LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Murmúrios e clamores, de Lúcio de Mendonça
Texto-fonte:
Murmúrios e clamores,
Rio de Janeiro: Garnier, 1902.
LUCIO DE MENDONÇA
da Academia Brasileira
____________
Murmurios
e
Clamores
POESIAS COMPLETAS
H. GARNIER, LIVREIRO - EDITOR
71, RUA DO OUVIDOR, 71 | 6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6
RIO DE JANEIRO PARIS
__
1902
NO LIMIAR
Creio firmemente que é a última vez que, como fazedor de versos, compareço ao terrível tribunal da opinião pública; e não venho como reincidente: as culpas, que hoje trago, são antigas, e aqui estou unicamente para pleitear atenuantes. Significa isto, em estilo menos forense, que, se ainda consinto na reedição de versos já publicados, intencionalmente o faço para deles expungir os defeitos mais graves. E desta mesma ordem quantos permanecem! Algumas páginas foram totalmente condenadas e suprimidas desta edição definitiva. Não quero inculcar que valham alguma cousa as que ficaram; mas as outras ainda valiam menos.
Não apaguei as indiscrições dos carmes sentimentais, nem limei as asperezas das estrofes políticas; a umas e outras dará a crítica a devida desculpa, atendendo à idade que as produziu.
À última série publicada, as Canções do Outono, que formam a parte IV deste livro, acrescentei três composições avulsas, só para completar a coleção.
Agora, ao despedir-me para sempre destes sócios da mocidade, agradeço-lhes intimamente, como a bons filhos, as consolações que me deram.
Rio, 26 de julho de 1901.
L. de M.
Chante l’amour à voix basse
Et tout haut la liberté!
V. Hugo.
NÉVOAS MATUTINAS
(1870-1871).
A MINHAS IRMÃS
Não sonho glória;
Escrevi porque a alma tinha cheia.
Álvares de Azevedo.
CARTA PRELIMINAR
Meu caro poeta.
Estou que quer fazer destas linhas o introito do seu livro. Cumpre-me ser breve para não tomar tempo ao leitor. O louvor e a censura fazem-se com poucas palavras. E todavia o ensejo era bom para uma longa dissertação que começasse nas origens da poesia helênica e acabasse nos destinos prováveis da humanidade. Ao poeta daria de coração um away, com duas ou três citações mais, que um estilista deve trazer sempre na algibeira, como o médico o seu estojo, para estes casos de força maior.
O ensejo era bom, porque um livro de versos, e versos de amores, todo cheio de confidências íntimas e pessoais, quando todos vivemos e sentimos em prosa, é caso para reflexões de largo fôlego.
Eu sou mais razoável.
Aperto-lhe primeiramente a mão. Conhecia já há tempo o seu nome, ainda agora nascente, e duas ou três composições avulsas; nada mais. Este seu livro, que daqui a pouco será do público, veio mostrar-me mais amplamente o seu talento, que o tem, bem como os seus defeitos, que não podia deixar de os ter. Defeitos não fazem mal, quando há vontade e poder de os corrigir. A sua idade os explica, e não sei até se os pede; são por assim dizer estranhezas de menina, quase moça; a compostura mulher virá com o tempo.
E para liquidar de uma vez este ponto dos senões, permita-me dizer-lhe que o principal deles é realizar o livro a ideia do título. Chamou-lhe acertadamente Névoas matutinas. Mas por que Névoas? Não as tem a sua idade, que é antes de céu limpo e azul, de entusiasmo, de arrebatamento e de fé. É isso geralmente o que se espera ver num livro de rapaz. Imagina o leitor, e com razão, que, de envolta com algumas perpétuas, virão muitas rosas de boa cor, e acha que estas são raras. Há aqui mais saudades que esperanças, e ainda mais desesperanças que saudades.
É plena primavera, diz o senhor na dedicatória do seu livro; e contudo, o que é que envia à dileta de sua alma? Ide, pálidas folhas peregrinas, exclama logo adiante com suavidade e graça. Não diz por necessidade de compor o verso; mas porque efetivamente é assim; porque nesta sua primavera há mais folhas pálidas que verdes.
A razão, meu caro poeta, não a procure tanto em si, como no tempo; é do tempo esta poesia prematuramente melancólica. Não lhe negarei que há na sua lira uma corda sensivelmente elegíaca, e desde que a há, cumpria tangê-la. O defeito está em torná-la exclusiva. Nisto cede à tendência comum, e quem sabe também se a alguma intimidade intelectual? O estudo constante de alguns poetas talvez influísse na feição geral do seu livro.
Quando o senhor suspira estes belos versos:
À terra morta n’um inverno inteiro
Voltam a primavera e as andorinhas...
E nunca mais vireis, ó crenças minhas,
Nunca mais voltarás, amor primeiro!
nenhuma objecção lhes faço, creio na dor que eles exprimem, acho que são um eco sincero do coração. Mas, quando o senhor chama à sua alma uma ruína[1], já me achará mais incrédulo.
Isto lhe digo eu com conhecimento de causa, porque também eu cedi nas minhas estreias a esse pendor do tempo.
Sentimento, versos cadentes e naturais, ideias poéticas, ainda que pouco variadas, são qualidades que a crítica lhe achará neste livro. Se ela lhe disser, e deve dizer-lho, que a forma nem sempre é correta, e que a linguagem não tem ainda o conveniente alinho, pode responder-lhe que tais senões o estudo se incumbirá de os apagar.
O público vai examinar por si mesmo o livro. Reconhecerá o talento do poeta, a brandura do seu verso (que por isso mesmo se não adapta aos assuntos políticos, de que há algumas estâncias neste livro), e saberá escolher entre estas flores as mais belas, das quais algumas mencionarei, como sejam: Tu, Campesina, A Volta, Galope Infernal.
Se, como eu suponho, for o seu livro recebido com as simpatias e animações que merece, não durma sobre os louros. Não se contente com uma ruidosa nomeada; reaja contra as sugestões complacentes do seu próprio espírito; aplique o seu talento a um estudo continuado e severo; seja enfim o mais austero crítico de si mesmo.
Deste modo conquistará certamente o lugar a que tem pleno direito. Assim o deseja e espera o seu colega
Machado de Assis.
Rio, 24 de janeiro de 1872.
NÉVOAS MATUTINAS
São meus versos uns pobres pensamentos
Que, na manhã da vida, me vieram;
Flores sem viço, que contrários ventos
Desbotaram... de pálidas que eram;
Tristes flores ornando as sepulturas
De uns róseos sonhos, de umas crenças puras!
Minhas trovas, eu sei, não há na terra
Uma alma que vos oiça e que vos queira...
Mas ide voadoras, quais, na serra,
Quando desponta a aurora prazenteira,
— Repelidas e brancas peregrinas —
Vão a fugir as névoas matutinas.
À...
É plena primavera; trinam aves!
É plena mocidade; riem crianças!
Toques de luz na terra, mais suaves,
Luzes n’alma d’esp’rança, mais intensas!
E plena mocidade; a alma encantada
Vai doida pelos céus a revoar!
Vai, perdida falena deslumbrada,
Da glória aos esplendores se ofuscar!
Eu da glória às coroas não aspiro,
Quero a do amor divina ebriedade;
Meus versos mando ao plácido retiro
Onde me ficou presa a liberdade.
A deleitosa estância, em que tu moras,
Dileta de minh'alma, ó doce irmã,
Mando estas trovas. Ide, viajoras:
Há depois do deserto a Canaã!
Ide, pálidas folhas peregrinas!
Á sua casa chegareis; então,
Beijai-lhe as brancas mãos, as mãos divinas,
Alastrai-vos ali por todo o chão.
Rio, 1871.
ESTÂNCIAS A MARIA
Maria! ao nome teu ressurge-me o passado,
Paraíso de amor de sonhos povoado,
Aonde vai do mundo esta alma se abrigar!
Oh! vinde! inebriai-me a cismadora mente,
Horas de tanto amor volvidas docemente,
Brandas noites do lar!
Que sonho era existir! que céu eram teus lábios!
Que poemas no olhar, meu Deus!... a lua sabe-os,
A lua que passava a nos sorrir do céu!..
Agora o esquecimento... oh! não! eu morreria:
Eu vivo do passado!... oh! dize-me, Maria,
Dize que não morreu!
Que delícias, meu Deus!... por noites nebulosas,
As nossas frias mãos cerravam-se amorosas,
Como em férvida prece unidas numa só!
Vinham bênçãos de Deus nos pálidos luares,
E levavam-me ao céu teus lânguidos olhares,
Escada de Jacob!
Que doce poesia!... em torno o vale, os campos
Cravejados de luz de esparsos pirilampos,
Um outro firmamento a nos brilhar aos pés!
Além, vulto disforme, a negra serrania...
E uma luzinha ao longe a rebrilhar tardia
Das névoas através...
Uma vez a brincar — sonâmbula criança —
Me enrolaste na fronte a tua negra trança,
Almejado laurel, que nunca hei de cingir!...
Por ele de minh’alma os sonhos todos dera...
Toda a flor, toda a luz de minha primavera,
Toda a glória por vir!
Lembra-te aquela noite?... as mãos presas nas minhas,
Duas estrelas vendo a rutilar vizinhas,
Á minha uniste a face, e a mais celeste voz
Dos lábios teus manou assim: “Olha as estrelas!
“Vê como tão gentis ali fulgem aquelas...
Amam-se... como nós!”
Oh! sim! bem o disseste; ainda assim, um dia,
Aos pés de nosso Deus, ao lado teu, Maria,
Numa vida sem fim eu hei de estar também!
Este exílio no mundo em breve será findo,
E nosso paraíso espera-nos sorrindo
Dos túmulos além!
Julho de 1870.
ADEUS!
Souviens-toi de ce ciel vu de si près ensemble...
Du jour de la rencontre et da jour de l’adieu!
Lamartine.
Adeus! não mais verei a luz dos olhos teus!
Eu morrerei no exílio... é o derradeiro adeus!
A aurora vem raiando, e, luminosa e pura,
A natureza arranca ao sono em que descansa.
Ai! só para minh’alma é noite, noite escura,
Sem estrelas no céu, sem luzes de esperança!
Porque, meu Deus, ergui-me aos páramos azuis
Para rojar depois da terra nos pauis!
Eu vi tão perto o céu! tão junto estive a Deus!
Eis-me agora no mundo, estranho, visionário,
Espectro da saudade, olhar volvido aos céus,
Pedindo para a chama o gelo do sudário!
Foi tamanha a ventura! aquele amor foi tanto!
Depois voltar do mundo ao frio desencanto!
Porque viver ainda o sonhador desperto?
Manda sorte fatal que, tudo morto, eu viva!
A meus olhos sem fim desdobra-se o deserto...
Eterno padecer! saudade rediviva!
E, há tão pouco ainda, as nossas mãos unidas,
Os olhares casados, almas confundidas,
Falávamos de amor, sonhando o paraíso!
E nos arroubos d’alma, em nosso doce enleio,
Juramentos no olhar, nos lábios o sorriso,
Tu segredavas — amo! — eu respondia — creio! —
Seu manto rutilante a noite desdobrava
Sobre nossas cabeças; fria perpassava
A brisa enamorada ali por tuas tranças,
Que eu beijava amoroso, ouvindo-te falar!
E minh’alma embalada em doces esperanças
Banhava-se na luz de teu celeste olhar!
E sobre tanto amor já sinto que se espalha
De teu esquecimento a gélida mortalha!
Já tudo vai tão longe! eu nada mais conheço...
Nem mais uma esperança alenta os passos meus!
Adeus! sê venturosa!... eu parto! eu enlouqueço!
Adeus! lembra-te sempre! adeus, minh’alma, adeus!
Abril de 1870.
FLOR DA AURORA
E lenda que nasceu nas brumas lá de Minas...
O tempo... longe vai... nem mais me lembra agora...
Quando sobem do monte as névoas matutinas
Nasceu a flor do vale, a branca Flor da aurora.
Flor da aurora não era o nome da menina,
Que vivia feliz à sombra de seus pais;
Chamou-se assim depois da desditosa sina
Que pela estrada a leva em carícias mortais.
Lucília se chamava a loura criancinha,
Por cuja perda ainda o pátrio vale chora.
Que reflexos do céu nos brandos olhos tinha!
Meu Deus! como era linda a branca Flor da aurora!
Amor de pai, não tinha; a mãe vivia ainda
A perdê-la de mimo e cegueiras de amor.
Que barbara lhe foi a pobre filha linda!
Fugiu doida e perdida; a mãe morreu de dor!
Lá voa a matricida; é já mulher sem nome!
Queima a trêmula boca em beijo que devora!
O rápido corcel o chão ardente come...
Ai triste flor do vale! ai pobre Flor da aurora!
Já vão longe, bem longe! as broncas serranias
Eriçam rudemente os cimos para o ar!
Sopram brisas d'inverno aspérrimas e frias,
Range a floresta ao vento em torvo blasfemar!
Passa a noite, o sol vem... a mal-aventurada
Tem a face desfeita e de medo descora.
Procura em torno o amante, o vê-se abandonada!...
Ai triste flor do vale! ai pobre Flor da aurora!
... Parou... tremeu convulsa a desmaiada boca!...
Tremeu... cravou nos céus o desvairado olhar...
Correu depois a rir, a rir... estava louca!...
B foi pela floresta a rir, a gargalhar!
Viajor da manhã, que assim te vais sozinho,
Dá rédeas ao corcel, embebe aguda espora!
Viajor! viajor! demanda outro caminho...
Senão, tem de matar-te a branca Flor da aurora!
Pena e arde a infeliz em lúbricos desejos...
Ao seio o viandante aperta com furor...
Exaurem força e vida aqueles torpes beijos!
Dá rédeas ao corcel! — ao largo, viajor!
DITIRAMBO
Covardes, que chorais, bebei comigo
A Baco, o generoso e bom amigo,
O jubiloso rei!
Ondas de vinho a cintilar fecundas
Trocai por essas lágrimas imundas...
Eia, imbecis! bebei!
Chorais perdidos beijos de devassas?...
Tendes nas bocas rubras destas taças
Mil beijos mais leais!
A taça, a dedicada companheira,
Que vos dá num afago a alma inteira,
Que em beijos lhe esgotais,
Depois de cada amor fica vazia,
Corpo sem alma, ou alma sem poesia,
Imagem da mulher!
E, se a rejeita vossa mão já langue,
Ela entesoura lágrimas do sangue
No seio, que vos quer!
Chorais saudade amarga? o esquecimento
Bebe-se aqui; o coração sedento
Aqui o saciais!
Orgia, miseráveis I dentro em pouco,
Há de rir-vos na mente um mundo louco,
Covardes, que chorais!
Desesperardes? não: embriagai-vos!
Há nas fezes das taças doces laivos,
Laivos quase do céu!
Ao ébrio o coração já não estua;
Não vê mais os horrores da alma nua:
A embriaguez é um véu!
Eia, filha de Baco, Orgia ardente!
Aplaca-me este sangue impaciente!
Queima-me o coração!
Queima-o fibra por fibra, o mau faminto,
Até que no meu peito caia extinto,
Resfriado vulcão!
Rio, 1871
CONSUMMATUM EST!
Silêncio! é tudo morto!... a paz dos túmulos
Esta alma desvairada amortalhou,
Que de sonhos do céu andava ébria...
Silêncio! é tudo morto, e morto sou!
Há muito fel nas fezes do suplício!
Passa-se o inferno para entrar o céu!
Ainda aqui persegue-me a memória,
O fantasma de tudo que morreu!
Que mais queres, passado? as minhas lágrimas
De fel, de sangue, todas não te dei?
Deixai o que é já morto, sombras! Ide-vos:
Relembrais uma história que bem sei!
Deixai fechadas essas tristes páginas,
Que já minh’alma tanta vez releu!...
Minh'alma, que se vai, sozinha, mísera,
Fumo do vale, que não chega ao céu!
Não te maldigo, não, imagem pálida
De meus sonhos de amor, anjo e mulher!
Inda teu nome gemerão meus lábios
Quando o frio da morte lhes vier!
Como eu te amava! nos teus olhos úmidos
Bebia a crença, a vida, os sonhos meus!
Meu céu era onde estavas! minha glória
Era um sorriso desses lábios teus!
Era por ti que, à noite, na vigília,
Eu suplicava ao céu a inspiração...
Para trocar as pálidas auréolas
Pelas coroas que teus olhos dão!
Quando a lua nos páramos etéreos
Ia a correr, sonâmbula do ar,
Eu lhe dizia: “Teus olhares lânguidos
Não são tão meigos como o seu olhar!
“Tu alumias a montanha, a várzea,
O campo, o lago, o mar soluçador;
Mas seus olhos, fulgindo brandos, trêmulos,
Iluminam minh’alma, que é maior!”
…............................................................
Que tristíssima noite muda e rápida
Me foi a derradeira no teu lar!...
Ia o sol do outro dia, arcanjo bíblico,
Daquele paraíso me expulsar!
Alma, não quebres a mudez dos túmulos!
Tudo morreu, minh’alma! dorme em paz!
Não mais volteis, imagens saudosíssimas!
Passado, ó meu passado, nunca mais!
1870.
ÚLTIMO ADEUS!
Adeus! o Desalento abre-me os braços,
A seus sombrios reinos me transporta!
Adeus! a última esperança é morta...
Na eternidade soam já meus passos!
A terra abre-me aos pés a escura porta!
Mortalha imensa vejo nos espaços!
Já se partindo vão terrenos laços...
E um doido de menos... ah! que importa?
O corpo — ao verme, o nome — ao esquecimento!
Onde, onde minh’alma, Senhor Deus?!...
Vacila-me assombrado o pensamento!
Adeus, ó bem amados lares meus!
Adeus, celestes crenças de um momento!
Sonhos, sonhos de amor, adeus! adeus!
Barra do Rio de Janeiro, 1871.
A VOLTA
Ó tu, primeiro sonho que encantaste
As minhas pobres noites de poeta,
Mais saudosa visão do meu passado,
Do futuro esperança mais dileta!
Eu volto para junto de teus olhos,
Para junto de tudo que adorei!
Trago somente lágrimas de pena...
Perdoa-me!... não vês como voltei?...
Não me odeies; eu sou tão desgraçado!
Deixa-me contemplar-te, ó anjo, deixa!
Nunca mais ouvirás de minha boca
Nenhum desejo mais, nenhuma queixa!
Eu juro... sim! eu juro que p’ra sempre
Esqueci-me daquele amor tão louco!...
Era mesmo ousar muito, eu me arrependo,
E hoje só te peço muito pouco...
Deixa que eu imagine, a contemplar-te,
O que podia ser a f'licidade!...
Não me repilas, não... eu só te peço,
P’ra ser feliz, um pouco de amizade.
Isso não custa muito; é uma esmola
Que a todos se reparte; mas é vida
Para esta alma, que tu conheces tanto,
E que te abençoaria agradecida!
Eu sei que tu consentes: eu me lembro
Como eras boa e terna, minha amiga.
Pois bem! tu me terás, fiel escravo,
Cão fiel, que te adore e que te siga?
Bem vês, aquele orgulho d’outros tempos,
Aquele aspirar tanto, já morreu...
Ao pobre sonhador abandonado,
Só lhe resta o orgulho de ser teu!
De ser teu para sempre, e só lhe basta
Um sorriso, um olhar, por distração...
Tu não sabes, talvez, que terra fértil
E de um pobre poeta o coração!...
Cai um sorriso nele e se transforma
Num raio luminoso de esperança...
Cada olhar lhe parece um juramento,
Gera cada palavra uma lembrança!
Custa bem pouco assim a flicidade!
Eu volto para o lar do meu passado,
E calmo viverá na paz da sombra
Meu pobre coração já calcinado!
S. Paulo, 1871.
ÚLTIMA SÚPLICA
Mon espérance à moi, mon Dieu, c’est ma mémoire
Lamartine.
I
Era um sonho encantado, um doido sonho imenso,
O céu à terra preso, — o sonho de Jacó
Qual eras tu, mulher!... ai Deus! porque inda penso?
Morreu tudo! morreu!... vive a saudade só!
Salve, saudade! salve, ó alma do passado!
Esposa do infeliz, celestial conforto!
No exílio acalentaste a Adão amargurado...
Feliz! que via n’alma o paraíso morto!
Santas recordações, no mundo a sós estamos!
Minh’alma só vos quer; sois tudo que ela tem!
Vinde! da árvore seca aos despojados ramos
Vão as aves do vale a gorjear também.
Busquei-vos, dias meus, de luz do céu sedento,
E não moráveis mais no santo lar antigo!...
Havia-o devastado o inverno — esquecimento...
Dias meus, revivei... para morrer comigo!
Voltei a ver o lar... o lar tinha esquecido!
Nem eram já de amor aquelas estações!
Assim tudo morreu! assim tudo é perdido!
Somos demais na terra, ó minhas ilusões!
II
Je n'avais ici-bas conservé qu'une image...
Ne la ternis pas dans mon coeur!
Lamartine.
Como roja tão baixo pelo mundo
Quem tanta vez ao céu arrebatou-me!
E se deturpa no jurar mentido
O lábio puro em que viveu meu nome!
O tão amada nunca! para amá-la
Roubei a Deus amor e adoração!
Via tudo a meus pés — o céu e o mundo,
No delírio daquela perdição!
Tudo tu me mataste — sonhos, crenças,
Esperanças e provir e f'licidade...
Deixa-me pura, ao menos, a lembrança,
Não me mates também esta saudade.
Março de 1871.
MEIA HISTÓRIA
I
“Alvo ninho de amor, bendita estância,
Quanto calor de afeto há no teu seio!
Vai-se mudando em mocidade a infância...
E nem sinto viver, no doce enleio!
Dizem que em torno deste paraíso
Existe um mundo que padece e chora,
Onde não há sem lágrima um sorriso!...
Graças, graças, meu Deus, pela ignorância!
Eu só conheço a ti, visão da aurora,
Alvo ninho de amor, bendita estância!
“Como é bela a mulher de meus amores!
E que santos amores que nós temos!
Vê-nos a tarde juntos, sonhadores
Que em sublime sonhar nos esquecemos!...
E vem a noite e a lua peregrina...
Que harmonia do céu aqui ressoa!...
Cai-lhe dos lábios uma voz divina
As crenças minhas, como orvalho a flores!
Como o lar de segredos se povoa!
Como é bela a mulher de meus amores!
“No lar abençoado, em que ela mora,
Tudo vive, sorri, palpita e ama!...
Porque um olhar de Deus a cada hora
Celeste f'licidade ali derrama!
Descem anjos do céu a enamorá-la...
Porque um sorriso dela tudo encanta!
Porque os anjos entendem sua fala!
Meu Deus! minh’alma, em vez do céu, te implora
A vida eterna aqui, na casa santa,
No lar abençoado em que ela mora!”
II
Eu passo ao longe... além, vulto indeciso,
Entre o fumo e a névoa mal diviso
O lar que ela habitou!
Foi lá... que bem lembra!... inda há bem pouco,
Houve lá um amor imenso, louco...
Mas foi um só que amou!
E amava muito, o triste! e mais não tinha
Do que esse único amor na alma mesquinha,
Que inteira consumiu!
Mas foi um só que amou... e o sol, um dia,
Não mais juntos os viu, como antes via;
Mas só, nem triste, a viu!
Ele partiu.... levava o desalento...
Ninguém lhe ouviu nem queixa, nem lamento...
Foi muda a imensa dor!
Ela bem cedo se esqueceu da criança...
E ninguém, nem o lar, guardou lembrança
Daquele pobre amor!
GALOPE INFERNAL
Away! Away!
Byron. — Mazeppa.
“Sopram ventos gelados de inverno,
Fria névoa no espaço desceu...
Trago n’alma as angústias do inferno,
Torva chama, que amor acendeu!
Não resvala por entre o granizo
Nem um raio do sol... nem também
Há nesta alma gelada um sorriso...
Eia, além, meu corcel! eia, além!
“Tudo está pela bruma encoberto...
Mas que importa? também meu futuro
É assim um medonho deserto,
É assim um oceano de escuro!
Já sufocam-me os duros tormentos,
Já lembranças malditas me vêm...
Eia, além, abracemos os ventos!
Eia, além, meu corcel! eia, além!
“Vejo um vale... no ar se enovela
Pardo fumo, que sobe de um teto...
Que mistérios aquilo revela!
Que sonhados carinhos de afeto!
Há lá dentro... quem sabe?... nest'hora
Tantos sonhos, que eu tive também!...
Foge, doido! que mais te demora?!...
Eia, além, meu corcel! eia, além!
“Teu galope nas brenhas ressoa;
A teus pés o caminho estremece;
A avezinha medrosa já voa,
Mesmo a névoa, a nos ver, se esvaece!
Tudo assim, meu corcel, nos evita...
Ai daquele que afetos não tem!
Oh! cumpramos a sina maldita!
Eia, além, meu corcel! eia, além!
“Desce noite de inverno gelada,
E ninguém, meu corcel, nos abriga!
Na carreira infernal, desvairada,
O tufão minhas faces fustiga!
Neste insano correr nos matamos...
E não chora, e não sente ninguém!
Oh! corramos! p’ra sempre corramos!
Eia, além, meu corcel! eia, além!”
E lá vão cavaleiro e cavalo
Na carreira satânica e louca!
Ai do triste! que já p’ra tragá-lo
Dum abismo escancara-se a boca!
Mas a febre daquele tormento
Não morreu neste mundo também...
Que sua alma galopa no vento...
“Eia, além, meu corcel! eia, além!”
1871.
À MORTE DE CASTRO ALVES
Salve no marco extremo o laureado atleta!
Homem, venceste enfim! chegaste enfim, poeta!
Foi áspero o deserto, é branda a Canaã.
Deixaste-nos, a nós, e vives no universo,
Porque para o imortal a sepultura é berço,
E a morte manhã!
Mais belo ainda assomaste ao panteão — memória.
Na fronte aureolada há mais fulgir de glória
Depois que a branca Morte a boca aí colou.
Há mais suave unção nos lábios inspirados,
Cintila mais o olhar nos olhos desvairados,
Que o gênio eletrizou!
Eis-te na pátria enfim, ó pálido proscrito!
Ó alma de poeta, embala-te o infinito!
O lodo abriu o seio ao lodo que caiu;
Mas deslumbra-se a mente, e a mente se ilumina...
Um imortal ergueu-se, uma visão divina
Esplêndida fulgiu!
Não te choramos, não! erguemos-te um hosana,
Ó remido cativo, ó alma soberana,
Que o mundo agrilhoava e o céu arrebatou!
Sacia-te de luz nos páramos empíreos!
Doideja no infinito, arrouba-te em delírios,
Ó brasileiro Hugo!
Desvelada vestal, musa de toda a idade,
A turba entusiasta, a ardente mocidade
Há de falar de ti às muitas gerações!
Espumas nos lançaste, ó homem-oceano,
Que, doiradas à luz de um gênio sobre-humano,
Foram constelações!
Abrasava-te a fronte a mais sublime ideia!...
Ao clarão do porvir, gravaste uma epopeia
As vítimas dos reis, do despotismo atroz.
A este pobre povo, idólatra e cativo,
Sangrentas as mostraste... e ouvimos Pedro Ivo
Falar por tua voz!
Moço, poeta e livre! oh! salve, glorioso!
Há de eterno viver teu nome luminoso...
Para o lavar da terra os séculos são vãos!
Recebe o nosso adeus até à eternidade!
Ouve ainda uma vez, é a voz da mocidade,
É o ”salve!” dos irmãos!
S. Paulo, 18 do julho de 1871.
AO ERMO!
Quero paz, quero harmonias,
Liberdade, inspiração,
Que a poeira das cidades
Me atrofia o coração.
Varela.
Lira minha, que a musa dos amores
Tangia nos delírios, sonhadora,
Que outrora ressoavas em louvores
Aos divinos encantos da traidora;
Lira minha leal, que de meus olhos
Bebeste tanta lágrima de fel,
Que mudavas em flores meus abrolhos,
Meu padecer, em cantos à infiel
Lira tangida na soidão do ermo,
Companheira das noites sem dormir,
Bálsamo nobre de meu peito enfermo,
Derradeira esperança do porvir!...
Vamos, bem longe destes céus escuros,
Onde mais livre pulse o coração!
Vamos, lira! terás os beijos puros
Das libérrimas auras do sertão!
Vamos onde não há perjuras bocas!
Vamos lá onde tudo é livre e grande!
Onde no céu as nuvens são mais loucas
E as asas negras o condor expande!
