Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

“O pão de ouro”, de Bernardo Guimarães


Edição de Referência:

Jornal das Famílias. Tomo 10, fevereiro; março; abril de 1872, pp. 33-41; 65-76; 97-102.

I

A MÃE DE OURO

Antes de encetar a narração dos acontecimentos, que constituem o principal assumpto desta história, cumpre-nos rememorar uma lenda, ou antes uma avença mítica dos primitivos e selváticos habitantes da terra americana, a qual sem dúvida é desconhecida da maior parte dos leitores.

Esta lenda, provavelmente ampliada e embelecida pela imaginação dos colonos portugueses, é a história da mãe do ouro que passo a contar a meus leitores.

Era nos topes alterosos de uma das mais altas montanhas da América meridional.

Esse topes, por cima dos quais desdobravam-se risonhas planícies de verdor eterno e entrecortadas de córregos cristalinos, ao pé humano em vão tentaria galgar, e eram somente accessíveis ao corvo e ao condor altivolante. E do meio dessas planícies erguia-se outra montanha coroada de enormes rochedos erguidos à prumo, como um castelo guarnecido de torreões denegridos e derrocados pelo tempo, ou como aéreo e colossal terraço, ornado de estatuas disformes, mutiladas e despedaçadas pelos raios.

Era como um jardim encantado superior à habitação dos homens e vizinho à dos anjos, todo entremeado de grutas profundas e misteriosas, de penedias de figuras caprichosas e fantásticas, formando lapas, areadas, terraços, ruinas, de veigas deliciosas alcatifadas de musgo e flores, de fontes de agua viva a borbulhar, de vergéis harmoniosos a conversarem mistérios com as auras do céu.

Aí nessas alturas inaccessíveis em uma gruta misteriosa morava uma fada formosíssima, filha do sol ou de Tupã, e irmã da Aurora. Era chamada a Mãe do Ouro.

Em quanto sua irmã espargia de seu regaço flores etéreas sobre o berço do sol, e perolas de orvalho, que refrigeram e fertilizam os campos, ela matizava os horizontes de franjas de ouro, e sacudindo pela terra o pó doirado de seus cabelos fecundava pelas grutas dos montes os veios de imensas jazidas auríferas, e enastrava de rubins e diamantes o leito dos rios.

Ela vivia feliz em seu asilo sagrado, e passava alegremente os dias ocupada em enfeitar de áureos matizes os véus da aurora, e esparzir palhetas de seus inesgotáveis tesouros pelos caminhos do sol; ou percorria as montanhas sacudindo do seio uma chuva de ouro e pedras reluzentes.

Nenhum mortal a conhecia, nem cobiçava os seus tesouros. O ouro, os rubins, as safiras, os diamantes rolavam pelas torrentes de envolta com o cascalho sem fascinar a vista dos mortais, e serviam apenas de brinco entre as mãos das crianças, sem ter aos olhos do homem maior valor, do que as penas da arara ou do tucano, com que costumavam enfeitar o cocar ou o cinto da araçoia.

Mas ah! em uma hora malfadada a virgem depositaria dos tesouros de Tupã esqueceu sua origem celeste, e deixou-se levar por uma paixão terrestre.

Um dia, que ela passeava pelos vales vizinhos à sua gruta encantada, deu com os olhos em um jovem e formoso cacique, que dormia à beira de uma fonte à sombra de um pé de manacá, que balanceado pela viração entornava sobre ele uma nuvem de flores.

Levado pelo ardor da caça, e por uma audácia e agilidade incrível, o imprudente moço grimpara os alcantis medonhos, chegara aos jardins da fada, e ali adormecera oprimido de fadiga. O suor do cansaço lhe escorria pela fronte, que pousava sobe o braço recurvado; o cocar, arco e flechas jaziam-lhe ao lado sobre a relva; o sangue juvenil e vigoroso lhe transparecia por sob a tez de jambo um pouco bronzeada pelo sol nos fragueiros exercícios da caça e da guerra. Era uma linda e encantadora figura em seu aspecto selvático.

A esta visão, a fada estremeceu e sentiu desusado abalo em seu coração. Julgou que era um manitô celeste, que Tupã lhe enviava para servir de companhia em sua solidão. Deu-lhe na fronte um beijo fervente de amor, despertou-o, e o conduziu para os íntimos recessos de seus palácios cristalinos. Ali mostrou-lhe as deslumbrantes riquezas que Tupã lhe prodigalizara; as abobadas de cristal sustentadas por colunas de pórfiro e ágata, enleados de arabescos de ouro de mirífico lavor, a safira, a esmeralda, o topázio, a ametista encrustados no pavimento em maravilhosos mosaicos, os vasos rutilantes de ouro e pedraria cheios das mimosas e fragrantes flores, que o sol faz desabrochar e a cheirosa rocia de seus aljôfares.

Fascinado por aqueles esplendores sobrenaturais e engolfado nos gozos do amor, o moço indiano esqueceu-se de todo de sua terra e seus irmãos, e viveu longos anos junto à fada da montanha. Esta entregue às delicias de seu novo viver esqueceu-se também completamente dos misteres, de que fora encarregada pelo pai das luzes. A Aurora, quando arrojava seu carro fulgurante pelos campos do oriente, já não os achava, como dantes, enastrados de rubins e de ouro; em vez de transparente poeira doirada, que lhe iriava os caminhos, tinha de guiá-lo à custo por entre cegas neblinas e temerosos nevoeiros, e as rosas, que espargia pelos céus, fanavam-se e despedaçavam ao sopro iroso dos tufões entre nuvens tempestuosas ao estampido dos trovões. O sol via seus raios empalidecerem e embaçar-se a luz rutilante.

Então Tupã indignado falou à filha descuidosa com a voz do trovão. Os raios de céu caíram em chuva sobre a montanha, que encerrava os palácios e os tesouros, que sua infeliz filha guardava para o amante em vez de com eles embelecer as obras da criação, como lhe incumbia.

Derretidas pelos raios ardentes, todas essas riquezas se embeberam pelas entranhas da terra, espargiram-se pelos veios graníticos das montanhas, pelos álveos profundos dos rios caudalosos, mesclaram-se às areias dos regatos e à argila dos morros áridos, esconderam-se em abismos insondáveis, e pelos lôbregos socavões de inacessíveis serranias. Os esplêndidos paços subterrâneos da fada calcinados pelo fogo do céu converteram-se em medonhas e escuras urnas, seus jardins em um montão de negros e disformes rochedos.

O mísero cacique arrojado nas baixas regiões, donde saíra, vagou longo tempo pela terra, lastimando e procurando em vão a amante perdida para sempre e seus magníficos tesouros. Como um louco vivia a escarvar o seio das montanhas em procura dos encantados palácios do ouro, e nesta insana lida ia-se definhando e enervando de dia a dia, até que Tupã compadecido de seu longo penar, o transfigurou em uma formosa árvore que balanceia no céu a copa em grinalda de flores de ouro. É o truculento Ipê, que como um cacique todos os anos se enfeita de um diadema de flores amarelas, diadema efêmero e irrisório, que no outro dia o vento lhe arranca da fronte e roja pelo chão.

A fada descaída das graças de Tupã foi condenada a vagar incessantemente pelas cumeadas das álgidas serranias, e em vez de derramar como outrora pela face da criação seus deslumbrantes tesouros, foi forçada a escondê-los com avara solicitude aos olhos cobiçosos dos mortais.

Era dia pelo recosto da montanhas alterosas, pálido e macilento fantasma, sem gruta, sem palácios, sem jardins, a ninfa vagueia de país em país, de montanha em montanha, procurando todos os meios de sonegar à cobiça dos homens o luzente metal e as preciosidades que Tupã confiava à sua guarda. Mas em vão! Por toda a parte a persegue a avidez insociável dos mortais; por toda a parte quebra e viola os secretos e profundos cofres, em que procura aferrolhar esses tesouros, que os homens antepunham aos frutos da terra, e às bênçãos do céu, e a que rendiam cultos maiores do que ao próprio Tupã; porque tudo com eles se comprava, — os prazeres, a abundância, o amor; — tudo a eles se sacrificava, — a virtude, e a lealdade, a honra, e o pudor.

