LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Imortalidades II, de Luiz Delfino
Texto-fonte:
Luiz Delfino dos Santos, Poesia Completa, org. de Lauro Junkes,
Florianópolis: ACL, 2001, 2 v.
III — A barca de Cleópatra e a nossa
Com sombras deste lado e luz do lado oposto,
Este livro reflete a tua alma e o teu rosto:
Vem de ti este livro, e é para ti somente,
Bem que não sei quem és; que às vezes me pareces
O anjo doce do amor, o casto anjo das preces;
Que outras vezes erguendo a cabeça imponente,
O olhar fulvo brandindo, e a voz austera e rouca,
Do arcanjo que caiu tens o orgulho insensato;
Que me pareces boa e me pareces louca;
Estrela, que se mira em límpido regato;
Vulcão, que tem rugido e chamas de cratera;
Céu, onde habita o raio e o sol da primavera;
Abismo, onde a alma cai em sombra, que a devora;
Que tens luz, que eu não sei se é do inferno, ou da aurora,
Se vem dos anjos bons ou dos anjos danados;
Ser superior, que esmaga Anteus desesperados,
Monstro, esfinge, colosso informe enfim que odeio
E que amo, e cujo casto e monstruoso seio
Tanto me faz querer, como fugir, e cujo
Atrativo é maior, quanto mais dele fujo;
Clarão, do qual em torno ando queimando as asas,
Sentindo bem que morro à luz com que me abrasas:
Foi por ti que escrevi este livro, indeciso,
Um pé fora e outro pé dentro do paraíso.
Helena, ideal como os da Grécia antiga,
Trabalhados nos mármores de Paros,
Tu que refulges, como estrela amiga,
Do meu prazer entre os instantes raros,
Tu, a quem mão de deuses não ignaros
Por um divino e puro amor me liga,
Que és a criatura dos meus sonhos caros,
A força doce que a viver me obriga,
Tu, cuja imagem luminosa e casta
Ver, só, e amar, para viver me basta,
Tu, que não sabes mesmo inda quem és,
Tu, que o não saberás, mulher, aceita
O manto de oiro e azul, que no chão deita
Quem calçara, a poder, com sóis teus pés...
Ver toda, e bem, a natureza, exalta!
E ver o belo, Helena, há quem resista?
Uma hora de caminho apenas dista;
E uma hora de coragem não nos falta.
Vamos ganhar a região mais alta:
Levamos na alma os ideais de artista;
E para um ponto esplêndido de vista,
Os sonhos, rindo, vão conosco em malta.
Sob as ramagens do arvoredo basto
Dos virgens bosques fomos, e seguimos
Morro acima trepando, ou quasi a rasto.
Quando chegamos, de repente, aos cimos,
A terra, o vasto mar, o céu mais vasto,
E o sol pondo ouro em tudo, eis o que vimos!...
Eis-nos no Corcovado, Helena! Arrancas
Um grito surdo ao âmago do peito,
Ao ver do alto o prodigioso efeito!...
O mar ao longe, a orla de areias brancas;
Perto, embaixo, a lagoa, como um preito
Arqueia-se ao seu lado: das gargantas
Dos montes leves rios sobre o leito
Nela escondem-se, após beijar-lhe as plantas.
De outro lado a cidade, e o mar ainda,
O mar azul, o mar, que nunca finda,
E entre ilhas arfa, enchendo-as de neblina.
Em torno serras, sobre as quais fervilha
De cima o sol, o sol como estampilha,
Em que Deus lança a enorme garra, e assina...
Por onde vamos nós – Queres sabê-lo?
Vamos por onde vão as criaturas,
Vamos pelo mistério das alturas,
Num ciclone, num pó, num atropelo
De mundos, gérmens, como o pesadelo
De um sonho: tu não vês o que procuras:
Vamos, como as visões, que tens mais puras,
Prendendo em fios de oiro o teu cabelo.
Pelos azuis nós vamos; vamos pelas
Regiões, onde o universo torvelinha
Por esferas sem fim, sem conhecê-las.
Vamos seguindo os sóis, Helena minha,
Vamos em companhia das estrelas;
Vamos, por onde Deus, que é Deus, caminha....
Sabes, Helena, que há em nós um grito,
Um anseio, uma dor, um mal que cresce
Em nós, como um desejo do infinito,
Que voa para Deus, como uma prece?
Mas o infinito é nosso, e me parece
Que o próprio céu do mundo, em que me agito,
Não tem com ele o mínimo conflito;
E que com ele vai, e sobe, e desce.
Lembra-te o eco da canção primeira?
Lembra-te a lia, que ficou na taça,
Do licor, que bebeste, e inda te cheira?
Do corpo ao elo, que cai, outro se enlaça,
É sempre a mesma a humanidade inteira;
De dor em dor, de vida em vida, passa...
Tu me perguntas uma cousa séria!
Fora escrever um livro, o que pediste!
Explicar-te o universo!... E não sorriste?
Ir é mais fácil aos jardins da Hespéria.
Anda um Deus a fixar força à matéria,
Porque uma só sem outra não existe,
Mas sempre um Deus entregue a esta miséria,
Este augusto trabalho, vês? é triste!
Como sem ódio e amor equilibrada
A natureza vai leve e serena
Pelo infinito em fora arrebatada?
Por quê? não respondo: e hei tanta pena!
Mas sabe disto alguém? Eu não sei nada.
Eu não sei nada... eu não sei nada, Helena.
Basta, Helena, que em ti Vênus renasça;
Teu nome é sempre Vaga e Movimento;
Teu apelido eternamente – Vento –
Que ciciando osculta tudo, e passa.
Tu, Mulher, hás de ser a ebúrnea taça,
Cheia de sóis, por onde o pensamento
Bebe a luz, bebe a força, e bebe o alento,
E o divino esplendor, que põe na raça.
Eva imortal, tu és a formosura;
És Mãe; e como mãe és boa, e pura:
Não tens lua aos teus pés, nem sóis tu calças:
Mas por ti vai-se a Deus, e a compreendê-lo,
Tu nos ensinas, mesmo a ver, sem vê-lo...
E essas belas visões jamais são falsas...
Ontem à noite executaste ao piano
Um trecho, à alma arrancado de Bellini...
Dá-me beijar-te as mãos, e que me incline
Ante o teu gênio exímio e soberano.
Vi o maestro ali, se não me engano,
(Ver o espírito em corpo alguém define?)
Em pé, ao lado teu, no mesmo plano;
E o aplauso dele, ao ouvir-te, em mim retine.
Pálido o mestre, quasi transparente,
Como um som se atenua, e se adelgaça,
Vi-o ir indo, e sumir-se de repente,
E qual de artista de uma fina raça
Ficar inda a vibrar por toda parte
De uma harmonia a imponderável graça...
Tu me fazes andar onde a luz anda:
Entro o céu pela porta das auroras;
Helena, é lá a estância, onde tu moras,
Nessa cidade santa e veneranda.
O teu poder de cima é que nos manda;
E tens na boca essas canções sonoras
Com que nos descem, rutilando, as horas,
Desse país do sol, lá dessa banda.
Em teus cabelos finos desatados
Vejo acantos de larga folha enleados,
E então de um bloco egípcio eu te suponho...
Ou creio ver-te branca de alabastro;
E venho então das nuvens do meu sonho
Toda acender-te nos clarões de um astro...
Vamos à fonte, aqui neste recanto
Do bosque, sob a umbela da floresta,
Onde podes banhar-te, e ter sem medo
Teu corpo envolto à sombra do seu manto.
Olha-te tudo com malícia e espanto!
Mas eu cá stou sentado no fraguedo:
Mesmo ninguém virá; inda é tão cedo!
Guardo-te, e a um tempo gozo o estranho encanto
Toda esta selva, a festejar-te, é pouca:
A água em torno de ti anda orgulhosa,
Beija-te, e abraça, quasi como louca!
E enquanto, asas batendo, a radiosa
Canção do riso trina em tua boca,
Leve pássaro em cima de uma rosa...
Só de ilusões, Helena, é que vivemos:
Temos em nosso cérebro guardado
Tudo que nossos pais já têm pensado,
Tudo que de presente inda aprendemos.
Sabemos muito! Então o que sabemos?
Eis a cova: o que existe do outro lado?
Que mundo há num argueiro começado?
Que quer este universo? O fato aí temos...
O céu stá cheio acaso, ou stá deserto?
Eu não sei bem se acerto, ou se me iludo!
Na ilusão vivo; na ilusão desperto?
Amontoando estudo sobre estudo,
Sabemos muito, muito, muito, é certo...
Mas que sabemos nós no fim de tudo?!...
Lembro-me, Helena, que disseste um dia
Que a baía do Rio de Janeiro
Era a mais bela, foi? do mundo inteiro!
Estava então feérica a baía,
Quando numa falua que estendia
As asas brancas pelo mar banzeiro,
Cantando ao vento o velho marinheiro,
Sem rumo, ao acaso, ao luar, nos conduzia.
Teus dedos brancos, longos, afilados
Iam mostrando os montes azulados,
E as ilhas, cisnes de oiro, arfando às ondas.
Nisto dos olhos te caíram na água,
Rompendo o engaste de profunda mágoa,
Duas formosas pérolas redondas...
Tu me explicaste, então, com certo enleio,
A origem dessas lágrimas caídas:
Tuas palavras, de verdade ungidas,
Eram também de lágrimas: eu creio.
Uma saudade num instante veio
Lembrar-te como as cousas mais queridas
Ficam depois como ilusões perdidas,
Como ilusões no íntimo do seio.
Daquela noite a rápida ventura
Goza-se um pouco só; tão pouco dura;
E já vem morta, inda não bem nascida!
Não podemos atar à eternidade
Barca, prazer, amor, e mocidade...
Helena, é tudo sonho em nossa vida!...
Corri. Me vês cansado. Eu vim, Helena,
Procurar-te: o sol de hoje está tão quente!
Que quando eu soube estares tu ausente,
Quis ver-te e vim. – Bem! Só te falta a avena;
O cão ao lado, uma manhã serena;
Pascendo o gado o verde campo olente,
E tu tocando o idílio mais recente,
E o céu sorrindo à tua cantilena.
Venho aos teus pés, teus pés calçar de um beijo
Canta também, minha gentil pastora:
Como a luz stá te ouvindo, ouvir-te almejo...
E enquanto a luz te escuta sonhadora,
E enquanto dorme a luz ao ouvir-te, eu vejo
Quem é das duas mais formosa e loura!...
Lava o cheiro da pólvora, perfuma
A tua roupa, e é já voltar à gruta...
O rumor dos canhões, Helena, escuta:
Que a guerra proporção tão grande assuma!
Para apanhar o vento, o som, a espuma,
É que lutais? Vós que ganhais na luta?
De um lado e de outro o triunfo o campo enluta:
Lutais? Por quê? Em vão: por cousa alguma.
No mar, em terra o fogo da batalha!
Há ideia que tanto sangue valha,
Ó grande imperador, ó grande rei?
Soldados vitoriosos ou vencidos,
Logo sereis no mesmo pó reunidos;
Tudo isto é de outros amanhã... Sabei.
Entremos na floresta. – Por Janeiro
Ela não é escura totalmente:
Uma luz fina a banha de repente
À saída de rápido carreiro.
Após também de chofre todo inteiro
Parece o bosque um túmulo: fremente
Canta sobre ele a fronde: a selva em frente
Tem de pingos de sol miúdo chuveiro,
Que a ensopa; as folhas brilham do arvoredo:
Agora, noite espessa: tu não ousas
Ir adiante, Helena... Olha um rochedo,
Sob o enxame de negras mariposas,
Barra o caminho; e gota e gota, e a medo
Chorar, parece, as lágrimas das cousas...
Al via láctea toda se entrelaça
Na brancura do teu divino colo;
E o teu cabelo nos meus dedos passa,
Como se fosse o oiro do Pactolo.
Em grupo as flores erguem-se do solo,
Por ver-te a marcha, o porte, o encanto, a graça,
E um colibri em tomo a ti esvoaça,
Enquanto os sons da lira desenrolo.
Ah! como é bom viver nestas campinas,
Ou nestes bosques, que a adorar-te ensinas!
Fecha-te um quadro, esplêndida rainha:
Eu te festejo, tudo te festeja,
Única deusa de uma só igreja:
Em parte alguma, Helena, és tu tão minha.
Viste essa pedra que lancei no lago?
De golpe revolveu-o, rasgou-lhe o seio,
Desceu ao fundo, e à tona mais não veio:
A água sossega, e após repara o estrago.
Helena, dentro em mim teu corpo trago
Com esse espanto do primeiro enleio;
Preso está: não sair mais dele creio:
E essa esperança na minh’alma afago.
Vi-te; e abriu-se-me ao flanco uma ferida:
Por ela em jorros me escorria a vida:
Susteve-os teu cuidado, e teu carinho;
E fui depois, como um convalescente,
Que junto ao salvador só bem se sente,
Como um melro, que, à noite, achou seu ninho...
Helena, ao leme: eu lanço-me aos dois remos:
Vamos de encontro à plácida corrente;
Cintila o rio aqui à luz fremente;
Da selva a imagem negra ao longe vemos.
Cautela. Às vezes desce um galho: os demos
Fazem das suas: vai sem cuido a gente,
E numa volta há sombra: de repente
Bate a canoa, vira... um grito... E aí temos!
Foi-se o perigo: rasga-se a clareira;
Já grossa escuridão não cai da mata;
Arde acima do rio uma fogueira,
A lua: e em crespa lâmina de prata
O luar, alma da noite brasileira,
Seu brilho, em nosso amor, do céu desata...
Hoje é domingo. – A linda capelinha,
Por lavradores neste outeiro erguida,
Tem em torno de si rumor de vida
De gente que há bom tempo aqui não vinha.
Missa de dia, à noite ladainha;
De arcos e palmas toda revestida
A estrada; e a juventude aldeã reunida,
Como à Mãe do Menino Deus convinha.
Anda no campo uma alma, e outra de um nume,
A alma de Apoio nesta luz, que cresta;
E a alma de Orfeu, que um pássaro resume...
Olha, Helena, que bem que cheira a festa!
São as flores, quem faz este perfume:
São os ninhos, quem faz e nota a orquestra...
Mas, Helena, não penses que eu desdenho
Da ciência o trabalho fecundante:
Ninguém dela é melhor, mais puro amante,
Vê-la crescer, florir, é meu empenho.
Sei que é também o teu; o ideal constante
De um delicado espírito, convenho:
Por tudo quanto é grande e belo eu tenho
Amor, quanto asco ao fútil ignorante.
É a ciência irmã da liberdade:
Ao homem dá mais força e dignidade:
Ela o segura, o eleva; ela é sagrada...
Nem a dor, nem a morte ela aniquila:
Mas nos toma a existência mais tranquila,
Mais doce a vida... E isto é melhor que nada...
No berço a vida é um drama, que começa,
E de ato em ato aumenta, e cresce o enredo:
E longo, ou curto, acaba tarde, ou cedo,
E com a morte enfim termina a peça.
Aplausos, como Plauto, o autor não peça:
Mesmo por si virão; não tenha medo;
Quando a honra e a virtude ele interessa,
Das mais nobres paixões tendo o segredo.
Está numa ação boa o paraíso,
A lágrima na dor, no gozo o riso:
Ardem na própria falta o inferno e a pena.
É castigo do crime o próprio crime:
Deus, um ser superior, um ser sublime,
Nem pune o sol, nem pune o verme, Helena.
Quem é Deus? – Eu não sei nem imagino;
Sinto-o dentro de mim, e estar comigo:
Helena, em não crer nele há tal perigo,
Que homens e cousas ficam sem destino.
Há na justiça um código divino;
É fazer bem, toda a moral que sigo:
É preciso ser bom, a todos digo;
E o que sei de melhor, eu prego e ensino...
Por toda a parte Deus nos aparece,
E para lhe fazer a minha prece,
E toda a natureza a minha igreja.
Quando, para dormir, procuro o leito
A noite, exclamo logo que me deito:
– Stá tudo em Deus... e Deus louvado seja.
Em ti longas viagens tento e faço;
Eu bem perto de ti, tu a sonhares:
Desço por ti, como se desce aos mares,
Subo por ti, como se vai ao espaço.
Depois disto eu te beijo e aperto e abraço,
Como se novos sóis visse aos milhares,
E mundos a surgir entre palmares,
Mundos novos de amor em teu regaço.
Helena minha, eu digo-te contente,
Escuta: – além do odor, que é teu ambiente,
Sai de ti uma irradiação tranquila
De luz tão doce, e transparente, e bela,
Como a Luz zodiacal, que não revela
Donde vem, por que vem: é luz, cintila...
As leis de Deus não são interrompidas;
E as histórias do céu assinaladas,
Todas as lendas pela terra havidas
São como as belas fábulas das fadas,
Quando inda as consciências aterradas,
De religiões fantásticas vencidas,
Criam com fé nas cousas não sabidas,
E iam pelo terror acorrentadas.
Hoje a razão dos fatos a verdade
Quer, investiga, estuda, e não descansa:
Mesmo o infinito, e a natureza invade;
Por todo este universo os olhos lança
E vê que Deus não é a realidade,
Que Deus é só a máxima esperança...
Feminizou-se algum pincel de artista,
Que a deliciosa cor de rosa imprime,
E a cor do lírio ao pé lhe põe sublime,
Numa só criação pondo a cor mista.
E eis como emerge Helena à nossa vista,
Que em si nada de grande ela suprime:
Vem, como a deusa, que esmagasse o crime,
Que está na terra, e que do céu não dista.
Tudo o que Deus nos dá de bom tem ela:
Vê-la é amá-la: é dizer logo: – é bela!
Mas de eterna beleza: a nova e a antiga.
É querer Vênus, que nasceu da espuma;
Querê-la, sem querer mais cousa alguma;
E – deusa – aos pés ter tudo em tomo obriga.
Essa massa enormíssima de cousas,
De interesses por séculos criados,
De erros como verdades proclamados,
Sempre a um grande rumor de mariposas
Que se creem águias, que se creem condores,
Vê se os podes mudar, vê tu se o ousas:
Há sempre um crime antigo, onde tu fores;
Eis, minha amiga, o mundo em que repousas.
