LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Quem tem boca vai a Roma, Joaquim Serra
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Obra de Referência
Biblioteca Virtual de Literatura
AO DR. RAIMUNDO A. DE CARVALHO FILGUEIRAS.
MEU CARO
Ofereci a ti este trabalho por duas razões:
O teu nome é o primeiro que me acode à mente sempre que escrevo qualquer coisa, e também, esta comédia foi escrita em tua casa, há bons anos, nos intervalos daquelas gostosas palestras, que tínhamos na tua casinha da rua da Lampadosa.
Bom tempo foi esse e, palavra, que tenho saudades dele!
Mas, como não desejo que haja choro nesta dedicatória: tréguas ao sentimentalismo e variemos sobre o assunto.
— Quem tem boca vai a Roma - é aquela garatuja, que valeu-me por parte do Conservatório dramático do Rio, um interdito acompanhado de uns elogios rasgados e que teriam me posto a cabeça em bolandas se eu não fizesse uma careta ao sentir o amargo da pílula tão bem douradinha pelos ilustres censores, proibindo a apresentação da minha pobre comédia.
Não sou Inimigo do Conservatório Dramático, nem o fiquei sendo depois do seu parecer sobre a minha comédia; agradeci as boas e imerecidas palavras com que foi animado o autor-calouro e escabriei-me com a negativa para a representação, porque dizia-se que a tal comédia ofendia um pouco o decoro da cena.
Deixa que eu fale um instante sobre a pobrezinha.
Quando inaugurou-se a Ópera Nacional no Rio de Janeiro, tu foste testemunha do açodamento com que nos atiramos desapiedados sobre o papel, a fazer libretos para as partituras nacionais. Era uma hidrofobia patriótica, uma atividade digna de melhor sucesso, ao menos pela minha parte.
Entendi que o gênero espanhol das zarzuelas era o mais próprio para o nosso teatro, e quase que insensivelmente, uma boa manhã acordei tendo ultimado na noite antecedente o meu ensaio dramático, que te li de um só folego, com grande espanto teu e, confesso-te, que com não menor meu.
Ouviste as primeiras cenas bocejando, as outras mais sisudo, sorriste nas últimas e, quando acabei a leitura, estavas a meu lado, fora da rede, inteiramente acordado e dando risadas tesas, dessas de fazer rir o diabo.
Palavra, que cobrei alma nova e, sem fazer de ti a criada da velha de Molière, julguei que o meu trabalho poderia fazer rir as plateias.
Impuseste-me a obrigação de levá-lo ao Conservatório Dramático e ele de lá saiu com os pareceres que adiante mando transcrever.
Sei que esses elogios, que foram-lhe prodigalizados, são mentirosos como um epitáfio, pois neles até se diz que «com grande aproveitamento deve o autor da comédia Quem tem boca vai a Roma ter estudado a ciência dos Legendre e La- place»
Tu e a álgebra sabem bem com que desprezo soberano tratei os intrincados—x x— e os não menos enfadonhos cossenos e hipotenusas.
Mas, se por um lado as expressões animadoras do Conservatório satisfizeram o meu orgulho de autor (nobre ambição, como és apreciável nos anões 1) pelo outro lado doía-me a injustiça do Conservatório, que, licenciando a Tia Bazu, Bodas de Merluchet e outras produções decotadas de mais, achava vislumbres de desonestidade nos meios humildes lapsos de lápis.
Quero que por conveniências, que respeito, não se apresentasse em cena um grosso Franciscano, desses pintados pelo Bocage e Álvares de Azevedo, concordo em parte; mas a essa inconveniência unir-se a peça de imoral, é que eu não podia tragar.
O Frei Gil do Antônio José, o Noviço da comedia do Pena e o próprio Tartufo de Molière aí estavam para me autorizar a exibição pública de um fradalhão de bom quilate; mas admitindo que a sátira nesses casos possa pecar por muito genérica e ter scos laivos de impiedade, eu concordaria em tudo como Conservatório menus com a pouca decência do meu trabalho, pautado pelo mote de José de Alencar— fazer rir sem fazer corar.
Desculpe o autor das Azas de um anjo (outra vítima do pudor ofendido) se o trato por tu, sem mais nem menos. Já disse, nem sei quem, que os grandes autores não são chamados—o Sr. Dr. Lamartine, nem o Sr. conselheiro Victor Hugo.
O Conservatório Dramático Brasileiro é composto de nomes tão respeitáveis, que não tenho a veleidade de querê-lo abocanhar, mas, meu Filgueiras, agora que podes ler a comedia impressa, vê se encontras esses lugares horripilantes para arranhares sobre eles, com toda a força de tuas unhas e dedos. Quero corrigir-me.
Quando escrevi, esta opera-cômica, comédia, zurzuela o quer que seja, pus de parte o tal pudor inglês, que inventou a palavra inexprimível para significar ceroulas, e que não consente se diga em uma mesa, dê-me da coxa d’esse frango, mas sim dê-me da perna d’esse etc.—Este pudor que sai do coração para se refugiar rios lábios, acho muito guiado para tomá-lo por exemplo.
Agarrei um desses vegetais do culto romano, segundo a frase de Byron; agarrei-o em vésperas de infringir um dos preceitos do decálogo o Frei-Patnsco, pilhado em flagrante, não teve remédio senão receber o prêmio de seus trabalhos.
Os seráficos filhos do S. Francisco, nem todos, como o milagroso mestre, divertem-se fazendo mulheres de gelo para mortificar a carne; alguns há que se parecem com o meu frei Benedito e para esses foi talhada a carapuça.
Mas já disse, que concordo com o Conservatório na censura por esse lado o por tanto não insistirei, sobre este assunto melhor vale frapper juste do que frapper fort et toujours—assim, posso ter passado as raias do conveniente. Não quero ser juiz.
Talvez aqui fosse o momento de fazer uma preleção sobre as composições teatrais, desde Aristófanes até Scribe, e, muito suculento e substancialmente falar do diluvio, do gênero humano e acabar depois com os charitaris do teatro de S. Pedro de Alcântara; mas acho essa dissertação muito erudita para minha cabeça e muito indigesta para o teu estomago. Passo adiante, afirmando-te, que chamo a isto de comédia porque os heróis se acabam casando assim como nas tragédias eles acabarão morrendo.
Se não fosses casado (e que bem casado que és! ) eu diria a heresia de que em resultado o fim da comédia e da tragédia é sempre idêntico: os protagonistas morrem ou casam.
Mas como isto não vem a propósito, faz de conta que o não disse.
Sei bem que esta comédia não é escrita com o pico e finura dos trabalhos de Alencar, Macedo, Bocayuva, Pinheiro Guimarães, Machado de Assis e outros; o riso que ela provoca não é esse riso fino e de canto dos lábios, mas sim a gargalhada rasgada, provocada pelos gros sel, que, em forma de novidade, te digo não ser o ático, tão apreciado por ti e tão do teu uso cotidiano.
Embora; lia pessoas que gostam de coisas assim e por isso não me admira que o Conservatório Dramático encarecesse e apreciasse o merecimento literário desta composição.
Eu de coração já agradeci a nímia condescendência d’aquela ilustre corporação.
O certo porém é que a comédia não há de ser representada, embora tu fosses um dos muitos que se arrepiarão com a tal proibição.
Esse teu pirpenismo em achar representável o meu trabalho, já passa a ser mania e por isso compete mais à patologia explicá-lo do que à estética.
Se tivesse de dever hoje o trabalho, por mim escrito há dois anos, teria de modificá-lo ou antes reconstruí-lo de novo.
Publico-o pois como está, que não é lá grande coisa. Também o publico porque tomei um compromisso para com o editor da Biblioteca Literária e este dá-se por quite comigo mandando eu esta trapalhada para o prelo.
Vá por conta dele, pela tua e mesmo por conta do Conservatório Dramático, que tão boas coisas disse destas folhas de papel.
Sei que a ideia desta opera-cômica nada tem de original, mas, assim como Salomão, digo que nada de novo há em baixo do sol e, como Henrique Heine, penso mesmo que o próprio sol é uma velharia requentada pelo bom Deus.
Vá, pois, para letra redonda o manuscrito virgem e intacto de uma emenda ou tesourada minha. Quod scripsi, scripsi.
Tu, meu Filgueiras, apadrinha-o o mais que puderes e desculpa por lá o autor dizendo, que quando ele tal escreveu, era um rapazola de dezenove anos.
Aperto-te a mão com toda a força da minha amizade. Deve doer-te bastante, não é assim?
S. Luís—1863
JOAQUIM SERRA
CONSERVATÓRIO DRAMÁTICO.
[Expediente do dia 12 de outubro de 1857]
PARECERES:
1º VOTO DA COMISSÃO DE CENSURA SOBRE A ÓPERA-CÔMICA
«QUEM TEM BOCCA VAI À ROMA»
Ilm.º e Exmo. Sr. -- Estando de acordo com a máxima parte das ideias emitidas pela 2º censura, tenho apenas de fazer sucintos reparos acerca da composição original, Quem tem boca vai à Roma, destinada a representar-se em nossos teatros.
O autor desta ópera cômica é fora de dúvida pessoa de espírito cultivado e de lição dramática. Conhece-se que estudou com proveito as ciências de Newton, Bourdon e Legendre, porque aduba as cenas da comédia com problemas de álgebra, integrações, diferencias e teoremas geométricos, com o que lhes dá particular sainete.
Lamento, porém, que tanto espírito e tanta graça se deem as mãos para cobrir de ridículo e desprezo um ministro da igreja.
Para mim é sempre de mau gosto e de péssimo efeito o espetáculo de um sacerdote estúpido, intrigante ou libertino; e quer parecer-me que os motejos, os ápodos e os epigramas, que então se lhe jogam, prejudicando a correção dos que o assemelham, se não desconceituam os bons pastores, que assídua e dedicadamente curam de seus rebanhos, e dão pasto espiritual aos opulentos como aos que trajam a libré da miséria.
No caso vertente trata-se de um discípulo de S. Francisco, infrator da regra seráfica e escravo do demónio da carne. Já não é pouco; mas ainda aqui não fica, Frei Benedito é punido pela sedução que quer realizar com uma descomunal zurzidura de pêas vibradas por camponeses para esse fim adrede convocados pelo estudante de matemáticas e pelo pretendente à mão de Arabela, as pêas que pearão Frei Benedito no caminho da sedução e lhe foram cilicio forçado, foram também o ultimatum da questão do casamento. Eduardo vai casar-se com Arabela, e está, tudo acabado.
Só por este excerto vê-se que a peça está no gosto da época, e que, se for representada, há de produzir muita hilaridade; porque o nosso público dará gargalhadas homéricas ao ver um religioso tripudiar e saracotear ao impulso de grossas correias aplicadas por mãos vigorosas sobre o hábito monacal que enverga.
É fácil a qualquer extrair a moralidade desta cena!
O autor deixou-se levar pela torrente da moda. Sabe que as doutrinas do crucificado no Gólgota, por serem místicas, ascéticas, misteriosas, hoje servem somente para ornato de algum episódio de romance ou para estrofes de alguma ode ultramontana.
Sabe que os luminares da presente época, orgulhosos pelas descobertas com que (ímpios) julgam ter enfraquecido o poder de Deus, empregam-se quase exclusivamente nas questões da elasticidade dos algarismos, dóceis ao jugo das finanças e da economia política, ciências cujos foros colocam acima dos que tem adquirido a teologia, que não dá regras para amontoar moedas. Sabe que sem ser isto, só alguma excentricidade, algum escândalo estrondoso os pôde distrair de seus estudos capitalísticos, industriais e utilitários feitos por amor proximal.
Debaixo destas vistas, o autor atira com um grande escândalo em cena, certo de conseguir o favor do público, que na de conseguir, repito, se a peça for representada.
Tanto o autor reconhece que o seu provérbio «Quem tem vai à Roma» encerra imoralidade contra a religião, que não o finda sem contar uma pequena palinodia...mas a sorte estava lançada, ele passou o Rubicon.
A lembrança de fazer com que os camponeses ficassem na crença de que haviam espancado o boi tatá, lobisomem, ou alma do outro mundo, que os amedrontava e a que o autor chama caipora, e o último monologo dá peça, atenuam um pouco os demais excessos, mas isto me parece recurso de morcego, ou melhor, grito de remorso.
O sacerdócio é muitas vezes exercido por mãos indignas e caracteres depravados, mas não há de ser o teatro, por mais que fustigue esses profanadores da lei do Cristo; que os há de chamar à razão no império da Cruz. São relapsos eivados da gangrena do século, contaminados da podridão dos vícios, para os quais nem as masmorras do santo ofício trariam correção.
Uma vez que os Revmo. bispos, pela carência de autoridade, ou por frouxidão, não podem prover de remédio a mal tão contagioso, fique aos poderes do estado reservada a tarefa da sua coerção ou completa extinção.
À vista, pois, do que deixo dito, concordo com o nobre censor em negar-se a licença pedida pela representação da ópera «Quem tem boca vai à Roma».
A respeito do mérito literário, já disse que o teme ainda mais poderia dizer, mas este parecer já vai longo, e ainda me falta dirigir duas palavras ao ilustrado redator das páginas menores do «Correio Mercantil».
2° VOTO SOBRE A MESMA ÓPERA.
Eis-aqui o resumo do enredo da ópera cômica em um ato, «Quem tem boca vai à Roma», que V. Exc.ª remeteu à minha censura.
No interior da província do Rio de Janeiro existia um pintor, de nome Eduardo, que amava apaixonadamente a menina Arabela, sobrinha de D. Catharina, em companhia da qual residia desde a época do falecimento de sua mãe.
Viviam todos em boa harmonia, até que Fr. Benedito, frade franciscano, travando relações de amizade com a velha V. Catharina, aconselhou-a em suas predicas que não consentisse no casamento dos dois amantes, porque, entre outros defeitos, Eduardo era sectário dá doutrina de Voltaire.
Começou, pois, a velha a tratar mal a Eduardo que andava aflito e desgostoso, quando chegou Francisco, seu amigo, estudante da escola militar, e irmão de leite de Arabela, do quem era uma espécie de protetor.
Francisco recebeu às confidencias dos dois amantes, interessou-se vivamente por eles, e, em resultado das indagações e pesquisas à que procedeu, chegou a descobrir que o fim de Fr. Benedito, em adiar o projetado casamento de Arabela, era seduzi-la e desonra-la! E assim efetivamente aconteceria, se Francisco não tramasse o plano de descarregar uma tremenda sova de pão em Fr. Benedito, na ocasião em que estava quase a pique de realizar o seu nefando projeto.
À vista deste ligeiro esboço, que é, em traços gerais, a fiel exposição das bases da composição, parece que não pôde haver dúvida em classifica-la logo de altamente inconveniente.
A parte principal da ópera é um frade franciscano, sobre quem o autor fez recair lodo o fel da sua bílis, caracterizando-o como um homem perdido, hipócrita, devasso, e de uma conduta horrivelmente perniciosa.
Basta esta consideração para julgar-se da inconveniência da aparição de semelhante personagem na cena dramática, principalmente entre nós, que infelizmente vamos de dia a dia caminhando para o indiferentismo em matérias de religião, indiferentismo que não dista muito da impiedade, essa espécie de flagelo que pôde de um instante para outro assolar o gênero humano.