Em vão os esconde nos píncaros vulcânicos das mais altas serras, ou os enterra em abismos vizinhos ao Averno; em vão os envolve em camadas e camadas do mais rijo granito, ou os sepulta no leito dos rios profundíssimos. Em vão! a sede insaciável dos humanos, armada de indústria e audácia, lacera o flanco das montanhas, perfura o amago da terra, desloca o álveo dos rios, despedaça e pulveriza o duro granito, e por toda a parte procura apoderar-se dos tesouros da desditosa fada.

E cada golpe de alavanca, ou de almocafre, que retine pelos algares da montanha, ecoa doloroso em seu coração, e lhe arranca gemidos profundos, e pesarosos lamentos.

Assim nesse viver inquieto e atribulado ela expia sua fatal fraqueza, esperando a época, em que segundo as promessas de Tupã lhe será restituída a posse pacifica de seus maravilhosos palácios e de seus inesgotáveis tesouros.

Espera, disse-lhe Tupã, à época em que os homens ocupados somente em lavrar a toda terra para dela tirar os frutos necessários à vida não ponham mais olhos cobiçosos em teu tesouros, e em que a virtude, a paz e a inocência voltem a habitar entre os mortais. Enquanto não chegam esses tempos, expiarás, o filha rebelde e ingrata, os enormes crimes, que por tua leviandade, os filhos dos homens devorados pela sede do ouro, que imprudentemente ateaste em seu coração, vão perpetrar sobre a terra, ensopando-a de lágrimas e sangue.

II

OS JARDINS DE TUPÃ

Do vale de S. Paulo de Piratininga, habitado outrora pela famosa tribo dos tibiriçás, partiram a maior e mais notável parte das bandeiras ou expedições exploradoras, que nos fins do século XVII e até o meado do XVIII se internaram pelos sertões de Minas, Goiás e Mato-Grosso com o fim de explorar essas regiões desconhecidas, submeter e escravizar as tribos indígenas, e principalmente para descobrir as minas de ouro e pedras preciosas, sobre as quais se contavam cousas estupendas e fabulosas.

Os Paulistas foram pois os mais encarniçados inimigos da Fada de Ouro, os mais incansáveis e porfiados em descobrir os cofres ocultos, em que ela procurava esconder seus maravilhosos tesouros. A descoberta do Eldorado era o sonho ardente desses audazes aventureiros, que por sertões inóspitos cruzavam toda a extensão da América portuguesa em demanda do ouro, expondo-se a toda sorte de azares, e afrontando fadigas e perigos incríveis. Entre os nomes desses denodados sertanejos avultam em primeiro plano os de Bartolomeu Bueno e seus filhos, cujas viagens e assombrosos trabalhos sem dúvida são bem conhecidos dos leitores. Um dos filhos de Bartolomeu Bueno foi encarregado pelo governador da Capitania de S. Vicente, Rodrigo Cezar de Menezes, de explorar e formar estabelecimentos no território de Goiás, onde o pai de Bueno já tinha achado indícios e provas de imensas riquezas minerais. A testa de um destacamento de cerca de duzentas pessoas, Bueno penetrou por aqueles sertões, cuja fama de riqueza aurífera trazia enlevadas todas as imaginações. Dizia-se que pelas regiões banhadas pelo rio Caiapó era tão espantosa a abundância de ouro que para colhê-lo não seria preciso mais lavar as aveias dos rios, nem quebrar o granito das montanhas; via-se distintamente o ouro em grossas barras cintilantes no sol no veio dos rios cristalinos; não seria mais com bateias e almocafres que seria extraído; mas com alavancas e talhadeiras seria arrancado ou cortado aos pedaços, como pedras, que se tiram das pedreiras. A proporção destas se assoalhavam-se outras tais e quejandas maravilhas, que excitavam de mais em mais a imaginação e a cobiça daqueles infatigáveis exploradores.

Três anos o denodado paulista andou entranhado pelas matas e chapadões sem termo daquelas regiões só povoadas de feras e gentios. Enfim vendo baldados todos os seus trabalhos e pesquisas, e tendo perdido quase toda a sua gente por enfermidades e desastres inseparáveis de uma tal empresa, resolveu-se a retroceder, e foi somente alguns anos depois que voltou e estabeleceu a primeira colônia em Goiás, para onde foi nomeado capitão-mor. Quando Bueno cansado de viajar resolveu-se voltar, um de seus companheiros, por nome Gaspar Nunes disposto a perecer naqueles sertões, e a não voltar a seu país sem levar ao menos a notícia das minas, que procuravam, decidiu-se a continuar as explorações encetadas. Associaram-se-lhe uns oito ou dez companheiros, dos mais resolutos e aventureiros. Separaram-se de Bueno, que em vão tentou dissuadi-los de tão louca empresa, e seguiram rumo do Norte.

Levavam por armas somente uma faca de mato, uma azagaia, e um arco e flechas, que lhes servia para matar a caça para seu sustento, e substituía-lhes as escopetas, que tinham abandonado como carga inútil, pois não podiam achar naqueles desertos munição para elas.

Assim se foram desprovidos de quase tudo, munido somente de audácia e resolução. Atravessaram sertões imensos, transpuseram cordilheiras, passaram rios caudalosos sem nada encontrar que pudesse compensar um dia só dos rudes trabalhos e privações, por que iam passando.

Já quase esmorecidos e arrependidos de sua louca tentativa, quando um dia avistaram uma índia, que à beira de um capão embalava à sombra um menino doente e uma maçã de palha de buriti. A índia trazia braceletes e outros ornatos de ouro. Foi um achado, que encheu de alegria os nossos aventureiros.

Chegaram-se a ela; assustou-se, tomou o menino nos braços, e quis correr; mas eles, que em suas longas excursões pelos sertões tinham aprendido alguma cousa da língua dos Tupis, tranquilizaram-na, e a resolveram a não fugir. Gaspar, que era algum tempo curandeiro, preparou e aplicou alguns remédios do mato, com os quais a criança começou a ter melhoras.

A índia agradecida tornou-se sumamente dócil, e contou-lhes que os de sua tribo perseguidos por outra tribo inimiga viram-se obrigados a fugir, e a tinham abandonado ali sozinha por não poderem salvá-la com o filho doente. Tinham querido matar a criança, mas ela opusera-se a isso desesperadamente, e por isso a tinham abandonado.

Os Paulistas perguntavam-lhe onde achava aquele ouro, que trazia nos braços e no pescoço. Quis ela dar-lhe aqueles adornos, mas eles recusaram, e insistiram, para que lhes indicasse o lugar, em que os havia. A índia declarou que não longe daquelas paragens existia um lugar, em que era pasmosa a abundância de ouro, e de pedras preciosas.

Aí, — dizia ela, o cascalho dos rios é de diamantes, e os rochedos das montanhas são de ouro, e o que há de mais extraordinário ainda, é um grande penedo todo inteiro do mais puro ouro, que existe encima de uma serra, e que alumia tanto, quando o sol lhe bate defronte, como se fosse um outro sol. Mas ai de vós, acrescentava ela com certo ar de terror, — ai de vós, se lá entrardes! lá são os jardins de Tupã, e nenhum mortal ainda lá entrou, que voltasse nem vivo, nem morto.

— Se é assim, — perguntaram-lhe – como se sabe que lá existem todas essas riquezas?

— Avista-se de longe, respondeu a índia; — e alguns já tem entrado lá e apanhado muito ouro e diamantes; mas saem logo; os que ficam lá de noite é que não escapam.

E não se sabe então, quem é que assim acaba com os que lá vão ter? perguntou Gaspar, cuja curiosidade, bem como a de todos os seus companheiros, subia de ponto com as relações da índia.