A fome, a dor, da vida as impiedades
Hão de ser, como em todas as idades,
O escolho oposto sempre ao esforço humano.
Mas os Titãs, na eterna rebeldia,
Hão de arrancar ao próprio Deus o dia,
Viva-se embora, Helena, em tanto engano.
Por que de luz a terra o sol inunda?
E por que é que a palmeira do deserto,
Não tendo outra palmeira ali por perto,
Confia ao vento o gérmen que fecunda?
Deus, que se esconde em região profunda,
Cria o bom, que há na terra e céus, é certo,
Como se de uma esplêndida rotunda
Mandasse o facho aos homens, encoberto.
Há céus pequenos, límpidos cantinhos,
Quartos cheios de azuis, cheirando a ninhos,
Onde o amor chora e ri a um tempo e canta:
Para a imortalidade Deus fez isto,
E é o melhor, que fez, do que hemos visto:
E é esta a nossa capelinha santa...
Tínhamos ido pelo mato em fora;
Pisando o chão, fazíamos caminho:
Havia densas claridões de aurora,
Quando entramos o bosque: o mar vizinho,
Cheio de azuis e verdes inda agora,
Manchavam asas brancas cor de linho
De uma escuna pequena, como um ninho
Grande, que iam voando ao vento embora.
Mas fomos por diante: a luz do dia
Em chuva miúda o solo amplo cobrindo,
Vermiculava relva luzidia...
E a sombra cada vez mais grossa vindo!
E ela agarrou-se a mim: e eu a envolvia,
Fremir sentindo em mim seu corpo lindo...
Helena, volto. – Julgas insensata
Esta ausência. – Que fiz neste exercício
Longe de ti? – Um Deus me foi propício:
Tens, no que trouxe, explicação exata.
Hoje, Helena, uma ideia me arrebata!
Marca da vida tua esta hora o início...
Banqueteio-te, aos sons de um epinício,
Só com produtos, que há na nossa mata.
Aí tens jacus em certa quantidade,
Melros, torcazes, juritis, que reúno,
E sacrifico à tua divindade...
De Eros assim antigamente o aluno
Levava às aras, cheio de piedade,
Pombas a Vênus, e pavões a Juno...
Quando te vejo, ó raio matutino,
Digo-te: – Eu sei onde há outro igualmente: –
Quando te vejo, lua do crescente,
Sei onde há outra; – e sei o seu destino.
Eu te conheço, lírio alabastrino;
Há um colo, onde há outros: sol do Oriente,
Conheço dois de um brilho permanente
Num céu maior, mais límpido, e divino.
Sois leves, asas, que passais: – convenho.
Mas têm seus pés maior velocidade...
Aromas, neste instante mesmo venho
De aspirar-vos em tanta quantidade!
Pois com Helena a primavera tenho!...
Que mais darão o belo e a mocidade?...
Queres saber o que anda de verdade
Neste nosso país, e de ano em ano?
Nosso país, Helena, eu não profano,
Mas o Brasil não sente a liberdade.
Bárbaro é o povo, espuma de outra idade;
Há vão orgulho num republicano:
Nos chefes mesmo há gestos de um tirano,
E de um César a cega fatuidade.
Helena, te direi, por mais que pense,
Estou numa república insensata:
Meu tipo à Grécia de Platão pertence.
Quisera, esbelta e linda aristocrata,
Ao pé de mim o artista ateniense,
Moldando o ouro, e num Deus dando alma à prata.
Um dia de verão; rubro o horizonte,
O céu profundo, límpido, luzente,
Como cristal lavado, inda recente...
Uma hora bela, matinal, insonte!...
O córrego se alarga e estende: em frente
Há um bosque, que vai subindo ao monte:
Do monte desce trépida corrente,
Que abre entre selvas abrigada fonte...
Vemos, Helena e eu o mulherio
Quasi nu a lavar na água do rio:
Sobre a água a ramaria está cantando...
Lançam-se à sombra agora as lavadeiras;
E as brancas roupas pendem das balseiras,
Com a graça dos pássaros pousando...
Madrugada. – Montemos a cavalo:
Sem destino ir ao campo, ir à aventura...
Cochichos cantam; pula a água, e murmura,
Brinca, e rola em espuma alegre ao valo.
À esquerda um bosque: vamos costeá-lo;
À margem choça em flor entre a verdura:
Borboletas em chusma... E uma frescura!...
E um zéfiro! É agradável aspirá-lo!
Penhascos soltos: cabras pelos altos
Pastam, retouçam fina grama aos saltos:
Campônios vêm... Há na paisagem gente...
A pequeno galope ao lar voltamos,
Buscando a sombra ao lado, onde há mais ramos:
Cantam cigarras... Como o sol stá quente!...
Não sentes um rumor, que chega e passa?
É como voz longínqua e harmoniosa,
Doce, como o perfume de uma rosa,
Que em asas transparentes nos enlaça,
Que te oscula as espáduas com tal graça,
E te faz mole, trêmula, medrosa,
E de ouvir ficas, como receosa,
Sons de diamantes lúcidos, sem jaça,
Sons de pérolas, sons enfim de estrelas,
Sons vagos?!... delas são; estou a vê-las:
E ouço a bulha, que fazem pela esfera...
Veio de lá de cima um silfo agora,
E olhou-te: Um deus pergunta se és a Aurora?
Outro, ao deus, que te busca, diz: – Espera...
Quem sabe mais da monstruosa guerra
Dos Ciclopes, e o embate, e o estrondo rudo
Com que foi recebido um dia tudo,
O velho céu, o antigo Olimpo , e a Terra!...
Sei que às vezes a pena vale a espada,
Que por Juliões de El-Rei fosse forjada;
E a tem, logo que o poeta a ergue, e maneja.
A golpes fundos pelo ventre ou dorso
Lutam Titãs em áspera peleja,
Ruem com eles sóis num grande esforço...
Prefiro à luta o amor, que a vida encerra:
Vale ele mundos; creio, e não me iludo:
Serei só com Helena estranho a tudo...
Tudo... E digam: Sou eu, ou Deus, quem erra?...
O céu azul tem só um astro: o preto
Tem milhões de astros, inda que pequenos:
Mas tem milhões, milhões, milhões ao menos,
Aonde à noite em vê-los me deleito.
Quantas vezes, Helena, do meu leito...
Do nosso leito acordo, olhando Vênus,
E entre outros sóis quasi a dormir, serenos
Os primeiros clarões do dia espreito.
Tudo isto é grande, é belo, é bom! – E penso:
Que importa a mim o céu profundo e imenso!
Querer sondá-lo, vale acaso a pena?
O grande, o belo, o bom... o bom agora
É ter nos braços a mais linda Aurora,
É ter em ti meu firmamento, Helena...
O que é poesia, Helena? O céu invade,
E tudo une e desune e tudo enfeixa;
E tudo mete em sonorosa endeixa,
E tudo quanto foi, e inda ser há de.
É a voz de Deus, o som da tempestade:
Dá músicas ao mar, amor à queixa:
E ela em seu manto embrulha os sóis, e deixa
A ira enleá-la, e é cheia de bondade.
Embala o berço, e faz dançar a boda:
Mesmo ao trágico empresta os seus encantos:
Dá voz sublime à ventania douda.
É de existência dor, sorriso, prantos:
E a grande, a rica natureza toda
Luz, freme, goza, sofre, haure em seus cantos...
Que hei de fundir-me no universo, creio:
Para mim tudo é grande, é trono, é leito:
Para durar bem pouco, é tudo feito;
Não acho nada inútil, mau ou feio.
Isto, em que vivo, Helena, é nosso meio:
Não foi Deus que fez tudo assim? Aceito.
Tudo deve ser bom, e ser perfeito:
Tudo, que às mãos me vem, donde é que veio?
A vida é gota, é vaga, é mar: ilude.
E tem fim? Uma ideia ao Eterno ocorre,
Muda-lhe a forma, muda-lhe a atitude,
E o páramo infinito ela percorre...
E se comigo morre uma virtude,
Não... não é a virtude, enfim, que morre.
As serras correm cheias de neblinas,
Que inda o inverno de perto as ameaça:
O sol vem já mais quente, e as adelgaça:
Trepa a verdura a rir pelas colinas,
E a dar em torno novidade e graça.
Comigo, Helena, vem: mas imaginas
Que num pequeno quadro o artista faça
Tão grandes cousas, grandes e divinas!?...
A minúcia da sombra, o claro-escuro,
Um raio vesgo, que atravessa um muro,
Na choça aberta: a aldeã mugindo as rezes...
Com que prazer olhamos tantas vezes
Estas paisagens dum pincel seguro
De Breughel e pintores holandeses.
Eu não tenho certeza do que digo,
Que sou ante a grandeza do universo?
Deus, Mãe, Irmão, eu quero estar contigo.
Não te conheço, não: isto é diverso.
Sejas quem fores, sempre és nosso amigo;
Por ti penso, por ti lapido o verso;
Por ti eu sei o que há de bom na vida;
Por ti eu sei compreender o belo;
Por ti eu a ti mesmo me revelo;
Por ti Helena enfim me foi trazida.
Salve, mão benfazeja, e mão sabida!
Sei bem que a ti me prende um qualquer elo.
Eu amo, eu gozo, eu sofro, eu durmo, eu velo...
Cheguei: devo partir: venha a partida...
Helena, esta loucura nos assalta!
Queres saber quem fez (sublime empresa!)
Essa alâmpada, o sol, no céu acesa,
No céu, que à noite de astros mil se esmalta!?
Por que não faço de repente uma alta?
Por que perder-me nessa profundeza,
Querer saber o que é a natureza?!
Amor, ao pé de ti, o que me falta?
Onde no fim de tudo anda a verdade?
Deus a guarda nalguma imensidade?
Ou cobre-a apenas transparente bisso?!
Quando alguém acha um plano, e diz: – Agora
Sabe ele o que há pelo infinito em fora?
Trevas e sóis, dizei: – Que sabeis disso?...
Por que no Oriente o Pescador mergulha
Dentro do mar tão próximo ao rochedo?
Por que se esconde lá, e vai sem medo
E sem medo ele volta, e não faz bulha?
Que incêndio, à mão que mostra, lhe fagulha?
E no outro dia volta inda mais cedo:
E dizem que o oceano é sempre tredo:
É de vencê-lo, então, que ele se orgulha?
Vai à pesca de joias, e as arranca
A pedra, à concha, onde há pérola branca:
De uma e uma ele faz brilhante messe,
Misturando os corais, que traz com elas...
Eu também por abismos e procelas
Fora Helena buscar, onde estivesse...
Esse silêncio é tétrico, ou sublime?
Quem, no fundo, abre ou fecha aquela porta?
Por que nasci, e hei de morrer? Que importa?
A natureza é muda, e nada exprime.
Goza! – Julguei ouvir dizer: e ri-me.
Sofre! – Uma ave cantando o céu recorta...
Sofre! – Ouvi outra voz, a voz que exorta:
Não chorei. – Rir porém não fora um crime?
E o infinito e a eternal quietude!
Nós o encontramos sempre na atitude
De quem recebe tudo, ou morra, ou nasça...
Quando o sábio interroga, quando observa,
Vê que, esmagada aos pés, mais cheira a erva;
E ouve a voz, que lhe diz: – Não sei – e passa...
A tradição às vezes nos devora!
E há mesmo quem à fé mais doce e pura
Uma espantosa dúvida mistura,
E o bom Deus, que há em si, julga-o lá fora.
Gozemos desta luz da nova aurora,
Helena, não queiramos a ventura
Só para nós. – O sonho mau, que dura,
É por que dormem todos quasi, agora.
Por um caminho, onde há de haver só flores,
Cheio de glória, em meio de esplendores,
Há de raiar um novo e grande dia.
Digo-te, Helena, cheio de ansiedade,
Quando ao mundo chegar toda a verdade,
Há de ao mundo chegar toda a alegria...
Sinto-me às vezes grande, Helena: – Sinto
Que uma augusta altivez, que me enaltece,
Faz crescer tudo em tomo a mim, que cresce
Também minh’alma, então digna de um plinto:
E é quando de uma extrema aurora tinto
Vejo longe o horizonte, que amanhece
Num velho mundo em vascas, quasi extinto,
Que hora em hora se engelha e empalidece.
Temos um Pai no coração: aos povos
Trouxe Jesus estes conselhos novos:
Deus não gosta de ver nus e descalços.
Pode o trabalho só salvar o homem;
Agônicas visões inda o consomem...
Mas há céus ideais, céus menos falsos...
O céu amplo de sóis, eu te repito,
Não te pode valer, Helena. – Pensa,
E há nisto o fio, que contém suspensa
A esperança nos seios do infinito.
Por mais bela que seja a luz intensa,
Por mais belo que seja um astro, – um grito
Teu separa-te deles, e a diferença
Põe entre eles e ti, quando te fito.
O firmamento é como um grão de areia
Numa cegueira eterna: ele se enleia,
Nada vê, nada quer, e nada aspira.
A alma deseja, inquieta-se, vê tudo:
Entre ela e Deus há uma voz a miúdo,
Como dous sons irmãos numa igual lira...
Helena, ir ao jardim bem cedo é um gosto,
O café nas canecas fumegava
Sobre o banco da mesa ao lado posto,
Sentada a gente, rápido o tomava.
Eram os dias últimos de Agosto:
Às sete, os bem-te-vis em bando. – Entrava
Por ali dentro a luz do sol; brilhava,
Como uma estrela da manhã, teu rosto.
Nas serras, longe, nuvens em novelos:
E ao passar, remexendo os teus cabelos,
Uma aragem do mar, vinda do sul:
Na relva a verde lágrima cheirosa:
No céu fundo sorriso cor de rosa,
Tinindo em ampla e larga taça azul!!...
Ai! foi ontem! e ainda hoje em tudo a vejo!...
Era a nossa alma a borboleta douda
De flor em flor em rumoroso adejo:
E para nossa esplendorosa boda,
E para ouvir nosso primeiro beijo,
Foi um altar a natureza toda.
Em arcos de oiro e azul pousava a esfera,
Numa alegria, numa alacridade,
Feitas do olor da eterna mocidade,
Da vida e luz, da eterna primavera.
Dir-se-ia que uma estranha divindade
Na alcova estava ali de nós à espera:
Helena!... Ela sabia já quem era...
Ela... que amou-me desde a tenra idade!
Era um cravo, uma rosa e uma violeta
De um perfume suave e delicado:
Fiz um raminho, e disse, dando-o: – Aceita,
Vossa excelência, deste seu criado,
E de um amigo mesmo se me deita
Entre os amigos seus? – Muito obrigado. –
Riu-se Vossa Excelência: era à direita,
E eu, noutra cadeira à esquerda, e ao lado...
Com que ira os olhos teus lanças à pena,
Vendo-a correr neste papel, Helena!...
Pois foi quando te vi a vez primeira.
O acaso assim nos arranjara à mesa:
E eu pude ver-te, esplêndida beleza,
Sentado, ao pé de ti, a noite inteira...
Se tu estás com Deus, e em Deus, ó minha
Querida Helena, em Deus estou contigo:
De nos deixarmos não há mais perigo,
E esta imortalidade nos convinha.
Nós vamos indo por segura linha
No mesmo ponto, e em Deus ao mesmo abrigo,
Que é o infinito; – o verdadeiro sigo...
Como isto é belo! Nem pensado tinha!
Cantemos, pois, em uma sequidilha,
Que dança e volta e salta e pula e brilha,
Sem quasi os pés no chão nos voos pôr,
Em frase doce, límpida, esquisita
No amor, nossa vida; e se repita
Por toda a parte: – Amor... amor... amor...
Podíamos gozar de tudo, Helena,
Sem nos darmos à irredutível pena,
De entrarmos, cegos! na razão das cousas.
Que queres tu no teu trabalho insano,
Que queres tu também, que não repousas,
Dando voltas ao mundo, irado oceano?
O que tudo saber nos leva, e arrasta,
E não deixa ninguém quieto em seu leito
Dormir profundamente satisfeito,
Dentro da paz da natureza vasta...
Esse desejo enfim que a vida gasta
É o homem ter sentido Deus no peito
Sem que lhe reste nunca o ultriz direito
De dizer ao mistério: É tempo... Basta!...
Quando ao fundo do amor eu me retiro,
Sinto que alguém quer vir estar comigo:
Entre, quem bate? – Franco é meu abrigo. –
E ouço um grande rumor, quasi um suspiro.
Aos seus dous braços rápido me atiro:
Aos meus dous braços eu também a ligo:
E assim num só os dous... – Eu a bendigo,
E rio, e choro, e beijo-a... Ergo-a, e deliro.
Como soubeste tu que eu tinha entrado
Neste abismo tão longo, separado
Do céu, da terra, dentro em mim aberto?
– Eu só estou bem, se em teu amor habito –
Disse-me Helena então, – tudo o que fito
Sem ti é logo intérmino deserto... –
Numa pequena barca cor de rosa
Teremos nós passado nossa vida
Em lago claro de água amortecida,
Por onde se navega, e brinca e goza.
Nunca vaga mais alta e marulhosa,
Nunca uma nuvem pelo azul trazida
Manchou o nosso céu, e a luz bebida
Sempre é por taça de cristal formosa.
Todos meus beijos guardam-se metidos
Pelo teu corpo, pelos teus vestidos,
Murmurando canções no tom mais terno;
Chilreios de uns álacres passarinhos,
Inda nas ramas, dentro inda dos ninhos,
Para os quais sempre há sol, jamais inverno...
Meus sonhos são da cor de teus cabelos,
Quando em torrente de oiro desatados,
Ao tom do vento álacre e fresco é vê-los
Sobre o teu colo ebúrneo despenhados.
Nem as espigas lourejando os prados,
Nem rio ardendo ao sol, correndo pelos
Campos em flor, dos raios seus doirados,
Todo ferido, em luz hão de excedê-los.