Entretanto, não posso deixar de reconhecer no autor as melhores disposições para a cena dramática; creio até que ele possui em larga escala os conhecimentos indispensáveis para a produção de excedentes composições. Infelizmente, porém, empregou muito mal o seu talento e habilidade no fabrico desta peça, que é inquestionavelmente um amontoado de impiedades.
O autor dispõe de imensos recursos de graça e espírito; mas é preciso que reflita antes de escrever, para não achar-se segunda vez na extravagante e condenável posição de ler produzido sem fruto, isto é, de ter composto uma comédia inadmissível embora muito bem escrita.
É este o meu parecer.
PERSONAGENS
FRANCISCO-Estudante de matemáticas.
EDUARDO-Pintor.
FR. BENEDITO-Frade Franciscano.
ARABELA-Filha de pobres lavradores.
Coro
A cena passa-se no interior da província do Rio de Janeiro
ATO ÚNICO
Uma esplanada, de um lado uma pequena casinha, do outro uma estrada que se perde pelos arredores, no fundo montanhas; o dia vem amanhecendo e vai correndo durante o período da peça.
CENA 1º
Francisco e Coros
INTRODUÇÃO
Do dia que rompe, saudemos o alvor.
Amigos!
Quem ama a natura, não tem do Senhor
Castigos.
O astro de ouro já mostra sua face
Divina;
Sacode o orvalho, do sol, que ora nasce,
A crina.
E rubras estão as nuvens nesta hora
Na cor,
Qual rosto do virgem, que cora.
D’amor...
A gota d’orvalho, caindo, ressalta,
Se abisma,
E a luz encontrando as cores retrata
Do prisma.
Saudemos o dia, as flores o sol
Com ardor
É ele para os homens, um belo farol
D’amor...
FRANCISCO — Meus amigos, que diabo de ideia foi essa de não me deixarem dormir hoje à sono solto, como merece quem chega de uma viagem? Cheguei ontem à tarda para visitar a minha querida Arabela, minha irmã de leite, à quem amo por mim e por minha mãe, que morreu recomendando-me, e apenas são 6 horas da manhã, ides me acordar!... Afianço-vos que a essa hora nunca acordei na cidade, ainda que o próprio porteiro viesse despertar-me com a caderneta de nossas faltas, com o livro do ferro do Apocalipse da Escola Militar... Vamos lá, o que queres de mim?
1º DO CORO — Vais saber, Xico: tu estimas e aprovas o casamento de Arabela com Eduardo...
FRANCISCO — Sem dúvida...um excelente pintor, à quem ele ama muito. Prometi à sua mãe fazê-la feliz, e à minha que tanto a amava também; portanto, bem vês que é um suave encargo esse de dar-lhe a ventura... mas enfim o que há? digam.
1º DO CORO — Sabes que a mãe Catherina, tia de Arabela, outrora tão amiga de Eduardo... agora...
FRANCISCO — O que tem? a velha Catherina é uma boa mulher, tanto que por saber disso é que deixo sua sobrinha com ela. É verdade que, rapaz solteiro como sou, não a podia ter comigo na corte. Porém vamos a velha Catherina, o que há entre ela e Eduardo...
2º DO CORO — Há um mês a esta parte que faz a menina chorar muito, porque recebe mal a seu noivo, e isso a tem feito ficar bem pesarosa...
FRANCISCO — É celebre! Mas qual a razão de tal?... não suspeita-se alguma coisa de Eduardo?...
1º CORO — Nenhuma... Eduardo É sempre o bom rapaz, o excelente pintor que não quer saber da vida da cidade...
FRANCISCO — E o que tem havido de novo por aqui?
3º DO CORO — Ora quase nada; a exceção da morte do cavalo baio do primo Macario.
FRANCISCO — Ora, isso nada tem com o negócio.
3º DO CORO — Nem tanto assim, pois que foi mesmo desse dia em diante que a tia...
FRANCISCO — Está bom, eu não pergunto coisa alguma dessas, porém sim alguma coisa extraordinária e...
2º DO CORO — Ah! Quem sabe se não foi porque ela foi ser madrinha da filha de Luiza — a douta?
FRANCISCO — Isto tudo são asneiras...
2º DO CORO — Pois a não ser isso; a não ser a queima da casa de mestre Félix; o parto da novilha malhada de João Roberto... Não sabemos de mais nada...
FRANCISCO — Ora, com mil paletas como tu! pergunto-te se não tem ido alguma pessoa estranha, capaz de arredar a opinião da velha, na casa em que ela mora...
1º DO CORO — Espera... não! Quem lá vai não pode ser; é um santo homem; um sábio capaz de dar volta ao mundo...
FRANCISCO — Algum engenheiro, um matemático?
2º DO CORO — Qual! Nada não é nenhum fazedor de casas, não, ele não é pedreiro...
FRANCISCO — Estúpido!...Mas quem é então?...
1° DO CORO — Quem lá vai agora ó só Frei Benedito.
FRANCISCO — Hein?... Parece-me que ouvi assim uma silaba de patifaria, disseste frei...
1° DO CORO — Benedito... Um santo Franciscano.
FRANCISCO — E o que faz aqui esse bem-aventurado?
2º DO CORO — Pobre Homem! Anda no peditório.
FRANCISCO — Há que tempo está ele aqui.
1º DO CORO — Há quase um mês.
FRANCISCO — E ainda não acabou de pedir? pois o lugar não é dos maiores e não tem muito que dar.
1º DO CORO — Pois esse bom homem é o único que vai à casa da tia Catharina...
FRANCISCO — Mas o que faz ele lá? Que qualidade de homem é?...
2º DO CORO — Quanto à isso é uma bela figura, corado, gordinho e...
FRANCISCO — Ora! Isso são todos... Pergunto-te pelos seus modos, aonde se o tem visto?
2º DO CORO — Anda sempre por casa de Maria Julia, Margarida, Thomasia Pires, Gertrudes.
FRANCISCO — Creio que não nomeaste uma só pessoa do sexo feio; algum irmão ou marido.
1° DO CORO — Isso que importa! Ele é um homem no qual se deposita plena confiança. Não há dois dias que o vi sozinho na fonte assistindo à Isaura ensaboar enquanto seu marido caçava veados...
FRANCISCO — Hein! E o marido caçava... Veados!.
1º DO CORO — Frei Benedito falava sobre matérias de religião; só do amor de Deus. Quando cheguei na fonte ouvi-lhe as últimas palavras: «Bem aventurados os tristes porque eles serão consolados».
FRANCISCO — É celebre. E todos os dias vai ele a casa de Catharina?...
1º NO CORO —Todos os dias.
FRANCISCO — E dá-se com Eduardo?
1º NO CORO — Não sei, poucas vezes os tenho visto juntos
FRANCISCO — (à parte) Aqui há coisa (alto) Bem. Mas nada disso explica que razão vos obrigou a me irem acordar...
1º DO CORO — É que a razão de lado isso, de toda essa tramoia, creio ser a mesma que nos tem assustado há muitos dias. Contou-nos o mestre José Fidelis, o carpinteiro, que em Itaboraí apareceu há dias um caipora...
FRANCISCO — Um caipora! ...
1º DO CORO — Sim o qual fez todos levarem a carepa na vila onde apareceu...
FRANCISCO — Ora!
1º DO CORO — O mesmo mestre carpinteiro nos disse, que, segundo o que lhe apareceu no copo d’agua com um ovo que ele pôs no sereno; que tal aparição não há de tardar a se mostrar aqui, pois esses acontecimentos são presságios. A morte do cavalo baio; a queima da casa de Felix; as bebedeiras constantes de Tibério, e esse proceder agora da tia Catharina, tudo anuncia que o tempo está próximo, como diz Frei Benedito, falando do dia de juízo.
FRANCISCO — Então por essa asneira foram me acordar?
1º DO CORO — Nada; O dia está próximo; amanhã faz um mês que apareceu o bicho em Itaboraí, segundo nos disse um Correio que por aqui passou; portanto ele aqui não tardará e tu, como és quase Doutor se nos ajudasses com teus conselhos contra o maldito caipora.
FRANCISCO — Mas que diabo é isso? O que vem a ser um caipora?
1º DO CORO — Pois não sabes?! Escuta:
CORO — É uma luz, que brilha incerta,
No mato acesa por Satanás,
Sulfúrea chama, soturna espalha
Que horror aos peitos mais fortes traz!
Sopro mortífero lhe adeja entorno
Que cresta é tudo que lhe embaraça.
Destrói campinas... assombra os homens
Troveja horrenda... sussurra e passa...
O bosque mudo se torna logo
Rouquenho o mar, brame na praia...
As aves todas trementes ficam,
Da flor o aroma logo desmaia...
FRANCISCO — Está bom, está bom; já sei o que é...
CORO — Sabes, então é...
FRANCISCO — Uma asneira!... Uma tolice que vos preocupa...
1º DO CORO — Pois não acreditas?
FRANCISCO — Eu só conheço uma coisa capaz de me fazer desmaiar: é urna moça bonita, ou um ponto de calculo... Concordo que ao segundo se possa chamar de caipora, porém ao primeiro é uma denominação anticonstitucional, um ato arbitrário e...
1º DO CORO — O que dizes?
FRANCISCO — Digo-te isso!... Então não sabes o que e fazer o olhar de uma moça linda.
CORO — Mas não nos acreditas?...
FRANCISCO — Muito e tanto que logo falaremos sobre essas coisas? Deixem-me só, que quero filiar com Eduardo, e Arabela para saber do que me contastes da tia Catharina; vão, vão.
TODOS — Sim, até logo...
CORO.
Ao campo marchemos
A hora soou;
Já deu seus trinados
A rola no galho...
Avante para o campo
Te hora da sesta...
Que é gozo, que é festa
Com honra o trabalho.
FRANCISCO
Saibamos a causa
Que faz pesarosa
Estar Arabela;
Eu vim da cidade
Para vê-la feliz...
Mas creio que nisso
Metido o nariz
Se acha do frade... (sai o coro)
CENA 2º
Francisco, só.
Ora bem!!!... Está me parecendo que em vez de vir para festas, vim conhecer alguma tratada fradesca, vou resolver algum triângulo sacerdotal. E tal que o leigo Benedito, amigalhaço das moças, que vai assisti-las a fazer barreias enquanto os maridos cação propala o dogma de que: os tristes podem ser consolados?... Esta tia Catharina sempre foi amiga de frades, e eu receio muito desta gentinha... Se o merlo fosse o autor disso tudo?... Vamos, se for não tem que saber é um quadrado que se pode simplificar e aplicar-lhe-ei logo o sistema de eliminação, enviando-o para o convento imediatamente... Ali vem Eduardo, vejamos se por ele saberei alguma coisa mais...
CENA 3º
Eduardo e Francisco.
EDUARDO — (pensativo, entra sem ver Francisco e vai até o fundo.) Ela não tardará; dir-me-á finalmente a causa desse proceder.
FRANCISCO — (Indo até ele) Olá, meu caro! Que estranha maneira de entrar é essa? Então não se usa por esta terra mais dar bom dia? ...
EDUARDO -— (rindo-se) Perdoa-me Xico, vinha tão preocupado... tão meditativo que...
FRANCISCO — E qual é a causa dessa meditação Sr. Eduardo Hamleto? Algum quadro em projeto? Alguma paisagem a finalizar, hein? ...
EDUARDO — Nada, meu amigo não é nada disso.
FRANCISCO — Já sei; alguma virgem a Murilo... Estás pensando como hás de acabá-la? Vamos... Estás naturalmente no mais difícil de retratar-se... E eu te posso ajudar. Estás na cabeça? Pois pinta-a pequena e bonita, e não te importes que não tenha nada dentro...
EDUARDO —Não, Xico... não é...
FRANCISCO — Se não é o mais difícil, a de ser o mais belo: estás nos olhos.
EDUARDO — Sempre a gracejar... És feliz!
FRANCISCO — E porque não o serei... Ora, ouve: tenho amigos; como tu, pelos quais sou estimado e os estimo mais do que Newton a seu binômio; tenho mil amantes, que entram no complemento de minhas felicidades como variáveis, isto é, não participam de nenhum dos atributos das outras quantidades, a que chamarei constantes. Passeio, divirto-me... Lá com uma ou outra pequena contrariedade, que não meto em conta: são diferenciais de quarta ordem. Ora com uma equação destas não é possível achar-se, a for- mula para a felicidade? Dize, e com a breca! Também creio que tu não tens razão de queixa! Que mais queres?...
És um grande artista, um pintor. Agarrar n’uma palheta e zás... apresentar uma mulher bonita, estimável, como se quer, sim, corno sequer, porque além do mais elas não falam... Vantagem que tens sobre o Padre Eterno, porque, aqui entre nós, a língua da mulher é o que as deita a perder; é o que nós chamamos em matemática uma dizima periódica; nunca cessa de falar, vai ao infinito e tu, nas mulheres que sonhas e executas, dispensas-lhes esse luxo... Nada de língua! Achaste o máximo comum divisor que as reduz à uma mais simples expressão... Ser artista! Pelo quadrado da hipotenusa que é soberbo, que é digno de invejar-se...
EDUARDO — Sim, o artista é o homem inspirado pelo Senhor, o artista é o intermédio entre os seus desejos e o mundo. Nas horas pálidas e solitárias da noite, quando tudo dorme no esquecimento de si mesmo sem fé o poeta, é o artista que recostado na sua janela contempla na mudez da terra, a tranquilidade do sono eterno, depois da mundana agitação; é o poeta, que pergunta às estrelas se são olhares trêmulos e incertos dos anjos do Senhor sobre o universo é ele quem se deleita admirando essas ilhas de luz perdidas nesse pélago azul, que se move sobre nossas cabeças; é o poeta quem contempla a pálida namorada mirar-se no leito do oceano, bebendo inspirações em sua doce claridade. É ele que interroga as nuvens no seu frouxo caminhar, que indaga onde se dirigem nessa constante romaria; se elas são levadas pelos sopros dos arcanjos dos Elíseos, se são flores aéreas, que esvoaçam como as folhas das arvores ao primeiro frio e gelado sopro do outono. É o poeta que espraia a sua imaginação por esses mundos de luz infinita, que ouve as preces dos anjos no ciciar da briosa, o respirar da inocência nos perfumes das flores, e depois, com a imaginação vulcanizada, vê aparecera alva e diáfana figura do gênio das idealidades, que pousa à seu lado, e o embriaga com seus olhares, o arrouba com suas cândidas vestes e conversão sós, baixinho, místicas palavras que só eles entendem, que o mundo não sabe decifrar...