— Oh! Sim! Sabe-se; sabe-se muito. São os tatus brancos. — Tatus brancos!... que diabo de qualidade de bicho é essa?

Não é bicho, não; é uma casta de gente terrível, que vive debaixo da terra como o tatu durante o dia, e só de noite sai do buraco. São brancos, brancos como o leite destes meus peitos, e numerosos como as formigas, e ai de quem lhes cai nas garras; não deixam ficar nem os ossos. Tupã não quer que ninguém pise nos seus jardins, e pôs lá essa raça maldita para vigiá-los.

E podes nos guiar a esses lugares? Protesto, que havemos de dar cabo dessa corja de tatus brancos, que vos faz tanto medo.

— Eu pôr lá meus pés?! Tupã me defenda; tenho muito medo...

—Não será preciso, nem queremos, que chegues até lá conosco; basta, que vás até certa altura, em que possas mostrar de longe esses sítios; depois irás para onde quiseres.

—lá isso pode ser; mas vós, - pensai bem, - vós ides correr à uma morte certa...

— Não te dê isso cuidado; estamos acostumados a afrontar a morte todos os dias; é nos preciso absolutamente ir lá.

A índia em vão tentou demover os audaciosos Paulistas de seu temerário proposito; movida enfim pelos rogos e instancias dos mesmos à muito custo resolveu-se a ir guiá-los até às proximidades desse sítio tão cheio de maravilhas e perigos.

Os Paulistas com a fantasia exaltada pela pintura, que a índia lhes fizera das assombrosas riquezas dessa região, não cabiam em si de contentes, e davam ao desprezo a história dos tatus brancos, de que riam-se a bandeiras despregadas, divertindo-se à custa da credulidade dos pobres índios.

— Bruxarias de bugres! – diziam eles entre si. – Que perigos poderemos nos aí encontrar, que já não tenhamos afrontado por uns medonhos desertos, que temos atravessado! animais bravios, serpentes venenosas, gentios ferozes?... com esses de há muito estamos avezados a nos haver, e não nos faltará astucia e valor para lhes escapar. – Se esta pobre gentia não está zombando de nós, vamos enfim colher o fruto de nossa audácia e de nossos trabalhos; havemos de entrar nos jardins de Tupã, e tocar com a mão no grande sol de ouro, bem que pese os Tatus brancos e ao mesmo Tupã.

Portanto puseram-se a caminho guiados pela índia. Depois de três dias de bom caminhar chegaram à uma eminencia, donde descortinaram um vasto e formosíssimo vale, formando um quadrado quase regular, e encaixado por todos os lados entre serros de pouca elevação.

— É ali! – disse a índia apontando para o vale, mas quase sem olhar para lá. – Ali embaixo as areias dos regatos são de ouro, e o cascalho de diamantes. Amanhã quando o sol levantar-se daquele lado, olhai para acolá (e apontava para o poente) e vereis encima daquela serra brilhar uma cousa como um sol defronte de outro sol. Porem cuidado! Lembrai-vos bem do que vos disse da gente, que aí mora; ai de vós, se vos presentem. De noite escondei-vos, e resguardai-vos bem. Agora, adeus! Tupã vos preserve das garras do Tatus brancos. Daqui ao país de meus irmãos não é longe, em breve estarei com eles.

Ditas estas palavras a índia deitou-se a correr para traz. Em vão quiseram detê-la chamando-a em altos gritos; a índia tornava-se surda, e corria a bom correr, até que de todo desapareceu a seus olhos.

Era já sol posto; a perspectiva, que tinham diante dos olhos era das mais belas e magnificas; mas a noite, que começava a descer, não permitia que devidamente a apreciassem.

Os aventureiros assentaram de pernoitar ali mesmo para no dia seguinte descerem a explorar o extenso e formoso vale, que tinham diante de si.

III

OS JARDINS DE TUPÃ

Apenas alvoreceram os primeiros clarões do dia, já os nossos intrépidos aventureiros estavam em pé, e impacientes já como que devoravam com os olhos os imensos tesouros, em cuja posse esperavam entrar daí a pouco sem a menor contestação. Colocados em um cômoro eminente, donde podiam descortinar o vale e toda a sua extensão, presenciaram o mais esplêndido, que é dado a olhos humanos contemplar.

O sol começava a surgir no oriente a direita dos Paulistas, que anelantes de curiosidade e impaciência aguardavam o seu aparecimento. Apenas o seu disco resplandeceu no horizonte, os olhos de todos eles volveram-se como por encanto para o lado do ocidente, e um grito de surpresa e admiração rompeu a um tempo dos lábios de todos eles. Ali um rochedo enorme aprumado sobre a grimpa mais elevada da montanha brilhava como uma lamina de ouro polido, e parecia mesmo, como dissera a índia, um sol, que assomava defronte de outro sol a competir com ele em beleza e resplendor. Este estranho e maravilhoso espetáculo os teve longo tempo em muda contemplação suspensos e absortos de admiração.

Voltados apenas daquele primeiro assombro, estenderam suas vistas pela encantadora paisagem, que se desdobrava à seus pés. Ao norte o vale se prolongava muito ao longe encrespando-se em colinas levemente acidentadas, que se iam perder nas brumas cinzentas dos remotos horizontes. O terreno compreendido entre as serras, que formavam como um cinto de muralhas em torno dele, era dividido em vastas leiras abauladas cobertas da mais esplendida verdura e separadas entre si por uma multidão de ribeiros, que descendo da serra de oeste, se encaminhavam por um leve pendor para o lado oposto a se confundirem em um rio, que lambia as faldas da serra do oriente. Desta também se despenhavam cristalinas espadanas cascatas, que aqui e acolá pelo roto das aguas deixavam ver laminas de ouro cintilando ao sol.

Capões tufados de viço e fresquidão se estendiam pelas orlas dos córregos, como cercas de verdura dividindo em vastos canteiros de relva aqueles deliciosos sítios.

Fartos já de dar pasto aos olhos por esse magnifico panorama, Gaspar e seus companheiros desceram a serra, e como a encosta não era extensa, em breve se acharam enredados pelos viçosos vargedos daquela deliciosa valada, toda entremeada de vergéis, de veigas matizadas de flores, de lezírias extensas, formando um labirinto, em que com dificuldade se orientariam nossos bravos sertanejos, se não fosse a rocha de ouro, que lhes servia de farol, e que pela elevação, em que se achava sempre lhes ficava à vista. A cada vertente, que passavam, a cada córrego, que transpunham, escapava-lhes um grito de surpresa e admiração. Aqui deparavam com um montão de areia de puro ouro acumulado pelas torrentes pluviais; acolá ao passar de um regato seus pés pisavam uma barra de ouro maciço; além era um arroio, cujo álveo estava marchetado de palhetas cintilantes; mais adiante no seio azul de um límpido remanso, os diamantes, os rubins, as safiras rutilavam como as estrelas no fundo do firmamento.

Além dessas maravilhas do reino mineral, também a vegetação era a mais esplendida e opulenta, que se pode imaginar. A mangabeira, o araticum, o cajueiro espalhavam por todas aquelas veigas o suavíssimo cheiro de seus frutos. O maracujá enlaçando pelos arvoredos suas ramas flexíveis formava berços e grutas de verdura da mais amena fresquidão, embalsamadas do aroma de sua flor simbólica e de seus frutos deliciosos. Renques de altos buritis se estendiam ao longo das vertentes como filas de selváticos guerreiros balanceando na fronte seus vistosos cocares.

Aves de mil variadas espécies povoavam essas encantadas solidões, e as enchiam de mil alegres rumores. Manadas de veados pastavam tranquilamente pelos campos sem temer as matilhas do caçador. A lontra e a ariranha de pelo auri-luzente saltava a emborcar-se na água dando caça aos peixes, que em cardumes vagueavam pelo veio cristalino dos córregos alardeando a beleza de suas escamas de ouro e prata, de purpura e azul. Pacas aos bandos retouçavam à beira dos arroios, e mergulhando na água recolhiam-se às tocas conhecidas. O saguim, a irara, o quati e outros animaizinhos inofensivos saltavam e brincavam pelas ramas das árvores. Por toda a parte a natureza ostentava vida, magnificência, esplendor e beleza.