Têm meus sonhos em si lá dentro um mundo;
Veigas florindo, pássaros nas veigas;
Para os astros e o sol um céu profundo,
Quando, Helena, tu vens, quando tu chegas,
Quando de beijos meus teu rosto inundo,
E tens na voz milhões de coisas meigas.
Nuvem, que queres tu? Eu não preciso
De ti: meu grande céu azul se arqueia
Dentro de mim: de ti não se arreceia:
Passa. – Fico. – A luz só dá-me o seu riso.
Fora o ronco, trovão: meu paraíso
Não te ouve; é longe. – Torce essa cadeia,
Raio: reduz a rocha a grãos de areia,
Vento, o mar para mim é sempre liso.
Nesta gruta, em que estou, a tempestade
Não chega: o amor em si esconde Helena.
Chuva, podes cair: tua água invade
O campo, o vale... Aqui a luz serena
Vem da paz de nossa alma: e pois quem há de
Tirar das asas dela uma só pena?...
Éden, Olimpos, céus, sois circunscritos
Por largos muros, grandes, diamantinos,
Onde falanges de anjos peregrinos
Vibram na lira as letras do seus ritos,
Por sacerdotes anciãos escritos.
Armados de oiro, batalhões divinos
Vão bandeiras de luz soltando, aos hinos
Cantados por espaços infinitos.
Todos, que sois ante a potente Essência?
Seculares visões, vossa existência
Brilha só nos velinos amarelos.
Deus está em si mesmo, e a si se basta:
O tempo algures busca-o, e o tempo gasta...
Helena, valem céus teus olhos belos...
Terei sofrido muito na verdade?
Mas sofri tanto!... A minha paz serena,
O teu ideal, ó minha amada Helena,
É uma nativa e natural bondade.
Minhas ações, quem profligar-mas há de,
A própria inveja, que me causa pena,
E o ódio, que a si mesmo se condena,
Em mim fazem nascer maior piedade.
Que quereis ver aqui? Quem vos convida?
Que em torno a mim o mundo se reúna,
Julgue-me, e lhe direi em voz erguida:
– Não há um Deus tão grande que me puna,
Porque busco, e busquei em toda a vida
Ser do tamanho mesmo da fortuna... –
Curva sutil um corpo augusto traça
Do colo ao flanco, e vai do flanco ondeando
Em ritmo doce, em movimento brando
Até aos pés, que molemente a enlaça.
É a própria beleza e a própria graça:
E, como um hino harmonioso, quando
Ergue-se, e anda: é música que passa,
Um solo, em violino, baixo arfando.
Que lanugens de estrelas sobre o linho
Duma axila redonda, com um ninho,
Em que pipitam pássaros em coro,
Quando levanta o braço, um pouco nua,
E sujeita o cabelo, que flutua
Ao vento, um sol desfeito em raios de ouro...
Helena, eu ontem sério te dizia,
(Quando estou sério e triste estou contente)
Que todo o céu, e o que ele tem, queria
Para deles encher-te o chão somente,
Como à Virgem fazer nos quadros via,
Entre estrelas e a lua no crescente,
À luz de um riso, que em teus olhos ria...
Disseste: – Vê, esquece-lhe a serpente...
Pois sim: quero ser ela um só instante,
E entre sóis e os clarões do teu semblante
Ver que em ti a Madona se renova:
Pouco e pouco ir perdendo os meus sentidos,
E entre o aroma sutil dos teus vestidos,
Achar na cova dos teus pés a cova...
Quando uma estrofe alada ao céu eu movo,
Ela vai indo pela esfera imensa,
Até que bate numa treva densa,
E devagar à terra vem de novo.
Como da cova ir longe, espera um povo!
Deforma uma alma a velha e estreita crença,
E nela ir até Deus, crê cega: e pensa...
Tu não crês nisso, Helena; – o forte eu louvo.
Cristo não quer esse insensato esbulho.
Há de ser outra a fé da humanidade,
Trazida em mar, que cresce sem marulho:
Há de triunfar em tempo essa verdade!
Mau grado ao grande, universal orgulho:
Mau grado a toda universal vaidade!...
Pensa fazer um ato da justiça,
E, espumando de raiva, a fera lança
Numa das brônzeas conchas da balança
As cóleras, que um ódio mau atiça.
Sem fé, sem esperar de uma esperança,
Pesa em outra uma ação nobre e inteiriça,
Que o esmagou, que de rastos tem submissa
A alma: – a queda lhe pede então vingança,
Ergueu-se contra nós vil inimigo,
E o amor, quando o não vence e o não conquista...
Eu, em verdade, Helena, aqui te digo,
Se há quem num sentimento tal insista,
Não há mais a viver em paz consigo:
De ter céus, de ter Deus em si, desista.
Nessas conversas íntimas, Helena,
Aqui no lar, sem mais ninguém, sozinhos,
Como a sós, alta noite, nos caminhos
Dois torcazes, da lua à luz serena,
Mudos quasi, a gemer em seus carinhos,
Falamos sobre Deus, amor, beleza,
Sobre a existência, sobre a natureza,
Sobre o que inda há de bom, além dos ninhos.
Cremos que julgam crime o pensar nisto,
Fundir a ideia em moldes não sabidos,
De outro modo entrever o Ser divino...
Sócrates, Spinoza, e Jesus Cristo,
– Os grandes mestres – foram perseguidos,
Porque foram mais sóis que os sóis a pino...
Quando, Helena, abandono esses problemas,
Essas questões e dúvidas de Hamleto,
Para encostar a fronte no teu peito,
E tirar dele harmônicos poemas,
E em ti achar os amorosos temas,
E adágios belos de um cantor perfeito,
Lembro as brancuras fúlgidas do leito,
Onde eu gema de amor, e onde tu gemas,
Onde te beijo as faces delicadas,
Não dessas monjas pálidas, que odeio,
De feições magras, tristes, maceradas...
Como em André del Sarto o corpo cheio
Tens das Madonas bem equilibradas,
És alta, rubra o rosto, arfante o seio...
Cante o hino supremo da alegria
Dentro da grande paz da natureza,
Enquanto vai do sol caindo o dia,
Lâmpada eterna em curva azul acesa.
Rompa o beijo do amor e da beleza,
Como o incenso p’ra o golpe o tronco cria;
Bebamos já o cálix da ambrosia...
Logo?... Amanhã?... E tudo uma incerteza!...
Cairemos com toda a compostura:
O ritmo, o gesto, a graça, a formosura,
Ao ouvir as horas últimas vibradas.
Helena, assim no voo alto ferida,
Do céu à terra cai a águia sem vida,
E, hirta, inda mostra as asas desdobradas.
Helena, rolam nuvens pelos ares:
Surdo rumor do vento invade tudo,
Relâmpagos desatam-se a miúdo,
Tingindo os céus, ferindo a fundo os mares.
Lembram-se os navegantes do seus lares,
Onde o fogo à lareira à noite é mudo
E o sono é pedra sobre o catre rudo
Como é pobre a candeia em seus altares.
Os navios das vagas galopando,
As sirtes aos traidores seios colhe-os,
Enquanto perto, à praia, estão chorando
Gritos, exclamações, gemidos, olhos:
E a um tempo a rir do fato miserando
Ciclopes feitos de ásperos escolhos...
Um trecho das Geórgicas, Helena,
Não te vem por acaso agora à ideia
Vendo naquele tronco uma colmeia,
Onde anda em roda agreste cantilena?
Parece que, depois duma assembleia
De ampla questão, que se agitou na arena,
De entre as abelhas, tribo não pequena
Sai, e lar novo ao pé, num tronco, creia...
E andam todas zunindo, andam enxames
Num barulho contínuo sobre as flores;
Cálices haurem, pegam-se aos estames...
Então lembram-te uns versos sedutores...
Por mais que estudes tu Virgílio, e o ames,
Nunca será demais, se ao campo fores...
Fugiu do mundo a paz: foge a alegria:
O orgulho trouxe o luxo; o luxo a guerra;
É uma arena ensanguentada a terra,
Onde só a traição ferir espia.
É esta a história enfim de cada dia:
Ódio sem causa, que ódio igual aferra:
Helena, um medo um outro medo aterra;
E a cobardia cria a cobardia.
Falsa religião, falsa virtude;
Ferros batidos numa enorme incude,
Como para prender milhões de doudos!...
E neste horror vai indo a humanidade,
Numa aparência vã de liberdade,
Escravo cada um; escravos todos.
Clamor no campo. – Havia novidade.
A Senhora da Luz, Virgem Maria,
Mãe do Divino Mestre, àquele dia,
Tinha a sua maior festividade.
Por toda a parte ranchos e ansiedade:
Desde manhã vibrara o sino e enchia
Montes, vales, planícies de alegria:
De Helena entrava nisso a mocidade.
Fomos à festa. – Aporta da rotunda
Estava aberta: os padres nos altares...
A luz crepita, corre, a nave inunda...
Cantam, como quem geme os seus pesares;
E o órgão tudo acompanha em voz profunda,
Sonora e triste, como a voz dos mares...
Um concurso de causas numerosas,
Que não podemos conhecer, nos liga
De repente, – e tu vens, ó minha amiga,
Vens até mim num pélago de rosas.
Que virações, que deusas misteriosas
Te vieram trazer? E quem te obriga
A ter o velo, a desfiar a estriga
Sob este céu azul com mãos piedosas?
Vi-te e cheguei-me a ti: tu me sorriste,
Eu te sorri! – E então fiquei tão triste
Que estar triste era só minha alegria...
Por quê? – Porque perdi o mundo, achando
Tudo em ti: e só tu, e o olhar teu brando,
Nada mais para mim, Helena, havia...
Ah! se eu fosse Jesus depois de morto,
Vindo, Helena, do céu em grande glória,
Triunfador, depois de uma vitória,
Filho de Deus e do Homem, imenso e forte,
Entre anjos, como nunca houve memória,
Atrás de mim sóis novos em coorte,
Eu mudara dos maus a triste sorte,
E em terra, – na parada provisória,
Não afastara a quem me repelira;
E o próprio Judas, se outra vez o vira,
Num beijo de perdão o abraçaria...
Eu me mostrava um Deus, mas Deus em tudo;
E em meu manto estrelado de veludo
Contente o mundo todo envolveria...
Tens de Eva em teu olhar, Helena, o espanto,
Quando em fora ao casulo, que a envolvia,
Vendo o sol — a corola, o cheiro, – o dia, –
No Éden poisou, como um sorriso em prato:
Sorriso em pranto, o modo de alegria,
Em que mete a mulher mais graça e encanto
Em tua voz... tua voz é já um canto;
E o céu, a ouvi-la, treme e a balbucia:
O português, esse latim bastardo,
Que é tua língua, e a língua do teu bardo,
Cai de tua boca em oiro, oiros rolando:
Nela há inda um rumor de asa em adejo:
E a dizeres – amor – depois de um beijo,
Não há outra que tenha um som mais brando.
Helena, esta adorável criatura,
Quereis saber quem é, donde veio,
Onde nasceu enfim e por que meio
Teve tão rara e estranha formosura?
Aumenta a vossa dúvida e receio?
Onde reside? Excele a construtura
Do seu palácio? É fada? Em que espessura
Foi encontrada? Por quem foi? – Sabei-o.
Quem foi? quem é? que faz? Tendes a vista,
E tudo que não vês, que é muito, e é dela,
Dá-lhe minh’alma e coração de artista.
Como estrela por uma noite bela,
Que adrede o telescópio ao céu conquista,
Ela assim fulge, arfando, e se revela!...
No lado esquerdo o coração me salta:
Ponha a cabeça desse lado, ponha,
Conchegue o ouvido seu, como quem sonha,
E acorda, achando, não o que lhe falta,
Não o que quer, aspiração mais alta,
Mas torrente hirta, insólita, medonha,
Que uive ao fundo do abismo, uive, e o transponha
Levando em rojo uma alma, que se exalta,
Se estorce, e rompe, e se desfaz num brado
Úmido, surdo, quasi estrangulado,
Como um soluço... Ouviu-o? Ouvi-lo é doce?
De uma porção de carne do meu peito
É cada poema seu cortado, e feito:
Meu sangue em versos de oiro aí tem: coalhou-se...
O sol ia caindo, umas corbelhas
De rosas sobre as nuvens derramando:
E foste à tarde, Helena, ver brincando
No campo a infância, com que tu semelhas.
As mães tinham nos olhos as centelhas
Das luzes de um farol alumiando
Aquele alegre e tumultuoso bando
Desgarrado, zunindo, como abelhas.
E essa grinalda viva de crianças,
Sem passados de dor, sem esperanças,
Sem ambições, e ainda sem cuidados,
Ia voando em roda alvissareira,
Sem mais dar fim às voltas da carreira
Sobre o veludo, que tapeta os prados...
Nos nossos dias cálidos de Outubro,
Quando à manhã se deixa cedo o leito,
E ao ar mais fresco se dilata o peito,
E é sem sol o horizonte apenas rubro,
Penso em ti: quero ver se em ti descubro
De que granito foi teu corpo feito;
Se há nele algum pedaço não perfeito;
E com ambas as mãos meu rosto cubro:
Fico dentro de mim num fundo exame:
E sabes dele, Helena, o que eu apuro,
Tu que és meu néctar, bálsamo, e ditame?
És a própria harmonia, eu te asseguro:
Não há um trecho só, que em ti não ame;
Nem tem a Jônia um mármore mais puro...
O que valias tu? Era preciso
Saber teu gesto superior de mando,
Para ver como chega o paraíso
Ao lugar que teu dedo está mostrando...
E tudo quanto é bom se imaginando,
Na areia oiro em palhetas de improviso,
Dentro do mar só pérolas achando,
Era o escrínio do amor que em ti diviso.
Foi do fundo do teu olhar mais brando
Que, numa tarde límpida e serena,
O teu riso entre lágrimas brincando,
Numa clara e suave cantilena...
Tu me trouxeste o céu, desenrolando
Todos os sóis sob os meus pés, Helena.
Eu vou aqui cantando as sonorosas
Horas de amor, que amor nos proporciona,
Como quem num vergel colhendo rosas,
Vai depô-las no altar de uma Madona.
A minha lira, onde o prazer ressona,
Não veste o tom das músicas ruidosas,
E negligentemente se abandona
Da natureza às cousas deleitosas.
É calmo tudo quanto é duradouro,
O espaço, que se perde no infinito,
Tendo dentro de si os astros de oiro.
Do que vai ser de nós eu não cogito:
Deus vai no céu conosco; e os sóis em coro
No céu mesmo, em que estás, no céu que habito...
Tão diáfano o ar, que a luz fremia,
Jorrando sobre a prata da corrente,
Que um Míron e um Calímaco brunia,
Cinzelando-a, e das árvores em frente,
A variegada flora que surgia
O buril trasladava: transparente
Abria o céu azul profundamente:
Borboletas haurindo o fluido ao dia,
Passam molhando as asas multicores;
E após de par em par por sobre as flores,
Onde uma e outra por mais tempo resta;
Pássaros cantam, remexendo os ramos:
E Helena e eu, que por ali passeamos,
Damos nossa alma a toda aquela festa...
Quando te vi por vez primeira, quando
Inconsciente do mal que me fazias,
Tinhas cheias de estrelas crepitantes
Pupilas, que inda há pouco eram vazias;
O universo eu via em torno desabando,
Sobre ele, em voo, as minhas fantasias:
Oh! se fugi!... Mas como me prendias
Na voz, no olhar, no rir, no gesto brando.
Busquei, num labor grande, Helena, escudo:
Mas deixava de súbito, – que queres –
Mesa, livros, papéis, cadeira, estudo,
Só por te ver passar, alheado e mudo,
Entre a sidérea turba das mulheres,
Mulher solar, iluminando tudo!...
A um Deus Ignoto o hino meu entoo?
Não sei se a morte é sono, ou queda, ou voo...
Quem vela e cuida desta natureza?
Quem tece a luz do sol de cada dia?
Quem linho branco para o lírio fia?
E o dano? não nos vem, como surpresa?
Completa em nós sua vontade esteja,
Como ele quer, no Deus que o serve, e o habita;
E a sua força única, infinita
Erga, ou destrua a sua grande igreja...
Tanto ele faz, e que ele se não veja!...
Se nós pensamos, ele o que cogita?
Que alvo esse Deus, Helena, ou mostra, ou fita?
É... – Eu sei quem é ele? Eu sei quem seja?...
Parar devemos dentro do universo:
Nele o humano saber tem seu limite...
Não há mais nada que a alma exalte, e irrite,
E tome o ser, que pensa, um ser perverso.
Helena, acaso Deus nos é adverso?
Quem pois nos farta o indômito apetite?
O mundo além do túmulo é diverso?
Julga alguém que esse mundo o nosso imite?
E o que é essência, causa, eternidade?
E essa causa sem causa, esse infinito,
Isso que não começa, nem acaba?
Em tudo está presente a Divindade...
Crê: adora... – Isso basta? Oh! sonho! oh! mito!..
Isso, Helena, isso tudo oprime, esmaga!...
Parecia-me o espaço azul mais doce,
Em gala a terra mais formosa e meiga,
Cheia de rosas e jasmins a veiga,
Como se tudo mais risonho fosse,
Mais infantil, mais puro quanto trouxe,
Nas belas flores, que cheirando enfeixa,
E solta aos campos, quando à última queixa
Beijá-la à boca, Helena enfim deixou-se.
O que eu sorvia, o céu tão só não era,
Parecia beber-lhe os sóis fundidos
Por uma rica e esplêndida cratera:
Eram nesgas de estrelas seus vestidos,
Sob os quais me cantava a primavera,
Música nova e estranha aos meus ouvidos...
Às vezes me atormenta um pensamento,
Que é o terror talvez do fim das cousas:
E enquanto, Helena, ao lado meu repousas,
Ouço a selva agitar lá fora o vento.
Vem do excesso do meu contentamento...
Por vergéis sermos duas mariposas...
Mas crer que dure mais que um só momento
As borboletas e os vergéis não ousas.
Quem sabe o que vai ser desta alegria,
Que gozarmos nós dois dia após dia?