Fujamos deste pântano — cidade,
Dos tripúdios da torpe saturnal!
Abrigai-nos na vossa imensidade,
Virgens florestas do país natal!
CAMPESINA
Morena filha do ensombrado vale,
Vem nos meus olhos embeber teus olhos,
Teus olhos cor do céu!
Já desce fria névoa pelos montes.
Já lá na extrema do horizonte rubro,
Rubro o sol se escondeu.
Modula o sabiá saudosos trenos,
Oculto na folhagem,
Na folhagem das selvas verde-negras
Vogam no rio plácidas canoas;
As saracuras cantam nas lagoas,
Nas lagoas da vargem.
Vem, morena gentil; meu peito frio
Anseia por teus braços.
Aquece minhas mãos em teus cabelos,
Meus lábios nos teus lábios; sim! Amemos,
Enquanto nos espaços
Ascendem-se as estrelas rutilantes.
E nós repetiremos
Muitas juras de amor, em mil abraços!
Quero em teu seio repousar a fronte,
Que pálida se inclina;
Quero beber a inspiração divina
Nuns lábios de mulher,
Nuns olhos amorosos,
Que entornem luz nas trevas de meu peito,
Na minha mente sonhos deleitosos!
Então, meu Deus, então
Como hei de amar a tarde que enrubesce
E a festiva manhã! e quanta prece
Ardente se erguerá do coração,
Das redivivas crenças!
E que ideias imensas
De novo pelo cérebro voarão!
E, recordando as lendas do passado,
Idos sonhos e mortas esperanças,
Hei de rir-me, talvez!
E, se ainda uma lágrima restasse
Para, rolando quente pela face,
Chorar ainda uma vez
Aqueles doces dias sedutores,
Eu a limpara, rindo, nos cabelos,
Nos úmidos cabelos
Da morena gentil de meus amores!
PRIMEIRO AMOR
Era na primavera; docemente
Deslizava a existência, qual canoa
Que resvala nas águas indolente,
Nas azuladas águas da lagoa.
Era na aurora meiga da existência;
Sorria em cada sonho uma esperança...
Era uma alma iludida, alma de criança,
Face de lago em plácida dormência.
Nuvem a resvalar no firmamento,
No futuro minh'alma divagava;
Transbordava de sonhos no momento
Em que nuns olhos se prendeu escrava!
Era eterno sorriso a natureza,
Azulavam-se os mares em bonança,
Que falavam de amor e de esperança
Esses olhos de mádida beleza!
Primeiro amor! abençoada aurora
Que uma só vez as almas iluminas!
Ai! só nos resta, se te vais embora,
O lúgubre silêncio das ruínas!
Por ti, mulher, o mundo me encantava
Em sorrisos de eterna primavera!
Astro, nem sabes tu quanta quimera
À tua luz divina germinava!
Tu foste a promissora luz de Hero,
Que ao longe me acenaste com a ventura;
Lutei com o mar em doido desespero,
Nas vagas me cavei a sepultura!
Foram fanal teus olhos sedutores;
Foi o mundo entre nós o mar de escolhos;
Lutei, porque brilhavam-me teus olhos,
Porque sonhava, além, os teus amores!
Ai meu primeiro amor! porque nasceste
Naqueles falsos olhos adorados?...
Minha aurora, em mau céu amanheceste!
Amor! os dias teus eram contados!
A terra morta num inverno inteiro
Voltam a primavera e as andorinhas...
E nunca mais vireis, ó crenças minhas,
Nunca mais voltarás, amor primeiro!
AMOR DE CRIANÇA
Era amor de criança...
E que puro amor não era!
Não tem a terra mais flores,
Na donosa primavera,
Do que esperanças eu tive
Nesse amor que já não vive!
Era uma sombra bendita,
A que esta alma adormecia,
Velada por mil anjinhos...
Nem nos céus a noite fria
Põe mais astros do que sonhos
Me acalentavam risonhos!
Ela era um anjo caído
Lá da morada de Deus...
Inda por isso trazia
Nos olhos a cor dos céus...
E quem podia escutá-la
Dos anjos ouvia a fala!
As flores falavam dela
Nas conversas do jardim,
E por ela as borboletas
Tinham ciúmes de mim;
E eu vivia de esperança
Nesse meu amor de criança.
Ela beijava-me a fronte
E com os olhos me afagava
E com as brancas mãos de neve
E eu, em troca, lhe dava
O que só as crianças dão:
— As flores do coração.
Mas era tudo no mundo
Onde não dura a esperança,
E o mundo em breve levou-me
Esse meu amor de criança...
E nunca mais sonharei
Os sonhos que então sonhei!
ÂNGELA
Quando Ângela nasceu, no vale umbroso
Onde a casa paterna se escondia,
O rio murmurou mais sonoroso,
As aves concertaram na harmonia;
Houve canções do vento na palmeira;
A veiga de perfumes rescendeu;
Teve um sorriso a natureza inteira,
Quando Ângela nasceu.
Quando Ângela viveu, em torno dela
O mundo em paraíso transformou-se.
Ao passar-lhe por frente da janela,
Enternecia o vento a voz tão doce!
Foi mais rútilo o sol e mais fecundo
Mais amorosa a lua enlanguesceu...
Como que Deus esteve só no mundo,
Quando Ângela viveu.
Quando Ângela morreu, quando ao degredo
Se resgatou dos anjos a irmã presa,
Os ventos soluçaram no arvoredo,
Os sabiás gemeram na devesa;
O rio teve lágrimas de espuma;
A luz vívida o sol amorteceu,
E amortalhou-se o vale em densa bruma,
Quando Ângela morreu.
TU
Tu és um céu azul de primavera,
Das nuvens brancas nítido passeio...
Céu azul, ai! quem me dera,
Andorinha, perder-me no teu seio!
Tu és pálida lua viajora
Pelo céu estrelado, em noite fria...
Lua pálida, se eu fora
Branca névoa, contigo fugiria!
Tu és de Deus o anjo mais querido,
O mais formoso e puro, o mais perfeito...
Anjo, ai! se eu houvera sido
Nuvem doirada, a te servir de leito!
Tu és a flor mais linda que enrubesce
Nos terrenos jardins... Em mole adejo,
Flor mais linda, ai! se eu pudesse,
Borboleta, morrer num só teu beijo!
Tu és a Inspiração, musa divina,
Cuja voz embriaga-nos a mente...
Musa angélica, me ensina,
Que a teus pés cantarei eternamente!
A VIZINHA
Como formosa não era
A triste moça vizinha!...
Que negros olhos que tinha!
Que lindo olhar era o seu!
Olhos assim como os dela
Nunca no mundo brilharam,
Que no mundo revelaram
Segredos que eram do céu!
Nunca os lábios descerrou-lhe
O mais ligeiro sorriso,
Que aos homens o paraíso
Para sempre se fechou!
Nem sei que estranho mistério
Aqueles olhos buscavam
No céu, que nunca deixavam,
No céu, que enfim os ganhou!
Que os ganhou, sim, para estrelas
Do seu luminoso manto,
Que roubam com o brilho tanto
Toda a luz dos olhos meus!
E chora a terra perdida
A beleza peregrina,
Que para a plaga divina
Foi carregada por Deus!
Nem lhe deu o sol do inverno
O calor que lhe trouxera,
Que ao morrer da primavera
Ela morrera também!
Morrera... à hora da tarde,
No quadro azul da janela,
Não vi mais o rosto dela...
Nem nunca mais vi ninguém!
Nos lábios já não há risos,
Já flores não há na terra,
E nem mais a noite encerra
Dos sonhos a embriaguez...
Eras-me a vida, e morreste...
E morro, e sigo-te, ó morta!
No cemitério... que importa?
Serás vizinha outra vez!
FOLHA VERDE
Folha verde forasteira
Nas asas do vendaval,
Que mau gênio te arrebata
Das companheiras do val?
— O meu vale harmonioso
Quanta delícia não tinha!
E vou longe, longe dele,
Qual viajora andorinha...
Foi um temporal de inverno
Quem do vale me perdeu...
Andorinha, vou em busca
Da primavera do céu!
O tufão é a desgraça,
E no tufão me alevanto...
E subo... o céu se avizinha...
Roço de Deus pelo manto!
E desço já semi-morta,
Nos ares arrebatada...
E depois do espaço — o lodo...
E depois da glória — o nada. —
Folha verde peregrina,
Que perdida vais além,
Folha verde, a tua história
É minha história também:
Foi no val de minha infância,
Gelo d'inverno choveu...
Andorinha, vou em busca
Da primavera do céu!
1871
ALVORADAS
(1872-1874)
A MEUS IRMÃOS
O título escolhido para esta coleção de versos não é novo. Depois de já o haver adotado, mesmo por guardar tal ou qual relação com o do meu primeiro livro, Névoas Matutinas, li a notícia de um volume de poesias com o mesmo título de Alvoradas; quis, desde então, batizar diversamente o meu livro; não mo consentiram alguns amigos, a cujo delicado empenho tive de ceder. Estas cousas, tão pouco interessantes, digo-as somente para me desculpar do aparente delito de me haver apropriado de um pensamento alheio.
Alvoradas chamam-se estes versos, que nem têm a luz nem as harmonias do amanhecer... Serão como as madrugadas chuvosas, — desconsoladas, mudas e monótonas.
Alvoradas são também os toques militares com que se despertam do sono os soldados... Não poderão chamar-se assim os clamores da minha poesia, obscura sentinela republicana, bradando aos soldados da causa santa que é tempo de acordar?
L. de M.
Rio de Janeiro, 1874.
A...
Amo-te muito, encantadora criança
De olhos divinos, de sorriso casto.
No pobre coração enfermo e gasto
Os balsamos verteste da esperança.
Todo eu te pertenço — o meu futuro,
Onde raia a esperança entre esplendores,
E o meu passado inteiro, abismo escuro,
Onde há gemidos do profundas dores.
— Oh! sejam-te uma auréola à fronte calma
Estas pálidas luzes de minh’alma!
S. Paulo, 1874.
A TARDE
Quando a fogueira do poente arde
E começa um torpor suave e lento,
Embebe-se também o pensamento
Na tristeza monótona da tarde.
Esbatem-se os contornos; quanto existe
Lento esmorece em ondas esfumadas;
Tudo ameniza-se; as paixões veladas
Tornam-se calmas como a hora triste.
Como os pássaros voam molemente
Demandando dos ninhos o repouso,
Pássaros d’alma, vão buscando o pouso
Os pensamentos, no saudoso ambiente...
O pouso hospitaleiro que, a distância,
Aos olhos nos oculta a sina austera,
Aonde a esposa de nossa alma espera,
Onde passou-se a descuidosa infância.
Onde, nas horas em que a noite desce,
De longas sombras inundando as almas,
Nossa mãe, nossa irmã, com as frontes calmas,
Erguem por nós afetuosa prece.
Branda melancolia nos invade
Com a doçura de um bálsamo divino...
Ó dona de minh’alma e meu destino,
Eu lembro-me de ti... com que saudade!
S. Paulo, Ponte Grande, 1873.
ALICE
Os seus olhos são como os das pombas,
sem falar no que está oculto dentro.
Cântico dos Cânticos.
Imagina um sorriso só de criança,
Todo candura, e junta-lhe a meiguice
De um sorriso de mãe; e tens ideado
O sorriso de Alice.
Imagina um olhar — mistério e sonho,
Cheio de luz, de glória, de doidice...
Com a sedução dos olhos da mãe-d’água;
E tens o olhar de Alice.
Imagina uma grave melodia,
Tão doce como nunca mais se ouvisse,
Como nunca se ouviu na terra ainda;
E tens a voz de Alice.
Já viste como o cisne fende o lago?
Como desliza a névoa na planície?
Como anda na clareira a pomba rola?
É ver o andar de Alice.
Olha o macio pétalo corado
De rosa que de todo não abrisse,
O mimo da conchinha nacarada;
É a boca do Alice.
Se um dia visses no alcantil dos cerros
A imaculada neve que caísse,
Verias, ai de mim! do que é formado
O coração de Alice.
1874.
A INSENSÍVEL
Chamava-se Idalina, e tinha vinte e um anos.
Era alva, esbelta, loura... entre mulher e fada.
Diziam que era estranha aos afetos humanos,
Pois nunca a viram rir e nem chorar de nada.
Se desse para o mal, enchia dous infernos
De réprobos. Também, se desse para amar,
Que d’almas para o céu! Mas os gelos eternos
Cobriam-lhe a alma inteira, a sua alma polar.
Era Idalina assim. Poetas em manada
Sagravam-lhe do estro a luz brilhante e fátua...
Mas a poesia aos pés morria-lhe esmaiada
Como alvores de lua em pedestal de estátua.
Dir-se-ia que Deus, vendo-a bela, estupenda,
E não querendo dar ao mundo a perfeição,
Ao invés do que fez o Prometeu da lenda,
Pôs estátua a mulher: tirou-lhe o coração.
Amor, íntimo hino, harmonia divina,
Musica d’anjos n'alma, eólio murmúrio,
Porque não lhe animaste a forma peregrina?
Porque lhe não encheste o coração vazio?
Se pudesse um momento aquela criatura,
Por milagre de Deus, amar na terra alguém,
O amor que ela inspirasse era a extrema loucura,
Pois ser amado dela era o supremo bem!
Muito peito adorou-a em santo amor aceso,
Mas a chama voraz se extinguia ao desprezo.
Mais de uma vida em flor por ela se perdeu
Em negro desespero; e nem se comoveu.
Ele era belo e louro, um alto cavalheiro
De aspecto senhoril e modo sobranceiro.
Era céptico e rico; amara amantes mil.
Tinha um límpido olhar sereno e varonil,
Olhar de rei, olhar de fria majestade.
Formoso como a fé, triste como a saudade,
Também nunca sorria. Aqui tendes Raul.
Era uma linda tarde; o céu estava azul
Como uns olhos de inglesa. Oh! à tarde, o Passeio
Como fica bonito! Estava mesmo cheio
No dia em que isto foi. Raul estava lá;
Idalina lá estava: aonde o homem está,
’Stá o perigo, diz-se, e tudo a crer me inclina.
Era, como já disse, uma tarde divina.
No terraço, Raul, farto de olhar o mar,
Voltava, quando viu Idalina passar.
Olharam-se. No olhar existe um magnetismo:
O olhar de uma mulher tem sempre um quê de abismo
Não sei bem o que foi; mas, logo horas depois,
Em um baile, essa noite, encontraram-se os dois.
Dizia-se mais tarde, a uma voz, na cidade,
Que partira Raul, depois da f'licidade
Maior que já na terra um homem pôde ter.
Perdera-se Idalina. Eu não podia crer.
Mas assim foi. Um dia, aquela paixão toda,
Abafada, insurgiu-se: amou como uma douda!
Mas a um homem sem fé, que por isso a perdeu.
E sabem o que fez a insensível? Morreu.
S. Paulo, 1873.
GALATEIA
É uma deusa lendária,
Gelada perfeição rara,
Um primor de estatuária,
Que um grego artista assinara.
Para ser fiel, retrato-a
Sem sentimento; que importa?
É uma beleza de estátua,
Perfeita, correta e morta.
São Paulo, 1874.
GALATEIA
Nos olhos tens a transparência pura
Do nosso céu, e abismos de ternura
E promessas de luz e perdição!
Nos lábios tens rosados paraísos,
Jaspe, ambrosia, nácar e sorrisos...
Como és bela, mulher sem coração!
Quando a cabeça lânguida reclinas
E essas tuas pálpebras divinas
A meio cerras indolente, e a mão
Deixas pender abandonada aos beijos,
Tens um seio que arfa de desejos,
Mas o que tu não tens, é coração!
Bem sabes a delícia que me invade
Quando, em horas de febre e mocidade,
Beijos de luz os nossos olhos dão!
E mal me vou embora tudo esqueces!
Olha! a suprema perfeição pareces,
Só o que tu não tens, é coração!
Rio, 1873.
LUSBELA
Embalde contra ti, quando perdi-me,
Santo nome invoquei como exorcismo:
Há nos teus olhos tanto magnetismo,
Que à sua tentação ninguém se exime.
Lembrando-me de ti, mulher sublime,
Tenho a loucura n’alma quando cismo!
Há nos teus olhos a atração do abismo!
Há nos teus lábios o sabor do crime!
Quando sorris, perversa, tomba um ente
Na eterna sombra onde não chega Deus
E há dentes a ranger eternamente!
Oh! eu trocara a luz toda dos céus
Pela chama do inferno mais ardente,
Por um só beijo nesses lábios teus!
S. Paulo, 1873.
ÂNGELA
¡Ah! yo imagino a Ángela, pisando estrellas en el cielo, resplandeciente de hermosura, entre los coros de los ángeles, entonando el cántico de la bienaventuranza.
Castelar.
Fica na tua placidez divina,
Alva e loura visão, que nunca sintas
Da paixão que devora, que alucina,
As torvas chamas infernais, famintas!
Nem chores nunca as ilusões extintas!...
Foge, foge do amor, que é triste sina.
Esse demônio interno não consintas
No imaculado seio de menina.
Sonho-te sempre assim, anjo radioso,
Com o sorriso cheio de carinho
E de um como luar misterioso...
Postas as mãos, mais alvas que o arminho,
E embebido o olhar no azul saudoso
Do céu, como seguindo-lhe o caminho.
Rio, 1874
INVERNO
Chove como um dilúvio; as asas da procela
Rufam-me um festival nos vidros da janela.
Escrevo mansamente, e aqui tenho ao pé,
Aberto sobre a mesa, um livro de Musset,
O querido poeta, o grande libertino
Que nas taças bebia em cada gota um hino.
Depois, é já inverno... Ah! como sou feliz
Quando vejo na terra o amarelo matiz
Deste bom velho amigo e de feições austeras!
Eu prefiro um inverno a vinte primaveras.
Não gosto do verão; qual um amante audaz,
Louro raio do sol, malcriado rapaz,
Entra pela janela, enche de claridade
A sala, e me perturba a doce obscuridade.
No inverno há o sossego, há o tranquilo estar,
A íntima conversa, o braseiro a estalar.
Contemplam-no da estante, amigos costumados,
Poetas que eu reúno em casa, encadernados,
Hugo — o semi-deus — e Uhland — o mimoso,
O doce Lamartine e o Byron tumultuoso
E o Méry musical, e, juntos acolá,
Três livros que contêm cantos de sabiá,
Os Cantos do Varela.
Inverno, meu amigo,
Escuta-me um segredo, e guarda-o bem contigo:
É ridículo e triste. Em próximo porvir,
Quando no esquecimento eu gelado dormir,
Tu alastra-me o chão de folhas amarelas.
Terão caído já, mais mortas do que elas,
As minhas ilusões. É que a vida se esvai
Como a fumaça azul do louro bird's eye.
S. Paulo, 1874.
O ANJO DA GUARDA
A rua estava calada.
Em torno tudo dormia.
No céu, a lua, afogada
Pela névoa, nem se via.
Súbito, assoma à janela
Que deita para o jardim,
De uma casa, branca e bela,
Uma visão. E ao fim
Da longa alameda escura
Um vulto a não surpreende.
Chega-se ele, e com ternura
Beija-lhe a mão que ela estende.
A mão trava-lhe da sua,
Atrai-o para o balcão.
— Límpido raio de lua
Ilumina a cena então.
Retrai-se o crime sombrio
Diante dessa luz tão alva!
Com a face acesa em brio,
A doce virgem se salva.
Já tudo queda em repouso,
E só se ouve, por fim,
O perpassar amoroso
Da aragem pelo jasmim.
Está na câmara sua
A moça; a dormir não tarda.
— Aquele raio de lua
Era o seu anjo da guarda.
1873.
O ADEUS
Quando cheguei, a câmara ressoava
De alegres risos, de gazil vozear.
Junto à lâmpada estava,
Bela de alucinar,
A mesma que me pôs esta alma escrava.
Quando na sala entrei, ela sorria,
A criatura linda!... E era amor
Que naquele momento desferia
Seu lábio encantador...
Porque o sorriso dela é uma harmonia.
Quando a fitei, bem junto, palpitante,
Casando olhares com olhares seus,
Estava o seu amante.
E aspirava-lhe, ó Deus!
Os mágicos eflúvios do semblante.
Quando me viu, saudou-me distraída,
Voltou-se para o outro, e, de cruel,
Em minh'alma dorida
Verteu ciúme, — fel
Para amargar-me toda a triste vida.
Quando fui despedir-me, ela sorria...
Roçaram só de leve os dedos seus
Pela minha mão fria...
No entanto aquele adeus
Era o último adeus que eu lhe dizia!
1872
O LENÇO BRANCO
Lembras-te, Aninha, pérola roceira
Hoje engastada no ouro da cidade,
Lembras-te ainda, ó bela companheira,
Dos velhos tempos da primeira idade?
Longe dessa botina azul-celeste,
Folgava-te o pezinho no tamanco;
Eras roceira assim quando me deste,
Na hora de partir, teu lenço branco.
Como aquela camisa que, na lenda,
Deu a noiva ao cruzado, e a qual a salvo
Sempre o trazia da peleja horrenda,
Assim o lenço que me deste era alvo!
Muito chorei depois que te partiste;
Mas ainda agora as lágrimas estanco
Chegando aos olhos, em silêncio triste,
Aos turvos olhos, o teu lenço branco.
Ai! de esquecer-te no baldado empenho,
Ainda acendra-se a constância minha!...
Que longos beijos imprimido tenho
No alvo lenço que me deste, Aninha!
E das saudades as sombrias flores
Lavram-me n’alma como em solo franco;
E o adeus foi morte aos infantis amores;
Foi um sudário este teu lenço branco!
Talvez, — por isso que a cidade mata
As flores d’alma com seu brilho imenso,
Talvez agora, criatura ingrata,
Nem mais conheças o teu pobre lenço!
Mas quando o peito, que a paixão devora,
Cair após o derradeiro arranco,
E d’entre os vivos eu me for embora...
Cubra-me as faces o teu lenço branco!
Rio, 1872.
NO ÍNTIMO
Inda mais uma vez, meus olhos, vistes
O vosso enlevo, a criatura santa
Por quem minh’alma se extasia e canta...
E verte depois lágrimas tão tristes.
Estava pensativa, ainda mais bela!
E distraída os olhos demorava
Em vós, meus olhos... e afastei-vos dela,
Porque meu coração por vós olhava...
E eu já lhe disse muitas vezes: — Cala!
Oculta-me este amor muito em segredo...
Pode ela perceber, e tenho medo
Que não vamos com isso contristá-la.
Porque turvar-lhe a placidez da face?...
Porque falar de dor aos seus prazeres?...
Ela é tão boa que talvez chorasse...
E melhor fora, coração, morreres!
1872.
A FAMÍLIA
Riquíssimo e, coitado! órfão quase ao nascer,
Enfim o saciara a taça do prazer.
Havia naquela alma esta esterilidade —
Que nem uma esperança e nem uma saudade
Alimentava mais! Pobre filho do pó,
Tens um recurso extremo — a morte, único e só.
Tudo é deserto aqui! Ó alma envilecida,
Levanta-te uma vez! É um direito a vida!
E um peso? Está bem: podes deitá-lo fora,
E raiará, quem sabe? a divinal aurora!
Vem a noite a cair... que cerrado nevoeiro!
Que triste anoitecer!... e é o derradeiro!
Já de pontos de luz o amplo céu se cobre.
Quantos astros de Deus serão teus círios, pobre!
Vai! ouviste a razão: não pode ser um crime.
Ouves? lá brame o mar; é profundo e sublime.
Nas frias ondas, olha! em menos de uma hora
Tu boiarás sem vida. É quase como agora.
Partiu. Pelo caminho, olhava para os lados.
Ele ia pela rua. Os homens, fatigados,
Recolhiam-se à casa. Então, porque é que para?
Eis por uma vidraça o quadro que avistara:
Era elegante a sala, e quente e confortada.
À mesa, junto à luz, estava a mãe sentada.
Cosia. Mais além, um belo par de crianças,
Do tranquilo futuro amáveis esperanças,
Olhavam juntamente um livro de gravuras,
Inclinando sobre ele as cabecinhas puras.
Num gabinete, além, que entreaberto se via,
Um homem — era o pai — calmo e grave, escrevia
Enfim, uma velhinha. Estava agora só
Porque estava rezando. Era, decerto, a avó.
E em tudo aquilo havia uma paz, um conforto!...
Oh! a família! o lar! o bonançoso porto
No tormentoso mar! abrigo, amor, carinho!...
O moço esteve a olhar.
E voltou do caminho.
1873.
SIC FATA...
Assim, Marília,
Se acaba tudo.
Gonzaga.
Bárbara lei do destino!
Era amor, é amizade.
Prosaica realidade
Fez-se o poema divino.
Tu eras criança e tão linda,
Eu era terno e tão criança...
Lembras-te quanta esperança?
Mas, dize, lembras-te ainda?
Quantas vezes eu dizia,
Fascinado de teus mimos:
— Tudo isto quanto sentimos,
Tudo há de acabar-se um dia! —
E tu ficavas tão séria
A olhar-me tristemente
Com o teu olhar inocente
Embebido em luz etérea!
Eu bem dizia, estás vendo,
Já nada resta daquilo!
O sonho azul e tranquilo
Aos poucos se foi perdendo.
Pobre afeto casto e doce!
Pobre amor! pobre coitado!
Dorme na paz do passado.
Era destino, acabou-se.
Icaraí, 1874.
ANIQUILAMENTO
Ouves? morrem no espaço
Da ave-maria os derradeiros dobres...
Era assim nesta hora que, sentada
Na cadeira cingida por meu braço,
Escutavas a merencória toada
Das minhas canções pobres.
Meus olhos, estás vendo,
Enxutos brilham; também eu já posso
Sem lágrimas lembrar-me do passado.
O primeiro martírio foi tremendo,
Por Deus! mas hoje do romance nosso
Está tudo acabado.
Às vezes, por acaso,
Quase a perder-se, fugitiva, incerta,
— Raio de um sol que se abismou no ocaso, —
A tua imagem me atravessa a mente...
Mas nenhuma saudade mais desperta,
E passa indiferente.
Por culpa tua se extinguiu a chama.
Mas à vaidade resta-te um conforto:
É que este coração, que te não ama,
Está gelado e morto.
1873.
DUAS NOITES
Ontem, no baile, estavas tão bonita,
Mas também tão esplêndida!... ai de mim!
Porque minh’alma fica triste e aflita
Quando te vejo deslumbrante assim.
Quando te vejo assim, beleza altiva
A dominar a turba que se humilha,
De te vir a perder, apreensiva,
A alma se me confrange. Escuta, ó filha:
Mais formosa te achei, de olhos vermelhos,
Àquela noite, em câmara sombria,
Velando caridosa, a sós, de joelhos
Ao pé da velha escrava que morria.
1872.
A VOLTA
É tudo o mesmo. No arvoredo ao lado
Inda as brisas murmuram como d’antes;
Inda no céu da tarde avermelhado
Grupam-se as mesmas nuvens cambiantes.
Os mesmos grilos cantam no terreiro;
Inda embebem-se as auras nos perfumes
Do morro agreste. No ervaçal fronteiro
Acende a noite os mesmos vaga-lumes.
Era assim mesmo outrora. Pela estrada
Volta o trabalhador e vem cantando,
E das aves em busca da pousada
Passa nos ares o ligeiro bando.
Nada os astros perderam do seu brilho;
A serrania está como deixei-a.
Assim te via sempre o ausente filho;
Tu eras mesmo assim, ó minha aldeia!
Nos lábios da mulher com que eu sonhava,
Há o mesmo sorriso; ainda carícias
Tem o cândido olhar que me enlevava
E me embebia o peito de delícias...
Nada mudou aqui... Só eu que venho
É que o mesmo não sou!
Ai! não sou, não! somente as formas tenho
De um outro que sonhava, e que acabou!
1872
EXPERIÊNCIA
Conta a fábula que um dia
No monte estava um pastor;
Era de tarde; fazia
Um tempo esplêndido; a cor
Do ocaso punha vermelhas
As águas lisas do mar.
Na relva, as brancas ovelhas
Pastavam manso pastar.
Lá na extrema do horizonte,
Que bem longe se avistava,
Nesse momento passava
Uma vela peregrina.
O pastor viu-a do monte,
E caiu a meditar
Na sua mísera sina
De levar a vida inteira
Nesse pobre apascentar
Os seus rebanhos; enquanto
Que essa vela aventureira
Ia ganhar tanto! tanto!
E era tão manso o mar!