E tudo naquela aprazível solidão se achava intacto e virgem. Nenhum sinal indicava, que jamais ali houvesse penetrado pé humano; nem um ramo quebrado, nem uma relva trilhada, nem uma pedra aluída de seu lugar nativo. Era como um Éden, que acabava de sair das mãos do criador, e que só esperava o Adão e a Eva, que deviam povoá-lo. Mas todas essas louçanias da natureza pouco atraíam as vistas de nossos aventureiros, que deslumbrados pela prodigiosa abundância de ouro e pedrarias quase, que eram cegos e surdos para tudo o mais. — Meus camaradas, — disse um deles, — acho bom que voltemos sobre nossos passos. Já conhecemos, quanto é bastante este sítio, e suas imensas riquezas; já as vimos com os nossos olhos e as tocamos com as nossas mãos. Somos poucos, e tentar avançar mais seria grande temeridade da nossa parte. Em outra ocasião poderemos voltar em maior número e mais bem apercebidos contra qualquer eventualidade. Quem sabe se a índia, que não nos há enganado a respeito da riqueza destes lugares, também nos não disse verdade a respeito dessa nação alva como leite...

— Quem pode acreditar nas bruxarias dessa pobre gentia! – Atalhou um outro. – Como entre nós outros há quem acredite em almas do outro mundo, também essa pobre gente tem suas abusões, de que não devemos fazer caso algum.

— E demos graças a Deus, — acrescentou outro, — por haver entre ele dessas abusões; à elas devemos nós a ventura de achar intactos estes imensos tesouros. Aliás já tudo isto estaria revolvido e estragado.

— Mas, — objetou o primeiro dos interlocutores, — é esta mesma extraordinária abundância de riquezas, que temos diante dos olhos, entre as mãos e debaixo dos pés, que me faz ficar assim temeroso e pensativo. A fé de Paulista, que me parece, que estamos em uma terra de feitiçarias e encantamentos. Quer me parecer, que tamanha riqueza não pode existi senão por milagre de algum magico ou de alguma fada, e que não pode deixar de ser guardada ou por essa nação alva, de que nos falou a bugre, ou por alguma enorme serpente ou dragão de fogo...

— Mal hajam tuas histórias de encantamentos e bruxarias! replicou Gaspar com enfado. Pensar acaso, que com essas bugigangas hás de meter medo a nos os companheiros de Bartolomeu Bueno, que temos corrido quantos azares e afrontado quantos perigos há neste mundo?...

— A fé de Paulista, que não me compreendes, Gaspar, e te zangas debalde, — retrucou o outro. Apareça esse, que já me viu recuar diante de perigo algum, e muito menos procurar desanimar os outros! isto, que eu digo, são abusões cá de minha cabeça; Mas não estorva, que marchemos avante, ainda que nos leve o diabo. Hajam embora tatus brancos ou pretos; serpentes ou dragões de fogo, haja o diabo a quatorze, por minha alma vos juro, não serei eu, quem recue um só passo.

— Sem dúvida, meu bravo companheiro, nem eu digo o contrário; nós, que ainda não tivemos pavor diante de perigo algum visível e palpável, nem diante de inimigos de carne e osso, havemos de recuar diante de fantasmas da meia noite! Recuar agora seria dar um coice na fortuna, que nos abre seus braços. Até agora ainda não encontramos vestígio algum, que denote haver por aqui criatura humana nem branca nem preta, nem cousa alguma, que nos possa inspirar receios. Temos já visto muita cousa; mas ainda não vimos tudo. Seriamos uns poltrões dignos do desprezo e do escárnio de nossos patrícios, se tendo chegado até aqui sem o menor contratempo, por um vão terror deixássemos de ir ver de perto e tocar com as nossas mãos aquela grande maravilha, que lá resplende do lado do ocidente. Avante pois, companheiros! nada de vãos receios! avante!

Estas palavras de Gaspar foram aplaudidas com calor e eletrizaram a companhia. Continuaram pois seu caminho em direção à montanha do Pão de Ouro, como eles a apelidavam, e que sempre lhes ficava em vista por causa de sua elevação, pisando sempre um chão crivado de prodigiosas riquezas minerais, e coberto da mais esplendida e luxuriante vegetação. Ao cabo do dia chegaram à base da montanha, que não era de grande elevação, mas cujas abas eram bastante mente íngremes e alcantiladas, formando a modo que uma muralha, que, como a dos outros lados, servia de cerco e limite à aquele recinto de delicias.

IV

OS TATUS BRANCOS

Chegados ao pé da montanha ao descair do dia, nossos bravos aventureiros trataram logo de explorar qual seria o ponto mais favorável, por onde deveriam procurar galgar ao cimo, em que existia o Pão de Ouro.

Contentíssimos por terem avançado até ali sem o menor contratempo, já não se lembravam dos Tatus brancos, nem dos sinistros avisos da índia, senão para rirem-se com a melhor vontade de tudo isso. Percorrendo as abas da serra toparam uma espécie de furna ou mina à maneira da boca de uma fornalha, que se prolongava horizontalmente pelo amago da montanha até perder-se nas trevas. Esta furna não tinha talvez nem meia altura de um homem, e para nela entrar seria preciso andar de joelhos e mão no chão. Não lhes causou isto grande impressão; pensaram, que seria alguma lapa natural, provavelmente guarida de animais bravios, e continuaram em suas explorações. Mais uma centena de passos adiante depararam outra furna da mesma forma e do mesmo aspecto; mais adiante ainda outra. Começaram a cismar, e analisaram com atenção a boca da furna, não encontraram rasto algum nem de alimária, nem de homem; penetraram por ela a dentro até onde o podiam fazer sem perigo; nada viram, e nem ouviram. Não sabiam o que pensar.

Prosseguiram seu caminho, e mais adiante se encontram outra furna de forma idêntica, e assim por diante outras e outras muitas, o caso tornava-se digno de atenção e próprio para inculcar sérios medos. Os índios da noite, alvos como leite e ferozes como o tigre, vieram à lembrança de todos, e a despeito da incontestável intrepidez e valentia daqueles rudes viajores afeitos a romper por todos os obstáculos e perigos, um sentimento de pavor lhes assaltou o espírito, e fez-lhes tremer o coração. É que tudo que tinham visto naquele dia e naquela região era estranho e extraordinário, e assim já não duvidavam muito, que daquelas gargantas subterrâneas surgissem monstros a devorá-los. A noite, que já vinha descendo, contribuía ainda mais para tornar pavorosa a sua situação.

— Isto não pode ser toca de animais bravios, — disse Gaspar. – Consta a algum de vós, que hajam feras, que tenham seus covis assim dispostos de modo tão regular e uniforme? — Não; nunca vimos, nem ouvimos falar em tal, — foi a resposta de todos.

— Portanto, meus amigos, — continuou Gaspar, — se existem esses Tatus brancos, de que nos falou a índia, aqui nestas furnas deve ser a guarida dessa gente alva, que aborrece o dia, e só de noite sai de suas tocas. Mas não vejo motivo nenhum nisto para nos acobardar, meus bravos amigos. Nós, que temos feito frente a homens, que amam a luz, e não tem receio das trevas, e temos sabido escapar-lhes das garras nenhum receio podemos ter desses imundos filhos das trevas. Eles só de noite aparecem, portanto tratemos de nos pôr a salvo em lugar algum, onde nos não possam ver, mas de onde os possamos espreitar e observar a nosso gosto. Amanhã, depois que se recolherem veremos o que se pode fazer para dar cabo deles.