FRANCISCO — Bravo! Eis aqui uma tirada lumartiniana! De certo que só um poeta poderá achar tudo isso à noite! Quanto a mim...Com franqueza... pouco se me dá que as nuvens sejam aéreos cabrioleis que correm pelo espaço; ou uma porção de primos e primas que brincão o tempo será! Acho sempre com a mesma cara a lua, quer a considere bacia de arame em que o Eterno se banhe, quer a tome por um formidável queijo londrino-celestial...Quanto às estrelas, com certeza te digo, que não passam de pedras falsas com que está macadamizado o pavimento lá de cima, para prova: a Via-Láctea.... Porém o que com sinceridade acho soberbo no teu conto, é a última parte!... Confesso, que não deixa de ler sua graça essa entrada assim pela janela de uma linda mulher, que conversa conosco baixinho... Oh bem aventurados os poetas, porque deles é o reino das pelas!. Juro-te que tem me sucedido mais servir de gênio das idealidades, ou moralidades, como lá dissestes...Entrando para casa de, alguém peja janela do que o inverso... Sim: a recíproca desse teorema nunca se deu comigo... Vejam porém como mudamos para coisas tão diversas! Dizia eu que tu também és feliz, e que uma das causas para isso, é a tua vida de artista; és amado por urna linda pequenita com quem estás para casar; e aqui para nós, Sr. maganão, a minha irmãzinha de leite, a minha Arabela é bem bonitinha, que dizes?
EDUARDO — Oh, é um anjo e eu a amo com todo o calor de minha alma fantástica e sonhadora... É linda como eu nunca idealizei nada... Debalde quero, neste último quadro que esboço, ver se posso fazer a minha Eva no Paraíso perdido, tão bela assim... Não posso, ninguém a assemelha, nem mesmo essa primeira mulher, a única feita pelas mãos de Deus!
E bela, qual anjo não visto na terra!
Seu rosto retrata de Deus o sublime.
Não posso pinta-la, não pinta-a ninguém...
E como a idolatro meu ser não exprime...
No brilho dos astros, em noite de trevas,
Eu vejo seus olhos de vivo fulgor...
Seus olhos que luzem, qual luzem as estrelas
E falam mais que elas as falas de amor.
No disco dourado da lua de Abril,
Eu vejo seu rosto que tanto seduz,
Com a tão formosa do tipo gentil
Das filhas morenas da terra da Cruz...
E amo-a copo fogo, com todo o delírio.
Que uma alma de poeta em si soe conter...
Só vivo por ela, não tenho outra ideia,
Sem ela para que quisera viver?...
FRANCISCO — E amando-a dessa maneira, e sendo como és amado, o que te faz estar tão triste? Anda, diz-me. Ainda não podemos conversar bem, pois cheguei ontem e não te vi senão quando fui para casa de Catherina; bem poucas palavras trocamos, esperando-te eu para passarmos lá um serão d’amizade, mas não aparecestes, e...
EDUARDO — É isso mesmo, meu amigo... É essa a causa de minha dor...
FRANCISCO — Porém, Sr. Eduardo, Sr. Eduardo, parece-me que quem se deve zangar e entristecer é Arabela, ela foi quem esperou seu noivo e ele...
EDUARDO — Ah, ela não me esperava, não! Ela bem sabe... Pobre menina! Que já vou lá, bem poucas vezes...
FRANCISCO — Então como é isso...
EDUARDO — Ela sabe que a tia Catherina, tão boa outrora para comigo, agora quase que me proíbe lá ir, dando-me indiretas sobre o ser artista, não ser amigo de padres e enfim tem-me afugentado, e de nosso casamento já se não trata...
FRANCISCO — Então que me contaram aqui estes rapazes é exato? E não suspeitas coisa alguma? O motivo de tal? Não tens feito nada à velha que motive-lhe esse mau humor?... fala, dize.
EDUARDO — O que poderia eu fazer, se só trato de agradar-lhe?
FRANCISCO — Dize-me uma coisa: esse frade que aqui demora-se, vai lá muito?...
EDUARDO — Que pergunta! Vai todos os dias...
FRANCISCO — E o que dizem, ele e a velha? Em que falam?
EDUARDO — Eu não posso dizer-te, porque depois que ele principiou à ir lá é que a tia Catherina começou a maltratar-me, e então...
FRANCISCO — Deveras! ... Espera... Ele dirige-se muito à Arabela?...
EDUARDO — Então supões?
FRANCISCO — Creio que descobrirei à origem de teus pesares.
EDUARDO — Achas...
FRANCISCO — Com os dados que já tenho, o problema é facílimo, reduz-se a: achar um número tal (a que chamaremos x) que eliminado daqui faça a tua felicidade... E creio ter já descoberto um bocadinho do véu ou capuz da incógnita... Que neste caso se poderá chamar incógnito...
EDUARDO — Então pensas como eu; suspeitas do frade.
FRANCISCO — That is the question... Justamente...
EDUARDO — Tens razão, esse homem não gosta de mim, e eu não sei por que detesto-o... Se fosse ele o miserável autor disso tudo, porém como poderemos saber alguma coisa, se...
FRANCISCO — Ora, quem tem boca vai a Roma, e agora então que não se trata de Roma subterrânea ou outra mais longe e esquisitas, porém sim de uma representada por um reverendíssimo frade. Está claro que chegaremos ao Tibre dessas maquinações!... Creio que aqui se avança o bicho a nosso encontro... Descansa em mim e retira-te que quero travar conhecimento com aquela bisca; quero achar o valor analítico d’uma parábola; vai-te que farei tudo por ti...
EDUARDO — Sim, conto contigo; até já.
Se tal for... De tanto arrojo.
Saberei punir o autor...
Que vergonha que tal faça
Um ministro do Senhor!...
P’ra vingar essa que adoro
O furor meu peito ufana!
Poderei rasgar a mascara
De quem tão vilmente engana...
FRANCISCO — Vai amigo, que por ti
Eu serei procurador
E verei se o nosso frade
É de tal embuste o autor.
Quando vejo estes marrecos
Sinto raiva imensa... Insana...
Já suspeito que aqui ande
Bandalheira Franciscana.
(Sai Eduardo.)
CENA 4º
Francisco e Benedito.
BENEDITO — A paz de Deus seja convosco! ...
FRANCISCO — Et cum spiritu tuo.
BENEDICTO — Amém
FRANCISCO — (à parte) É preciso fazê-lo desembuchar... (alto) *Vossa Reverendíssima passeia? Não sabe quanto folgo de o ver. Veio há muito tempo da cidade?...
BENEDITO — Há já algum tempo que por estes sertões passo os meus tristes dias...
FRANCISCO — Coitado!... Compreendo as privações porque, terá passado, e...
BENEDITO — O serviço do Senhor em primeiro lugar... Amém dico vobis qui ejus merecendum suam...
FRANCISCO — (à parte) Temos gíria e alabadas (alto) O santo escapulário que vos cobre é um salva guarda que vos livrará dos males deste mundo...
BENEDITO — Aonde está o homem está o perigo... Ah! Que a vossa idade, filho, é a das fraquezas e tentações... Fragilitas... fragilitatis...
FRANCISCO — Se eu seguisse os conselhos de meu pai, estaria agora nessa santa vida que respeito. Bela e prodigiosa vida!...
BENEDITO — Se inquitatis observaris Domine, Domine qui, sustinebit?... Em toda a parle há bons e maus. Pelo que vejo sois estudante: é uma coisa essa que quase todo o mundo tem sido, e...
FRANCISCO — E que bem poucos, o sabem ser; porém dizei-me o que achais do lugarejo?... É belo, não é verdade?...
BENEDITO - Todo o lugar é o mesmo neste mundo... A nossa pátria não é aqui, sed in regna caelorum...
FRANCISCO — Porém a vegetação...
BENEDITO — As árvores trazem a ideia do pecado... De uma árvore originou-se a nossa desgraça...
FRANCISCO — Mas em compensação as filhas de Eva aqui são excelentes. E o lugar onde as tenho visto mais belas... Se fosseis entendedor... Porém, perdoe-me, esquecia-me do que sois, e... mas se eu digo também isso é com toda a inocência, bem vedes que falo dessas meninas com um respeito santo, e vós mesmo...
BENEDITO — O Mestre disse: Sinite parvulos venire ad me...
FRANCISCO — Tinha razão. É bem boa coisa as meninas virem ter conosco... Quero dizer, os meninos...
BENEDITO — Filho, vejo que não pensais tão singelamente como afetais; desculpai-me, hoje é o dia de S. Jeronymo e as minhas penitencias e devoções me privam de por mais tempo demorar-me, assim...
FRANCISCO — Então ides rezar?!... Sois um excelente cristão, um digno filho de Deus...
BENEDITO — Quia tu es Deus fortitudo meam...
FRANCISCO - Se vós me ensinásseis os meios, os caminhos para ir ao céu... Como sem dúvida alguma ireis.
BENEDITO — As portas do céu estão abertas para todos... Deus dá-nos por passaporte, a oração e só constância é que exige, pois multi sunt vocatur... Pela oração se vai a tudo.
FRANCISCO — Assim seja, mas eu não quero interromper as vossas meditações; retiro-me... Ficai com Deus...
BENEDITO — Et nos inducas iu tentatione...
FRANCISCO — Amém... (à parte) É um jesuíta forrado de sacristão... Vamos eu acharei o volume deste cilindro de textos e orações... (sai)
CENA 5º
Benedito, só.
Que maçador eterno!... ouff... Já se me iam esgotando os textos... Apre!... Este é o tal estudante que é irmão de leite da cuja. Que mulher!... Que figura aquela! É um serafim!... Não é má vida esta de pedir... obtém-se mesmo muita coisa... (com hipocrisia) tudo para o nosso bem aventurado S. Antônio. Que boa dúvida? Quem neste mundo não dá a sua escorregadela? O mesmo nosso Santo Patrono, de quem se sabe o ter resistido a tantas tentações, não haveria alguma representada por dois lindos olhinhos não soubessem dançar a cachucha? Oh se haveria! Agora se ele resistiu... Dicaut Paduani. E quando se encontra uma tia devota das almas e de Santo Onofre? Abençoadas as tias porque são tias de suas sobrinhas!
Santa vida! Quem não te ama
Com tantos lados gostosos?!
O descanso, o amor, o vinho
São bocados saborosos!
Tem-se o sonho. Nos missais,
O vinho, nas sacristias,
E as meninas bonitas
Nas casas das velhas tias!
E verdade, porém, com dois milhões de capuchinhos, que aqui vem a bela e com o maldito sujeito na cala! Eu acabarei com estes namoricos. A pequena é tímida, mas a timidez vence-se com palavrões e latinórios;
Tem o frade também peito
Bate nele um corarão,
Todo o homem se assemelha,
Mil fraqueza, ao pai Adão.
Assim pois segue de amor
A lei, que saudável é.
E deixa o mundo grasnar.
Quase conturbas-me.
CENA 6º
Eduardo e Arabela.
EDUARDO — (Continuando uma conversa) É verdade, pensava já que não viesses.
ARABELA — Tendo-te prometido eu, Eduardo?
EDUARDO -— Sim, que queres! Eu receio tanto que o contágio da ingratidão não toque aquela que adoro; receio que sua tia te faça mudar de ideias a meu respeito!
ARABELA — Isso é muito mal feito, Eduardo; não se deve dizer essas coisas a quem se estima. Posso eu por ventura me esquecer de ti? Não sabes que eu te amo tanto que te não sei dizer?! Porventura não tenho necessidade de conversar contigo, de ver-te, visto que já não vais em nossa casa ?
EDUARDO — E que tu sabes quanto me custa e o que dera para estar sempre perto de ti.
ARABELLA — Sei, sim, e tu sabes quanto eu tenho chorado por esses maus modos de minha tia, ainda hoje...
EDUARDO — Ainda hoje! Diz, fala.
ARABELLA — Sim, devo te dizer tudo: ela me proibiu que falasse mais contigo.
EDUARDO — Que dizes?!
ARABELLA — Tenho pena, porém é preciso. Disse-me que um artista que lê Voltaire, que não é irmão de bentinhos, que não se confessa pela quaresma, é maçom, e como tal, uma cristã não se deve chegar a ele.
EDUARDO — Porém isso é um absurdo Arabela! Quem lhe terá feito pensar desse modo?!
ARABELA — Não sei; ela só fala e conversa com Frei Benedito; ainda ontem confessou-se com ele.
EDUARDO — Sempre este homem! porém tu não pensas desse modo não é assim?
ARABELA — O que tenho eu com o que dizem de ti, se eu te amo com toda a força de minha alma. Porém tu vês, Eduardo, que muito infelizes seremos se minha tia sempre se mostrar assim para contigo, porque dela é que depende tudo. Xico te estima, é verdade, porém minha tia quase que é quem dispõe de mim. Porque passaram-se rápidos os dias em que ela te estimava também! Os dias em que na nossa casinha, enquanto lhe contavas alguma passada lenda, que representavas com a tua palheta, eu ouvia-te as palavras, bebendo o amor que de teu peito elas traziam! Que dias belos! E tudo passou-se!
EDUARDO — E tudo passou-se! Isso é horrendo! Sermos jovens, sentirmos o amor mover-se em turbilhão nas nossas almas e lamentarmos um passado rápido, com a vista alongada para um extenso futuro de sofrimento! Por ventura deveremos no prologo da vida dizer um eterno adeus a felicidade?!
ARABELA — Se ainda tu fosses amigo de Frei Benedito, talvez que ele, usando da amizade que tem com minha tia, lhe fizesse ver que és um homem honrado, como ela já te supôs.
EDUARDO — Porém esse frade é um homem, que eu abomino...
ARABELA — Sim! Tu pareces não gostar dele, porém Deus nos perdoará se isto é um pecado, e até eu te peço, Eduardo, que venças a repugnância que por ele sentes, e confesses-te; minha tia conhecerá que não tem razão no que diz, e tu poderás também ter nele um advogado amigo junto dela.
EDUARDO — Que dizes, Arabela! Porventura hei de dobrar os joelhos perante um homem que me horroriza; perante um homem que é uma profanação o pensar-se que ele poderá alguma vez representar o divino Mestre? Não, tu não sabes o que dizes.
ARABELA — Oh, eu também sinto-me interiormente impelida à fugir de suas vistas, à não ouvi-lo e pouco falo-lhe, porém tudo isso tenho conhecido que são sugestões do inferno, que me quer privar de ouvir as palavras do Senhor. Estou disposta a ouvi-lo com mais benignidade.
EDUARDO — Nada, não, senhora! proibo-lhe essas benignidade; tape os ouvidos quando ele falar, se me ama proíbo-lhe que o ouça.
ARABELA — Eis aqui o que eu te peço que deixes, Eduardo! Crê-me são más artes do demônio que te fazem não quereres ouvir um ministro de Deus. Minha tia bem feliz ficaria se tu te confessasses, e...
EDUARDO — Porém isso é uma asneira que ela não tinha outrora! Que hei de ir contar a esse homem? Que te amo e te adoro? Mas isso direi a ti só; todos os meus pecados, ouve: confessar-me-ei contigo, pois ninguém melhor do que um anjo poderá representar o Salvador. Escuta:
Por tua causa, gentil Arabela,
Peço tanto, que julgo que Deus,
Excluiu-me de seus escolhidos
E privou-me a entrada nos céus.
Sou soberbo, ó virgem inocente,
De ser eu de teu peito o senhor,
Sou soberbo, e a soberba é pecado,
Mas se peco só é por amor.
Sou avaro de minhas palavras
Quando as digo a outras donzelas,
Ser avaro é pecado também
Mas se peco, não peco por elas.
Quando vejo teus lábios de nácar
Estou faminto, sedento de dar
Em teus lábios mil beijos de fogo,
E ter gula também é pecar.
Mas tu sendo um anjo, qual és,
E sabendo que peco por ti,
Muito embora me negues os céus
Não me negues amares-me aqui.