Ei-lo que rápido se ergue,
A ambição todo o acende;
Já sem mais demora vende
O rebanho, o campo, o albergue.
Que sonhos grandes que tem!
Que de visões sedutoras!
Às verdes ondas traidoras
Aventura-se também.
Cedo volta e abatido,
Pobre náufrago, sem nada!
Chora o albergue perdido
E a pacífica manada...
Mas trabalha, e recupera
Os calmos bens que tivera.
E quando, à tarde, no monte
Foi sentar-se como dantes,
E viu límpido o horizonte
E velas brancas distantes
E as ondas verdes e planas,
Disse, lembrado, e sorrindo:
“Ó mar, estás muito lindo,
Mas a mim, já não me enganas”
Era um tempo de glória e de esperança,
Quando a meu lado tu surgiste, um dia...
Nos teus olhos azuis quanta bonança!
E como o teu sorriso prometia!
Ousei, ingênuo trovador sem nome,
Sonhar grandezas de paixão contigo!
O teu olhar sirênico enganou-me...
Que estólida ambição, e que castigo!
Perdi naquele amor os meus tesouros
Imensos de ternura, e a Esperança,
A alegre musa de cabelos louros,
Esquivou-se de mim na aérea dança.
Hoje meu peito em novo amor se inflora...
Novamente de sonhos enriqueço...
Embalde o teu olhar me tenha agora:
Já não me enganas mais, eu te conheço.
Rio, 1873.
O CAVALHEIRO DO LUAR
(lenda)
Estava Júlia, à noite, na janela,
Numa noite lindíssima de lua,
Embevecida no amoroso encanto
Que no ambiente mágico flutua.
Então, como num sonho,
Embaixo, pela rua,
Passava estranho moço,
Belo ao clarão da lua.
Era noite de festa no castelo,
Uma noite lindíssima de lua,
Júlia estava com o noivo na janela:
Presas as mãos, a face unida à sua.
Então, como num sonho,
Embaixo, pela rua,
Passava estranho moço,
Triste ao clarão da lua.
Era noite de luto no castelo,
Uma noite lindíssima de lua.
Estava Júlia morta no seu leito,
Velava o noivo na amargura crua.
Então, como num sonho.
Embaixo pela rua,
Passava estranho moço,
Alvo ao clarão da lua.
1874.
NO ANIVERSÁRIO DE UMA MENINA
Bela flor em botão, linda mulher na infância,
Guarda bem dentro d’alma, afim que não se mude,
O celeste perfume, a divinal fragrância,
Na criança — inocência, e na mulher — virtude.
1872.
NUDA ANIMA
Ele era um desgraçado!
Pois nem tinha esperanças no futuro,
E nem saudades tinha do passado!
Ai! que destino duro!
Nem ter saudade, ao menos!
Viver, passar, e não se lembrar mais!
Caminhar, caminhar, e nunca atrás
Volver olhos serenos!
Que alma pobre!... não era?
No entanto, eu sei, senhora:
Tinha em si muita luz! oh! mais que a aurora!
Mais festivas canções que a primavera!
Também há para as almas um inverno:
É o desalento. Quando
Ele vem devastar o mundo interno,
Vão-se as crenças em bando!
Compadecei-vos dele... infortunado!
Chorai-lhe o fado escuro,
Que é não ter ilusões para o futuro,
E lágrimas não ter para o passado!
1872.
OITAVA RIMA
Quia fortis ut mors dilectio,
dura sicut infernus aemulatio;
lampades ejus lampades ignis
atque flamarum.
Cant. Canticorum.
Que vivo amor o meu, que não se apaga
Ante o gelo de tanta indiferença!
Antes, mais violenta se propaga
A sua chama imorredoura, intensa.
Ela vingou do tempo a fria vaga!
Já comigo não tenho com que vença
Esta paixão indômita, insensata,
Que me devora, que me abrasa e mata!
Eu não lhe deixo nem uma esperança,
Uma única apenas, que a alimente!
Os meus últimos sonhos de criança,
Consumiu-mos a chama veemente!
E sobre as cinzas hoje ainda se lança,
E faz-me ainda palpitar ardente
O coração, que após tanta agonia,
A paz da morte, ao menos, merecia.
Longe, bem longe vim desse olhar terno
Que me ateou no peito a luz maldita!
Nem quando os montes embranquece o inverno,
Nem quando a terra no verão palpita,
Voltei a ver o brando lar paterno
Aonde a doce criatura habita.
Mas como é nula a ausência quando o ausente
Leva consigo o amor incandescente!
Doida paixão que excede a natureza!
Não cabe tanto amor em peito humano!
Bem o quero vencer... baldada empresa!
Nem o pôde matar o desengano!
Mas há de se apagar a chama acesa,
Há de extinguir-se enfim o fogo insano..,
Um dia, coração, hás deter cura...
É bem funda, ó bem fria a sepultura l
1873.
CORAÇÕES E MARAVILHAS
Umas flores de pétalos mimosos,
Que fechados estão à luz do dia,
Abrem os seios ao celeste orvalho
Quando a alameda está muda e sombria.
Os corações, misteriosas flores,
Têm um santo recato melindroso:
Fecham-se à luz do sol, e só se expandem
Quando desce o crepúsculo saudoso.
Enquanto a rosa, a grande presumida,
Os rubros lábios sem pudor, sem medo,
Francos ostenta, dessas castas flores
Guardam tímidos lábios o segredo.
Abrem-se à noite, quando em céu discreto,
Ó branca lua, teu caminho trilhas.
Assim também o coração da gente
Abre-se à noite — como as maravilhas.
1874.
NOITE DE LUAR
Pelo céu alvacento vai a lua
Meiga e serena como uma alma boa.
Há perspectivas vaporosas, calmas,
Que se esbatem ao longe na garoa.
Talvez flutuem namoradas almas
Na doce claridade compassiva
Destes luares brancos e encantados.
Do sonhador a mente pensativa
Sente olhares dos olhos adorados
Da amada longe ausente; e, na miragem
Da saudade, mais viva lhe aparece
A sua abençoada e santa imagem.
A natureza queda-se; parece
Que, recolhida, extática, suspensa
Escuta algum mistério das alturas.
Ó belas almas que viveis na crença,
Ó bem-aventuradas criaturas
Que vos amais! Nos braços ter cingida
A mulher adorada, em noite destas...
Pois não é mesmo ter o céu em vida?
S. Paulo, 1874.
A MINHA LUZ
A luz que eu mais adoro, a que ilumina
Meu triste peito apaixonado e ansioso,
Não é a tua luz, ó sol glorioso,
Que alegra e doira o monte e a campina.
Do astro melancólico e saudoso
Não é a branda luz alabastrina,
Em cujas ondas calmas, branca ondina,
Banha-se a alma do poeta em gozo.
A luz que me consola no degredo,
A luz que me alumia na procela,
A luz que adoro em tímido segredo,
É uma luz que eu vejo da janela,
Coada pelas ramas do arvoredo.
É a luz frouxa do aposento dela.
S. Paulo, 1873.
PELO RIO
Eh ! vogue, ma nacelle !
Béranger.
Éramos dois na canoa,
Somente os dois. Eu remava,
Ela a cabeça apoiava
Ao ombro meu.
Roçando pelas barrancas
Iam névoas menos brancas
Que o colo seu.
Bela manhã que essa estava,
Gorjeada, luminosa!
Quando a luz o mundo goza,
Que belo é amar!
Ali, a onda azulada;
Perto, a terra embalsamada,
Tranquilo o ar.
Claro verão confortado,
Alegre estação bem dieta!
Como a terra está bonita!...
Que luz de amor!
Meu Deus! que ventura imensa
Cai do céu em recompensa
Da humana dor!
“Pálida moça formosa,
O céu é estar a teu lado!
Dá-me esse beijo rogado,
Agora, enfim!
E assim corra tua vida
Como esta água adormecida,
Assim... assim...”
Disse-lhe eu, e no ombro
Senti trêmula a cabeça
Da bela criança. A travessa
Corou. Depois...
O lenho vogava à toa...
E oramos dois na canoa,
Somente os dois!
1873.
NA MATA VIRGEM
Estou na mata virgem; amo a caça;
Amo o beijo dos ventos perfumosos,
Nas florestas, abismos de verdura,
Com os seus longos silêncios religiosos.
Aqui o homem sente-se, orgulhoso,
Filho da natureza, mãe perfeita,
Mãe que o gera, alimenta, educa, enterra...
Mãe sublime que os filhos não enjeita.
Aqui estou entre os meus; as velhas frondes
Me abençoam com lágrimas de orvalho;
Os ventos da manhã beijam-me a face,
E tenho saudações de cada galho.
E o pensamento, passarinho alegre,
Estende as asas, se espaneja e voa
E canta e folga na harmonia imensa
Da franca natureza calma e boa.
Eu, minha amada, eu não ambiciono
Mais tesouros; nem cuido mais detê-los.
Quero as pérolas só do teu sorriso,
E peço o ouro só dos teus cabelos.
Basta-me o céu azul sobre a cabeça,
E o claro sol, o meu brilhante amigo,
E dentro de minh’alma a tua imagem,
Essa porção do céu que está comigo.
Amo a minha espingarda; creio nela,
Companheira fiel, ardente e linda.
Creio num Deus que nos protege e ama;
E creio nos teus olhos mais ainda.
Que brilhos da cidade são mais belos,
Que estas manhãs puríssimas e claras?
Que néctar é melhor que a água bebida
Pela ânfora selvagem das taquaras?
Aqui, no meio da floresta virgem,
Quando a distância se interpõe tamanha
Entre nós dous, eu sinto-te a meu lado...
É que o teu pensamento me acompanha.
E se da morte na estação gelada
Resvalarem as minhas primaveras,
Hão de chorar-me as lágrimas sinceras
De teus olhos azuis, ó minha amada!
Rio Bonito, 1874.
À MEIA VOZ
Aimez, car tout est là !
Th. Gautier.
Não, amar-te, não te amo bem, criatura:
Para amar-te não basta um peito humano.
Ouve! a música cheia de doçura
Que há pouco ainda soluçava ao piano,
Imita a adoração que, em culto ignoto,
Aos teus celestes dons tímido voto.
Assim também a voz de meus desejos
Aos teus ouvidos trêmula esmorece.
Dos lábios a soltei — bando de beijos,
Mas ao chegar a ti — era uma prece...
Oh! dá-me ainda uma vez um doce engano
Nessa amorosa fala do teu piano.
As notas, ao nascerem-te dos dedos,
Caem-me n'alma com celeste afago,
Como alvores de lua, entre arvoredos,
Na lisa face de dormido lago.
E quando a voz encantadora exalças,
É como aura a gemer por entre as balsas.
Minh’alma, ouvindo a música tão grata,
Acima voga das sombrias mágoas,
Como, ao chorado tom da serenata,
Batel azul a resvalar nas águas.
Ao piano ainda uma vez, um só momento,
Adormece-me o triste desalento!
Oh! tu nem sabes que ambição, que anseio
Há nest'alma, coitada, que somente
Oculta os estos no profundo seio
E mostra a face plácida, dormente...
Olha! os pálidos louros da poesia,
Todos os dera pelo amor de um dia!
S. Paulo, 1873.
VERGASTAS
(1873-1889)
A MEU PRIMEIRO FILHO
A MEU PRIMEIRO FILHO
Meu filho! uma onda de emoção sagrada
Encheu-me o coração quando vieste
Alumiar-me a vida, qual, doirada,
Rompe a manhã depois da noite agreste.
Eras meu filho!... Trêmula avezinha,
Um sopro bastaria a dar-te morte...
Oh! como então, vida da vida minha,
Para te proteger senti-me forte!
E via-te já homem, a meu lado,
Intrépido soldado do Direito,
Amparando-me o braço fatigado,
Aceso em nobre fé o altivo peito.
Não me desmintas a visão solene
Deste esplêndido sonho! e apenas basta
Que honestamente cumpras o que ordene
Teu coração de moço entusiasta.
Ama o povo; abomina a tirania;
Defende o fraco; luta com a maldade
Sem tréguas nem perdão, filho! confia
Na Justiça, no Amor e na Verdade.
Chovam-te minhas bênçãos aos milhares!
E se meu coração todo desejas,
Segue-me os passos; — mas se apostatares.
Filho de meu amor, maldito sejas!
4 de dezembro de 1882
AS MONTANHAS
FRAGMENTOS
Quando ao mágico verbo o nada fez-se mundo,
E o oceano bramiu, e o sol brilhou fecundo,
Deus falou à montanha: “Em ti sempre achará
“A santa Liberdade um refúgio e um abrigo."
Veio o homem e o vício e as águas do castigo,
E os eleitos de Deus pararam no Ararat!
Vem aos hebreus Moisés, bíblico Xenofonte
Do povo peregrino. Ei-lo que sobe a um monte,
O Sinai — p’ra trazer as leis à multidão.
Erram pelo deserto; alenta-os a esperança;
Moisés p’ra morrer ainda um monte alcança
— O Nebo, donde, ao longe, avista a Promissão!
Quando ao povo de Deus, passado, já proscrito,
Dos Persas a Alexandre, e de Alexandre ao Egito,
Querem roubar ainda as crenças dos avós,
Insurgem-se os fiéis à voz de Matatias,
E têm os Macabeus nas broncas serranias
A porfiada luta e a liberdade após!
Volvei o olhar agora a essa Grécia antiga,
Cujo nome imortal ainda não há quem diga
Sem pasmo, e vede ali o que as montanhas são!
Lutam por ter Messênia os feros espartanos,
E o monte Ira defende, em sítio d’onze anos,
Os messênios heróis, que morrem à traição!
Galeras mais e mais arroja a Pérsia aos mares,
E vão de um monte ao pé quebrar-se aos centenares!
Vai com Xerxes um mundo, e para, e não vai mais!
Quem os detém? Somente uns montes e uns soldados.
Mas não, persas, passai! passai, que são tombados
Os traídos heróis, os gregos imortais!
Grécia! Grécia! ai de ti! descendo vêm do norte
As armas de Filipe. Ele não traz a morte,
Traz a tua vergonha e traz os teus grilhões!
Mas inda tens heróis, ainda tens montanhas,
Onde vás asilar as tradições tamanhas,
Onde vão pelejar teus derradeiros leões!
E lutaram ainda, e muito! a hora extrema
Da Grécia foi ainda homérico poema!
Que seu último olhar transido iluminou
Sobre tanta ruína um vulto sobranceiro,
Filopoêmem, o arcaico, o grego derradeiro!
No sudário da Pátria a Glória o amortalhou!
Era na velha Roma. A realeza ousada
Morrera com Lucrécia, a heroica desonrada!
Mudara-se somente o nome do senhor:
Já não era mais Túlio, o escravo entronizado;
Não era mais Tarquínio; agora era o senado.
Se não havia o rei, havia o ditador.
Da longa escravidão está cansada a plebe.
Ela que tudo paga e que nada recebe,
Ela que seu suor gota por gota o dá
Aos patrícios ladrões, abandona a cidade,
Vai para o Monte-Sacro; eis, surge a liberdade!
Quando dali voltou, tinha tribunos já!
…......................................................................
Montes! que lenda a vossa! À deusa foragida,
À Liberdade, sois baluarte e guarida!
Ergueram-vos de Deus as invisíveis mãos!
Oh! o monte Calvário!... ajoelha-se àquele
Berço da eterna luz, tribuna donde Ele
Os homens proclamou — livres, iguais, irmãos!
'Stamos na média idade. O muçulmano ardente
Deixa as tendas da pátria, os sonhos do Oriente.
A ambição o impele, o entusiasmo, a fé!
Sonha já do outro mundo as plagas encantadas...
"Está o paraíso à sombra das espadas",
Alá lho prometeu por voz de Maomé!
Desventurada Hispânia! a guerra fratricida
O seio gangrenou-lhe; e agora ei-la vendida
Pela facção infame às invasões brutais!
Polui-se a donzela; a Igreja é profanada;
Vence o Corâo a Bíblia; o alfanje vence a espada;
E a onda da invasão avança mais e mais!
Não! não sucumbe a Cruz ao peso das injúrias!
Em torno de Pelágio, em meio das Astúrias,
Inda há godos leais! e a pátria vive lá!
É lá o altar da Cruz! E é lá dessas montanhas
Que a aurora redentora, ó terra das Espanhas,
Rubra de muito sangue, um dia surgirá!
….....................................................................
Vede a brava Suíça, os livres montanheses!
Que tigres no lutar!... Austríacos, franceses,
Ela é pequena... e vós, vós imensos, recuais?!
Venha Gessler sicário, inundem-na de Alfredo
Os assassinos mil, que à luta não têm medo
Da livre pátria agreste os filhos imortais!
A tamanhos heróis somente essas montanhas
Foram digno teatro e são dignas peanhas!
As ondas da invasão foram-se ali quebrar!
Loucura, insensatez de coroadas frontes!
Quem vencerá um povo em meio dos seus montes
Quem domará na selva as sanhas do jaguar?
…............................................................
Ó pátria brasileira! ó terra das montanhas!
Um embrião imenso agita-te as entranhas...
Tu sentes do futuro a grande gestação!...
Nossas almas viris, águias das cordilheiras,
Remontam para o sol! Entre as livres bandeiras
Havemos de plantar teu grande pavilhão!
S. Paulo, 1871.
A UM PÚLPITO QUEBRADO
Estás inofensivo, estás vazio,
Velho caixão malvado,
Que trazias de Roma, consignado
Às multidões beatas
O preconceito estúpido e sombrio
E o dogma bestial, de quatro patas.
Tu nunca foste compassivo e terno:
Ao pobre, quase nu,
Que lhe dizias tu?
Os terrores dramáticos do inferno!
Por todos os três lados,
Blasfemavas feroz contra o Progresso,
Que foi 93? foi um possesso,
Crivado de pecados;
A Liberdade, um sonho sedicioso;
A Ciência, uma cínica atrevida;
Só a Religião é que é a vida,
E a reza, o largo porto bonançoso.
Da Imprensa tu disseste mais horrores
Do que Mafoma disse do toicinho...
É o pestífero ninho
Dos abutres do mal e da impiedade,
Covil de pecadores
Que têm de arder por toda a eternidade.
Hoje, caída em ruínas a capela,
Estás à chuva e ao vento e ao sol aberto...
Estás melhor, decerto.
Hoje, em lugar do círio, vês a estrela.
Do mau cheiro de incenso desinfecto,
Agora perfumou-te
A viva aragem fresca da campina;
E tens por vasto, esplendoroso teto
A cúpula divina,
A constelada abóbada da noute.
Em vez do órgão fanhoso, ouves agora
O cântico das aves,
As músicas da aurora.
E sobre as tuas traves,
Donde escorria a onda das asneiras,
Gemem de amor as pombas forasteiras.
Novo padre Jacinto, sacudiste
O teu jugo católico romano,
E em vez de velho púlpito tão triste,
És um digno caixão, livre e profano.
E, pois te restituíste
À grande comunhão da natureza,
Acharás, com certeza,
Um fim mais nobre, donde te provenha
De ser útil a esplêndida alegria:
Acabarás em lenha
Para aquecer de um pobre a noite fria.
1882.
A BANDEIRA APEDREJADA[2]
In hoc signo vinces.
O République universelle,
Tu n’es encor que l’étincelle,
Demain tu seras le soleil !
Victor Hugo.
Auriverde pendão de minha terra
Que a brisa do Brasil beija e balança!
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança!
Castro Alves.
Na cidade de César, alta noite,
Como um profeta em meio de uma orgia,
Um fantástico vulto aparecia
A rutilar de esplêndidos sinais.
Traz em letras de luz palavras santas...
Das nações livres os pendões hasteia...
No meio deles fraternal ondeia
Auriverde pendão sem nada mais!
O novo Baltasar, que se embriaga
Na taça do poder que já transborda,
Vacila... manda a famulenta horda,
Que a mesa serve dos festins reais,
Contra a visão que lhe perturba a orgia!
Ladra a matilha que o senhor açula...
E em cima, calmo como a ideia, ondula
Auriverde pendão sem nada mais!
Ei-lo, no meio das bandeiras livres,
O vulto imenso, o semi-deus dos crentes!
É Castelar, o apóstolo das gentes,
O tribuno dos grandes ideais!
É o Moisés das gerações modernas,
Que leva o povo à Promissão dos povos!
Saúda-o, voz dos brasileiros novos,
Auriverde pendão sem nada mais!
Os novos fariseus lhe atiram pedras!
Apedreja-se o Cristo desta idade!
O prometido este é da humanidade!
A nossa redenção este é que traz!
As suas santas leis são leis humanas!
Curve-se às leis do povo a terra inteira!
Inscreve-as tu, bandeira brasileira,
Auriverde pendão sem nada mais!
Neste evangelho sagram-se os direitos!
Está é a lei da terra, que se move!
Banha-se em plena luz de Oitenta e Nove
Nossa bandeira, a das nações iguais!
Clame, esbraveje a soldadesca infrene;
É o estertor de um corpo moribundo!
Erga-se, à luz em que naufraga o mundo,
Auriverde pendão sem nada mais!
Essa bandeira apedrejada é o hino
Da geração que altiva se levanta!
Nas verdes cores a esperança canta,
A cor doirada diz riqueza e paz!
Guerra de morte ao coroado roubo!
Quebrem-se os elos da servil cadeia!
Erga-se grande, a resplender da ideia,
Auriverde pendão sem nada mais!
S. Paulo, 1º de julho de 1873.
O REBELDE
É um lobo do mar; numa espelunca
Mora à beira do Oceano, em rocha alpestre.
Ira-se a onda, e, qual tigre silvestre,
De mortos vegetais a praia junca.
E ele, olhando, como um velho mestre,
O revoltoso que não dorme nunca,
Recurva o dedo, como garra adunca,
Sobre o cachimbo, único amor terrestre.
Então, assoma-lhe um sorriso amargo...
É um rebelde também, cérebro largo
Que odeia os reis e os padres excomunga.
Dorme sem rezas a palhoça torta...
Mas como um cão fiel, guarda-lhe a porta
O velho mar soturno que resmunga.
1878.
A UM SENADOR DO IMPÉRIO
Ora estás no apogeu da glória reluzente:
Subiste para sempre; és vitaliciamente
Nosso legislador, grande homem, se é que o há.
Perdoa como um deus a grande alma de Alá.
És coluna e farol da vasta monarquia.
Tens uma firme glória enorme que irradia
Ante uma multidão imensa de fiéis...
E, além de toda a glória, alguns contos de réis.
Vê, se já podes ver, os homens com que ombreias:
Octaviano — o cantor que venceu as sereias,
Feiticeiro que muda em joias o papel,
Ateniense que tem o lábio ungido em mel
E que põe na palavra os brilhos do diamante;
Como o arcanjo Miguel formoso e coruscante,
Vê José Bonifácio, alma gêmea do sol.
Que iluminada altura e que brilhante escol!
No velho Panteão do campo de Santana,
Cinge-te o louro eterno a fronte soberana.
Senador e ministro! — estás sentado à mão
De Deus Padre; e nem vês, embaixo, a multidão
O povo, a plebe vil sem nome e sem dinheiro,
Corja de pedinchões vadios o venais...
Tu campeias no céu — e vê-te o mundo inteiro...
Judas de Kerioth, pagaram-te demais!
De feito, que eras tu? Vaidoso como um odre
Vazio, e, quanto ao mais, uma consciência podre.
Como Troplong, o infame, ao vil Napoleão,
Jurista, te vendeste a Pedro, o bom patrão.
Quiseste enodoar ao mesmo tempo, traste!
A blusa popular com que te apresentaste.
Mas não! manchado és tu, manchada é a libré
Que tu vestes agora; o ínfimo galé
Teria nojo dela!
És hoje um poderoso
Ministro e senador; pois olha, um cão leproso
Fugiria de ti, por não sujar-se mais.
Transpuseste orgulhoso os augustos umbrais
Do senado, e a curul que sob ti se infama
Há de ser como aquele ominoso Hakeldama
Com o preço da traição comprado, um mau lugar
Estéril e sem luz — campo de sepultar.
Refere a tradição que um déspota romano
Fez cônsul um cavalo. O nosso soberano,
Calígula jogral, tirano bonachão,
Para nos aviltar, faz senador um cão.
Minas, 1884.
A MORTE DO CZAR[3]
Odiar os tiranos é amar os povos.
Victor Hugo.
Graças! louvado seja o braço niilista
Que acertou afinal!
Matou-se a velha fera, o abutre da conquista,
O urso imperial!
É bom que estes velhacos,
Estufados de orgulho e reis pelo terror,
Vejam que custa pouco a reduzir a cacos
Um grande imperador.
Mártires que jazeis nos gelos da Sibéria,
Polacos, exultai!
Ó Pestel! Ryleief! a região funérea
Com urrahs atroai!
Aquele real patife
Era um devorador de carne humana: então
Aplicaram-lhe em cheio a pena de Talião:
Fizeram dele um bife.
Mas dizem: “Libertou milhões de servos. ”Sim!
Ganhou em cada servo um novo tributário:
Libertou em favor do imperial erário.
Graça de rei, por fim!
Acabou de pregar uma nação na cruz,
Depois esbofeteou-a!
E a Polônia morreu, estrangulada leoa!
Assim tivesses, czar! mil vidas para o obus!
Tu quiseste encerrar o Futuro e a Esperança
Num círculo de ferro — a coroa. Afinal,
Pagaste menos mal
O teu erro infantil, decrépita criança!
A Rússia, sacudindo o secular quebranto,
Livre e grande entrará na união fraternal
Dos Povos. Entretanto,
Apodrece p'ra aí, pedaço de animal!
Minas, 1881.
HINO DA PLEBE
Ça ira ! Ça ira !
Eis-nos de frente, à luz do dia erguidos!
Eis-nos de pé no turbilhão da praça!
Ao Despotismo com o morrão ardente
Mortal sentença a mão do Povo traça!
Eia, bandidos! a vingança espera!
Pretorianos, alguazis armados,
Vireis bater nos baluartes vivos
Dos nossos peitos de plebeus honrados!
Há muito vemos, em feroz silêncio,
Rolar aos pés da Lei, torva homicida,
As altas frontes dos tribunos mártires!
E o cadafalso — em vez da estátua erguida!
E em vez da glória — decretada a infâmia!
E em vez da pátria e os lares seus amados
O exílio... É muito! Estão ardendo em brio
As nossas faces de plebeus honrados!
Há muito tempo que estertora em ânsias
O nosso peito comprimido e forte,
E que sonhamos, no cativo sono,
Uns sonhos rubros de vingança e morte!
Há muito tempo em nossas almas francas
Toca a rebate a consciência em brados
Reage agora revoltado em fogo
O nosso sangue de plebeus honrados!
Quando um tirano nos assanha os brios,
Pula-nos dentro um coração-serpente!
Em feros botes nos devora o peito?...
Surge na praça a barricada ardente!
A chama opressa se levanta incêndio!
Eis-nos erguidos! com os grilhões quebrados,
Saltam na luta com um furor de tigres
Os nossos braços de plebeus honrados!
Quando a cratera escancarada, horrenda,
Vomita lavas, que sublime cousa!
São como as lavas as paixões do Povo,
E todo trono num vulcão repousa!
Os oprimidos se revoltam sempre!
É sempre a história dos leões domados!
Eis-nos erguidos! só a morte curva
As nossas frontes de plebeus honrados!
Nunca! nem ela abaterá do Povo
(A história inteira das nações que o diga!)
As livres frontes, que renascem novas
Quais as cabeças dessa hidra antiga!
Morrer que importa? Com fervor votamos,
Grandes, com a glória dos heróis tombados,
Da Liberdade nas sagradas aras
As nossas vidas de plebeus honrados!
S. Paulo, 1873.
A UM MAGISTRADO DO IMPÉRIO[4]
"Eu o entrego ao opróbrio e à execração de todas as almas bem nascidas; e pudesse a toga, pretendida honoraria, concedida por preço do feito abominável, que daqui vejo sórdida da cal do sepulcro profanado, grudar-se-lhe às carnes como a túnica do centauro, e ser-lhe flagelo incessante e eterno em vez do remorso que não sente."
J. F. Lisboa. — ”Discurso sobre a anistia.”
Quando esse brônzeo verbo incandescente
O eterno estigma te imprimiu na face.
Decerto estremeceste interiormente,
Como se dentro em ti algo acordasse...
Qual da entranha do globo rompe a lava
E vai ruborizar a neve fria,
Era a tua consciência que irrompia
E tuas faces ambas flagelava!
Nunes Machado! os moços desta era,
Honrado cidadão, rendem-te culto.