— Como de dia não saem, e nada podem fazer, — dizia um deles, — o melhor, que se pode fazer, é tapar as bocas das furnas entulhando-as com as maiores pedras, que podermos carregar, assim emparedados, veremos por onde podem escapar-nos.

— Isso não tem proposito, — respondia outro, — e seria muito difícil tapar-se tantas bocas de furna em um só dia. Demais lembremo-nos, que são tatus, e podem furar uma saída por onde bem lhes parecer. O melhor é ajuntar bastante lenha na boca de cada furna, e deitar fogo; assim os sufocaremos e os mataremos todos, como se matam as formigas cabeçudas lá em nossa terra.

A pouca distância das furnas havia um montículo, cuja cima era guarnecida de um grupo dessas arvorezinhas, que costumam formar bosquetes em meio dos campos. Dali podiam avistar as bocas de quase todas as furnas, e era a posição mais favorável, que podiam encontrar para se esconderem e ficarem de espreita.

Para ali pois se dirigirem, ocultaram-se do melhor modo que puderam, e ficaram apercebidos para o que desse e viesse.

A noite caía escura, sem estrelas e sem luar; o céu estava tolhado, e apenas se podia enxergar a mui curta distância. Apenas as trevas tinham acabado de cerrar-se de todo, os nossos heróis começaram a ouvir um rumor confuso e indefinível, que partiu do lado da serra. Eram como uns ecos cavernosos e longínquos, ora como o toque de uma matilha de cães, e gritos de caçadores, que perseguem ao longe um veado ou uma anta no seio de uma gruta profunda; ora murmurava confuso a maneira de grunhir de uma vara de porcos. De súbito aquele alarido se tornou mais intenso e distinto; eram gritos, guinchos, assobios, bramidos, uivos, uma mistura enfim de sons de toda a espécie, que restrugia pela boca das furnas e se expandia pela valada de um modo medonho e atroador. Por mais de uma hora os desgraçados aventureiros estiveram escutando na mais terrível ansiedade aquela estranha vozeira, que de momento a momento mais se avizinhava e aumentava de intensidade. Nada podiam ver, porque era grande a obscuridade da noite; mas pela natureza dos sons logo compreenderam, que eram soltados por gargantas e lábios humanos, e por uma multidão incalculável de pessoas.

Então, — ai deles! Já bem tarde! fugiu-lhes do espírito toda e qualquer dúvida, que ainda pudessem conceber acerca da existência dos tatus brancos; o que julgavam parto extravagante da imaginação supersticiosa dos selvagens, tornava-se medonha realidade. Eram sem dúvida os tatus brancos, que saíam de tropel de suas tocas, e se derramavam em chusma pela campanha, fazendo toda aquela tremenda algazarra, como um bando de meninos ao sair da escola, porém mil vezes mais atroadora e pavorosa. Começavam a compreender, quão desesperada era a sua situação, e arrependeram-se mil vezes de sua louca temeridade; mas era tarde.

Por um momento contudo julgaram-se salvos. Os bandos dos selvagens até então apinhados ao sair das furnas, parecia que se iam espalhando pela campanha; as vozerias diminuíam pouco e pouco, e como que se iam derramando e dissipando ao longe. Alguns grupos apenas pareciam rondar pelas vizinhanças do montículo, em que se achavam nossos aventureiros. Estes, para melhor se esconderem, treparam nas árvores e se ocultaram entre as ramas; mas ai deles!

A lua, que estava em seu primeiro quarto depois de cheia, começou a despontar; o céu se desnublou; e o teatro daquela assombrosa cena foi-se clareando.

Uma multidão inumerável de entes humanos perfeitamente nus e alvos como a neve, espalhados por todos aqueles contornos vagavam em todos os sentidos, e se derramavam pelas campinas. Uns se embrenhavam pelos matos, outros corriam através dos campos com a rapidez da corça, outros trepavam nas árvores com a agilidade do macaco, outros esfuracavam a terra com as unhas como verdadeiros tatus, assim dispersos em desordem se iam afastando da entrada das furnas, com exceção de alguns pequenos ranchos provavelmente velhos e crianças, que se conservaram ao pé delas. Quem tem observado, quando se resolve a terra de um formigueiro, aquela imensa quantidade de ovas brancas carregadas nas costas das formigas, que desaparecem debaixo delas, saindo das células correrem às tontas cruzando-se em todos os sentidos, redemoinharem e esse espalharem aos poucos, terá uma justa imagem se bem que em miniatura, do que eram os tatus brancos ao precipitarem-se tropel fora das tocas e se derramarem pelas campinas.

Atônitos e transidos de pavor os aventureiros Paulistas, aos quais em tais conjunturas de nada podia valer toda sua intrepidez e valentia, observavam aquele estranho espetáculo. Já alguns grupos vagueavam à mui pequena distância do lugar, em que se achavam nossos heróis.

Estes de medo de serem descobertos quase que nem respiravam, e murmuravam tremendo quantas orações e rezas tinham aprendido. Mas estavam bem escondidos, e restava-lhes ainda a esperança, de que os tatus poderiam passar além sem deles darem fé.

Os malditos selvagens porém, além de terem melhor vista de noite do que os linces de dia, parece que tinham um faro tão apurado como os melhores cães de caça.

Uma chusma deles investiu de repente em altos gritos contra o montículo, em que se achavam refugiados os Paulistas. Estes compreenderam logo, que estavam descobertos, e que para eles não havia mais salvação possível. Desceram pois das árvores, rezaram e encomendaram suas almas a Deus, e indignados de morrer às garras daqueles entes abjetos e imundos fizeram proposito de ceifar antes de sucumbir o maior número deles, que pudessem. Os tatus brancos eram de mui pequena estatura, quase anãos, mas ágeis e robustos. Suas armas eram seus próprios dentes e unhas, que as tinham curvas e agudas como os carnívoros, ou paus brutos, que quebravam pelo mato, e as pedras, que encontravam pelo chão.

Um montão deles ficaram logo espichados por terra aos golpes desesperados dos Paulistas, que às vezes de um só gilvaz de suas catanas faziam morder o chão a dois e três. Mas não puderam resistir por muito tempo ao número infinitamente superior de seus agressores.

A maior parte sucumbiram na luta; alguns porem foram garroteados e amarrados pela turba cada vez mais apinhada dos tatus-brancos, e entre esses Gaspar.

Gaspar apertado por uma chusma deles, trepou em cima de um cocuruto ou cupim, que a fortuna lhe deparou, vibrando golpes de espada por todos os lados, os ia matando aos montes com a mesma facilidade, com que os nossos caçadores trepados em um touco de árvore costumam matar uma vara inteira de caitetus, que espumantes e furiosos o atacam por todos os lados. Mas o seu número era demasiado grande; atracaram-se-lhe às pernas, e o fizeram tombar de bruços sobre a pilha de cadáveres, que tinha amontoado em torno de si. Uma bordoada na nuca o atordoou; foi amarrado de pés e mãos, como seus companheiros.

Houve grande altercação e horrível algazarra acompanhada de sanguinolentas vias de facto, por ocasião da distribuição das presas, isto é, dos corpos dos prisioneiros vivos e mortos. A carne humana parece que era para eles finíssima iguaria por isso mesmo que raras vezes podiam obtê-la.

Pelo que era grande a ganancia e grande também a alegria e o entusiasmo pela bela caçada, que acabavam de fazer, posto que tivessem perdido na luta não menos de cinquenta a sessenta companheiros.

No fim de contas, não podendo chegar à acordo algum amigável, os mais atrevidos foram agarrando nos cadáveres e prisioneiros vivos, e sempre em briga uns com os outros às dentadas, unhadas e pontapés, os foram carregando em charola para a boca de suas furnas.

Tocou um Paulista a cada uma das furnas, as quais, ao que parece, eram habitadas cada por uma família ou tribo, ficando outras muitas queixosas e descontentes. A furna porém, a que foi recolhido Gaspar, teve dois corpos, ele e mais um companheiro também vivo, talvez porque pertencia ao chefe ou primaz daquela gente, que de humano apenas tinha a figura.

