Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Posse absoluta, de Luiz Delfino


Textos-fonte:

Luiz Delfino dos Santos, Poesia Completa, org. de Lauro Junkes,

Florianópolis: ACL, 2001, 2 v.

ÍNDICE

Via crucis, via lucis

Spes morta

Alma prisioneira

Eureca! Eureca!

A morte e o amor

Apoteose

Fantasia sobre alguma cousa

Canaã

Moriturus te salutat

Non mentire

A violeta de Goethe

Depois

Idílio no bosque (1885)

Episódio escolar

Da Tijuca ao cemitério

Madalena - poema extraviado (1901)

Na catedral (1904)

Ave Maria (1901)

As três cruzes

Non Scordare (1884)

Tentativa de posse

Posse absoluta

Via crucis, via lucis

Deixando a porta, náufrago, errabundo,

Vejo o teu mar de encantos

Ir encher de harmonias outros mundos,

Outros céus, outros cantos.

E inda a saudade é doce! A alga que deixas

Aos pés de quem te amou...

Ai! De quem te ama embora e em puros hinos

Teu nome pendurou...

Como um troféu no templo, como um quadro

De mãe ao pé do leito

De filho, que a fixá-lo noite e dia,

Mais viva a tem no peito.

Os sons do ferro que me chumba à vida

Espalho-os num poema:

E aí cintila o nome teu glorioso,

Como seu rico emblema...

Criança, só porque te vi um dia

Passar ante os meus olhos,

A luz, que de ti vinha, aos pés mostrou-me

O sítio dos escolhos.

Tu me apontaste a sirte e me mostravas

A taça cor de aurora:

Nos escolhos fiquei; e me deixaste

A sede que devora.

Eu ouço a voz plangente do oceano,

Quase aos meus pés deitado,

Como se viesse dele em longa viagem,

Perdido e naufragado...

Um mar que foge, um mar que vai fugindo,

Que te leva e te enleia,

Um mar que me não quer e que me deixa

Sobre deserta areia.

Vai. — Ficou-me o ideal dos teus encantos,

E a taça da esperança;

Por onde o céu bebera e que tem dentro

Lágrimas só, criança.

Vai: eu não te maldigo; os anjos lancem

Asas por teu caminho;

Céus de estrelas te vão seguindo em coro;

O sol seja o teu ninho.

Tépidas auras, prenhes de perfumes,

Beijem-te a branca fronte:

Desça, para sofrer teus pés altivos,

O hirsuto colo o monte.

Beija um esposo: mete a fronte augusta

No estema dos seus braços;

Sê feliz: de oiro e arminho o chão lhe forra:

Azula-lhe os espaços...

Eu ficarei cheio de ti, como enche

A sombra uma caverna:

Será tua a cruz aos ombros...

Esta cruz dor eterna!...

Spes morta

Arise fair sun...

Shakespeare - Romeu and Juliet

E foste a viajar, ó filha, tão distante,

Sobre uma folha só de rosa em concha aberta:

E enquanto vagas pois, ó rica filha amante,

De tua doce luz fica a mansão deserta.

Que vais buscar aí por esse mar em fora?

É bem pouco o que quero: oh! tão pouco desejo!

Sobre o meu coração a fresca luz da aurora,

E da mulher que eu amo em segredo um só beijo.

Não pretendo lauréis dos cabos de batalha,

Nem a glória que segue os reis dos cantos de oiro,

Nem ser grande inventor, nem tudo quanto valha

Um nome no porvir, belo estema de loiro.

Nada — Um palhal e um raio a doirá-lo somente

De um sol, que faz florir o meu jardim à porta;

Minha filha, a Esperança, alegre, sã, contente:

Não quero nada mais, de nada mais me importa.

Foi agora ao país dos sonhos: atravessa

Mares que nem eu sei, numa barquinha leve;

Foi pérolas buscar: disse-me adeus com pressa;

E é com raios de sol que a pobre moça escreve.

Que me trará? Eu sei? — Uma só cousa quero;

Uma só cousa peço a essa loira criança:

É doentinha... mas o olhar!... o olhar é fero:

Como um rei ergue a fronte a débil Esperança.

Linda orgulhosa, foste! E não me consultares?

Em que país irás achar o que desejo?

Talvez encontres tu a pérola dos mares

Numa lágrima enorme: é isso o que prevejo.

Está perto de mim o que procuro tanto:

A pérola do amor não stá lá no Oriente;

De lá podes trazer a pérola do pranto,

E para a alma ferir-me algum punhal luzente.

Olha: o que eu quero, eu vou dizer-te ao ouvido, ó filha:

Volta... volta de longe... Aqui stá perto... Volta.

Um pouquinho de amor... A lua agora brilha,

E ao seu doce luar a tua barca solta.

De longínquo país, por mares tão medonhos,

Em que foste buscar amor para minha alma,

Atravessando um céu de radiantes sonhos,

Aqui a tempestade, ali mais longe a calma...

Tu nada hás de trazer. — Sobre a folha de rosa,

Mais pesada que tu, adorável donzela,

Transparente e gentil e quase vaporosa,

Nada trazes, bem sei: — que foste buscar nela?...

Mas que é isso? Mal pões os pés na branca praia,

Mal te acolhes do mar em que tão longe andaste

Perdes ânimo e força e o corpo te desmaia?

É de cansaço, filha? Oh! Dize-me: — Cansaste?...

Ergue-te, ó Virgem loura: oh! Ergue-te, criança!

Dormes? Mas que dormir tão fundo assim? Que importa...

Vou erguer-te... Oh! Meu Deus! estás fria... Está morta.

Ai! De mim! Até tu morreste-me, Esperança!

Alma prisioneira

... patuit dea.

Virgílio - Eneida

I

Agarrei pelos ares a tua alma,

Como a voar se agarra a borboleta,

Tinha o suave perfume da violeta

E o úmido brilho da viçosa palma.

Estava inquieta, lhe faltava a calma,

As asas sacudia à esquerda e à direita...

Agarrei pelos ares a tua alma,

Ó minha doce e pálida Julieta.

O ar andava cheio de palavras

Que querias dizer e não dizias:

Com teus olhos flechando os meus, tu lavras

Grupo trêmulo e acesso de harmonias,

Que, como pombas, revoando aos pares,

Me falavam de amor quase em segredo:

E, como entre elas, ia oculta e a medo,

Pude apanhar tua alma pelos ares...

II

Há pelo espaço vibrações estranhas

De seres vaporosos, transparentes,

Cujos rumores tu, mortal, não sentes,

Cujos voos silentes não apanhas,

Senão lá quando conhecer tu queres,

E deixas as visões da terra para

Ver ideais que teu amor sonhara

Em meigas, formosíssimas mulheres.

Há duas deusas principais; tu fazes

A terceira, a mais bela, e cautelosa,

Aquela que só quer, só ama e goza,

O que não têm as deusas mais audazes...

E eu que já ensinei aos meus olhares

A estudar e a sentir o que há no espaço...

Por isso, Amor, é que sentir te faço

Que apanhei a tua alma pelos ares.

III

Inquieta, como vendo em tudo enredo,

Como se ela, ao falar, a voz baixasse,

Escondendo na mão a branca face,

Tem na boca entreaberta erguido um dedo.

Mas tudo cheio está de realidades,

Que são por ora extravagantes sonhos:

Ponho os meus olhos nas estrelas; ponho-os

Nas belas cintilantes divindades,

Que entre nós vão consigo enchendo tudo,

E são transformações de um Deus somente,

Que anda a rever os elos da corrente,

Prendendo os seres, mas prudente e mudo.

Do verme ao astro, e de uma gota aos mares,

Atende a tudo, atende à flor e ao fruto:

Como poeta, eu também sei ver, e abrupto

Apanhei a tua alma pelos ares.

IV

Não faças como faz o passarinho,

Que pelas asas agarrado freme,

Bate-lhe o coração, se estorce, teme

Ficar sem céu, no céu ficar sem ninho...

No movimento rápido e esquisito,

Sim! Melhor que a razão lhe fala o instinto:

Por isso eu sei, eu compreendo, e sinto,

O que há num triste e desolado grito!...

Tu és como a cecém imaculada,

Cuja brancura de matiz divino

O próprio orvalho, em seu tecido fino,

É capaz de deixar de oiro manchada...

Mas tu não podes ter outros pesares,

Nada temer no ninho do meu seio,

Porque ninguém me viu no céu, eu creio,

Apanhar a tua alma pelos ares.

V

Podes agora, como Deus, ser muda:

Em toda parte vejo-te presente;

Em toda parte o meu amor te sente,

E não há nada mais que o engane e o iluda.

O Anjo do silêncio, em pé na porta,

Não deixe entrar nem mesmo a luz divina,

Quando no leito o corpo teu se inclina

Viva, como num sono a virgem morta.

Tu és. — Meu universo se ilumina:

Para o meu universo isso só basta,

Sua força, em palavras, Deus não gasta,

Tudo se move nele e ele domina.

E entre muitas estrelas singulares,

Tu és a estrela do meu céu rainha:

Eu te domino... Agora és minha, és minha:

Apanhei a tua alma pelos ares.

VI

Não temas, por te haver colhido as asas,

Por te ver, pelo céu brilhar passando:

Por que temer? Por que fugir-me? Quando

Num fogo, como o meu, de amor te abrasas?...

Como Ruvo guardou num vaso antigo

Prosérpina entre mirtos escondida,

A alma do adolescente já sem vida

Dando-lhe ao seio carinhoso abrigo,

Podes amar-me. — Deus prende as estrelas,

Que elas nem falam da prisão dourada,

E vão, em grande volta alucinada,

Brincando e rindo, como podes vê-las.

Prender-te?... Mas também se tu me olhares,

Verás que eu vou nos mesmos elos preso,

Quando no mesmo céu por ti aceso,

Apanhei a tua alma pelos ares...

VII

És a Vênus em meus vergéis erguida,

A caçoula em que lanço os meus perfumes:

És o nume que impera entre os meus numes,

Sol que me cerca em quadro de oiro a vida.

Somos dois astros num só astro visto

Luzir na mesma direção da esfera,

Somos a verde, a eterna primavera,

E duas bocas num só beijo: é isto.

É isto que eterniza o mundo inteiro,

Que enche o ninho e o que dentro o berço embala,

Isto que move, e gira e que não fala,

E faz de um ser um outro prisioneiro.

Para encher de alegria os nossos lares,

Adivinhei o teu segredo todo,

E arremessei-me ao espaço como um doudo,

E apanhei a tua alma pelos ares.

VIII

Que dizes tu do ninho que te ofereço?

Não achas quente, bom, odoro, oculto

Entre mirtos, do sol furtado ao insulto

Num vale, onde ao calor teu só me aqueço?

Não salta a vida, como arroio lindo

Indo a gemer uma amorosa queixa,

Que é lanugem que no espaço deixa

A água que corre e passa e vai fugindo.

Não há mais essa trêmula esperança,

Que foge agora, agora acaricia,

Sempre perto de nós, sempre erradia,

Que o amor com tanta inquietação alcança.

Vivemos hoje à sombra dos palmares:

Viveremos assim eternamente!

Como foi bom colher-te de repente,

Apanhando a tua alma pelos ares.

IX

Quanto mais penso, menos sei. — Externo

Meu pensamento em doloroso grito:

Ao infinito sucede outro infinito;

E a eternidade só conhece o Eterno...

Tu crês: disso a ninguém um crime faço:

Agradecer a Deus nossa ventura,

Sei teu desejo ser: — teu Deus procura

Latente no universo e em todo o espaço;

Não acharás. — Tem Deus outra estatura:

No insondável mistério ele caminha:

Só a ideia de Deus não o amesquinha,

Só a ideia engrandece a criatura.

Quando da vida à morte trespassares,

Outra vida acharás e a dor e o gozo.

Como eu te achei num dia fortunoso,

Apanhando a tua alma pelos ares...

Eureca! Eureca!

Era a desoras. — Tudo adormecera em torno:

Mas da Babel o arfar de vida inda se ouvia;

E o pálido clarão da lua intenso e morno,

Como um trapo de luz a fronte lhe envolvia.

Eu ouvia saltar os sons dos meus sapatos,

Ressoando na pedra e enchendo o espaço inteiro.

E olhava vagamente os lúgubres regatos

Da luz triste e coalhada em lânguidos braseiros

Que por meio esteirava a rua silenciosa...

E pisava tranquilo e triste e inconsciente,

Arrastando minha alma inerte e caprichosa:

Por quê? não sei: — levava o coração doente.

Um cadáver que vive, ou um leão tranquilo,

Que já não morde mais os elos da cadeia,

Olhava sem olhar e via tudo aquilo

Sem ver nada e que já de nada mais receia,

Sem poder, sem querer, sem desejar somente

Uma palavra vã de amor ou de piedade,

Odiando o que consola, e ri, e fala, e mente,

Cheio de orgulho e asco, e cheio de humildade...

Quando te vi. — Achei a tua fronte nua

Tão pálida que tinha alguns toques da morte:

E disse: — Ó desgraçado: a esta hora na rua?

Vens trazido, como eu, como o pó pelo norte...?

Tu sorriste! — E era triste o teu sorrir tranquilo,

E me cerraste a mão; e eu, pobre de alegria,

Cerrei também sorrindo a mão que me estendias:

E, estranho homem, falou-me: e eu comecei de ouvi-lo.

E encostei-me a um umbral da mais próxima porta:

E enquanto a lua o monte além transpõe discreta,

E a cidade de todo está no sono morta,

Surgiste-me ao horizonte, esplêndido poeta.

Como o sol irrompendo à túnica das águas,

Levanta a fronte em luz deslumbradora, imensa,

Seu grande hino saiu de um abismo de mágoas,

E vi-lhe a lira de oiro em lágrimas suspensa:

Como um vaso que teve a essência pura e santa

E que, estando vazio, o cheiro inda perdura,

Que luz inda por fora e propulsado canta,

Mas sem líquido ter nem o odor primeiro...

Que tem medo da morte e tem medo da vida,

Dos vermes sepulcrais e répteis da existência,

Que arrasta pela terra a túnica poída,

Sem fé e sem prazer... porém com paciência...

*

É o vulcão no interior de vossa fronte larga;

E a desproporção dos desejos insanos;

Quereríeis tragar a água dos oceanos,

Não dispondo senão de uma só gota... e amarga!

Poetas, quem vos faz andar nessa tristeza

É a vossa ambição profunda e indefinida:

Essa é a sombra de vossa irrequieta vida...

Não querer ser o que vos fez a natureza.

Engrossa inda a tristeza enorme de um artista,

Que o gênio engrandeceu: a sua obra acabada,

Sobre ela não poder então fazer mais nada,

E ver quanto do ideal, que em si continha, dista:

E enquanto lhe parece assim não ter vivido,

E busca a solidão, seu sonho derradeiro,

A sua obra imortal o aponta ao mundo inteiro,

E vai de triunfo em triunfo, esmagado e vencido.

A morte e o amor

Um anjo

Perdeu-se na floresta a tua pobre amada;

Sopra o vento do norte:

Caem em flocos do céu montanhas de geada...

E elas vão dar-lhe a morte.

Eu

Leva-me ao seu encontro além, pelos espaços,

Cheguemos de carreira:

Parte-me o corpo todo em pequenos pedaços,

E ateia uma fogueira.

O anjo

E o fogo...

Eu

Basta só a ver gelada e fria,

Perdida na floresta,

Para meu corpo arder; minha alma bastaria:

É um vulcão que resta.

Fomos. — Senti o anjo armado de uma espada

Dar-me o golpe primeiro,

Dividir-me e cercar depois a minha amada

De esplêndido braseiro.

E assim, como uma aurora ainda adormecida,

De orvalhos ensopada,

No meio de clarões, ela se erguia à vida...

A minha doce amada...

Na espuma do meu sangue a deusa renascia,

Como uma flor luzente:

Mas vendo em terra o meu coração, que inda ardia,

O ergueu com mão tremente.

Soprou-lhe o aroma leve, o hálito, a ambrosia

De sua doce boca,

Chegou-o ao seio e nele os lábios imprimia,

Sorrindo, como louca...

Percebia que o amor unia-me os pedaços,

E que me levantava,

E que íamos os dois além, pelos espaços,

Que a morte nos levava...

E que havia um sussurro azul de asas abrindo,

Que outros anjos cantando,

Em coreias, em roda iam um campo infindo

De alvoradas calçando...

Que desciam num nimbo os rostos constelados

De astros por ali fora,

Virgens nas mãos a lira e o saltério lançados,

Tocando. — Ó luz, agora...

Apoteose

O sol

Que rumor pelo céu, ó astros luminosos?

Hoje estais sem juízo?

Os astros

Passam por entre nós aqueles dois esposos,

Que vão ao Paraíso.

Os anjos

Que vão ao Paraíso... E Deus lá os espera

Com diademas e palmas.

