tinha, toda a razão e a Laura era com efeito merecedora de todos os sacrifícios para lhe assegurar a felicidade. Sofrera já tanto, coitadinha! E, agora mesmo, como lhe deveria ser rude a vida, partilhada entre os cuidados da enferma, cuja moléstia se agravava a olhos vistos, e o trabalho do qual retirava o sustento para as duas! Eu sabia, pelo Malheiros, um antigo companheiro de Liceu, e agora amanuense da secção do Fialho e em quem este último depositava a mais cega das confianças, das serias dificuldades em que se via a rapariga para levar ao cabo a nobre missão que tão galhardamente tomara sobro os seus ombros de virgem desprotegida e fraca. Vivia informado dos atos diários de heroísmo que punha em prática, na sua luta homérica com a miséria. E toda a recolhida admiração e todo o culto secreto que me inspiraram sempre semelhantes revelações, se extravasaram naquela hora, irresistíveis e calorosos.
É bem possível que para semelhante exteriorização contribuíssem, em não pequena dose, o ótimo vinho e os aromatizados licores do almoço.
Mas, fosse como fosse, o certo é que eu pus-me a traçar ao Carlos o mais belo dos panegíricos da Laura, reproduzindo-lhe, por miúdo, toda a sua história passada, tal como me havia chegado aos ouvidos. E — para que negá-lo? ninguém me ouve agora e o papel é discreto —aumentei mesmo alguns detalhes, que mais em evidencia pusessem a superioridade da rapariga e a asquerioridade moral dos que a perseguiam. O Xandico, então, meteu-se, da minha parte, na mais tremenda das descomposturas. Contei horrores do velhote, pintei-lhe o moral com as cores mais negras d’este mundo, apresentei-o como um monstro de abjeções e de torpezas, e por pouco que o não responsabilizei por todos os crimes praticados no Maranhão n’aqueles cinquenta anos mais chegados, desde o assassinato e o alto roubo até às leves injúrias pessoais e ao furto de galinhas. E de tal forma me houve nessa impiedosa demolição do próximo ausente, que o Carlos chegou a propor-me que fossemos juntos e sem mais demora quebrar-lhe a cara n’aquele mesmo instante.
Felizmente, porém, ignorávamos ambos o paradeiro do Xandico àquelas horas e ficou por isso o velho de cara intacta e nós a coberto das intervenções inoportunas da polícia.
Já para a tarde, à proporção que ia o sol declinando no céu, no meu espírito se iam também dissipando os vapores do vinho, de forma que pude afinal, a sangue frio, encarar a situação.
Sem, nem por sombras, buscar dissuadir o Carlos dos seus projetos matrimoniais — mesmo porque seria trabalho perdido tentar semelhante esforço — pus-me contudo a aconselhá-lo, a mostrar-lhe a imprescindível necessidade de conservar tudo, por enquanto, no mais absoluto sigilo. Ele, de certo, só se poderia casar depois de formado, não era assim? Pois então que se conservasse quieto até aquela data, evitando que os seus intentos transpirassem. Deveria até empregar todos os esforços ao seu alcance para desviar desse terreno as suspeitas dos progenitores e de toda a parentela. Já não dizia por ele, mas pela rapariga, por amor da sua tranquilidade e de seu sossego. Que avaliasse só de quanto não seriam capazes contra ela os seus antigos inimigos se a suspeitassem, de leve que fosse, om vésperas de contrair um enlace tão vantajoso e que a vinha definitivamente pôr a coberto, de uma vez por todas, das suas malévolas perseguições. Poderiam até inventar coisas, forjar intrigas, propalar mexericos, que o arruinassem de vez no conceito da Laura, tornando-lhe impossível, ou, pelo menos, assaz difícil qualquer aproximação futura.
As minhas razões calaram fortemente no espírito do Carlos, de modo que ele, nessas curtas férias, limitou-se apenas a procurar, de longe em longe, ver a rapariga, por ocasião das missas do Hospital, buscando por todos os meios, em olhadelas furtivas e apaixonadas, que só ela percebesse, comunicar-lhe a segurança do seu inalterável amor.