V

NO INTERIOR DA FURNA

Quem tiver reparado no modo por que as formigas costumam carregar para a cova o misero insetozinho, que teve a desgraça de cair-lhes nas garras, fará uma ideia justa da maneira por que Gaspar e seus companheiros, amarrados com cipós de pés e mãos, carregados cada um por sete, oito e mais selvagens, uns puxando para aqui, outros para acolá, uns pegando, outros largando, uns arrastando, outros empurrando, foram introduzidos aos trambolhões pelas furnas a dentro no meio de uma selvática e imensa grita de triunfo.

Gaspar durante o trajeto com os abalos e empuxões dos condutores, foi voltando a si do atordoamento, que lhe causara a bordoada, que recebera na nuca. Lá dentro a escuridão era completa, impenetrável, e a despeito disso aqueles selvagens, afeitos às trevas, pareciam enxergar, pois moviam-se com toda a presteza sem se abalroarem, e faziam tudo com todo o desembaraço, como se estivessem à luz do meio dia. Inimigos da luz não faziam fugi, e o clima tépido daquelas regiões os dispensava de se aquecerem.

Gaspar pensava ter caído vivo no inferno, e sua pavorosa situação ainda mais cruel se tornava pela lembrança do rico e delicioso vale, que tinha ali tão perto de si, e que ainda a pouco acabava de atravessar com o coração a transbordar de esperanças e o espírito cheio dos mais brilhantes projetos. Atravessar o paraíso para cair de chofre naquele inferno de eterna escuridão! Oh! que era um transe de pungir, de ralar o coração!

Gaspar foi atirado no chão, amarrado como estava como um porco, que se vae sangrar. Pelo tropel e vozeria dos selvagens compreendeu que a furna se dilatava interiormente em um vasto subterrâneo, cuja atmosfera pesada e quente estava carregada de miasmas infectos e nauseabundos. Posto que transido de horror sua curiosidade era grande, e ao menos para disfarçar sua angustia desejava conhecer aquele inferno, onde a sorte o precipitava por modo tão estranho e desapiedado. Esperava que ascendessem algum lume; mas em vão; aquela gente, inimiga da luz do sol, ignorava até o uso do fogo.

Estava pois condenado às perpetuas trevas; estava como no tumulo em vida. O único pensamento, que ainda o consolava, era a esperança de que aqueles selvagens não deixariam em breve de dar-lhe cabo da vida. Uma cena horrorosa, que lhe ferio os ouvidos, ainda mais o veio confirmar naquela ideia.

Por entre o alarido sinistro dos selvagens, Gaspar ouviu um ruído como de pauladas sobre um corpo humano, de ossos que se quebravam a repetidos golpes, e os gemidos de uma vítima nas agonias da morte. – Ai! meu Deus! meu Deus! piedade! – foram as últimas palavras, que saíram dos lábios do padecente, e ecoaram lugubremente pela escuridão infernal daquelas abobadas, Gaspar conheceu voz de um de seus mais queridos camaradas; deu um arranco e um rugido de desespero; ai dele! o que poderia fazer senão esperar também com resignação a sua vez!... Daí a pouco um novo rumor ainda mais estranho chegou-lhe aos ouvidos. Era o de um corpo, que se rasgava, que se esquartejava brutalmente entre as mãos daqueles ferozes selvagens, que se lançavam à preza e a disputavam entre si como um bando de cães esfaimados. Seguiu-se depois o ruído da mastigação, das carnes, que se rasgavam dos ossos, que estalavam entre os dentes caninos daquelas feras humanas, que devoravam quentes e ainda palpitantes os membros da vítima. Quem não os tivesse visto, julgaria estar num antro de lobos ou panteras. Gaspar sentiu o cheiro das entranhas palpitantes e do sangue ainda quente de seu companheiro. Os cabelos se lhe eriçaram, bagas de suor frio rolaram-lhe pela testa, cerrou os olhos em uma vertigem, e teria caído em terra, se já não estivesse amarrado e estendido no chão.

Passados aqueles momentos de turvação, os olhos de Gaspar, já um pouco familiarizados com a espessa escuridão que reinava na furna, começaram a divisar mui confusamente os vultos branquicentos dos selvagens, que se moviam mais perto dele. Um destes se avizinhou, pôs-se de joelhos, debruçou-se sobre ele, tocou-o com as mãos, e esteve como que o contemplando por algum tempo. Gaspar estremeceu.

— É chegada a minha vez! – disse consigo; rezou o ato de contrição, e encomendou sua alma a deus.

Imediatamente um grupo numeroso se acercou dele dando gritos de feroz alegria. Gaspar esperava a cada instante os golpes, que deviam matá-lo, e avançava a cabeça para nela recebê-los a fim de morrer mais depressa. Já os cacetes estavam alçados sobre ele; súbito o índio ou índia, que estava debruçado sobre ele, levanta-se bruscamente, estende os braços sobre o prisioneiro, e suspende os golpes dos selvagens; dirige-lhes depois algumas palavras, antes gritos em tons imperioso, e com um gesto fá-los se retirarem como um bando de urubus, que o cão só com rosnar enxota da carniça, sentou-se depois outra vez junto de Gaspar, tocou-lhe o corpo com as mãos, encostou as faces em suas faces, os lábios em seus lábios, e pousou o seu peito sobre o dele. Gaspar reconheceu, que era uma mulher, e sentiu um horror e um asco irresistível. Essa mulher, que assim o afagava, tinha as mãos e a boca besuntadas do sangue do seu camarada a pouco devorado, o seu hálito tresandava um cheiro infecto e nauseabundo de sangueira. Gaspar sentiu as entranhas se lhe revolverem em ânsias cruéis. Se ele se visse com o pescoço enleados entre as roscas de uma serpente, que com a farpada língua lhe lambesse as faces e os lábios, não sentiria tanto horror e repugnância, como ao ver-se enlaçado nos braços de tão repulsiva criatura.

A índia retirou-se, e um momento depois voltou trazendo uma pele, que estendeu no chão junto a Gaspar; desatou-lhes os cipós das mãos somente, e por gestos o convidou a repousar, e tornou a retirar-se. Daí a momentos tornou a aparecer trazendo-lhe para alimento o que! Santo Deus! o braço de seu camarada esquartejado, ainda quente e fumegante! A tal vista Gaspar soltou um grito de horror, voltou bruscamente o rosto, e o escondeu entre as mãos. A mulher parece que compreendeu sua repugnância, e foi lhe buscar frutos; estes eram sãos e saborosos, colhidos a pouco nos vales próximos aquela espelunca infernal. Gaspar não tinha fome, mas sentia necessidade de alimentar-se; comeu-os, e ao comê-los não pode deixar de exclamar: - Ah! frutas do paraíso, quanto sois deliciosas! mas ai de mim, que sou condenado a comer-vos no inferno! – A índia retirou-se, e não voltou mais essa noite. Gaspar deitou-se na pele e refletiu amargamente sobre seu cruel destino. Já não havia para ele duvida, que aquela mulher, que pelo ascendente, que exercia sobre os outros parecia ser filha, irmã ou talvez mulher do cacique ou chefe daquela gente, se tomara de amores por ele, e a esse facto devia ele o ter-se-lhe poupado da vida. Mas que a vida, meu Deus! e por que preço!

— Descer vivo a escuridão dos túmulos, — pensava Gaspar, — para viver em perpetuas trevas e completa solidão no meio desta corja de monstros repulsivos, que mais parecem um bando de tatus a esfuracarem as sepulturas de um cemitério infecto! e para cumulo de misérias ter de ser ainda o alvo , em que se devem cevar os desejos amorosos de uma harpia repugnante e asquerosa! que sorte mesquinha e amargurada! quanto é preferível o destino desse meu companheiro, que ainda a pouco devoravam! antes minhas carnes, como as dele, já estivessem sendo digeridas por esses estômagos esfaimados! Oh! meu Deus! antes da morte, mil vezes a morte!