Infeliz lutador d’estreita esfera,
A afronta sublimou teu nobre vulto.
No dois de fevereiro morto em luta,
Repousavas no túmulo sagrado...
Então, às ordens de um chacal togado,
Dali veio arrancar-te a força bruta!
Pelas ruas da atônita cidade,
"No meio dos baldões da vil gentalha",
Arrastaram-te morto! Ó Liberdade,
Musa dos fortes, toma essa mortalha
Do lívido cadáver profanado,
Torce-a nos dedos, vibra-a como um raio,
Corta, fustiga as faces ao lacaio,
E atira-o para a História, desonrado!
Aquele que Littré pôs, sabiamente,
Entre o rei d’Yvetot e o rei Bobêche,
Deu-lhe alta posição em que se assente
Até que a morte as pálpebras lhe feche
E a vil carcaça a terra lhe reclame...
Mas a Justiça, a deusa inexorável,
Toma contas ao velho miserável
E estampa-lhe na fronte o estigma: — INFAME.
Infame, enquanto houver memória humana,
Enquanto se extremar crime e virtude,
Infame, dos palácios à choupana,
E desde o sábio ao proletário rude.
E quando o Juiz terrível da outra vida,
A História, convocar a julgamento
Os mortos, para dar glória ou tormento,
Treme de horror, hiena fratricida!
Minas, 1882.
AO MENINO REPUBLICANO
SÍLVIO DE ALMEIDA[5]
Dizem as tradições que Hércules, no berço,
Infante, estrangulou, sorrindo, uma serpente...
Um monstro mais traidor, um colo mais perverso,
Tu, hercúlea criança, esmagas igualmente.
Mata-o com toda a luz da verdade inclemente
Tua palavra ingênua. — O torvo monstro adverso
Chama-se o Despotismo... (E, trêmulo, o meu verso
Ruge, de o nome só lhe ouvir, tigre impaciente!)
Sílvio, o velho cantor que eternos versos grava
Diz que um menino grego, ao ver a pátria escrava,
Pediu pólvora e balas, o anjinho!... o chacal!
Assim tu, que já vês o nosso cativeiro,
Queres a todo instante, horrível petroleiro,
Essa metralhadora esplêndida — o jornal!
Pouso Alegre, 1879.
ÁGUIA MORTA
(À MORTE DE JOSÉ BONIFÁCIO)
Viu-se enfim que era humano aquele espírito
A Morte o quis provar,
E, temendo o protesto, impôs-lhe aos lábios
O selo tumular.
Ó revoltante iniquidade! o Oceano
É grande, abraça a Terra e a esbofeteia,
Luta com o torvo Céu, que o chicoteia
Com os látegos do raio, o soberano
Triunfa e canta indômito e selvagem.
O Céu é grande; — imagem
Da eterna Força nunca fatigada,
Apenas aplacada
A tempestade, a dor que ulula e chora,
Volta-lhe a azul puríssima alegria,
Riem-lhe as graças infantis da aurora,
Ou tem do ocaso a ardente maravilha,
Ou dos astros a acesa pedraria.
O Rio é grande, e eterno o Rio corre.
O Sol é grande, e eternamente brilha.
— O Gênio é grande, e morre!
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Quando à tribuna olímpico assomava
Como se o gênio da eloquência fora,
Rápido o voo poderoso alçava,
Águia, dos altos céus dominadora.
Já não há que subir, e sobe avante,
Sobe a perder-se à vista
Dos que a seguem, atônitos, pasmados;
E quando volta e queda-se arquejante,
Traz na febre dos olhos desvairados
Os clarões da conquista!
A águia está morta; no seu ninho alpestre
Pousou para morrer, entre o nevoeiro
Da terra idolatrada. O derradeiro
Hino lhe canta agora a harpa silvestre
Do Cubatão, tangida pelos ventos.
Exala o mar soluços e lamentos
Pela deserta praia. No horizonte,
Como uma guarda de honra se perfila
A Cantareira.
A águia está morta; agora
Levante a negra iniquidade a fronte!
Roje a serpe tranquila,
E o mocho insulte a aurora!
“Como um tambor ao fim duma batalha”,
Rompeu-se o altivo coração estoico,
Que pelo bem pulsara em desatino.
Nunca nas brancas dobras a mortalha
Outro envolveu mais puro e peregrino.
— Chora e abençoa, Pátria, o filho heroico,
E tu, Justiça, o morto paladino!
Protege-nos d’além, sombra bendita!
Grande espírito, não nos desampares!
Tu, — como o gênio tutelar que habita,
Para os antigos, nos acesos lares, —
Na alma da mocidade
Brasileira, que te ouve eternamente,
Abrasada no amor da liberdade,
Tens culto eterno em ara sempre ardente!
Valença, outubro de 1886.
VOZES DO SÉCULO
Um dia, na sombra imensa
Do velho mundo pagão,
— Arrebol da luz eterna —
Brilha um fúlgido clarão!
Depois... trágico e sereno
Morre o grande visionário...
Doce Jesus do Calvário,
Deus do amor e do perdão!
E o mundo inteiro estremece
Quando o pálido Jesus
No derradeiro gemido
Inclina a fronte na cruz;
E o seu verbo incendiário
Propagou-se... — Liberdade!
Fraternidade! Igualdade!
É a revolução da luz!
E das serenas alturas
Onde Ele morreu, então,
Desce uma caudal de graça
Um luminoso Jordão...
Ei-lo, inunda a terra inteira,
Bom, fecundo, humanitário...
E o teu olhar do Calvário,
Deus do amor e do perdão!
Então Têmis, a Justiça,
A austera deusa sem dó,
A musa do estoicismo,
Viu que já não estava só...
A seu lado, luminosa,
Anjo bom da nova idade,
Caminhava a Caridade,
Que o Cristo erguera do pó.
A arte, a bela impudica,
A nua grega, a visão
De Fídias e Praxiteles,
Velou as formas... e então
Viu-se a ideia — casta e santa.
— Santo revolucionário!...
Doce Jesus do Calvário,
Deus do amor e do perdão!
E a poesia, a companheira
Do velho Homero sem luz,
A ébria amante de Ovídio,
De olhar langue e seios nus,
Cora, — nova Madalena...
Pede alguém que o céu lhe ensine...
Chama-se hoje Lamartine,
Casta fronte, olhos azuis...
Na alma da humanidade
Entra um divino clarão...
A mulher sente-se santa,
O homem sente-se irmão.
A verdade, o bem, o belo
Brilham na alma-santuário!...
Graças, Jesus do Calvário,
Deus do amor e do perdão!
... Oh! mas eis que tudo muda
Um negro gênio infernal!
Abisma-se o mundo em trevas,
Na noite agita-se o mal!
Nos corações morde o ódio...
Amarga n’alma a vingança...
Ai! só se sente a esperança
Na mão que aperta o punhal!
Que horrenda tragédia é esta
Que em meio da escuridão
Invade o mundo, acendendo
As febres da indignação?!
Ah! destes demônios negros
Cada qual é teu vigário,
Louro Jesus do Calvário,
Deus do amor e do perdão!
Eles, os santos obreiros,
São uns bandidos, meu Deus!
Cada padre é um Anti-Cristo!
Eles é que são ateus!
Mais que Pedro, eles te negam
Mil vezes, filho do Eterno!
E o teu coração paterno
Ferem mais que os fariseus.
Tu enxotaste do templo
Os mercadores, em vão!
Olha como mercadeja
Pio Nono, o vendilhão!
S. Pedro, ávido porteiro,
Abre o céu — a preços fixos!
Ai, Cristo dos crucifixos!
Ai, bela religião!
Olha! a Santa Madre Igreja,
A esposa celestial,
Impõe as mãos ao carlista
E abençoa-lhe o punhal!
Assim, outrora, à Vendeia,
Velha beata assassina,
Deitou-lhe a bênção divina
E fez-lhe o santo sinal.
Assim cobrira de bênçãos
A Luiz Napoleão,
Rei cobarde e assassino,
Rei traidor e rei ladrão!
Como já sagrara o Grande,
Torvo monstro sanguinário...
Por ti, pomba do Calvário,
Deus do amor e do perdão!
Assim, — divina criancice! —
A filha de Nazaré,
A meiga esposa do Cristo,
Para reanimar a fé,
Que se apagava, um bom dia,
Quis um fogo d’artifício,
E acendeu-se o Santo Ofício...
Pois é tão simples, não é?
Agora, na livre Espanha,
Ressuscitada nação,
Ei-los, os santos carlistas,
Bacamarte e cruz na mão!
Os bandidos arvoraram
Por bandeira o teu sudário,
Meigo Jesus do Calvário,
Deus do amor e do perdão!
Oh! atende, Deus piedoso!
Rezam trêmulos aqui
Os católicos romanos,
Que ainda esperam de ti
Um golpe de Providência...
Essas frontes inclinadas
Têm umas visões douradas...
Sonham Saint-Berthélemy!
Santo Deus de minha infância,
Sagrada religião
Que minha mãe, de seus lábios
Me verteu no coração...
Tudo esvaiu-se... Mas brilhas
No meu íntimo sacrário,
Doce mártir do Calvário,
Homem de amor e perdão!
S. Paulo, 15 de outubro de 1874.
LUPUS IN FABULA
"Falar no mau, aparelhar-lhe o pau."
Cet home avait tué le caractère, la pensée, la vertu, le travail.
Pelletan. — Décad. de la monarchie.
Orava um professor do Imperial Colégio
De dom Pedro II: ”Acerca deste rei,
Glória da monarquia, honra de sua grei,
Que ao século que o viu legou seu nome egrégio,
"E ainda que o dizê-lo aqui é um sacrilégio,
Sacerdote da História, impávido direi
Que era um tirano vil, alma sem fé nem lei,
Que entronizou consigo o arbítrio e o privilégio.
"Infatuado e mau, comilão e devasso,
Governou este rei corrupto e corruptor
Um grande povo exausto e morto de cansaço.
"Tal era Luiz XIV, o rei-sol, protetor
Das letras... ”Neste instante, em majestoso passo,
Entrou pela aula dentro o nosso imperador.
Minas, 1880.
NO TREM DE FERRO
Vinha sentado gravemente, mudo,
D’olhos baixos, obeso e venerando,
Mãos cruzadas no ventre, ruminando
Velhas rezas ou santo e duro estudo.
Ergue o tímido olhar, triste; contudo,
É paternal e bom; de quando em quando
Ao céu o volve, ao céu que vai passando
Pelas vidraças, empoeirado. Tudo
Nele respira a fé e cheira a igreja.
Por todos os seus poros Deus poreja.
Do seu breviário agora pasta as folhas.
Pio varão! para este já começa
O reino do Senhor!... mas sai à pressa
E cai-lhe da batina — um saca-rolhas.
1886.
O PESADELO[6]
Deo nihil impossibile.
FERREIRA VlANA.
Esta passada noite, ali em Santo Antônio,
Onde se refugiou das traições do demônio
O pensador austero, Houve um caso de horror.
Tudo dormia, o claustro e o angélico doutor
Num forte ressonar, alternado de arrotos,
Mas nobres, não de mel silvestre e gafanhotos,
Senão da pescadinha e do Pontet-Canet
Com que se mortifica hoje um ventre que crê.
Dormia o justo, pois, quando na cela escura
Entrou subitamente uma estranha figura...
Magra, mais do que magra, esquelética... o olhar
Desvairado de febre, a boca a vomitar
Negro; e pondo-lhe a mão fria na testa ardente,
Disse, vociferou:
— Lacaio da Regente,
Esmoler-mor do Paço, eis o conto de réis
Com que me injuriaste as aflições cruéis,
A agonia mortal. —
E cuspiu-lhe na face
Oiro candente, o mais... até que ela corasse!
E calcou-lhe no peito, e ajuntou:
— Vai dizer
À beata imbecil que me deixe morrer
Em paz, que não preciso irmãs de caridade
À minha cabeceira, eu, a heroica cidade
Que abriu à Escravidão foragida a alma e o lar!
Esta glória não pode a hipócrita usurpar,
E em disto me contento, e isto só me conforta,
No momento da angústia, a entranha semi-morta.
Recolha a adulação da vassalagem vil
A embusteira; eu, na dor da morte varonil,
Vejo, por sobre mim, mão reivindicadora,
A da História, insculpir: SANTOS, A REDENTORA.
Esvaiu-se a visão; mas surgiu, logo após,
Outra mais alta ainda, e outra mais alta voz:
— Dorme teu sono vil de fâmulo repleto,
Miserável! O crime atroz está completo.
Bem se pode dormir em regalada paz...
Deus, afinal, é justo — e pessoa capaz.
No paço imperial diz-se, atrás das cortinas:
“Louvado seja Deus, está morta Campinas,
“Aquilo era uma praga, o diabo, o coração
“Do republicanismo e da revolução.
"Agora, boa noite! era uma vez a aurora...
"Pode tranquilizar-se a Imperial Senhora."
Mentis como vilões, como cães, como vós!
Quanta vez me matais! como o medo é feroz!
Aqui estou, viva e rija. A hora é de perigo:
O trono imperial pode contar comigo.
Como Santos, lhe devo a vida — e este chapéu.
Ó tu, que sempre estás a relamber o céu
Com o sonso olhar, daí da escuridão da cela,
Rojando aos pés do altar a alma, magra cadela
Que anda a ver como aboca a eterna glória, vai
Mandar engorolar, com rótulo a Deus Pai,
Umas missas a bem destes pobres finados
Que esperam pela cova e o perdão dos pecados:
O pundonor e a fé monárquica, o amor
Dos súditos fiéis ao velho imperador,
E o teu próprio governo apodrecido... —
Um grito
Fez dissipar-se o espectro, acordando o precito.
Alagado em suor de agonia. E entre ais
Exclama: “Peixe e vinho à noite, nunca mais!”
Rio de Janeiro, 6 de maio de 1889.
A REVOLUÇÃO
Entronizou-se a trova, e cresce e aumenta
O lúgubre reinado da opressora
Rainha que baniu a luz da aurora;
E a terra anseia, sôfrega, sedenta...
Mas é chegada a hora! Austera e lenta,
Qual se de um deus-juiz sentença fora,
Rola no enorme espaço aterradora
A grande voz solene da tormenta.
.........................................................................................
Que é do estupendo horror?!... Em calma e pura
Glória, fulgem os astros imortais,
Rebrilha toda a constelada altura!
Assim to sonho, ó terra de meus pais,
Desafrontada desta noite escura,
Gigante alegre ao sol dos ideais!
Campinas, 1876.
VISÕES DO ABISMO
I
A ENJEITADA
A casa tem as aparências ricas
Duma infâmia feliz, alvas, rendadas
Cortinas, bronzes, galas alugadas,
Miséria que se ostenta! Ai! como ficas
Tristonha aí, com as faces tão pintadas,
O pobre rapariga! o nem replicas
As torpezas que as bocas impudicas
Te lançam, do tumulto das calçadas.
A noite vem caindo das alturas...
Hora de amor! No olhar que levantaste
Agora ao céu, havia ideias puras.
Depois, qual murcha flor que pende na haste,
A fronte inclinas lânguida e murmuras:
“Ó minha mãe! porque me abandonaste?..."
II
O ANJO DO PROSTÍBULO
A casa é um antro: é o lar do vício e do pecado.
Aluga a baixo preço o corpo desgraçado
A triste que ali mora, — emurchecida flor
Que nunca em vida teve um raio só de amor!
Apodreceu de todo — e tem dezesseis anos!
Traz nos olhos febris, mais bestiais que humanos,
O vinho da luxuria, a embriaguez do mal.
E ali, naquela casa ignóbil, imoral,
Existe uma criança, uma loira pequena,
Meiga como o perdão do Cristo à Magdalena,
De límpido sorriso e claro olhar azul.
Raio louro de sol na face do paul,
Alvo lírio do céu brotado na imundice,
Flori naquela ruína aquela meninice.
III
A BESTA MORTA
Na senzala, no chão, numa esteira amarela,
Jaz o filho de Cã, o maldito. É um velho.
No mal coberto ombro os vestígios do relho
Traçaram-lhe uma cruz, — a única que o vela.
Cruza no peito as mãos roídas do trabalho.
Sobram do cobertor os grossos pés informes.
Dorme, descansa enfim, que do sono em que dormes
Já não pode acordar-te a sanha do vergalho!
Como única oração que tua alma proteja,
Por sobre a podridão de tua boca fria
Vibra no ar zumbindo-a mosca de vareja...
Enquanto, ao longe, o sino, em voz cansada e lenta,
Reza, doce cristão, a sua ave Maria,
E o moribundo sol as nuvens ensanguenta.
IV
A RELIGIÃO
Vasto palácio esplêndido, a morada
Cintila ao sol, por entre o majestoso
Parque cheio de sombra e de repouso.
Lacaios, de libré, guardam-lhe a entrada.
A aleia, de roseira e mirto orlada,
Vai morrer junto ao mármore ostentoso
Duma ampla escadaria. — Nunca o pouso
Pede a pobreza ali, de envergonhada.
Habita-o, com certeza, um milionário,
Um príncipe, talvez... — Nada! ao contrário,
Um pecador de Cristo mui pequeno:
Sua Excelência o bispo diocesano,
Que nunca, por um nobre orgulho humano,
Imitou servilmente o Nazareno.
V
A RELIGIÃO
É na roça, num rancho ao pé da estrada.
Há pouco amanheceu. Do limiar,
Diz para dentro, irado, a gaguejar,
Um velho de estatura agigantada:
“Então, a um pobre paga-se a pousada
“Desonrando-lhe a filha?!... Mau lugar
“Escolheste, meu cão, para ficar!...”
Diz, e aponta a garrucha engatilhada
Para um vulto no canto encurralado.
Move-se este, ergue o braço e diz, pausado:
"Atende! por tua alma! por quem és!"
E descobre a cabeça. — ”Ó Virgem Madre!”
Exclama o velho... ”Me perdoe, padre!”
E vai cair-lhe ajoelhado aos pés.
VI
O AMOR
Menina, por amor de um estudante,
Longas noites velou entre quimeras,
E amava-a ele como em belas eras
À Dulcineia o cavaleiro andante.
Mas o doce romance interessante
Atalha um pai burguês: as mais austeras
Lições recita à filha: ”Tu, deveras,
“Não sabes ver a vida um palmo adiante...
“Pois sim, pequena; casa com o taful,
“E vai depois morar... p’ra o céu azul."
E assim mais coisas deste peso disse.
Casou rica, está bem; hoje, feliz,
Enfeita a testa do marido, e diz
Que essa história de amor é uma tolice.
VII
O AMOR
(palavras de uma adúltera)
“Toda alma é irmã de uma alma: Deus criou-as
“Aos pares, e as fez mulher e homem”[7].
Raro permite a sorte que se somem
Essa divinas gêmeas... Agrilhoas,
Catolicismo, as almas, ruins ou boas,
P’ra todo o sempre! Quantas se não somem
Nos vórtices do mal! Vamos! perdoem-me!
Ao menos tu, religião, perdoas!
Ai! como o inferno dos remorsos arde!
Porque vieste, ó alma irmã, tão tarde
Que só na infâmia posso estar contigo?!
De que me vale amar e ser amada?...
É uma grande loucura condenada
Esta paixão, meu crime e meu castigo!
VIII
A FAMÍLIA
Home, sweet home.
Abrasa o sol; chilreia no cerrado
O canto das cigarras estridente;
Vem um vago torpor do dia quente,
Do monótono céu enfumaçado.
No rancho de sapê, de beira rente,
Apagou-se o fogão, de abandonado.
Num berço de taquara, para o lado,
Chora um pequeno lastimosamente.
Toda curva no cepo em que se senta,
Alisa as dobras do vestido sujo
Feia moça tristonha e macilenta.
Entra o marido. “Cruzes! quem suporia.
“Este inferno?! e maldiz-se quando fujo!...”
Pragueja, e sai arremessando a porta.
IX
A FAMÍLIA
(sobre uma página de Eça de Queirós)
São as paredes de uma cor simpática...
Mavioso perfume no ar ondeia...
Está-se bem na sala: é alta, cheia
Duma discreta luz aristocrática.
Junto à condessa, muito branca, apática,
Um gorducho marido papagueia.
Ao lado que o piano mais sombreia,
Em absorção deliciosa, extática,
Um rapaz louro, encantador e sério,
Escuta, com adúltero mistério,
Do rechonchudo a esposa sensual.
Enfim sai: e o olhar dela veemente
Pela janela o segue longamente...
E pensa do marido: “Este animal!”
A PROPRIEDADE
Está silencioso o rico palacete
Do opulento senhor barão de qualquer cousa:
Volta do baile agora acompanhando a esposa;
É alta madrugada. Há pouco, ao lansquenete,
Perdeu Sua Excelência uns contos... seis ou sete...
Já lhe não lembra quanto... A mulher, carinhosa,
Chama-o; faminto olhar no alvo colo pousa,
Que as delícias febris do tálamo promete.
E é um seio de mãe, aquele! mas não cria;
À mesma hora, o filho, em câmara sombria,
Mama em seio plebeu e livre de espartilho.
E o filho da ama chora... Ó magro pequenino,
Começas a sentir teu lúgubre destino.
— Alugas, ó mãe pobre, a fome de teu filho!
XI
A PROPRIEDADE
(ART. 219 DO CÓDIGO CRIMINAL)
Enche longo silêncio mortuário
A pobre habitação, toda fechada.
É a casa dum triste octogenário,
Rude e pobre; pois ei-la desonrada.
Entrou-lhe a porta, em hora malfadada,
Um fidalgo. Fingia-se operário.
Mão de esposo promete à namorada,
E tem franco o indefeso santuário.
Rouba, como um ladrão, a honra alheia,
E à pobre gente que na dor anseia
Sem braço d’homem que a proteja e vença,
E à pobrezinha que nem hoje o odeia,
E ao fraco velho que sucumbe à ofensa,
Responde: “A lei m’a ofereceu: comprei-a.”
XII
A PROPRIEDADE
Sua, rasgando o seio à terra dura,
Ao sol ardente, o rude jornaleiro;
E na lôbrega mina fria, escura,
Lida e mata-se o intrépido mineiro.
No inclemente oceano traiçoeiro,
O pescador, que o negro céu tortura
Com as gélidas cordas do aguaceiro,
Em cada onda à morte se aventura.
Na cidade, entretanto, o gordo agiota
Farto digere e consolado arrota,
Pousando o cálix de licor enxuto.
O que o Trabalho ganha em todo um dia,
Sua Alteza o Capital, que se enfastia,
Em meia hora o fuma — num charuto.
XIII
A PROPRIEDADE
(no cemitério)
Aqui jaz o calor da juventude,
As generosas ambições de glória,
O amor — a luz da vida transitória,
O entusiasmo e os sonhos o a virtude...
Tudo enterrou-se aqui: o áspero e rude
Egoísmo, e o orgulho e a ilusória
Esperança...Aqui jaz toda uma história
Encadernada em cada um ataúde.
Neste fúnebre pouso derradeiro
A eternidade no silêncio fala...
Mas ainda tem altares o dinheiro,
Que nem a Morte a humanidade iguala:
Para o rico — o epitáfio lisonjeiro,
E para o pobre — o anônimo da valia!
XIV
O CONSÓRCIO MALDITO
Ele é um rude sujeito honrado e generoso,
Forte e trabalhador. Ela é toda franzina;
E de antiga nobreza; e é da raça felina
O seu mavioso gesto elétrico e nervoso.
Jura-lhe amor, e tem-lhe um ódio rancoroso.
Sobro o peito do atleta o régio busto inclina,
E mete-lhe no bolso a mão fidalga e fina
E despoja-o. E ele, o bom e cego esposo,
Deixa-se despojar, e trabalha, calado.
Ela com uns padres vis anda de mancebia,
E, fartos, riem dele, o enorme desgraçado.
Ela é a Messalina, a barregã sombria,
Ele, um trabalhador estúpido e enganado.
Ele chama-se — Povo, e ela — Monarquia.
XV
NO FUNDO DO ABISMO
(paráfrase de um dito popular)
Paramos de descer e de rolar,
Paramos: é o fundo já do abismo.
Tirou de todo a máscara o cinismo;
É noite negra na alma popular.
Nasceu esta miséria deste par
— A Monarquia e o Ultramontanismo.
Despojou-nos o negro banditismo,
No covil-trono e no balcão-altar.
Ó Pátria! surge deste inferno em que ardes!
Concidadãos! debalde esperareis,
Se das mãos do opressor tudo esperardes.
Não! vós não vos salvais se não bebeis
Todo o sangue do último dos padres
Pelo crânio do último dos reis!
Minas, 1879.
A MOCIDADE MILITAR
Recuperare aut mori; nunc aut nunquam.
Divisa de Maurício de Nassau.
Moços, ó meus irmãos! a hora se aproxima!
Alerta nas fileiras!
O sol, rútila trompa, entorna lá de cima
Alvoradas guerreiras!
Em pávido refluxo, a noite vai-se embora
Ante a enchente de luz que o espaço todo invade.
Erguei-vos, mocidade!
Fraternizai com a aurora!
Sob o azul pavilhão deste céu brasileiro,
Entre visos de serra audazes como brados,
Não pode haver soldados
Senão da Liberdade e contra o Cativeiro!
Sois a força, o valor, o “braço às armas feito”;
Pois que já mostra a garra a tirania mansa,
Atirai na balança
A espada da Justiça, ó Brenos do Direito!
À honra da Nação votastes vosso braço;
Da Monarquia, não, da Pátria é que sois guarda:
Mostrai que a nobre farda
Não é libré do Paço!
Suscitam contra vós os cômicos ulanos
Da Guarda Nacional... Venturosa lembrança,
Dar uma farsa em guarda à farsa de Bragança,
À realeza imbecil e aos papos de tucano.
De pó, moços! abaixo o trono! acima o povo!
Soe o hino triunfal do palácio ao casebre!
Acenda da paixão democrática a febre
O vosso altivo sangue audaz, vermelho e novo!
Certo lobo do mar, pendente duma verga
Fará boa figura...
Enquanto pela altura
O livre pavilhão se desenrole e se erga!
O governo está forte — e os ventres sossegados.
Já do Terceiro Império as torpes gargalheiras
Vão nos estrangular os derradeiros brados...
Agora ou nunca mais! — alerta nas fileiras!
Rio, outubro de 1889.
CANÇÕES DO OUTONO
(1874-1895).
A MINHA MULHER
C’est l’instant des amours et des nids.
Mme Desbordes-Valmore.
PREFÁCIO
A poesia lírica e as Canções do outono
A gênese do estado poético, tal qual eu a compreendo, explica-se por um conceito contido em todas as religiões e em todas as filosofias. Esse conceito aparece tanto na trimurti védica, na harmonia das esferas e na metempsicose de Pitágoras, nos mistérios de Ísis, na dualidade zoroástrica, como no idealismo de Platão, nos turbilhões de Epicuro, nas leis de Newton e de Kepler e no evolucionismo de Spencer.
O espirito humano, manifestação suprema da nossa espécie, progride em uma linha determinada: — entre o mito do selvagem e o aforismo do filósofo a diferença não é tão fundamental quanto muita gente supõe. As superstições míticas, na opinião de Fiske, Mannhardt, Tylor, Lang, Bergaigne e outros, são explicações de fenômenos naturais, formuladas por indivíduos incapazes de elevar-se à noção abstrata das forças que agem no mundo subjetivo e objetivo. Tanto no mito como no conceito filosófico, reconhece-se a tendência para ligar o fato estético a potências ou forças que se perdem nas fronteiras da incondicionalidade do pensamento. Saber se na nebulosa já se agitava um broto de poesia é curiosidade que pouco ou nada influi para delimitar o estado poético de outras situações físicas; para isso, basta remontar ao momento da evolução humana em que a vida mental se denunciou de modo apreciável.
A poesia é a transformação do sentimento da força, — consiste, talvez, inteiramente nesse movimento psíquico. Encarada sob esse aspecto, a poesia não passa de uma irradiação orgânica; dadas certas condições, é a resultante da circulação da vida, na sua maior intensidade relativa.
Cada indivíduo encerra no sistema nervoso carga de eletricidade suficiente para a produção desse estado ditirâmbico, que toda a gente mais ou menos vagamente conhece. Não há quem ignore qual o efeito da flacidez orgânica que se opera quando ao eretismo dos centros nervosos sucedem o abatimento e a apatia. A amplitude da força produz a alacridade do organismo inteiro; percorre-o uma vibração indefinível; e a vida, em sua intensidade máxima, difunde-se nas eloquentes manifestações desse estado fisiológico, que afirma o poder elaborativo e transformista da Natureza, em completa oposição à hipocondria e a tantos outros estados precursores do aniquilamento e da morte.