ARABELA — Tudo isso é muito belo, porém, ai de nós! Não é assim que alcançaremos a felicidade, e ou penso que só quem por nós poderia fazer alguma coisa, seria Frei Benedito, pois minha tia...
EDUARDO — Eu dispenso, que ele me faça alguma coisa... Olha, dize-me o que te tem ele dito? quantas vezes tens falado com ele?
ARABELA — Ora! Tem sido tão poucas que te poderei imediatamente dizer; São tão pequenas as conversas que temos...
EDUARDO — Fala, fala, a primeira vez que com ele falaste, o que te disse? aonde estavas?
ARABELA — A primeira vez?! A primeira vez foi dois dias depois de ele lá ir; eu estava no jardim, era à noitinha.
EDUARDO — Má hora!!!
ARABELA — Lia Paulo e Virginia; ele aproximou-se, perguntou-me se lia a bíblia; respondi-lhe que não, e sim que era um romance. «Um romance! Mocidade inexperta; quanto vos lastimo».
EDUARDO — Até aqui não há muita bandalheira, continua...
ARABELA — Eu fiz-lhe ver que Paulo e Virginia era uma lenda singela e inocente, e ele, inflamado em santo ardor prosseguiu: «Amores! por toda a parte amores! E fitais os vossos lindos olhos nessas páginas namoradas? Oh!»
EDUARDO — Até ele disse, lindos olhos! Continua...
ARABELA — Eu envergonhei-me, pensando, ter obrado mal, voltei o rosto, ele tomou-me as mãos, e com o semblante compassivo disse: Não chores, filha, que felizes os que se entristecem, porque eles serão consolados.
EDUARDO — É isso, é o estribilho! Então, Arabela, ele tomou-te as mãos e tu...
ARABELA - EU fiquei bastante incomodada e direi mesmo, desgostei-me da presença desse homem; ia retirar-me, quando ele não consentiu que eu fosse sem beijar-lhe...
EDUARDO — Sem beijar-lhe? Arabela, como é lá isso?!
ARABELA — Sem beijar-lhe a mão! Enfim retirei-me.
EDUARDO — Foi a tempo, porque um momento mais e ele...
ARABELA — A outra vez que falou comigo, entreteve-se em contar a história de Susana e a de José em casa do Pulifar.
EDUARDO — E um miserável que eu hei de desmascarar. Arabela, farás tudo o que eu te ordenar, não é assim?
ARABELA — Sem dúvida, meu amigo!
EDUARDO — Proíbo-te de dizeres uma palavra só a esse homem e de ouvires uma silaba dele, cumprirás isto?
ARABELA — Porém...
EDUARDO — Juras? Dize depressa; vai nisso a minha ventura.
ARABELA — Sendo assim, meu amigo juro-te; porém eu não suspeito o que premeditas; peço-te que reflitas que um sacerdote é iluminado pelo Espirito Santo, que não pode obrar senão com sabedoria e virtude.
EDUARDO — Não te peço senão o que já disse; farás não é assim?
ARABELA — Exiges? Cumprirei.
EDUARDO — E eu falarei com Xico e talvez que ainda sejamos felizes. O céu nos ajudará!
EDUARDO — Hei de salvar-te das garras regras
De tal infame.
Trema o maldito! Que em estade
Meu peito brame
A macera impura que lhe em obria
Tremula tomba.
De sem aspecto te hei de salvar,
Divida pomba.
ARABELA — Por ti meu peito se dobra a tudo.
Meu caro amigo.
Eu te obedeço sem murmurar,
Penso contigo.
Tu és tão nobre, qual foi por certo
Meu nobre pai,
Onde o dirige, meu peito amante
Contente vai.
JUNTOS
Amor não erra
No seu pensar,
É seu olhar
Firme e seguro.
Não lhe embaraça
Os tramas negros,
Ele devassa
Véu do futuro.
Nele ponhamos
Nossa esperança,
Mar de bonança
O céu nos dá,
E nossa barca
De felicidade,
Sem tempestade
Fundeará.
(SAI EDUARDO)
CENA 7º
Arabela, só.
O que pretenderá ele fazer? Pobre Eduardo, em tudo vê a origem de nossos pesares! Na verdade que eu não posso suspeitar o motivo que obriga minha tia a fazer o que tem feito! Mas, com certeza, não posso, como Eduardo, enxergar em Frei Benedito algum indicio de ser ele o autor de tal! Não! Não pode ser! Um frade! É uma asneira até supor coisa alguma! Mas quem se aprouve em tão fortemente nos fazer sofrer? Já contava com a felicidade, e agora? O passado chegou a ser tão belo que quase pensava o futuro infalível e seguro! No entanto o futuro eu vejo negrejar na minha imaginação! Ai, o passado enganou-me barbaramente.
Pobre arbusto despido de folhas,
Pobre arbusto de rico passado,
Tu retratas a mim, e teus males
Muito ao longe retratão meu fado.
Também eu tive dias de flores,
Dias belos, quase teus, mesmo assim,
Esperei o futuro, insensata!
Ele veio, mas como? Ai de mim.
O passado é um tormento
Que o contento nos afasta,
E uma fera lembrança
Que nos cansa, que nos mata.
É qual espelho que ostenta,
Apresenta imagem bela,
Essa imagem só nós vemos
Não podemos tocar nela.
CENA 8º
Arabela e Benedito.
BENEDITO — (à parte) Ei-la aqui, vamos, aproximemo-nos (alto) Minha filha, por aqui?!
ARARELA — Ah! Vossa Reverendíssima!
BENEDITO — Assusta-se? De quê?
ARABELA — Não! Não me assustei; eu estava pensando.
BENEDITO — Pensáveis! A meditação é o colóquio com a alma, com a consciência, vejamos, o que vos dizia a vossa alma.
ARABELA — Eram coisas tão triviais, tão sem valor que...
BENEDITO — E ocupais os vossos pensamentos com trivialidades? Não sabeis empregar o vosso tempo!!! Na verdade vos digo que a vida é curta, vida brevis est e se não empregarmo-la bem que responderemos à Deus?
ARABELA — Porém...
BENEDITO — Não seria melhor que empregásseis as horas em rezar uma estação? Filha, vós não sabeis de quantos pecados tendes de que vos arrepender!
ARABELA — Eu, porém, senhor...
BENEDITO - Entre todos avultam esse amor por um pintor! Sacrilégio! sacrilégio, sabeis o que é esse homem ? sabeis o que ele faz?!
ARABELA — Não senhor, eu ignoro, mas acho que....
BENEDITO — Ouvi, ainda a pouco passava por sua casa e sabeis o que lá vi?!
ARABELA — Não, fale, fale depressa,
BENEDITO – Um quadro! Oh profanação! A Eva, a nossa primeira mãe nua! Olhos que tal vistes porque não ficastes cegos!! Nua! Uma mulher! Horror! Irreligião!
ARABELA — Mas...
BENEDITO — Sabeis a que merece um homem desses? Sabeis qual é o seu castigo, e o daqueles que se chegarem a ele? Bem tenho eu feito para de tal vos livrar contando tudo o que dele sei a vossa tia, para que ela...
ARABELA — Então oreis vós que...
BENEDITO — Sim, sou que vos salvo, sou eu quem trato de vossa vida futura, quem vos livra do que ele sem dúvida sofrera! Não sabeis, não firmais uma ideia do que padece nos infernos um homem destes.
Ardente grelha, caldeira imensa
D’azeite cheia o espera lá,
Será torrado em férreo espeto
Por tal pecado, ação tão má.
Atiça o fogo, Voltaire ímpio
Em torno dançam feias megeras;
Torturas grandes magoam aqueles
Que amarão Idália, Patos, Cytheras.
Pálidos medos,
Negros pavores,
Medonhas cores
Bordão o lugar,
Serpentes, chamas,
Horror, tormentos,
Nos aposentos
Se vem morar.
Orquestra horrível
De maldições
Por orações
Se veem termentes,
Se escuta entorno
De dor sinais,
Soluços, ais.
ARABELA — Oh! Senhor! Isso é horrível!
BENEDITO — Sim, é horrível e eu venho salvar-vos; venho em nome do Senhor livrar-vos destes tormentos! Deveis me abençoar por tal, benedictus qui venit nomine Domine!
ARABELA — Mas, que deverei eu fazer? falai, falai. (Francisco aparece no fundo.)
BENEDITO — Filha ouvi, esse amor que tendes por tal homem é uma tentação do demônio: Eu possuo um pouco dos cabelos de S. Pancrácio, que livra as meninas de mau feitiço, e só isso vos poderá valer; assim pois eu vos benzerei e tocareis na sagrada relíquia; deveis vir ter comigo.
ARABELA — Porém...
BENEDITO — Oh! Quando não, não sabeis o que vos sucederá! Está dito, vireis.
ARABELA — E...
BENEDITO — Ali vos esperarei (indica um dos lados) às 10 horas sem falta, junto ao bosque.
ARABELA — Mas às 10 horas, é noite fechada, e eu sozinha...
BENEDITO — Que receias? Porventura alguém vos poderá lazer mal? vinde, vinde minha amada... filha, eu vos esperarei, quero vos dar a felicidade.
ARABELA — Mas essa hora.
BENEDITO — É a hora do mistério, sim, porém é também a da meditação; é a hora das vigílias do amor, porém é também a das fervorosas orações. Vos tremeis de susto por tão pouco? Porém o que guardais para sentir quando o Eterno vos interrogar por esse amor e relações com semelhante pintor?!
ARABELA — É que...
BENEDITO —- Quando chamejante de cólera ele vos virar as costas dizendo: « aparta-te de mim, maldita! Ao fogo eterno aparelhado por Satanás seus satélites; vai, vai mal-aventurada! Porque chamei-te e não me escutaste, estive faminto e sedento da salvação de tua alma e não me deste atenção.» E a vosso lado vereis radiante de glória aquelas vossas companheiras que me atenderão e que serão galardoadas com o sorriso do Eterno lhes dizendo: «vinde, bem-ditas de meu pai! Possui a herança do reino da glória que vos está aparelhada desde a fundação dos séculos». Quereis trocar o paraíso pelo inferno? Deus por Satanás? Os bens celestes pelos sofrimentos infindáveis?
ARABELA — Não, não...
BENEDITO — (à parte) Não há dúvida que vem. (alto) Eu vou para minha casa orar por vós e virei esperar-vos; se não vierdes, só me restará chorar pelas vossas desgraças, pelos bens que repelistes; mas se vierdes, serei feliz, muito feliz... Vendo-vos repleta de satisfação pelos gozos divinos e que vos trará a vossa salutar conversão.
BENEDITO:
A linda Arabela
Caiu na esparrela,
Terás uma vela
Ah! Meu Santo Antônio!
Tu és milagroso
Dás vida, dás gozo
A quem for jeitoso
Qual foi o demônio.
ARABELA:
Meu Deus, que farei
Eu bem obrei
Fugindo da lei
Que me felicita?
Meu peito esclarece
Que o medo enegrece;
Atende esta prece,
Que mando-te aflita!
(BENEDITO SAI.)
CENA 9º
Arabela e Francisco.
FRANCISCO — (entrandi) Ora até que afinal acertei, sim é isso mesmo. Arabela, tudo ouvi, e...
ARABELA — E então, vês o que diz Frei Benedito, ele só me poderá salvar. Mas por ventura vacilo eu em sofrer tudo o que ele pintou-me por amor de Eduardo? E demais hei de vir de noite aqui; eu que já tardei tanto em ir para casa, pois são mais de 8 horas!
FRANCISCO — Pelo contrário virás.
ARABELLA — Como?
FRANCISCO — Sim há de vir falar com o frade por que disso depende a tua felicidade, a de Eduardo, o casamento de vocês enfim.
ARABELA — Visto isso me aconselhas.
FRANCISCO — Que estejas aqui a hora marcada para falar com Frei Benedito. Eu bem supunha isto mesmo do santo homem; eu bem vi que era certo o dizerem que: quem tem boca vai à Roma — tanto procurei que até acertei.
ARABELA — Pois achas.
FRANCISCO - Acho: que achei o valor de x, e que tudo isto está agora claro e conhecido!!! Vamos, vai para casa, e trata de te escamares às 10 horas sem falta, ande depressa.
ARABELA — Vê o que fazes, Xico.
FRANCISCO — Ora! Temos arranjado tudo.
CENA 10
Francisco, só
Bravo! Bravo! Que me venham agora dizer o que são os santos homens! E o zelo pelo amor de Deus! E as penas do inferno tão ao vivo! Os gozos do paraíso que só ele sabe explicar! É muito tratante este maganão, porém ele pagará juros e principal. Aqui vem Eduardo, agora tratemos de pôr tudo em pratos limpos; vamos rasgar o véu de hipocrisia com que se tinha encoberto este bom frade; vamos fazê-lo sair do cubículo religioso onde julgam-no viver ou, por outra, ponhamo-lo para fora do radical.
CENA 11
Francisco e Eduardo.
EDUARDO — Então, Francisco, o que estiveste falando com a tia Catharina?
FRANCISCO — Falava sobre ti, interrogava o motivo de seu proceder, e ela...
EDUARDO — E o que te dizia ela?!
FRANCISCO — Não mostrava ter contra te coisa alguma particular, pela contrario só falava com saudades dos outros dias, rematando sempre com o estribilho fradesco: é verdade que não sabia ler ele Voltaire.
EDUARDO — Supões sempre que o frade é...
FRANCISCO — Suponho? Meu caro, agora tenho certeza disso, porém em compensação estou vendo tudo acabar bem.
EDUARDO — Como? Certeza!?
FRANCISCO — Acabo de pilhar frei Benedito falando à sós com Arabela.
EDUARDO — Oh!
FRANCISCO — Convidava-a para d’aqui a pouco esperá-lo aqui afim de faltarem à sós.
EDUARDO — E ela, Arabela aceitou, não é assim...
FRANCISCO — Senhor! Que juízo formais dessa inocente menina?
EDUARDO — Perdoa-me, meu amigo, porém o que queres? Estou ansioso, aflito, fale depressa.
FRANCISCO — Arabela não respondeu-lhe, porém eu esperei que o frade se fosse, e disse-lhe que aceitasse o convite e viesse.
EDUARDO — Oh! Eu matarei esse homem, hei de arrancar-lhe o coração, hei de...
FRANCISCO — Tá...tá isso é muito trágico! Não farás nada disso, e esperarás.
EDUARDO — Porém o que esperas tu?!
FRANCISCO — Eu cá tenho minhas ideias; tens por aqui algumas bombas, foguetes, etc., etc.
EDUARDO — Estás zombando?! No entanto estamos tratando de uma coisa importantíssima.
FRANCISCO — Ora! Responde ao que te pergunto, tens alguns foguetes?
EDUARDO — Não, mas...
FRANCISCO — É para o meu plano, para chegarmos ao alvo, e, com a breca! Se alcançássemos algumas bombas faríamos uma coisa em regra.
EDUARDO — Espera, se é coisa muito necessária poderemos arranjar com o festeiro da Senhora da Conceição alguns foguetes, que ele tem para a festa de domingo.
FRANCISCO — Famoso! Então tudo está arranjado; estamos livres.
EDUARDO — Mas eu não compreendo nada, não sei mesmo.