Os serafins

Vão conhecer de perto a eterna primavera...

Todas as potestades

Prêmios das Grandes Almas...

Queda

Caí do céu ferido à flecha como uma ave...

Quando acordei, fui vê-la:

Oh! Que doce palor, angélico e suave,

De desmaiada estrela.

Delgada como a flor, que a rija tempestade

Noite e dia profliga,

Era a efígie que guarda intacta a mocidade

Numa medalha antiga.

Tinha a nobreza escrita em nuvem merencória

Na fronte de alabastro,

E nela vagamente eu lia a triste história

De um anjo amando um astro...

E era bem como um anjo em descuidado arroubo,

Que a meio asas descerra,

Buscando o céu, com um pé inda em cima de um globo,

Inda agarrado à terra...

Fantasia sobre alguma cousa

He that commends me to mine own content

Commends me to the thing I cannot bet.

I to the world am like a drop of water

Who, falling there to find his fellow forth,

Unseen, inquisitive, confounds himself.

Shakespeare - The Comedy of Errors

Foi para mim o amor um mar violento

Que encontrei aos meus pés: foi minha vida

Um navio lançado às aventuras,

Como uma gota em busca de outra gota

Sua irmã no oceano.

Ilha encantada,

Verdejante, onde sempre a primavera

Teve asilo esplendente, flutuava,

Como açafate a transbordar de flores,

Pousado nas verduras cintilantes.

Uma mulher, visão, ou gênio, ou anjo,

Irmã das viagens dos meus sonhos de oiro

Num palácio de gênio, obra criada

Com o lavor dos poemas do Oriente,

Só, bem como a viúva de algum astro,

Só, bem como a amorosa de algum anjo,

Povoava a ilha gentil com seu encantos.

Eras tu.

As marés, os vários ventos,

Da água a insensível corrente me levavam,

Mau grado meu, ao largo. — Em vão trabalho

Para achar outro rumo: esforço, audácia,

Todo o poder de uma alma ameaçada

Pelo destino, emprego. — Honra, deveres,

Glória, fama, tesoiro indefinido

Enchia o meu navio atormentado

Pelo vento, que o açoita e o impele e o arrasta...

Luto em vão por salvá-lo do naufrágio:

Como Encélado, monte sobre monte,

Eu acumulo esforço sobre esforço.

Troco vozes com os gritos da tormenta:

Respondem-me relâmpagos: convulsa

O mar, o vento muge, a tempestade

Corre, passa em galope desvairado

Em carro escuro, cujos eixos chiam.

Refaíscam as tachas: os ginetes,

Em cem parelhas, metem furibundos

No mar as patas negras, arrancando

Serras de espuma, em que as horrendas clinas

Se embebem todas e as sacodem longe,

Como se elas levassem sobre as asas

Fachos de incêndio; os mares se iluminam

De vermelhos clarões de fogo enorme:

E o arruído do mar, junto ao do vento,

Parece acompanhar, correndo, um monstro

Que o céu lacera a dardos flamejantes,

De cujos flancos chovem sangue e trevas,

Cujo mugido é o urro de cem touros.

Paz! em vão clamo e grito aos elementos.

Misericórdia a Deus, socorro aos homens!

À minha voz domina a tempestade,

Como o destino inexorável. — Parte,

Com o estampido da eversão de um mundo,

Um raio que dos céus às águas desce

Em três curvas somente: as ondas sobem

Mugindo, como lobas furiosas,

Açuladas dos cães dos ventos; — rangem

As já pouco seguras tábuas: soltas

Bóiam pela amplidão do mar cavado...

Só restam do navio esparsos restos:

Como as sombras de um sonho em noite enferma,

Correm todos os rumos vagamente.

Achei-me só no mar, nu, sem vestidos,

Sem a riqueza acumulada em anos:

Por baixo o mar abrindo abismos largos,

Cheios de escuridões, de horror mais cheios;

Por cima as tempestades galopando

Caprichosas, tirânicas, coléricas...

Eis que toco na areia: eis que estou salvo.

Em torno lanço os olhos desvairados:

Sinto o embriagador perfume, o hálito doce,

Que vem da terra, como vem das roupas

De uma princesa ou da mulher que amamos,

Ferir-me o olfato: o peito dilatado

Aspira largamente o ar das florestas:

É a Ilha Encantada, a que o naufrágio

Arremessou-me...

A estrela da alvorada

Ria cinicamente em céu já calmo;

Seu brilho sonoroso, como um canto

Madrugador dos pássaros, que acordam

Tumultuosamente, escarnecia

Da minha desventura: As mãos sangrentas,

Os pés em sangue, o coração em sangue,

Mal ferido, uma vaga me arrojara

Longe, à praia arenosa... Uma outra estrela

Vinha surgindo do palácio de oiro:

Era a aurora do cântico de Homero

Com dedos cor de rosa abrindo as portas

Largas do oriente, a sândalos cheirando.

Como era aquela aparição formosa!

Vinha nua também: as tranças negras,

Como chuvas da noite em brancas neves,

Cobriam-lhe as espáduas: os dois seios

Tremiam-lhe no andar, e os róseos braços

Expendiam clarões de astros inquietos:

A brisa acre e vivaz que a fustigava,

Enchia-lhe os pulmões e o largo peito

Ondulava-lhe ao andar lento de deusa.

Ampla a bacia em curvas voluptuosas,

Com a cicatriz no centro, descansava

Em colunas de esplêndido alabastro...

Entre nuvens o astro misterioso,

Como um ninho, onde amor ou dorme, ou vela,

Ia da mão em concha mal oculto.

Viu-me, corou de pejo; — os grandes cílios

Deram sombra às estrelas dos seus olhos:

Houve um lampejo em sua fronte calma,

Como um raio no céu. — Ó doce Virgem,

Ó Virgem doce, austera formosura,

Por que me foges tu, que me não salvas?

Perdido em cima destas rochas calvas,

O mar de amor atravessei por ti.

Contra mim mesmo trabalhei. Levado

Pela vaga, euro e céu, pelo destino,

Vejo-te enfim, ó anjo peregrino,

E sinto que em te ver nada perdi.

Tu não tens para mim uma palavra,

De consolo num gesto ou num sorriso,

Tu, que pareces ser do Paraíso,

Não és de certo, eu creio, o anjo do mal.

Por que me foges? Nu e naufragado,

Deixas-me só em louco desatino:

Foges e cumpres meu fatal destino:

Não te maldigo, não! ser imortal.

Deixo-te aqui, na ilha em que dominas,

Sobre o rochedo que domina os mares,

A história de uns amores singulares,

Que acabou no momento em que morri.

O corvo, que passar em teu palácio,

A vaga, que chegar aos teus ouvidos,

Tudo... ai! tudo dirá: — morreu por ti.

Tu a ouvirás cantada pelos ventos

A minha triste e desgraçada história,

Tu, que tens sempre a palidez marmórea

Das estátuas plantadas nos vergéis:

Não ficarás mais pálida e mais triste

O meu martírio enfim contar ouvindo,

Tu, que não me deixaste o gozo infindo

De morrer e beijar-te o pó dos pés?

Sim, buscarás talvez um pouco aflita,

O que em torno de ti passar sentiste:

Se houve um rumor maior, rumor mais triste,

Que esse gemido trêmulo do mar:

Perguntarás ao céu azul, à aurora,

Faltando ar à amplitude do teu seio:

Quem é? quem foi? quem veio aqui, quem veio?

Toldada a fronte de qualquer pesar.

Nunca mais correrá límpida e pura,

Como torrente líquida e doirada,

Atrás de ti, ó peregrina fada,

A luz do sol, a enamorada luz;

O céu terá o fundo de um sepulcro,

Onde jaz sepultado estranho mito;

Do mar virá um doloroso grito,

Como ao morrer o náufrago produz...

Perdeste uma alma que buscou tua alma,

Como a gota no meio do oceano

Perdida busca, com trabalho insano,

A gota sua irmã, a gota igual,

Dizendo a cada vaga que passava:

— A gota, minha irmã, acaso viste?

E sempre sem resposta, a gota triste

Procura a irmã, no seu correr fatal...

Sentei-me na tua sala,

Tinhas ido passear:

E aquela mudez que fala,

Comecei a interrogar:

Sentei-me na tua sala,

Depois de muito esperar.

O teu jornal ilustrado

Estava em cima da mesa

Entre papéis misturado;

Ficou minha alma ali presa:

O teu jornal ilustrado

Tinhas lido com certeza.

Pus-me a lê-lo, e adivinhava

Que tua mão de rainha

Inda o perfume exalava

Que aquele jornal continha:

Pus-me a lê-lo, e adivinhava

O que o amor adivinha.

Tu não sabias de certo

Que eu viria ali sozinho,

Naquele salão deserto

Sentir-lhe o doce carinho,

Tu não sabias, de certo

Voltarias do caminho.

O teu hálito suave

Naquelas folhas passara;

E o meu semblante era grave,

Como diante de uma ara;

O teu hálito suave

Era o olor que as perfumara.

Respirava ali o encanto

Que tinhas de ti deixado...

Saía como um quebranto

Do jornal abandonado;

Respirava ali o encanto

De que estava repassado.

Depois beijei-o, espreitando

Se alguém por ali não vinha,

E que me vissem beijando

A tua mão de rainha;

Depois beijei-o espreitando...

A sala estava sozinha...

Não era a mão que beijava,

Era a sombra e tanto val:

Pois o perfume lá stava,

Que deixara o original

Não era a mão que beijava,

Era a sombra, ou cousa igual.

Fora melhor o modelo,

Beijá-lo bem loucamente:

Mas enfim não pude tê-lo

Sob o meu lábio tremente;

Fora melhor o modelo:

Mas tu estavas ausente.

Canaã

Hoje, amanhã, depois, sempre após a esperança

Coluna chamejante em frente ao pobre hebreu:

A cerrada corte em marcha, e que não cansa,

De quimeras gentis, e a conduzi-las eu...

Preciso de chegar a essa terra fecunda:

É por ela que me ergo à primeira manhã

É por ela que marcho até a noute funda,

Ó Ofir do meu sonho! Ó minha Canaã.

Pobres, quimeras, vós buscais seu seio olente:

Pobres sonhos gentis, buscais o seio seu;

Vós ides, podeis ir dormir lá; eu somente

Posso mandar-vos, sem poder ir também eu.

Entre o céu azulado, e os esplendentes lagos

Com colares iguais ao colar da manhã,

Sem nunca poder ter um só dos teus afagos,

Hei de ver-te sorrir, terra de Canaã.

Como o sol de oiro puro a fronte te engrinalda!

Que selvas! que vergéis, que força em tudo teu!

Só eu hei de morrer no fogo que me escalda,

Sem nunca mitigá-lo em teu seio!... só seu!...

Voltarão para ti formosas primaveras;

E eu starei a dormir e fora a vida e o afã...

Ficam-te os sonhos meus e as minhas vãs quimeras,

Mulher, Ofir de amor, e minha Canaã!

*

Tu, que lês descuidado o meu poema morno,

Como quem para um poço a cabeça estendeu,

Vês muita água no fundo, e muita sombra em torno.

Um dia terás sede, e morrerás como eu.

Morrerás vendo o poço e o oiro vão das quimeras,

Lançarás aos milhares lá dentro: — e em louco afã,

Hás de morrer de sede e vendo a água que esperas,

Como eu morro de amor em frente à Canaã.

Moriturus te salutat

Sofri em cada dia a mágoa de mil anos,

E em mil anos talvez que eu pudesse viver,

Num mundo, como o vejo, e em meio dos seus danos,

Não gozara sequer uma hora de prazer...

Eu saio de milhões de séculos de dores,

Que tenho acumulado aqui no coração:

Não te espantes se rio, e trago-te estas flores,

Que hoje, para aos teus pés, aqui deixo no chão.

Quero rir um instante em teu aniversário,

E ver do teu sorriso o pálido clarão:

Ó dor, volto ao teu mundo: eu quero o estatuário

Que venha copiar a estátua da aflição.

Será de corpo inteiro em mármore de Paros,

Encostada a chorar numa Âncora de Fé,

Só, sem ninguém, estranha aos seus parentes caros,

Para ficar mais triste ainda do que é.

Onde iria buscar mais exato modelo,

O meu melhor artista, — o velho sofredor? —

Hás de enfim trabalhar com todo amor e zelo

Nesta estátua sombria, ó lívido escultor.

Meu túmulo a requer; pede uma estátua; e aflito

Quando acaso vier alguém aí perto orar,

Caindo sobre o chão em lágrimas contrito

Beijará o sopé da estátua singular...

Ao peso de milhões de séculos dobrado,

O velho que levanta a estátua da aflição,

Que te copia o molde austero, e angustiado,

Com carinho de artista, e com amor de irmão,

Sou eu... o sofredor, que conta milenários

De dor, que se não diz, de sofrimento atroz,

E que, deixando à porta os prantos legendários,

Vem sorrir um instante apenas entre vós.

Vem sorrir, como um astro em noite de tormenta

Esquecido através de uma nuvem do céu,

Enquanto o vento sopra, enquanto o mar rebenta,

Sobre a espuma, que em pós rompe e sai do escarcéu...

É o meu coração: sou eu enfim, que leio

Quanto o teu rosto triste e pálido traduz,

Que quer pra sua estátua um mármore sem veio,

E um coração sem mancha, e puro, como a luz.

Sou eu, que sofro, e curto a mágoa de mil anos

Em cada hora que Deus me permite viver:

E que, vivendo assim no mundo com seus danos,

Não tivera de certo uma hora de prazer:

Seu eu!... o louco, o parvo, o triste, o misantropo

Saído dos cairéis do abismo em que jazeu,

Que vem um só momento, ó casta deusa, o copo

Erguer, beber, e após voltar à dor... Sou eu!

Sou eu, que vendo perto abrir-se a sepultura,

Quero um Anjo de Dor em pé num mausoléu:

E tendo por modelo a tua imagem pura,

Terei junto de mim qualquer cousa do céu...

Non mentire

Tenho tristezas com o prazer de vê-la:

Que mágoas sinto!

E é assim que alumia a suave estrela

Vasto recinto.

Ante meus olhos sua imagem pousa

De noite e dia:

Quero falar-lhe: — a minha voz não ousa:

Nunca ousaria.

Tremo: e não posso nem dizer-lhe a medo,

Pálido e triste:

Ela riria ao ouvir o meu segredo

Em que consiste.

Eu tenho medo, sim! eu que amo tanto,

De me enganar:

Que nos meus olhos minta mesmo o pranto;

Minta o chorar.

Por que deixar esta paixão vingando

De boa fé?

E um velho amor nos olhos meus chorando:

É o que é.

Este amor é um inútil, vão desejo?

Faço-o dormir.

Amo-a deveras? — Ai! eu tenho pejo:

Posso mentir.

E todavia me crucia tanto

Esta paixão!

Mentis, meus olhos? Mentes tu, meu pranto?

Penso que não.

E este barulho de vulcão extinto,

Que acorda assim,

E irrompe em cinza e lava e fogo? — E minto?... —

Pobre de mim!...

O esquecimento é a mortalha amiga

Do coração:

Quem me arranca de mim a mim? que o diga:

Venha o Sansão.

E hei de dizer enfim que estou mentindo,

Que tudo mente:

Que tudo o que a alma ante seu rosto lindo

Sente, não sente?...

Ó meu amor, o meu amor é uma

Mentira vã:

Ai! tu mesma serás mentira, espuma,

Sombra... amanhã.

A violeta de Goethe

Ela estava no prado... ela, a pobre violeta,

Escondida, isolada,

Como um amor profundo em uma alma perfeita,

Triste e resignada.

Eis que uma pastorinha alegre, viva, bela

Vem cantando e correndo,

Pisa a relva sem cuido e nem se lembra dela,

À sombra recendendo.

— Ai! diz a pobre flor, a humilde flor do prado,

Ai! se eu fosse a rainha

Das flores do vergel, que esmaga o pé alado

Da linda pastorinha!...

Um só instante, só... bem pequenino e curto,

Enquanto ela me toma,

E põe-me ao seio... ao seio onde eu lhe vou a furto

Beber-lhe todo o aroma!...

E a pastorinha vem, canta, voeja, ajeita

Ao vento a trança, corre,

E sobre o pé esmaga a tímida violeta,

Que logo... logo morre.

E é como um trono doce o olor que ela derrama

Num invisível jorro:

− Sou tão feliz, — cantando, em seu perfume, — exclama,

Pois que aos seus pés eu morro! —

Depois

Quando um dia contei a história da violeta

Do poeta alemão

A uma bela mulher, a contrariar-me a feita,

Me respondeu então:

— Só mesmo uma violeta assim morrera: as flores

Podem morrer assim;

Podem aos pés de um amante exalar seus amores...

Não aspiro a igual fim:

Sonho de mente enferma em cantos de poeta!...