Em tudo isto opera-se um jogo visceral muito complicado, que seria dificílimo acompanhar. Se é exato que esse estado ditirâmbico surge como um fato real, não menos certo parece que tal estado nunca deixa de resolver-se numa descarga, mais ou menos completa, dos centros nervosos, fenômeno que nas naturezas superiores, nos artistas, mais comumente toma as formas assinaladas com o nome de obras d'arte. Ora, neste ponto, precisamente, incide o paradoxo, tantas vezes repetido, de que o sentimento da vida se confunde com o sentimento do amor, e de que, sendo a poesia a manifestação desse prolapso da força, o lirismo viverá eternamente ligado à função tão essencial à natureza humana, que poderia ser considerada o aferidor do equilíbrio orgânico da energia vital e, portanto, das alegrias da espécie.
A importância de tal correlação não passou despercebida a Mantegazza, que, na sua Fisiologia do amor, ao ocupar-se das relações deste sentimento com o pensamento, indica à crítica literária um novo caminho — na sua opinião cheio de admiráveis pontos de vista fisiopsicológicos — para as questões de estética.
“A influência do amor sobre a força, diz ele, e sobre a forma do pensamento é dupla. Como sentimento, quer nasça na juventude, quer rejuvenesça na velhice, todo o seu valor consiste nas excitações que provoca, sobretudo na fantasia, afiando as aptidões para a reprodução do Belo, em uma palavra, exaltando essas aptidões mentais que, de ordinário, chegam ao apogeu na idade em que o amor desenvolve a sua máxima energia.
“Não há possibilidade, continua o mesmo autor, de chegar a ser um grande artista, ou um grande poeta, se esses talentos não forem impelidos por uma correspondente capacidade de amor. A castidade, imposta ou voluntária, pode eclipsar o amor; mas, no fundo do coração, reviverá uma imagem, mais vizinha do anjo do que da mulher, imagem que estará sempre pronta, ao lado do gênio, para, nos momentos de inspiração, inflamar o fogo sagrado da Arte, no canto lírico e no traço do pincel. O gênio dos maiores poetas, artistas ou escritores encontrou no amor o primeiro companheiro, o excitante soberano; e é bom de crer que, sem este sentimento, os seus nomes fossem totalmente ignorados. O amor, que nasce em um cérebro sublime, acumula forças gigantescas, e, aperfeiçoando-as, reduplicando-as, transforma-as no gênio... O amor feliz e triunfante eleva todos os cérebros acima da temperatura média e torna-os fecundos em novas energias”.
Mantegazza viu, todavia, os fatos muito abstratamente. Para ele, o amor é apenas um acidente favorável à poesia, ao lirismo, um acidente variável e dependente de circunstâncias especiosas. Eu, no entanto, penso que o amor, ou melhor a função genésica, é o substractum, o elemento propulsor e inconsciente de toda e qualquer manifestação poética. O canto anaclético do forte, daquele que se sente viver, o canto do vitorioso — são o centro próprio da poesia. Tudo mais são derivados ou perturbações do sentimento de alegria, essencial à progressão e à vida da espécie. O voe victis é o ponto de partida de toda a poesia humana.
Uma extraordinária irradiação vai pelo universo além, de horizonte em horizonte, exaltando o movimento e integrando a vida.
Foi por uma espécie de antecipação do espírito moderno que o poeta da Divina Comédia atribuiu a direção da máquina celeste à contração do amor...
............... Che tuto muove
Per l’universo penetra; e risplende
In una parte più e meno altroce.
Com efeito, ninguém há que, atendendo ao espetáculo da vida, com o espírito preparado pela síntese, ou desprendendo-se, por instantes, da familiaridade obscurecedora da existência pratica e quotidiana, desconheça que tudo neste mundo se reduz a uma sucessão de polarizações, e que essa máquina imperscrutável, de que somos diminuta parte, é o produto de uma contração universal. Bastaria que este fato pudesse traduzir-se diretamente em uma consecutiva expansão psíquica para que a poesia fosse explicada como expressão, propriamente dita, da ordem do universo.
O espirito observador, que se tenha impressionado com as vibrações que percorrem o seu habitat, no momento de se manifestarem fenômenos atmosféricos depressivos ou expansivos, deve ter notado que o ambiente, e, com ele, não só as espécies vegetais, mas também as animais e o homem, abrangidos num acordo geral, se entristecem ou se alegram, envelhecem ou adolescem, como se se tratasse de um organismo concreto, fisiologicamente classificado pela ciência. Não é verdade que, em certos momentos, a natureza como que entra em sinfonia? Num perímetro dado, pelo menos, quando se exageram as condições de vitalidade, quando os parênquimas se dilatam, quando o grande simpático da região, chamemos-lhe assim, permite a exaltação das forças e das faculdades em ação e coordena a consciência do lugar — é certo que, no conjunto de tudo quanto nessa região se agita, consciente ou inconscientemente, há um hausto indefinível para o movimento, é raro que esse hausto, progredindo em um crescendo enérgico, não termine por traduzir-se nas manifestações luminosas do sentimento da SOLIDARIEDADE TERRESTRE. Quantos poetas não têm sentido, embora vagamente, a presença dessa onda, na multiplicidade dos fenômenos exteriores; quantos não terão até descrito, com variada nomenclatura e com imagens abstrusas, as oscilações dessa eletrização e os cambiantes dessa portentosa circulação da vida? No entanto, o que é exato é que nem um só átomo, nem uma só molécula, nem um só vivente escapa a esse movimento clônico; e momentos há em que, por uma espécie de hiperestesia dos nossos sentidos, manifestada em toda a extensão da escala zoológica, chegamos, com um pequeno esforço de atenção, a discernir todas as gradações daquele crescendo, desde as manifestações automáticas dos mais baixos representantes da espécie, até às rutilantes elações do gênio do homem.
Verifica-se, então, que a poesia é idêntica à força procriadora, que a poesia é um crescimento e que o homem, projetando-se na linha indefinida das aspirações de aumento de capacidade cerebral, como instrumento complexo e timbrado, transforma os excedentes da potência, que o dirige para o amor, nas harmonias da Arte e nos poemas da beleza ideal. Poiesis, em grego, quer dizer ação de fazer alguma coisa; Poiêtes, fazedor, criador.
É verdade, porém, que nem sempre o homem e a sociedade adolescem para esse estado ditirâmbico, resultante do prazer de viver e de propagar-se. Casos há em que a dinâmica da poesia sofre intercorrências. O homem envelhece; a humanidade entra em períodos de decadência, a vida desenvolve-se fora do seu eixo próprio. Nestes momentos de crise, os instintos conduzem o homem ao descobrimento da felicidade, e, perdida a verdadeira orientação, esses instintos retrocedem à animalidade bruta e desviam-no, por muito tempo, do caminho ao longo do qual via o amor da vida e o amor da mulher transfigurar-se no amor da glória, da humanidade e do Belo ideal. A força desorientada converte-se na dor. O homem decrépito, abatido, deslocado da harmonia universal, colocado numa sociedade devastada pelas resistências que ao crescimento do entusiasmo opõem religiões gastas, filosofias esgotadas e costumes degenerados — o homem enlouquece, deprava-se e começa a conceber o amor e, portanto, a poesia tal qual o pessimismo de literaturas decadentes no-lo têm apresentado: — bestial, materializado, mal sobredourado pelas formas do erotismo mítico dos gregos.
Eis a parte tenebrosa do assunto, sobre a qual haveria um longo capítulo a escrever.
A teratologia do amor já encontrou, é certo, quem a escalpelasse.
Binet, em um dos seus mais interessantes trabalhos[8], tratando deste assunto, com rara felicidade, designa sob o nome de ruminantes eróticos os indivíduos, que, perdendo a noção equilibrada da força, cedendo, de cada vez mais, à propulsão cega da animalidade, sofrem a hipertrofia da ação, no sentido de uma tendência exclusiva; muitas vezes, dominados por uma subdivisão dinamizada dessa mesma tendência, chegam a apresentar os mais extravagantes produtos de ordem psíquica.
“Haveria, diz ele, imenso interesso em mostrar como certas pessoas conseguem satisfazer as suas necessidades genitais construindo e amontoando na cabeça os mais disparatados romances de amor, substituindo uma sensação por uma imagem, por isso que lhes é vedada a sensação que acompanha a aproximação sexual”.
Todos conhecem os episódios de D. Cesar de Bazan, degustando cartas de namoro, dirigidas a outros, ou aspirando voluptuosamente emanações de uma cozinha cujos acepipes não lhe podiam chegar aos lábios. Desde o hipocondríaco, citado nos livros de clínica psiquiátrica, que, indiferente à mulher real, se entrega ao delírio erótico quando vê uma botina feminina de salto à Luiz XV, desde os fanáticos por mãos delicadas, desde os adoradores de pés pequeninos, desde os loucos por olhos femininos, até aos idealistas ou grandes fetichistas sintomáticos, como Abeilard, Tasso, Tereza de Jesus e Rousseau — há uma sucessão de ancenúbios, nos quais facilmente se conteriam muitas hipóteses, muitos casos, que, na vida comum ou na literária, exigiriam da crítica uma classificação muito diferente da que ordinariamente se encontra em livros.
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A poesia não reside, não poderá residir nunca, nesse erotismo deliquescente, nem nessas depravações. Só o pessimismo dos degenerados deste fim de século se atreveria a procurar em tais desdobramentos o diapasão para a estética moderna. Mas, também, se a poesia, o lirismo, não reside nos ruminantes eróticos, é inútil buscá-la nos reacionários da última hora, que, odiando os excessos do zolismo, anestesiados para o verdadeiro sentimento do que vive, do que tem força, andam pelos in-folios dos monges da Idade Média a inspirar-se na iconografia pálida e mística das madonas, sonhadas entre as arcarias góticas de catedrais derruídas. O amor, assim haurido através dos retábulos amarelentos das sacristias, das bíblias raras, dos cimélios, dos incunábulos, pode ser transcendente e até dantescamente caricatural; mas, em todo o caso, é um amor mumificado pela reflexão in excelsis, emasculado pelo êxtase de seres sepultados em vida. Incondicional, abstrata, essa poesia não revela a natureza em seu frescor, e, vazia de sentido humano, difunde-se, com um gesto da Vida que perdeu a lei da sua existência. A isso chamavam os místicos cautério ou amor seráfico, “por ser causado pelos serafins, que, investindo a alma inflamada em uma chama de fogo vivíssimo, a traspassavam e cauterizavam subitamente”.
Felizmente, esses movimentos insensatos da alma são letra escura e indecifrável para os poetas brasileiros.
Aqui, o hálito dos trópicos e a conflagração dos temperamentos não permitiram ainda que os poetas se librassem em asas de arcanjos, para acender círios na capela mística de Santa Tereza de Jesus.
No Brasil, o amor e a poesia lírica apresentam-se em festa rútila, em continuas explosões da vida; quando a musa esquece o tom meigo das liras de Dirceu ou as queixas lancinantes do autor d’As Primaveras, não chega, ainda assim, a ultrapassar o transcendentalismo da adoração de Edgar Poe por Ligeia, — uma Ligeia morena, vivida, soberana, mas capitosa e entontecedora, dotada também daquela singular beleza e estranheza a que Bacon se referia, e sem a qual a poesia do mundo seria a inércia profunda.
Corra-se todo o Parnaso nacional, desde Gonçalves Dias até os trovadores de ontem, e ver-se-á quanto a musa mística é antipática aos nossos poetas, ainda mesmo aos que têm procurado imitar as manifestações dos últimos simbolistas.
Como escaparia o autor das Canções do Outono a esta lei inelutável?
Pertencente a essa raça dos poetas de ânimo igual e alma alegre, sem preconceitos, e que, de ordinário, buscam no amor o que se vai encontrar na flor — aroma e colorido — Lúcio de Mendonça mostra, a cada instante, no seu livro de versos, abeberar-se daquilo a que propriamente se pode dar o nome de brisa da felicidade.
A musa deste poeta já teve cóleras azuis, já vergastou inimigos da República, enrubescendo o verso com o jacobinismo das suas ideias políticas. Houve dia, em que o seu estro, para traduzir a indignação do patriota, pediu a fúria grande e sonorosa que o peito acende e a cor ao gesto muda; mas, embalde o fez, como embalde o farão todos os brasileiros que se lembraram de solicitar o entusiasmo dos antigos épicos. A sina é outra; os bardos brasileiros, note-se bem, que foram inspirar-se no valor das raças autóctones, como Santa Rita Durão e Basílio da Gama, salvaram as suas epopeias pelos episódios de amor. O Caramuru, O Uraguai vivem da vida de Moema e de Lindoia.
Lucio de Mendonça desprezou, pois, a tuba heroica. A lira pulsa mais naturalmente nos seus dedos celebrando o Eterno Feminino: e os seus versos, em ameno outono da vida, defluem como uma ridente manifestação das festas que no seu coração desperta a contemplação de Ligeia. Como o insigne conteur americano, ele poderia ter dito que ”pela expressão dos olhos da sua Ligeia, esses grandes, esses rutilantes, esses divinos orbes, afiguravam as estrelas gêmeas de Leda e faziam dele o mais fervoroso dos astrólogos”.
Sim, a sua inspiração é profundamente brasileira. Se no fundo da tela do seu espirito pressentimos a existência de uma névoa de ironia, não é difícil perceber que essa ironia — como se verificará lendo a poesia A minha amante — é dissolvida sempre numa jovialidade muito conhecida dos amigos, que lhe monopolizam as palestras. A candidez do seu poetar revela-se, aqui e além.
“Crede, eu enlouqueceria
De negros remorsos mil,
Se perturbasse a alegria
De vosso olhar infantil”.
Por exceção, é atraído pela meditação dos poetas preocupados de metafísica. Quando muito, a alma enamorada do poeta estringe-o na cogitação do infinito, concretizada na descrição de um coelho, que, silencioso, se imobiliza na várzea, em noite de luar.
“É o coelho, pobre alminha
Que em doido amor se aniquila:
Ama a pálida rainha,
A branca lua tranquila”.
Bem depressa, porém, aquela jovialidade afável se transformou no mais puro dos sentimentos, no amor grácil e imperturbado.
Ei-lo no templo, diante de uma formosa criatura. O seu coração, que ainda agora se lamentava, ”arquejante”, ”velho vaso de amor, partido e frio”, nesse momento exulta de alegria casta, e blasfema como blasfemam as crianças:
“E, quando se rezava Ave, Maria,
Eu sozinho comigo repetia:
Ave cheia de graça ó Marieta”.
Se na poesia de Lucio de Mendonça aparece um ou outro toque de sensualismo, pode afirmar-se que é sem macula, mas não do pecado original dos líricos brasileiros. Dir-se-ia que essa mácula se manifesta nas suas estrofes, como se fora a leve resina acre de alguns frutos, muito doces e muito brandos, que amadurecem nos pomares tropicais.
Sirva de resgate à culpa, se culpa existe, no Ainda e sempre, a contrição daquele ditirambo sobre o beijo —
"... da vida a chave abençoada”.
T. A. Araripe Junior.
Riachuelo, dezembro, 1895.
IDEAL!
C’est la”soif de la gazele”, qui toujours renaît et jamais n'est assouvie.
Flammarion, L'Atmosphère.
Desde bem cedo me sorriste,
O luz da alma contemplativa!
Na minha noite escura e triste
Hás de brilhar, enquanto eu viva.
Astro do enlevo solitário,
Oculta flor do ermo saudoso,
Lâmpada do íntimo sacrário,
Etérea fonte de almo gozo,
Tu és, na altura inaccessível,
O eterno prêmio que eu almejo
E sigo; brilhas impassível,
E eu vivo, enquanto ainda te vejo!
Por mais que neste inferno pene
E arder-me a vida toda sinta,
Adoro-te, ó sonho perene!
Ó ambição da alma faminta!
Astro amigo, fulge e cintila,
E, roto à vida o frágil nexo,
Venha-me à fronte, enfim tranquila,
A extrema-unção do teu reflexo!
1886
AINDA E SEMPRE
Em vão de ti quero esquecer-me, em vão
De rumor e de luta me embriago:
No mais profundo de minha alma trago
O teu olhar, eterna tentação.
Tortura-me sem trégua esta paixão!
Com a honra embalde a esbofeteio e esmago!...
Se eu sinto ainda o derradeiro afago
De tuas mãos!... Covarde coração!
Hoje teu corpo sensual, saciado,
Conhece todo o poema do pecado,
Conhece-o todo enfim! mas que me importa?
Seja um momento embora, e custe a vida,
Hei de em meus braços te apertar vencida,
Hás de ser minha ainda, ou viva, ou morta!
1877.
FLOR DE IPÊ
Na clara estação gorjeada,
Em flor o ipê se desata;
Ó bela árvore dourada!
Ó loura filha da mata!
O tronco, o pai, se revê,
Todo ufano, todo zelos,
Nesses teus áureos cabelos,
Que o sol beija, ó flor de ipê!
As abelhas, joias vivas,
Adereçam-te o toucado;
Diz-te frases expressivas
O sabiá namorado;
De ramo em ramo o tiê
Cai, como gota de sangue;
E a se enrosca langue
Nos teus braços, flor de ipê!
Mas, ai! tanta formosura,
Tão festejada e querida,
Pouco tempo vive e dura,
Logo cai a flor sem vida;
E sombrio e nu se vê,
Mudo, trágico, isolado,
Como um pai desamparado,
O velho tronco do ipê.
Na alegre quadra encantada
Dos sonhos e da esperança,
Vestiu-te a ilusão dourada
O coração de criança;
Surgiu-te — meu Deus! Por quê? —
Ante os passos peregrinos
Criança de olhos divinos,
Loura como a flor do ipê.
Sonhos de que te cobriste,
Coração em primavera,
Caíram todos, ai, triste!
Quanta dourada quimera!
Eis-te da sorte à mercê,
Já sem viço, já sem flores...
Aqueles pobres amores
Foram como a flor do ipê!
1878.
BOA NOITE
“Boa noite! “disseste-me risonha,
Ontem, na vez de nossa despedida;
Noite infernal, em cismas consumida,
Foi a noite que eu tive, atroz, medonha!
Tem boa noite o que tranquilo sonha
A ventura ideal apetecida
De unir à tua vida a sua vida,
Sem que noutro cuidado a mente ponha.
Eu, no leito da insônia esbraseado,
Ardendo em ciúme, vejo-te a seu lado,
Branca vestal de amor, vencida e terna...
E ambiciona então meu pensamento
A inalterável paz do esquecimento,
A minha ”boa noite”, a noite eterna!
1879.
NUPCIAL
A A....
Vem! que já voltando vejo
As andorinhas do exilio...
Há em cada raio — um beijo,
Em cada sombra — um idílio.
Que mais nosso amor espera?
Tudo nos convida: vem,
Noiva minha! a primavera
É um noivado também!
Tu verás, por onde fores,
Que longo êxtase inocente!
Cada voz declara amores,
Cada silêncio consente...
O céu azul abençoa,
Os lábios teus dizem — sim...
Como a natureza é boa!
Como és boa para mim!
A fronte é lira em que trago
Mil harmonias divinas,
À espera só de um afago
De tuas mãos pequeninas.
Brotam raios de poesia
De teus dedos ao roçar,
Como as flores de ardentia
Que os remos abrem no mar.
A vida inteira me invade
Noite negra, que apavora;
Abre nesta escuridade
Teus olhos, cheios de aurora.
À doce luz de alvorada
Que nasce de um olhar teu,
Vê minha alma deslumbrada
Todo o caminho do céu!
NO MATADOURO
Si quelqu'un méritait de finir sans soufrance,
Un soir, au bord des champs fraîchement labourés,
Sans autre perspective et sans autre espérance
Que de dormir sans fin sous la glèbe des près, —
C'était bien vous, amants des campagnes fleuries
Robustes pioniers, encore plus doux que forts,
.................................................................
................................................................
François Fabié, Poésie des bêtes.
Vão pelo estreito corredor, tangidos,
Os bois; percebem do ambiente hostil
Funesto anúncio; acolhem nos ouvidos
Rumor estranho; pica-os no quadril
A aguda mordedura da aguilhada;
Tremem de horror pressago e medo vil.
Mas já não há voltar: agora nada
Pode esquivar o epílogo fatal!
Na lúgubre carroça dão entrada.
Agora tu, ó matador bestial!
Crava-se a choupa na cerviz submissa,
Cai fulminado o válido animal!
Mas eis que rompe na sangrenta liça,
Alucinado, um grande e forte boi;
Estaca: os férreos musc’los inteiriça;
Solta um surdo mugido; aquele foi
O seu adeus à vida. Quem conhece
Final gemido que mais triste soe?
Talvez, se alguém o traduzir soubesse,
A saudade das límpidas manhãs
Nas campinas sem fim, nele entendesse...
Extensos chapadões... várzeas louçãs,
Onde ao cocho do sal todo a boiada
Ao meio-dia vinha... Ó sombras vãs...
Mas, na rude cabeça condenada,
Que insígnias trazes tu? que argolas são
Essas que as pontas te ornam?... Pois de nada
Ante o estúpido algoz te valerão?!
— Foste um trabalhador, um boi carreiro,
Anos e anos lidaste na opressão.
E vão matar-te assim?! O companheiro
Do cansado labor! tardo e senil,
Entrega a carne ao monstro carniceiro.
Ingratidão dos homens, como és vil!
Santa Cruz, 1885.
AMOR E AMOR
Il y a fagots et fagots.
Molière, Le Médecin malgré lui.
As ondas do Helesponto, que o separa
Da meiga Hero, que com a luz o envida,
Vence a nado Leandro, e perde a vida
No mar, que depois colhe a amante rara.
Safo, a poetisa, que Faon amara,
Suicida-se de amor. Só na jazida
Funérea, a sorte, enfim compadecida,
Une Romeu a Julieta. Na ara
Do extinto amor do prófugo troiano
Imola Dido a vida.
Um prestimano,
Doutor em artes de amoroso enliço,
O seu consorcio à gente comunica
Com velha múmia insaciada e rica.
Morria-se de amor; vive-se disso.
1886.
CANÇÃO DE VIAGEM
A manhã já doura os montes;
Chega a hora da partida...
Vou levar a errante vida
Para estranhos horizontes.
Por tua alma de criança,
Como nuvem de tormenta,
Passa esta alma turbulenta,
Passa — e não deixa lembrança.
Fica em riso a f’licidade,
Fica em festas e alegria,
E leve eu na alma erradia
Toda a noite da saudade.
Eu de nada mais preciso,
Que dentro da alma, escondida,
Levo luz p’ra toda a vida,
Levo a luz do teu sorriso!
Adeus! nos vales sombrios,
Onde soluçam as águas,
Derramarei minhas mágoas,
Chorarei meus desvarios.
Por meus lábios entreabertos
Roçará, fugindo, o vento,
E levará meu lamento
Para os bárbaros desertos;
E talvez que as feras brutas,
Ouvindo o vento que passa,
Deplorem minha desgraça,
Pelas solitárias grutas.
Mas eu de nada preciso,
Que nesta alma forasteira
Levo luz p’ra vida inteira,
Levo a luz do teu sorriso!
1885.
A TAPERA
Les temps sont accomplis, les choses se sont tues.
Leconte de Lisle.
A meio vale escuro, à beira do caminho,
Está silenciosa a velha casa em ruina...
Desabitado lar, abandonado ninho,
O horror da solidão fantástica o domina.
O horror da solidão, por quê? também na mata,
Na virgem, secular, inóspita floresta,
Há uma calma grande, em que a alma se dilata;
E, ao invés do terror, que portentosa festa!
Mais funda é a solidão na agreste cumeada
Onde não pisou nunca o bípede tirano;
Mas lá quanta alegria aberta e iluminada!
— O cunho do terror vem do vestígio humano.
Vê-se um velho postigo escancarado ao poente.
O tosco parapeito apodreceu... e vê-se
Que ali chorou, talvez, de saudades do ausente
Uma noiva fiel, que de esperar morresse...
A bela porta, franca outrora, está fechada...
E ninho de reptis a trepadeira amiga,
Que convidava a entrar na plácida morada,
Que já ninguém procura e a ninguém mais abriga.
Pobre, inútil ruína! Olhemos de mais perto,
Pelo teto, que abriu dos temporais o açoite...
Brotam ervas do solo esquecido e deserto...
E era este o coração da casa, ao lar, à noite!
Aqui se reunia, em pacifico bando,
A família, a sonhar os dias do futuro,
Enquanto, fora, o vento andava praguejando
E a noite ia seguindo o seu caminho escuro.
Ali, para o nascente, havia um aposento
Pequeno e recatado... ai! ali, porventura,
Morava a sinhá-moça, o riso, o encantamento
Da rústica vivenda, a doce criatura!
No vão dessa janela aberta para a estrada
Quanta cena de afeto ainda se imagina!...
Um cavaleiro ao longe a sumir-se, e, inclinada
Ao parapeito, a branca e chorosa menina...
Desconjuntado, já caindo-lhe os pedaços,
Vê-se um velho oratório... e, coberto de poeira,
Um Cristo mutilado abre os divinos braços...
Quanta fé o beijou na angústia derradeira!
Cá fora, indiferente, ingratamente alheio,
Passa o vento da mata, o alado vagabundo,
Sem um beijo, sequer, ao esqueleto feio
Da ruína sem dono, esquecida no mundo!
Somente à noite agora, ao ter da lua triste
A compassiva luz fantástica e serena,
Reanima-se a tapera e ressuscita e existe
De um sombrio existir que mete medo e pena.
Existe uma alma assim... Outrora foi ruidosa,
Clara, feliz, brilhante à luz da primavera...
Agora é nua e só, — sombra silenciosa,
Morta à beira da vida... a lúgubre tapera!
1886.
O PELICANO
Sacia todo o ardor da tua sede
No melhor do meu sangue: bebe! Esgota
O coração, a rubra taça... Embota
A garra, dos meus músculos na rede.
Qual mergulha nas ondas a gaivota,
Embebe-te em meu seio amargo... Quede
Teu ímpeto feroz ante a parede
Que meu peito lhe opõe. — Mas eis que brota
A recalcada lágrima insistente,
Que já nos olhos, trêmula, me brilha,
E pela face rola comburente.
Ah!... ninguém viu!... e esta alma não se humilha!...
— Acaba-me sem dó, mas mudamente,
Ó minha dor, ó minha nobre filha!
1887.
BEIJO PAGÃO
Fora de baile a noite, uma noite agitada
De inverno e temporal; pela estrada sombria
Rolava surdamente o carro em que ela ia;
Clareava, cor de leite e chumbo, a madrugada.
Encostada a meu ombro, alva pomba amorosa,
Sentia-lhe a cabeça, um peso amado e doce;
E a sôfrega ambição de meus lábios fartou-se
Na sua boca rubra, quente e voluptuosa.
Longo beijo profundo, em que meu amor todo
Toda inteira a beijou! Coaste-me nas veias
Veneno e mel e febre e cantos de sereias,
Beijo que me deixaste alucinado e doudo!
Deste a paixão mortal que ensandece e aniquila,
Que apaga o entendimento e que dissolve a força.
Tinhas a languidez de seus olhos de corça
E enfraqueceste um forte, ó beijo de Dalila!
1879
ETERNO AMOR!
Amávamo-nos tanto! e nada, nada existe
Daquele pobre amor! É, no entanto, bem triste
Pensar que tudo passa e morre e acaba assim!
Uma tarde, em dezembro, ao fundo do jardim,
Falávamos os dois, a sós; eu lhe dizia
Que a mísera alma humana, ao expirar do dia,
Chega a sonhar na terra o infinito amor!
O seu olhar azul, trespassado de dor,
Cravou-se em mim:
“Não crês no amor além da morte?”
E apertava-me as mãos com febre, com transporte.
“Existe o eterno amor! sei, porque o sinto em mim!
“Não pode perecer o que é profundo assim;
“Juras amar-me sempre e sempre, sempre”
“Juro!”
“Hoje, amanhã, depois, e sempre no futuro?
“Amar-me mais que a vida, amar-me mais que aos pais?”
E (perdoa!) ainda mais que aos filhos?”
"Ainda mais!"
Bêbeda de paixão, doida de amor, beijou-me.
............................................................
E seus filhos não têm, nem sabem, o meu nome!
1878.
NA CAÇA
Na mata. Chove em torrente;
O sitio é ermo e sombrio;
Desce um crepúsculo frio,
Que enregela a alma à gente.