Tudo atrás fica, e o tempo passa e corre;
E como uma águia afunda-se nos ares,
E entra um navio pelo azul dos mares,
Tudo se perde pouco a pouco, e morre...
Isto aqui acabrunha; ali enleva:
É tudo em ti mistério e formosura:
Helena, és flor e espinho, e ódio, e ternura,
Beijo de luz e ósculo de treva.
Ao vento as ondas têm a voz mais dura;
Como a paixão a voz te acera, eleva;
E há em teu coração a mancha escura,
Que a nossa raça herdou de um filho de Eva.
Tu és um grão de areia, e um mundo: um fosso,
E um monte; um círio e o sol; o baixo e o agudo;
Mudez de ossário, e grito de mar grosso;
Concentras toda a natureza: estudo,
E penso, e enquanto penso e estudo, eu ouço
Em ti todo o universo ecoando: – eis tudo.
Vales tu só todo o universo, Helena;
Resumes tudo num pequeno espaço:
E quando a mim te subjugo e abraço,
Stou abraçando o Deus em glória plena:
Sei que alguém a me ouvir cantar condena
A ideia que de ti, amor, eu faço:
Mas estes mesmos míseros enlaço
No mesmo turbilhão, na mesma arena.
Stamos todos no céu: tudo é divino:
E quando para ti me curvo, e inclino,
Sei que ajoelho à própria divindade:
É tua fronte um mármore do Egito,
Pedestal em que um pé pousa o infinito,
E outro pé pousa, arfando, a eternidade...
Helena, bebe néctar e ambrosia,
Enquanto o extremo acorde amor desfira,
E nos meus olhos brilhe a luz do dia;
Se eu mais cantasse, mais o céu me ouvira!
Canto, como Meleagro cantaria,
Dando-lhe os sons um deus à tosca lira;
Há de maravilhar-se inda o futuro
Vendo teu busto régio aureolado!
Quem rasgasse ao porvir o manto escuro,
Já de hoje ao ouvir meu verso apaixonado,
Ao ouvir meu verso apaixonado e puro,
Quando teu nome, Helena, enunciado,
Como um sol a bater um branco muro,
For feericamente iluminado!...
Ai! quantas vezes em qualquer ogiva
Do teu palácio branco recostada,
Haurindo a doce noite embalsamada,
Como quem toca numa sensitiva,
Que estremece, alma grande e pensativa,
Eu te olhava de perto descuidada,
Como de tudo em torno enamorada,
Da natureza em placidez conviva.
Pela campina rasa a flor dormia...
Límpido rio apenas gorjeando
Ao respirar das folhas em repouso...
Cantando baixo, Helena, inda te ouvia
Versos de Alfieri bronzes ressoando,
Ou os de Cocchi em frêmitos de gozo...
Eu sou a gota d’água, que haure e traga
A gota d’água, sua irmã, no oceano:
Não foi loucura o meu trabalho insano,
Vaga eu mesmo indo após a cada vaga.
Do meu esforço, Helena, eu tenho a paga;
Teu coração do meu é soberano:
Dois discos de um anel no mesmo plano,
Dois cisnes só que uma carícia afaga,
Dois instrumentos numa só toada,
Uma corda por outra harmonizada;
Nós dois dentro da luz do mesmo dia:
E se em minha alma a tua não coubesse,
Num só... num só idêntico interesse,
As duas gotas uma só faria....
Nada de novo, Helena, eu te revelo:
Em ti o poeta e o gênio o amor procura,
E dar só quer no amor um culto ao belo;
E assim a forma esplêndida e mais pura
Só para ti nos versos meus cinzelo,
Como um pedaço de oiro se escultura.
Quando alguém mete as mãos no mar, se tira
Uma concha e uma pérola do fundo,
Ao entrevê-la esplender ri e suspira,
E crê que foi Colombo e achou um mundo.
Oh! se consegue minha doce lira
Pôr-te em sonora auréola, segundo
O que teu rosto e o meu desejo inspira,
De outros sóis céus e terra e tudo inundo...
Se Beatriz do seio do infinito,
Onde talvez esteja o paraíso,
Nos lançasse o seu pálido sorriso,
E esse lânguido olhar, que ao Dante aflito
Das auréolas do céu, ouvindo o grito
Do amoroso poeta entre indeciso,
E audaz a um tempo, em busca do seu mito,
Ela deitou-lhe ao vê-lo... que juízo,
Ó minha bela Helena, amante, e amada,
Farias tu dessa visão cantada,
Por quem mais que ninguém cantar sabia?
Ela, que tinha tanto amor no peito,
Gozar não pôde nunca o amor do eleito,
O riso e o olhar de Beatriz diria!...
Eu, Helena, não sou um vagabundo,
Quando contigo vou montes e vales:
Não achando ninguém a que te iguales,
De polo a polo inda percorro o mundo;
Irei do mar profundo ao céu profundo,
Onde tu queiras ir, onde tu fales,
Onde respire o hálito, que exales:
Do lugar em que estás sou oriundo.
Antes do tempo estava isto prescrito:
Isto foi sempre assim: já não tem era;
Foi situado à margem do infinito
O azul país da eterna primavera...
Conheces, sim!... Contigo eu nele habito,
Meu céu, meu sol, meu deus, minha quimera...
O rio vem do mar, para o mar corre:
Quem sabe por que nasce e por que morre?
Sabe o sol que ele faz a madrugada?
Quem fez de um grão de areia este universo?
Não podia fazê-lo outro e diverso?
Pode cousa qualquer sair do nada?
Por que nos fez assim com fome e sede,
Selvagem, como a fera da floresta,
E não pôs tudo numa eterna festa?
Quem deu a vida não daria a rede
Em que se embala o índio no arvoredo,
Mas que ele arranca ao tronco com trabalho?
Ruge em torno de nós a dor e o medo...
Nada vales, Helena, e eu nada valho?!...
O teu ser ao meu ser num só misturo,
E a dor da vida, e as longas alegrias:
Devo-te o verso apaixonado e puro,
Que à boca dos teus lábios me escorrias.
Serás deusa imortal inda em futuro:
O que dirão de ti longínquos dias,
Teu nome ouvindo em minhas harmonias?
Quem ao porvir rompesse o manto escuro!...
Helena, bebe o néctar e a ambrosia
Até que o extremo acorde a mão desfira,
E a luz nos olhos meus não cante e ria.
Se eu mais cantasse, mais o céu me ouvira...
Canto, como cantou Meleagro um dia,
Dando-lhe amor aos sons à ebúrnea lira.
Crer em Deus é criar um Deus: eu creio
No amor também, o amor abriu-me o seio
Dessa mulher, que em si amor me trouxe.
É minha: o amor a fez, a deu, é minha:
Essa criatura és tu, Helena, e tinha
O sol, que me envolveu na luz mais doce...
É a corola de uma rosa aberta
Ao influxo da manhã ao calor brando,
Toda a roseira em torno perfumando,
E toda rubra em céu azul desperta.
Acabou-se-me a vida aérea e incerta,
Achei o ninho, que ia procurando:
A minha alcova não está deserta,
Tenho lá dentro um pássaro cantando...
Planto num livro este pequeno arbusto,
Que há de ser algum dia um tronco, um loiro:
Há de invadir o espaço, e há de ir sem susto.
És bela: em belo mármore teu busto
Mostrei a todos numas frases de oiro,
Que batem só quem tem um tal tesouro:
Quem ama muito é sempre um deus. E é justo.
Todo idílio, que sai da minha avena,
Tosco é verdade, rudo, e sem cuidado
Aos séculos irá por ti, sem pena.
Ao tempo infindo, ao tempo perpassado
Tu não escapas a ti mesmo, Helena!...
E inda na glória eu quero ser amado...
Eu que desejo? – Se este céu falasse,
Este céu transparente, e quasi austero
Com seus milhões de sóis? O revérbero
Dessas estrelas dizem-me: – que eu passe.
Queremos mais do que promete a vista;
Queremos mais do que nos mostra o espaço!...
E esse espaço da terra inda o que dista!...
Há mesmo tédio em vê-lo: há já cansaço:
Nossa funda ignorância nos contrista:
Mesmo vivendo sempre aqui, que faço?
Só contemplar a obra divina? – Eu quero
É ver, contemplar Deus, e face a face
Tê-lo ante mim; e quando o interrogasse,
Ouvi-lo... – Mas, em vão, Helena, o espero!...
Por que será que as solidões procuro,
Que amo contigo, Helena, o mar e a brenha?
Porque tens tu em ti: e há mais quem tenha
Melhor do que tu tens em ti seguro?
Um rosto belo, um ar cândido e puro;
Um cabelo, que ao vento se desgrenha,
Rio de oiro, que ao colo se despenha;
Colo, que faz o jaspe branco escuro,
É teu: e eu não compreendo, que respire
Perto de ti alguém, e que me tire
Um pouco do que é meu, e alguém te veja,
E se morra de amor por teus encantos:
Nem que sejam do céu anjos e santos:
E nem Deus mesmo, sim! nem Deus que seja...
Não sopram mais as virações sonoras,
Mexendo as flores dentro em seus canteiros:
São os minutos todos prisioneiros:
Não há relógios mais que batam horas...
Nos mostradores dormem os ponteiros,
Como de vir pararem as auroras:
E o instante, e o dia, e o mês, e anos inteiros
Passar não vejo, Helena; e tu o ignoras.
É num país azul, onde imagino
Estar no mais completo esquecimento
De tudo, que é humano, e que é divino...
Todo o ar que eu respiro é teu alento;
Em ti concentro todo o meu destino:
Séculos vivo em ti num só momento...
Há numa afinidade eternos laços
Que nos vão procurando, e vão unindo,
E atravessando intérminos espaços
Eis de improviso em frente o par mais lindo.
Levaram muitos séculos dormindo,
Até se verem um do outro nos braços:
Das várias vidas lembram-se pedaços,
Contam quanto passou de um tempo findo...
Nós, Helena, hemos ser de outros países,
Havemos inda amar, e ser felizes
Sobre outros mares, noutros continentes,
Como antes fomos já, e como agora
Atam os dois no amor por mundo em fora
Outros nós a um sol novo, e novas gentes...
Quando Helena encontrei mulher um dia,
Quando eu a vi inopinadamente,
Numa saúde forte e resplendente,
Nesse rubor de aurora que surgia,
Como um mármore jônio de repente,
De Fídias obra, que ninguém sabia,
Milagre de um buril onipotente,
Que o ferro arranca à terra que o escondia;
Tive um tipo de incógnita beleza,
De um acabado, de uma tal grandeza,
Que parecia vir de alguma estrela,
Onde vivera, onde anos habitara,
Iluminada em trono, em pé, em ara,
Que um deus quis para mim de lá trazê-la...
Parece que te fez a natureza,
Como ela quis, compondo a tua imagem
Grande, gentil, e cheia de coragem,
E onde tudo é doçura, amor, beleza.
Como uma estrela, que não queima, acesa,
Respiras meiga e perfumosa aragem:
Há música tangendo-te à passagem;
Levas de harpa a harmonia aos pés teus presa.
Por ti, Helena, amanhecendo agora
O campo todo em festa e flor se touca
E o céu abre esse azul que lhe é preciso
Para dar um realce à nova aurora,
Aurora feita para tua boca,
Boca, em que pousa e adeja o seu sorriso...
Vem dar sol novo ao céu nova alegria?
O mar invade aqui, dali recua:
Florindo a terra, aonde o mar flutua,
Será do globo a face outra algum dia...
Espaço imenso, grande estrelaria,
Que força enorme e paciente atua
Em vós, para que em vós tudo à porfia
Morrer pareça, e nada se destrua?
Sonhos, quimeras são as realidades:
Crê alguém nestas imortalidades?
Não creio, Helena, e tu crê-lo não ousas...
Letra, palavra, mármore, granito,
Na voragem do tempo e do infinito,
Tudo muda: e hão ter fim homens e cousas?!...
Esta mulher ninguém a abate, e humilha:
Deu-lhe a dor a estatura onipotente,
Que ante um Deus, ante um rei toma-a indiferente,
No gesto o Arcanjo S. Miguel lhe brilha.
– Eu o que vejo, é morta minha filha:
Eu o que sinto, é disto o horror somente:
Diga uma mãe, que é bom sofrer: ou mente,
Ou dor igual à minha não partilha... –
Helena via, e ouvia em vão transporte
Esta mulher: – Foi bom, quem fez o dia:
Porém maldigo a quem criou a morte.
Se há um Deus grande, Deus não quereria,
Que eu não me erguesse contra uma tal sorte:
Mesmo um cobarde estranha a cobardia!... –
Quando sobre uma pele de pantera
Mais negra do que a noite mais escura,
Via-te nua e branca, ó formosura,
Como a estrela na sombra pela esfera
Se destaca melhor, tem luz mais pura,
Sei lá dizer-te, angélica quimera,
Se mesmo, o que eu sentia, era ventura,
Se dentro em mim cousa melhor não era.
Sei só que enchia o vale dos teus seios
De beijos; – eram beijos e gorjeios
Da fronte à curva dos teus pés gentis.
Sentia o amor, que vive, e se abandona,
Não o de Michelangelo e Colona,
Petrarca e Laura, Dante e Beatriz...
Ruim estampa da Virgem Maria,
Em muito mau papel litografada,
Num pobre quadro ao muro pendurada,
À baça luz de lâmpada sombria,
Por uma pobre gente venerada
Em altas vozes, grave litania
Cantando com respeito, e ajoelhada...
Formosa tanto como a luz do dia;
Era para eles peregrina tela;
Da mãe, que nunca vê ou falta ou crime
Nos filhos, cópia exímia, e pura, e bela...
Helena, o amor em nós um culto exprime:
Amar uma mulher, e só ver nela
Tudo que é grande, e bom, puro, e sublime!...
Helena, o mar que a praia investe e alaga
Tem por cima de si roncando o vento;
Mas tem também um límpido momento,
Em que apenas murmura ou canta a vaga...
Mas se a vida febril nele se apaga
Melhor espelha o dia e o firmamento,
E as estrelas melhor ao seio afaga
Se docilisa e abranda o movimento.
Instantes há que em ti tudo adormece,
Como numa alma concentrada a prece;
Arfa-te o peito, e o corpo não agitas:
Dormem-te os sóis da lânguida pupila;
E tua face pálida e tranquila
Reflete a paz das cousas infinitas...
Queres saber, Helena, que bendita
Lei de Evangelho, ou Bíblia, ou Veda, ou Igreja,
Como um clarim, que brada, e que concita,
Une o homem, por mais feroz que seja.
Minh’alma ao ouvir-te em páramos adeja,
Alegre, douda, asas abrindo, grita,
Como uma águia na abóbada infinita,
Como tua boca, quando ela me beija.
É o amor, que a sanha do leão reprime:
E o amor, que transmuda em luz o crime,
Que enche de sóis os céus, e anda a fazê-los;
É o amor, que no lar os entesoira,
Porque há, em cada criancinha loira,
Uma estrela a brilhar-lhe nos cabelos.
Helena completou uma paisagem,
Em que ela mesma se pintou no meio
De ásperas rochas, lúcida folhagem,
Por onde vinha serpeando um veio,
Que se ouvia cantar, ao som da aragem,
Mexendo-o em cada lânguido volteio:
Sobre as frondes o sol batia em cheio,
Deixando dela, à meia sombra, a imagem.
Mas um só raio, que através da rama
Lhe batia na fronte, espedaçado,
Sobre seus grandes olhos se derrama,
E a empoeira de luz: de lado a lado
Há como o crepitar de acesa chama
Em pedaços de azul de um céu franjado.
Hoje, Helena, a fazer uma viagem
Em falua, comigo se destina:
Abre esta ao vento a bela asa latina,
Com todo o alvor da nítida plumagem.
Helena é graça, mas também coragem:
A própria vaga ela a nadar ensina;
Porém do sul de súbito uma aragem
De um lado e doutro a nossa barca inclina.
Ir não quisemos – De Dezembro em diante
O mar é bruscamente levantado,
E em volutas a onda arfa ululante...
Pressagiara tormenta o sol montado,
Como um belo topázio cintilante,
No grande manto azul do céu pregado!...
Vem de bem longe, Helena, a tua imagem:
Encontrei-a depois talvez na Espanha,
Em cidade, que o Darro, e o Xenil banha,
Quando de África ali era a miragem;
E talvez, em Sevilha, eu fui teu pagem:
Subi também contigo uma montanha,
Onde o rei mouro uma batalha ganha,
E onde mostraste indômita coragem.
Eu te salvei duma horda perigosa,
Como um avaro salva os seus tesouros:
Guardei-te, como quem guarda uma rosa.
Amei-te muito; amaste-me. – Houve louros,
Que colhi para ti. – Alma amorosa,
Quando Boabdil foi rei dos mouros?...
Quem é Deus? – Deus é Deus. – Ser ignorado,
Que não tem nome numa língua humana;
Todo o nome, o melhor mesmo, o profana;
É vão todo o atributo que lhe é dado.
Por mais que tenha o sábio trabalhado
Para dizer quem é, sempre se engana:
Forceja, quer, não pode a mente insana...
Por quem é o universo enfim guiado?
Ó verbo, ó alma, ó força, ó vida, certo
Bem longe estás de nós, e estás bem perto;
Mas, Helena, ninguém o alcança nunca.
No lugar em que estás, ninguém te apanha...
Dize onde tens teu ninho, em que montanha,
Águia, que em tudo pões a garra adunca?...
Sento-me às vezes aos teus pés, contando
Cousas passadas e consoladoras;
As minhas mãos com tuas mãos brincando,
Como um casal de pombas saltadoras,
Que parecem querer fugir, buscando
Céus, que tu mesma com teus olhos douras,
Como se de ambas tu dona não foras,
E elas achassem ninho além mais brando.
Das brancas aves o tremer e o arrulho
É todo o meu prazer e o meu orgulho,
Beijo-as: sinto-as fremir a enleios meus;
E neste jogo o amor tem tal frescura
Que do fundo do tempo me murmura...
Quasi ouço a frauta do Cantor de Teos.