Antes, porém, de embarcar para o Recife, a concluir o seu curso, deixou em meu poder uma longa carta destinada à Laura, onde lhe contava, em termos precisos e dignos, sem os recursos reles dos lirismos lorpas em que se comprazem a maioria dos namorados, o afeto nobre e puro que ela lhe soubera inspirar e o firme propósito em que se achava de a desposar.
Deixava ao meu critério a oportunidade em que semelhante carta deveria chegar às mãos da respectiva destinatária.
A moléstia da Mariana fazia progressos assustadores. A paralisia estendeu-se-lhe por todo o corpo, tolhendo-lhe em absoluto os movimentos. Sobreveio-lhe uma inflamação de olhos, que lhe acarretou, dentro de muito pouco tempo, a perda total da vista. As faculdades intelectuais, sobretudo a memória, começaram também a ressentir-se de palpáveis desiquilíbrios; era já com manifesta dificuldade que ela conseguia ligar certos factos do passado. As chagas escancaravam-se, purulentas e fétidas, e a cefalalgia, impiedosamente, como um círculo de ferro, lhe esmagava, noite e dia, os miolos.
O Dr. Falhares declarou-se impotente para obstar, mesmo provisoriamente, os progressos domai. A sífilis galopava irrefreável, minando, com uma rapidez assombrosa, aquele organismo inerte. Quando a infeliz lhe suplicava que a livrasse daquela tortura que a lacerava, o velho profissional tinha um encolher de ombros significativo, e vinha para fora, declarar ao Fialho, que quase sempre lhe assistia as visitas, que a morte se encarregaria em breve de deferir aquele pedido.
Todas estas coisas me eram contadas pelo Malheiros, cuja amizade passei com mais frequência a cultivar, depois do embarque do Carlos, afim de viver sempre informado de tudo o que dissesse respeito à Laura. Pareceu-me que o meu dever era não retardar por mais tempo a entrega da carta que conservava em meu poder; ignorava a natureza dos sentimentos nutridos pela rapariga com relação ao meu amigo ausente, mas seria capaz de jurar que ela, de certo, se suspeitava já adorada por ele e que lhe seria imensamente grato ao coração e ao orgulho, a certeza de ser amada por um rapaz tão fino e tão distinto. Além disso, poderiam do pé para a mão surgir complicações inesperadas, que me dificultassem o desempenho da missão que tão cegamente me confiara o Carlos.
Por todos estes e mais alguns motivos, uma bela manhã, dirigi-me para a casa do Fialho, disposto a pô-lo ao facto da situação e pedir-lhe que fosse o intermediário entre o Carlos e a afilhada.
O velho, que já me conhecia bastante, recebeu-me afavelmente e ouviu, calado e atento, a minuciosa exposição que lhe fiz dos sentimentos do Carlos, desde o seu entusiasmo inicial ao ser informado do procedimento da Laura, até à resolução definitiva que tomara, de ligar ao dela o seu destino.
Quando terminei a narração, tinha o Fialho os olhos húmidos de lágrimas, em todo o rosto se lhe pintava a comovida satisfação que lhe ia n’alma, ao sentir-se tão lealmente compreendido e apoiado.
— Eu já desconfiava de alguma coisa... declarou, decorrido um momento, e com um leve sorriso de penetração. E foi a própria Laura quem me lançou no espírito a primeira suspeita...
— Como assim? inquiri surpreendido.