FRANCISCO — Não precisa que compreendas; basta que saibas ir tudo muito bem. Talvez percebas a meiada ouvindo o que vou dizer a estes rapazes que aqui vêm.
CENA 12º
Os mesmos e Coro
CORO
Já o sono convida os viventes
A provarem da, lida o descanso,
Fatigados os membros vacilam,
Corre o sangue pacato e de manso.
Eia avante, que um doce repouso
É na vida suave e preciso,
Já as aves noturnas decantam
E nos dão de Morfeo o aviso.
1º DO CORO — Olá, Xico, Eduardo, então como passarão.
FRANCISCO — Bem; rapazes, cheguem cá, tenho coisa de subida gravidade a lhes comunicar.
TODOS — Sobre o quê?!
FRANCISCO — O caipora que vos preocupa, vai ser desencovado.
TODOS — Oh! Oh!
FRANCISCO — Por observações matemáticas que acabo de fazer, certifiquei-me de que aparecerá hoje aqui.
TODOS — Santo Deus!!!
FRANCISCO — Deixemo-nos dessas cenas de dramas, cheios ahs e ohs e vamos ao que serve; O caipora aparecerá aqui logo mais, é infalível. Assim como o multiplicador está para a unidade, assim o produto deve estar para o multiplicando, e como as linhas paralelas só se encontrão no infinito, aplicado o teorema de Taylor, e deduzindo a integral procurada, segue-se que, passando o caipora pelo radical da serra em Itaboraí há um mês, na proporção crescente e, aplicando a fórmula para achar-se a soma dos termos de uma progressão, ele estará hoje às dez horas aqui; logo nós devemos nos preparar para recebe-lo como homens por isso que a soma de dois lados de um triângulo é sempre maior do que o terceiro.
MUITOS DO CORO — Isto é que é falar!!!
OUTRO DO CORO — Parece um livro, eu cá penso tal e qual.
EDUARDO — (baixo a Francisco) Que diabo de disparates estás dizendo! Não vês que temos coisas de importantes a tratar.
FRANCISCO — (à parte) Cala-te. (alto) Assim já vem que ele estará aqui logo mais.
EM DO CORO — Santa Barbara!
FRANCISCO — Continuam as exclamações! Mão!!! Ora ouçam todos o meu conselho! Vá cada um munir-se de uma boa peia, e estejam aqui às 10 horas, ali escondidos (indica o lugar) Assim que o maldito chegar se fará proceder por uns estouros, como bombas infernais, que romperão o silêncio da noite.
TODOS – Oh!!!
FRANCISCO — Cena de terror, espanto geral! Com os diabos, me não deixam acabar, ora...
1º DO CORO — Porém que poderemos nós fazer com as nossas peias contra um espirito?
FRANCISCO — Aqui é que está o engano: o caipora que tem aparecido, ou, por outra, que tem se fingido, é um soldado desertor que aproveita do terror que inspira o fantástico para roubar os lavradores; é um homem carregado de crimes, que seduz as mulheres casadas.
TODOS — Oh! Oh!
FRANCISCO — Rouba as meninas solteiras, desrespeita as viúvas; é um facínora, um vil, que tem praticado os mais negros crimes.
TODOS — Oh! Oh!
FRANCISCO — Talvez que assim como em Itaboraí queira ele aqui esta noite violentar uma pobre donzela que entre vós se ache.
TODOS — Morra, morra o patife!
FRANCISCO — Bom! Começam agora a eletrizar-se. Cessarão as exclamações; portanto, não falando no benefício que fazeis a vós mesmos livrando-vos dessa praga, deveis notar que a polícia estimará a agarração d’um tratante, que ela procura. Assim pois, eu estarei de alcateia, dar-vos-ei o sinal e quando for hora vós aparecereis caindo sobre ele. Dai-lhe, dai-lhe a valer; talvez algum de vós conheça-lhe a falar pois pode ser que outrora; quando soldado, ele por aqui passasse, porém à noite não vereis nada, e não tereis que vos envergonhar se atiçardes a peia n’um conhecido tratante; fogo, fogo de rijo.
TODOS — Bravo, bravo!
FRANCISCO — Mutação, entusiasmo prolongado. Está bem, não esqueçam: às 10 horas todos aqui, depois aparecerão as bombas, eu darei o sinal, e...
TODOS — E preparar e desandar...
FRANCISCO - Sim, deixar-me-eis depois só com o patife para eu o interrogar e envia-lo para a cidade, aproveitando-vos da escuridão para dardes sem serdes vistos,
EDUARDO ( À parte) Começo à compreender.
FRANCISCO — Não se esqueçam que é um malvado que vos vem seduzir as filhas; Vão ver as peias, e até às 10 horas.
TODOS — Até às 10 horas.
FRANCISCO.
A mecha está acesa, o tiro não tarda,
Faremos de melro um bom fricassé
Só quero ensina- ló por ter caridade,
E tenho esperança, que o faça com fé;
EDUARDO.
Agora compreendo, amigo, teu plano,
A ti meu amor quão grato não é!
Da negra maldade as machinhas ímpias
Já todas vacilam e tremem até.
CORO.
O ser-se doutor é coisa espantosa!
Só vendo, se crê, qual fez S. Thomé!
Pois quem poderia fazer-nos valentes
Com um caipora da ordem que este é!
CENA 13º
A cena fica algum tempo vazia, a música toca compassadamente um andante qual, que servirá de motivo para a cavatina do frade, que entra depois. Frei Benedito vem cauteloso, olhando para todos os lados, e depois chega ao meio da cena alegre e esfregando as mãos com grosseira satisfação. A noite tem gradualmente descido durante o correr o ato e são quase 10 horas.
Benedito, só.
Bravo! Bravo! Carambolei, e jogo a preta. Não há nada como o Jeito e a inocência, a ovelha vem confiada para a armadilha; que encantadora menina! Vem, vem, hissope de meus amores, turibulo de minhas adorações aqui tens o meu breviário, a minha capa, a minha coroa enfim tudo, tudo a teus pés. A estas horas todos dormem, e só vela o amor... do próximo. Sublime preceito! in- compreensível parábola e que só tem sido decifrada quando se substituí próximo pela próxima!
Amor é um preceito sacrossanto,
É lei do Criador!.
E de amor eu fizera um santo ofício,
Seria Inquisidor!
É verdade que amor só tem lugar
Em poucos, breves dias;
Não se deve chorar nem ser babão,
Um novo Jeremias.
Ela não deve tardar; na hora apropinqua-se. Nunca senti o coração bater-me tão apressado, dir-se-ia que estava ameaçado de jejum, de alguma semana santa! Porém não me engano; ei-la que vem, estou quase escorregando!
Ah, coragem; nunca vi-me
Vacilar desta maneira,
Pois de vinho e amor já ando
Costumado às bebedeiras;
Vem, ô anjo idolatrado,
Vem, que o mais é tudo asneira,
Eu serei frade de amores
Tu serás de amor a freira.
CENA 14º
O mesmo, e Arabela que entra.
ARABELA — (à parte) Aonde se meteria Xico, estou arrependida de ter vindo. (reparando em Benedito) Ah! Já está aqui.
BENEDITO — Esperava-a minha filha; a esperança é uma virtude.
ARABELA — Vossa Reverendíssima me afiançou que era preciso que eu viesse, portanto...
BENEDITO — Sim, muito errada tendes andado; é preciso que vos arrependais desse infernal amor, que assim soubestes esperdiçar; vinde a voz do Senhor se fará ouvir por mim, e vossas culpas serão perdoadas; ficareis mais branca do que a neve et super uivem dealbabor.
ARABELA — Mas, não sei por que me amedrontais assim; tendes-me assustado por tal forma que receio...tremo.
BENEDITO — Tremeis! Então receias alguma coisa? (Tomando-lhe as mãos) descansai, Arabela, não vos quero mal.
ARABELLA — (retirando as mãos) Sim! falais-me de Eduardo de uma maneira que me assusta. Por ventura será crime o amar?
BENEDITO — Oh! Não, pelo contrário...
ARABELA — Porém que mais poderá Deus prescrever do que um amor puro, que vaga perdido por um mundo de castos afetos? Não sabeis quanto eu o amo, quão sobre humano ó esse amor indizível, que Deus acendeu, que nada pode apagar, que me mata, me enlouquece e embriaga.
BENEDITO — (à parte) Que sentimentalismo! (alto) É um amor que...
ARABELA - É um sentir que me escalda a vida e que vós quereis apagar com o gelado sopro da destruição... Oh, por piedade não me digas que Deus repele o nosso afeto; não me tornes desgraçada; abandonai o vosso rigor e sede compassivo.
BENEDITO — É o que desejo justamente que vós sejais. Rigor, eu?! Eu que tanto vos estimo, eu que não quero senão a vossa Felicidade...
BENEDITO — É por vos que eu sofro e peno
Mil trabalhos e cuidados.
ARABELA — Protegei nossos afetos
Não torneis-nos desgraçados.
Se amor vós conhecesses!!!
BENEDITO - Vou agora compreendendo!
ARABELA — Se sentisses seus efeitos!
BENEDITO - Sinto...
ARABELA —Como?
BENEDITO — Em vós os vendo.
Sois de amor imagem viva,
Bem mostrais que o conheceis...
ARABELA — Sois feliz o desprezando.
BENEDITO — Não há tal!
ARABELA —Tem duras leis!
(Neste momento ouve-se algumas bombas e os dois se assustam.)
JUNTOS — Ah!
BENEDITO — (com afeto) Arabela!!! Arabela! Se tu soubesses, se...
(Durante esse tempo Francisco e Eduardo aparecem no fundo e ali se conservam sem serem vistos.)
ARABELA — Dizei-me que me iludes quando reprováveis o meu amor, quando parecíeis disposto a me martirizar.
BENEDITO — Martirizar!... Arabela, não sabeis o que dizeis, não compreendes o que eu sinto, o que em meu coração se passa. Bem diz o senhor: passei entre os meus e eles me alimentaram, tive fome e não me alimentaram, tive sede e não me deram de beber.
ARABELA – Então ides dizer a minha tia que aprovais o meu casamento com Eduardo? Ide, ide depressa, porque eu quero retirar-me, tenho receio.
BENEDITO – De quê? A noite é a amiga das confidências, e as confidências são tão doces...
FRANCISCO — (No fundo e falando com os que estão nos bastidores com ele,) Ouvem?
VOZES — (Baixas e à parte) Sim, sim, é uma fala que já ouvimos, mas com o escuro não sabemos quem seja.
EDUARDO — (o mesmo) Vejam... É uma sedução, o maldito é um sedutor.
FRANCISCO — (à parte) Um miserável (Falando com os que estão nos bastidores) estejam prontos ao meu primeiro sinal.
TODOS —(O mesmo) Sim, sim, desanquemo-lo.
ARABELA — Parece-me ouvir rumor; eu parto, já é tarde, vou para casa.
BENEDITO — Esperai, quereis deixar-me, sem eu dizer-vos o que sinto! Arabela, não atinastes com a razão de meu desespero pelo vosso casamento? Não advinhas-te que o peito que o burel encobria sentia uma daquelas prodigiosas fatalidades que o obrigava a torturar-se !!!
ARABELA — (com susto) Ah !!!
BENEDITO — Não me repilas, estou a teus pés! Sou um pobre frade, não posso fazer senão um ato evangélico amando-te. Vem, terás quantas riquezas sonhares, terás...
ARABELA — Deixai-me, deixai-me.
BENEDITO — Ingrata! Não sabes que eu te amo, que vivo por ti, e que jurei que serias minha!
ARABELA — (correndo a cena) Socorro! Socorro!
BENEDITO — (correndo atrás dela) Não me escaparás, não, silêncio, (corre atrás dela).
ARABELA — Acudam, acudam-me! (corre para o outro lado).
FRANCISCO — (para dentro) Avança, e solta a peia.
TODOS - Fogo, fogo! (então em cena).
EDUARDO – (A Arabela, ao encontro da qual sai, pelo lado oposto) Sai, por aqui e até já, minha querida. (aos camponeses) Vamos, amigos, pancada de cego, a valor!
FRANCISCO — Atiça! Atiça!
BENEDITO — (assustado e correndo da cena) Que é isto!!! Que é isto?!
CENA 15º
Eduardo, Xico, Benedito e coros
(Durante esta cena e quanto o coro canta, todos correm esbordoando Frei Benedeto, que foge por todos os lados sem nunca sair da cena e levando sempre dos camponeses, guiados por Francisco e Eduardo; a escuridão é completa.)
Coro.
Fogo, fogo no vil mariola
Que a honra das virgens devora...
Leve pano de amostra, bem forte
P’ra não vires fingir-te caipora...
Sejas tu muito embora quem fores,
Não podemos fazer-te por menos...
Leva, leva, meu ouro, estes dons
Que disfrutam os sectários de Vênus!
BENEDITO
Ai... ai... ai... que esta é tesa de mais...
Ui... quebraram-me duas costelas...
Compaixão, meus senhores, atendam,
Quem eu sou... aí, que foi nas canelas!
Se pudesse, meu Deus, pôr-me ao fresco...
Ah! Canalha... Burgueses... Relê...
Ai... não venham com armas de fogo
Céus! Que surra... ai... Libera me.
FRANCISCO e EDUARDO.
Que gostosa entrevista de amores.
Empatada com peias e tacas!
Pobre amante! Que muito amassado,
Sem vitória levantas barracas!
Mas p'ra que tu não vãs assim
Pelo vento e sereno da noite;
Toma, toma um lençol de vergamos
E um ponche de quentes açoutes!...
FRANCISCO — Basta; deixem-me só com ele, quero interroga-lo antes de o fazer conduzir à cidade.
1º DO CORO — Porém havemos de ir sem ver a cara de quem tanto nos incomodou as mãos.
EDUARDO - Verão de dia; a noite agora e por demais escura.
2º CORO — Não importa, demos-lhe uma sova de mestre.
BENEDICTO — (à parte) Tratantes! Malditos!
FRANCISCO — Ide-vos... Até amanhã.
TODOS — Vamos... Vamos.
CENA 16º
Benedito, Francisco e Eduardo.
BENEDITO — Aí, cambada... Estou com os quartos em petição de miséria! Tratantes! Velhacos!
FRANCISCO — Agora nós, cavalheiro da capa preta, (puxa-o para si por um braço).
BENEDITO -— Diabo! Diabo! Ainda mais!
EDUARDO — Mais um amigo que não fora convidado!!! (puxa-o pelo outro braço).
BENEDITO — Outro! Ora! O que então querem de mim? Por favor, senhores, não me fação mais dano! Reparem que não tenho no corpo uma só polegada de carne que valha dois vinténs; tudo está amassado... ai...ai... ai...
FRANCISCO — Então, meu fradinho da mão furada! Não sabe que agora o posso reduzir a zero, chamando estes camponeses que o respeitam e mostrando-o como o sedutor de ainda a pouco?
BENEDITO — Por piedade... Por compaixão não faça isso, meu amigo... As bênçãos do Senhor...
EDUARDO — Não me venha com essas cantilenas que aqui não topa! Então o dia de S, Jerônimo as suas orações, são maravilhosas... Hein?