Eu amo a vida real:

Posso acabar, se quer, se um dia for violeta,

Em vítima ideal... —

Ela não entendera o mito; o que resume

O poeta alemão:

O sacrifício, — o imenso, o amor, — esse perfume,

O grande, — essa paixão.

Era incapaz de ser a violeta, o creio,

Incapaz de querer,

Incapaz de inclinar a fronte a amante seio,

Ou de aos seus pés morrer...

E, como a mais banal mulher, ou tarde ou cedo,

Presa à vida real,

Dar o seu corpo a alguém, um corpo de rochedo,

E uma alma de metal...

Idílio no bosque

A Lúcio de Mendonça

Et corde et genibus tremit

Horácio – Odes

Chamo-te; — foges? — Olha... estou brincando.

Cai uma folha: corres mais, e gritas!...

Com que gesto apontaste-me, chorando,

Os olhos das estrelas infinitas!...

O céu azul tem sempre estrelas, nota...

— Esta sombra? — é de um tronco... (escuta)... um tronco...

— Não anda um tigre ali, naquela grota:

O ronco? — é de água, que ali corre... o ronco!...

Tremem-te a alma, e o coração e os joelhos,

Se a flor treme... não é a primavera?

Se um lagarto fugiu duns ramos velhos...

É o lagarto alguma estranha fera?

Ou sou o vento ao qual a flor se dobra?

Foges do galho, que rangeu às brisas?

Ou crês que mordo, e sou alguma cobra,

Porque me arrasto pelo chão que pisas?...

Olha: eu não sou nenhum leão que mata;

Se o fora, a clina de oiro estenderia

Sob os teus pés... Não deixes vir o dia:

Já mete a aurora tanta luz na mata!

Há no bosque um milhão de mariposas:

Corres? Seguem-te em bando, pressurosas:

São como as almas das pequenas cousas,

Filhas da sombra e do rumor das rosas.

Culpas-me tu, se o enxame, em torvelinho,

Te cega, e pões o lindo pé em falso?

Para: verás: nivelo-te o caminho:

De beijos logo toda a estrada calço.

Paras? Cansaste? — Era já tempo: escuta:

Deita-te aqui... (Vê se te acaba o medo...)

Junto da gruta, à sombra do arvoredo...

E, se houver muito sol, então... na gruta...

Episódio escolar

O estrado estava em meio, e o padre sobre o estrado,

Num antigo espaldar de couro recostado:

Alto, cheio, grisalho, olhos grandes e azuis,

Calmo, como nos pinta a escritura Jesus,

Era o padre José benquisto em toda a escola.

Três janelas olhando os próximos vergéis

Deixavam vir a luz brincar aos nossos pés:

Bancos de pau na sala; e neles assentados

Nós, — o bando infantil, olhos fundos cravados

No livro, cujas mãos sustentam, sem tremer.

A mosca, que esvoaça, escuta-se fremir.

Enquanto o padre lê o poeta latino,

Lançando o verso, como um pórtico divino

Sob a arcada do qual de certo vai passar

Uma ideia soberba, astros a granizar,

A viração trazia os aromas de fora...

O padre, o livro, tudo era grande nessa hora.

Havia um murmúrio, um tímido chilrar,

Que vem de toda a parte, e volita no ar.

Os dois olhos azuis, sérios, grandes, brilhantes

O padre os fez cair entre os seus estudantes:

Na boca havia um gesto indeciso e banal,

Com um sorriso pra o bem, com um sarcasmo pra o mal.

Onze anos eu tinha: e enquanto ao meu retrato,

Era loiro e gentil, franzino e timorato:

Do lar a escola só, ou sozinho a vagar

Ao longo da alva praia, em que rolava o mar.

Não gostavam meus pais desse vulgar passeio,

Que era já para mim prazer e devaneio...

Como os outros estava à espera, atento, em classe.

Chamou-me o padre-mestre à lição.

Comecei

A ler o meu latim de pé, e face a face

Ao estrado, e logo que a leitura acabei,

Pus os períodos em ordem gramatical,

Voltei de novo ao ponto, e encetei a versão.

Eu amava o ranger do verso colossal,

Amplo, vasto, sonoro, e o súbito clarão,

Que saía da frase incrustada em metal.

Tornava-me a prisão da escola, o escuro exílio,

Em cárcere de luz, o poeta Virgílio.

De Ovídio o verso doce e triste, e o seu fulgor,

Não me encantava tanto, inda virgem na dor.

E eu ia traduzindo entusiasticamente,

Pronto o significado, a leitura corrente.

O Padre de repente emenda o meu latim:

— Repita: eu repeti: riu-se, — não é assim. —

Acompanhou a classe inteira alvoroçada

O padre-mestre em sua estupenda risada.

Também, quando queria, era um bom lutador.

Sentiu-me espedaçado ante aquele rumor!

Reboou no meu peito um golpe de alavanca,

Que da calma, em que estava, o coração me arranca.

Gostava mais do sol, que de estudar, porém

Nesse dia o fizera, e julgava que bem.

E dizia comigo, inerte e cabisbaixo:

— Para rirem de mim, qualquer razão não acho. —

— Outra vez — diz o padre; e eu errei novamente.

Renova toda a classe a risada estridente,

Que eu ouvia roncar, como ronca um trovão...

Vi devorar-me um mar, que vem, ulula, assoma!...

Não sei que hórrido aspecto a minha face toma,

Todo o meu corpo é um só gesto de indignação.

Sou agora o juiz que julga, e que castiga:

É preciso afrontar a falange inimiga;

Lançar-me de um só golpe à torrente, esmagá-la,

Ou vencido sair e infamado da sala.

Vou dar uma batalha agora: Ou tudo ou nada.

Como um atleta em luta, a mão um pouco alçada,

Para atirá-la já na juba do leão,

Que vai ser dominado, ou dominá-lo, então

Numa cólera grande a minha voz rompeu...

E os que riam de mim, apavorei-os eu...

Lançou-me o padre o olhar profundo e luminoso,

Sem riso, sem desdém, sem cólera, em repouso,

Como um nauta, que sonda uma estrela a surgir:

Como um sábio, que vê às abas do porvir

Erguer-se qualquer cousa informe, estranha, imensa,

E fundamente nela os olhos fixa e pensa,

O coração pressago, e a mente a perscrutar...

E toda aquela infância, a admiração no olhar,

À frouxa luz do sol, no descambar da tarde,

Achava-se ante mim ridícula e cobarde.

Num profundo silêncio, inda viva a emoção,

Grave, calmo, sem ódio acabei a lição.

Alguma vez que errei, depois daquele dia,

Emendava-me o padre, e ninguém mais se ria.

Da Tijuca ao cemitério

(10 de Junho de 1878)

Na morte do velho amigo Luiz Antonio Alves de Carvalho

I

That sleep, the loveliest, since it dreams the least;

Byron – Lara

Farewell - farewell to thee...

Thomas Moore - Lalla Rookh

Uma pequena mesa em frente ao mudo leito,

Branca toalha em cima e após a cruz de Cristo,

Num prantear confuso o próprio céu desfeito

E as lágrimas da cera acesa em torno disto.

Um ramo de alecrim em vaso de água benta

Numa cadeira ao pé: o mais se adivinhava...

Chorava pelo espaço a dor imensa e lenta...

E um lençol branco um vulto humano agasalhava.

O quarto era vazio... o quarto era deserto,

E ouvia-se não longe o choro das mulheres...

Que fazes tu sozinho aí todo coberto?

Sentes frio talvez? Ó diz-me o que queres?

Que pressinto no horror de tudo que não fala...

Ai! se o próprio silêncio aqui sinto que chora?

Das cousas vagamente a lágrima se exala!

Soluça o espaço todo em que ele dorme agora!...

Apontava-me o bosque a negra realidade:

As pedras que pisei gritavam-me lá fora:

Falou-me ao ouvido a porta aberta na metade!

Que és morto, ó meu amigo, ai! já ninguém ignora.

Quem és tu, pois, visão, sombra, fantasma, vento

Leve com pés de bronze, implacável, terrível,

Que gritavas: — morreu?! ... És tu, pressentimento?

Em vão tremia... em vão te gritava: — impossível!

Tu me envolvias todo em teu hálito impuro:

Eu senti a passar tuas visguentas asas:

Parecia-me ouvir na confusão, no escuro,

Chiar de água que cai sobre candentes brasas...

E entrava a jorro o dia: os pássaros cantavam;

Vinham na viração olores da floresta,

E entre os raios do sol, que as portas penetravam,

A rorida manhã vestia-se de festa.

Desfolhava na alcova esplêndidos sorrisos

Sobre o corpo que jaz, a imortal natureza,

Tal um bobo feroz que faz soar seus guizos,

E tripudia e ri nas cenas de tristeza.

Como uma águia do céu sentia-se a matéria

Cair, lançar-se alegre em lúbrico festejo:

E escutava-se o arfar da boca deletéria,

E ouvia-se o estalido enorme do seu beijo!

Contrito ajoelhei. De cima do seu leito

Ergui o lençol branco e vi seu belo rosto:

Já lhe tinham cerrado os olhos, sobre o peito

As duas mãos em cruz também lhe tinham posto.

Que lividez na face!... e a esplêndida brancura

Dos cabelos em torno em pálidas madeixas!

Que calma! que sossego em toda essa figura,

Que nem ouve o rumor das soluçadas queixas!

Seu lábio roxo, donde uma ligeira espuma

Saía, como se inda o peito respirasse,

E a lividez da fronte e alguns pontos em suma

Negros sobre o palor da veneranda face...

Pareciam mostrar os sítios osculados

Pelos beijos fatais da sombra, que o invadia:

Dos pássaros da morte ao cadáver lançados

Ouvia-se chegar a multidão sombria.

Noventa anos a fronte em rugas lhe cavaram,

Que lhe abriram de certo abras à eternidade,

Como as vagas de um rio as pedras desataram,

Para poder lançar-se ao mar... à imensidade.

Calmo, sublime, doce, era a sua grandeza

O amor do honesto e bom, sem aparato e custo:

Fazer bem seu brasão de sólida nobreza:

Tudo nele era grande... até o horror do injusto!

Entre a neve que luz dos seus cabelos brancos

Repousa calmamente a sua imagem pura,

É um doce luar, que dorme sobre os flancos

De água alvadia e triste em nesga da espessura.

Como a gente respira esta serenidade!

Como se sente bem a gente a estar contigo!

Porém logo será mais funda esta saudade,

Velho, que tanto amei... ó tu, meu velho amigo!...

Quando a entranha da terra abrir a feroz boca,

Onde se há de lançar teu corpo venerando,

Ali te há de dizer a minha voz já rouca:

— Adeus, meu velho amigo... adeus pois... e até quando?

II

... ne´er shall bowers of sarth...

never more.

Hermans - Misc. Lyrics

Giraste como um sol na vida transitória,

Como o sol tu tiveste auroras e ocidente:

Foi tua vida longa escrita em breve história,

Como a vida do que viveu honradamente.

Essas fundas paixões que as almas arrebatam,

Que, como furacões, passam numa existência,

Que iluminam uma hora e noutra hora desatam

Nuvens e escuridões à flor da consciência...

Nunca ouviste, a chiar, encher os teus ouvidos,

De gritaria atroz, de lôbrega fanfarra,

A avareza que mancha as mãos, mais que os vestidos,

Mais a alma, que o corpo... oh! não te pôs a guerra.

Eras uma figura alegre e delicada,

Enquadrada nos teus cabelos cor de neve,

Calma, capaz de estar em seu lugar sentada

Entre figuras de um idílio ameno e breve.

O sol que é sol, também tem manchas e não deixa

De ser o rei da luz, o criador fecundo:

Quem contra a luz do sol por ter manchas, se queixa?

Tão puro como o sol, passaste pelo mundo.

Podes dormir em paz: está teu leito aberto;

Desce à sombra perpétua e funda do jazigo:

Teu leito, como outrora, enfim vai ser coberto:

E o teu lençol de terra é leve, ó! meu amigo.

Somente a tua noite é longa... é muito longa!...

Não te há de amanhecer tão cedo o sol de novo;

E sobre o leito em que teu sono se prolonga,

Hão de achar-te a dormir mil gerações de um povo.

Hão de achar-te a dormir!... E quem sabe se um dia

Nem uma pedra só do erguido monumento

Reste a quem o buscar!... Que possa esta elegia

Salvar teu nome honrado ao eterno esquecimento.

III

Nel monte, che si leva più...

Dante – Paraíso

Do lago a cavaleiro e às abas de um abismo

Sob alegres festões dominando os espaços,

Entre os raios da luz do sol — toda lirismo —

Ergue a capela branca em cruz os seus dois braços.

A porta principal de par em par aberta,

O altar-mor vê-se ao longe aceso e preparado,

E no centro da nave a essa está coberta

De um pano preto e em cima o caixão do finado.

Acesos os brandões sobre os grandes tocheiros

Rodeiam gravemente o triste monumento,

Crepita a luz e fuma a cera, e aos derradeiros

Gemidos se mistura e à surda voz do vento.

O olhar vago e empanado, a fronte augusta em sangue

Inclinada pra o peito e entre espinhos em coroa,

Braços pregados, surdo e cego, e morto e langue

Jesus da própria sombra esta mansão povoa.

Cheguei-me ao morto e lenço ergui, e vi seu rosto

Mais pálido talvez... talvez inda mais frio!...

Chorava? acompanhava o íntimo desgostoso

De tanta voz chorosa e tanto olhar sombrio?!...

Os escravos fiéis, alguns pobres vizinhos,

Filhas e esposa só, que o mais estava ausente,

Sobre o lençol do morto o véu dos seus carinhos

Lançavam pranteando aflita e amargamente...

A alva roupa da morte estendida cobria

Da noite eterna o rosto e quase o acarinhava;

Era o pobre arcabouço um ninho em que estendia

Asas para voar a alma que livre estava.

De mil nobres ações que ninguém conhecia,

Surgia a história e a lenda em lágrimas contada,

E a sua morte assim de chofre parecia

De estrelas a milhões a noite iluminada.

IV

Terraque securae sit super ossa levis.

Tibullo – Elegia

Sentia lentamente as lágrimas caídas

Correrem no meu rosto em par, duas a duas!

Como sempre apertei-lhe aquelas mãos queridas,

Com minhas mãos peguei com todo o ardor as suas.

E enquanto contemplava o rosto macilento,

E a tez de novo mole e azul eu lhe palpava:

Soou mais alto o choro, e ao sopé do movimento,

O grave sacerdote os salmos recitava.

Aos salmos sucedendo os golpes do martelo

Que estrugiam, lançando os ecos na montanha,

Entravam por nós dentro, assim como um cutelo,

Que nos fosse cortando entranha por entranha.

Cerrava-se o caixão que o cadáver continha,

Que nunca mais de então pra vê-lo se abriria:

Ia deixar enfim esta terra maninha

Pelo país azul de um puro e eterno dia.

Ergueu-se o choro mais e mais: pela floresta

Começou de cortar o fúnebre cortejo.

E da longa existência, o que hoje apenas resta?

Tu, saudade, através da qual somente o vejo!...

V

... obscura nocte per umbram...

Virgílio – Eneida

Quando o enterro cortava o flanco das florestas,

Serpenteando ao longo a curva das colinas,

Das cercas de espinhais pelos milhões de frestas

Punham fora a cabeça as rútilas boninas.

A coroa do arvoredo agitada do vento

Lançava no caixão do morto odoras flores:

O sol já no ocidente, em leito sonolento,

Estendia com tédio os últimos fulgores.

A relva luzidia, o raio tíbio e morno,

Do sol era o tapete, a alfombra aveludada,

Por onde íamos nós acompanhando em torno

O féretro descendo a tortuosa estrada.

Como os pássaros já buscassem, pipitando,

Do bosque onde dormir, o galho, a folha, o ninho,

Sobre o caixão do morto alguns de quando em quando

Pousaram, revoando às silvas do caminho.

Tinha chovido muito à noite antecedente:

Estava o chão empapado, a argila escorregava,

E os pobres animais desciam lentamente,

E o préstito de quando em vez também parava.

As pedras soltas que caíram dos outeiros,

Arrancadas do alvéolo ao alvião da enxurrada

Demoravam também a marcha e os derradeiros

Rofos raios do sol deixavam erma a estrada.

Soprava agora um vento úmido e frio, vindo

Das extensões do mar por cima das colinas,

Que ramos, folhas, flor dos troncos sacudindo,

Tornavam cego o chão de um bosque verde em ruínas.

Ora a sombra caía em cheio no caminho;

Mais dura, mais espessa; ora a luz o inundava,

Conforme ia voltando o préstito sozinho

A montanha e de um lado ou de outro ela avultava.