A noitinha já vem rente,
E este macuco bravio
Não pousa, por mais que espio
Mas, deliciosamente,
Cismo na sala fechada
Da pacífica morada
Da criança que eu adoro...
Vejo-a daqui, pensativa,
Acordando a alma cativa
Do seu piano sonoro.
1878.
O BEIJO
Era no Éden, ao morrer do dia...
Adão, o moço Adão recém-criado,
Olhava a natureza entusiasmado...
A sombra era nupcial[9] ... e Eva sorria...
No paraíso então nasce o Desejo,
E no lábio de Eva, ainda impoluto,
Gera Adão, trêmulo, o primeiro beijo,
Flor do pecado de que somos fruto.
No beijo principia a humanidade:
Ele é da vida a chave abençoada...
Porque o maltratas, pois, com a estrofe ousada,
Apóstolo da luz e da verdade?
O beijo só te lembra Lovelace,
O colibri dos lábios amorosos...
Pois beijos tem havido em casta face,
Puríssimos, ideais, religiosos.
Há castos beijos na poesia: — envio
A Shakespeare, o imortal poeta:
É o beijo de Romeu a Julieta.
Já morta e fria no sepulcro frio.
Na história há um beijo — e é glória que reflete
Naquele negro nome, e o faz brilhar:
É o beijo de Maria Antoinette
Na pensativa fronte de Mozart!
É o beijo a mais doce recompensa,
É a glória melhor! ai! merecê-la
De uns lábios virgens! cai como uma estrela
Na altiva fronte do que sonha e pensa!
Se é um beijo de noiva, que delícia!
Que céu aberto — o beijo de uma amante!
Queres num traço o quadro da carícia?
— É a mãe a beijar o filho infante.
O beijo é um hino a quatro lábios; sina
Inditosa não há p’ra quem o canta...
Nasce do beijo o amor, que tudo encanta,
Como Eloá, da lágrima divina!
E existíramos nós, dize, em verdade,
Sem essa flor do amor e do desejo?
Se, pois, amas sincero a humanidade,
Ó poeta e pensador, adora o beijo!
Minas, 1877.
AVE, MARIETA
Ontem no templo viste-me ajoelhado,
E sorriste do teu racionalista...
Não era o crente, não, era o artista,
Não diante do altar, mas a teu lado.
Não me importava nada, à tua vista,
O pálido Jesus crucificado,
E nem a Virgem Mãe, nem o coitado
Do S. Sebastião, a quem Deus vista.
Eu só via, meu anjo, e idolatrava
O artístico encanto que te dava
Sobre a espádua morena a trança preta.
E quando se rezava Ave, Maria,
Eu sozinho comigo repetia:
Ave, cheia de graça, ó Marieta!
Cristina, 1877.
DUO DE AMOR
(versos a dois lápis)
O Musa! a estas horas, minha amiga,
Ah! que infeliz lembrança!
Pois tu não vês abertos sobre a mesa
Os meus livros de estudo, rapariga?
Pois queres me obrigar, noiva divina,
A dar ponto amanhã na sabatina?
Viste-me, há pouco, triste
Na longa tarde pálida e chuvosa,
E pensaste, vaidosa,
Que eram saudades tuas? Pressentiste
Que eu estava querendo o teu consolo
Para algum infortúnio? Pois escuta,
Adivinhaste; estou em grande luta
Comigo mesmo. Senta-te a meu lado
E escuta, Musa; e não me chames tolo.
Tu sabes, minha amiga, o triste estado
Em que este pobre coração jazia...
Era... era um montão de cinza fria,
Um velho fogareiro abandonado.
Pois houve uma perversa criatura
Que acendeu fogo aí!
Então! de que se ri
A minha linda amiga? Talvez queira
Dizer-me que foi má esta figura,
Que reduz minha nova namorada
À condição de simples cozinheira?...
Pois bem: é uma fada,
Que veio despertar o adormecido
De um sono que era quase morte já.
E uma estranha beldade
De olhos negros; morena; tem nas veias
Ou fogo, ou sangue d’África, talvez...
Canta como as sereias;
E tem no andar a altiva majestade,
A soberana, a olímpica altivez
Da famosa rainha de Sabá.
Aí tens, Musa, aí está
O meu lindo romance começado.
Ora deixa-me só e sossegado:
O estudo me reclama.
Olha, ali o vizinho do outro quarto
Está já a dormir como um lagarto,
E é um sujeito que namora e ama!
Olá, Ezequiel! salta da cama!
E cedo ainda pr’a dormir, amigo.
Lá vai a Musa conversar contigo.
— Sonhava... em quê? Recordações da roça,
Recentes impressões de um baile... a imagem
De uma visão poética de moça,
Pontos para o exame e uma saudade.
................................................................
Mas quem vejo a meu lado?
Sois vós, senhora Musa?
E nem vos indiquei uma cadeira!
Heis de perdoar a grande irreverência
De vos ter eu deixado
Aí, em pé, na posição confusa
Que sentem as senhoras
De boa sociedade
No gabinete de um rapaz.
A idade...
O silêncio, as desoras,
E este imprevisto despertar de um sonho...
Vossa Excelência fuma?
Nada mais há aqui para ofertar-vos
Senão cigarros, livros...
— Obrigada.
— Peço-vos mil perdões. Para provar-vos
Minha pobreza, é suficiente o aspecto
Deste Kiosque. Bem sabeis... a onça...
— Basta, senhor, estou enfastiada
Desse tagarelar.
— Vossa Excelência
Que ordena mais?
— Tenho uma confidência.
— Quem vos mandou?
— O Lúcio de Mendonça.
O autor das róseas Névoas Matutinas
Prendeu-se nas cadeias venusinas
De duas tranças negras e tão longas!...
E deixou-se vencer das harmonias
De uma voz de mulher,
Lindas como o cantar das arapongas.
Está doido, que quer?
Ela reúne no semblante augusto
A sedução magnética
De uma andaluza, e a correção estética
De um velho e grego busto.
Formosa aparição!...
— Da meia-noite,
Musa, também a vi: aquelas tranças,
Que lhe serviam de moldura ao colo,
Tinham, meu Deus! a negridão funesta
De um limpador de penas; e seus olhos
Eram da cor de fundos de tinteiros.
Nessa esplêndida festa
E ao agitar febril daquelas danças
A cútis rósea desmaiava o nácar
Da vermelha camélia.
E embora a palidez não lhe traísse
Pronunciada queda ao romantismo,
Ia-lhe bem a pose enlanguescida
E uns ares melancólicos de Lélia.
Que donaire no andar!...
— Então, que é isto?!
Foram ambos rolar ao mesmo abismo?!
— E ele que nada me contou! Olá,
Vizinho do outro quarto, venha cá.
— Que temos?
— Temos uma colisão
De amores, entre nós; sabia?
— Eu, não.
— Oh! como é que não sabe todo o mundo
Deste fogo do inferno em que ardo vivo?!
Pois eu também confesso-me cativo
Daquele olhar satânico e profundo.
— Pois não te basta a niña feiticeira
De olhos travessos, que te adora inquieta?
Nem aquela suavíssima estrangeira
Que encontraste uma tarde no Passeio?
E nem aquela...? O coração de poeta,
Ó tonel de Danaides nunca cheio!
Com tantas já, pretendes ainda a minha,
A minha única e só, por quem eu dera
A tua própria vida?!
A que acordou esta alma adormecida,
A única andorinha
De minha primavera!
— Amas então deveras, heim?
— Pudera!
— Pois um de nós, senhor...
— Duelo, não!
Ora, escuta-me: um bom remédio temos.
Somos rivais? Pois bem, meu caro, amemos
Em colaboração!
Lucio de Mendonça
Ezequiel Freire.
VOSSO OLHAR
Vosso olhar... fora preciso
Para imitá-lo, senhora,
O mais doce alvor da aurora
Das manhãs do paraíso...
Pois tem a clara alegria,
A ingenuidade, a inocência
Do alvorecer da consciência
Do infante que balbucia.
Vosso olhar... ah! se eu pudera
Vê-lo, vê-lo eternamente,
Perdera de boamente
Toda a luz da primavera!
Vosso olhar... quando o contemplo
De minha alma embevecida,
Lembra a luz amortecida
Que inunda as naves do templo.
Às vezes, como saudoso
Da pátria azul das alturas,
Tem as lânguidas doçuras
Do olhar da rola ao esposo.
Aos vossos olhos, querida,
Quando tão triste os fitais,
Dera-lhes eu toda a vida
Para vê-los brilhar mais!
Que se este olhar se extinguisse
Na noite dos dias meus...
Ai, Deus piedoso! o que eu disse!
Não me oiças isto, meu Deus!
Crede, eu enlouqueceria
De negros remorsos mil,
Se perturbasse a alegria
De vosso olhar infantil.
Santo olhar que não ilude,
Benigno, esplendido, são,
Tem o brilho da virtude
E a clemencia do perdão.
Rio, 1878.
VOTO
Quando tornei a ver-te, ó doce e pura
Ressurreição do meu melhor passado,
No baile, e sobre o colo imaculado
Revolta do cabelo a onda escura;
Quando em teu rosto d’anjo e de menina,
De meu olhar sentindo o avido beijo,
Vi acender-se a púrpura do pejo,
Qual ao poente a nuvem peregrina;
E quando os régios olhos soberanos
A medo ergueste e vi-os face a face,
Como um morto que então ressuscitasse
Da muda morte de compridos anos,
O coração ergueu-se-me arquejante.
Velho vaso de amor partido e frio,
Teve saudades do remoto estio,
Da extinta primavera exuberante.
Ave acordada pela luz da aurora,
Como esquecida da passada noute,
Cantou de novo o teu louvor, saudou-te,
Estrela d’alva das manhãs d’outrora!
Mas logo veio da região sublime
Ao raso mundo que te espera ainda,
E a Deus pediu que te depare, ó linda,
Um bom marido honrado que te estime.
1881.
A DESPEDIDA
No largo leito, que o aposento corta,
Dormem duas crianças, e terceira
Em convulsões horríveis vibra inteira.
A mãe chora, blasfema, ulula, exorta.
O pobre anjinho a fria boca entorta.
A doce presa a morte espreita e abeira.
Desmaia-lhe no olhar luz derradeira...
O mãe desventurada! — está bem morta!
No delíquio suspensos os sentidos,
Dá trégua ao choro, aos fúnebres gemidos.
Mas um raio de límpida alegria
Brilhou!... cada uma das crianças ria...
No sonho dos irmãos adormecidos
A morta, alma gentil, se despedia.
1882.
JOBISMO
(hora da vida de estudante)
Assim, pois, acabou-se! é sina: está cumprida.
Se tem horror ao... cheio este meu bolso incrível!
Ó dura realidade! ó coisa indiscutível!
Meu Deus, o fim do mês é como o fim da vida!
O festas, ó ideais encantos do impossível!...
Ceias monumentais de noite não dormida!...
Huris de negro olhar que ao doce amor convida
Entre o beijo e o Xerez!... ó despertar horrível!
Que dizes tu, folhinha?! ainda 27?!
Três dias tarda ainda o dia que promete
A mesada gentil, a aurora do vidão?
De delírios de amor a noite está repleta...
Mas, ai! nem todos vão a Corinto, poeta!
... E foste cem mil réis, ó níquel de tostão!
1877.
A MINHA AMANTE
É uma alta perfeição, sinceramente,
E das mais ideais e consumadas.
Tem as formas gentis arredondadas,
Como uma tentação armada à gente.
Vê-la é ter um desejo veemente
De a possuir por horas dilatadas...
Traz às macias costas adoradas
Fino crivo de linho, um meu presente.
Adoro-a com amor terno e constante;
Entre os braços da austríaca faceira
Esqueço-me da vida de estudante.
É austríaca, sim, essa estrangeira;
E não tem os perigos de outra amante,
Porque é, singelamente, uma cadeira.
1877.
VERSOS A UMA MENINA
Como fala a abelha às flores,
Quero dizer-te ao ouvido
Um segredo... ouve! não cores...
Estou perdido de amores...
Não brinques, estou perdido.
E é contigo o segredo...
Bem vejo que não sabias...
Este amor veio tão cedo,
Criança, que tenho medo
Que não me entendas... não rias.
Minha alma, livre andorinha
Que voa, voa e não cansa,
Paira agora, coitadinha,
Sobre teus olhos, Ritinha!
Sobre teus lábios, criança!
Não sentes, linda, uns adejos
Invisíveis, que te agitam?
São, carregadas de beijos,
As asas de meus desejos
Que em torno de ti palpitam.
Os teus lábios purpurinos
São do paraíso as chaves...
Há nos teus risos divinos
Esses trilos argentinos
Que só têm crianças e aves.
É ventura que endoidece
Só contemplar-te, criança!
Minha alma toda estremece
Se em teus olhos amanhece
— Alva de amor — a esperança.
Se ergues a fronte aureolada
Desse olhar que brilha tanto,
— Triste falena abrasada,
Cai minh’alma fascinada,
Ébria de luz e de encanto!
Ai! quando os olhos brilhantes
E os lábios virgens risonhos
Vejo-te, em doidos instantes,
Tenho uns sonhos delirantes,
Toda a loucura dos sonhos!
Loucura! dera alma e vida
— Quisesse Deus recebê-las! —
Só para te ver, querida,
De nuvens brancas vestida
E coroada de estrelas!
Enquanto eu falava, rias!
Cobriram-me o meu segredo
Sonoras pérolas frias...
Bem vi que não me entendias...
Pobre de mim! era cedo!
Minas, 1877.
FASCINAÇAO
Na várzea, em hora tardia,
Quando a lua desditosa
Enche o espaço com a magia
De sua luz amorosa,
Vê-se um vultozinho quedo,
Mudo, extático... dir-se-ia
Estranha visão do medo,
Na várzea, em hora tardia.
A branca lua tranquila
Reflete languidamente
Em deslumbrada pupila...
Aquilo contempla e sente...
É o coelho, pobre alminha
Que em doido amor se aniquila:
Ama a pálida rainha,
A branca lua tranquila.
Ai, mísero amante agreste,
Nas sombras do ermo nascido,
Como tão alto puseste
O teu olhar seduzido!
Amas a eterna impassível,
A alva princesa celeste!
Que insano amor impossível,
Ai, mísero amante agreste!
Ébrio, tonto, fascinado
Daquela luz que o extasia,
Passasse-lhe a morte ao lado,
Que nem dela saberia.
Venha o caçador cruento.
Que o há de matar parado
Naquele deslumbramento
Ébrio, tonto, fascinado!
Ó alma contemplativa,
Ó bela alma enamorada,
Assim vives tu cativa
Da luz de uns olhos de fada.
Vê-la sempre é tua sina,
Que a saudade mais aviva
A imagem que te fascina,
O alma contemplativa!
Esta insana ebriedade
Te escraviza toda a vida,
O futuro, a mocidade,
A alma inteira embevecida!
E vês sempre e em toda a parte
O olhar, a luz que te invade!
Olha que pode matar-te
Esta insana ebriedade!
Na embriaguez do teu sonho
Já nada pode contigo
O infortúnio mais medonho,
O mais tremendo castigo.
Venha a morte mais temida,
Que te colherá risonho,
Revendo a imagem querida
Na embriaguez do teu sonho!
Rio, 1878.
AVE, MARIA
... à l'heure où la joie nous quite...
ASMIN.
Ave, Maria... Era esta mesma a hora,
Este mesmo o lugar quando ela veio...
Quando perdi-me no amoroso enleio
Descia a noite como agora desce...
Ela os úmidos lábios entreabria
Para o céu, num sorriso, ou numa prece...
Ave, Maria!
Ave, Maria... Quanta vez as tardes
Viram-nos ambos num sonhar de doudos!
Ao longe os montes se perdiam todos
Nos véus sombrios que d’além baixavam...
Minha alma à sua numa só se unia,
E os lábios dela e os lábios meus rezavam:
Ave, Maria!
Ave, Maria... Que formosa tarde
Era aquela da nossa despedida!
Era fatal partir, e foi cumprida
Minha sorte cruel: arrebatou-me!...
E a boca linda, que dão mais sorria,
Na prece ardente murmurou meu nome...
Ave, Maria!
Ave, Maria... A hora ainda é a mesma,
Ainda o mesmo o lugar... mas já não vive
Aquele apaixonado amor que eu tive
E que tanto em saudade se revela...
Ela, a formosa desleal mentia...
Fica, minh’alma, para orar por ela...
Ave, Maria!
1877.
PELAS VÍTIMAS DA SECA DO CEARÁ
Musa cristã, nascida no Calvário,
Do último olhar do Cristo moribundo,
Quando, no atroz momento legendário,
Calmo e solene contemplava o mundo;
Musa cristã, que o roto miserável
Acalentas ao seio protetor,
Ao generoso seio inesgotável
De consolo e de amor;
Tu és, ó Caridade, com a Justiça
— A inexorável musa do Direito —
Da glória eterna lúcida premissa,
Porque ser justo e bom é ser perfeito!
Filhas gêmeas que sois da Divindade,
Espalhais pela terra a luz dos céus...
Mas a melhor és tu, ó Caridade,
Predileta de Deus!
Tu, que veneras da velhice as rugas,
Amas da infância as rosas purpurinas...
Tens[10] por joias — as lágrimas que enxugas,
E por flores — os risos que germinas.
Pão do faminto, estrela dos cativos,
Mãe da orfandade, manto da nudez,
Anjo de meigos olhos compassivos,
Olha-nos bem! que vês?
Lá nas plagas ardentes do Norte,
Onde o sol do Equador arde em chama,
Representa-se um hórrido drama,
A tragédia da sede e da morte!
Os sepulcros dos mortos sem nome
São os corvos vorazes e os cães...
E há crianças que morrem de fome
Sobre o seio mirrado das mães!
Nem só tu, Morte horrível, te nutres
Dos famintos nos magros enxames;
Torvos crimes e vícios infames
Neles cevam-se[11], — negros abutres!
E um pai... contemplai-o... seguide-o...
Desespera... recorre ao punhal...
Suicida-se, ou rouba, — suicídio
Mais hediondo, — que é morte moral!
Os enlevos do lar, as donzelas,
Seminuas, febris, foragidas,
Vão chorando as grinaldas perdidas
Pelo lodo de imundas vielas!
Ai! a fome ó inimigo selvagem!
Desgraçadas! como hão de lutar?!
Tudo sorve a medonha voragem:
Seu porvir, sua honra, seu lar!
O mães que me escutais, vossas crianças
São a glória de vossa mocidade,
E são também as louras esperanças
Da trêmula, cansada e velha idade!
Pois as meigas crianças adoradas
São para aquelas mães, não bens de amor,
Mas inimigas bocas esfaimadas!
Horror! horror! horror!
Ante este quadro, que consterna e espanta,
Surdo e cego parece o Deus clemente!
Pranto da Caridade, chuva santa,
Extingue o fogo desse inferno ardente!
O Norte altivo, que a miséria assola,
Arqueja e estende a mão; implora aos seus
Dai-lhe, ó almas cristãs, a vossa esmola!
Dai pelo amor de Deus!
1878.
GLORIA IN EXCELSIS
(nos funerais de FLORIANO PEIXOTO)
Alas! que passa o defensor estrênuo
Do bom nome e da honra do Brasil.
Vai para a grande sombra, em paz insólita,
Seu peito varonil.
Filho do Povo, ergueu-se a uma alta glória,
Mas sempre popular,
Qual procelosa vaga aos céus eleva-se
E não deixa, ainda assim, de ser o Mar.
A sua terra amou como um fanático...
E morto agora está.
Seu nobre coração, parado pêndulo,
Nunca mais baterá.
Alas e continências a esse féretro!
Grandes Mortos da História, recebei
O paladino sem temor nem mácula,
O frio, o austero Defensor da Lei.
Soldado, tinha o heroísmo plácido,
A tranquila coragem do dever.
Era um estoico: — a vida é coisa mínima;
Vale é saber morrer.
Quando a revolta — bando sanguinário —
Às fratricidas armas se lançou
E contra o seio as converteu da Pátria,
O seu braço de ferro a estrangulou.
Chore no espaço a artilharia fúnebre,
Ulule dos canhões a rouca voz.
Alto este egrégio cidadão deplore-se,
Não por ele, por nós.
Tomba para o repouso o forte cérebro...
Descanse enfim, que bem o mereceu,
Pois já nessa cabeça, agora exânime,
Toda a nossa esperança se acolheu.
Alas, ó Mocidade! este pertence-nos!
E para o protegermos dos baldões
Dos cobardes, dos réprobos, ao préstito
Façam alas os nossos corações!
Já da Imortalidade abre-se o pórtico...
E num largo clarão de luz triunfal,
Constelado das bênçãos da República,
Entra na História o Grande Marechal.
6 de julho de 1895
A CASCATA DO IMBUÍ
A F. Süssekind.
Entre dois morros, o Imbuí e o Prata,
Fada branca, frenética e selvagem,
Salta do leito a esplendida cascata
E arremessa-se louca na voragem
Subitamente, com tigrina graça,
Inda ao cair intrépida e casquilha;
Bamboleia, contorce-se, arregaça
Na anca de pedra as rendas da matilha.
Mas, alquebrada pelo salto enorme,
Constringida em canal profundo e estreito,
O fatigado corpo estende e dorme
Como sultana em preguiçoso leito.
De um lado e de outro a selva, escrava aflita,
O sono guarda à trêfega menina,
E sobre o colo trêmulo lhe agita,
Leque sutil, a gaze da neblina.
Neste recesso plácido da mata,
Como tão longe tudo mais se sente!
Rola o esquecimento esta cascata!
Como adormece tão serenamente
Um coração ralado pelas mágoas!
Ah! quem tivera a sepultura aqui,
Junto ao abismo destas frias águas,
Ó majestoso, ó trágico Imbuí!
Teresópolis, 13 de abril, 1900.
A SERRA DOS ÓRGÃOS
A minha mulher.
I
Sobre um fundo de azul vivo e cantante
Recorta-se o perfil da serra agreste.
Às vezes vem o nevoeiro e o veste;
Outras vezes o sol, sôfrego amante,
Para a noiva, brutal, se precipita,
Rasga-lhe as roupas de neblina fria,
Os rijos peitos beija e acaricia
E em delíquios de amor vibra e palpita.
II
Desmembrada estrutura de gigante,
Que um cataclismo horrendo dispersasse,
O monstro inculto de grosseira face
Vê de um lado a paisagem verdejante,
Do outro lado a Cidade e a Guanabara,
Maravilhosa, rútila esmeralda,
Que, enorme joia, lhe rolou da espalda
Quando o horror da catástrofe a agitara.
III
Aponta para o céu, repreensivo,
Da granítica mão o índice duro...
De que passado imenso a que futuro
Há de eterno durar o gesto vivo!
Nós passaremos, hóspedes de um dia,
Efêmeras visões nesta montanha,
E a quanta geração longínqua e estranha
Assombrarás, estranha penedia!
IV
Pulmões de pedra, os ápices ligando,
Arfam, sorvendo os ares das alturas;
Nessas cavernas ásperas e duras
Que respirar balsâmico tão brando!
Logo acima, a cabeça se levanta
De um galo informe; essa cabeça muda,
Para quem sabe ouvir, grita e saúda!
Para quem sabe amar, exulta e canta!
V
Em decúbito grave e majestoso
A Cabeça do Frade se reclina;
Ao adunco nariz traz ressupina
Feia verruga, sobranceiro pouso
Para as aves do céu, que o frio corta.
Dos olhos fundos quando o pranto escorre,
Entre as fechadas pálpebras lhe morre,
Sem uma imprecação da boca torta.
VI
Além, acima, dominando tudo,
Campo das Antas, cumeada tonta,
As altas nuvens insolente afronta,
Como um colosso esquálido e versudo.
— Serra dos Órgãos, harpa grande e rude,
Ao bafejo das frias madrugadas,
Canta no espaço as músicas sagradas
Da alegria, da força e da saúde!
Teresópolis, 30 de abril, 1900.
A MINHA MULHER
(no dia de seus anos)
Anita, meu amor, passa ano e ano
E o derradeiro amor não envelhece;
Antes, mais vivo e juvenil parece,
Qual se do tempo não sofresse dano.
Ou tens feitiço tal, tão soberano,
Que o sol da vida, que descamba e desce
No horizonte, que já se me entardece,
Fazes parar?! Ambicioso engano!
O que nunca se extingue, e mais fulgura,
Se do negro infortúnio o vento rude
Agita a vida em ondas de amargura,
É a luz que em tua alma encontrar pude,
E a única eterna formosura,
O minha boa amiga, é a Virtude!
Paquetá, 30 de abril, 1901.
MUSA PEREGRINA
(1871-1901).
A MINHA FILHA
ANTÍTESE
(H. Mürger)
É um asilo pobre, é um retiro austero,
Onde a estudar se encerra um solitário hospede.
Dorme ao dia; mal vem
A noite, se levanta a trabalhar; acende
Sobre a mesa truncada a fumegante lâmpada,
Que vela aí também.
Na lareira apagada amontoa-se a cinza,
E o grilo friorento e de fagulhas ávido,
Não as vendo no lar,
Cessa de modular a costumada endecha
Sobre a grade de ferro, onde a lenha em suplício
Torcia-se a estalar.
No entanto, sopra, fora, enregelado vento,
E quem passa na rua, agasalhado e trêmulo,
As garras lhe sentiu.
Na esfera divinal tiritam as estrelas,
E a peliça de arminho a mais e mais adensa-se,
Que o teto já vestiu.
Na vidraça, resvala o vento pelas frestas,
E a geada, burilando os caprichos fantásticos,
Já fez dali saltar
Um sutil arabesco onde em roscas se torce
A fronde tropical de flora imaginaria
Quase a desabrochar.
A janela é estreita e nunca se alumia
Da alegria do sol nos ósculos esplêndidos.
Pelas paredes vai
Do teto até ao chão o suor de novembro,
Qual comprido colar de pérolas e de âmbares,
Que se debulha e cai.
Mas ao que mora ali, quando a cidade dorme,
E ele pôs-se a velar a sublime vigília,
Tudo se transverteu...
Um palácio encantado aos olhos se lhe ostenta,
Porque tem por amante uma divina Piéride,
Que canta ao lado seu!
S. Paulo, 1871.
NATUREZA IMPASSÍVEL
(A. Daudet)
Quando a ilusão primeira esvaecida
O mortal deplorou,
Mãe, sentiu-se a natura comovida,
E com ele chorou.
Tudo triste! No espaço o astro ocultou-se,
Murchou na terra a flor.
Velou-se a lua, o sol enclausurou-se,
E a selva os ramos retorceu de dor.
Rubros poentes, auroras luminosas,
Foram-se a um tempo só.
Armou o inverno as tendas vaporosas.
Cobriu-se o val de dó.
Arfou o lago em fúnebre lamento;
Na verde catedral,
— Clérigos e organista, aves e vento
Rezaram seu primeiro funeral.
A dor arrancou lágrimas às brenhas,
Gritos de ira aos vulcões.
Tiveram dó as escalvadas penhas,
E o abismo, imprecações.
“Quero ter parte na amargura humana”,
Disse afinal o mar...
O homem tudo esqueceu numa semana,
E ele, há quatro mil anos a chorar!
Quando a Mãe compassiva consolou-se,
Corou de haver chorado...
Compôs as dobras do seu vale, ornou-se
Com florido toucado.
Depois ergueu-se, a resplender de encantos,
De verdes madrigais,
E, certa do que valem nossos prantos,
Nos disse: “Agora, não me apanham mais!
Por mim, se alguma vez a dor divina
De mim se apoderar,
E eu me prender à turba feminina,
Bela demais p’ra amar;
Ou se, morrendo-me adorado ente,
Eu sucumbir também,
Podes ficar, natura, indiferente;
Não quero condolências de ninguém.
O louro trigo, o milho murmuroso
Poderão florescer;
Não lhes direi meu caso lamentoso,
Calado hei de sofrer.
Jubile a terra o a floresta fecunda
E o lago de cristal.
Cantai! não serei eu quem vos confunda
Pranto ou blasfêmia ao sacro festival!
Minas, 1883.
SEREIA
(Jean Lahor)
Tinha a sereia esses teus olhos claros,
Teus claros olhos, vagos e inconstantes,
Olhos pálidos, sem lampejos, raros,
Olhos da cor das ondas palpitantes.
Tinha a sereia a tua mesma fala,
De inefável encanto menineiro,
Quando atraía, ao gozo de escutá-la,
Para o profundo mar o marinheiro.