A desoras, já tarde, hora já morta,
Ouvimos longe os tardos sons de um sino:
Das lágrimas de bronze era o destino
Cair chorando sobre a nossa porta?
Por que vêm elas para aqui? Que importa?
Helena ergueu-se, e às mãos o seu violino,
Uma música triste os ares corta,
Que o arco arranca em frouxo repentino.
Artista insigne, do instrumento acorda
Um soluço, um suspiro em cada corda,
Que com amor ataca, ou dor percorre;
E ouço dela, num vago murmúrio...
– Ó meu amor, estou sentindo frio:
Agora ou sofre muito alguém, ou morre!... –
Talvez, Helena, alguém do firmamento
Vê também nosso mundo, que fulgura,
E adora a sua pálida figura,
Que é do espaço simpático ornamento.
Ele à noute terá nalgum momento
Tanto esplendor, e tanta formosura,
Que uma amorosa e doce criatura
Tenha em vê-lo o maior contentamento?
Sabes que a luz seguindo o sol de rastro,
Vênus ressurge, e um deus a protegê-la,
Guia-a montada sobre um áureo plaustro:
Tu a admiras, sem cansar de vê-la,
Sem te lembrar que estás pisando um astro,
E que tu mesma moras numa estrela....
Tua gloriosa origem procurando,
Vê-se que vem de tudo que suplanta,
De tudo que seduz, e move, e encanta,
Do azul do céu, de um silfo a flor buscando.
Há em ti uma auréola de santa,
Como em círculo de oiro te enquadrando:
Um rumor vago de asas chilra ou canta,
Quando os dois pés gentis ergues andando.
Extinto, Helena, o teu encantamento,
Inda há pouco, acordaste à voz do vento,
Num palácio perdido na devesa:
E estás inda ao luar tão leve e branca,
Que, crendo ter por ele entrada franca,
Como em um aranhol, ficaste presa...
Teus braços são as asas radiantes
Com que te enriqueceu a natureza,
Têm dos mármores brancos a pureza
E a penugem dos pássaros errantes.
Quando em círculo os dois são por instantes,
Tendo dentro de si alguma presa,
Esta mais os não deixa, e com surpresa
Sente-se escravo quem foi livre dantes.
Há no fim deles, de frouxéis cobertos,
Um ninho em cada um, cheiroso ninho,
Que ambos parecem sempre estar desertos.
Pudesse eu deles ser o passarinho,
Nunca para dormir verões incertos,
Mas longos dias, longos e sozinho!...
Aí mesma fé, Helena, e os desenganos
Sempre hão de ser, e a dúvida, e o combate:
E o coração, que espera, e freme, e bate
Ante uns sonhos doirados, mas insanos.
Linem as religiões os nossos danos:
Embora a morte a tudo e a todos mate,
Elas nos dão o esplêndido rebate,
Que após inda se vive imortais anos...
Nada do que se ouve e diz sobre isto é sério:
Basta que o mundo sacudido gema,
E tudo acaba em vasto eremitério...
E o homem sempre nesta eterna teima!
E um mistério explicando outro mistério,
E um problema negando outro problema!...
Desde manhã, e mesmo desde a aurora,
Havia já uma espantosa ameaça:
Nuvens à beira do horizonte em massa;
Um calor que aumentava de hora em hora...
Realiza-se tudo, Helena, agora:
Ouves o vento, que esbraveja e passa,
Ouves bater a chuva na vidraça,
E ziguezagueando o raio vês lá fora.
Eu vejo tudo por um outro espelho:
Eu vejo o espaço azul, o sol vermelho;
Vejo cheios de flores os vergéis.
De verdes luzes coalham-se as colinas,
Beijando os céus de tuas mãos divinas,
Beijando as curvas dos teus lindos pés...
Helena a festa vê da passarada:
Coalha todo o jardim, e todo o prado;
Não há um palmo só de chão deixado,
Onde não haja uma asa desdobrada:
Foi como uma cascata desatada:
O céu azul amanheceu toldado;
Ramas de troncos, beiras de telhado...
Sem voos, sem chilrar não há mais nada.
Um gato se distende, e se adelgaça,
Mescla-se a relva, e nela entrar parece,
Até que junto um pássaro lhe passa:
Ele rápido o agarra, e o sangra, e cresce,
E se encurva, e outra vez espreita a caça,
Até que nova presa lhe aparece.
A olhar-te, o desejo se renova,
Como se houvesse em ti qualquer espaço
Por mim não conhecido; e passo a passo
Outra vez te examino em longa prova.
Há em tua face pequenina cova
Onde um sonho a dormir ao meu enlaço:
Tens no beiço um sinal, que às vezes faço
Tinir, dar saltos dentro duma trova.
Como no leito, esta manhã, fulguras!
Helena, em ver-te só não me consolo:
Quero estudar melhor essas alvuras,
Essas tépidas neves do teu colo...
E escreverei as minhas aventuras,
Como Plano Carpini ou Marco Polo...
– De convulsões da morte perseguida –
Disse Helena; – ontem a terra era uma presa:
Hoje tudo renasce à luz da vida.
Andar por estes campos nos convida
Toda de novo a eterna natureza,
De oiro, e púrpura, e pérolas vestida.
Oh! quem dera, depois de ver tão pura
Cair numa ebriez, num grande assomo
Da vida, como cai da árvore um pomo,
Que à terra mãe agora entrar procura.
Ao céu, ao sol, a esta alegria tomo
Em testemunha, não haver ventura
Maior, que inda sem ver nem quando ou como
Nossa alma à alma dos mundos se mistura!?... –
Quem viu seus olhos, louco e destemido,
Azuis e grandes, como a noite, e belos,
Rugir, como leões quebrando os elos,
Tempestades de luz, tufões de ruído...
Quem os relâmpagos dos seus cabelos
Viu, a um sopro do vento desabrido,
Como se desenroscam dos novelos
Serpentes de oiro fúlvido e luzido...
Ai! quem a viu em cólera desfeita
Dizer que é pura, virginal, perfeita,
E que inda assim deixou de amá-la, ao vê-la?
Helena, és como a antiga e régia Helena,
Que era no crime indômita e serena,
Que era inquieta no amor, como uma estrela...
Da noite é raro e fugitivo o manto:
Já gorjeia a calhandra alvissareira;
Vem logo o bem-te-vi sobre a palmeira;
O sabiá vibra o seu primeiro canto...
Há um orvalho, que parece pranto
Aqui e ali em cada flor, que cheira...
Eis que aparece à luz a veiga inteira;
Também como o universo eu me levanto.
E isto fez, quem do céu saltou de fora
De areias de oiro, como em vasta arena
E o encheu de rosas, e o forrou agora.
É bela. Em breve ao sol entrega a cena...
Mas, olha, essa mulher chama-se Aurora,
E é tua irmã, minha formosa Helena...
Pedes-me um astro, Helena? Eu voo ao espaço:
Qual deles queres? Por exemplo, Sírio?
Como colho a camélia, a rosa, o lírio,
Para apanhá-lo, só levanto o braço:
Nenhum esforço mais do que este faço:
Não vou dentro de um sonho, ou de um delírio;
É só o tempo de acender um círio,
E voltar logo, sem maior cansaço...
Ei-la a estrela aos teus pés. – Vês como brilha:
Não crês? – Eu trouxe-a à mão, pela janela,
Não fiz nenhuma estranha maravilha.
A luz, que sai de ti mesma, a revela;
Veio, cegou-te, e foi... – Mas ouve, filha:
Inda em teus olhos há pedaços dela...
Abóbadas azuis, céus transparentes,
Não existis, sois uma fantasia:
Monto um raio de luz, sem nalgum dia
Encontrar-vos meus voos diligentes.
Abismos, sempre abismos surpreendentes,
Astros, mais astros, e mais astros via:
Uma poeira de sóis aos pés me ardia,
Em cima, ao lado, em turbilhões frementes.
Andar a eternidade e andar um passo,
E no mesmo lugar star sempre. – E eu grito!...
Quem há de ouvir meu grito? – Então que faço?
Vermes, deuses, heróis, convosco habito,
Entre os sóis, entre os mundos, pelo espaço...
Nós estamos, Helena, no infinito...
Mas... daqui a alguns anos? Por que taça
Queres beber, Helena, ó minha amiga,
Que não chore no fundo uma desgraça,
Que a uma uma outra lágrima não siga?
O tempo chega, e brevemente passa;
E o pó que ergue, a sofrê-lo nos obriga:
A luz, a sombra, a soberana graça
Por tênue fio à nossa fronte liga.
Quem é que aos universos te encadeia?
Que elo imenso te prende a um grão de areia?
Que elo te prende de outro lado aos sóis?
Quem nos aclara este problema escuro?
Que fomos no passado; e no futuro...
Ah! no futuro, que seremos nós?...
Diria Deus, Helena: – À dor entrego
Tudo que ao pé de mim sombra fizer-me?!
Com milhões de olhos todo o espaço é cego:
É por si mesma a natureza inerme.
Grandes senhores purpurados, quer-me
Parecer que afirmais o quanto eu nego!
Ah! se tudo é mistério, abismo, e pego,
É maior, mais feliz que vós um verme.
Nós, que andamos no céu com os sóis a rodo,
Nós, que fazemos parte desse todo,
Que sabemos? – Quem sabe cousa alguma?
Sabe o rochedo mais que o grão de areia?
Que sabe o mar de mais, que sabe a espuma?
Este universo alguém o esmaga e o odeia!...
De manhã, em passeio pelo prado,
Tudo era cantos de aves, e alegria,
Quando vimos uma alma, que trazia
Ao colo uma criança com cuidado.
Helena chega, e encosta-lhe ao doirado
Cabelo a fronte, a beija, e a acaricia,
Como quem mete o rosto iluminado
Num arroio de luz de um branco dia.
Esta é a aurora, a aurora, que inda nasce,
Aurora, que inda luz molhada, e fria,
Num clarão fresco e rórido metida.
Cada qual brilha na estação mais linda!...
Oh! como Helena é bela em plena vida,
Junto da Alva, que fulge apenas inda!...
Quantas vezes ao vê-la um pouco triste,
Eu quisera sondar seu pensamento:
De estrelas de oiro ao éter opulento
Subir o augusto astrônomo já viste?
Eleva-se até lá, e mede, e insiste:
Nenhum prazer iguala ao seu contento
Assim que vê que o céu não lhe resiste,
E tem nas mãos um sol do firmamento.
Mas olha mais, demora-se e pondera:
Pode chegar ao fundo azul da esfera,
E o astro estuda enfim no próprio meio;
Porém, tua alma transparente, Helena,
Ainda que eu lhe veja a luz serena,
Sem corpo e peso passa, como veio...
Quando me lança os olhos seus de aurora,
E abre-me a boca de botão de rosa,
Digo: — o que hei de mim fazer agora
Sob o clarão de tanta luz cheirosa?
Onde a alegria mais suave mora?
Há país em que mais prazer se goza?
Para estar neles, vou, já vou-me embora;
Quero um lugar em terra mais formosa?
Louco!... O que vejo em tomo é tudo escuro;
A luz... noutro horizonte em vão procuro:
Aonde há beijos, como os dela? Aonde?
A amar-te, amor, a sorte me condena:
É a única, a só, a minha Helena;
Há céu, que tenha em si céus que ela esconde?...
Feminizou-se algum pincel de artista,
Que a deliciosa cor de rosa imprime,
E pôs-lhe ao pé do lírio a cor sublime;
De imortal e mortal criação fez mista.
E eis como emerge Helena à nossa vista,
Que o puro, o santo, o grande, o belo imprime:
Vem como a deusa, que esmagasse o crime,
Que está na terra, e que do céu não dista.
Tudo o que Deus nos dá de bom, tem ela:
Vê-la, é amá-la: é dizer logo, – é bela,
Mas da eterna beleza; a nova, e a antiga
É querer Vênus, que nasceu da espuma...
Querê-la, sem querer mais cousa alguma:
E – deusa – aos pés cair-lhe nos obriga.
É tudo em mim um cântico divino,
Como se eu fosse todo um grande ninho,
Claro o horizonte, flores no caminho,
Ar fresco e puro, ar fresco e matutino.
De cada canto do meu corpo um hino
Sai, respondendo ao do moital vizinho,
Se Helena vem... enfim quando adivinho
O bater de asas do seu pé franzino.
Como a luz é mais luz, e o sol mais brando,
E o céu mais céu, quando ela, que os resume,
Solta o peplo dos ombros nus, arfando:
Quando entre rolos de sutil perfume,
Como uma estrela o leito alvora, quando
Toma o leito uma concha, e o altar de um nume!...
Amor empresta as suas belas cores
A tudo quanto vê, e que o rodeia:
A fonte é prata; a árvore gorjeia,
Beijam-lhe os pés chorando as próprias flores.
Onde ela for... Helena, onde tu fores,
A própria terra em ver-te se recreia;
A própria luz de tua luz stá cheia:
Tens um nimbo de alígeros cantores...
Helena disto tudo não se orgulha:
E é quando inda há mais festa, inda há mais bulha
Faz-lhe a modéstia um fundo de oiro à tela
Para que ela apareça em toda a graça,
Para que se destaque bem, e faça
Ver quanto é majestosa, augusta e bela.
Um sussurro de estrofes, que hás ouvido,
Helena, que te acorda, e leva, e embala,
Essa harmonia foi preciso dá-la
As canções, como o corpo ao teu vestido.
Ele é sem ele um ser emudecido,
Vivo sim! que respira, e que não fala;
Uma flor que perfumes não exala,
Um pé que pisa e passa sem ruído.
É o vento que mexe o bosque inteiro;
É do hálito teu o afiar e o cheiro:
E o som do fogo a arder não é diverso.
A rima, a rima, a sonorosa rima,
Bater de asas de pássaros, que anima,
E dá vida, e rumor, e voo ao verso...
E para encher de pasmo a nossa vida,
Levanta ao céu dois dedos de granito
A velha catedral enegrecida,
Símbolo antigo dum antigo rito.
Temos em nós também oculta ermida,
Que em catênulas dentro há preso um grito
De uma lembrança boa ou má, querida
Helena, de um bom tempo, um tempo aflito.
Mas ai dos que entre as sarças dos pesares
Guardam memória lúgubre, e funesta,
Como lezíria, que envenena os ares:
E em o mais íntimo da alma se lhes resta
Templo caído em ruínas, sem altares,
Sem músicas, sem cânticos, sem festa...
O mar, a praia, a orla da mata à beira,
Verde em flor, mas com tanta propriedade
Viu-se passar à tela brasileira,
Que deu logo ao pincel celebridade.
No belo quadro, Helena, da primeira
Missa, a selva arfa ali com tal verdade,
Que não sei onde a natureza cheira,
Luz e vive com mais intensidade.
Esse ar Victor Meirelles soube vê-lo;
E estas plagas pintou o sábio artista
Com cores justas, com amor e zelo.
Cláudio Loreno, o grande paisagista,
Nunca, para as transpor, teve um modelo:
Em perspectiva igual não viu tal vista.
Parou a brisa. – O sol dardeja a pino:
O ar quente sufoca: os membros lassos
Pedem repouso: o azul cru dos espaços
Se afunda: já não se ouve um canto, ou trino.
Grita a cigarra só. – Um repentino
Sopro agita o arvoredo: os secos braços
Rangem, quebram-se, estão feito pedaços.
No oriente as nuvens se aglomeram: – fino
Debrum de fogo as borda: vão crescendo,
Toldam o céu; o sol se encobre; risca
A abóbada um relâmpago tremendo.
Seguem trovões à rápida faísca:
Torrentes de água caem, o campo enchendo...
Ao tempo agora, Helena, quem se arrisca?...
Tinha chovido a manhã toda. – Agora
À tarde o céu azul era brilhante;
E o campo todo por aí a fora
Era de um verde luzidio; e adiante
A cada passo nosso, e a cada instante
Parecia que vinha uma outra aurora,
Dando às folhas um novo cheiro ebriante:
Com o sol, inda alto, ela trocara a hora.
Saltam seixos do rio, que fugia,
De Helena aos pés: as ondas têm risinhos;
E no bosque das margens, que se via,
Trinam, em álacre bando, os passarinhos:
E a bela imagem louca da Alegria
Dança com a luz a rir pelos caminhos...
De tarde passeamos a cavalo.
A água torrencial da trovoada
Tinha danificado muito a estrada:
E o leito, andava gente a repará-lo.
Latia um cão: cantava ao longe um galo;
E uma cigarra estrídula agarrada
As bananeiras duma derrubada
Sons agudos mesclava à luz num valo.
O ambiente um pouco azul, verde e amarelo
Era elástico e fresco: o sol macio;
Todo cenário do horizonte belo.
Sobre uma ponte Helena olhava o rio;
Quando ao oriente, em curva de cutelo,
Surgia a lua... – O ar ficou mais frio...
13epois que a treva quasi tudo inunda,
Depois que a Igreja o ângelus tocava,
Bastantíssimo tempo inda ficava
Helena, em cisma imensa, e longa, e funda.
Era da hora essa tristeza oriunda,
Quando dentro de si os olhos crava
A gente, e acha esta vida obnóxia e ignava,
E onde o mistério, e onde a incerteza abunda.
Bem pouca claridade então havia.
O sol já posto terminava o dia:
Stava o ocidente em nuvens obrumbrado.
Voltamos, eu e ela do passeio,
Depois das chuvas, no pior estado;
O campo e o mato de água estava cheio...
De manhã, no outro dia, o céu polido
De cristal da Boêmia era brilhante;
Nem uma nuvem perto, nem distante...
Nas cousas um perfume diluído.
O sol, pêndula de oiro suspendido
Na alta abóbada azul por mão gigante,
Balançando no espaço indefinido,
Marcava o tempo, instante por instante.
Os pássaros cantando alegremente
Sobre o arvoredo verde e envemizado,
O rio cheio, murmura a corrente;
O chão aqui e ali despedaçado...
Hauria Helena o ar úmido e olente:
Na alegria da vida olhava o prado...