De vez em quando, ao viso, o aspérrimo cabeço

Nu, como um osso escapo a um grande incêndio, e mudo

Como um fantasma, diz num gesto: — eu te conheço: —

Guardando imóvel, como um sábio, o crânio rudo.

Pelo breve cairel de altos despenhadeiros,

Fartos de sombra e arruído e gritos de torrentes,

Donde por vezes sobe onda de suaves cheiros,

Donde cipós briareus erguem braços florentes...

No olho de água a espiar do fundo da barroca,

Vê-se a morte a brincar nos seixos descuidada;

Rufa sobre um tambor, sombras de um torno evoca,

Sai do abismo o terror de enorme gargalhada.

E o fúnebre cortejo, a passos tíbios, lentos

Dos animais tirando os carros, acompanha

O morto, para quem o abismo tem lamentos,

E padres em oração, nos troncos, — a montanha.

VI

Supremum  vale...

Ovídio – Metamorphos

Como a noite surgisse, as sombras oscilantes

Pareciam cair dos bosques em cardumes,

E lançar sobre nós esqueletos gigantes,

Com o incerto e intermitente olhar dos vaga-lumes.

Ninguém falava: a dor e o respeito que vota

Ao cadáver o vivo, impunham mudez grande;

Um respirar mais rude é tudo que se nota...

A natureza só fantástica se expande.

Ela, que se prepara e enfeita pra os noivados,

Que sabe rir ao berço e rir a dous amantes,

Que conhece melhor a cor para os finados,

E é triste à viuvez, quando era alegre dantes!...

Quando chegamos, à bocaina do monte,

Vimos ao longe... ao longe... em vaga claridade,

Sair, como de um lago, à borda do horizonte,

Milhões de olhos de luz da esplêndida cidade.

Mas ao pé da montanha, aí onde ela acaba

E o val começa, ao nosso, outro cortejo aliou-se:

E ambos num só, bem como a vaga une-se à vaga,

Deram um novo adeus ao morto, amargo e doce.

Quase uma hora depois em fuga estrepitosa

O cortejo batia as pedras da calçada:

Passávamos de noite a cidade orgulhosa,

Buscando enfim da morte a última pousada.

Chegamos. — Ecoou o sino: a porta aberta

Largamente, entrou nela o cortejo funéreo:

Os ciprestes de pé, fantásticos, alerta,

Pareciam passar em ronda o cemitério.

Adeus, meu bom amigo, adeus, pois!  De passagem

A tua vida narro em largo e simples traço:

Quem não gosta de ouvir histórias de viagem?

Da tua última... a história em lágrimas eu faço!

VII

... blessed be that tear

It falls for one who cannot weep.

Byron — Occassional pieces

Ó mausoléu marmóreo, em cuja cripta escura

Ele não pode ouvir chorar, nem também chora:

Sobre esta nobre ruína, em lágrima mais pura

Deixo a um friso o meu canto... um pobre canto embora.

Em arco esbelto e roto, em pano de muralha

A meio derrocada, às vezes, vinga a planta,

E as raízes estende, alarga, afunda, entalha

Na rocha colossal e a coma ao sol levanta.

No Coliseu há disto: — Ó célebres ruínas,

De vossos muros sobre um tronco inda enfezado,

Que ao sol da primavera esfolha-se em boninas,

E eterno vive como um plinto mutilado.

Madalena  (poema extraviado)

Fragmentos:

Na catedral

Ave Maria

As três cruzes

Non scordare

 

Na catedral

No altar o sacerdote a hóstia alevantava;

Mostrava a coroa branca;

Do coro o órgão austero a música espalhava

Na igreja a todos franca.

Confundia-se aos sons desse órgão venerando

A aguda voz do sino,

Que, à elevação da hóstia, estava ali tocando

Um sacristão menino.

E o padre continuava, e o cálix de oiro erguia

Às duas mãos seguro:

Entrava a luz do sol pela seteira esguia,

Que lacerava o muro:

Vinha nova, cantando, alegre, como um fio

De oiro lavado e casto,

Meter-se pelo oceano amplíssimo e sombrio

De luz do templo vasto.

E a chama crepitante e vermelha de cera

Entre os santos acesa,

Dava toques de sangue, ao fundo, de maneira

A engrossar a tristeza.

Um candelabro, que de um metim mau transborda,

No centro de uma arcada,

Punha uma nódoa, em cima, à ponta de uma corda,

Como uma águia enforcada.

Rico tocheiro, que perdia pouco e pouco

O oiro do enfloreamento,

Na açucena de folha inda guardava um toco,

A arder, de círio bento.

Era no velho padre a profissão mais forte

Do que a própria crença:

Via-se nele o rosto, o olhar, o gesto, o porte

Numa grande indiferença.

Infiltrara-lhe o tempo um ceticismo vago

Na alma indolente e boa,

Como tolda, por alto, a água clara de um lago

Nuvem, que ao sol revoa.

Folheava ele o missal: a prumo reunia

Uma à outra mão breve;

E inclinada à direita a cabeça alvadia,

Beijava o altar de leve.

Não esquecia um texto, uma fórmula, um ato,

No cerimonial do rito;

Seguia a convenção, garboso, ereto, exato,

Mesmo quase bonito.

Um mecanismo bom, cada ademã assente

Numa flexível mola,

Como a lei, que suporta o sol, que vem do oriente,

E para o ocaso rola.

O povo àquele ofício augusto e antigo afeito,

Murmurava uma prece,

Levando a destra, em concha, a cada toque, ao peito,

Sem maior interesse.

Duas pombas coleando a gorja verde em frente

Doutras que iam chegando

Pelo olhal, sob o friso aberto, de repente

Entraram revoluteando.

Num barulho de arrulho, e de voluptuoso enleio

Saíram logo: atento

Vi à cornija erguer a turba a fronte a meio,

Num banal movimento.

O padre acostumado àquelas revoadas,

Sem nenhum sobressalto,

Sem dar por isso, lia as páginas sagradas,

Ou mais baixo, ou mais alto;

Mas ficou sempre a rir essa nota que ria,

Como um cheiro que passa:

Um retalho de céu azul de fora ardia,

Pendurado à vidraça.

Em suas rugas tinha o ambiente enfumarado

Um ar de incenso podre,

Como o que fica, após o líquido esgotado,

No oco bojo de um odre.

Pus-me insensivelmente a pensar na virtude,

Na dor, no mal sem cura;

E a ver de cada santo a feição, a atitude,

Que lhe dera a escultura.

Tinha cada um não sei que de falso em seu nicho,

Artefato sem gosto,

Trabalho mau, trivial, fizera-o um capricho,

Outro a havia ali posto.

A um retábulo passo; enquadra um Cristo, deixa

Uma impressão de estima:

São os olhos azuis, basta e loira madeixa,

E um nimbo de oiro em cima;

Cerram-se os lábios num botão de rosa, como

Para o sorriso pronto:

Queima-lhe o rosto o sangue; assim se vê num cromo

Rubro infanção de um conto.

Paramentaram-no noutro; é padre: em ostros nada:

Tem o esplendor da louça

Transparente, e nas mãos a hóstia arredondada,

Que estende à grácil moça

De joelhos atrás de um colúmnio, olhos baixos,

Como convém às santas,

Toda de branco, e o véu caindo-lhe dos cachos

Dos cabelos às plantas...

Era uma cópia boa, e essa não me era estranha:

Editada aos milhares,

Cada estampa tentava uma grande campanha,

Brandia um grito aos ares.

Faltava a fé também ao artista; não tinha

Em si o fogo santo,

Que faz talhar um corpo aéreo de rainha,

E envolvê-lo em seu manto;

Que aos apóstolos rasga a luminosa frente,

Aonde o olhar lampeja:

O cinzel do escultor, como o tempo, indiferente,

Perdera o ideal da igreja.

O pincel medieval em si, punha a surpresa

Dos êxtases divinos,

Tinham no rosto o horror duma estranha fereza

Os santos bizantinos.

Mas a tela e a madeira agora retalhada,

Sem fé, pintada agora,

Dão-nos somente a cor de uma bela alvorada,

Alva, rubra, sonora.

E todavia como é bom orar! — Quem crera

Nos celestes amores!...

Quem assim ao sepulcro o corpo seu descera,

Entre todas as dores!...

Com que martírio eu não comprara a felicidade!

Com que imenso desvelo

Eu não sofrera, para achar na Eternidade,

O bom, o grande, o belo!...

Mas!... Tirar da cadeia, em que a alma em vão se agita

Em luta amargurada,

E dá-la triste e só à abóbada infinita,

A tudo a um tempo e ao nada...

Os olhos arrancar da eterna primavera,

Que nos colma de flores,

E deixar percorrer o sol a larga esfera,

Sem beber-lhe os ardores,

Ver-te, Eva escultural, último esforço da arte,

Sumário do universo,

Obra tão grande, enfim, que nem para imitar-te,

Há buril, tela, ou verso,

Porque o mármore humano e vivo, e esplendoroso

É de uma tal matéria

Que uma cópia das mãos de artista enorme, eu ouso

Não crer uma obra seria...

Ver-te, Eva escultural, na pompa triunfadora

Da carne cintilante,

Ver que um céu, céu mais fundo, o teu corpo entesoura,

Para dizer-te: — adiante...

Sentir o coração bater inquieto, ansiado,

À espera de uma aurora,

Ver o rio passar no lábio, e o ter fechado,

Sedento muito embora...

Isto é vinagre, é fel, é cruz, é lança, é cravo,

É Calvário isto tudo!...

Pois é preciso para haurir um mel sem travo

Ser morto e frio, e mudo?

Mas... quando no Cedron caíste, ó Deus, de bruços,

Ergueu-te um companheiro:

E achaste bom que alguém te ajudasse, em soluços,

A levar o madeiro.

O pó vincado à cara, e o sangue enfim lavou-te

Pobre mulher, chorando:

Tu tiveste essa estrela em tua grande noute,

Ó Cristo miserando!...

Nisto o órgão subiu do cantochão pausado

À ruidosa harmonia:

O velho sacerdote a hóstia consumado

Naquele instante havia.

O povo ergueu-se. — Ergui-me, e os olhos desvairados

Lancei na vasta arena:

Eis que, perto de mim, cílios inda molhados,

Passava Madalena!...

 

Ave Maria

O anjo da guarda

O que faz o rugir da catadupa é isto:

O abismo inopinado e o cair imprevisto.

Eras a fonte clara, um fio de água a medo

Correndo à luz da aurora e à sombra do arvoredo.

Eriçavas o dorso às brisas perfumadas,

Como uma ave que encrespa as penas insufladas.

Brilhante espelho, o céu mirando-se nas águas,

Tua vida era assim sem lágrimas nem mágoas.

Passavas como a luz, que pelas sombras chega:

Teu respirar lembrava o rumor que enche a veiga.

Bastou, para ser queda e para ser procela,

Abismos!... um acaso, um só dos risos dela.

O anjo de Madalena

Pérola branca, em leito inda mais branco e puro,

Que auroras embalava eu mesmo em teu futuro!

A pomba dos moitais, o pássaro do monte,

Do céu a nuvem branca, o sussurro da fonte;

A faixa ardente, em que anda envolta a madrugada,

Rosas, lírios, jasmins, e violetas... nada.

Era inocente, assim como tu. — Oh! tu eras

Primavera, que eu fiz de muitas primaveras.

Eu quinze anos levei a apanhar nas campinas

Os lírios mais gentis e as mais puras boninas,

E com elas teci a mais grácil capela,

Coroa, aroma, pudor em tua fronte bela.

De escolhidas cecéns, de alvas nuvens celestes

Talhei teu véu de noiva e tuas brancas vestes.

Teu caminho calcei de flores perfumadas,

E estendi sobre ti minhas asas doiradas.

Era branco o teu sono e branco era o teu leito:

O mesmo Deus do céu te olhava com respeito.

Tinha mil sóis no olhar a te velar, criança:

Eu me dizia: — Tu podes dormir: descansa. —

Assim mesmo iludiu-me o meu irmão impuro:

Quebrou nas garras de asa o teu lirial futuro.

Viste-o, amaste-o, caíste! E descerrar o selo

Do teu virgíneo encanto... ai! foi somente vê-lo.

Legião

Bocas cheias de mel, vibrando como a lira,

Ninhos, onde se enrosca a hidra da mentira,

Onde canta a traição, onde o medo cicia,

Em que sombra andais vós, que sol vos alumia?

Ama! Negar o amor, que a vida em si resume,

Que está no coração, como a flor no perfume!...

Para o amor despertar-te, este foi o meu crime,

Madalena gentil, Madalena sublime!

Anjos e serafins

Este amor não é puro e nada o santifica,

É só o amor da terra e pela terra fica;

Não é o amor que para o céu uma alma leva;

É o crime de Adão, é ainda o crime de Eva,

Que fez dar grito à dor, que perder o Éden,

Para o qual o perdão embalde os anjos pedem.

Não há delito igual e tão grande delito:

Deus cavou contra ele o Inferno no infinito.

Este amor produziu a lágrima primeira:

Lançou na treva eterna a humanidade inteira.

Quando o homem Deus fez, a dor é que fazia.

Nunca o céu compreendeu seu Deus naquele dia.

Entendê-lo, seria igualá-lo em grandeza:

E ele está dentro e está fora da natureza.

Quem já viu, anjo embora, a luz do seu semblante?

Prostra-te, pois, e adora-o, ó vencido gigante.

Coro dos demônios a Lúcifer

Pisa nas trevas, rei destronado e seguro:

Senhor! Senhor! Senhor! será teu o futuro.

Tu que pudeste erguer exércitos, movendo

Essa batalha atroz contra esse Deus tremendo,

Tu só, anjo da luz, mostraste essa ousadia,

Que é por si um triunfo, e só um Deus teria.

Senhor!... Senhor!... Senhor!... És grande e poderoso!

Venceu-te um Deus: porém ele não tem repouso.

Tu dominas, tu só, um tão profundo espaço,

Que lá não chega ainda a sombra do seu braço.

Coro dos anjos

Vosso olhar enevoa um tenebroso orgulho;

Vosso grito de dor sepulta-se em barulho;

Deus tudo ocupa, Deus está em toda parte.

Dizei: — Vinde, meu Deus: — vereis como ele parte.

Metei no coração a mais pequena prece,

Vereis como ele é bom, como logo aparece.

Vinde, arcanjos gentis, vosso perdão é certo:

Orai: para quem ora o céu stá sempre aberto.

Coro dos demônios

Corramos em tropel ao Inferno: não... não... não...

A conquista do céu foi sempre o nosso intento,

De cada anjo rebelde é o eterno pensamento,

Não queremos o céu à custa de um perdão.

Nosso orgulho é talvez toda a nossa virtude;

Há da cólera augusta em nós toda atitude;

E a indignação do forte, inda vencido, espanta;

E o Inferno ruge, enquanto o céu se olvida e canta!

Mas para reaver a nossa liberdade,

O tempo é longo, como é longa a eternidade;

E o bravo, ante o esplendor da órbita infinita,

De um lado a independência e do outro o exílio, o irrita.

Agarramos os sóis, com eles lapidados

Por nós o vosso Deus, e vós, escravizados

Anjos, fostes; sabeis...

Um anjo

Ingratos, maus, perversos...

Legião

Vosso Deus, como cães, argola os universos.

Só quer adoração, não quer ouvir mais nada.

Não esperais talvez nova e horrenda escalada!

Não somos imortais embalde...

Um serafim

A Deus que importa?

Tem sempre o seu perdão em pé, de guarda à porta.

Podeis entrar o céu; a lágrima redime

E lava, por maior que seja o insulto e o crime.

Enquanto o ódio em vós lavra, ele de noite e dia

Novos mundos de amor com seu amor procria;

Ele sendo o leão, prefere ser a corça,

E mete a timidez em sua enorme força.

Legião

Nós e vós, Ele e nós, vindos no mesmo início,

Enchemos todo o Nada, e o Nada é um precipício:

É o princípio e o fim, que jamais será visto.

Mas como fomos nós juntos e alheios nisto?

Ele nasceu conosco, e nós com Ele: eis tudo;

O monstro do infinito é cego, é surdo, é mudo.

Quem o pode conter nas duas pontas? Fala:

Quem é dele senhor, quem a ele se iguala?

Um anjo vencido, à parte

Deve ter, como Deus, o Tempo a mesma idade:

Ele vem do Mistério e vai à Eternidade.

Vai como um vencedor, e vai como um precito;

Saiu e caminhou: ergueu-se ao mesmo grito.

Quem o soltou? De que profundo abismo veio

A voz, que formou Deus e disse a Deus: — Erguei-o?

E tudo isto atravanca e enche a minha memória:

Que vasta, que comprida e que confusa história!...

Como estas trevas são aspérrimas e densas!

Outro, que o observa

Que estás pensando tu?

O anjo vencido

O mesmo que tu pensas.

O outro

O espaço todo é uma imensa sementeira:

Rebentam novos sóis; os sóis são como a poeira.