E teu bom coração também teria,
Quando, adorável, pérfida sereia,
Com sorrisos de escárnio se sorria
Aos mortos estirados pela areia?
Rio, 1889.
ADORAÇÃO
(Sainte-Beuve)
Palavras, vibrações de um peito meigo e tímido,
Redobrai do mistério o carinhoso acento,
E sede junto dela um doce juramento!
Palavras, afagai-a!
E sê mais terno ainda, ó som de voz, mais límpido,
Revela oculto pranto a essa graça ingênua!
Olhar, súbito brilha e lânguido desmaia;
Sê puro, sê bem casto, olhando-a, meu olhar:
Pois o pudico amor que desta vez me encanta,
Desta vez para sempre! escolheu para amar
A virgem de candura, a criatura santa,
O tenro coração que acaba de acordar,
A alma que se há de encher sem fazê-la ter medo,
Que se há de comover e sem a perturbar!
S. Paulo, 1873.
BORBOLETAS
(Th. Gautier)
As brancas borboletas cor de neve
Vão a adejar em bando sobre o mar.
Ó borboletas brancas, que eu não possa
Seguir pelo caminho azul do ar!
Ó bayadera d’olhos de azeviche,
Bela das belas, sabes me dizer
Aonde iria eu, se elas quisessem
As asas emprestar-me? Sem perder
Um só beijo nas flores do caminho,
Por montes e por vales eu voaria,
Iria aos lábios teus entrefechados,
Flor de minh'alma, e neles morreria.
S. Paulo, 1874.
MADRIGAL
(Eugène Le Monel)
Se a espuma é a flor da vaga,
Quero ir muito além das brumas,
Para que ao colo lhe traga
Um ramalhete de espumas.
Se a nuvem é a flor do espaço,
Subirei como um foguete,
Para trazer-lhe ao regaço
De nuvens um ramalhete.
Se a chama é a flor do fogo,
Abrasa-te, ó alma que amas,
Para lhe compormos logo
Um ramalhete de chamas.
Se o riso é a flor do rosto,
Quantos me serão precisos
Para a seus pés ver deposto
Um ramalhete de risos?
RECORDAÇÃO
(do Italiano)
Triste encanto ideal e comovente
Tem minha bela — que falar o dela!
Traz na pálida face a rosa doente
Da febre ardente. — Ó minha pobre bela!
Está para morrer, e eu, miserando,
Sem minha amiga — a mais fiel e antiga,
Ficarei seu semblante recordando,
Tão calmo e brando. — Ó minha pobre amiga
Em tanta mágoa estava eu refletindo,
E aquela santa — a quem restava tanta
Luz n’alma, dava-me um olhar infindo,
Ainda sorrindo. — Ó minha pobre santa!
Em pranto me deixou: desde uma hora
Que estava morta... — atravessando a porta,
Entra uma alegre claridade agora...
Desponta a aurora... — Ó minha pobre morta
Minas, 1880.
O REI, O MILHAFRE E O CAÇADOR
(La Fontaine)
Vivo, no ninho, um caçador pegou,
Uma vez, um milhafre, e o destinou
Ao príncipe por mimo. Era precioso,
Porque raro, o presente.
Timidamente dado ao poderoso,
O pássaro, se o conto não nos mente,
Imprime logo a garra — ó impiedade! —
Bem no nariz de Sua Majestade.
— Como! no real nariz?! — Do próprio rei.
— Não trazia a coroa então, já sei...
— E que a trouxesse! O pássaro não quis
Investigar de quem fosse o nariz.
Renuncio a pintar, por não ter cores,
Dos cortesãos a lástima, os clamores.
Quieto o rei ficou, porque já veem
Que à majestade os gritos não vão bem.
Quedo também no olímpico poleiro
O pássaro ficou, muito lampeiro.
O dono o chama e grita e se afadiga,
Mostra-lhe o engodo, o punho, qual cantiga!
Parecia que ao bicho apetecia,
Embora o ruído, ali passar o dia
E pernoitar ainda empoleirado
No nariz inviolável e sagrado.
Tentar tirá-lo era o irritar. Enfim
Resolveu-se a largar o rei, e assim
Este falou: — ”Deixai que vão em paz
O milhafre e o rapaz.
Bem se saíram, fosse como fosse,
Um, milhafre, outro, rústico mostrou-se.
E eu, que sei como um rei deve de obrar,
Do suplício hei por bem de os aliviar!”
Pasmou a corte. Os cortesãos não cessam
De exaltar feitos tais, não que os conheçam:
Muito poucos, o fossem reis até,
Fariam como este. O certo é
Que se livrou de boa o caçador;
E o seu erro maior,
O dele e o do animal, foi não saber
Que é mau do amo aproximar-se tanto.
Se os tristes, entretanto,
Só com os do mato usavam de se haver!...
Diz Pilpay que se deu na Índia o caso.
Naquela terra, um respeito absoluto
Vota o homem ao bruto.
O próprio rei temeu tocar-lhe, acaso.
Pensavam entre si:
— E quem nos diz que esta ave de rapina
Não combateu em Troia, e que alta sina
De príncipe ou de herói não teve ali?
E a ser o que já foi, pode tornar.
Pitágoras ensina
Que com os brutos a forma permutamos
Humanos ora estamos,
Logo voláteis recortando o ar.
Como o conto varia,
A segunda versão ora ofereço.
Contam que certo caçador, um dia,
Um milhafre apanhou (raro sucesso)
E ao rei o foi levar
Como presente muito singular:
Uma vez em cem anos acontece;
É o cumulo da caça.
Rompe de cortesãos cerrada massa
O caçador, aceso de interesse.
Já pensa que enriquece
Com tal presente, verdadeira mina;
Mas a ave de rapina,
Nunca educada para estar no paço,
As rijas unhas d’aço
Ferra ao nariz do mísero sujeito.
Ei-lo a gritar, e eis em riso desfeito
Príncipe e cortesãos. Quem não riria?
Eu não me conteria.
Que um papa ria, isso, em boa fé,
Não me atrevo a jurar; mas olhem que é
Bem desgraçado um rei que nunca ria:
É o prazer dos deuses. Apesar
Dos cuidados, ri Jove e os imortais.
A crer — deve-se crer —
Nas velhas tradições de nossos pais,
Riu, riu a arrebentar,
Quando uma vez lhe trouxe de beber
Vulcano, o coxo. O que houve lá não sei,
Mas com razão a fabula variei;
Pois, já que aqui se trata de moral,
A aventura não era original:
Um caçador simplório é mais frequente
Do que um rei indulgente.
AD MAJOREM DEI GLORIAM
(Victor Hugo)
“Com efeito, o nosso século é admiravelmente melindroso. Imagina ele, porventura, que esteja completamente extinta a cinza das fogueiras? que delas não reste mais nem um lição que acenda ainda um archote? Insentados? chamam-nos jesuítas, julgando que nos cobrem de opróbrio! Mas os jesuítas lhes reservam a excomunhão, uma mordaça e fogo... E, um dia, hão de ser os senhores de seus senhores.”
(O padre Roothan, geral dos jesuítas, na conferência de Chiéri.)
Eles disseram: ”Nós vencedores seremos.
Padres pela sotaina e pelo ardil soldados,
Direitos, leis, progresso havemos derrocar,
E com os destroços disso erguer um forte havemos.
E lá pr’a nos guardar, quais cães de fila irados,
Dos preconceitos crus a grei desaçaimar.
“O cadafalso é bom; é necessária a guerra;
Povo, aceita a pobreza, a ignorância aceita:
Para o inferno o tribuno em corpo e alma vai;
O homem que nada sabe é o anjo da terra.
Há de a nossa legião, de força e astúcia feita,
Embrutecer o filho, amordaçar o pai.
“Nossa palavra, hostil ao século que passa,
As turbas choverá da tribuna sagrada;
Os tíbios corações, ela os regelará.
Matando o gérmen todo útil e bom que nasça;
Dissolver-se-á depois como no chão a geada,
E quem a procurar não mais a encontrará.
“Somente... hão de ter frio as almas que escutavam
E não arderá mais nenhum dos fogos santos;
E se aos homens de então alguém bradar-lhes mais:
— Salvai a liberdade: os vossos pais a amavam! —
Hão de rir (que virão de nossos negros antros)
Da liberdade morta e de seus mortos pais.
“Padres, havemos ter uns motes muito sábios
— Ordem, Religião, Família, Propriedade:
E se, judeu, pagão, mouro ou bandido, alguém
Vier nos ajudar, com o perjúrio nos lábios,
Archote o ferro em punho, ébrio de atrocidade,
A roubar e a matar, diremos: ”Está bem!”
“Vencedores, fatais, temidos, sem receio,
Havemos de viver, fortes no inacessível.
Mitra, Cristo, Maomé, bem pouco se nos dão!
Reinar é nosso fim, — desterrar, nosso meio.
E, se se ouvir um dia o nosso riso horrível.
As trevas da alma humana em sustos tremerão.
“Amarraremos a alma em profunda caverna.
É o felá do Nilo, ou é da Espanha o frade,
O ideal de nação governada e servil.
Razão, direito, abaixo! a espada viva a eterna!
Cadela solta é a ideia, e mais nada, em verdade.
Cadeia com Rousseau! Voltaire para o canil!
“Se o espirito lutar, nós o sufocaremos.
Ao ouvido à mulher falar baixinho vamos.
Teremos os pontões, a África, o Spielberg.
A fogueira morreu? — De novo a acenderemos;
Não podendo atirar-lhe o homem, lhe atiramos
O livro; em falta de Huss, queimamos Gutenberg.
“Quanto à razão, que estende a Roma a audácia sua,
Chama acesa por Deus no humano crâneo, aquela
Que a Sócrates luzia e guiava a Jesus,
Nós, bem como o ladrão que roja e se insinua,
E começa, ao entrar, por apagar a vela,
Furtivos, por detrás, sopraremos a luz.
“Na alma humana então será noite fechada.
Sobre o aniquilamento é que o poder se apura.
O que nos parecer faremos sem rumor.
Nem um respiro, nem um bater d’asas, nada
Se agitará na sombra, e torre mais escura
Do que a noite há de ser nosso forte em negror.
“Reinaremos. A turba é onda que obedece.
O mundo há de curvar-se à nossa força estranha;
Teremos o poder e a glória no apogeu;
Sem medo algum, pois fé nem lei nos entorpece...”
— Quando habitásseis já das águias a montanha.
De lá, disse o Senhor, vos arrancara eu!
Rio, 1872.
A ALMA DO OUTRO MUNDO
(Victor Hugo)
Quando a mãe chora o filho, o céu ouve os gemidos.
Deus, que na mão encerra os pássaros perdidos,
Manda, às vezes, que volte a pomba foragida
Ao mesmo ninho seu, que abandonado fica.
Há intima união entre a morte e a vida;
Com a sepultura, ó mães, o berço comunica.
Mais de um mistério assim na eternidade há.
A mãe de que vos falo aqui morava em Blois;
Em tempo mais feliz que o de hoje, conheci-a:
Com a casa de meu pai a sua vizinhava.
Todos os bens que Deus permite ou dá, possuía.
O homem que desposara era o mesmo que amava.
Teve um filho; meu Deus! que alegria inefável!
Tinha um berço de seda a criança adorável;
Se era o primeiro filho! a mãe o amamentava;
Que suave rumor fazia à cabeceira
Do leito nupcial! Durante a noite inteira
Estava a idear a mãe quimeras que a encantavam,
Pobre mãe, e na sombra os olhos lhe brilhavam,
Quando, sem respirar, sem voz, renunciando
Ao sono, se inclinava, e naquela atitude
Escutava o dormir tão sossegado e brando
Da criança gentil corada de saúde.
E, logo cedo, estava, orgulhosa, a cantar.
Na poltrona, pr’a trás, ia se recostar,
Entremostrando o xale o seio intumescido,
A sorrir para o filho, a chamar-lhe querido
Anjo, tesouro, amor, e outras tantas loucuras.
E beijava-lhe os pés, rosadas miniaturas,
E falava-lhes muito! e o pequenino ria,
Encantador e nu, e, por baixo dos braços,
Dos joelhos à boca a mãe o suspendia.
Trêmulo como um gamo, ao qual assusta os passos
Uma folha, cresceu. Crescer é cambalear
Para a criança. Entrou a andar, a falar,
Três anos completou; idade suave e boa,
Em que a palavra já bate as asas e voa,
Como um pássaro novo ainda, E a mãe dizia
A estremecer de amor: ”Meu filho!” e prosseguia
“Como ele está tão grande! Olhem como cresceu!
”Já está aprendendo; e já conhece o seu
“A B C. Isto é um demoninho! Já
“Quer calças, não quer mais saber dos vestidinhos;
“São já bastante maus estes tais homenzinhos!
“Mas, enfim, já lê bem; há de ir longe; é bem ágil
“E vivo; no Evangelho o ensino a soletrar.”
E adorava-o, olhando essa cabeça frágil,
E, mulher venturosa, e mãe de altivo olhar,
Sentia o coração no filho palpitar.
Um dia, — e quem não tem o seu funesto dia? —
A coqueluche, o monstro, a negra ave sombria,
Sobre a casinha branca, eis, súbito, desceu.
Contra a doce criança, horrenda arremeteu,
Agarrou-lhe a garganta; ó negra enfermidade!
Do ar, com que se vive, infame deslealdade!
Quem não viu debater-se um meigo e pobre ente
Que ela feroz constringe em seus dedos, sufoca!
Luta; os olhos lhe invade a sombra lentamente,
Um estranho estertor sai-lhe da fria boca,
E tão misterioso e tal que nos parece
Ouvir cantar no peito, onde o alento falece,
O galo do sepulcro à sua aurora escura.
Qual fruto que sentiu da geada a mordedura,
A criança morreu. Entrou como um ladrão
A morte e a carregou. — Mãe, pai, toda a aflição,
O esquife, a cabeça a bater na parede,
Lúgubre soluçar que da entranha se expede,
Oh! a palavra expira onde começa o grito;
Silencio, língua humana.
A mãe de seio afito,
Enquanto ao lado seu, sombrio, o pai chorava,
Três meses conservou-se ela imóvel no escuro,
Fixo o olhar, murmurando o quer que era obscuro,
Sinistra, e o mesmo canto olhando como olhava.
Não comia; de febre, eis do que ela vivia;
Não falava a ninguém; a boca lhe tremia;
Ouviam-na, e o pavor chegava d’alma ao imo,
Repetir em voz baixa a alguém: ”Restituí-mo!
”Disse o médico ao pai: “Cumpre dar distração
“Àquela angústia d’alma, e ao morto um irmão.”
E o tempo passou: dia, semana, mês.
Esta sentiu-se mãe pela segunda vez.
Do efêmero anjo ante a caminha fria,
Lembrava-se da voz com que ele lhe dizia:
“Mamãe”, a meditar, muda, no leito seu.
Quando em seu seio enfim o ente estremeceu,
Que à nossa luz mortal mandou Deus que surgisse,
Ela empalideceu. ”Que estranho é este?” disse.
De joelhos se prostrou, no olhar sombrio lume:
“Não, não, não quero! não! tu terias ciúme
”Meu filho adormecido a quem a terra gela!
“Dirias: ”Tomou outro o meu lugar; e ela
“Esquece-se de mim; ela o ama, e sorri;
“Acha-o bonito e abraça, e eu, gelado aqui!”
“Não! não!” —
Assim chorava aquela dor sombria.
Dá outro filho à luz, quando é chegado o dia,
E exclama alegre o pai: ”É menino também!”
Mas só o pai se alegra em casa, mais ninguém.
A mãe está triste ainda; a pálida senhora
Sobre a lembrança antiga ainda se inclina agora
E medita; no entanto alguém trazer-lhe veio
O filho; não se opôs e lhe entregou o seio;
Nisto, e quando, a pensar, feroz e sucumbida,
Não no filho que tem, mas nessa alma fugida,
Não na faixa infantil, porém sim no sudário,
Diz: ”No túmulo o anjo está tão solitário!”,
— Ó milagre de Deus! ó mãe recompensada!
Ouve falar, com um som de voz bem conhecido,
Na sombra, no seu colo, o seu recém-nascido,
E baixo murmurar: ”Sou eu. Não digas nada.”
S. Paulo, 1874.
ONTEM À NOITE
(Victor Hugo)
Ontem, a brisa da noite,
Cujo sopro acaricia,
Das flores que tarde se abrem
O perfume nos trazia.
A noite caía. O pássaro
Dormia na escuridade.
Trescalava a primavera,
Mais, a vossa mocidade.
Mais o vosso olhar brilhava
Do que os astros — luz perene,
E eu falava baixinho...
Porque era a hora solene
Em que a alma cantar costuma
Seu hino mais doce dela.
Ao ver a noite tão pura,
Ao ver-vos a vós tão bela,
“Vertei o céu sobre esta!”
Eu disse aos astros, e após
Aos vossos olhos eu disse;
“Vertei o amor sobre nós!”
S. Paulo, 1871.
AVE, DEA, MORITURUS TE SALUTAT
(Victor Hugo)
Beleza e morte são duas cousas profundas,
Que contêm tanto azul e tanta sombra, quais
Foram duas irmãs, terríveis e fecundas,
Encerrando um enigma e um segredo iguais.
Morenas, louras, ai! belas visões jucundas,
Vivei, eu morro! Amai, brilhai cada vez mais,
Ó pérolas que estais do mar nas ondas fundas,
Ó pássaros de luz que em negra selva andais!
Judith, nosso destino é bem mais semelhante
Do que se pensa, ao ver o vosso e o meu semblante:
Todo o divino abismo em vosso olhar está,
E eu sinto em minh’alma o abismo estrelado;
Perto do céu, senhora, hemos ambos chegado,
Por isso que sois bela e eu sou velho já.
Rio, 1872.
PLENITUDE
(Victor Hugo)
Eu, que nos lábios tive a tua taça cheia,
Que já nas tuas mãos pousei a fronte triste;
Que te respirei da alma, e tanto! o doce alento,
Perfume que na sombra oculto e casto existe;
Eu, que já pude ouvir de ti essas palavras
Que um coração começa e o outro adivinha;
Eu, que junto dos meus já vi chorar teus olhos,
E sorrir tua boca ao alcance da minha;
Eu, que já recebi sobre a cabeça em êxtase
Um raio de teu astro, ai! sempre tão velado;
Eu, que já vi cair na onda de minha vida
Um pétalo de rosa aos dias teus roubado;
Posso agora dizer para os rápidos anos:
“Passai! passai! p’ra mim não há envelhecer!
Levai, levai convosco as vossas murchas flores;
Tenho n’alma uma flor que não podem colher!
De vossa asa ao roçar não cai nem uma gota
Do vaso por que bebo, e eu enchi-o bem!
Meu coração tem mais amor que vós olvido!
E mais que cinza vós, minh’alma fogo tem!”
S. Paulo, 1873.
A TEMPESTADE
(Ch. Foley)
Sobre a noite do mar a do céu se esboroa.
Torva luta! como um canhoneio, reboa
A trovoada, esmagando as nuvens na opressão,
Bombardeando a treva.
Um rúbido clarão,
Como sangrento riso, abre o cariz do espaço.
Mas é um palpitar de luz rápido e escasso;
E do efêmero incêndio a terra volta a estar
No escuro. Comprimido entre a água e o nimbus, o ar
Dilata-se afinal com fúria aterradora,
Fende o céu, cava a onda; a tempestade estoura,
E o raio, que se torce através do negror,
Parece ferro em brasa entre o laminador.
Bramem raivas triunfais, e nas fortes lufadas
Ao infinito o vento atira bofetadas.
Das ondas que percorre um frêmito febril,
Erigem-se de horror os vivos seios mil.
Nesse revolto caos, entre as quatro oscilantes
Tábuas dum barco, impresso o assombro nos semblantes,
Ofuscados, feições crispadas, espectrais,
O marinheiro e o filho, imóveis, estão quais
Presas que acua e morde e envolve de tormentos
A matilha feroz das vagas e dos ventos.
Ao mastro, ainda de pé, se agarra o pai, e ao pai
Prende-se o filho, e sobre os dois trêmula cai
A vela esfarrapada — um sudário pendente;
Parecem, no batel, onde lugubremente
Retumba do naufrágio o surdo cantochão,
Dois mortos que de pé se erguessem no caixão.
Geme o mastro, na angústia os costados estalam,
E o barco ainda resiste às ondas que o encurralam;
Mas entra um vagalhão, logo outro surge após,
E a matilha infernal ruge, inúmera e atroz.
Mil goelas ali estão para tragar o pobre...
Um pé de vento o afunda, um rolo d’água o cobre,
Abre-se um precipício e sorve a embarcação.
O homem, com um braço aperta o filho ao coração,
Com o outro, uma tábua ainda ao vórtice arranca;
Atordoado ao bater da espumarada branca,
Avalanche que o arrasta e quase o afoga, mal
Pode a criança suster a princípio; afinal
Já luta, já respira, e tem o busto fora.
Era horrível há pouco. Ainda é pior agora;
Resistindo, entre o céu escuro e o escuro mar,
Aos despojos atém-se, e lá vão, a nadar;
Como que por cruel e covarde ironia,
O Oceano prolonga, a brincar, a agonia
Dos míseros, que vê no combate sem voz.
Os pedaços do barco, um agora, outro após,
Leva-os, e um após outro os náufragos os colhem.
O espólio diminui, por mais que aflitos olhem;
Vai-se o frágil arrimo; eis que só restam dois
Pedaços do batel, depois um só, depois
Nada!
Aos ombros do pai atira as mãos a criança.
Naquele apoio, sim, pode-se ter confiança.
“Coragem! diz-lhe, longe a tempestade vai;
“Parece que não tarda a amanhecer.”
O pai
Pergunta-lhe em voz baixa, angustiada, arquejante:
”Avistas terra?” E então, num grande esforço ovante,
Nos braços o ergue acima. O menino estendeu
A vista para o longe, e alegre prorrompeu:
“Amanhece. Lá vejo o morro, a praia cheia
“De cabanas, e a igreja! ó pai, é a nossa aldeia!
“Vamos dormir em casa ainda, se Deus quiser.
“Anda; avisto sentada além uma mulher...
“Mas tu deves estar cansado...” — ”Vai olhando”,
Diz-lhe o pai, num esforço extremo o sustentando.
“É mamãe! é mamãe! é ela! vejo que é!”
— “Tarde!” murmura o pai; falta-lhe a voz até.
Oh! como horrivelmente o filho lhe pesava!
Os braços do infeliz a câimbra inteiriçava;
Exauria o vigor nos arrancos finais,
Batia na água, sim, mas não seguia mais.
A criança refletiu então: ”Sou eu que o prendo;
“Meu peso é muito; o mar agora vai cedendo;
“Clareia o céu; que belo o dia vai ficar!
“E que túmulo este, enorme e frio, o mar!
“Mas quem há de cuidar dos irmãos? Sou covarde,
“Já o devia ter largado; faz-se tarde.
“Sozinho, poderá chegar. Oh! que prazer,
“Quando o abraçarem lá! Se eu pudesse morrer
“Sobre os joelhos teus, ó minha mamãezinha!...”
Rubra, por trás da serra, a madrugada vinha;
Do ombro do pai tirou a pequenina mão
E em silêncio afundou.
À hora em que se vão
Os pequenos deitar, o alegre e meigo bando
Assustado repara: ”Olha papai chorando!”
E, pálida, sem ter um riso para dar
Aos seus risos, sem ter ao menos um olhar
Para as frontes gentis, no aposento sombrio,
A mãe vai se assentar junto a um berço vazio.
Valença, 1886.
MORTA
(A. de Musset)
Era bela, se a Noite adormecida
No ádito sombrio da capela,
Onde lhe fez o leito Miguel Ângelo,
Pode, imóvel, ser bela.
Era boa, se basta que, passando,
A mão se abra e dê, sem que, em verdade,
Deus nada veja ou diga: se é esmola,
Ouro sem caridade.
Pensava, se somente o vão murmúrio
De harmonioso, de suave acento,
Como um arroio que sussurra e geme,
Denota o pensamento.
Orava, se é verdade que dois olhos
Belos, ora fitando-se no chão
E ora para o céu se levantando,
Se chamam oração.
Ela houvera sorrido, se a florinha,
Que não desabrochou nunca, pudesse
À frescura, uma vez, se abrir do vento,
Que a beija, passa e esquece.
Ela houvera chorado, se algum dia
Friamente levada ao peito seu
Sentisse sua mão na argila humana
Os orvalhos do céu.
Ela teria amado, se o orgulho,
Igual à triste luz que inútil mão
Junto a um túmulo põe, lhe não guardasse
O estéril coração.
Está morta, sem nunca ter vivido,
Esteve só fingindo que viveu.
De suas mãos caiu enfim o livro
Em que ela nada leu.
S. Paulo, 1871.
A LÂMPADA
(André Chénier)
Ó noite! eu protestara amar essa traidora;
Jurava-me um amor eterno, a sedutora;
E na jura comum cada qual te invocou.
Aos braços de outro amante a ingrata se entregou.
Promete amá-lo muito, e lho diz, e lho jura,
E invoca-te ainda, a ti mesma, a perjura!
Tu, lâmpada noturna, astro amigo do amor,
Até o amanhecer, posta no velador,
Dessa tua prisão de vidro alumiavas
O nosso terno enleio, e lhe testemunhavas
O doce prometer; mas contigo, ai de mim!
Seu amor se gastava, e extinguiu-se por fim;
Toda a jura também dessa boca adorada,
Como tu, em fumaça ei-la já dissipada.
P’ra nos alumiar, ao pé do leito seu,
Quem te queria ali, ó lâmpada, era eu;
E não te apagas tu, ao ver tamanho crime!
E prestas-te ao prazer de um rival que me oprime!
Falsa como essa falsa, e tão sem fé assim,
Para outro estás sendo o que foste p’ra mim,
Revelando a outro olhar, que levas para ela,
Que pérfida que é, mas também quanto é bela!
— Ó poeta infeliz, não me acuses assim!
Para ta conservar, fiz o que estava em mim.
Olhando a persegui, na hora do delito,
Até que me matasse o seu cuidado aflito:
Ontem, tão fatigada ela mostrava estar
Que apenas arrastava e a fala e o andar.
Extinta já no espaço a lâmpada celeste,
Acenderam-me então; deitou-se, e lhe disseste
Que de seu corpo enfermo a frouxa languidez
Um sono longo e casto implorava talvez.
Abraçaste-a, partiste, ao vê-la adormecida.
Mal saíste, essa porta ali falsa escondida
Abriu-se: loura fronte apresentou-se, vi
Pela primeira vez um outro amante aqui.
Então ela a tremer com a fala e carinhosa
Dizia-lhe: ”Não, vá-se; eu sou bem criminosa.”
E os braços lhe estendia, ao lhe falar assim.
O moço caminhava, e chegou perto enfim.
Vi unirem-se então as duas bocas pérfidas.
.............................................................
Dos flancos dela vi o puro jaspe ardente,
Lírio, ébano, coral, um sangue azul e quente,
Tal qual tu ma mostraste outrora tanta vez,
Mais formosa e gentil só com a sua nudez,
Quando, em noites de febre, o travesseiro a via
Entre beijos dormir e acordar, e a alegria
Gritos teus arrancava ao veres-me luzir
Complacente, e ela então maldizia-me, a rir.
Embalde ao deus do amor, que te julguei propício,
Pedi da voz, que tenho agora, o benefício.
Queria lhe exprobrar teus prantos, à infiel,
Chamar-lhe ingrata e má, criminosa e cruel.
P’ra ao menos lhe acordar em o seio impudente
O remorso, o terror, me agitei de repente,
E da torcida a arder em ruidoso estalar,
Fiz saltar chispas mil da chama a crepitar.
Descorou e tremeu, e, para mim olhando,
Com voz desfalecida assim disse: ”Pois quando,
“Cedendo-te ao desejo, eu consinto em calar,
“Há de essa testemunha os perjúrios contar!”
Ia-se levantar; nos braços a apertando.
“Oh! não apagues! não!” disse ele, a segurando.
Eu já cessei de arder: imitar-me convém.
Ela ama a outro, busca outra amante também.
Sopra esse amor infame, eu to aconselho, amigo,
Como, para apagar-me, o fez ela comigo.
S. Paulo, 1873.
VOLTANDO DO MAR
(Méry)
Era a hora em que o céu se constela de mundos,
Em que Deus, adornando ao que queremos bem,
Sumiu com uma das mãos o sol nos mares fundos,
Com a outra a lua ergueu lá dos montes além!