— Oh! e sem querer... Estas raparigas pensam que nós outros velhos não temos olhos, que é com a maior das facilidades do mundo que nos deixamos embair pelas suas disfarçadas subtilezas... Eu só queria que o meu amigo visse o ar de indiferença e de pouco caso com que ela, um dia, depois de uma infinidade de rodeios manhosos, me atirou a pergunta: “Oh! padrinho, o sr. conhece aqueles dois moços que ultimamente têm comparecido quase sempre às missas do Hospital, e que se colocam junto àquela porta fronteira ao lugar em que me ajoelho?” Eu, que já os havia visto lá, ao sr. e ao filho do Comendador, respondi-lhe afirmativamente e dei-lhe as informações precisas... Ela ouviu tudo, como se não prestasse lá muita atenção às minhas palavras, e logo depois mudou de assumpto... Passados alguns dias, voltou de novo à carga e desta vez limitando a sua curiosidade ao Dr. Carlos... “Bom, murmurei com os meus botões, aqui anda mouro na costa... E o negócio é com o Comondadorzinho e não com o outro”... E pus-me de atalaia, porque, devo confessar-lhe, a minha primeira ideia foi muito diversa da que me nasce agora das suas declarações... Supus que o rapaz queria... abusar da pequena... Compreende: ela tão pobrezinha, tão desamparada, e ele tão rico, com tanta posição... Qualquer outro no meu caso pensaria da mesma forma, pois não acha?
Fiz com a cabeça um gesto afirmativo.
— E andei até por muito tempo apreensivo com o negócio, sobretudo depois do embarque do seu amigo... A Laura estranhou a ausência dos senhores por três ou quatro domingos consecutivos, e não se pode conter que me não viesse um dia, sempre de rodeio em rodeio, inquirir a respeito. “Não admira, pequena, que os não tenhas lá visto; um deles embarcou para fora”... — “Qual dos dois?” perguntou-me ela com uma sofreguidão que não pode dominar em tempo. — “O filho do Comendador, o Carlos, que foi para o Recife concluir os estudos”, respondi-lhe. — “Ah!” fez ela, ao mesmo tempo que pelos olhos lhe passava uma nuvem quase imperceptível de descontentamento e de despeito. “Olá, resmunguei comigo, as coisas caminham mais depressa do que eu cuidava”... E fiquei triste, incomodado, prevendo já grandes desgraças futuras, porque o sr. bem sabe, hein? pensando eu como pensava a respeito das intenções do seu amigo...
— Mas agora, sr. Major (esqueci-me de declarar em tempo: o Fialho era Major da Guarda Nacional); mas agora, sr. Major, declarei-lhe risonho, voltará de novo o sossego ao seu espírito, pois bem vê que não podem ser mais puros nem mais tranquilizadores do que o são os intentos do Carlos...
— Ah! não há dúvida...não há dúvida... Por esse lado estou inteiramente descansado... Não há dúvida... Mas, diga-me cá uma coisa: e o Comendador, como encarará esse projeto do filho?
— Oh! o Comendador há de espinotear, botar a boca no mundo, exprobar a ingratidão do filho, desmanchar-se em lágrimas e descomposturas..., mas nada disso demoverá o Carlos do seu propósito, asseguro-lhe... E, de resto, tudo há de passar com o tempo... Será por ventura o primeiro casamento contra a vontade dos pais que se faz na terra, acabando depois a trovoada na mais burguesa e na mais inofensiva das calmarias?
E ... é, confirmava o Fialho abanando a cabeça. Mas olhe que a pequena já tem sofrido muito... E que não irão dizer dela, coitadinha, quantas calúnias lhe não levantarão para a perder de vez no conceito do rapaz? Pobre menina!...
E pelas faces do honrado velho as lágrimas desceram irrefreáveis, testemunhando o grande e apiedado amor que lhe soubera inspirar a afilhada.
— Não se aflija, sr. Major, não se aflija, por quem é... Deixe estar que desta vez as coisas não correrão tão facilmente como da outra... Há um pulso de homem, vigoroso e moço, para tapar a boca aos caluniadores...
E, depois de uma pausa, continuei:
— Agora, precisamos andar em tudo isso, coma máxima cautela... O Carlos comprometeu-se comigo em dissimular o mais possível, até o dia em que se sinta em posição de arcar com vantagens contra todas as dificuldades que se lhe antolharem... Por casa as suspeitas estão inteiramente desviadas... O rapaz tem até dado a entender que já anda apaixonado por uma das ricas herdeiras que lhe reserva o Comendador... De forma que daí perigo algum nos ameaça... O sr. Major entrega a carta a D. Laura, pondo-a também ao corrente de tudo... E o que houver raie comunicará... Olhe que é no próprio interesse dela que o mais absoluto sigilo em todo este negócio se impõe...