Que vento os leva e que alma estranha neles vibra?

Um querubim

Foi Deus que os semeou; é Deus que os equilibra.

Ama o teu criador, não queiras conhecê-lo;

É teu dever amá-lo, é teu dever temê-lo.

Coro dos demônios

Teme-o a ignorância só, porque o não conhece;

Não nós. Ele bem sabe, embora o não confesse.

Embora o não confesse... Ele sabe a quem mente,

Porque não é, não foi, e não será somente.

Cria a ignorância o medo, e o medo ergue o fantasma

Ante qual o terror ajoelha, implora e pasma.

Tudo é deus para si, a treva, a luz, a aurora,

Tudo que atrás dos bosques ulula, e canta, e mora:

Tudo que bem lhe traz, tudo que o mal parece,

Tudo que além do azul do céu profundo cresce:

O que há de andar no abismo, o que anda na montanha,

No verme, um grande sol, no sol, pequena aranha;

Tudo é Deus para si, que sente e não indaga

De um Deus que o prende, e o insulta, um Deus enfim que o esmaga,

De um deus de quem é ele o eterno perseguido,

Ele do eterno bem o eterno foragido!...

Arcanjo Gabriel

Quem pode penetrar o desígnio divino?

Deus esconde em si mesmo o seu próprio destino.

Lúcifer

É o universo todo uma agonia imensa...

Arcanjo Gabriel

Falaste contra ti...

Lúcifer

Falo como quem pensa.

Se Deus é infinito, e ainda mais que o infinito,

Tudo pode chorar, ou rir... Tudo está dito...

Arcanjo Gabriel

Tudo é Deus, tudo é Deus, tudo é Deus e mistério...

Vemos apenas um canto do seu império.

Lúcifer

Como quem nada sabe, enredas-te, coitado!

Sabes tu, Gabriel, quem és? Um revoltado.

Todo o céu

Deus existe...

O universo

Talvez!... Deus é bom, se ele existe.

Um pequeno sol

Esta doutrina enfim é só a menos triste.

Um astro apagado

Negar Deus!... Que bem trouxe à pobre criatura?

Lúcifer

Não consola, bem sei; minha doutrina é dura.

Mas... Quem pode fugir a esta fatal verdade?

Todo o céu

Deus foi Deus, e será por toda eternidade.

Podes negar o Deus que triunfou, rojando

A ti e aos teus do céu, ó ímpio, ó miserando?

Lúcifer

Quem é Deus?... Deus, quem é! É como quem diria

A suprema bondade, e a suprema alegria,

Que não criou o Mal, nem o Bem há criado:

Ninguém pensa no bem, sem no mal ter pensado.

Suprema perfeição e suprema beleza

Nunca achou nesse Deus a vasta natureza,

O Mal existe: o Mal não vem de Deus; por isso

Não há Deus...

Arcanjo Rafael

Falas tu, falou um insubmisso.

Lúcifer

Tudo vive à cegueira e ao mal acorrentado...

Como todo o universo, eu sou um desgraçado!

Arcanjo S. Miguel

Pois não queres ser Deus?

Lúcifer

Ser Deus!... Quem o quisera?

Eu sou o sonho, que combate uma quimera:

E que sois vós senão o mesmo triste sonho?

Arcanjo Rafael

        

Quando falas assim, anjo, ficas medonho.

Tu e os anjos revéis escondeis na tristeza

O ódio fundo de que todo o punido é presa.

Tens na voz o tropel surdo de uma batalha.

És o reverso enorme e atroz de uma medalha,

Em que o amor stá no anverso em glória esculturado;

Ante Deus, clarão todo, aí stás curvo e prostrado.

Não perdemos de vós inda a antiga lembrança:

E o arrependido o céu com deus de novo alcança.

Lúcifer

Ah! Facilmente, arcanjo, uma sentença lavras...

Palavras vãs, e só palavras e palavras!...

Um verme

Grande Deus!... Fez o verme e o tempo inda lhe sobra

Para fazer a dor!...

Todo o céu

Deus é grande em sua obra!...

A treva

Eu sou grande também: todo o céu me proclama.

Todo o céu

        

Quando Deus quer, a treva ele transforma em chama.

Lúcifer

Anjos, por que mentis? Como vós tudo ignoro:

Quanto mais oco é o som, tanto ele é mais sonoro.

Coro dos serafins

Vinde, subi aos céus, ó gentis criaturas:

Almas cheias de amor, glória a Deus nas alturas.

Cada mundo é um vaso, onde se lança o incenso:

Belos filhos do céu, buscai o deus imenso.

Uma alma sai da dor, como da noite a aurora;

O belo, o grande, o justo, o bom, só com Deus mora.

Vale a pena uma dor, dobrai um pouco o dorso;

Fazei, anjos revéis, o mais pequeno esforço;

Por que da paz andar tristes e fugidios?

Buscai deus, como o mar buscam todos os rios.

Ó arcanjos gentis, vós fostes como a neve:

São letras de oiro os sóis com que Deus vos escreve;

Ele nelas vos diz que vos amava tanto

Que em vós tudo era luz, tudo espírito santo.

Foi grande o vosso orgulho, e grande o vosso crime;

Mas tudo purifica o seu amor sublime.

Espíritos de luz, como os das virgens puras,

Subi, subi, subi... Glória a deus nas alturas.

Legião

Nós queremos o céu depois de uma vitória:

Glória, a quem quer o céu, mas conquistando-o: glória!

Lúcifer

Ouvistes?... O amor!... Só ele as almas purifica.

Tirem do amor o beijo, e digam-me o que fica.

Quem reproduz a vida em toda a natureza?

É o beijo do amor no colo da beleza.

Temor, recato, pejo, olhar vago, indeciso,

O que chamam amor, que leva ao Paraíso,

Que volúpias não tem, nem tem cantar de beijos,

Nem carne a palpitar em vulcão de desejos,

O amor casto, o amor branco, o amor das virgens puras,

O amor ideal, o amor que anda pelas alturas,

É o amor de horas só; — quando a carne estremece,

O amor, que anda a voar no céu, à terra desce.

Deus o homem criou; depois a mulher cria.

Pois fez bem — para que teve essa nova ideia?

Que culpa tem quem acha o sol pelo caminho,

E encontra a rosa e a acolhe, embora o fira o espinho?

Deus dá-me sede e rasga a bronca penedia,

E não quer que a sacie em tanta água que cria?

Por que me deu a fome e pôs tão perto o pomo?

É loucura ter fome, e não comer: eu como.

Um deus bom não teria um proceder diverso:

Por isso o lapidei...

Tronos e potestades

Horror!... Horror!... Perverso!...

Lúcifer

Por isso o lapidará a natureza toda,

Que anda em meio dos sóis, rodando como douda.

Legião

A natureza toda... A natureza toda,

Que anda como uma douda em roda, em roda, em roda.

Arcanjo Miguel

Quando aos átrios azuis os astros sacudindo,

Quiseste lapidar teu deus, o véu tão lindo

Do céu rasgou-se um pouco e os astros no infinito

Rolaram, como pó desfeito de um granito:

E o Deus, que vos criou da luz mais bela e rara,

Sereno, calmo, triste, a vê-los ir... Parara.

Lúcifer

Triste, parara! Como é triste esta fraqueza!

Deus não pode fugir à terrível tristeza!

O universo

Eu ando em todo o céu, por todo o céu disperso,

O único Deus sou eu, e chamo-me — Universo.

A voz de Deus

Blasfemas, Universo, ouço-te e não te escuto.

Só eu sei quem eu sou...

O Universo

Quem és?

A voz de Deus

O Absoluto.

A sombra

Deste sussurro todo eu só guardo a memória...

Eu sou a sombra vã dessas sombras da história.

A fé

Eu sou a pobre velha cega, e a tudo adoro.

Tenho uma fé, se rio, e outra fé, se choro.

Madalena e o poeta

Era de tarde: a noite o céu toldando vinha:

As suas brancas mãos nas minhas mãos eu tinha.

Não falávamos, não: da tarde o murmúrio

Fazia Madalena austera, e a mim sombrio.

Pesava em nós talvez pesadelo medonho:

Corríamos os dois não sei após que sonho...

Mas um surdo rumor da natureza havia:

Ela escutava e eu... Tocava Ave Maria...

 

As três cruzes

Que é isto, ó Madalena, ó meu amor, que é isto?

De joelhos chorando aos pés de Jesus Cristo?

Que te responde a estátua assim da cruz pendida,

A boca aberta e em sangue, e a fronte ao chão caída?

Falou-te o Cristo? — Ouviste a sua voz divina?

A tempestade da alma, ao ouvi-lo, já declina?

De que profundos céus, de que nuvens escuras

A fonte arrebentou de lágrimas tão puras?

Que falta te manchou? Que crimes lavas nela?

Talvez o crime só de ser piedosa e bela.

As pétalas gentis da alvíssima açucena

Do teu rosto, que dor molhou-as, Madalena?

Pedes perdão a Deus de seres tão formosa,

Porque perfumes deu-te, e tu nasceste rosa?

Porque tiveste dó de mim, que estava triste?

E quando te falei baixinho, apenas riste?

Porque quando eu chorava enfim tiveste pena,

Deixaste-me beijar os pés, ó Madalena?

Pois bem, pobre mulher caída aos pés da cruz,

És o lírio: — sou eu o cravo de Jesus.

Da túnica que o veste és tu a branca alvura:

Eu sou o cepo, eu sou o cálix de amargura.

Deixa-me pois da cruz abraçar o sopé:

Ergue-te tu, mulher, — vê-me chorar de pé.

Castiga-me, Senhor, aos teus pés estou eu:

O crime não foi dela, o crime foi só meu.

A luz foi ela: a luz atraiu-me e caí.

Vi nela o belo, como eu vejo o grande em ti.

O vento, que passou, titilou-me a narina:

Aspirei o perfume à tua flor divina.

O crime foi ser ela a flor e ter perfume,

E eu ter um vaso que sabe guardá-lo, ó nume!

O crime foi ser ela um mar de encantos, — eu

A praia, a areia, o pó, em que esse mar bateu.

Castiga-me, Senhor, o mesmo amor é cruz:

Aos braços dela, pois, crucia-me, Jesus.

Enquanto eu falo assim, a Madalena chora:

Assim do mar, lavada em prantos, se ergue a aurora.

No entanto o Cristo à cruz, boca aberta e sem voz,

Banhada a fronte em sangue — olhava para nós.

 * * *

Isto era à noute: quando à alcova entrou a luz,

Viu pregados os três — cada um à sua cruz.

 

Non Scordare

Para mim o presente é como uma vertigem,

É como o asfixiar de enorme pesadelo;

É como um carro solto em meio da caligem,

Do pó que sobe, — sem que eu possa mais detê-lo

No declínio, onde o arrasta a queda já tardia!

Morro em meio da noite: e a noite é bem sombria!...

Mas vou por esse abismo abaixo sem ruído,

Como uma sombra vã dos cantos ossiânicos:

O herói jaz sob a sebe inane e adormecido,

E o seu nome inda espalha horror e susto e pânicos,

Inda aparece armado em cima dos outeiros,

E é vapor que se extingue aos aurorais braseiros.

Jaz em mim agarrado um cadáver nojento,

Balouçado aos tufões da vida atormentada,

Cobre-me os ossos hoje o manto lazarento

De esquálida velhice à eterna paz roubada.

As flores da saudade e as pálidas boninas

Trepam por este monte ondeante de ruínas.

Irei daqui a pouco ao perene cadinho

Onde tudo transforma a fértil natureza:

Serei um lírio, uma ave, um verme, um musgo, um ninho,

Ou rosa num rosal, ou junça na impureza:

Serei da terra ainda e criarei raízes:

Serei do céu talvez e serei dos felizes.

Seja o modo qualquer por que manifeste

A eternidade em mim aglomerada; — ou venha

No universo a fundir-me, ou na Sião celeste,

Hei de encontrá-la um dia: ou verme, ou flor, ou penha,

Elemento a elemento ao seu meu corpo unindo

Viveremos nós dois um só viver infindo.

E nossas almas hão de, alagando o infinito,

Como a gota de luz que embebe o espaço inteiro,

E volta para o sol, soltando um tênue grito,

Canto de cotovia ao alvorecer primeiro.

Como um par que se uniu, depois de andar disperso,

Fundir-se e renovar-se em tua alma, universo.

Ó alma do universo, ó Deus, ó fonte pura,

Donde a vida caudal corre perenemente,

Tudo se purifica e tudo se mistura

De tua alma lustral na límpida corrente:

Quando queres de luz enches a concha cérula,

E o carvão é diamante, e um pobre verme é pérola.

Pousa em torno de mim uma serenidade,

Igual a que descubro em toda a natureza;

Do que pode ter medo enfim a eternidade?

Para nós o que é morte, o que é sânie e impureza,

Para sua ciência onipotente, apenas

São rosas aos milhões, são milhões de açucenas.

Sobre escombros mortais dos campos de batalha

Estende o sol de luz o manto seu purpúreo:

Parece gargalhar o cedro, que farfalha,

As rosas do rosal do rústico tugúrio,

E as borboletas vão em voos doudejantes,

E passam colibris em chuva de diamantes...

Passa aquele sorriso e aquela gargalhada

Por toda podridão dessa quieta planura.

O sol não cerra o cílio, o ambiente em luzes nada:

Que quer isto dizer à enferma criatura?

Sobre aquela hecatombe aquela grande calma

Vem da alma do universo, ó Deus, vem de tua alma.

Eu conto ruga a ruga, e ruína a ruína

Deste velho arcabouço ainda equilibrado,

E sinto que o tufão da morte, que me inclina,

Vai transformar ainda um corpo transformado.

Ó Deus, eu sinto em mim pesar a eternidade!

Que nova forma vou ter eu na imensidade?

Qualquer que seja a forma, ó Deus, que esteja eu nela,

Lodo ou pérola, enfim, verme ou linda avezinha:

A forma hedionda de hoje, é amanhã a bela;

Continuamente tudo altera-se e caminha;

Só tu, essência pura, ó alma do universo,

Só não te alteras tu no teu viver diverso...

Mas se um dia outra vez nestas fatais mudanças

Eu reviver aqui contigo, que revivas,

Não tendo inda perdido as minhas esperanças,

Do meu amor guardando ainda as chamas vivas,

Pesar de toda dor, pesar de toda pena,

Quero continuar a amar-te, ó Madalena...

 

Tentativa de posse

I

Deixa-me amar-te: é só o que me basta:

Que saibas tu que eu te amo, e eu que o consentes;

De invisíveis, fatídicas correntes

Cada um elo me prende a ti e arrasta.

Abre-se em teu olhar meu céu de encantos;

O teu amor é vida: ando agarrado

A ela, como ao escolho o naufragado:

Acho alegria nos meus próprios prantos...

Quando choro por ti e estendo o braço,

Para envolver-te o corpo melindroso,

E encontro apenas, no meu fundo gozo,

A sombra tua iluminando o espaço...

Quando vou ter contigo, no ver-me, estendes

A mão, que devorara com meus beijos,

Que apenas toco, e apenas meu desejos,

Ou loucura, ou delírio, Amor, entendes:

Mas, com pena de mim, ficas sentada

Ao meu lado, onde estar é star num Éden;

Os meus lábios amor jamais Te pedem...

E é minha alma uma abelha em ti pousada,

Nadando no ar, que de teu seio ondula,

Bebendo o aroma, que teu corpo exala,

Que em torno a ti se estende, aclara, azula

No surdo e longo respirar da sala...

II

Tu, sereno luar das noites minhas,

Luz de minha alma, que outra luz não goza,

Luz de um sol em que os sonhos meus, formosa,

Se banham como um bando de andorinhas,

Não ouves o fragor dos meus olhares,

Quando te encho de tépida carícia,

E te agradeço a edênica delícia

De haurir junto de ti os mesmos ares?...

Não vês que cais, rolando suavemente

Dentro de mim, que te devoro toda?

Não ouves uma cotovia douda

Cantar na alva da luz de ti nascente?

Como ao ouvir algum pássaro que trina,

Fica-se imóvel nesse enleio, e quedo,

Para que ele não fuja do arvoredo,

De onde desfia a música divina,

Serei junto de ti austero e mudo,

Sem o ai glauco do mar em torno à sirte,

Eu, que estou a querer pedir-te tudo,

Nada pedindo, para ter-te, e ouvir-te.

E, quem sabe? não sai o mar do leito,

Não cobre um dia a sirte endoidecido?

E o vento, quantas vezes sem respeito,

Tem suspenso a fibrilha ao teu vestido?...

III

Quantas vezes a olhar-te absorto e mudo,

Sem que o possas ouvir, digo comigo:

— Ela é de um sangue real, heroico e antigo,

É do sangue de um deus: eu não me iludo.

