Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

“Rosa”, de Atta-Troll (Alberto de Oliveira)


Texto-fonte:

 ATTA-TROLL. . “Rosa”. Diário do Rio de Janeiro, ed. 150, 06 set. 1878, p. 1.

  

Rosa

       Estava sentada à mesa;

Era o almoço. O sol por toda a casa

Miserável, de um teto quase rente,

       Um teto de pobreza,

Entrava como um hálito de brasa,

       Confortável e quente.

Ao muro sujo, velho e esfuminhado,

Suspenso a um prego torto,

C’uma moldura triste havia um quadro

Onde se via um Cristo macerado,

De joelhos no horto.

Um cabide de pinho

Emagrecida saia suspendia

Na brancura do linho;

E a cama, a um lado erguida, aparecia

Com seus lençóis das pulgas respingados,

Sujos e desleixados

Deixando ver-se do colchão grosseiro

A palha descosida.

Era ’inda cedo; e Rosa aborrecida

Num tédio que lhe vinha,

Detestava o aspecto dos manjares;

Espreguiçava os trêmulos olhares,

Deitava o chá, tomava a colherinha,

Ia-o bebendo aos goles

Mirando a porcelana e as franjas moles

Da toalha de linho

Tinha em frente num prato um pão tostado,

Um copo de cristal embaciado

Com dois dedos de vinho;

E dos sol a luz meiga,

C’um largo tom de gema derramada,

Derretia-se um jato de manteiga

Ao fundo de uma xícara quebrada.

Rosa era alta, morena, triste, esguia,

De uma cor doentia

Como a cor de uma santa;

Trazia um chale manta

Que escondia a magreza de seu peito.

O cabelo desfeito,

Muito liso, corrido,

Lustroso, abandonado,

Com as pontas de um castanho desmaiado,

Punha-lhe um rasto d’óleo no vestido,

Estava muito triste, muito vaga

Pensando nele; via-o sobre a cama,

Na sua dor eterna,

Gemendo noite  e dia de uma chaga

Que lhe alastrava quase toda a perna.

Ele era rude e forte;

Era quem dava o pão; quando à noitinha

Suado, arfando, do trabalho vinha,

Atlético, robusto,

Como o achava belo! E agora a morte

- A morte - esse assassino

Lh’o roubara! De certo Deus é injusto

Ou é cego o destino;

Depois, doente ali, quando chegava

Pra curar-lhe a ferida,

Ele tão bom à sua voz amada

Se reclinava um pouco na almofada

E lhe estendia a perna dolorida.

E quando ele morreu! na noite quando,

Lhe ardendo aquele inferno, desvairado,

Ele pediu chorando

Que ali mesmo deitasse-se ao seu lado,

E morreu-lhe nos braços! E já havia

Quase um mês que ele fora! Então doentia

Levava assim sem ânimo, abatida,

Aquela inútil, desolada vida!

Também ela sentia

Não lhe sobreviver por muito espaço!

E como cheia d’íntimo cansaço

Lançava os olhos p’ra as janelas toscas

Onde num vidro baço,

Um inseto zumbia

Tonto da luz do sol, que ressequia

O excremento das moscas.

Vinham de fora os cantos do trabalho,

A rua alvoroçava-se. Distante

Se espalhava no ar calmo e vibrante

O retinir metálico de um malho;

E aquele som plangente,

Contínuo, repetido,

Se abria como um cântico dorido

No grande dia embalsamado e quente.

Despertando do espasmo sonolento,

Deixando a mesa aborrecida e fia,

Rita [sic] por um momento,

Com uma ponta de febre,

Pôs-se à janela e foi olhar o dia.

Na rua cheia, alegre,

Cruzavam-se operários mal vestidos

Indo ao trabalho. As pedras das calçadas

Coloridas do sol; e risos francos

Vinham no ar perdidos

Dos botequins, das vendas arejadas.

Uma poeira d’ouro circundava

A torre de uma igreja. À luz vibrante

Brilhava a cal dos grandes muros brancos.

       De volta do Mercado

Passavam as francesas romanescas,

Conduzindo num cesto pendurado

Verdes repolhos, hortaliças frescas.

E da casa da frente, suja, informe,

Num cachimbo fumando

Saía o carcamano, pela rua

As pernas aleijando

E curvo ao peso da canastra enorme.

À tarde, envolta no seu véu sombrio,

Procurando remédio

Àquele grande, abafadiço tédio,

Saiu à rua com seu ar doentio.

Ia ver uma amiga. Era distante,

Chegou cansada, arfando,

E olhando muito o número, parando

Bateu leve na porta. Suja, gorda,

C’um ar de quem se acorda,

A voz fina, vibrante,

Abriu-a uma mulher. “Que se mudara;

Que quem morava agora era um estudante

Da Escola Militar.”

De volta à casa

Vencida dos calores,

Tinha na face em brasa

Os tons da febre, as exaltadas cores.

Ia a tarde abafada, larga, ardente,

As calçadas luziam. O ar quente

Tinha como que um vasto anseio rubro;

E pela rua larga desdobrava

O grande sol d’outubro,

O sol que declinava,

Uma toalha de ouro.

De quando em vez ruidoso se escutava

Monótono o rodar lento e cansado

De um tílburi arrastado

Por um cavalo hidrópico e doente

Tresandando a suor, que tropeçava

Partindo os cascos na calçada ardente.

Muito achegada ao muro,

Rosa ao vagar do passo mal seguro

Ia pesando os transes da existência,

Ela era só como um arbusto inválido

Numa planície estranha; e lhe surgia

O aspecto mau, esquálido

Da miséria sombria,

Da miséria sem nome;

O mundo, os precipícios

E a garra adunca desse abutre - a fome -

Que muitas vezes ceva-se nos vícios.

E de uma ideia lúgubre assaltada,

Ansiosa, arquejante,

Alevantou o olhar trêmulo, errante

Cobrindo-o após com o lenço…

Em umas casas baixas, miseráveis,

E recendendo a incenso,

Umas mulheres vis como as cadelas

Que chafurdam nas ruas,

Abjetas, nojentas, quase nuas,

Com os peitos pendurados das janelas,

Riam-se bestialmente, sensuais,

A uma ovação de ditos imorais.

Lívida, então, tremendo,

Aquele quadro horrendo

Afigurou-se-lhe um açougue enorme

Onde a miséria, carniceiro informe,

A miséria tirana

Expõe todos os dias

Postas de carne humana.

E deitou a fugir louca, sem tino,

Vendo no seu destino

A sorte da Lisette

Uma francesa, a amante de um cadete,

Que viúva, pejada, o olhar doentio,

Como a esplêndida boda

Abriu casa no largo do Rocio

E em tendo o filho foi deitá-lo à Roda!

                          ATTA-TROLL