— A quem vem fazer semelhante recomendação? A mim, que por aquela infeliz menina serei capaz de tudo? E olhe que já não lenho sofrido pouco por causa deia...
E foi a única alusão que dos lábios do Fialho escapou, nessa longa conversa que comigo teve, acerca da estupenda e revoltante campanha de infâmia contra ele movida pelo Xandico e os seus sequazes, não havia ainda muito.
Despedi-me do velho, depois de obter a promessa de, dentro de breves dias, ser informado da resposta da Laura.
Infelizmente, porém, neste interim, a Mariana piorou horrorosamente e eu não me senti com coragem de abordar de novo o Fialho. Seria uma incorreção e uma indelicadeza imperdoável ir exigir da rapariga, naqueles amargurados dias, a resposta ã carta do Carlos.
Ao fim de um mês, morria a Mariana, em meio dos mais horrorosos sofrimentos e a órfã era recolhida pelo Fialho à casa de uma irmã viúva, a D. Bertoleza, porque a mulher, a D. Anastácia, por forma alguma consentiu que o velho trouxesse para a sua companhia a afilhada.
O Carlos, a quem comuniquei por telegrama o falecimento da velha e o destino da Laura, pelo primeiro vapor, endereçou-lhe, por meu intermédio, uma segunda carta, assegurando-lhe, naquela dolorosa emergência, o seu inalterável amor e fazendo-lhe o pedido oficial da sua mão.
Deixei decorrer o prazo necessário para acalmar-se um pouco a dor da rapariga, e fui de novo ao Fialho, com a carta.
Achei-o mais acabrunhado e mais triste do que nunca. Não se podia resignar àquela clamorosa injustiça da esposa, não lhe permitindo recolher, debaixo do seu teto, a infeliz órfã que ele amava como filha.
— Quando entreguei a primeira carta à pequena, declarou-me, depois dos primeiros cumprimentos, tendo, porém, o cuidado de a pôr antes ao corrente da situação, pediu-me ela alguns dias para refletir... Infelizmente, porém, a mãe piorou logo, de forma que não mais nos pudemos ocupar do assumpto... Eu mesmo tenho fugido de lhe falar disso, como fugiria até de a ver, se possível me fosse, porque quase que me falta a coragem de a encarar, coitadinha!... Mas, deixe estar, que hoje mesmo lhe vou levar a carta... Será até um conforto para o seu desgosto...
— Pode afirmar-lhe que o Carlos não a esquece por um só minuto que seja... Todas as cartas que me escreve veem recheadas do nome dela, da primeira a última linha.
Dois dias depois, logo pela manhã, veio o Fialho procurar-me para me dizer que a rapariga aceitava o pedido do Carlos e que desde aquela data se considerava noiva do rapaz.
— Quero, porém, pedir-lhe uma coisa: consiga do seu amigo que realize o casamento o mais breve possível... Eu não me sinto bem, e, se fechar os olhos, não sei qual será a sorte daquela triste...
E bruscamente, sem me dar tempo a responder-lhe, abalou pela porta fora, curvado e trêmulo, como se se sentisse já oscilando ao sopro enregelado da morte...
Vesti-me e corri ao telégrafo, a comunicar ao Carlos a agradável noticia, que, em carta posterior, confirmei, recomendando-lhe a mais absoluta reserva a respeito. Não fosse o rapaz, no açodamento da alegria e do triunfo, cometer alguma indiscrição de que se tivesse de arrepender mais tarde... Lembro-me até de que foi nessa mesma carta que lhe transmiti a nova da morte do Atanásio, internado, havia três anos, no Hospital da Santa Casa, desde o acesso de loucura furiosa de que foi acometido, em seguida à publicação da sua extraordinária Gramática Portuguesa ao alcance de todos.
Duas razões poderosas influíram no espírito do Carlos para, depois de formado, rejeitar todas as brilhantes e promissoras colocações que se lhe ofereciam e teimar n'aquele inconcebível propósito de ir distribuir justiça na Carolina.