Nasceu princesa num ideal Estado;

Lê-se, como num velho pergaminho,

No gesto afetuoso e delicado,

No olhar, que inda se ignora, e é um carinho:

É do País Azul da Formosura,

Tem as garras da raça em cada traço,

Relembra-a o chão, que pisa, a cada passo;

Quando a luz a não canta, o sol  murmura.

Não sei se ela ouve o som da íntima lira

Como um eco longínquo e fugidio,

Neste silêncio em que seus fastos crio,

Nesta mudez que em mim fala e suspira.

Quantas vezes a rocha silenciosa

Nos mostra o filão de oiro do seu seio

Num ponto apenas, que revela o veio,

Como estar perto, pelo aroma, a rosa.

IV

Ó ideais, como os cristais mais finos,

Qualquer atrito em vós vos espedaça:

E vós só tendes para a humana raça

Vagos, órficos sons de vagos hinos:

Ecos apenas das canções mais belas,

Murmúrios azuis, verdes aragens,

Que vão rolando as flautas das folhagens,

Sem as bocas se ver que sopram nelas.

É isto apenas a sonora lira,

Que tem na voz o canto da sereia:

Tênue fio de luz, que nos enleia,

E à eternidade e aos vermes nos atira.

Ouve, o que ouvir só podes dos videntes:

Há detrás do universo um deus faminto

Devorando um e um os sóis, eu sinto,

E ouço, ao esboroar, ranger-lhe os brancos dentes.

Como um Saturno, os filhos devorando,

Engole lento e lento a natureza;

Não tem pressa; isto é seu, seu com certeza:

Mas quando acabará? Quem sabe, quando!...

E nós cremos que a vida continua,

Que há prados do outro lado, em flor ardendo,

Que há manhãs largas, sol maior contendo,

Que há noites brancas, em que sonha a lua...

Oh! tudo será bom, se o amor, sorrindo,

Cobre a existência com seus flavos beijos,

Se as horas cantam rútilos arpejos,

Em chuva de oiro, grão e grão caindo...

V

Sabe alguém que destino amor segreda

Quando quem ama o amado ser tem perto?

O cisne branco, que buscava Leda,

Achou no rio um cúmplice de certo...

Sei que nada farei, por mais que faça,

Rugindo dentro do meu sonho ardente:

Mas deixa-me adoçar-te o leite quente,

Que tua mãe te oferece em branca taça:

Chegar-te aos pés o banco de veludo,

Pôr-te à nuca de lua nova em fouce

O travesseiro, enquanto o modo estudo

De dar-te ao corpo um cômodo mais doce.

Quando roçar-te a fronte, e inda a madeixa,

Quando pegar-te com mais força o braço,

Vendo que de propósito o não faço,

Sei que tu não terás a menor queixa...

Tu não farás o mínimo reparo:

O costume de ver-me noite e dia

Dilui o espanto do imprevisto, é claro,

E invisíveis prisões entre nós cria.

Assim quase a descuido, e lento e lento,

Batendo a luz do dia asas sonoras,

Curvas ao peso do rumor das horas,

Enchem delas teu lânguido aposento:

É natural, lá quando o céu alvora,

Ouvir cantar as brisas matutinas,

E o clangor dos clarins pelas colinas,

Com que os pássaros ruem, azuis em fora.

É natural que a vida assim vivida,

Como um lume, que perto acende o lume,

Crie um íntimo fluido em nós, querida,

Que, o que tem de melhor, amor resume...

Convenho amar-te pois: mais nada quero:

Star ao teu lado ao menos um momento,

Em ti o olhar, em ti o pensamento;

Sei esperar o que desejo: — espero.

Como um pequeno grão um tronco encerra,

Como contém um astro a nebulosa,

Quem sabe se este grão lançado à terra,

Não tem do amor a palma vitoriosa?...

A haste flexível, que ao nascer inclina

Qualquer vento que passa, e quase a arranca,

Mais forte, um dia, ostenta a flor divina,

A rosa como tu, cheirosa e branca...

VI

Sinto que o céu se afunda e Deus recua

Ante o céu, e ante o deus, que em mim levantas:

Ou que o universo vem beijar-me as plantas,

Só em pensar numa carícia tua.

Podem dizer que eu sonho e que exagero:

Quem desceu à minha alma, abismo imenso?

Que isto é assim, afirmo: o disse, e o penso:

Sou o que queres tu; não o que eu quero.

Um espaço estrelado inda não visto,

Um amplo ambiente puro, que imagino,

Tenho, ao ver o teu rosto peregrino:

O que sou junto a ti, não sei; sou isto:

Sou a pedra na mão de Buonarroti,

Nas mãos de Sanzio a tela desdobrada,

Sou o pão que consagra o sacerdote;

O que queres, eu sou: — não sou mais nada.

Podes deixar-me imbele a um canto, e inerme,

Se não tentas minha alma a ti erguê-la;

Sei que de ti sair não pode o verme;

Sei que de ti sair só pode a estrela.

VII

Mandes, e irei a música escolhida

Buscar a sala do piano, e à volta

Achar-te-ei ante o espelho distraída

Arranjando os cabelos em revolta.

Direi comigo: — ela é mulher, procura

Ver se inda doente e pálida e sem cores,

Guarda a linha de sua formosura,

Se o aroma dela irá onde tu fores.

E no cristal do espelho, em que se mira,

Verei num tronco a brisa, que murmura,

Entre os galhos um ninho, e em cima a tira

Do céu, como se fosse uma pintura,

Céu, que vem da janela um pouco aberta,

Por onde a luz os ombros seus metera;

E ela, que cria a alcova então deserta,

Ante a luz lirial foi luz de cera...

Foi como o fundo escuro de uma tela,

Donde se ergue santíssima Madona,

Pálida sempre, virginal e bela,

E a cujos pés a serpe se abandona...

Dir-te-ei, ao ver-te assim, já levantada:

— Veja, como vai bem, como melhora:

Até parece o tênue albor da aurora,

Antes de em fogo arder a madrugada...

VIII

Lembro: uma vez tardaste em vir do campo:

Vestias leve, transparente gaze:

A lua estava na segunda fase;

Veio à fronte poisar-te um pirilampo,

Como primeira estrela que surgia

Por noite azul de uma alma de inocente,

E que de dentro erguer-se parecia,

E ali brilhava inopinadamente.

Outros poisaram logo depois disto,

Outros de um brilho não interrompido,

Por cima da cabeça, e em teu vestido,

Como a amarela auréola de um Cristo...

Disse-te: — Um cheiro bom de ti tu deitas...

Tu respondeste, e a tua voz chorava:

— É noite, oh! Deus! pisei minhas violetas...

Noite digna de ti, tão bela estava!

Tu voltaste comigo à casa, e pude

Notar que, rindo, me entregaste o braço:

Era a força, era a graça, era a saúde

Que em ti, formosa, caminhava a passo:

Tinhas esse clarão que a fronte atinge

De uma mártir lançada na fogueira,

Mas cuja chama inócua a deixa inteira,

E só do nimbo de uma santa a cinge...

Como te vi então, ver-te-ei em breve,

Como o lírio que sai da sarça ardente,

Erguida a fronte, o andar seguro e leve,

E em torno a ti a terra, e o céu contente:

Cada flor a cheirar do teu perfume,

Cada gota a mostrar a tua imagem,

Alegre tudo, como se a passagem

Fazendo andasse por ali um nume.

IX

Por que a olhar dentro em mim, a ver, te cansas?

Se eu nunca achasse em ti qualquer conforto,

Eu cairia, como um homem morto,

Do cimo azul das minhas esperanças,

Como se despenhado de alto a baixo

Por um abismo lôbrego e medonho,

Eu deixasse no céu todo meu sonho,

E achasse o Inferno, em que inda me não acho:

Como um titão a escorregar de um astro,

E a rolar fulminado por um raio,

Depois que quebra atônito o desmaio,

Vê-se em ferros a um monte, e preso, e a rastro...

Sinto em minha alma às vezes o barulho

Desta queda, da audácia assim vencida,

E uma montanha sobre a minha vida,

Sem todavia lhe esmagar o orgulho...

Ter um sol por um fio de cabelo,

E ouvir o sul, que vem, que rui, que passa...

Não há, para temer uma desgraça,

Ter susto a um vago e estranho pesadelo?

Pois se inda incerto eu tenho o meu tesouro,

Se em mares novos busco-o, ó ser divino?

Mas em ti, — creio sempre em meu destino —

Hei de encontrar meu velocino de oiro...

X

Se eu pudesse dormir um pouco, farto,

Ébrio um pouco do aroma, que em ti sinto,

Fizera do silêncio em torno um plinto,

E do meu sonho a alma do teu quarto:

Se respirasse nele diluído

Todo o desejo, dentro do qual ando,

Talvez um ímã fosse-nos levando,

Um para o outro rápido atraído,

Como funde uma gota noutra gota,

Como um sol noutro sol se precipita,

Como safiras de cadeia rota,

Como estrelas da abóbada infinita,

Duas num mesmo ponto, sem que houvesse

Alguém entre elas lhes deixado espaço,

Duas num fio só, e a sós num laço,

Como duas mãos unidas numa prece.

Como há mundos, que fogem de seu mundo,

E vão buscar no céu lugar sozinho;

Há outros, que voltando ao mesmo ninho,

Querem ambos viver no céu profundo...

E anda o amor, grande deus, em si pensando

Como unirá o que há no espaço; e creio

Que há de um dia um só mundo haver, pulsando

Um só enorme coração no meio.

Mas enquanto não bate a hora aprazada,

E há grãos de areia ainda no clepsidro,

Deixa-me estar ao pé de ti, guardada

Como a Madona santa atrás de um vidro.

XI

Este clamor de um fogo, que incinera,

Que anda em minha alma, e a envolve, e a queima e a gasta,

Que o ambiente aquece, e esta ampla e funda esfera...

Ah! se este fogo tu não sentes... Basta...

Serás como esse doente que se queixa

Que todo objeto, que ele em vão segura,

Mesmo quando nas mãos o vê, e o fecha...

Não tem jamais, não tem: e o afirma, e o jura...

Ah! perdoa-me... Escopro, e Paros branco,

E o tempo, e o gênio arranca um deus à pedra:

Sei eu o que estremece no teu flanco,

Que sentimento bom lá rompe e medra?...

Pode bem ser um dia escape, e parta,

Se não se faz este divino acorde,

E eu seja a borboleta, que recorde

Ter sido, há pouco, esquálida lagarta:

Ah! que recorde vagamente, como

Tu, quando a nobre e triste fronte inclinas,

Ter sido ou lírio, ou cravo, ou rosa ou pomo,

Tu, que em ti inda o odor tens das colinas.

Mas... fel em que dos olhos teus destiles,

Neles cruzem relâmpagos medonhos,

És a minha loucura; enfim que queres?

Irmã gêmea de Vênus e Amarilis.

Não minto, não: não creias que exagero;

És a minha loucura; enfim que queres?

Eu te prefiro a todas as mulheres:

Como é que o raio o píncaro prefere?

E, mau grado a razão, mulher, eu cuido,

Que em ti buscamos nós a chama, como

O pássaro a serpente o inseto o pomo:

Atrai dois seres sempre o mesmo fluido...

Por que Hércules maneja o fuso e a roca,

Em que Onfale, a esplendíssima rainha,

Do herói triunfante a augusta clava troca?

Mau grado meu, amar-te é sina minha...

XII

Digo-te agora, e digo-te com pena,

Ninguém te amou, como eu, nem há de amar-te,

E ela, Vênus se encontra em toda parte,

E em toda parte existe alguma Helena:

Como tu, tem consigo o mesmo encanto;

Podem ter, mais que tu, maior clemência;

Podes martirizar-me esta existência;

Podes, num beijo só, secar meu pranto.

Por que não desatar esta cadeia,

Que arrasto humildemente como escravo?

Basta um momento só mostrar-me bravo,

Mundos pese do amor mais forte a ideia.

De uma sombra qualquer terei eu medo?

Mas nisto estou, — disto sair não posso:

Sou como o mar, a minha vaga engrosso,

E à praia fico em pó num vão rochedo.

Ali o rochedo és tu, donde esmagado

Rolo cheio de espuma amarga e feia:

Mas olha bem, vês tu toda esta areia?

Já foi também penedo levantado...

XIII

Falei demais... se fala o meu orgulho...

É a sombra da fera em mim que passa:

Não ouviste rugir uma ameaça

O verso meu, num rápido barulho?

Ai! o que somos nós quando se deixa

Cair do rosto a máscara que engana,

E na cólera vã de inútil queixa

Um ronco sai, em vez da voz humana?...

Olha, Amor, é assim o mundo todo:

Na alma, no corpo, à festa, ao leito, à mesa,

Anda conosco a nódoa do seu lodo,

Sempre dentro de nós a fera presa.

O homem mergulha em lama eterna, e o cheiro,

Que ela tem, ele tem num rir, num gesto:

Julga-se grande, sei — não contesto:

Crê no areal o leão ser o primeiro,

Como a aranha a primeira em meio a teia.

É um assalto a vida inteira: escuta:

Quem sai inócuo e incólume da luta?

Quem não traz o aleijão, que o marca e o afeia?

Quem sem gilvaz saiu, dizer quem ousa?

A hipocrisia humana obriga a tanto,

É talvez uso velho o nosso pranto,

Nosso riso talvez bem triste cousa.

Quem não ama a nudez de um Ticiano?

Mas o falso pudor lança o martelo

A cantar sobre o mármore mais belo,

E sobre o fogo larga o augusto pano.

Tudo... tudo é banal, ou vil, ou nulo;

Nós não somos de certo o que seremos:

Somos aí talvez qualquer casulo:

E o que há de bom é inda o amor: — amemos.

Mas o que eu quero amar é um ser divino,

Que pelo menos seja casto e iguale

No seu perfume o lírio bom do vale,

Na harmonia a harmonia astral de um hino;

Não a mulher com gestos de criança,

Um Newton no saber, e prevenida,

Que é abutre e chacal, e não duvida

Dar por oiro o oiropel de uma esperança;

Que amor dá num enleio, e ódios oculta:

Não a sereia, cuja voz é bela,

Mas cuja cauda o monstro, que revela,

Na água, em que anda a cantar, ela sepulta...

Que outra mulher eu buscarei no mundo,

Quando te tenho a ti, gentil criatura:

Olha: não pode haver prazer mais fundo

Quando se tem ao pé quem se procura.

XIV

O que anda perto e longe, e embaixo, e em cima,

Tudo quanto adivinho, e quanto abranjo,

Melhor que a luz o teu olhar anima.

Melhor que a luz o teu olhar anima.

Sinto por vezes ondas bravas: — cismo

Que hei de um dia também, lançado nelas,

Ver-me levado às garras das procelas,

E, sem mais poder ver-te, entrar no abismo.

É a dúvida, a esfinge, o pó, a espuma,

O mal que todo bem termina; a cauda

Da sereia, o banal cansaço em suma;

Da história o fim no verso de uma lauda.

Beleza, graça, força, em que consumo

Toda flor de minha alma, e a vida inteira,

Tens só a eternidade da poeira,

Só a imortalidade tens do fumo?

Que és, universo, e o ponto em que me agito?

Ensaio tudo, tudo inda não feito.

Ai! quem me pôs o coração no peito,

E dentro dele esta ânsia de infinito?

XV

E amar-te, sem saber por quê: levado

Para ti, como o rio o mar procura,

Para perder-se em sua noite escura,

Depois de ter gemido em vale, em prado...

E todavia, bem como o rochedo

Cobre o musgo, de beijos te cobrira,

Melhor que o manto de oiro e de safira,

Que o corpo esconde à Virgem de Toledo...

Melhor que o manto azul vermiculado

De sóis, com que os pintores de Veneza,

Num excesso de amor, tem procurado

Fazer de uma Madona uma princesa...

XVI

Ah! se a alma do beijo em seu trespasse,

E a alma do aroma de uma flor, que finda,

Por sua vez no mesmo céu entrasse...

Fora um alívio ao coração ainda...

E soubéramos nós que cada beijo,

Como o aroma da flor em cada ramo,

Repetiriam para sempre — o amo —

Da alma do morto amor num longo adejo.

Por que não crermos neste céu clemente,

Na alma do aroma, que há em cada boca?

Tem cada fé a sua história louca

Para os que não têm crença ou fé somente.

A alma das cousas céus eternos pedem:

Posso amanhã deixar de amar-te; posso

Ver morrer quanto bom foi meu, foi nosso,

A alma do amor, que morre, entra em seu Éden...

Que olhar escrutador em mim tu lanças.

Estas contradições são nossa vida:

Nós a levamos sempre repartida

Entre os desejos, entre as esperanças...

XVII

Se por fugir-te, um deus dizer-me viera:

— Abro-te a porta da prisão, — deserta.