BENEDITO —Tenha pena de mim... se o padre guardião souber! Meu Deus! Estou perdido!...Senhor, pelo amor de Deus...
EDUARDO — Então, meu empatador de casamentos, não gosto muito de ver as Evas despidas, antes do pecado, creio que as prefere depois dele...
BENEDITO - Minha culpa... minha máxima culpa...Confesso que pequei... Precavi... Porém consintam que me retire, que eu tratarei de vossa felicidade, tudo se arranjará ainda...
FRANCISCO — E o que ides agora fazer... Toda a vila está acordada, a tia Catharina o estará também, ides escrever-lhe um bilhete dizendo serdes um tratante, um miserável que quisestes empatar o casamento de Eduardo, mas que agora arrependido pedi-lhe que conclua essa união, porque sentes remorsos de tê-la barulhado, que sois um...
BENEDITO — Hei de dizer tudo isso? Oh, senhor, misericórdia... Misericórdia...
EDUARDO — Não, Xico, o teu projeto não é bom; dá mais força ele lá ir e de viva voz dizer que enquanto a vila estava em confusão, tinha ele uma visão, pela qual via a necessidade de efetuar- se a nossa união; fará então a minha apologia. Para a velha isso tem mais valor, entra o maravilhoso e...
FRANCISCO — Porém, tu te fias em que ele tal faça?... Em se pilhando solo?
EDUARDO - Descansa que eu irei com ele, e ficarei à espreita... Se acaso não fizer o que eu quero, não temos toda essa gente, que, pelas marcas que estão aqui no Reverendíssimo, conhecerão nele o maganão de inda a pouco, o que apoiado pelo que eu farei dizer Arabela, e com a prova agravante desse cordão de S. Francisco, que me ficou no ardor da peleja, fará a velha conhece-lo bem? Então...
BENEDITO — Descansai, eu direi o que quiserem; afianço-vos que ficarão emitente de mim.
FRANCISCO — Ora até que afinal cheguei a Roma.
EDUARDO — Conheceste-a, porém não te demorarás estudando-a por muito tempo, porque o senhor, que aqui a representa, partirá de madrugada.
BENEDITO — Como?!
EDUARDO — É a minha segunda condição do protocolo — sine qua non... O Sr. partirá ao amanhecer para a cidade...Quero-o longe, muito longe daqui.
BENEDITO — (com hipocrisia) Seja tudo por caridade.
EDUARDO.
Vamos, vamos que nesta hora
Findem as ânsias, sustos meus,
Vem firmar minha ventura,
Falso ministro de Deus.
FRANCISCO.
Desvendou-se a tranquibernia
Dos manejos aos boléus,
Quem tem boca vai a Roma,
Seja mourisco ou judeu.
BENEDITO.
Desasado que ora fui,
Eis aqui castigos meus!
É bem feito por ser tolo,
Seja pelo amor de Deus.
CENA 47º
Francisco, só
E que me dizem ás lambadas?! Foi um chuvisco que lhe havia de molhar a pele por uma forma um pouco escaldante. Eis aqui um desses homens que representam o Sagrado Salvador!!! Eis aqui um semeador das sublimes palavras do Evangelho! Ah felizmente não são eles todos assim! Felizmente par de um Fariseu como estes se acham os bons e santos patriarcas que fazem a completa abnegação de si mesmo, pela felicidade de nós todos! Bem ditos esses porque vieram ao mundo para uma santa missão, que debalde um impostor como este pretende, manchando-se, fazer chegar à todo o odioso que é só seu. Não, o crime e a infâmia só a quem o pratica e não àqueles que são purificados com uma unção sagrada! Aqui vêm esses rapazes, na verdade que nunca aqui ficou se acordado até tão tarde.
CENA 18º
Francisco e Coro.
ALGUNS DO CORO — Que é dele, Xico? Aonde meteu-se?
FRANCISCO — O maganão de ainda a pouco?
DO CORO — Querem ver que o deixastes fazer ablativo de viagem.
FRANCISCO — Eduardo acaba de levá-lo a casa do subdelegado para que o tenha preso até de manhã, e...
2º DO CORO — E quem seria?! Aquela voz não me é estranha.
1º DO CORO —Talvez algum filho daqui.
FRANCISCO — Pode bem ser, entretanto acho que devemos ir tratar de dormir, porquanto já são horas.
CORO — É verdade, já é bastante tarde:
Vamos, vamos, amigos, para cama,
Que são horas de doce sossego,
Te as aves noturnas repousam
Dorme o mocho, a coruja, o morcego,
Vamos, vamos, que o leito saudoso
Está de nós, quer nos ter abraçado;
Vamos, vamos a fala perder,
Que é trombeta do homem acordado.
FRANCISCO — Mas lá vem Arabela e Eduardo, esperemos.
CENA 19º
Os mesmos, Arabela e Eduardo.
EDUARDO — Felizes, meus amigos! Para sempre felizes!!!
ARABELA — A tia Catharina, assustada com o barulho que se fazia na vila, não dormiu; estava esperando alguma desgraça, quando ainda há pouco nos entra Frei Benedito; fala com calor de Eduardo, confessa a necessidade de nos unirmos, fala na bula da Santa Cruzada, no Santo Breve de Marca, e minha tia...
EDUARDO — Quis por força ver-me, apertou-me em seus braços e anunciou-me a minha ventura, e tudo isso...
FRANCISCO — Devido à eloquência de Frei Benedito.
CORO — Excelente pregador, santo homem!
FRANCISCO — É sim; é mesmo um santarrão.
ARABELA — Agora, Xico, estamos felizes inteiramente.
FRANCISCO — Gracias...
ARABELLA.
Salve, aurora de ventura!
Salve, dia tão feliz!
Para mim, para meus sonhos,
Trazes tu divo matiz.
Nossa sorte estava unida
Desliga-la o céu não quis
O prazer que me circunda
O meu peito, ah não, não diz.
FRANCISCO.
Eis aqui findando o trama,
Paro o que eu muito fiz;
Já achou-se a felicidade,
O valor achei de x.
Coro.
Que mil ditas vós tereis
Para nós o céu prediz,
Mas são horas de nos irmos
Emborcar sobre o nariz.
(Cai o pano.)
FIM.
POESIA.
A NOITE DO DIABO.
CONTO.
O dia mais assombrado
Dos desastres, tentações,
Enforcados, danações,
De má morte e ruim pecado,
—Que, de todos, creio eu,
De quantos são aziagos,
Tem causado mais estragos,
E o de São Bartolomeu.
Neste dia — diz o povo
—Fecha um olho o Padre Eterno,
E o diabo solto de novo
Muita gente leva ao inferno;
Assim, de quanta nequicia
Tem sucedido em tal dia,
Só Deus e o povo a malicia
Sabiam donde partia.
Eis pois corno aconteceu
For maligna inspiração
O que a contar tenho a mão
Pelo São Bartolomeu.
Era de noite — na esquina
D’unia rua peralvilha,
Uma luz restante brilha
Na cidade... de Medina
Não imporia, a rima o diz
Sigamos o seu roteiro;
Pode ser Roma, Paris,
Mesmo Rio de Janeiro.
O silencio era dobrado,
Quer dizer, nada se ouvia
Desse sussurro animado,
Que na rua haver soia.
Tudo era triste e profundo:
No mar não quebram-se as ondas,
Não há soldados em rondas,
Nem coisas cá deste mundo,
Salvo a chuva: — na verdade
O inverno então começava,
Mas a agua se despenhava
Em tamanha quantidade,
Que, sem muita reflexão,
Bem claramente se via,
Que andava ali bruxaria
Ou coisa de tentação.
Foi uma dessas noitadas,
Que tereis visto a milhares
Nas legendas populares
De prodígio acidentadas,
— Quando os diabos andam soltos,
Vampiros chupam menino,
Bruxas, bruxos sem destino,
Todos soltos e revoltos
Vão as suas tropelias,
Fazendo tal diabrura
Que nenhum cristão atura
Sem rezar Ave-Marias.
Era de noite o chovia;
Envolvido n’um capote
Um vulto humano deu bote
Na esquina em que a luz ardia;
Nada fez-lhe este acidente,
Nem sequer deu-lhe atenção;
Só parava de repente,
E andava de arremessão.
Mas a luz, por um encanto,
Ao tocar— Pulf! Se apagou;
A escuridão redobrou
E o vulto andando entretanto...
Fantasma, certo, não ferem
Com suas formas externas,
Não têm braços, não têm pernas,
São de vapor—si quiserem
Mas o vulto bem mostrava
Ser feito de carne e osso;
Pois de corpo arrasta um troço;
Que no andar estabanava.
E então como era esquisito!
Não n’o tive em boa conta;
Mas enfim isto que monta?
Tomei-o pelo maldito.
O certo é que sempre andando
Prosseguia o seu caminho
Te que chegou direitinho
N‘uma porta. Aqui lançando
Um olhar fino, á maruja,
Na fresta da fechadura
Viu dentro uma criatura
Velha e velha — uma coruja
E mulher, dessas então,
Santo Deus, de cuja vida
Só o diabo sabe a lida
E os cuidados que lhe dão!
Tanto pois que ele a enxergou
Bateu na porta e gritou:
— Olá! velha taverneira!
Que fazes sentada aqui?
Abre a porta, lambareira,
Chove, a cântaros aqui.
— Abre a poria sem demora,
Que o frio passa o gibão.
Tenho lama desde a espora
Até as palmas da mão.
— Estou meio —adoentada
Mas já vou a porta abrir.
— Anda, bruxa desastrada,
Não me faças desmedir.
A porta abriu-se ele entrava;
Procura um canto afastado
E sentou-se rebuçado
Todo inteiro como estava,
Esta velha taverneira
Era mulher de má vida
Por todos reconhecida
Como a bruxa da Ribeira.
Tinha uns olhos de açafrão,
Cabelos de fogo ativo,
O nariz cheirando ao vivo
Não sei que de maldição.
Corpo e mãos pernas e braços,
Como todo o mundo sabe,
Enganosos como laços,
Visguentos como alcatrão,
Bruxa enfim que em tudo cabe,
E depois certo pecado,
— Diz o povo, e é certo a historia;
Nestas coisas de memória
O povo é livro sagrado —
Certo pecado com um moço,
Com quem andou sem refolhos
Deu-a ao diabo em carne e osso
N’um abrir e fechar d’olhos.
— Venha um pouco de aguardente,
Um cálix... um copo enfim
Mas voa, bruxa demente,
Leve como um galopim.
Que se diz por essas ruas
Do que acabo de fazer?
— Por aqui ninguém das suas
Inda nada ouvi dizer.
E depois daquele dia
Que fizestes de ladrão,
Ninguém mais de mim se fia,
Nem houve aqui reunião.
Ali o nosso vizinho
Noveleiro de fartar. . .
E com dois copos de vinho
Isso então morre a falar.
Pois ele ainda não veio.
Mas, certo, não tardará:
Que n’é [1]homem de receio,
O nosso vinho o dirá.
— Que é do bode feiticeiro
Que a pouco mandei p’r’aqui?
— Oh! Comeu como um sendeiro,
Danado assim nunca vi.
Está dormindo em sossego
No quarto dos esconjuros,
Cercado por sete muros
Tendo por guarda um morcego,
Ele não dá que pensar...
Mas oh! lá vem o vizinho.
Eu vou preparar o vinho
Para obriga-lo a falar.
Desta bruxa taverneira,
Ou não sei como lhe chame
Era a voz d’um som de arame
Feroz de horrível maneira.
Era um som áspero e duro
D’um corpo que não tem alma,
Movido por esconjuro
De satânica expressão,
— Ou como as folhas da palma
Caídas secas no chão,
Agitadas pelo vento
A gemer sem sentimento.
(Entra o vizinho com cara de novidade.)
—Abre! vizinha, que chuva!
Que vento! Que escuridão!
Não chora tanto a viúva,
Que liberta o coração.
Irra! Nem a própria uva,
Tanta vez levou-me ao chão.
(Sacudindo a chuva da roupa.)
— É verdade! São farturas,
Meu vizinho; é bom sinal.
(Oferecendo-lhe vinho.)
— Mas que chuva!
—As criaturas Precisão de coisa igual:
— Brruhl!... apaje! Oh que cheiro!
Tresanda enxofre esta casa!
Também fez alguma vasa
O diabo neste poleiro?
— Então que vai pelo mundo,
Querido vizinho meu?
Vosso hoje está fecundo
Em noticias... creio eu.
—Oh! vizinha, pois não sabe
Do que anda ia correr?
Queira Deus que o mundo acabe
Sem vosso nunca saber.
—Vivo aqui tão retirada,
Sem fregueses, que farei?!
Já nem me faz admirada
Tanta coisa que não sei.
— Oh! Por Deus, que o diabo agora
Todo o mundo há de levar.
Não vale a reza ao que implora,
Nem responsos... Vou contar.
Anda aqui nesta cidade
Um demônio encantador,
Que é mesmo calamidade,
É castigo do Senhor.
Começou como os vampiros
A sua negra missão:
Cruzando á noite os retiros
A beber sangue pagão.
Depois mudou de estribilho:
Começou fazer visagens
Nas fontes, rios, passagens
Nos cantos, becos e trilho.
Espantou muita criança
Fez muita gente assombrada,
Mas enfim isso n’é nada
Teve agora outra mudança.
Entregou-se ao desaforo
De meter-se a namorar!
E por meio do namoro
Isso então vai tudo ao mar.
Calçou luvas, pôs lunetas,
Fez-se rubro o cão de breu,
Aprendeu letras e tretas
E as moças endoideceu.
— O demônio enamorado
Tais obras pode fazer?!
É por certo um bom bocado,
É coisa muito de ver.
— Sim, senhora, e o negregado
É fino como um doutor!
O namoro é um grande achado
Nestas eras do Senhor.
E feito desta maneira
O taful de Satanás,
Amantes — é quantas queira,
Encontra feito rapaz.
Foi a primeira coitada,
Que este tratante iludiu,
Uma viúva esquentada,
Que o marido não carpiu.
Sobre isto tenho disposto
Que não fez nem mal nem bem:
Ela o quis, adeus, é gosto,
Que não disputa ninguém.
Depois era pecadora,
Tinha males que expiar,
Algum mal pensar d’outr’ora,
E.... Fez bem em a namorar.
Vamos ao caso seguinte,
Que interessa mais a nós,
Que somos cristãos, por vinte
Dos nossos mortos avós.
Em certo convento havia
Uma esposa do Senhor
Que rezava, noite e dia
Com muita crença e fervor.
Mas tinha uns olhos quebrados,
— Não sei como hei de dizer —
Assim meio apaixonados,
Ou que tais... podendo ser.
O demo não é pateta;
Logo que isto descobriu,
Encaixou n’olho a luneta.
Não sei que fez e sorriu.
A falar de salvos rabos,
Tudo tem sua razão:
Pois feito rapaz — os diabos
São dez vezes tentações.
Finda pois uma semana,
Corrido um mês outro mês,
A pobre tornou-se insana,
Não soube mais o que fez.
Era amor, coisa adoidada,
Não tinha mais que saber,
Vira o moço e apaixonada
Deitou-se logo a perder.
Dizem que neste negócio,
Certa mão, não sei de quem,
Não teve lazer nem ócio
Trabalhou muito também.
Reminiscências de Gil Vicente.