Contava, por parte do comendador e da mulher, com a mais tremenda das oposições ao seu casamento com a Laura; tinha quase como certo que o velho romperia com ele, realizando por inteiro a ameaça feita por ocasião da aparição d'A Nova Pátria, isto é: que lhe cortaria os viveres, como o meio mais seguro de o render à sua contingência, e por isso carecia de dispor de recursos próprios, para levar por diante a sua rebelião.
Contava também com a plena ação da mexeriqueira curiosidade indígena, que de certo apanharia aquele escândalo de família como um pasto propício a sua insaciável bisbilhotice. Imaginava já o enxame de boatos que seriam postos em circulação, a messe farta de calúnias que se espalhariam pela a cidade, constituindo o assunto obrigado de todas as rodas, o tema predileto de todos os cavacos privados e públicos. E repugnava-lhe, depois de casado, continuar a respirar aquela atmosfera de escândalo, ver-se diariamente apontado nas ruas como um animal raro, como uma curiosidade digna de ser à vontade contemplada e admirada.
Ora, o melhor expediente que se antolhava para a consecução desses dois intentos, era exatamente a nomeação de juiz para aquela comarca longínqua do sertão. Internar-se-ia, com a Laura, por aquelas brenhas sadias e a capital que se revolvesse burlada na sua lama de intrigas.
E nenhuma das suas previsões falharam.
O Comendador quase cai com uma apoplexia, quando o filho lhe veio desvendar os seus projetos. Houve entre os dois uma cena violenta, a que se vieram juntar a D. Inês e a irmã, complicando a situação com um dilúvio de lágrimas, e uma trovoada de guinchos histéricos.
A vizinhança acudiu pressurosa, e, na tarde desse mesmo dia, estava a cidade cheia- de haver o Carlos esbofeteado o pai, por lhe ter este negado o consentimento para desposar a filha de uma prostituta reles.
O Xandico entrou de novo em ação, a propalar coisas inconcebíveis acerca do Carlos e da noiva. Não pode porém, desta vez, ir mais longe nos seus habituais manejos de caluniador e de intrigante, porque o Carlos, numa manhã em que o encontrou no Largo do Carmo, declarou-lhe, em tom firme e seco, que lhe partiria a cara na primeira oportunidade, se ele não pusesse um cobro na sua língua daninha.
O Cônego Sarmento, fiel à sua missão de devotado diretor espiritual da família, não abandonava a casa do Comendador, sempre em conciliábulos secretos com as duas velhas, afetando modos untuosos de conselheiro discreto e amigo. O Carlos que pressentia no clérigo um adversário desleal e perverso, ardia em fúria santa de lhe espatifar os ossos. Mas continha-se, por amizade e respeito aos pais.
Finalmente, quando o Comendador teve a certeza da improficuidade dos seus esforços no sentido de desviar o Carlos dos seus projetos matrimoniais, trancou-lhe as portas, declarando-lhe que não mais poderia conservar debaixo das suas telhas um filho que tão ingratamente lhe desonrava a velhice.
O rapaz, quase louco de desespero, abandonou o lar paterno e veio para a minha companhia, cativando pressuroso as formalidades necessárias para o casamento, que se realizou ao cabo de um mês, embarcando ele imediatamente para a comarca, em companhia da esposa.
O Menezes mandou, no dia do casamento, cerrar as portas da casa e teve a infantilidade ridícula, nos dias subsequentes, de se cobrir de luto, como se na realidade lhe houvesse morrido o filho. A D. Inês atirou-se a uma cama, recusando os alimentos, chorando noite e dia e oferecendo a Deus aquela tremenda desgraça, em remissão dos seus pecados. Toda a criadagem andava na ponta dos pés, cochichando, com ares misteriosos e lamurientos, buscando assim captar as boas graças dos patrões.