Não deixara a prisão, e maldissera

Do meu cárcere róseo a porta aberta.

Não vês, falena, que tisnaste as asas?

Por que tu voltas, pobre verme, à chama?

Amas a luz no fogo em que te abrasas:

Assim volta, assim arde, e cai quem ama.

Minha princesa pálida, e doente,

Ah! poder que eu pudesse e desejaras,

Cercara o Olimpo todo eternamente

Teu leito, como a mais gentil das aras.

Pálida assim, ó medieval princesa,

Em teu castelo, como num sacrário,

Eu ante ti sempre guardara acesa

Minha alma, como um rico alampadário.

XVIII

Quando às vezes nos teus meus olhos cravo,

Levo desdéns de um príncipe orgulhoso,

Quando os tiro de lá, eu desço escravo,

E, como escravo só, erguê-los ouso.

Como num canto escuso de nossa alma

A mancha de Caim em nós perdura,

É meu orgulho a minha nódoa escura:

Sem teu amor não viverei com calma.

Ou te hei de possuir, meu velo de oiro,

Nisto todo meu gênio e esforço ponho;

Ou morrerei sem ter esse tesoiro,

Abraçado à bandeira do meu sonho.

Dirão: — Que grão de areia fez tal muro?

Vê no argueiro a grandeza de uma esfera?

Mas o que há que não seja uma quimera,

Agora, e no passado, e no futuro?...

Quimeras? Ocos sons, mais ocas vozes...

Sei: a verdade é crime; e o crime é triste;

E como as águias, como os albatrozes,

Só para as altas regiões existe...

XIX

Num pensamento de olhar triste há disto:

Chega como andorinha que atravessa

Monte e vale, e não para, e não tem pressa,

Só, como a que o inverno há só previsto...

Não sei se humilde eu sairei da luta,

Se conquistar não te puder um dia;

Se meu orgulho unindo-se à agonia,

O desespero deste esta outra escuta.

Se embora prometendo-se doçura,

Para com quem minha alma era um só culto,

Negue na hora suprema amor e indulto

No delírio de quem perde a ventura.

Eu morrerei talvez de dor tamanha,

Como depois da luta o leão vencido,

Tendo o leopardo ao pé de si caído,

Morre e estende-lhe ainda o olhar que arranha.

De nós a natureza não deserta.

Ai! quando a boca da ferida fala,

Não é o amor que ela em canções exala,

É a dor que a abriu, e que a conserva aberta.

Quem morre amando o que despreza? E é justo?

Quem morre e beija o ferro que o trucida?

A cruz se afaga, em que se perde a vida?

Jurou? e afirma a jura o instante augusto?

Quem pode crer?... Alguém há que preveja

Que asas de oiro há de abrir um sonho lindo

Quando em nós a esperança rui, caindo

Com todo peso de uma velha igreja?...

Fatal necessidade que degrada.

É cada um homem síntese da história

Da multidão: um dia o sol da glória,

Outro a sombra da dor: — depois mais nada.

Quem foge à irredutível realidade?

Isto é assim: que vale o oiro da taça?

O valor que lhe imprime a humanidade:

Tudo vem, sobe, e brilha, e desce, e passa.

Colhamos o momento bom que chega;

A flor que nos empresta a primavera,

O fruto de oiro que depois se espera,

A verde luz que forra o chão da veiga.

Aproveitemos nosso paraíso

Em cada ponto em que a fortuna o plante,

E gozemos num beijo, ou num sorriso,

Da eternidade desse breve instante.

Em cada instante em nós há sempre um morto,

Que ressuscita e vive outro momento:

É ir, enquanto vai soprando o vento,

Em baixel de oiro, em mar azul, ao porto.

Enquanto em nós a vida se renova,

Vamos: é doce o céu, como um veludo:

Viver... viver e amar... No fim de tudo

Abre-se o abismo, a sombra, o horror... a cova.

XX

Temos todos em nós do belo o instinto,

Que firma em todos nós um grande império:

Não descansamos ante algum mistério:

Dentro em nós mesmos Deus... um Deus eu sinto.

Um Deus fluido circula em nossas veias,

À nossa carne e sangue se mistura:

Gira dentro de nós dor e ventura:

Cair, homem, com isso inda receias?...

Basta, para elevar-te, este desejo:

Esta ambição indômita te arrasta;

Não há esfera por mais funda e vasta,

Em que não deites teu olhar, não vejo.

Os astros pesas, já domaste o raio,

Cada fio de luz pões ao teu mando;

Vais indo sempre: sobes caminhando

De conquista em conquista, e ensaio em ensaio.

Teu fim é procurar matar a treva:

Por que pensas que não te elevarias

Sem esse Deus do amor e ódio, que crias,

Quando em ti mesmo tens o Deus, que eleva?

Cada verdade está somente nisto,

Ninguém de nada mais saber precisa:

Não vês que um Deus num homem se humaniza?

Cada um homem não é um Deus, um Cristo?

Nós existimos como existe o vento,

E sol, e mar, e árvore, e penedo;

Tem asas para o voo o passaredo,

Nós temos para o voo o pensamento.

Outros céus? Em que espaço eles se somem?

Nos céus vemos a luz, nós céus vivemos;

Outro espaço, outros céus jamais teremos;

E aonde vive a estrela, aí vive o homem.

XXI

Reconheço-te uma alma feminina,

Punhal brilhante, como o luar na água:

Tu poderás sorver-me a eterna mágoa

Com tua língua esplêndida e ferina:

Tu poderás beber-me o sangue às veias,

Riscar do coração a imagem dela,

Arrancar-me ao rigor desta procela,

Erguer-me acima das tremendas cheias

Desta paixão torrencial, que leva

A minha vida em redemoinho e espuma;

Tu me salvaras, sim pondo-me em suma

No grande ninho da mais grande treva:

Tu me salvarás, se eu jamais pudesse

Ter uma luz exígua de esperança,

Que me dissesse: — Alma sem fé, descansa...

Nela o amor vai nascendo; o amor já cresce...

Mulher, se espero ainda, é porque eu amo;

Eu sou como a manhã que espera o orvalho,

Tu és a flor que cheira em cada galho,

O pássaro que canta em cada ramo.

XXII

Sinto minha alma ajoelhada sobre

Este ar bendito que te enquadra, toda

Vestida de alegria, como em boda

De brancos véus a noiva em flor se cobre.

Sinto que tudo está contente em torno:

Que tudo em gesto augusto e sério toma:

Que a alma das cousas por aqui assoma,

E fala em cada fita, em cada adorno,

Em cada som, que molemente ecoa,

Em cada raio, que nos lança o dia,

Que um deus, para ser bom conosco, cria

De instante a instante qualquer cousa boa.

Vale um momento às vezes toda a vida:

No meio das paixões em que me agito,

Vejo que o instante é parte do infinito,

E o infinito às vezes para o amor, querida.

XXIII

Qual se Mazeppa no corcel passasse,

Ao flanco atado, em torvelim medonho,

De repente por cima do meu sonho

Voa a esperança, a morte atada à face;

Como Mazeppa, essa esperança minha,

Talvez à aurora do seguinte dia,

Há de o povo de minha fantasia

Erguê-la viva e a proclamar rainha.

E tu, meu sonho, e tu, minha esperança,

Hás de cair no meio dos meus braços,

E aí ficar nos seus eternos laços,

Como um astro em seu ninho azul descansa.

Terei em mim a calma profundeza

Do céu que sobre nós se arqueia imenso,

E em ti a força, que segundo penso,

É que dá vida a toda a natureza...

XXIV

Há mais alguém que viva sobre a terra?

Eu e tu, e tu e eu, nós dois somente:

Nós povoamos o oceano ingente,

A terra ninguém mais que nós encerra.

Dize se existe mais alguém lá fora?

Somos nós dois em todo este universo:

Só para nós é que se faz a aurora:

Outros vivem talvez em céu diverso:

Pobres! em céu de continuado inverno...

Andam por longe em mundo inferiores:

Só para nós há sóis, estrelas, flores:

Só para nós a vida é um beijo eterno...

Um beijo eterno só é nossa vida:

Eu só te vejo nesta esfera imensa;

Só nós vivemos nesta vida intensa,

Que é toda vida numa só fundida.

Podem dizer que a terra há mais extremos...

Que haja alguém por aí... sei lá? que importa?

A natureza para tudo é morta;

Só vive em nós; só nós dela vivemos...

XXV

Destes espaços nestas linhas vastas,

Onde há sóis, como grãos há nas areias,

Deles não me bastava as mãos ter cheias:

E todavia tu... tu só me bastas.

      

Tu enches meu intérmino desejo,

Como a essência de tudo em curto vaso:

Fora de ti pode existir acaso

Ser, que não sejas tu? Não sei: não vejo.

Juntos nós dois seremos o infinito,

Seremos o infinito e a eternidade:

Tudo que foi, e tudo que ser há de,

O próprio Deus, o misterioso Mito;

Como ele, só teremos o presente,

Mundos, que acordam, sóis esborcinados,

Céus, que se abrem de novo, e céus passados,

A cova aberta de um vulcão fremente;

Peraus que surgem, terras levantando

Com seus ombros de pedras os glaucos mares,

Alegrias, trabalhos, e pesares...

Isto existiu? Isto acabou?... Mas quando?...

Para nós não existe o movimento:

Não saberemos como o tempo passa;

Não há tempo: um instante tudo abraça,

Contém todo o infinito um só momento.

Tudo em torno de mim de ti me fala...

Há sempre em tudo impressa a tua imagem,

E o perfume que traz de longe a aragem,

É inda o teu perfume, que ela exala...

Sob os teus pés os versos meus desfolho-os:

E chove, quando deles cubro o solo,

Chuva branca de lírios do teu colo,

Chuva de oiro de estrelas dos teus olhos...

Mesmo o profundo céu contigo arrastas:

Tudo que penso, tudo que em mim sinto,

Stá tudo em ti: — diz-me a razão e o instinto:

Tu para mim és tudo, e tu me bastas.

XXVI

Beberemos o tempo gole a gole,

Como um minuto após outro minuto,

O cálix dele cheio, e nunca enxuto,

Nu nos meus braços o teu corpo mole.

Não saberemos mais se o dia nasce;

Se inda é flor de oiro o sol, se o rio corre,

Nós só vivendo face com face

Uma vida de amor, que nunca morre.

Porque nós não queremos, nem pensamos,

Que hão de ter fim os beijos começados;

Basta que nasça e morra a flor nos prados,

Que nasça e morra o pássaro nos ramos.

Basta que tudo acabe sobre o solo,

Que tudo para o ocaso penda e corra:

Pode tudo morrer; que tudo morra,

Enquanto a salvo amor nos leve ao colo...

Mas se a morte chegar até nós ousa,

E desta longa ebriez tirar-nos venha,

Seria o raio fulminando a penha:

A vida é para nós a mesma cousa.

XXVII

A vida é um rio a flux por entre escolhos:

Quanto mais pensas, quanto mais estudas

A voz da noite, a voz das cousas mudas,

Quase podes ouvir a voz dos olhos...

Ah! quantas vezes quando a boca fala,

A voz dos olhos a desmente e acusa,

E a alma nos deixa trêmula e confusa:

Assim no cheiro a flor um tóxico exala:

Quando os teus lábios, como duas asas,

Vibram nota qualquer, num gesto augusto,

Olho nos olhos teus, com certo susto,

Se a mesma nota à nota dada casas.

Crês que em ti ver o mal eu me aventuro?

Que a qualquer ser banal eu te nivelo?

Vivo em ti só querendo ver o belo,

O belo e o grande em ti eu só procuro.

Anda tudo que é belo semioculto:

A pérola no mar em concha informe,

Na alma da pedra o oiro; enfim sepulto

Na água do rio o diamante dorme.

Há em teu longo olhar de alma serena

Tua alma grande, como o meu desejo:

Mas a minha alma... a minha... é tão pequena

Que enche um céu, se este céu lhe abrir teu beijo.

Nesta longa ebriez em que nos temos,

Vivos agora, agora já defuntos,

Deve o mesmo batel levar-nos juntos,

Batendo o par das asas dos seus remos...

XXVIII

Ninguém há de levar-nos de vencida...

Há existências que jamais têm noite,

Que embora o tempo chegue, e as fira, e açoite,

Guardam todo verdor em longa vida:

Sabes? meu coração tem todo encanto

De um fruto novo, e úmido, e corado;

Ora, das manhãs roridas molhado,

Ora, orvalhado de meu próprio pranto;

Olha: ao passar por ele a brisa louca

Pende-o para os teus lábios: se o preferes,

Não quer ele outra cousa do que queres;

Não quer, para o conter, mais linda boca.

Ouves? e aí vou cantando, como trina,

De um galho à tarde, o sabiá da praia,

Enquanto o sol de um lado ao mar se inclina,

E doutro a lua — a rosa branca — raia.

XXIX

Há maior agonia com efeito

Que esta agonia de um amor profundo?

Creio que vai arrebentar um mundo,

Que anda vertiginoso no meu peito;

Que há qualquer cousa em mim demais, que acaba;

Que vai mudar o eixo do universo;

Que outro céu vai haver, um céu diverso;

Vai ser de fogo o mar, de fogo a vaga;

Que tudo vai cair, que tudo oscila,

Se o teu dedo não vem nos seus lugares

Repor o céu e os sóis, dar calma aos mares,

Dar a minha alma a lágrima tranquila,

A esperança, que é tímida fagulha,

Fio prendendo à abóbada sombria

A alâmpada, que a noite em luz embrulha,

Ai! enquanto não chega a luz do dia.

XXX

Quantas vezes as minhas esperanças,

Como um bando de trevas luminosas,

As asas pontiagudas, como lanças,

Batem em mim, em vórtices, teimosas:

Ou andam nesses gritos de gaivotas

Por cima das tormentas do oceano,

Agora pelas regiões remotas,

Agora mais abaixo, em voo insano,

Quando o olhar teu em mim pousando tomo,

Como quem pega no ar um passarinho,

Como quem uma estrela achou no ninho,

Como... não sei dizer agora, como...

Ah! se eu pudesse ouvir a voz do dia,

Ou do dia, ou do sol, que apenas nasce,

Talvez a nota, que eu preciso, achasse

Para dizer-te então o que eu queria...

Eu te diria o que minha alma sente,

Quando em mim teu olhar acaso vejo,

Como o carinho cálido de um beijo

Dentro do qual caísse eu de repente.

XXXI

Teu negro olhar de noite ampla e serena,

Conter tua alma, que se alonga, eu vejo,

Mas a minha alma, ainda que pequena,

Enchera todo céu que há no teu beijo.

Se ela pudesse entrar nele um instante,

Se mo abrisse na porta de um sorriso...

Como achara tão perto o paraíso...

Mas... tão perto de si e tão distante...

XXXII

Quando, caindo em chuva o teu cabelo,

A bela fronte matinal entonas,

Parece que te houvessem por modelo

Vênus e Uranias, Deusas e Madonas.

Tens o esplendor dessas pagãs de Atenas,

Que deram forma aos mármores mais finos,

Guardas a graça azul das cantilenas,

Tendo das cantilenas o azul dos hinos.

Que isto não és, se acaso alguém duvida?...

Que importa seres nuvem, sonho, ou nada...

Basta que em ti eu tenha a idolatrada

Imagem que queria, e achei na vida...

XXXIII

Há nos meus versos esta estranha cousa:

Um cheiro triste, um cheiro de açucenas:

E o cheiro do rosal em flor, que a lousa,

Cobrindo um velho pó, alegre apenas.

Como o sangue que flui, aberta a veia,

Como a torrente cai da rocha, e corre,

Como as abelhas fogem da colmeia,

Como um longínquo som que vai, que morre,

Como as nuvens, que passam cambiando

Constantemente as formas peregrinas,

Passam, aflando as asas baixo e brando

Minhas estrofes pálidas, franzinas,

Quase, como tu mesma, Amor, sem vida;

Mas passam sempre rápidas, errantes,

Passam enfim, como passaram dantes,

Passam, sempre a cantar por ti, querida.

Burilara o meu canto, e o não burilo:

Nele suspiro, Amor, quanto hei sentido;

Tudo que vivo, tudo que hei vivido:

Só quem ama é capaz de amá-lo, e ouvi-lo...

Não é fonte levada em muros de oiro,

Calçando os pés de mármores de rosa,

Aqui, a fronte, as árvores do loiro,

Ali, o laranjal de flor cheirosa:

É isto: — a mata ainda um pouco agreste;

Flores em meio às cobras das lianas,

Assim ao acaso das paixões humanas,

Que não têm linha que as conter se preste.

XXXIV

Não, meu canto não é a cama doce

Em que dorme o meu sonho peregrino,

Como se de ti mesma o molde fosse,

E tivesse o teu rosto matutino.