E o misero Paulista pedia a morte de todo o seu coração.

Mas refletindo depois melhor e com mais calma, lembrou-se que talvez lhe não seria impossível evadir-se daquele inferno, e que o amor da índia longo de ser um estorvo, poderia proporcionar-lhes os mais favoráveis ensejos a sua fuga, contanto que ele soubesse haver-se com astucia e habilidade. Pensou muito nisso, e por fim resolveu-se a viver e a esperar, e o que era mais penoso seria, a corresponder aos repulsivos afagos de sua abominável amante.

A noite, que para eles era o dia, estava ainda longe de seu termo; portanto os tatus brancos tinham saído todos de novo a correr os campos, ficando apenas alguns rodando a caverna e guardando os prisioneiros. Extenuado pelas fadigas do dia, cansado de emoções violências e de amargas reflexões, Gaspar adormeceu pensando nos meios que empregaria para obter a sua evasão.

VI

Quando Gaspar acordou, as trevas, que reinavam na caverna, já não eram tão espessas, um fraco crepúsculo, que parecia entrar por uma abertura no alto da abobada, permitia avistar-se mais claramente e à alguma distância, como em uma noite não muita escura, mas sem estrelas nem luar. Era o dia, que surgira, não para aquele inferno de perpetuas trevas, mas para o mundo exterior. Todavia a alma de Gaspar expandiu-se algum tanto com aquele escasso clarão, que sempre lhe permitia lobregar alguma cousa em torno de si: rezou a Nossa Senhora dos Aflitos, e esperou.

Os tatus brancos afugentados pela luz do sol, que não podiam suportar, começaram a recolher-se de tropel a seu covil. Depois de terem roído esfaimadamente os restos dos ossos do defunto esquartejado essa noite, e de terem devorado mais algumas alimárias e frutos trazidos do campo, estenderam-se no chão pelos cantos da caverna empilhados uns sobre os outros e começaram a roncar como porcos em ceva. Com o surgir do sol começava para eles a noite; tinham ceado; era bom, que agora dormissem.

Só dois vultos ficaram em pé de vigia a Gaspar, e para se não deixarem furtar do sono, roíam ossos, brincavam e tagarelavam. Meia hora depois apareceu a selvática amante de Gaspar; a um aceno dela os dois vigias se retiraram e sumiram-se nas trevas da espelunca.

Os amores de Kora a heroína, da gentil Paraguaçu, de Atala e da meiga Celuta, e de todas essas formosas filhas das florestas nada tem de comparável com a paixão, que o jovem Paulista mesmo no meio das mais espessa escuridão e sem se falarem, soube inspirar à aquela misteriosa princesa das trevas. Somente não se podia dizer se era bela ou não; porém em compensação, podia-se dizer com literal exatidão, e não por hipérbole como é manha de todos os poetas e romancistas, que ela era alva como jaspe, como neve, ou como casca de ovo.

Romeo ao avistar Julieta no topo da escada furtiva do palácio dos Montecchi não sentiu tão violento abalo, seu coração não palpitou com tanta ânsia, como o de Gaspar ao ver encaminhar-se para ele no meio das sombras da caverna, anelante e com os braços abertos aquele anjo das trevas alvo como ossada sem sepultura. Oh! que sim; mas o sentimento de um, era de prazer e de amor; e o do outro, era de asco e de horror.

Todavia Gaspar resolvido a aproveitar-se do amor da selvagem para procurar um meio de escapar daquele sepulcro infecto, em que estava condenado a viver, tratou de apresentar-lhe a melhor cara possível, e entregou-se com toda a complacência a seus estranhos carinhos, e os retribuiu com a amabilidade, que pode. A liberdade e a luz do céu, de que se achava privado, valiam bem aquele penoso sacrifício.

A ninfa mostrou-se contentíssima, trouxe-lhe frutos, dançou em roda dele, dando gritinhos de prazer e retirou-se. Durante o dia apareceu ainda duas ou três vezes. Quando veio a noite, saiu com seus companheiros, mas ficaram de vigia ao prisioneiro seis ou oito guardas.

Oito dias passou Gaspar naquele estranho e tristíssimo modo de vida, ganhando tempo e contando com impaciência os dias e as horas. Durante esse tempo esmerou-se em tornar-se o mais agradável possível à sua amante, e procurou ganhar-lhe a confiança, mostrando-se satisfeitíssimo com a sua nova sorte, e cada vez mais submisso e amoroso. No fim desse prazo abalançou-se a expressar à sua amante por meio de gestos e sinais o desejo, que tinha de também sair à noite com ela, somente para vê-la sempre ao pé de si, e não ficar por tanto tempo privado de sua companhia; pintou-lhe com mimicas expressivas o seu extremoso amor, e do melhor modo que pôde, deu-lhe a entender, que nunca por motivo nenhum a abandonaria, e que o seu maior gosto seria viver e morrer junto dela. A índia a princípio pareceu hesitar, e ficou pensativa por alguns instantes; mas por fim deu-lhe a entender, que sua súplica seria atendida, e que na seguinte noite lhe seria permitido sair com ela.

De feito assim aconteceu; na seguinte noite Gaspar experimentou o indizível prazer de ver a luz límpida de um céu estrelado, e de respirar a longos tragos o ambiente puro e perfumado daquelas deliciosas solidões, depois de ter jazido por mais de oito dias na escuridão profunda de uma espelunca infecta e asquerosa. Aquela noite límpida e estrelada, posto que sem luar, pareceu-lhe um dia esplêndido, e quase que seus olhos estranharam aquela luz serena, tão afeitos estavam já com as trevas. Em face daquele espetáculo, seus pulmões se encheram de ar vivificante, seu coração se dilatou, e alentou-se de novas esperanças.

Entretanto Gaspar era vigiado de perto por sua amante, que o não deixava um só momento, e por um grupo, que decerto por ordem dela os acompanhava sempre em certa distância. Também Gaspar era matreiro, e não seria tão desasado, que arriscasse logo uma fuga sem probabilidade alguma de sucesso. Ele bem sabia que aquela gente tinha à noite uma espantosa penetração de vista, e o faro e a velocidade dos melhores cães de caça. Portanto foi ele o primeiro, que pressuroso convidou sua companheira a recolher-se à caverna, logo que pressentiu a aproximação do dia.

Assim volveram-se mais alguns dias a Gaspar, o qual para entreter-se e encurtar o tempo, passava-o a observar os estranhos costumes daquela gente, que quase se não distinguia dos brutos, e os trabalhos, em que empregavam suas noites. Apenas saíam das furnas, derramavam-se em grupos pela campanha. Uns internavam-se pelos matos farejando a caça, que perseguiam com incrível celeridade através das mais emaranhadas brenhas, dando uivos e ganidos como uma verdadeira matilha de cães. Outros com a agilidade do quati andavam trepando pelas árvores para colher frutos, ou para surpreender os pássaros e roubar-lhes os ninhos.

Outros percorrendo os campos davam caça às perdizes e codornizes, que colhiam de surpresa em seus esconderijos, ou esfuracavam o chão com as unhas já para arrancar os tatus de seus buracos, já para roubarem o mel às abelhas do chão. Outros esgravatando as fendas dos rochedos andavam à cata de lagartos, cobras, sapos, lagartixas e outros reptis e insetos, que tudo lhes servia de alimento. Assim passavam as noites a caçar o alimento só para aquele dia, pois toda a caça, que apanhavam quase sempre a escorchavam e devoravam no mesmo instante e no mesmo lugar à maneira dos lobos e panteras.