Os amigos e os conhecidos acudiam pressurosos a partilhar d’aquele fundo desgosto doméstico. Entravam com caras de enterro, a maior parte vestidos de preto, murmurando palavras banais de animação e de consolo. Os homens iam abraçar o Comendador, pedindo interessadamente que não sucumbisse à provação, que tivesse coragem, que afrontasse resignado a desgraça. As mulheres seguiam para o quarto da D. Inês, guiadas pela solteirona que em caminho lhes ia fazendo a narração trágica dos sucessos, com uma espetaculosa profusão de gestos burlescos e de mímicas exageradas, assanhando-se toda como uma gata no cio, quando se referia às pajelanças da Mariana e da filha para atraírem o rapaz, coitadinho! que se não soubera defender dos seus ardis. Mas elas haviam de pagar tudo, olé se haviam!... ou, então, não existia um Deus no céu! A primeira já lá estava a saber o que era bom... E a velha benzia-se, como se se sentisse também ameaçada pelas chamas comburentes da fornalha eterna... E a outra..., a outra não perderia muito por esperar... A sua vez chegaria... Pois então aquilo não era coisa que estava mesmo a pedir o castigo do céu? Lançar a desunião numa família que vivia tão feliz, por naquele triste estado uma pobre mãe?...
E a D. Brígida levava o lenço aos olhos, gesto imitado logo pelas outras...
Mas, quando, terminado o desempenho do seu dever de amigos, retiravam-se os visitantes, logo nas escadas e antes mesmo de galgarem a porta da rua, iam cortando à vontade no Comendador, na mulher e na cunhada... Todos aqueles exageros não passavam de luxo de gente rica, de caprichos de quem não tem em que se ocupar. Pois se aquilo tinha jeito: só porque o rapaz realizara um casamento que era do seu agrado, levantarem toda aquela berraria! Não tivesse a D. Inês o batalhão de criadas de que dispunha, fosse como muitas delas que, se queriam ter a casa limpa, não largavam a vassoura das mãos, e veriam as outras se lhe sobraria o tempo para aqueles momos e para aqueles escarcéus...
E, ao ganharem a rua, tinham um longo suspiro de alívio, desafivelando logo a máscara bajuladora de compunção com que haviam entrado.
Decorridos, porém, alguns meses, o desespero dos velhos foi serenando, dando lugar a sentimentos mais brandos e a reflexões mais sensatas.
Queriam sinceramente ao rapaz, amavam-no cegamente, e só a força brutal do preconceito é que lhes havia ditado aqueles rigores demasiados. Afinal de contas, o mal era sem remédio, o que estava feito se não podia desmanchar, e o melhor era aproveitar o primeiro pretexto que se oferecesse para perdoar o desobediente e fazer as pazes.
— Que aquilo até não ficava bem, dizia muito sério o Comendador à mulher, aquelas desuniões de família prolongadas por tanto tempo... o rapaz dera a cabeçada, fizera mal, não havia dúvida... Mas, lá dizia o rifão: águas passadas não moem moinho... O verdadeiro era pôr de vez um termo final naquelas desavenças...
A D. Inês, que ardia intimamente nos mesmos desejos, concordava logo com o marido. E se não tomavam os dois a resolução de porem logo em prática os seus intentos, era por uns restos de pudor, movidos por esse sentimento invencível que a Igreja denomina fulminadora de respeito humano. Tinham feito tamanho barulho por ocasião do casamento, tantos protestos indignados haviam proferido, que seria uma vergonha irem agora de modo próprio e sem mais aquelas dizer aos que tinham presenciado toda a tragédia: “Vocês sabem? Nós estávamos mangando com vocês... Tudo aquilo não passou de caçoada e de arrufos ligeiros... O Carlos é nosso filho, a Laura é nossa nora e acabou-se, a gente não repudia o seu próprio sangue... Fiquem vocês agora p’ra aí de cara à banda, que nós vamos direitinhos à reconciliação...”
Não, o mais prudente eia esperar um pretexto para salvaguardar as aparências.
Em vez de um, foram dois os pretextos que se antolharam ao Comendador e à mulher para fazerem as pazes com o filho.