Entre frescuras, luzes e perfumes,

Os perfumes gentis, onicolores,

Que das brisas em voos e aos cardumes

Vão azulando o céu, dando alma às flores,

Num deboche de jovem Baco em festa:

Eu prefiro ir cantando o que em mim sinto;

Ergo uma branca estátua em róseo plinto,

E nela torço as pernas da floresta,

Numa explosão de frases fagulhadas

De minha alma, — um vulcão em movimento —

Onde tudo é paixão e sentimento,

E há crepitar de lavas arrojadas.

Eu não lapido o mármore do Egito,

Mestre augusto, que acaba ideal obra;

O tempo é breve; o tempo me não sobra,

Senão para dar vida eterna a um grito.

Prefiro abrir um templo na montanha

A crebros golpes de alavanca e malho,

Como esta ânsia de amor, que em versos talho,

Nesta febre que o amor sempre acompanha.

A tomar o buril de fino gume,

Para dar vida ao Paros pouco e pouco;

Quem amado não é, e inda ama, é louco;

Provoca sóis, mas não cinzela um nume.

Falta-me a calma a mim, que ando de rastro,

Me curvo, e ergo, e recaio em doudo enleio,

Quando dos olhos teus sinto em meu seio

Ir entrando os tentáculos de um astro...

Então me falha o dedo à rude avena

E há sons confusos, sons de várias cores,

Como o espoliário de uma arena

Aonde despem mortos gladiadores...

XXXV

Bela infanta do meu principalato,

Brilhantíssimo sol do céu, que arqueio,

É um gemido, que irrompe do meu seio,

Este meu canto, que aos teus pés desato,

Roxo, como a saudade do meu sonho,

Azul, como a alma de uma flor que adoro;

Se não tens sons de um módulo, suponho

Ser como a moita verde em vale odoro.

Cheia de muitos pássaros cantando:

Por baixo, à sombra dela, uma corrente,

Cuja canção sobre o seu leito brando

Mal se ouve... a diz tão vagarosamente...

Vale afinal a esfera alta e estrelada,

Como vale o oceano a gota d’água:

Um grão de areia vale um mundo em frágua:

Tudo vale por tudo, e espera-o o nada...

O nada!... Era bem bom... Tudo que existe...

Quem viveu, há de ser: não resta impune:

Há uma força que une, e que desune:

Saber não acabar de vez é triste...

XXXVI

Sou talvez como Hamlet, Ofélia amando:

Mas... quem não tem um grão dessa loucura,

Se anda junto do amor medo e amargura,

E é a esperança, como o cisne, quando

Vendo vir o condor pelo caminho,

Desdobra as asas mais, o monstro fita,

Sobe, desce, e inda sobe; e a ave maldita

Lhe opõe por baixo o bico éreo e daninho.

Cansado o cisne, as asas serra, e frio

Rola ao chão, neve em floco, e já sem vida:

A água andina abre então larga ferida:

Borbota dela o sangue: o sangue é rio.

Na moita a fera salta e tripudia;

Novas feridas rasga; e, ebriado e doudo,

Só para, quando haurido o sangue todo,

Solta pequenos gritos de alegria...

Da festa a companheira ali partilha:

Veio, à sombra do sol, sempre a segui-la;

No olhar dos dois a mata em torno oscila,

E o céu, no olhar dos dois, revê-se e brilha...

Volta a esperança ao coração?... Quem dera!

Voltam eles aos píncaros, à tarde,

Onde o ninho entre ossadas os espera,

E onde um resto de sol, que esmaia, inda arde...

XXXVII

E eu que te dera o que há de grande e lindo,

O que há de belo em toda humanidade,

Que o teu nome prendera à eternidade,

Com corimbos de sons nela o jungindo.

Eu, que te dera o que há na terra e oceano

De rutilantes, preciosas gemas,

Do Zendo-Aresta os vinte e um poemas,

Tudo quanto concebe amor insano,

Tudo quanto imagino de hora em hora,

E que tudo isto dera, como um pobre,

Que único oferta azinhavrado cobre,

Que não tem nada mais, querendo-o embora...

Nem minha alma inda sabe, espera, ou pensa,

Que se tudo aos teus pés lançasse a esmo,

Um sorriso, ou olhar, ou gesto mesmo,

Terias, para dar-me em recompensa...

O que faz tudo em nós, é sempre o instante;

O gênio, o tempo, o meio, o acaso ao menos

Faz de uma pedra prodigiosa Vênus,

Ergue um César agora, agora um Dante...

XXXVIII

E olha, inda a pedra encima-se de glória,

Como o Sigeu, quando o cantou Homero:

O verso meu menos augusto e austero,

Há de também de ti guardar memória.

Quem é? Quem foi? Conhecem-lhe o retrato?

Rima de oiro, que tine aos passos dela,

Não diz que foi estranhamente bela?

Queremos ver-lhe um lindo busto exato.

Uma medalha numa ruína achada,

O que resta talvez de um grande povo,

Conserva dela a face esculturada,

Como quando o metal brilhou em novo?...

Ou cipó quase em pó, ou bronze acaso

Salvo do tempo, o tempo tudo açoita,

Ou na estrutura de estragado vaso,

Que um campônio encontrou, cortando a moita...

Só nos clarões da faiscante rima,

Doirada às chamas quentes do Oriente,

Só dele, à luz de auroras, que vindima,

Há vê-la, e ouvi-la, e tê-la enfim? — Somente?

E o teu nome andará de boca em boca

Com meu verso, em que fulges envolvida,

Como o de Hesíodo, e Safo, e Orfeu, querida,

Dirá meu canto a mocidade louca;

Dirá meu canto a louca mocidade,

Que inda não poluiu do mundo a vasa,

Que tem uma asa para o amor, e outra asa

Para o belo, que a ebria, e a enleva, — e aplaude.

Há de dizer esse tropel de moços,

Laureados cantores do futuro:

— Quem assim na ebriez do amor tão puro

Cinzela um brinco, ou cinzelou colossos?...

Como um acanto ao capitel se enlaça

De uma coluna, que restou de um templo,

Há de querer, achando justo o exemplo,

O meu nome enrolado ao teu com graça:

Duas estrelas numa mesma linha,

Parecendo uma só estrela acesa,

Hão de tua grandeza fazer minha.

A minha fama à tua fama presa,

Hão de idear hipérboles de assombros,

Compor e recompor a nossa história,

E eu gozarei das palmas da vitória

Debruçado por cima dos teus ombros.

Sobre o meu coração, colina em flores,

Sentada, ouço inda fluir longe, em torrente,

Minha vida a cantar os seus amores,

Como um Pã, como um deus onipotente:

Ouço dizer: — que idílios e amorosas

Queixas lhe ouviram pela deusa amada,

Nelas metendo as glórias da alvorada,

Que a seu turno metia as próprias rosas...

Pois se enquanto eu cantava, a curva esfera

Stava cheia de pássaros trinando...

Se no Brasil é de oiro o pó em que ando,

Se o sol é quente, e eterna a primavera!...

Mas de ti o que quero enfim? Eu digo:

Ser, Andrômeda, o teu Perseu queria,

Muito embora aos teus pés, viver contigo,

Ser o mundo que doira, ó sol, teu dia.

É muito? — Guarda então a fronte altiva:

Mas deixa-me ao teu lado um só momento

Na meia luz do lânguido aposento,

Onde eu só te respire e goze, e viva.

Uma hora só, e o instinto mo revela,

Quer eu a deva ao amor, quer à piedade,

Será esta hora toda a eternidade,

Ou toda eternidade dentro dela...

Dá-me tu, pois, uma hora pequenina,

Longe de tudo que perturbe a calma

Com que se quer embriagar minha alma,

Na adoração do ser que me fascina:

A alcova em meia luz, e tu sentada

No cetim do divã macio e breve,

E eu a ouvir o teu seio arfar de leve,

Baixa a cortina, a porta entreaberta...

Tens em ti, nebulosa, um grande mundo?

Que borboleta mexe em teu casulo?

Alvejo, doiro, ascendo, arqueio, azulo

E encho de aroma o céu, que te abro e afundo...

Gentil criança, onde a mulher desperta;

Mulher, onde o anjo ao sono a fronte inclina,

Quando a primeira cotovia trina,

E a última estrela à sombra o olhar concerta:

Primeira flor das balsas estendidas,

Luz de sol, que não há, mas vamos tê-lo;

Uma isolada margarida pelo

Campo, que encher-se vai de margaridas...

Que sensação sacode e ergue-te o seio,

A ti, mulher, a ti, criança para

Quem, (como se a alma toda me entregara)

Rasgo céus dentro em mim, que azulo e arqueio?...

Ai! quando ela sentir o golpe em cheio...

Quando amar... quando o sol do amor batê-la,

Quando passar de nebulosa à estrela;

Quando o amor não for mais um vago anseio...

Quando, ao ar livre, e à beira do caminho,

Audaz, inda porém com certo espanto,

Rouxinolar o seu primeiro canto

E abrir as asas e fugir do ninho...

E procurar um companheiro pela

Veiga, no tronco, em pé, na flórea rama...

A quem ela, a tremer, dirá que ama,

E há de falar tão baixo como a estrela?...

Posse  absoluta

Contigo vivo, durmo, sonho, acordo:

Estou cheio de ti, mulher divina;

Como o mar, quando o sol todo o ilumina,

Tenho-te em mim, — o teu fulgor transbordo.

Estou cheio de ti, como os espaços

Estão cheios de céu de lado a lado:

Como o céu stá de sóis sem fim coalhado,

Sóis, que eu lançara ao chão sob os teus passos.

Ou sejas flor lirial, que odora um Éden,

Ou flor, que o tremedal poluto cria,

O que ouço em mim é a crebra sinfonia,

Hirta de acres desejos, que te pedem.

Dou voz aos troncos, amoleço a roca;

E não te há de prender a ti somente

Um dos deuses da lira onipotente,

Que imortaliza o que ama, e quer, e toca?...

Tenho-te: és minha. — És minha ou viva ou morta,

Viva, sinto-te em mim, não morta ou fria:

Ter-te assim, ter-te assim é que eu queria:

Não me importa o mais, e não lhe importa.

Ó minha estrela, ó minha rica joia,

Brilhas inteira dentro de minha alma,

Como o abismo do céu, no mar em calma,

Por ele abaixo desce e nele boia.

Talvez que  o ouça tímida e inquieta,

Como a canção de um lindo vagabundo,

Mas volte ao quente, ao luminoso mundo,

Da alma estrelada e matinal do poeta.

Botão de rosa, que talvez esconda

Titânia ao sol, para a não ver de fora,

Seja o que for, és minha: — amo-te: e agora

Sou a onda que o vento enrola a onda.

Tenho-te: és minha: és minha a qualquer hora

Quando com um jarro de ágata da Helena,

Vermiculado de ouro, a curva plena

Molha a Manhã de luz, que, rindo, chora...

Ou quando a Noite, como egípcia escrava,

Com um turbante, que encima a luz em meio,

Do leite branco, que lhe cai do seio,

Uma zona da esfera imensa lava:

Vou pensando, ao fragor de estranhas brisas,

Se outros mundos terão o que em ti vejo,

E se um riso de Deus vale um teu beijo,

Se algum céu vale o céu do chão que pisas.

Canta o sândalo à rosa, o lírio ao trevo,

Quando o teu doce nome pronuncio,

E anda dele através fulgindo um rio,

Rio de oiro de estrelas, quando o escrevo.

Quando o escrevo, que música sonora

Sai de cada uma letra que burilo...

E o divino Petrarca, para ouvi-lo,

Põe do céu a cabeça astral de fora.

Porque és minha, palácios te daria,

Tirados de pedreira sonorosa,

Riscados de oiro em fundo cor-de-rosa,

Feito de grandes blocos de harmonia.

E com joias de preço que os travejo;

E, como os belos pavilhões chineses,

Hás de ouvi-los tinir, todas as vezes

Que às torres chegues num ligeiro adejo.

Tenho a alâmpada brônzea de Aladino

Em cada riso que em teus lábios ouço;

E nesses mundos cheios de alvoroço

Da luz, que vem do teu olhar divino.

É de ti mesma que minha alma arranca

O áureo fio dos orbes que levanto:

Stás sempre neles, ritmo do meu canto,

Branca deusa, que o lírio inda mais branca.

Vêm do teu corpo uns cálidos perfumes,

Alma quente da sombra de tua alma;

E um nimbo à fronte, e às duas mãos a palma,

Hauro neles a glória ideal dos numes.

Quando te abraço, um sentimento vago

Me faz crer que ando em veigas deliciosas:

Que os lírios cantam, cantam mais as rosas,

Que o pé me oscula e ri a flor que esmago.

Quando te beijo... Ai... ao beijar-te cuido

Que por teus lábios voa o céu a rodo,

Que o bebo e os sóis com ele, e o meu ser todo

Se enche de um deus imenso, imenso e fluido.

És minha: és minha. — Anda minha alma em festa,

Chilreia em mim estranha passarada:

Tu foste a luz infante da alvorada,

Que arranca à noite o poema da floresta.

O andar, o movimento e etéreo arranjo

Dos pés, que sobem, descem sobre duas

Asas sutis, faz crer-me que flutuas

Entre a Odisseia e a Bíblia, a deusa e o anjo.

Mas... guarda os teus alados pés, recolhe-os:

Basta-me só que quem te vir descubra

As pérolas do mar na boca rubra,

As estrelas do céu nos grandes olhos.

E sobre eles se veem as duas belas

Asas pretas de um pássaro fugindo

Em fora por tua alma em flor, no lindo

Rosto apenas fremindo as pontas delas.

Sobre o teu seio arfando, como as ondas,

No alvo, róseo esplendor das carnes nuas,

De um mar de leite se ergue um par de luas

Novas, brancas, não cheias, não redondas.

Basta de erguer os mármores preclaros,

O pó dos gregos mármores partidos:

Vede: os braços da Milo estão metidos

Nos seus dois braços do mais fino Paros.

Não é preciso ir ver a Itália a Aurora

Presa num bloco branco de Carrara:

Tu mesma és um Miguel Ângelo, ó rara

Criação, que ilustro amando, e o mundo ignora.

Como o lascivo oceano engole os rios,

Como o divino espaço engole os mundos,

Teus membros sorvo-os, de mim mesmo inundo-os,

E dos meus belos versos irradio-os.

Belos, sim! andas tu lá dentro, basta:

Prendem o ritmo a ti estranhos elos:

No teu silêncio, em tua voz, modelo-os;

Doiro-os do céu, que atrás de ti se arrasta.

Queiras ou não, ou por vontade, ou força,

Agora és minha, eu te possuo, és minha;

Como é da concha a pérola marinha,

Como é da selva a fugitiva corça.

Antes que a concha alguém do mar recolha,

E a corça estaque ao golpe que a procura,

Eu guardarei a tua imagem pura,

Como a flor da manhã, em branca folha.

Oh! como és bela! és minha, eu te possuo,

Mau grado meu, mau grado aos teus desejos:

Vê se podes sair do mar de beijos,

Em que contigo agora ando e flutuo.

Eu e tu somos uma só criatura:

Diz que não; repete, enfim, que minto:

Eu te sustento, como à estátua o plinto,

Como o equilíbrio o voo aos sóis segura.

Nega. Que importa? Ó minha imagem cara,

Bebo-te o aroma, e a divinal essência:

Quem te pode arrancar desta existência,

Onde cravei-te como joia rara?...

Nem Deus. — Pode num ímpeto de irado

Dos olhos arrancar-te o céu, e os astros;

Ambos nós dois há de levar de rastros

Do moto eterno ao vórtice agarrado:

Toma-a. — Eu te porei aos pés o grito

Deste universo, que te assoma e invade,

Levando o peso da imortalidade,

Como tu o cansaço do infinito.

Não te darei sossego: há sempre audazes

Que o abismo tenta, imaginando um crime;

Sobre montões de sóis o espaço oprime:

É da opressão que Prometeus tu fazes...

Ó correta beleza, aos céus eu deixo

O Deus, que pôs nos sóis mortal cadeia:

Este momento é nosso; aperta, enleia

Minha alma toda, como a hera o freixo.

Alma e corpo à minha alma e corpo enlaço-os:

És minha: ao céu num voo branco, ó pomba,

Sobe: assim, sobe o sol, que de lá tomba

No mar: nos dois oceanos dos meus braços

Cairás: e hão de envolver-te o virgem solo

Flora nova e outros sóis pelo horizonte;

E acordarás, sentindo a nívea fronte

Deitada entre eles, calma, e no meu colo;

Abrindo largamente os olhos pretos,

Um pouco à escuridão dos grandes cílios,

Ouvindo o mar cantar os seus idílios,

Vendo o sol a acender-se em meus sonetos;

E o barulho dos rios e o barulho

Das florestas, que tu, olhando, douras,

Soar-me-á, como as palmas triunfadoras,

Que, por ti só, me hão de ebriar de orgulho...