Em seda azul, sentada na cadeira,
Feita aos moldes de antiga catedral,
Estava iluminada de maneira
Que era a Virgem Maria de um missal.
Semelha à santa e a cousas santas cheira:
É Fomarina, que pintor genial
Em bela cópia fê-la verdadeira,
Retocando entretanto o original.
Fê-la mais nobre, dominando o espaço:
Fez meigo o rosto e inda mais meigo o olhar,
E ampliando-lhe a fronte, o colo, o braço
Ergue a Madona esplêndida e sem par...
Em ti, Helena, não corrijo um traço,
E há de achar-te perfeita o Amor e o Altar...
Crês, Helena, que meu olhar descubra,
Que há em teus lábios um botão de rosa
E quasi sempre alguma estrela rubra?
De um perfume bom se haure, e se goza:
E há notar noutra um resplendor, que encubra
Certo calor de chama venenosa.
Será de um jovem sol a alma faminta,
Que vem aí buscar mais doce abrigo,
E sem ao menos lhe dizer: – consinta, –
Anda, respira, ri, fala contigo.
Vê o meu zelo nisso algum perigo,
Porque por vezes meu amor requinta,
E dentro em mim com negra cor me pinta,
Num vago ideal, incógnito inimigo...
– Por que em nome de Deus maldizem tanto
Os homens uns aos outros? – Disse Helena:
E sua voz era uma cantilena:
E em sua voz o céu se ouvia em pranto.
Ela pensava, como um anjo entanto;
Ela me interrogava assim com pena
Porque ouvira ao sermão numa novena;
E o padre o disse, e lhe causara espanto.
Estes trazem de raiva a boca cheia,
Por mitos que estão longe da verdade,
E em lendas, que não há hoje quem creia.
Deste universo as raias não se invade,
Pois se é mistério mesmo um grão de areia,
Como não há de ser a Divindade?!...
Por que ela treme? Ela tremer não deve:
Mas sempre há sido assim desde que a vejo,
Quando, como uma gota em concha breve,
Deito-lhe à régia mão pequeno beijo.
Mas se ela em mim vivaz sente o desejo,
Branca, fica mais branca do que a neve,
E foge, e vai num movimento leve,
Como um pássaro ao céu, num largo adejo.
A boca rubra, como a flor, cheirosa,
Furada a um riso, como um furo aberto
Por um diamante em pérola formosa?!...
E ergue entre nós dois palmos de deserto
Que é então que minha alma ou sofre ou goza,
Vendo-a a brincar tão longe, e aí tão perto?
Não és de Fídias uma ideal figura,
Das que deixou no mármore esculpida,
Tu tens, Helena, a carne, a força, a vida
Da cópia humana duma formosura.
Tens menos proporções, és menos pura;
És mais real, e a calma conhecida
Da estatura grega em ti não é sentida;
Teu rosto fala: és outra criatura.
Como em Dürer não tens as desmaiadas
Cores das virgens langues, maceradas,
Feitas só para o céu, que é seu destino...
A terra, o ar, o sol na fronte casas:
És um dos anjos que pintou Urbino,
E a quem alguém depois tirou-lhe as asas...
Viver, Helena, nas prisões dos claustros,
Tremer se me levanto, ou se me deito...
Ou hei de encher de ar puro o largo peito,
E andar à luz do sol, e à luz dos astros?
Andam ao vento os pavilhões nos mastros;
Assim vou: – isto é bem, – isto é mal feito?
Faço parte do todo e estou sujeito
As leis do todo, e vou no todo a rastros.
Forças contrárias, nelas a harmonia,
A vida e a morte; e assim a noite e o dia,
O ódio e o amor; e em tudo uma incerteza!...
Helena, em cousa alguma, Helena minha,
Se reconhece Deus: Deus se adivinha
Em ti, colosso vesgo, ó natureza!...
Mias isto é uma hipótese sublime:
No fim de tudo a dúvida nos resta!
Há de durar continuamente a festa,
Que nos embala? A crença? Esta sorri-me.
Mas dobra o homem, como a brisa ao vime:
A alma vacila sempre à ideia infesta:
Quando saímos finalmente desta
Existência, a outra vida enfim que exprime?
Somos um elo desta natureza,
Nos fundimos em Deus... Mas há certeza?
Razão, és bolha, e como bolha és oca!...
À terra, por que então mandados fomos?
Seremos verme? ou somos Deus? – Que somos?
Abismo, fala: para que tens boca?...
Não se fechara a noite. À última frágua
Do sol, barra vermelha aparecia,
Entre delgadas nuvens, que anuncia
O astro do amor, que aí vem. – Eu beijo-a, afago-a,
Helena está comigo, à beira d’água.
Redonda a lua pelo céu surgia,
Por toda parte derramando um dia
Que tinha em si a lividez da mágoa.
Clarão de olhar fragueiro, inda que belo,
Mesclava as tintas por um largo espaço.
O verde, o azul, o lácteo, o amarelo.
Arfava o luar num mórbido cansaço...
Só o rico cinzel de Donatello
Dera-lhe corpo e sombra e luz num traço...
A inveja, Helena, que no mundo reina,
Diz-me que à Musa a clâmide flutua,
Que ela é formosa assim, mas muito nua,
Guardando as formas de uma estátua helena,
E que a folha da parra a faz mais crua:
Incita a vê-la assim: mais a condena;
Toma uma obra, que fora pura, obscena;
E numa ação maior a mente atua.
Meu hino é todo ao culto da beleza,
E como o da imortal Vênus de Milo,
O véu no olhar a veste com certeza.
Só para o belo o verso meu burilo:
Se és nu e simples, como a natureza,
Vive, meu verso; vai: – estou tranquilo...
Um dia de repente a escuridade
Nos encontrou, a Helena e a mim, na brenha:
Como revolta e tumultuosa grenha,
As frondes agitava a tempestade.
Sob uma curva de inclinada penha
Procuramos qualquer seguridade
Das águas contra a impetuosidade,
Até que a chuva brande, e se detenha.
Por entre as ramas vultos tresmalhados
Pareciam bailar em louca festa,
Por lumes verdes, pálidos, cortados.
Ficamos tempos envolvidos nesta
Ânsia de troncos vários e afogados
Nestas babéis de gritos da floresta...
Aí vimos sobre rocha o torso a meio,
Pendendo os pés, um velho a flux de um veio
,
Bem como à sombra lutulento um sapo:
Quasi nu; toda a cara e a testa em rugas,
Sujo, o corpo coberto de verrugas,
Nádegas moles, semelhando um trapo...
Viu-nos. — Que faz aqui, ancião? – Que faço?
Vivo. – Mas só em tal desabitado? –
– Nas cidades fui muito desgraçado! –
– E aqui? – Respiro em paz, e sem cansaço,
Como os pequenos pássaros, que caço;
E dá-me a árvore o fruto sazonado,
Que acho no chão, que piso, quando passo. –
– Mas só. – Só não... de Deus acompanhado... –
Oh! quanto és bela, minha casta Helena;
Como brilha o teu mármore ao luar!
Como resplende a pálida açucena
Do teu rosto, onde a luz anda a cantar
A tua branca e esplêndida melena
Como um casco de prata a irradiar,
A tua fronte a tê-la se condena
Como um cofre de lírios a cheirar.
Teus brancos seios, que o luar anima,
Como pombas, que neves têm por cima,
Dormem arfando brandamente iguais.
Palpita à lua o mármore lustroso...
Tu tens a eterna palidez do gozo,
Branca estátua de curvas ideais.
Jove e Palas do Olimpo sobranceiros,
Na colina, que perde a luz festiva,
E entre pâmpanos só ficou cativa,
Veem a náiade vir pelos esteiros
De um mar de oiro em palhetas, que deriva
A álacre voz dos deuses forasteiros,
Leve, abaixo, ao ferver de uma água viva,
À noite, ao luar, à sombra dos olmeiros.
Coro de ninfas chegam de atropelo:
Pã devagar, mansinho, atrás vem vê-lo:
Eros lá stá; ou ri ou toca a avena.
Não é a verdade uma visão errônea?
Estou cheio da terra e céu da Jônia,
Porque de ti – todo estou cheio, Helena!...
Helena, és santa, meiga, religiosa,
Como uma igreja em cima da colina,
Com seus dois braços, numa prece ansiosa,
Que a todos para o alto olhar ensina.
Sabe ela quem a fez assim grandiosa?
E quem plantou a rosa peregrina,
Que em tudo brilha alegre e perfumosa?
És tu também assim, mulher divina.
Lendo a Ilíada, e a Bíblia, o que aprendias?
Por vez segunda, pareceu, que as lias...
Tens o ideal das grandes naturezas...
O belo é o Deus; amá-lo é amar o justo:
Star-se dentro de um céu azul sem custo...
Sabe o amor tudo: em nada acha estranhezas.
Al liberdade, Helena, é a balança
Do justo, e a taça de oiro da alegria:
Sem ela alguém acaso viveria,
E o homem não fora estólida criança?
Sem essa escada o céu nos fugiria:
É a primeira e a última esperança;
Temos seguro o sol, é nosso o dia:
Com ela tudo a nossa mão alcança.
A cadeia, que ao Cáucaso o flagela,
Sofre por ela Prometeu; – por ela
Mete-lhe o cão alado a garra adunca.
Falte-nos tudo: é vil quem não suporta.
Prescinde-se de Deus: é mau? que importa?
Porém jamais da liberdade... Oh! nunca...
Pedro Américo, e tu, Victor Meirelles,
Pisastes várias terras, vários mares,
E a fama com estudos singulares
Ganhastes de Cleomenes e Apeles.
Minha pátria gentil, por mais que zeles
Estes nomes, e os teus desdéns repares,
Não serão nunca muitos os altares,
Com que teu grande apreço e amor releves.
Vês, minha Helena, nunca são felizes
Os grandes gênios; todos os países
Lhes reservam na vida uma igual sorte.
Tradição, lenda, história... anda, procura...
Eles só têm a sua alta estatura
Na larga sombra impressa após a morte...
E quando, Helena, quando a nossa ideia
Que morrer é dormir profundamente,
Sem sonhos bons ou maus ter, quem não sente
Mais a vida, como é, de horrores cheia?
Quando tudo o que agora nos rodeia,
Sol a pino no céu, cheiroso ambiente,
Flor no vergel às margens da corrente,
O lar, ninho de amor, onde chilreia
A infância, sem inquietações, sem sustos,
E onde os velhos pais, graves e augustos,
Veem surgindo a existência, que lhes finda;
Quando isto tudo súbito se deixa,
Vamos sem uma dor, lamento, ou queixa
Com Deus, sem Deus... E a cova é berço ainda!...
A abelha loira nos vergéis procura
Fluidos de mais odor, com que fabrica
O alimento, com que enche, e toma rica
Sua colmeia misteriosa e escura.
À alma cheirosa e branca da espessura
Ela dá corpo, exalta, e magnifica;
E esse perfume sólido, que fica,
Dá-lhe trabalho, que alguns meses dura.
De lírio em lírio, e cravo em cravo errando,
Até que enfim a flor mais bela achando,
Aí pousa, aí bebe, aí sorve, aí dorme a abelha,
Como em tua boca, Helena, a minha fica,
Sendo a rosa da tua em mel mais rica,
Mais doce, mais cheirosa, e mais vermelha...
Num gesto só sua alma se revela:
Dor alguma de Helena a graça anula:
Como uma pomba a viração arrula,
Roçando lento e lento a face dela.
Vendo a aurora, que um arco de oiro pula,
Melancolicamente alegre e bela,
Como em um nicho, dentro da janela,
Dizia ao céu, que se abre e afunda e azula:
– Com tua luz o bosque não escaldas;
Branca torrente em queda rumorosa,
Ao monte renda as verdejantes fraldas:
Trazes ao peito o sol, como uma rosa:
São os teus campos feitos de esmeraldas...
Oh! terra do Brasil, como és formosa!... –
Al tua fronte no meu colo deita...
Venho do céu... agora mesmo venho,
E para o céu de novo me despenho...
Tu me disseste, Amor! Meu beijo aceita.
Os velhos nomes, que o porvir respeita,
Que ao flanco guarda a história com empenho,
É que quisera ter, e que não tenho,
Para esculpir o idílio, que deleita.
Para esse escrínio, ó deslumbrante joia,
Lembrava-me de Guido Cavalcanti,
Ou Fra Guittone, ou Cino de Pitoia...
Quisera ser, Helena, nesse instante
Para pintar-te pelo menos Goia,
Para cantar-te pelo menos Dante.
Um sol, um mundo, é um ponto só, e existe
Só um momento em relação ao espaço,
Ao tempo, ao infinito!... – Há um cansaço!... –
Fica-se ao pensar nisto alheado e triste!...
Vendo por milhões de anos o que viste,
Vês sempre o mesmo, Helena; – olha, um só traço,
Que vai, que vai, que vai, fazendo um laço,
Tudo enrolando; a um sopro não resiste:
Sopro largo, que vem... Que vem de donde?
Ou isto tudo é um Deus, ou Deus se esconde
Nisto tudo... Onde estão as duas pontas
Do princípio e do fim? – Humanidade,
Esperas: e o que esperas em verdade
No meio disto tu?... Tu, com quem contas?...
Como um navio a ló... singrando os mares,
Vai ao canto das vagas e do vento,
Irá teu nome em versos singulares,
Cheios do meu amor e meu tormento.
Primeiro ao Tejo, e após ao Manzanares,
Ao Sena enfim, e onde o pensamento
Culto tiver, onde tiver altares,
E acha o belo por tudo um movimento.
Antes de ouvir teu nome estranhos, quero
Que o Brasil todo, repetindo, o diga
Num grande aplauso unânime e sincero:
Depois do Prata e do Amazonas, siga
Do oriente ao ocaso. Assim desejo e espero
Só por ti, minha Helena, ó doce amiga...
Das linhas curvas, que uma luz amena
Banha, meio amarela em seus fulgores,
Ao longe a serra esmaia em várias cores,
Como uma ave a cair-lhe pena a pena.
A minha mão segura à mão de Helena,
No meio a um halo de um odor de flores,
Do átrio vermiculado de rumores,
Víamos a noite ir vindo ampla e serena.
A mais mínima sombra o céu toldava,
E o sol, pêndula de oiro refulgente,
Já para o ocaso todo se inclinava.
Máquina oculta, oculta mão potente,
Desde que ela vibrou, a equilibrava!
E assim há de mover-se eternamente!...
Minha imaginação ferve, e se exalta,
E a vida toda de ósculos inundo,
Se ódios não sinto, e deixo ir indo a malta
Das más paixões, num grito furibundo...
Quem não comete, Helena, alguma falta?
Há tantos baixos neste baixo mundo,
Que ao cair, quem não vai de vez ao fundo,
Volta, e andar pode em região mais alta.
Ir de esperança após de outra esperança,
Chegar ao fim: é como o mar, que avança
De vaga em vaga, até chegar à borda.
O homem só é forte, e grande, quando
Nasceu, viveu, sofreu, morreu amando,
E o seu nome abençoa, o que recorda...
Quando me falas com fulgor, que dizes?
Eu não te entendo, quando assim me falas:
Mas no murmúrio bom, que baixo exalas,
Dando à palavra cores e matizes,
Que eu ouço, entendo, e me seduz, tu calas
Tudo que queres que eu não saiba, crises,
Quedas de amor, quando outro amor embalas:
Feres, sem deixar nunca as cicatrizes.
Sabe-se um dia tudo: o sofrimento
O amor aumenta, como a chama ao vento:
Sol que queima, melhor sazona o pomo.
Quando isto penso, o teu olhar se anima:
Dizem que a dor ao céu nos aproxima.
Como fugir à dor, Helena? Como?...
Quem pode extraviar-me em meu caminho,
Se tu me levas após ti, se canto,
Como um pássaro à luz ao pé do ninho?
Não ver um riso teu, se me levanto,
Sem ter um riso teu, dormir sozinho...
Isto, Helena, seria o meu espanto!
Seria estar lançado em fundo espaço,
Ir em busca de incrédula aventura,
Sem saber a que vou, nem o que faço,
Como na febre, como na loucura;
Como quem, lhe faltando alguém, procura
Cego de dor, num lôbrego embaraço,
E olhos estende, e dedo, e mão, e braço,
Para cingir a luz pela cintura!...
Às vezes, sem querer, eu cismo, ou penso:
O sol é como um pêndulo seguro
Que se sente rolar no mesmo escuro,
A algum relógio incógnito suspenso.
E levanta-se, e cai do espaço imenso:
E, como no passado, no futuro,
Por céu mais negro, ou céu de azul mais puro,
Há de mudar talvez seu brilho intenso...
Tu tens, Helena, a imortalidade
Também do tempo que tiver meu verso:
Quem seu fulgor um dia apagar há de?
Mas sol e amor não há de ser diverso:
Pois têm a duração da eternidade,
E têm a eternidade do universo...
Helena, a fé um monte deslocava,
Como abre a nau as velas ao galerno,
E quem queria ver como ele andava,
Era ter disso o sentimento interno.
Vê: em roda de ti os olhos crava:
É nosso orgulho, que nos faz eterno:
Em nosso orgulho está o nosso inferno;
Morre-se, e extingue-se o fogo que o ateava.
Em uma frase esperançosa e bela
Se encosta a nossa consciência, e explode
Um firmamento imenso em tomo dela...
O extinto o céu no túmulo sacode...
Se segredos à vida não revela,
Revelá-los à morte então quem pode?
Quantas vezes passar fremindo apanho
De um ser, que não se vê, a voz ardente,
Como o vento carrega uma semente,
Que há de irromper bem cedo, achando amanho.
Também, Helena, a ouves tu contente...
Corre então em teu sangue um ruído estranho,
Metes teu corpo em luz do céu, num banho...
Tua alma o hálito dela aspira, e sente
Envolver-te num beijo. – A flor que cheira,
Pelo perfume é que se denuncia;
Mas colher, sem mais ver, logo a primeira,
Que o espaço aroma, que no vale abria,
É deixar a melhor sobre a balseira,
Lírio igual a ti mesma, e igual ao dia...