O certo é que neste inverno,
A tal esposa do céu,
Por um pespego do inferno
Deixou Deus, clausura e véu.
E sinto a fronte pesada...
Parece que estou sonhando!...
E estes olhos...Se fechando....
Que diabo de caçoada!
E creio que fico tonto,
Sinto o corpo ir-se encolhendo,
E as pernas soltas tremendo
Não acham na terra um ponto!
Mas onde eu ia?... É verdade
Hoje mesmo esse ladrão
Pôs-se ao fresco da cidade
Co’a amiga do Frei Tristão.
Oh! Que frade endiabrado,
E que terrível mulher!
Ele em santo embiocado
Ela tal qual foi mister.
Você me entende que lama!
Estes dois entes que tais
Viviam de mesa e cama
Dentro dos mesmos umbrais!
Contudo — é uma verdade! —
Custou-lhe ao diabo a levar.
Pode mais que o demo um frade,
Quando dama em se amigar.
Mas enfim hoje ela é sua.
Eis o caso: — ao anoitecer
Batem na porta e da rua
Ouviram dentro dizer:
«Se quer algum sacramento,
Frei Tristão saiu, irmão;
Morra em paz e salvamento,
Quem’stá co’a vela na mão.
Não há jeito — uma romagem
O levou, longe dos seus,
A fazer uma viagem:
Pode ir-se embora com Deus.»
Ora é bom que não se esqueça,
Que quem batia era o tal....
Mas que diabo de cabeça....
Não vale mais um real.
Quem batia era um idôneo
Satanás e Frei Tristão;
Quer dizer era o demônio
No corpo de seu irmão.
Daqui.... Foi pouca a demora;
Não sei por que artes entrou;
E dentro de meia hora
Fuphh! — tudo o diabo levou.
Mas que tem estes meus olhos,
Que querem fechar por força...
Por mais que as pestanas torça....
Mas nada..são dois trambolhos. .
Que coisa tão imprevista!
Não posso... corra, vizinha,
Abra-me os olhos.... azinha
Senão caio.... estou sem vista...
Já não piso mais no chão....
Estou bêbado...
(Cai)
— Pois não!
O maldito que isto ouvia
Lá do fundo da taverna,
Salta em pé sobre uma perna,
E horrivelmente se ria.
N’outra rua muito distante
Da primeira em que falamos,
O mesmo vulto encontramos
Andando sempre adiante.
Não parava um só momento
Para trás não se virava,
Caminhando não falava
Nem temia a chuva e o vento.
Enquanto cheios de frio
Aqueles que não dormiam
Por seu pobre lar tremiam,
Não voasse em corrupio.
A chuva pelos telhados
Com tanta força batia,
Qual na floresta os machados
N’um rijo tronco a porfia.
A escuridão redobrava...
Lua, estrela, astros do céu
Giravam através d’um véu
Tão grosso e negro que estava,
Que chumbo e breu derretidos
No imenso vaso do mar
E depois no ar estendidos
Era coisa de igualar.
As nuvens eram sombrias
Como fantasmas perdidos
Levados nas ventanias
Pelos ares combatidos.
E trovão sempre roncando
Nas furnas da imensidade
Sacudia a escuridade
Com raios de quando em quando.
E o nosso homem caminhava
No seu capote a suar,
Como quem não se molhava,
Nem tinha aonde parar.
Certo, era este algum maldito
Ou coisa de Satanás;
Nas pernas era cabrito,
No cheiro bode e aguaras.
E andava, andava e andava....
No tempo assim como estava,
Feito um ser de maldição.
E — que coisa horrível esta! —
Tinha os olhos sobre a testa
Como brasas n’um tição.
E assim ia duro e perro
Ringindo nos calcanhares
Como gonzos seculares
Sustendo um cepo de ferro.
Pela freste que o tufão
Nas folhas da porta abriu,
Uma luzinha surgiu N’uma casa ao rês do chão.
Tremulava ao som do vento,
E às vezes quase sumia,
Mas de novo aparecia
Qual a vida sem sentimento.
— Uma luz onde a cidade
Não parece ter ninguém!
Um certo mistério tem
Que excita curiosidade;
E agora com mais razão
Quando a gente dorme ou vela,
Ou reza gentil donzela,
Conta historia ou peca então...
E depois sem prejuízo
Pondo o olho neste postigo
Posso ver, e..—
Lá consigo
Creio que este foi o aviso,
Que tomou o nosso herói,
Pois, seja embora maldito,
Calcula seu bocadito,
E no mais é como soe.
É sorte da humanidade
Que ainda o melhor cristão
Por causa d’Eva e Adão
Peque na curiosidade.
Por isso — sem mais rodeio —
A quem é que não induz
A querer vê-la essa luz
De tantas trevas no meio?
E...E agora me parece
Que um canto de lá proferem
Que não é mau...Enternece!...
Diz ele assim...mas esperem
Quando o tal homem noturno
Isto ouviu foi logo certo
Ouvir o canto de perto,
Curioso por seu turno.
Um olho foi direitinho
Na porta e ficou de espreita:
Poz d’um lado o da direita,
E não sei onde o focinho.
CANTIGA.
1º
Minha filha, quando ouvires
Essa bruxa da Ribeira,
Foge d'ela, é feiticeira,
Sua alma desfez-se em pó.
Pactuou com o maldito
Anda em vida mal pecada;
E essa gente excomungada
Das meninas não tem dó.
2º
Foi viúva n’outro tempo
E como deu-se ao pecado,
Satanás ficou calado
E tratou de a conquistar.
E depois que deu com ela
No fogo vivo do inferno
Marcou-a c'o selo eterno
Na infâmia do seu lugar.
3º
Desde então por seu mandado
Foi viver lá, na Ribeira
Feito bruxa taverneira
Do vinho da maldição.
E com filtros, bruxarias
Enguiço e coisas danadas
Ganha as almas descuidadas D
e quantos lhe a casa vão.
4º
Foge dela, minha filha,
Não fies dos seus agrados,
Os seres excomungados
Falam bem e agradam mais:
E ela tom tal diabrura,
Que quantos bobem seu vinho
Não perdem mais o caminho
Dessa casa de infernais.
Aqui o maldito inquieto
Fez um momo c’o focinho
E fui dando de caminho
D’um modo um pouco indiscreto,
Porque a voz soou de novo,
Como um canto abençoado,
Que surge terno e magoado
Trescalando a unção do povo.
Era uma dessas velhinhas
Do povo saneias mulheres,
Que embebida em seus misteres
E em coser, suas netinhas
Nas noites de trovoada
A mão no fuso a fiar,
Amoldam n’uma toada
Qualquer canto popular.
Foi certo mais uma vez
Que ficou desapontado
O maldito negregado
Desde o fato português.
A cantiga não foi boa,
E como diz o rifão,
Creio que ele disse então,
Canta bem mas não entoa
Ora é velha a antipatia,
Que mostrou sempre o demônio
A cruzes, a Santo Antônio
A Cristo e a Virgem Maria.
Mas aqui — honra da lira
O que o orgulho lhe ferira
Foi um canto popular
Donde eu fico concluindo
Que tal canto com o diabo ouvindo
Também faz desapontar.
Mas ei-lo que para agora
Disporia todo o sentido,
Põem-se a espreita espicha o ouvido
Fica chato e se abobora.
Era uma voz que foliava
Quando o maldito chegou
Na casa onde ele chegava,
Ela assim continuou:
Uma pessoa — (de dentro).
Havia um longes escuros,
Começava a anoitecer,
Quando eu saí dos apuros,
Que acabo de vos dizer.
Ora vinha mais contente
Por ter morto esse ladrão:
De escapar principalmente
A ser tálio ou caldeirão.
Quando enxergo um vulto preto
Lustroso como verniz
Firme, em pé como esqueleto,
A rir-se pelo nariz.
E tanto que a luz escassa
O divulgue — ele, zaz —
Sumiu-se como fumaça
Ou vapor que se desfaz.
Fiquei um pouco assustado,
Olhei por detrás de mim,
Procurei por todo o lado
Até mesmo entre o cupim.
Porem nada... Fui andando,
Talvez fosse engano meu.
Eis que sinto vir pisando
Traz de mim como um lebreu.
Volto — nada... Escuto — nada...
Que diabo isto será!
Torno a andar nova passada
A seguir-me — tra, tra, tra.
Virgem Santa! isto é o maldito:
Deito-me então a correr.
— Não me fujas, meu cabrito, —
Ouvi uma voz dizer.
Ai!... Não sei como inda vivo
Como aqui’stou entre vós
A falar como um cativo
Que escapou da corda aos nós.
Corri — não sei se voava —
Sem acordo e sem sentido;
Pelos olhos, pelo ouvido
A maldição me cercava.
Blasfémias, gritos impuros,
Uma grande ventania,
Gargalhadas, heresia
Imprecações, esconjuros
Tudo ouvi — mil satanás
C’os denles arreganhados
No chão, no ar atrepados
Correndo, voando em pares
Me seguiam sem parar.
A terra já me faltava,
E por fim me figurava
Que eu também andada no ar.
E depois mais nada vi
Meus ouvidos se fecharam,
Meus olhos se anuviaram
E não sei se então morri.
Não passou creio um minuto
Quando em mim torno a cair;
’Stava parvo como um bruto
Em pé na rua a me rir.
Estirei a perna, o braço
Todo o corpo estremeci,
Mas não tive um embaraço
Pronto e lestes me senti,
Entretanto um pouco inchado
O braço esquerdo notei
Como se dependurado
Andasse n’elle, não sei.
O certo é que alguém me trouxe
E juro por esta luz,
Que ou fosse o diabo ou não fosse,
Nunca mais andei sem cruz.
— E depois qual foi o cabo
Desse ladrão do caminho?
— Ai que aqui torce a porca o rabo,
E a bruxa mete o focinho!
Foi a perra taverneira
Que me querendo perder,
Trabalha a mais não poder
Até dar-me na Ribeira;
E fez-me tantos afagos
Com tal arte e bruxaria
Que mesmo desviaria
De Bethem os três Reis magos.
Por fim me disse no ouvido
Que me queriam roubar,
Mas é preciso notar
Que eu tinha um ouro escondido
Aonde — ninguém sabia...
Ora pus-me eu a pensar
Que diabo isto seria!
Mas ela co’ um ar matreiro
Disse logo: isso n’é nada,
Vá depressa a encruzilharia
Procurar o seu dinheiro.
Não tive mais dilação,
Com haver o meu tesouro
Foi então que quase o couro
Deixei plantado no chão.
Depois que um mês se passara
Rezei, benzi-me e fui ter
Ao lugar onde a meu ver
Com um ladrão pelejara,
Mas ai como eu me enganava!
A chuva ali não fez nada
E a nossa luta estampada
No chão queimado lá’stava.
Então foi que do que hei dito
Entendi toda a embrulhada
A taverneira enredava
E o ladrão era o maldito!
(Ouvem-se muitas vozes).
— Desde então nunca mais houve
Bambochata na Ribeira?
.— Oh! Por Deus, quando isto soube
Dei ao diabo a taverneira.
— Eu também desde esse tempo
Nunca mais lá pus o pé.
— E eu — que tinha o passatempo
De ir lá jogar lansquinet.
— Será mulher do pespego?
— Qual! Se vale mais de cem;
- Tem braços e pés de morcego.
— Deus me livre dela
Amém.
OUTRA PESSOA.
Eis um caso semelhante
A um que nesse mesmo dia
São Gonçalo de Amarante
Viu na sua freguesia.
Eu bem sei que a casos tais
Muita gente o riso afrouxa:
Chamam contos da carocho,
Mentiras e nada mais.
Porém deixá-los que à porta
Há de ir bater-lhe a verdade;
Quando virem gente morta,
Da noite na soledade,
Arrastar pelas estradas
Mortalhas esfarrapadas,
Corpos cheios d’osso e terra:
Quando de medo transidos
Ouvirem longos gemidos
Dessas almas mal penadas
Que Deus a noite desterra:
E quando ouvirem então
Um demônio que se monta
N’um pobre corpo cristão
A falar por sua conta,
Hão de ver que nesta vida
Há entre o sonho e a mentira
Muita verdade escondida,
Que o temor de Deus inspira!
Deixemos pois de vaidades:
Quanto a mim — Tenho profundo
Medo as almas d’outro mundo,
E horror ao pai da maldade.
É crença velha entre nós,
Que vem de nossos avós,
Sem pecha d’um ponto omisso
Que o bom Santo galhofeiro
E fino casamenteiro
Das velhas que dão p’ra isso.
Uma das tais — e que impada! —
Já tirando os seus oitenta,
Meteu-se o diabo na venta,
Quis por força ser casada.
Foi do Santo a freguesia,
Prometeu festas e dança,
Se lhe apressasse a mudança
Que seu estado exigia.
Enfim quanto pode fez,
Não poupou oferecimento:
Mas veio um mês, outro mês,
E nada de casamento.
A velha torna a cidade
Vai de novo ter c’o Santo
Torna a expor cheia de pranto
Sua grande necessidade;
Enfim para dizer tudo
O Saneio não melhorava;
E a velha já se engrilava
Por vê-lo a seus rogos mudo.
Um dia — desesperada —
N’um arranco impetuoso
Prometeu de ser casada,
Fosse o diabo o seu esposo.
O tal homem pé de cabra
Que a muito a andava espreitando
Pegou logo na palavra
E p’ra si a foi tomando.
Eis pois como o porco imundo:
Nesta história se meteu,
Andando solto no mundo
Pelo São Bartolomeu...
A coisa então foi de pressa,
Na tarde do mesmo dia,
Quando a sombra já caia
Cada vez mais negra e espessar
A velha estava assentada
No lajedo d’um riacho
Chorando com o rosto baixo
Á sua sorte minguada.
—Ai! Se eu tivesse um marido!
Dizia ela suspirando...
É o vento o som foi levando
Como um correio entendido:
E em menos d’um quarto d’hora,
Quando tudo era calado
Ouviu-se o passo dobrado,
De quem quer que bem montado
Para aqui caminha agora.
Olha e vê — era um cavalo
Murzelo, de pernas finas,
De negras luzentes crinas,
Ligeiro como o pardal;
Em cima d’ele um rapaz
De airosa gentil figura,
Bom porte, grave estatura,
Moço enfim muito capaz.
Foi chegando e logo apeou-se;
Estirou a calça inglesa,
E com muita natureza
Para a velha encaminhou-se.
Não soltou frases perdidas,
Nem usou longos rodeios,
Falou — não teve receios,
Nem coisas mal-entendidas;
Pediu-a em casamento:
Isto foi expor ao vento
Uma furna de brasidos:
Aqui’stava ele bem certo,
Que não pregava ao deserto,
Mas a dois grandes ouvidos.
Fez-se logo toda amores
A pobre velha demente,
Entregou-se a seus ardores
E casou-se incontinente.
Depois saltou na garupa;
Aperta o noivo entre os braços,
E o cavalo a largos passos
Arfou como uma chalupa.
Caminhou-se a tarde inteira,
A noite veio depois;
E o cavalo na carreira,
E mudos ambos os dois.
Apontou sobre o horizonte
Da lua o doce clarão,
Mirou-se na água da tonto
E sumiu-se entre o vulcão.
E o cavalo inda trotava...