Durante esse tempo Gaspar em suas sortidas noturnas procurou portar-se por tal modo, que desvanecesse toda e qualquer desconfiança, que a índia pudesse nutrir ainda a seu respeito. Assim já ela ousava afastar-se a sós com ele para longe dos outros grupos, e deixava-se ir sem susto para aonde Gaspar a queria conduzir sem serem espionados por ninguém nessas ocasiões, se Gaspar o quisesse, poderia tê-la agarrado e sufocado com as mãos, e escapar para sempre à sua triste escravidão. Mas repugnava à sua consciência e doía ao seu coração nobre e generoso matar tão cruelmente aquela, que fosse porque fosse, tinha sido a sua salvaguarda de sua existência, e embora sem o querer e sem o saber, lhe proporcionava meios de escapar daquele horrível e abominável cativeiro. Demais a empresa não era isenta de perigo; um grito só, que ela soltasse, podia ser ouvido dos seus, e tudo estava perdido; mesmo poderiam dar falta dela, a tempo que aqueles insignes galgos pudessem ir-lhe no encalço e apanhá-lo um meio somente lhe ocorria de libertar-se com segurança e sem fazer grande mal à sua libertadora; para levá-lo a efeito só esperava um ensejo favorável. Este enfim se apresentou.

A noite já ia bastante mente avançada; as tatus brancos fatigados de suas correrias por campos e brenhas, avizinhavam-se pouco e pouco para seus covis. A índia e Gaspar algum tanto afastados dos outros, marchavam pela orla, de um capão ao longo de um delicioso vargedo. Súbito um lindo e veloz animalzinho saltou diante deles, e desapareceu pelo mato. A índia salta após ele pela brenha a dentro; Gaspar a acompanha. Veloz como o gamo ela corre através das balsas emaranhadas; Gaspar a custo a pode seguir de longe; mas ela o chama e espera. Tendo faro de cão como todos de sua raça vae descobrir de novo o bichinho na moita, a que se acolhera. Ei-lo que salta outra vez, e a índia que de novo o persegue pressurosa através das brenhas. Assim se foram pouco e pouco alongando e se entranhando pelo bosque, e a pobre e descuidosa filha da noite nem se lembrava quão longe já andava dos seus. Voltaram sobre seus passos até chegarem ao campo, donde tinham partido. A índia trazia nas mãos o animalejo; mas a coitada quase não podia suster-se de fatiga; Gaspar também a custo podia andar. Ambos sentaram-se oprimidos de cansaço. Gaspar fez que ela reclinasse a cabeça sobre seus joelhos. Ela a princípio relutou, e apontou para o oriente dando a entender o receio, que tinha de que o dia os surpreendesse ali. Gaspar expressou-lhe, que ele não dormiria, e que ainda mesmo que o dia os apanhasse, ele a carregaria nos ombros para o seio de sua caverna. Tranquilizou-se a índia, e daí a instantes adormeceu profundamente sobre os joelhos de Gaspar.

Mais uma hora, e o dia ia luzir. Uma hora só de sono para a pobre indiana, e o sol da vida e da liberdade ia surgir para Gaspar! Imagine-se com que sofreguidão e impaciência ele contava os minutos e os instantes, com que ansiedade voltava de continuo os olhos para o oriente, com que tremor de coração aplicava o ouvido à escuta de alguma voz, de algum rumor, que indicasse a presença dos tatus brancos. Mas o que ninguém pôde imaginar é a viva alegria, com que saudou os primeiros clarões dessa aurora, que vinha arrancá-lo de um tumulo e restituí-lo à luz, à vida e à liberdade! O prazer indizível, que experimentou, quando olhando em roda de si se viu a sós com a índia no meio daquela imensa solidão. Estava salvo!

Quem os visse ali, — aquele par solitário em meio daqueles risinhos e fecundos ermos, ela suavemente adormecida nos joelhos dele, ele embevecido no espetáculo da natureza, que em torno se lhe despertava entre esplendidas galas e rumores harmoniosos, — quem os visse ali, julgaria ver aos fulgores da primeira aurora outro Adão e outra Eva no seio de um novo paraíso.

Somente em dois pontos se acharia diferença; um é que a Eva do Genesis não seria por certo tão alva como esta; outro é que o novo Adão trazia sempre uns calções esfarrapados e os restos de uma capa.

Talvez se pense, que Gaspar poderia escapar deixando a índia adormecida, sem que lhe fosse mister esperar pelo alvorecer do dia. Engano; Gaspar era assaz precavido para compreender, que ela poderia acordar bem depressa, gritar pelos seus, e tudo estaria perdido para sempre. Não assim de dia, porque a luz do sol aqueles desgraçados nada enxergavam, e mal podiam dar passo sem tropeçar e cair.

Quando o sol dardejou seus primeiros raios, Gaspar depositou cuidadosamente sobre a relva a cabeça da índia adormecida; contemplou pela primeira vez à luz do dia aquele corpo, que não era mal feito, porém de alvura tão excessiva, que fazia repugnância; os cabelos eram finos, corredios e de um louro quase branco; porém as unhas curvas e compridas, e os dentes aguçados, que se viam por entre os lábios entre abertos, davam-lhe um ar feroz e repulsivo. Gaspar depois de ter lançado um último olhar de comiseração sobre aquela infeliz selvagem, pôs-se a fugir a bom andar para longe daqueles sítios fatais.

Mal tinha dado uma centena de passos, Gaspar ouviu gritos atrás de si; assustado voltou o rosto. A mísera talvez pelo contato da relva fria na cabeça, tinha acordado, e em pé voltando-se para todos os lados com os braços estendidos dava gritos lastimosos, e estorcia-se uma indizível aflição. Dava alguns passo vacilantes com as mãos estendidas como quem apalpa nas trevas, e logo caía e se estrebuchava no chão arrancando os cabelos em desespero. Gaspar teve pena dela, e quem deixaria de tê-la! Um sentimento de dó e também de gratidão por aquela infeliz criatura, que fora o instrumento de sua salvação, deteve por alguns momentos as plantas do Paulista naquele solo fatal; teve dó da mísera e de todos de sua raça, fadada e tão abjecta e monstruosa condição.

Salvo das garras dos tatus brancos e daquele ignóbil e misérrimo cativeiro, que tinha Gaspar diante de si?... O deserto profundo incomensurável, mil novos trabalhos e obstáculos a superar, mil novas fadigas e azares a afrontar! mas antes isso, do que ser condenado a viver nas trevas entre aqueles monstros, último rebotalho da natureza humana! Antes morrer vendo o céu, a luz, a natureza, do que viver sepultado na perpetua escuridão daquelas horríveis espeluncas.

Não e nosso propósito, e nem poderíamos referir todos os riscos, fadigas, privações e trabalhos, por que teve de passar o nosso herói atravessando sozinho e sem outro recurso mais que a sua audácia, astucia e robustez aqueles vastíssimos e inóspitos sertões até chegar à sua pátria. O certo é que o intrépido aventureiro chegou são e salvo a S. Paulo de Piratininga, onde contou a seus patrícios pasmos e boquiabertos as estranhas aventuras, que acabamos de relatar. Não podemos garantir a veracidade delas, mas asseguramos, que não é invenção nossa, pois ouvimos essa tradição de pessoa mui sensata e autorizada, e que tinha boas razões para dar-lhe inteiro credito.

Fundados na relação de Gaspar, e dirigindo-se por suas indicações, muitas outras bandeiras de Paulistas partiram em diversos tempos para aquelas remotas regiões em demanda daquele novo jardim das Hespérides. Exploraram muitos países desconhecidos, descobriram riquíssimas minas de ouro e diamante, muitos rios caudalosos e vales de riqueza e fertilidade espantosa; mas o verdadeiro vale do Pão de Ouro, esse nunca, nunca mais foi encontrado.

É que decerto a fada mãe do ouro tinha então estabelecido ali os seus palácios e jardins encantados, e lhes pusera por guardas aqueles monstros alvos de figura humana. Vendo porém, que mesmo assim eram descobertos e violados os seus tesouros, assentou de transferi-los para outros sítios em sertões mais profundos e remotos.

B. Guimarães.