Como um contraste à plácida existência,
Que ia tecendo amor em nossos dias,
Armando em arabesco as alegrias
Onde abundava às vezes a indolência:
Outras de um sangue ardente a efervescência,
Tu, Helena, ir às brenhas me pedias,
E eu ia, acompanhando, onde tu ias,
Sempre adiante tu com mais frequência.
E quando o bosque a sombra ia vestindo,
Pisando a relva os nossos pés soturnos,
Voltávamos, da noite o arfar ouvindo,
E as rãs coaxando em lagos taciturnos,
E os pirilampos pelo erval abrindo
A luz azul à luz dos sóis noturnos...
Helena minha, o nosso amor é um misto
Do que alma sonha pelo céu distante,
Do que alma vê na terra a todo instante:
E todo o amor é o mesmo amor: – insisto.
Para corresponder o amor constante
Da Virgem, pelos claustros têm-se visto,
Descer da Cruz, e abrindo o lado Cristo
Trocar com ela o coração radiante.
E mesmo o amor da monja, e o amor do monge
Não stá do amor da terra assim tão longe:
No asceta o puro amor de amor requinta.
Helena, o nosso é fundo e peregrino...
E a Muranese, que Ticiano pinta,
Ao colo traz o celestial Bambino...
Eu não sei se é verdade isto que penso:
E o que penso parece-me a verdade!
Helena, erro talvez... À humanidade
Devo contudo o sacrifício imenso
De dizer-lhe o que sinto: em realidade
Só maldições espero: mas pertenço
Ao grupo audaz, que incita a mocidade
A queimar noutro altar a mirra e o incenso.
Para um novo ideal um culto novo:
Pôr num templo maior um maior povo,
Noutra crença, que mais que a antiga valha.
Deus hoje é o belo, o amor, o bem, o esforço;
E traz na boca o riso, o céu no dorso,
Quem vive e goza, e sofre, e ama, e trabalha...
As vezes sobre os céus nós debruçados
Vamos rolando pelo espaço em fora,
E cismando, e pensando, como agora
Chegamos a países ignorados...
Star aqui, star mais longe, estar parados
Ou ir voar, voar, voar, voar embora,
É star no mesmo ponto, à mesma hora,
Sendo os céus, como são, ilimitados.
Mas além disto eu sempre quereria
Ir com Helena, a minha visão linda,
Ver a origem dos sóis, da luz, do dia...
Levem-nos pois à região infinda
Duas asas de azul,, de oiro e alegria,
E outras duas do amor, mais belas inda...
Viu Helena o ataúde, que passava,
Levando os restos duma forma humana;
Pois o tempo, que a cria, inda a profana...
E o eco da dor nas faces lhe ficava.
Quando se morre, o verme não se engana,
E os mesmos dentes roedores crava
Nas carnes frias de uma humilde escrava,
Ou nas carnes da altiva soberana.
Dos longos cílios de oiro rorejados,
Glóbulos trêmulos, meio pendurados
Nadam na luz, que nos seus olhos brilha!
Mas que grandeza vai nesse abandono!
Helena tudo vê de sobre um trono,
Formosa, augusta e triste, à maravilha...
Sinto que Helena pisa cintilante
Por cima dos meus versos, e que deixa
Esse ruído de frouxéis tão brando,
Como de asas, que a abrir frouxéis remexa.
Há neles sempre frêmitos de queixa,
O som mais grave súplice quebrando,
Como um soluço dentro de uma endeixa,
Que amor de acordes vários vai bordando.
Não ais, que deusa em nimbo esplendoroso,
Quando do Olimpo em luz rasga o caminho,
Ouve aos seus pés de um deus, que a segue ebrioso;
Ou que solta a ferida em sangue ao espinho:
O ai, que se ouve, é o ai delicioso
Que geme o leito agora, agora o ninho...
Helena era elevada, da estatura
Da Vênus, que nos deu a Grécia um dia,
Quando mais branca, do que a luz, saía
Da concha, e úmida ainda em pé fulgura...
Os amplos flancos de uma forma pura,
Ânfora ideal de um vinho peregrino,
Como se andasse já no seu destino,
De homens e deuses ebriar segura.
Tinha a nívea epiderme finalmente
Um diáfano brilho adamantino;
Pérola bela do mais belo oriente:
Irroravam de si os sons de um hino
E ao andar de deusa calmo e negligente
Ciciar se ouvia um cheiro matutino...
Ah! se não fosses tu, Helena, creio
Que eu buscaria a mais longínqua gruta,
Onde o rumor dos homens não se escuta,
E ouve-se o coração bater no peito:
E onde só grama e flor fosse o meu leito,
E mesmamente encosto a pedra bruta,
E o vento gira, e sopra, e passa, e luta,
E o abismo engole o rio em pó desfeito...
Mas tu... bem como um pássaro no ninho,
Onde há tudo e vem tudo estar contigo,
Vivo do céu, do sol, de Deus vizinho.
Não há contigo solidões, contigo
Tenho tudo o que é bom em meu caminho;
Sinto em todo o universo um largo abrigo!...
Que fazes tu, Helena, aqui? – Trabalho:
Um sublime labor, não vês? me ocupa:
Aquela mosca azul leva à garupa
Um verme vivo em pequenino galho:
Mais longe aquelas pérolas de orvalho
Do branco lírio a borboleta chupa,
Que neles de antemão bom Deus agrupa...
Para tão pouco mesmo eu nada valho.
A violeta o seu perfume exala:
Por si a mata engrossa, e se opulenta,
E a voz canta, ou cicia, ou ruge, ou fala...
Quem refugir da natureza tenta?
Responde ela, a quem vai interrogá-la?
Tudo, rosas e sóis e homens sustenta... –
Que cismo? – Ouço um rumor nos meus ouvidos,
Helena, logo que a alma busca acesa
Essa alâmpada, que parece presa
À abóbada do céu; nossos sentidos
Desejam ver o autor da natureza;
Todos os deuses num só Deus fundidos,
Todos os cultos por haver, e havidos
Num culto só, não fora uma estranheza.
Qualquer forma de um Deus, um Deus exprime,
Pois ela tem em si somente o intento
De lembrar a estatura de um colosso,
Que não tem forma, que é um puro alento,
Ou menos que isso, ou mais que tudo, e imprime
Em nós de um Deus a ideia, ou vago esboço...
Não vale a Glória um dia em teu regaço:
Prefiro o teu regaço um só minuto,
A ter os sóis, que rolam pelo espaço,
Ou da terra ou do mar banal tributo.
Teu colo à mão, tua cintura ao braço,
Ouço a inveja dos deuses, com que luto,
Enquanto o céu todo estrelado abraço
Em ti, Helena, em ti meu ser permuto.
Forra-me o amor todo o horizonte, todo
O vale em flor se rasga, e ouve-se o bando
Dos silfos nus gemendo, ao cio, a rodo;
Quando te envolvo em largo beijo, quando
Crendo em tudo, e em ti mesmo crendo, doudo
Vejo-te dentro dele ebriado e arfando...
Nenhum temor mortal contigo eu sinto:
Do fim disto nenhum pressentimento:
Duradoiro, não finda este momento:
Nada me mente em tomo, a nada eu minto.
Temos em tudo, Helena, o nosso plinto:
A luz e o aroma são nosso alimento:
Enchem eles o lar, e os traz o vento:
São mais úteis que o bronze de Corinto.
Nosso amor se confia do infinito,
Sem temor do porvir, forte, esquisito,
Vive no centro de um vergel ameno:
Assim, junto da gruta, ao sol voltado
O leão da África, mudo e descuidado
Nas quatro garras stá de pé sereno...
Por toda a parte inda a mudez perdura:
Pela relva a lucíola rasteja:
O doce olhar de Vênus pestaneja,
E o dia azul da noite anda e murmura.
Uma pipita de oiro, que fulgura
No oriente só, um pássaro, que adeja;
Do sino a hora na longínqua igreja,
A escuridão folheira da espessura,
Não é a Aurora... – Inda há por tudo sono...
Como esmeralda, que caiu de um trono,
Vê-se um trecho de verde mar infindo.
Há nas orlas do céu, Helena, poeira
De oiro puro: – uma luz talvez ligeira
De áureo botão de flor de fogo abrindo...
O que se fez, se fez, e ficou feito...
Pode passar por cima outro universo,
Um novo mundo vir, e um deus diverso,
Não volta o rio atrás no mesmo leito.
O que houve, Helena, é pelo tempo aceito...
No infinito, onde tudo vive imerso,
O que viveu, viveu: não há reverso:
Há um caminho único direito.
Quando uma ideia, quando um sentimento
Existiu, para sempre existir há de:
Mesmo a folha, que ao mar atira o vento.
Eterna é pois do amor nosso a ebriedade:
A eternidade está nesse momento,
Que liga outro momento à eternidade...
Helena, por que cismas tanto? Eu creio
Pouco na longa paz desta ventura:
O que é bom, sabes bem, tão pouco dura
Que o perder jamais é um vão receio.
A terra, o céu, o clima, o tempo, o meio
Dão o seu gesto a toda a criatura:
E esta existência cheia de amargura
Nos enleia, como eu te abraço e enleio.
Crer nosso amor eterno, enfim não ouso:
E a eternidade só por si, que prova?
Que tem ela com nosso imenso gozo?
Tudo acaba, e em outra forma se renova:
Não há em parte alguma algum repouso,
Mesmo na cova, mesmo além da cova...
Dia nenhum da vida há que eu não sinta
Uma alegria nova, um gozo estranho:
Encontro assim também no chão que amanho
Uma flor nova, uma flor extinta.
Passo em resenha rápida e sucinta
Bens que ganhei em ti, bens que inda ganho,
E inda não vejo o número tamanho,
Como o que meu desejo e amor me pinta.
Tu tens em ti o espaço indefinido...
Quem medir pode o espaço, que se esconde
Após espaço só por Deus sabido?
Outro céu, como tu, por mais que eu sonde,
Por sóis inesperados percorridos,
Aonde achar, Helena minha, aonde?...
Minha querida Helena, o rosto estragas...
Queres inda chorar? Choraste tanto!
Terás em ti um mar oculto (espanto!)
Que se desdobra em vagas sobre vagas?
Eu bem sei por que choras entretanto:
Queres lavar uma antigas chagas;
Com lágrimas talvez um erro apagas;
Deixa, mulher, deixa correr teu pranto...
Passada a chuva, a límpida corrente,
Um céu de estrelas de oiro cheio, espelha,
Salta, e canta mais doce, e mais contente:
E a iluminá-la após manhã vermelha,
A folha, o galho, o tronco, o gado, a gente,
Tudo, para banhar-se nela, ajoelha...
Continuemos este conto antigo,
Que me contavas no Oriente outrora,
No miranete, aonde ali contigo
Víamos os grous passar por céus em fora.
No pátio devagar a fonte chora
Pérolas de um brilho azul, enquanto ligo
O riso eterno, que em teus lábios mora,
Ao sol, que nos teus olhos acha abrigo.
Vem de bem longe o nosso amor: eu vi-te
Por vez primeira, ao ir à terra santa,
Sentada no elefante; então segui-te...
Segui-te a pé pelo areai: – espanta?
Tudo é pouco, se amor não tem limite,
E o tempo ao tempo, o que fizemos, canta...
Estrela da Alva, olhar do Amor duma alma,
Que acorda ao beijo da manhã mais calma,
E dorme, antes que a ver o sol se afoite:
E só à tarde, lânguida e serena,
Como a irmã mais simpática de Helena
Desperta, para encher de luz a noite;
Um tempo as nossas almas lá teremos
Do manto azul do céu, como um recamo,
Como um corimbo preso ao mesmo ramo,
Seremos uma luz na luz que vemos.
Dizeis estrelas: – Almas recebemos
Dos que amaram de amor: como um reclamo,
Cada uma de vós dizeis: – Eu amo! – ...
Nós todas inda Amor dizer sabemos!... –
Quem, Helena, arrasara tais arcanos,
E ver pudesse em séculos distantes
O Brasil, e os futuros habitantes,
Ricos, fartos, felizes, cheios de anos:
Ver os seus rios múltiplos, gigantes,
Que são como interiores oceanos,
As margens tendo impérios soberanos,
Dentro naus, como nunca se viu dantes.
Que será da floresta brasileira,
Onde suntuoso é tudo, e tudo cheira,
E andam almas dos deuses, que lá vão...
Almas de deuses a esperar modernos;
E que, como eles não serão eternos,
E que, como eles foram, passarão...
Se acaso a encontra, a pobre criatura,
E a mão lhe estende, a dádiva buscando,
É quando é mais feliz e alegre, é quando
Lhe flui por dentro onda de ventura.
Com seu humilde olhar e gesto brando,
Com seu carinho, como que procura
Tirar à esmola o que ela tem de duro,
E parece pedir, quando está dando.
Quem é então essa mulher bendita,
Que nesse instante se tomou mais bela,
E a própria luz na graça e luz a imita?
Helena, és tu. – Astros do céu, é ela.
Vem do fundo do tempo, ressuscita,
E Oratórios aos pés põe-lhe Stradella.
Quem mede o amor, é o amor que nós sentimos:
É o próprio amor, que só nós dois criamos,
Como dois passarinhos sob os ramos,
No ninho, que inda agora mesmo vimos.
O sentimento, que nós dois nutrimos
Um por outro: é saber, que nos amamos;
Que pela terra assim unidos vamos,
Que unidos pelo céu assim subimos.
O amor sobre um montão de brancas rosas,
O amor no bosque, o amor numa espelunca,
O amor é sempre amor, se amor tu gozas,
Não pede aos deuses nada mais: não junca
O chão com tuas lágrimas formosas:
Helena, os deuses não respondem nunca...
É noite. Sobre a ponte debruçados,
Ao rio, que fervilha entre a folhagem
Dos barrancos de lado a lado, a aragem
Lança nele, dos troncos assustados,
As oscilantes sombras: tua imagem
Branca, metida em raios desmaiados
Do luar, que crepita na passagem
D’água, refletem tons esverdinhados.
O artifício da luz dá-te à figura
Cor de um anjo ou visão, e em torno dela
Circula a prata em forma de moldura:
E esse ar teu, quasi azul, te faz tão bela
Que tu te mostras, como uma pintura,
Cópia de mestre, em tintas de aquarela.
Cóleras, ódio, inveja em negras bodas
Vi lambendo-me a sombra em luta rude:
Longe do berço, perto do ataúde,
Verme, da vida o bisso não me enlodas.
Não me cegaram nunca ambições doudas;
Fazer mal a ninguém jamais eu pude;
Foi ser bom minha única virtude:
E essa virtude em si resume-as todas.
Como no nimbo de uma grande aurora,
Minha existência, imaculada e nua,
Pura, como foi sempre, é inda agora.
A minha consciência não recua,
Tenham, para ferir-me, muito embora
A mão direita o sol, à esquerda a lua.
Como a aparência engana e nos ilude!
Como a beleza o honesto amor convida!
Em Laura, em Beatriz, e em ti, querida
Helena, onde o que é bom aprender pude.
Sempre ela guarda em si tal atitude,
Que Diana casta aos bosques recolhida,
Há, de deusa imortal em si traída,
Toda uma austera imagem da Virtude.
E o amor nada tem dito que não fosse
Agradável a todos, e tão doce,
Que a abelha o mel da voz lhe invejaria.
Nos olhos seus por isso vive a estrela,
A luz só quer ser luz, para envolvê-la,
O dia, para a ver, só quer ser dia.
Tu me fazes andar onde a luz anda:
Entro o céu pela porta das auroras:
Helena, pelo sítio em que tu moras,
Vive Ofélia, Beatriz, Laura e Miranda.
Vosso poder de cima é que nos manda:
Vem pelo espaço entre canções sonoras,
Por onde descem rutilando as horas
Do viso de faustíssima varanda.
De acanto verde a fronte áurea te enastro:
De um bloco egípcio és tu, ou ser suponho,
Tu, que tudo aos teus pés só vês de rastro:
E quando em nuvem se desfaz meu sonho,
Busco em ti mesma um sonho, ou mito, ou astro...
O que há de belo, calmo, bom, risonho...
Para ter-te em meus braços, e gozar-te...
(Não me faças, Helena, esse muxoxo)
Eu não quisera a noite, como um mocho,
Quisera muito sol a rodear-te...
O gesto altivo, o passo jamais frouxo,
Casco os cabelos, sem lembranças de arte,
Eu preferira ser Apoio ou Marte,
Ou outro deus qualquer, mesmo um deus coxo.
São felizes os deuses mal formados,
São deles sempre as deusas melindrosas,
De alvos corpos e membros delicados,
De espáduas brancas, ressumando rosas,
De seios níveos, por azuis riscados,
Entre nimbos de estrelas gloriosas...
Ai! quantas vezes te maldigo, quantas
Quero fugir à serpe que me enleia!
E caio logo humilde às tuas plantas,
Ó bela esfinge, ó lúbrica sereia.
Quem há que em ti algumas vezes creia?
E é o teu gesto mórbido o das santas;
Teu doce olhar em torno a paz semeia:
E um filtro dás, com que, matando, encantas.
Nada pode de mim mais arrancar-te:
É fatal esse amor, queira ou não queira,
Posso fugir, mas não deixar de amar-te.
Helena, o odor que me enche a vida inteira
Que anda comigo, e levo a toda parte,
É teu corpo, que em mim palpita e cheira.
Subo às vezes ao céu, e te procuro
Entre as imagens que andam pelos ares,
Como as conchas das pérolas nos mares,
Brilham da noite os sóis num fundo escuro.
Teu nome baixo lívido murmuro,
E lanço-me nuns surtos singulares
Dentro de ti, de ti sem tu pensares,
A ver se lá por dentro é tudo puro.
E encontro, Helena, a rir uma bondade,
Que é a paz da alma, é da alma a mocidade:
Ser bom é ter o amor em pleno viço:
O ódio, a raiva em coração amante
É um ponto negro dentro de um diamante:
Teriam ambos mais valor sem isso...