O primeiro foi o nascimento da filhinha do Carlos, a Marianinha, que ele imediatamente comunicou aos pais muna longa carta, em que lhes perguntava se o sorriso da neta não teria forças bastantes para lhes varrer d’alma, de vez, os antigos ressentimentos. Os velhos espinotearam um pouco com aquela ideia de dar o rapaz à filha o nome da antiga prostituta... Mas, enfim... quem perdoa o mais perdoa o menos.... Eles, que já haviam esquecido a grave falta inicial, não se iriam agora enfurecer por aquele inocente pecadilho.
O segundo foi a moléstia do Comendador, que, repentinamente, às duas horas da farde de uma véspera de Reis, caiu, em plena rua da Estrela, com um ataque de apoplexia. Foi conduzido pata casa a braços e logo medicado por quase todos os facultativos do Maranhão. Ninguém se lembrou, na urgência e no atarantamento da situação, de correr em busca do Viegas. Também, para esses casos graves, sempre era mais seguro recorrer aos profissionais; quando mais não fosse, descarregava-se a consciência e fugia-se a remorsos futuros...
Já tarde da noite, quando os bandos alegres percorriam as ruas, à parodiar a visita dos magos do Oriente ao Deus Menino, foi que o Menezes voltou a si.
Ao recuperar o uso da fala, foi o nome do Carlos o primeiro que se lhe escapou dos lábios. Comoveram-se imensamente os circunstantes e a D. Inês, lavada em lágrimas, foi ajoelhar-se junto ao leito do marido, cobrindo-lhe de beijos as mãos e prometendo-lhe que Deus lhe restituiria a saúde, para poder ainda estreitar de encontro ao peito o filho e depositar, nas faces inocentes da Marianinha, o seu primeiro beijo de avô.
Pelos olhos do doente passou, fulgurando, um rasgado clarão de felicidade e de esperança...
— Ah! mulher, Deus te ouça! Manda chamá-los quanto antes...
Estava vencida a grande dificuldade, transposto o pavoroso obstáculo... Quem poderia estranhar que um pai, às portas da morte, desejasse perdoar a um filho desobediente e conhecer uma neta recém-nascida que nenhuma culpa tinha nas faltas dos progenitores?
E a carta seguiu logo, no primeiro vapor, instando como Carlos para que se não demorasse e acudisse solícito ao apelo paterno. Os mesmos amigos que haviam apoiado o Comendador na passada resistência e censurado amargamente ao rapaz a sua rebelião, foram os primeiros a lhe escreverem agora, felicitando-o pela reconciliação e assegurando-lhe que nunca haviam cessado de o considerar e distinguir. Coisas do mundo, reviravoltas da vida a que todos os mortais vivem sujeitos e que a ninguém é licito censurar.
O Carlos, ao receber a carta da mãe, teve um fundo sobressalto de alegria e, sem mais delongas, pôs-se logo a caminho da capital, com a mulher e a filhinha, ansioso por abraçar os pais, e ver por eles carinhosamente acolhidos os dois seres em quem exclusivamente se concentravam as suas ternuras de esposo e de pai.
Mas só em parte se lhe realizaram os desejos, porque à integridade absoluta de semelhante realização se opôs essa coisa pavorosa que parece ser o apanágio irrepudiável do Brasil e, com especialidade, dos Estados do Norte: a distância, em toda a sua desolação primitiva, sem o conforto atenuador da locomotiva, engolindo quilômetros de solo ingrato com a mesma rapidez com que as endemias que o flagelam se infiltram nos organismos alienígenas que o afrontam.
Quando chegou ao termino da sua viagem, já não encontrou o pai, que sucumbira três dias antes, arrastando para o cemitério, a acompanhar-lhe o enterro, muito menos gente do que a que reunira nos seus salões, por ocasião dos festejos da formatura do filho.
O primeiro pedido que lhe fez a D. Inês, em seguida aos desabafos lacrimosos e às confidências, entrecortadas de exclamações e de soluços, da moléstia do Comendador, foi que nunca mais se afastasse de junto d’ela, porque a pobre senhora carecia, para o desconforto da sua viuvez, da presença constante d’aquela trindade querida, em quem se deveriam agora concretizar todos os seus afetos terrenos.