Entre pedras não topava
Nem se espantou uma vez.
Corria como um danado
Bufando desesperado
Dançando fogo dos pés.
Quanto mais escurecia,
Tanto mais ele corria,
Parecendo uma visão;
Cortava o espaço nitrindo,
A cauda os ares ferindo,
As patas cavando o chão.
A lua foi-se nublando...
E enquanto ela se escondia'
Nos ares ei-lo voando,
Transformado em ventania.
Era um novelo confuso
De nuvens que se elevavam,
Torcidas no parafuso
Dos ventos que as enrolavam.
A frase é própria de quem fala.
E zuniu...zuniu...zuniu....
Por muito tempo no espaço
Aquele sussurro escasso,
Que ao longe enfim se sumiu.
(Ouvem-se algumas vozes)
— E deu c’o a velha no inferno
Meu Jesus, Santo bendito!
— Juro pelo ser eterno,
Que foi o mesmo maldito.
— Oh! Se foi! Meus companheiros,
Escutem — No outro dia
Apenas amanhecia
Marcha um rancho de tropeiros,
E acharam junto da estrada
Uma mulher arquejante
Quase a morrer por instante
Toda suja e maltratada.
Levaram-na a um casebre,
Perguntaram se sofria,
E em resposta ela se ria
Parva e doida — a arder de febre.
Mas depois teve algum siso,
E disse que era casada
C’o demônio: - foi curada,
Mas nunca teve juízo.
(Ouve-se muita voz confusamente.)
DUAS PESSOAS CONVERSANDO N’UMA JANELA.
— Não vês ali no caminho
Assim como um vulto?... mau!
— É talvez um bezerrinho
Ou mesmo um tronco de pau.
— Oh! Depois d’aquela história
Do diabo feito ladrão,
Não me vem mais a memória
Coisas deste mundo, não.
E se lhe der na cabeça
De um dia vir-me tentar?
Não tenho nada que o impeça,
Sou pecador posso errar.
Mas ai! Que vulto caminha,
E certo para aqui vem.
Cautela e arroz de galinha
Nunca fez mal a ninguém.
Fechemos esta janela,
E saiamos já daqui,
É sempre bom ter cautela,
Coisas más eu pressenti.
UMA PESSOA DE FÓRA BATENDO NA PORTA,
Abri-me a porta, senhores,
Compadeçam por quem são...
(Silêncio.)
Ai! Que medo, que tremores;
Eu sou um pobre cristão!
(silêncio.)
Ai Jesus! Quem dá socorro
A um desgraçado infeliz?!
Já não posso mais eu morro...
Ai meu Deus! Que mal eu fiz?!
— Quem é que bate aqui na porta?
— Sou eu, tende dó de mim.
Ninguém o frio suporta,
E tremo de medo assim.
— Como é que nestas bruegas,
Há quem se atreva a sair?
—Ai, senhor! Eu ando as cegas,
Por mim eu’stava a dormir.
— Então que foi?
— Abra a porta,
Que muita coisa direi:
Ouvi falar gente morta,
Vi coisas que ainda não sei.
— Então quem bate ali fora
Nada tem com Satanás,
— Ai, senhor! amo e adoro
As cortes celestiais.
— Pois espere ainda um momento
Que já’stou no corredor,
— Sim, senhor, ai! que tormento,
Deus lhe pague este favor.
O DESCONHECIDO DENTRO.
Ai, senhores! ’stou cansado:
Não queirais ver o que eu vi.
Foi o diabo, estou danado,
Agarrou-me — escapuli...
- Santo Deus! Que compromisso!
Viste-lo ou o diabo sois?
— Aonde? Como foi isso?
Depressa, vamos... depois?
— Coitado do meu burrinho!
—Que burro?
— O pobre morreu!
—Mas que tem?
— Foi no caminho, lá ficou, tanto correu.
— Mas que tem isso c’o diabo?
— Correu comigo, zuniu...
Mas enfim espicha o rabo,
Não pôde mais e caiu.
— Porém nisso que ingerência
Teve o diabo, que artes fez?
— Um pouco de paciência,
E horríveis coisas vereis.
O DESCONHECIDO — NARRANDO,
Quem mandou-te, a ti, sandeu,
N’um dia tão desastrado,
O de São Bartolomeu,
— Dia aziago mal sagrado.
Quando o maldito anda a esmo:
Quem meteu-te, a li, João — Tolo,
Nestes cascos da miolo,
Sair de casa hoje mesmo?
Hehhuff! Corri pelo mato
A desunhar-me, e inda assim
Quase que sou lambeado
Como o burrinho: ai de mim !
Eis como — Eu vinha a cidade
No meu burrinho montado,
Muito ao fresco o descansado:
E, si bem que na verdade
Quando a andar ou me despus
No horizonte o sol rodava,
Contudo o tempo sobrava
De chegar com muita luz.
Porém meia légua andada —
Foi mesmo uma tentação —
Encontrei a frei Tristão
Meu amigo o camarada.
Ora pus-me a conversar;
E conversa começada
Não há mais nada que acabe;
Nisto passou, já se sabe,
O tempo de cá chegar.
Pôs-se o sol — que esquecimento
Deixei Tristão, dei de esporas
Que ou sou mártir das demoras
Deste tal entretimento.
Começou a escurecer
Ao longe o vento gemia,
Com um homem que sofria,
E de dor pôs-se a gemer;
E a floresta se curvava,
Como a estremecer de medo,
Quando o vento lhe passava
Vi cerviz o horrível dedo. —
E eu sentia polo rosto
Um sopro como a dizer-me
Que algo havia acontecer-me
No caminho de desgosto.
Mas creio que neste instante
O diabo pôs-se no meio
De sorte que sem receio
Sem pensar fui para adiante
O burrinho ia trotando
Se espantava a cada passo,
Sentindo um certo embaraço,
Que ia me desconfiando.
As nuvens no céu rodavam,
E os corvos atrás seguiam;
Curvando as azas zuniam
Como açores que esfaimavam —
E depois se confundiam,
Depois todos crocitavam.
Quem não vê que nisto andava
Rabugem de Satanás?
Mas eu, por Deus, não pensava,
Vinha em calma e santa paz.
O espaço então perturbou-se;
De repente escureceu.
E logo o trovão gemeu;
E o negrume concentrou-se.
Então sobre a minha frente,
Da cidade em direitura,
Estendeu-se uma corrente
De nuvens, qual mais escura.
Quis voltar, mas por desgraça
Pensei quando não devia:
— Por mais escuro que faça,
Disse eu, não erra o meu guia.
Corvos, nuvens, n’um momento,
Tudo a noite subverteu,
Como um fio pardacento
Que não se vê entre o breu.
Nada enxergava — a não ser
Da noite o escuro insondável,
Tão pesado e insuportável
Que horrorizava-se ao ver.
O chuveiro era eminente;
Ao longe sobre a montanha
Já se ouvia o andar fremente
Da chuva que a terra banha,
Entretanto eu caminhava
Pisando incerto no chão
Sem saber por onde andava
Nomeio da escuridão.
Depois de ter caminhado
Desta sorte um bom pedaço
Acha o burro um embaraço
Tropeça e cai ,— eu ao lado.
Eis que sai mesmo entre nós
Um prolongado gemido,
N’um tom agreste e exprimido
D’uma aguda o seca voz.
Oh! Fiquei tão espantado,
Que nem pude respirar:
Caí no chão assombrado,
Morto como um enforcado,
Para a verdade falar.
E senti uns braços frios,
Como dois braços de gelo,
Me agarrarem nos vazios
E depois pelo cabelo.
E com tal força apertaram
Que os ossos todos tremeram,
E as carnes estremeceram,
E as pernas se prolongaram.
Depois senti no meu rosto
Outro de cadáver posto
Frio ossudo magro e fundo,
Que os ouvidos me afagava,
E com furor me beijava,
Como a morte ao moribundo.
A chuva então despenhou-se
Com tamanha profusão,
Que lodo o ramo quebrou-se,
Se enterrando pelo chão.
Aquelas gotas pesadas
Saltitando sobre mim,
Tive as forças reanimadas
Senti que vivia, sim.
E dando quatro balanços
E encolhendo o corpo —zaz—
Atirei-me em quatro lanços
Cinco braços para traz.
Então vi perfeitamente
Que era um corpo de mulher,
Que ali estava torpemente
Sem ter vestido se quer.
Fiquei de novo espantado,
Fiz-me pálido de horror,
Sem saber que resultado
Tomaria à meu favor.
Quando vejo-a levantar-se
Como que tornando em si
E p’ra mim encaminhar-se
Mais viva do que eu me vi.
E de novo me 'apertando
Das suas mãos entre as mós
falou-me, sapateando,
N’um hirto metal de voz:
«Me ajuda e neste afogo.
Traz:
Ó correi, vinde ao fogo,
Zaz.»
Santo Deus, dá-me socorro,
Gritei eu, e os olhos corro
Esbugalhados ao invés
Deus me ajudou —- Neste instante
Tomo as forças d’um gigante
E me soltei outra vez.
Comigo estava o burrinho,
Mais manso do que um cordeiro,
Me esperando no caminho,
Como um fiel companheiro.
Salto em cima e dou de espora
A tremer desatinado;
E o burro também, coitado,
Largou-se por aí afora.
Um ramo que me tocava
Uma pedra que saltava
Me fazia estremecer:
Em tudo via um demônio;
Até mesmo a S. Antônio;
Teria medo de ver.
Porém nada me valia:
Eu ceio que neste dia
Algum mau pecado fiz
Quando dei por mim levava
Em peso que me abalava,
Do macho sobre os quadris.
Ai! Meu Deus, era a danada
Que vinha bem aprumada
Na garupa a me agarrar.
Quando eu montei-me na sela,
D’um só pulo também ela
Se escanchou sem eu pensar.
Tive medo e horror de vê-la,
Mas fingi não percebê-la,
E sempre, sempre, a correr.
Para mim tudo movia,
Trocava... Se confundia
Como um sonho a se tecer.
Ai! aqui’ stá a desgraça!
Tudo agora se embaraça
Eis o diabo e a tentação:
O burro se desenfreia —
Corre a toa pela estrada
Recua — espanta — falseia —
E a carga a baixo — danada!
Burro e eu foi tudo ao chão.
Um bode imenso cornudo,
Fedendo a pano queimado,
Um focinho desastrado
Espirrando fogo em tudo:
Um satanás furibundo,
A boca horrível, travessa,
O olho maior que a cabeça
Mais vivo que o sol no mundo —
Foi tudo o que pude ver:
Ao cair soltei um grilo,
Esconjurei o maldito,
E fiquei morto a tremer:
Depois a terra gemia:
Ouvi ao longe um retumbo
Como se o monte caia,
Soando a peso de chumbo.
O vento as nuvens rasgava
Com tão forte repelão,
Que a chuva adiante levava
As florestas de rondão,
Era um barulho agitado
Que eu — imóvel sem sentidos,
Pensava ter nos ouvidos,
Ou na cabeça encerrado.
Depois ouvi que cantavam
Um canto de maldição:
E da horrível confusão
Estas vozes destacavam:
1°
Me ajuda e neste afogo:
Traz...
Ó correi, vinde ao fogo:
Zaz...
2°
Frei Tristão foi-se embora,
Lá
Eu também pus-me fora,
Cá.
3°
Ele disse: é romagem,
Vou.
Mas eu disse: é coragem,
Sou,
4º
Sou do demo — ele chega
— Truz...
Agarrou-me: — eis a entrega,
Sus!
5º
Dormi, frade, este inverno:
Zum.
Que amanhã dás no inferno —
Bum!
6.°
Me ajuda e neste afago:
Traz
E correi, vinde logo:
Zaz.
Não sei se ouvia ou sonhava...
Acordei desassombrado;
Meu corpo estava enterrado
Na areia que a agua arrastava.
Escutei: ouvi somente
A chuva sempre a cair
Olhei e vi se bulir
Meu burro arfando tremente.
Sacudo a areia depressa
Torno a montar sem demora;
Mas ai! Em vão calco a espora
O pobre burro tropeça,
Não pode — e cabe espichado
’Stava perto — concertei-me,
E assim como estou larguei-me;
E lá deixei o coitado!
(Ouve-se muitas vozes falando entre si.)
— Eis aqui como o demônio
Passa o São Bartolomeu!
— Eis também como o bolonio
Do frade a amiga perdeu.
— Lá isso foi caridade,
Ao menos por esta vez.
— Oh! Se foi!
— Isso é verdade!
— Uma coisa mais talvez.
— Qual?
— Ora, pois não é nada
Um frade burlado?
— Hean?!
— Que um frade da mão furada
Não pode mais com Satan.
Mas, que é feito do maldito,
Quase do todo esquecido?
Ah, sumiu-se!... Ei-lo escondido,
Pequeno como um mosquito,
Na fechadura da porta,
Agora, como ele coube
Nesse lugar —- como soube
Se encaixar nele, não imporia;
Basta, sabido, como é,
Que o domo sempre tem arte para entrarem toda a parte.
É assim que, quando alado
Ferve o pó da dançarina,
Ele vai e dá na fina
De se meter no calçado;
Ei-la então secia e faceira,
Maworanda do que um junquilho,
Levo... nele. - do casquilho
Voa depois algibeira,
E aqui... São elas... Também
Algumas vezes se mete
Te onde lhe não compete
Inda é ele e mais ninguém
Que de conde lindas c’roas
Doem na frente dos maridos;
Foi que andou entre os vestidos
Da mulher... Fazendo boas.
E admira que em figura
D’um mosquitinho invisível,
Que nem se torna sensível,
Faça tamanha diabrura...
Eis aqui como ele estava
Na fechadura escutando,
E agora se preparava
Para ir se retirando,
Pôs de fora a cabecinha,
E — pulf! Saltou no chão,
Da mesma altura e padrão.
Que na taverna já tinha.
São estas coisas do demo,
Que só Deus pode entender,
Que no seu saber supremo
Tais coisas pode saber!
A antiga forma tomada,
Quando fora se sentiu
Rompeu n’outra gargalhada
Que em toda a noite se ouviu.
—- « Bem! Já sei o que se diz.
E este falador eterno
Não ser empolgado! Inferno!
Escapou-me por um triz!
Mas também não vale ar minhas;
Pobre diabo!... é nada... um zero!
Só sabe enfiar ladainhas;
Massante... Xó!... Não te quero.
Mas agora loca a andar;
É tarde; daqui a pouco
O maldito sino rouco
Meia noite há de tocar.»
Assim falou, caminhando
De um modo estéril, deserto,
O diabo — que era - onde certo —
Braços pernas abanando.
Não parou mais um momento:
Deu de marcha a vela e remo,
Com toda a força do remo,
Mais veloz que a aza do vento.
Enfiou-se n’uma estrada;
Caminhou muito por ela
E espicha então a canela
Fina e desembaraçada.
Depois — tais artes fazendo,
Que só ao diabo lembrava,
Quanto mais ele afastava
Foi-se encolhendo, encolhendo,
Até que fez-se uma bola,
Para mais poder correr;
E pela estrada se rola
Como u’um eixo a volver.
E tanto tanto encolheu
Que enfim nada mais se viu;
Ou em pó se converteu,
Ou na letra se sumiu.
FIM.