Casta recordação de uma noite ditosa!
O mar dir-se-ia vir do horizonte sem fim,
Para manso beijar com a onda amorosa
Teus pequeninos pés calçados de cetim.
Brilhava o astro da noite, o seu disco inclinando,
E, para te mostrar, acendia o fulgor
Do dia; qual sultão a odalisca olhando,
Por ele prometida ao seu fogoso amor.
Com sua argêntea gaze a atmosfera suave
Ameigava-te o corpo e luzia-te ao pé;
E, tapiz de veludo em que rainha grave
Anda, a areia a teus pés amimava-os até.
Eu, com a força toda e com toda minh’alma,
Oh! como desejara em minhas mãos pegar
Esse instante fugaz de paixão e de calma
Que me passava ali para não mais voltar!
S. Paulo, 1873.
MARMÓREA
(Guido y Spano)
Marmórea, triste, enferma, desmaiada
Qual salgueiro que a verde face inclina
E na lagoa a espelha consternada,
E de luar se veste e de neblina,
Já mal sabe sorrir; do olhar somente
Um vago e terno anelo transparece,
E volve aos céus os olhos, inconsciente,
Qual se, num templo, erguesse íntima prece.
Em êxtase, talvez, escuta um canto
Divino, doce e merencória reza,
Hino talvez de amor ou voz de pranto
De alguma alma cativa de tristeza.
Quem sabe? Envolta em harmoniosas brumas,
Do espaço os espíritos alados
Com tênues leques de alvejantes plumas
Agitam-lhe os cabelos perfumados.
Mórbida languidez; d’antes não tinha
Esta alvura! e que luz no olhar, coada
Por sonhos ideais! quando caminha,
Parece pelos zéfiros levada.
Colhendo as brancas asas como uma ave,
Adormeceu-lhe n’alma o sentimento,
E só aspira à paz serena e grave,
À paz da ausência, à paz do esquecimento.
É vê-la, candidíssima camélia,
Com seu vestido branco de ampla fralda,
Semelhante a Desdêmona ou Ofélia
Esfolhando nas ondas a grinalda.
Se toca ao piano, o instrumento anseia;
Se canta, é murmurando uma elegia
Com suave expressão que exalta e enleia...
E ela sempre indiferente e fria!
Como extinguiu-se-lhe a celeste chama
Que o seio lhe nutria? que atroz pena
Nesse angélico espírito derrama
O ópio que a acalma e que a envenena?...
Enferma, quase exânime!... Traidora
A febre lentamente a vai minando,
E a vida ao seu ardor se lhe evapora
Em leves ondas de perfume brando.
Brisas do mar, alentos da esplanada,
Eflúvios da floresta, auras do monte,
Vivas exalações da madrugada,
Rápidas vinde e refrescar-lhe a fronte.
Da formosura o esplêndido rosado
Dai-lhe, dai-lhe, e a saúde que lhe expira,
Para que pulse o seio enregelado
E vibre do seu ser a interna lira.
Está na idade em que o amor floresce;
Que a proteja o amor, cuja alva estrela
Em seus divinos olhos resplandece...
Nunca se apague ao refletir-se nela!
Minas, 1879.
OS DOIS ESPELHOS
(Campoamor)
No cristal de antigo espelho
Aos quarenta anos me olhei,
E achando-me feio e velho,
De raiva o cristal quebrei.
Da alma na transparência
Meu rosto então contemplei,
E tal me vi na consciência
Que meu coração rasguei.
Porque, perdendo o mortal
Crença, juventude e amor,
Se se olha ao espelho, mal!
Se se vê n’alma, pior!
Rio, 1891.
A SOMBRA DOS MORTOS
(Gutiérrez)
À porta fui bater de um que era amigo,
E a voz logo expirou-me na garganta,
Porque de ti saudade não habita
Onde delira a dança e a orgia canta!
Mas vamos, minh’alma, além:
Que a sombra dos que morreram
Na terra ingrata amigos já não tem!
À porta fui bater do amor primeiro,
E para trás volvi angustioso,
Porque a adorada mão de tua amante
Acariciava a fronte de um esposo!
Mas vamos, minh’alma, além:
Que a sombra dos que morreram
Na terra ingrata amores já não tem!
A porta fui bater do lar paterno,
E caiu-me da aldraba a mão tremente:
Ai! onde o ruído do festim ressoa
Já lembranças não moram mais do ausente!
Mas vamos, minh’alma, além:
Que a sombra dos que morreram
Na terra ingrata a casa já não tem!
No dia melancólico dos mortos,
Fui ao pé de um sepulcro abandonado,
E por teu nome ergui a minha prece,
Por sobre o musgo dele prosternado.
Não fujas, minh’alma, já:
Que o nome dos que morreram
Só na pedra dos túmulos está!
Rio, 1871.
QUADROS
(Cópias de originais castelhanos)
A GUERRA
Descamba a tarde, ao seu clarão incerto,
Com a rédea solta ao peito malferido,
Solitário corcel cruza, perdido,
O campo de batalha já deserto.
De sangue e lodo e de suor coberto.
Cravando os olhos e apurando o ouvido,
Interroga o montão donde um gemido
Ouviu de moribundo; está bem perto.
Estaca ali então, e, dilatando
A entreaberta narina, o ar aspira.
Chegam os corvos p’ra o festim nefando;
Apaga o sol a funerária pira;
Remexe o bruto a Sarça resfolgando,
A fronte lambe ao paladino e expira.
A PAZ
O alvor da aurora, meigo de carinho,
De luz inunda o morro e a várzea inteira,
E, de amor e consolo mensageira,
Ouve-se a alegre voz de um sinhozinho.
Espadanam as águas no moinho;
Busca o zagal a bela companheira;
E a chusma dos pássaros palreira
Anda ufana a voar de ninho em ninho.
Tudo é repouso e calma e harmonia;
Na curva azul do céu imaculada,
Convidando ao prazer, desponta o dia;
E, rica de esperanças e abastada,
Bênçãos d’alma feliz a Deus envia
A mãe, junto de um berço ajoelhada.
S. Paulo, 1876.
O GONDOLEIRO
(C. Delavigne)
“Vamos, belo gondoleiro,
Até Rialto, diz ela:
Dou-te este colar que trago.
Tem cada pedra tão bela!”
Mas recusa-lhe o rapaz:
“Pelo pior dos colares
Na minha gôndola entrares!
Não, Gianetta; que me dás?”
“Eu sei um doce lamento;
Posso cantá-lo, diz ela,
Em caminho de Rialto;
E a música é tão bela!”
Mas recusa-lhe o rapaz:
“Ora! só por uns cantares
Na minha gôndola entrares!
Não, Gianetta; que me dás?”
Com seu rosário nos dedos,
“Olha, querê-lo? diz ela:
O bispo benzeu-lhe as contas;
E tem uma cruz tão bela!”
Mas recusa-lhe o rapaz:
“Por uns benzidos de altares
Na minha gôndola entrares!
Não, Gianetta; que me dás?”
Canal em fora, entretanto,
Vi-o remar junto dela
E olhá-la entressorrindo.
Que teria dado a bela?
Saiu confusa. O rapaz,
Fiel à palavra dada,
Voltou à gôndola, e nada,
E nada lhe pediu mais.
S. Paulo, 1873.
ANÁLISE
(J. Richepin)
Ó lágrimas, em que se vão nossos rancores,
Qual proceloso céu, fuliginoso, troante,
Elétrico, e que em chuva esvaece num instante;
Ó lágrimas, ó mais suave dos licores,
Quando vos bebe o amante a beijos vencedores,
Qual bebe o sol, passado o chuveiro, anelante,
Pelas nuvens que enxuga, o arco-íris brilhante;
Ó lágrimas, que assim caís de nossas dores,
Como o orvalho, da flor cai do quebrado cálice;
Vauquelin e Fourcroy fizeram-vos a análise,
Ó lágrimas, e os dois, no crisol, afinal,
Encontraram, por junto, o que aqui vai escrito
Água, sal, soda, muco e fosfato de cal.
Ó lágrimas, ideal rócio d’alma!... Bonito!
Minas, 1885.
ME, ME, ADSUM
(J. Soulary)
Ei-los perante o magistrado,
Que lhes diz: ”Casados estais
“Em nome da Lei; quanto ao mais,
“Lá vos fica ao vosso cuidado.”
Diz depois no templo sagrado
O padre: “Abençoadas sejais
“Eu nome da Fé; ora entrais
“No grande mistério ignorado.”
Mas eis que no limiar divino
Surge um formoso deus menino
E assim ao par exclama: ”Eu sei,
“Loucos, que não contais comigo!
”Pois sou o Amor, e vos desligo,
“Eu não conheço Fé, nem Lei.”
Valença, 1885.
SONHOS AMBICIOSOS
(J. Soulary)
Se eu tivesse algum chão: montanha, vale ou seara,
Quisera um pouco d’água: arroio, olho ou cachoeira;
Uma árvore plantara: ipê, cedro ou palmeira;
Erguera um teto: telha-vã, colmo ou coivara.
Na árvore um ninho bom: frouxel, palha ou taquara,
Reteria um cantor: sabiá, melro ou coleira;
Sob o teto um bom leito: estrado, rede ou esteira,
Reteria uma huri: parda, morena ou clara.
Basta um pequeno chão; para que o demarcasse,
Pediria à mulher que mais me enamorasse:
Fica em frente do sol que vem rompendo; espera;
Até onde na selva a tua sombra avance,
Apenas até lá meu horizonte alcance:
Ventura que na mão se não colhe, ó quimera!
Rio, 1893.
O SAPATO VELHO
(F. Coppée)
Em maio, por um dia esplendido e calmoso,
Andava eu marginando o rio vagaroso
Que de uma nuvem branca espelhava o passar.
Seguia lentamente o trilho irregular
Que desce para o porto, entre flores e viços.
Álamos à direita, e à esquerda caniços;
Em frente, majestoso, o rio a colear,
E a ponte, um arco só, traçando-se no ar.
Murmurava, vergando os juncos, a corrente;
E os peixes, no saltar, lhe iam continuamente
Orbes de chamalote abrindo na extensão.
A toutinegra viúva e o belo verdelhão
Cantavam no arvoredo espesso, ao desafio;
E dos ninhos a festa e da água o murmúrio
Iam-me acompanhando o lento divagar.
Eis, súbito, na relva inflorada, ao passar
Pelo trilho aldeão, de botões-de-ouro ufano,
A meus pés avistei — primeiro indício humano
Que aos olhos me surgiu naquela solidão —
Sob a relva e já quase incorporado ao chão,
Um sapato deixado ali, do algum mendigo.
Era um sapato imundo, indecoroso, antigo,
Acalcanhado, abrindo a sola com desdém,
Feio como a miséria, e sinistro também.
Outrora pertenceu, decerto, a algum soldado;
Depois, no remendão, caído em triste estado,
Algum vil vagabundo ainda o viu e quis.
Um tal sapato vai de país a país,
E um dia, escalavrado, esmagado da carga,
Larga afinal o pé: não é o pé que o larga.
E que pungente poema este despojo é!
O ferro do cativo e o grilhão do galé
Pesarão mais que tu, sapato do mendigo?
Porque ficaste assim dessa ponte ao abrigo?
Neste lugar a água é profunda? Talvez
Aconselhasse o rio alguma hediondez
Ao mísero viajor de tão longe chegado?
Dize! Foi, arrastando o pé descalço e inchado,
Ao mais próximo albergue uns socos mendigar?
Ou, depois de te haver perdido no lugar,
O mesquinho, que até os trapos abandonam,
Foi ver ali, aonde as águas turbilhonam,
Se quem dorme acolá já não precisa mais
Uma roupa decente e uns sapatos iguais?
Embalde uma aversão invencível combato
Diante do aspecto mau deste horrível sapato,
Que neste campo, só, se me depara aos pés.
É infame, o seu jeito é de vir das galés;
Vermelho está, lavou-lhe o couro a tempestade;
E imagino um assassínio, e alguém que se evade
Para longe de um outro arquejante no chão,
Com a face pisada a pregos de tacão!
Abominável resto a meus pés encontrado,
Refugo do bandido ou do desesperado,
Fazes-me estremecer! Tudo em ti vem lembrar,
Ante as flores, e ante a natura sem par,
E ante os céus onde corre uma aura de bondade,
E ante o esplêndido sol, do mal a eternidade.
Ante eles tu depões, ó testemunha má,
Que de miséria o vício o mundo cheio está,
E que esses cujos pés sangram pelas estradas
Estão prestes a ter as mãos ensanguentadas.
— Instrumento de crime ou de tortura, ó vil,
Sê maldito! E, afinal, que podes contra abril?
Vede! a relva crescente encobre a coisa abjecta;
E medonho, e sobre ele ondula a borboleta;
Recupera-o a terra em musgo encantador,
E no sapato velho abre o campo uma flor.
ELEGIA
(Miçkiewicz)
Oh! se um só dia... um dia inteiro é muito...
Se uma hora só, pudesses tu viver
Dentro em minh’alma!... Então é que verias
Criatura feliz, o que é sofrer!
O pensamento perturbado trago;
Tempestuosos tenho os sentimentos;
Morde-me a raiva o coração, nos olhos
Põe-me olhares sombrios, por momentos;
E, por momentos, intima saudade
Engolfa-me num mórbido cismar,
Ou do remorso as lágrimas ardentes
Vêm-me os lânguidos olhos arrasar!
E tu... extremos do insensato evitas,
E do importuno o lamentar constante!
Não me conheces! da paixão, é certo,
Crestou-me o fogo o viço do semblante;
Mas olha-me bem n’alma. Aí tesouros
Verás de amor e de bondade, e mais
A fantasia, com que a sorte ingrata
Se mitiga dos míseros mortais.
Hoje não podes enxergá-los... Quando
Ruge no oceano a tempestade, e ardentes
Raios o abrasam, quem avista as conchas
Nacaradas e as pérolas luzentes?
Antes de me julgares, olha, deixa
Que volte o claro sol e ao céu a cor
Cerúlea da bonança. Mas que, ao menos,
Bem certo esteja eu de teu amor;
Que de tua inconstância maltratado
Não mais o coração venha a doer-me!...
Já tão medroso está!... feliz eu seja
Um só momento, e hás de conhecer-me!
Como um gênio cativo dos encantos
De poderosa feiticeira, eu
Viverei p'ra cumprir os teus desejos,
P’ra adivinhar o pensamento teu.
Se, de orgulhoso, alguma vez o escravo
Tiver caprichos de senhor e altivo,
Tu sorrirás, e hás de ver que logo
Torna o senhor a se humilhar cativo.
E que te havia de mandar? Que um pouco
Retardasses a hora de partir...
Que o penteado ao gosto seu trouxesses...
Que a ocupação deixasses para ouvir
Novas canções e juramentos velhos...
E bem podias lho fazer, querida,
Com um quarto d’hora de paciência ou tédio
E alguns instantes de atenção fingida.
Quando eu julgar que escutas os meus versos,
Tu poderás dormir; e se outro for
O sentimento que nos olhos mostres,
Eu neles, crente, só verei amor.
Dona do meu futuro, hás de guardar-me
A razão e a vontade no teu seio.
E do passado esquecerei saudades,
Para que nada em mim te seja alheio.
Então este selvático delírio,
Que até agora se apossou de mim,
Cairá de minh’alma: de uma barca
Soçobra um malfeitor e cai assim,
Um malfeitor, que com a sinistra fronte
Subleva as vagas e a procela envida.
Placidamente vogaremos ambos
Por sobre o manso lago azul da vida.
E se ainda a sorte má de nós em torno
Bravas tormentas despenhar ali,
Eu, me elevando acima delas calmo,
Aéreo cisne, cantarei p’ra ti!
S. Paulo, 1873.
O REI HARALDO HARFAGAR
(H. Heine)
O rei Haraldo Harfagar
Está no fundo do Oceano
Com bela fada do mar;
Passa o tempo, ano, ano, ano, ano
Pela ondina enfeitiçado,
Nem bem vive, nem bem morre;
E o delicioso pecado
Há duzentos anos corre.
No seio da feiticeira
Traz a fronte a repousar;
Olha-a em lânguida quebreira:
Nem cansa nunca de a olhar.
Os cabelos d’ouro tomam
Tom de prata; ao macerado
Semblante as maçãs assomam;
O corpo é gasto e alquebrado.
Às vezes, rompe a cadeia
Do sonho de amor fatal,
Quando, acima, a onda estrondeia
E arfa o paço de cristal.
Às vezes, ouvir parece
Grito de guerra normando;
Ergue-se rijo, estremece,
Torna a cair, miserando.
Às vezes, vozes estranhas
Ouve de lobos do mar,
Que celebram as façanhas
Do rei Haraldo Harfagar.
Então geme o rei, soluça
E chora, em voz cava e rouca.
A fada então se debruça
E beija-o, rindo, na boca.
Rio, 1901.
NÚMEROS DO ”INTERMEZZO”
(H. Heine)
I
Na ridente primavera,
Quando o botão abre em flor,
Minh’alma, de estéril que era,
Engrinalda-se de amor.
Na ridente primavera,
Quando entra o melro a cantar,
À que em mim sorrindo impera
Ousei meus votos confiar.
II
Minhas lágrimas entornam
Flores que brilham ao sol,
E meus suspiros se tornam
Em cantos de rouxinol.
Se me quiseres, ó bela,
Tens dessas flores o escol,
E defronte da janela
Os cantos de rouxinol.
XXXIII
Como é formosa a terra e azul o céu festivo!
Doce brisa estival
Sopra; por toda parte o solo é um jardim vivo,
E nas flores cintila o orvalho matinal;
Uma luz de alegria anda no ar, e à porta
De cada habitação há risos e folguedo;
Ah! quem me dera já no meu túmulo, quedo,
Morto, estreitando ao peito a minha amada morta!
XXXIV
Ó doce amada minha, quando um dia,
Tu te fores deitar na campa fria,
Irei nela deitar-me ao lado teu.
Beijo, abraço-te muito, ardentemente,
E tu, pálida, muda, indiferente...
Grito, estremeço, morro também eu.
Ouve-se meia-noite; os enterrados
Erguem-se e dançam, grupos nebulosos...
E, estreitamente unidos como esposos,
Ficamo-nos no túmulo deitados.
Eis o dia da ira; convocados,
Erguem-se os mortos para a dor e os gozos...
E nós, do eterno prêmio descuidosos,
Deixamo-nos ficar, bem abraçados.
XXXVII
Diz a cabeça: ”Venturoso o mocho
Onde a querida pousa os pés pequenos!”
Podia em mim tripudiar, se o fosse;
Nem uma queixa me ouviria, ao menos.
Suspira o coração: ”Afortunada
A almofadinha em que as agulhas crava!”
Fosse eu, e bem podia trespassar-me.
A sua mão, que mais a abençoava.
Geme a canção: ”Feliz a folha branca
Que em papelotes ela despedaça!"
Fosse eu, e murmurava-lhe aos ouvidos
Tudo que dentro em mim canta e esvoaça.
Rio, 1893.
UMA MULHER
(H. Heine)
Ele e ela se amavam ternamente,
Ambos ladrões. Quando ele cometia
Uma das costumadas ligeirezas,
Caía ela no leito, e ria e ria.
Em festas se passava o dia inteiro,
No peito dele à noite ela dormia.
Quando à cadeia o conduziram preso,
Ela pôs-se à janela, e ria e ria.
Ele escreveu-lhe que viesse vê-lo,
Que de saudades dela se morria.
Quando ela recebeu a carta dele,
Sacudiu a cabeça, e ria e ria.
De manhã, às seis horas, o enforcaram
E às sete na vala apodrecia;
Mas, uma hora depois, ela sem ele
Bebia rubro vinho, e ria e ria.
S. Paulo, 1874.
SONETO
(Félix d’Arvers)
Tenho um mistério n’alma e um segredo na vida:
É um eterno amor nascido em um momento.
É mal que não tem cura: assim, nenhum lamento
Jamais o revelou à cândida homicida.
Por ela passarei, sombra despercebida,
Sempre a seu lado, sempre, e em mudo isolamento
E há de chegar assim meu último momento,
Sem nenhuma ventura ousada ou recebida!
Criou-a meiga Deus, e boa e carinhosa,
Mas distraída segue, e surda à voz ansiosa
Deste amor que murmura a seus pés, onde está.
Fiel ao seu dever, que austeramente zela,
Dirá talvez, ao ler meus versos cheios dela:
“Que mulher será esta?” e não compreenderá.
Minas, 1884.
A CANÇÃO DO MOÇO MONTANHÊS
(Uhland)
Sou o moço pastor da montanha;
Os castelos do vale domino;
Dá-me o sol sua luz desde a aurora,
E comigo é que mais se demora;
Sou o moço pastor da montanha!
Da torrente este é o berço materno;
Bebo-a fresca ao jorrar do rochedo;
Ela brame a saltar pelas brenhas,
E eu recebo-a nos braços sem medo;
Sou o moço pastor da montanha!
A montanha é o meu livre domínio;
Pelos lados a cercam procelas;
Quando rugem do sul e do norte,
Canto um canto mais alto do que elas;
Sou o moço pastor da montanha!
Tenho aos pés o trovão e o raio,
Pois que moro no céu azulado;
Eu conheço-os de perto e lhes brado:
Respeitai de meu pai os penates!
Sou o moço pastor da montanha!
E no dia em que ouvir o rebate,
E vir fogos nos montes brilhando,
Descerei e entrarei nas fileiras,
A brandir minha espada, e cantando
Sou o moço pastor da montanha!
S. Paulo, 1873.
A COROA SUBMERGIDA
No alto da colina
Uma casinha ergue-se;
Um panorama esplêndido
Dali se descortina;
Livre trabalhador
Lá mora, que, ao crepúsculo,
Afia a foice, e cânticos
Entoa ao Criador.
Embaixo, há um sombrio
Pântano; ali submerge-se
Coroa em que já viram-se
Fulgor e poderio;
À noite, há a brilhar
Safiras e carbúnculos;
Ali está ela há séculos,
Ninguém a vem buscar!
S. Paulo, 1874.
A MENINA DO POUSO
(Uhland)
Pela margem do Reno vão três moços
Voltando alegres ao paterno lar,
E já no pouso costumado param
Um pouco, a descansar.
— Traze-nos, velha, o transparente vinho,
A espumante cerveja aqui nos dá.
Que é da menina de cabelos louros?
Onde a menina está? —
— Boa cerveja nesta casa tendes,
Há na adega também vinho demais.
Minha filha... ai de mim! pálida e fria
Já no féretro jaz! —
E quando entraram no quartinho humilde
Onde estava seu leito virginal,
Entre dois círios, no ataúde negro,
A viram glacial.
Um deles ergue o lenço que a velava,
No angélico semblante pousa o olhar:
— Se viveras ainda, linda moça,
Mais te havia de amar! —
Outro deixa cair o véu no rosto,
E volta-se com trêmulo gemer:
— Eu, que tanto te amei, ó bela criança,
Assim te hei de ver? —
Abeirou-se o terceiro, e, desvelando-a,
Nos lábios dela os lábios foi pousar
Num doce e casto beijo: — Amei-te, amo-te
E sempre te hei de amar! —
Rio, 1872.
OS CANTOS DOS MORIBUNDOS
(Uhland)
I
A SERENATA
“Que sons tão doces, ó mamãe, me acordam!
Mas que vem a ser isto a tal desora?
“Eu nada oiço, nem vejo. Filha minha,
Dorme teu sono sossegado! Agora
Já não há serenatas para ti,
Coitadinha de filha, ai! tão doente!”
“Não foi terrestre música que ouvi,
Para que me tornasse tão contente;
Era bem lá de cima que ela vinha;
São os anjos que cantam me chamando;
Boa noite, querida mamãezinha!”
II
O ÓRGÃO
“Inda mais uma vez tocai-me órgão,
Meu respeitável e meu bom vizinho!
E que as mágoas do peito me adormente
A piedosa música!” Assim pede
A doentinha, e o vizinho lhe obedece;
E nunca assim tocou tão docemente!
Já nem seu modo de tocar conhece!
É um estranho canto venturoso,
Que debaixo dos dedos lhe suspira.
Para subitamente horrorizado...
A alma de sua amiga se esvaíra.
III
O PASSARINHO
“Bem! não irei ao jardim; eu fico
Aqui deitada este verão inteiro,
Contanto que oiça o passarinho alegre
Que está cantando agora no terreiro.”
Para a menina o passarinho pegam,
Numa gaiola o prendem; mas agora
Ei-lo que, triste, já não quer cantar,
E a pequenina cabecinha inclina.
Olha a criança ainda uma vez, implora
Com um terníssimo olhar.
Eis, comovida, a ave
Solta um canto dulcíssimo, suave,
E eis que os olhos da menina brilham
E apagam-se p’ra nunca mais brilhar.
DESEJO
(Luiz Rodríguez, Velasco)
Quisera dessa boca purpurina.
Ser um lábio e beber do outro a ambrosia;
Mas, se esta aspiração te contraria,
Quisera de teus olhos ser menina,
Para viver contigo noite e dia.
Rio, 1901.
O BEIJO
(E. Rostand, ”Cyrano de Bergerac”, at. III, c. IX).
Um beijo, mas, enfim, que grande coisa é essa?
Jura que de mais perto é jurada, promessa
Mais clara, confissão que quer confirmação,
Ponto róseo no i da palavra paixão,
Segredo que se diz à boca em vez da orelha,
Instante de infinito em sussurro de abelha,
Com ressaibo de flor íntima comunhão,
Modo de respirar um pouco o coração,
E de provar um pouco, à flor dos lábios, a alma.
Rio, 1901.
[1] Referência a uma poesia que foi suprimida.
[2] Toda esta poesia alude ao apedrejamento do edifício da Republica, pela polícia, nesta capital, em fevereiro de 1873, ao festejar-se ali a proclamação da República em Espanha.
Achava-se a frente do prédio iluminada e adornada com as bandeiras de todas as nações republicanas. Entre estas havia a bandeira brasileira, mas sem a coroa que a macula. Entre as bandeiras estava, num transparente, o retrato de Emilio Castelar. Liam-se em uma inscrição a gás, sobre a tabuleta da casa, estas palavras: Viva a República!
[3] Mas dizem: libertou milhões de servos.
Entre nós, disse-o, se bem me recordo, a Gazeta de Notícias desta capital, comentando o grande ato revolucionário que aniquilou o déspota, não tendo podido, infelizmente, aniquilar também o despotismo na Rússia.
Responda à Gazeta o imortal Michelet, no seu belíssimo opúsculo La France devant l'Europe, pags. 102 e 103: "...La fameuse émancipation des serfs s’est trouvée en fait une aggravation du Czarisme. Il est curieux de voir combien les Américains et autres se trompent là-dessus.
“... Remarquez pourtant deux choses: c’est qu’en allégeant ainsi le paisan du côté du seigneur, le czar le charge d’autant pour son trésor impérial. En quatre ans, il a plus que doublé l’impôt direct (v. Wolowski).”
A Rússia, sacudindo o secular quebranto,
“... le bon et infortuné peuple Russe, âme en peine, horriblement enchantée dans cet Empire du diable qui lui ôte toute vie, tout développement.”
(Michelet, obr. cit., pág. 99.)
[4] É já falecido o magistrado a quem se referem estes versos; não importa: sigo e adoto a opinião de meu respeitável correligionário político dr. Américo Brasiliense, nas suas Lições de História Pátria: “Justiça aos vivos e aos mortos”.
“No meio dos baldões da vil gentalha”
Frase do mesmo discurso de João Francisco Lisboa, que forneceu a epígrafe.
[5] A criança fervorosamente republicana a quem fiz este soneto é hoje homem feito e distinto professor.
Sílvio, o velho cantor que eternos versos grava
Alusão a Victor Hugo, nas Orientais, XVIII, O menino.
[6] Versos distribuídos em avulsos no teatro D. Pedro II, na noite de 6 de maio desse ano, no espetáculo promovido pela Imprensa Fluminense a benefício das vítimas da febre amarela em Campinas, espetáculo a que assistiu a Princesa imperial.
[7] Lamartine, Jocelin.
[8] Fétichisme dans l’amour, in Revue Philosophique, fascic. de set. de 1887.
[9] Pensamento de Victor Hugo, no “Booz adormecido”, da Lenda dos séculos.
[10] Na edição aqui utilizada, está grafado “teus”, que nos parece evidente gralha tipográfica.
[11] Na edição aqui utilizada, está grafado “ceram-se”, que nos parece evidente gralha tipográfica.