Fez-lhe o Carlos a vontade, demitindo-se logo do cargo que com tanto ardor outrora ambicionara e instalando-se, com a mulher e a filha, no palacete do Comendador, cercado da bajulação servil que o dinheiro infalivelmente determina em todas as latitudes do globo.
E, para doirar a sua preguiçosa inatividade, fez-se comanditário da antiga casa do pai, aparecendo de quando em vez pelo escritório a fumar charutos e a percorrer entediado os seus infectos e abafadiços cochicholos.
Dois anos depois, seguia a D. Inês a lazer companhia ao marido e o Carlos, que sempre ficara aborrecendo a terra desde os sucessos escandalosos do passado, liquidou os seus haveres e transferiu a residência para o Rio, sob o pretexto banal de cuidar da futura educação da filha.
A nossa correspondência, assídua nos primeiros meses, começou depois a rarear e, ultimamente, só nos conferimos mutuamente a honra de uma epístola, quando algum de nós tem necessidade de comunicar ao outro coisas dignas de menção.
É o que se deu agora, com esta caria do Carlos, recebida há mais de um mês, o que fez derivar para o ponto culminante da sua vida a minha doentia evocação do passado.
Comunicava-me nela que ia embarcar para a Europa, não só para se deleitar por algum tempo no convívio das civilizações superiores, como também para ouvir a opinião de algumas notabilidades medicas acerca do desenvolvimento físico da filha que se não fazia com a regularidade desejada.
Que galernos ventos o tenham conduzido ao porto do seu destino, como lhe desejou o Velloso, no Jornal da Lavoura, ao noticiar o seu embarque no Rio.
Acabo de receber, datada de Paris, uma angustiada carta do Carlos, em que o pobre rapaz, quase louco de desespero, me comunica a desgraçada sorte que aguarda a sua infeliz e única filhinha.
Os especialistas que a examinaram, foram concordes em afirmar que a triste criança é uma vítima, irremediavelmente condenada, dessa pavorosa lei da hereditariedade sifilítica.
O terrível vírus que corroeu a vida da Mariana, começa agora a manifestar-se na neta, sem que o possam deter, na sua marcha ascensional de extermínio, nem os recursos coligados da ciência dos homens, nem a ternura abnegada e extremosa dos pais!
“Avalia, meu amigo, a imensidade do teu desespero, diz-me o Carlos, se te viessem inesperadamente afirmar que uma das tuas filhinhas, justamente aquela que mais amasses, que com mais funda ternura estremecesses, deveria em breve ser roubada aos teus carinhos ao teu amor por uma enfermidade asquerosa e invencível; se te viessem dar a certeza iniludível, formal, precisa, de que aquelas faces de lírio fresco, por onde os teus beijos de pai avidamente passeavam, que aqueles lábios rosados, onde diariamente os teus olhos viam surgir a aurora perenal da tua ventura, que aqueles bracinhos roliços que te enlaçavam amorosamente o pescoço, que aquelas mãos, aveludadas e pequeninas, que tantas vezes te afagaram os cabelos, que tudo aquilo enfim que constituía a razão única da tua existência, a única explicação plausível da tua vida, estava condenado a transmudar-se em chagas repugnantes e fétidas, em úlceras purulentas que fizessem recuar de horror e nojo todos os olhos que nelas se fitassem”...
E eu tremi de horror ao ler essa enlouquecedora expectativa que aos meus olhos desnudava o Carlos... E do fundo da minha alma dolorida, de envolta com uma imensa e comovida piedade pela desgraça que flagela nestora o mais querido dos meus amigos vivos, surgiu também a resignação e a paciência para suportar o meu martírio.
Que importam as minhas inquietações e as minhas cóleras, os meus desesperos e as minhas insônias, se os meus filhos vivem sadios e felizes?
E termino aqui estas memórias desconexas e fragmentadas, maldizendo a imbecilidade congênita dos homens que ainda não fez do interesse pela integridade fisiológica da espécie a única lei soberana que deve governar o casamento...
S. Luis, maio – agosto, 1903.