Sobre o chalé há uma rocha bruta,
Por ela abaixo rola a cascatinha:
Rugas fundas do tempo, Helena minha,
A tomaram revessa, escura, hirsuta.
Contra ela o vendaval, e a chuva luta.
E a chuva a fere, e o vento redemoinha;
A rocha fica; e o vento e a água caminham:
Longe a floresta ronca, e a uivar se escuta.
Sinais negros de lágrimas na lomba
De água que, gota e gota, ou a frouxos tomba,
Se veem à luz da primavera plena.
Briáceos musgos revestindo a pedra,
Éreas escamas só é quanto medra...
Medrarão troncos nela, um dia, Helena...
Haure, Helena, esta olímpica ambrosia,
Enquanto inda um acorde as mãos desfira,
E nos olhos me cante a luz do dia,
Flor aberta do sol, que a terra admira.
Canto, como Meleagro cantava,
Dando-lhe os sons amor à ebúrnea lira,
Como minha alma eleva-se à harmonia,
Que de ti toda sai, que afia, e respira.
Que aplausos para ti guarda o futuro,
Quando ouvir o teu nome repetido
Num verso ardente, voluptuoso e puro!...
Lendo o que hoje o universo todo há lido,
Rasgado do porvir o manto escuro,
Ouço o teu nome ao meu fremir jungido...
Quando canta a esperança, a vida canta,
E dança o coração dentro do peito;
Tudo é bom, tudo nos parece feito
Para uma festa deslumbrante e santa.
Em chão de flores pisa cada planta,
Que lançamos: o ar é satisfeito;
E raios de oiro deita em nosso leito
O sol que vai, o sol que se levanta.
Édens, sois nossos outra vez: ouvimos
Rumor de anjos por quanto a vista alcança...
Como a criança ri de tudo, rimos.
Oh! sempre belas e imortais quimeras!...
Triunfa, alma que crês: que mais esperas?
Helena, o céu é inda uma esperança...
Deus quer julgar de novo os seus julgados!...
Quando os julgou acaso ele erraria?
Pode. – Quer vê-los todos levantados,
Rompendo a terra, e o tempo, que os cobria.
Miríades de séculos passados,
Todos juntos, num vale ao mesmo dia,
Das quatro trompas aos sonoros brados,
Tudo quanto morreu, reviveria...
Mas eu, Helena, a vida não aceito:
A morte eterna, a morte só bendigo,
Dormindo ao lado teu, e peito a peito:
Dormindo ao lado teu, e só contigo...
E ao anjo, que vier ao nosso leito
Dirás: Eu fico. – Eu gritarei: Não sigo...
Helena, é pobre a púrpura do verso,
Para cobrir-te os ombros nus, suponho;
Rujo humilhado, rujo, e me envergonho,
De te não ver andar sobre o universo,
E sobre o Deus, que o fez, e inda este sonho,
Do que sonho por ti é bem diverso:
Mesmo os vulcões bradassem-me: – Perverso!
De um virgem crime és criador medonho. –
Não ter luz de outros sóis bem meus, é duro:
Tendo-a, pondo-ta aos pés, não fora espanto:
Que faz isto por ti? por teu futuro?
Hauro do seio teu odor tão puro...
Mais... Não o ouça ninguém... tu me dás tanto,
Que inda em dando-te céus, mais céus procuro...
O céu, ó minha doce virgem pura,
Minha Helena gentil, és tu somente:
Ver o céu através da sepultura
Minha alma quer, minha alma o não consente.
A morte há tantos séculos que dura,
A morte durará eternamente;
Eu que te amo, esplêndida criatura,
Hei de esperar a morte, e um céu que mente,
Para que um Deus nos una então, Helena?
Quem abandona em vida, há de ter pena
Dos mortos perdidos na amplidão?
O céu é cá na terra, Helena amada.
E a raça de Caim é condenada
À eterna noite, à eterna maldição.
Mulher, eu sei que és a mulher sublime:
Quem me dera Orfeu ser, ou ser Homero,
Para mostrar-te, Helena, o que és: e quero
Pôr num poema, onde a garra o gênio imprime.
Pousa o pássaro sem dobrar o vime,
Assim pousas no chão teus pés; austero,
Rio; porém mentir-te eu não tolero,
Rio, pondo a mover-se a um tempo um crime.
Procuro ver-te suportar a morte,
Ver se, como és gentil, és tu tão forte...
Mas... que foram meus dias derradeiros?!...
Extinta Ofélia, à tarde Hamleto errando,
Em pranto, louco, o que ele andou buscando
À lacrimosa sombra dos salgueiros?!...
O amor é cheio dumas nuvens densas,
Que em multíplices voltas singulares
Pouco e pouco se erguendo, enchem os ares
Prenhes de longas e profundas crenças.
Mas delas, minha Helena, o que tu pensas?
Elas nascem diante dos altares,
Leves, como alvos fios dos teares,
Correm por todo um templo, e andam suspensas...
Nuvens, que um bosque lembram do Oriente,
Pranteando suas lágrimas cheirosas
A cada golpe, que em seu corpo sente.
São os azuis das gomas, que em nitente
Vaso se queimam, nuvens caprichosas,
Como as tem o amor numa áscua ardente!...
Chove desde Dezembro, Helena! – Chove
Desde Dezembro e acaba-se Janeiro
Chovendo!... E levas tu um dia inteiro
Nesse trabalho de tricô?... Por Jove!
Conheço a grande ideia que te move:
Não é tristeza e menos desespero
De não se ouvir um canto alvissareiro!
Que o sol ser sol ainda o sol não prove!
Sei que te dóis de tanta pobre criança,
Que não tem que vestir, que anda na rua
Ao vento, à chuva, sem desconfiança
De que anda nua, ou anda quasi nua...
E pões contente a máxima esperança
Que lhe vais útil ser nessa obra tua...
Deixaram-te, em caminho, à tempestade,
Ao raio, ao vento, aos surtos da devesa...
Helena, e o escrínio cheio de riqueza,
Roubá-lo há de o primeiro: eis a verdade:
Houve insídia, houve crime, houve impiedade...
Ficou em ti depois uma tristeza,
Que é por si só talvez mais da metade
De tua grave e esplêndida beleza.
Ao mal o sol as almas encadeia:
De venenosos pólens se enche a esfera...
A cada passo há sempre uma sereia:
E é quando é mais cheirosa a primavera,
E é quando a brisa matinal gorjeia,
Que o nosso coração tem fome, e é fera...
Que funda calma pelo mar sereno,
Da noite imensa à lúrida calada:
No fundo a luz, a lágrima dourada,
Metida num irradiante pleno,
Lágrima doce, como a voz de um treno
Na superfície da água condensada,
Como a imagem duma alma acalentada
Do amplo céu num recôndito pequeno!...
Ouve-se quasi o respirar da esfera,
E o tinido do canto das estrelas,
Como oiro aos saltos dentro da cratera:
Vem, Helena, as ouvir comigo e pelas
Eternas amplidões em cisma, espera
Que um deus passe também e queira ir vê-las.
É Dezembro, manhã: a luz é quente:
Embarcamos. É cedo ainda... Vênus
Mal refulge: os azuis dos céus serenos
Se enchem de claridade transparente.
Oh! tudo é bom quando se está contente!
Estas ilhas são pássaros pequenos,
Que parecem cantar aos teus acenos,
Ó minha Helena, ó deusa onipotente.
No respirar do vento agora há pausa;
E, murcha a vela cai, volteando o mastro,
E inclina-se a falua e vai de rastro,
Como uma ave que atinge a seta e é causa
De asas não ter a abrir na esfera imensa.
Nem arfa a brisa! a onda cogita ou pensa!...
É grande a faina: cruzam-se os vapores;
Embarcações pequenas, carregadas
De fardos, passam: cheios de alvoradas
Os bosques fulgem longe, e sonhadores.
Nós íamos fugindo às multicores
Lutas pela existência ali travadas;
E sobre as verdes ondas namoradas
Éramos dois ociosos passeadores.
Nada a excitar nossa emoção nos falta:
Enquanto a barca, que nos leva, salta,
Pisando a multidão de algas marinhas,
E vão passando perto das ilhotas,
No ninho frouxo de água, alvas gaivotas...
Mancham o azul do céu as andorinhas...
III — A BARCA DE CLEÓPATRA E A NOSSA
Barca, uma joia, e oriental de estilo
Era, em que a bela Cleópatra caminha,
A voluptuosa, a esplêndida rainha,
Como não teve o Egito ou viu o Nilo.
À orla a esfinge, a hiena, o crocodilo,
A terra em fogo, inóspita, maninha,
A rocha, em cujo cimo a águia se aninha,
O areai, que senhoreia o leão tranquilo!...
A nossa era a falua branca apenas,
Um grande cisne cheio de alvas penas,
Em mar azul vermiculado de oiro,
Levando, numa doce cantilena,
Rainha honesta e encantadora, Helena,
Zelada, como quem guarda um tesoiro...
Vimos, eu e Helena, ilha por ilha.
Era já muito tarde: o sol no ocaso
Baixou. – De um manto ou dum sagrado vaso
Caiu o céu no mar à maravilha.
E o mar azul e o céu azul, que brilha
Opulento de estrelas, neste caso
Confundiram-se os dois em breve prazo:
Em peças de oiro agora é que se trilha.
Da nossa barca, ao murmurar do vento,
A asa branca redonda, como um seio,
Fomos chegando à terra lento e lento:
A alegria entre nós chilrava: e veio
Amor, conosco ali tomando assento:
E o lar de longe a rir-nos já... Que enleio!...
Mexia o vento o leque dos palmares,
E as vagas sonolentas se movendo
Por noite roxa e azul, iam trazendo
A nossa barca, ave por sobre os mares
Movendo as duas asas triangulares,
Entre outras aves trêmulas correndo:
O cais os pés graníticos metendo
Stá na água em cima de arcos e pilares.
Ao longe o carro. — Os cascos dos cavalos
Escarvavam as pedras insofridos:
Mal podia o cocheiro ali sofreá-los.
Entramos. – Os arrancos e estrupidos
Soaram pelas ruas; e a intervalos
De cães em susto ouviam-se os latidos...
Quando chegamos, que rumor havia!...
A pedra fala, o próprio chão murmura:
Helena a todos responder procura;
E com que graça a todos respondia!
Triunfal a Vitória entrar se via:
Cada janela olhava com ternura,
E cada porta para trás se abria,
A rir com o riso de uma criatura.
Nossa casa nadava em claridade,
Como o dia depois da noite escura,
Ao barulho da luz rindo à vontade.
O céu azul, a atmosfera pura
Tinha o cheiro da nossa mocidade
E o esplendor de nossa íntima ventura..
Todo o caminho parecia em festa:
As ruas mesmo estão iluminadas;
E os cascos dos cavalos das calçadas
Erguem luzeiros: tudo manifesta
Uma rara alegria; e nada resta
Silencioso: estendem-se as estradas
Entre palácios; vozes namoradas
Irrompem deles: nosso amor empresta
Encanto e vida a tudo; e tudo aquilo
É um triunfo: emociona ouvi-lo
Aquele idílio, e ver a luz juncando
O solo aos nossos pés: agora a grama
Acendeu-se também!... Feliz quem ama
Tudo que vê, lhe ri, ou vai cantando...
Alinha do mar Helena inda mais bela:
Tudo o dizia ao longo do caminho;
Medrosa, como um pássaro no ninho,
Como no laço a tímida gazela...
A luz do gás molhava a fronte dela,
E indo, como num louco torvelinho,
No povo havia um basto murmurinho,
Que tomava feições duma querela.
Como em nicho de sombra, a sua imagem
No carro, que por vezes se clareia,
Fugindo, e aparecendo de passagem,
Deixava a rua de arruídos cheia,
Como o vento a zumbir pela folhagem,
Como vaga a bater de encontro à areia...
O sabiá, que está numa gaiola,
Junto à casa, em quiosque, pendurada,
Pensando ver a luz da madrugada,
Bate as asas, e o canto desenrola.
Agora, como a flor, que se estiola
À sombra, a sua voz tem quasi a toada
Da queixa; como um tronco na esplanada,
Agora a voz se eleva, e ao céu se evola...
Dulia... treno... notas sobre notas,
Sons macios de luz, clangor de guerra,
Canções alegres, límpidas, ignotas,
Irrompem dele; o afiar da selva encerra;
Há nela o gotejar da água das grotas,
E o idílio, em que te envolve, Helena, a terra...
Biblioteca Universitária UFSC
Fora de casa, perto, um gaturamo
Põe-se a imitar o sabiá da praia:
Esses modilhos vários, que ele ensaia,
Vêm dali, vêm daquele oculto ramo.
A vista à fronde da árvore derramo:
Vejo o grande clarão, que lá se espraia,
Que é como a luz da aurora quando raia:
Despertou-a; e fez logo o seu reclamo.
O pequenino pássaro cantava,
O pássaro maior lhe respondia
E era mais essa estranha sinfonia,
Que a fortuna na festa improvisava,
Como num nicho, à porta Helena a ouvia,
E o bosque perto a fronte ao chão prostrava.
No sacrário... Ah! na alâmpada de prata
A luz chorava por olhá-la e vê-la;
Tinha o tamanho de pequena estrela,
E da ausência de Helena a dor lhe data.
Na sombra estava humilde e timorata,
Sem querer em mais raios envolvê-la,
Só para em meia sombra apenas tê-la...
Para ela a longa festa era insensata!...
De quando em vez a luz se lhe irrompia
Numa crepitação e nuns soluços,
Que Helena muda e agradecida ouvia.
Depois parando, em pasmo, e quasi rindo,
De um áureo véu finíssimo a cobrindo,
Deixou dormir a deusa, a arfar, de bruços...
Raio róseo do sol quasi vermelho
Entrou por uma fresta da janela,
E foi beijar-lhe a perna inda a mais bela,
E mesmo um pouco acima do joelho.
Helena ergueu-se e foi mirar-se ao espelho,
A luz fazendo à porta sentinela:
Logo que esta se abriu, foi ter com ela,
Sem ouvir de ninguém algum conselho.
Não mostrava fadiga no seu rosto;
Tinha a brancura natural somente,
Que era de rosa e lírio alvo composto.
Sobre o colo os cabelos em torrente
Pareciam beijá-lo com tal gosto,
Que não sei mesmo se fiquei contente...
Logo depois à sala foi do almoço:
Desenhava-lhe o corpo peregrino
O roupão, que a envolvia, um roupão fino
Preso apenas em tomo do pescoço.
Quero ouvir o que o ambiente diz: não ouço
Qualquer idílio, enfim um qualquer hino!...
Cantou o bem-te-vi? num tom mais grosso
Uma árvore gemeu? o cristalino
Veio, que a teve dentro de seu seio,
Quando, à sombra do bosque, entrou no banho,
Há dias, de manhã, por um passeio
Me fez tremer? – Mas zelo assim tamanho?
Da luz, da água, da selva, o que receio!?
Que amem todos Helena acaso estranho?!
Noite cheia de estrelas e que exala
De si um acre cheiro, que inebria!
Havíamos deixado, há pouco, a sala;
Da janela da alcova o céu se via;
E eu, enlaçando-a em mim, todo tremia:
Já não sabia mais como enleá-la:
Eu não falava, eu nada lhe dizia:
E cria mesmo ter perdido a fala.
O que sentia nem dizer ensaio:
Era um raio de luz, um novo raio
Vindo de um novo sol, que assim me assalta:
Ardo então, como ardera uma montanha:
E neste extremo e convulsão tamanha,
Contigo, Helena, e amor, que céu me falta?
Helena, – os homens são irmãos na terra –
Toda doutrina de Jesus foi isto:
– Amai-vos – só pregava aos povos Cristo:
Toda a sua eloqüência amor encerra.
De um rei a força e o orgulho o não aterra;
Nem dos perversos quer andar benquisto:
– Só para o bem e o amor – dizia – existo –
– Glória ao céu! Paz aos homens! Termo à guerra –
Já ia o Nazareno moribundo,
Quando ao Gólgota, e após à Cruz subia,
Sem conhecer Atenas, Roma, e o mundo!...
Com palavras de amor, que disse um dia,
Com voz suave, e meigo olhar profundo,
Fez obra eterna, e como um deus morria!
Do oiro cruel do loiro a sombra ingrata
A tua fronte, Helena, eu não enrolo,
Talvez te fosse macular o colo
A leve nuvem que de si desata.
Sobre um soco de mármore ou de prata
Para te pôr de pé, e erguer do solo,
Com Fídias ao assombro fez de Apolo,
Pelos mundos meu hino se dilata.
Teu mármore mais fino, que o do Egito
Traz a imortalidade desse grito
Das mulheres da Trácia ao ouvir Orfeu.
Meu orgulho é que o tempo ao tempo diga
Teu nome, Helena, minha eterna amiga:
Quem te fez imortal também sou eu...
Viver de um sonho, Helena, um sonho belo,
Sem trégua, sem descanso, e sem repouso,
Ter nele sempre o imenso, o estranho gozo,
Gozo, que em rimas fúlgidas, revelo:
Viver no meio desse luminoso,
Único encanto, acaso único anelo;
Prender o céu; e o céu aos sóis num elo,
E esse elo a um nome, que dizer não ouso...
Qual das mais castas, qual das mais formosas
Ser não quisera, quem meu gozo alteia,
E a lira envolve em turbilhões de rosas?
E eu, como um Deus, a mão de estrelas cheia,
Morro, – como entre espumas sonorosas,
Morre, gemendo, o mar num grão de areia...
É grande já o artista, que procura
Asas à estrofe dar, cantando a amante,
Como Petrarca à Laura, como Dante
À formosa Beatriz, gentil criatura.
Bem cedo a esta abriu-se a sepultura:
Mais foi do poeta o longo amor constante;
E quando foi ao céu, levou-a adiante;
E entre os anjos agora ela fulgura.
Também por ti criei eternidades:
Dirão teu nome todas as idades,
Ou sob o pó do olvido ficarás?
Se triunfar teu cantor, como imagino,
Ter, Helena, será o teu destino,
Altares, como as deusas imortais...
Como as deusas pagãs de outros países,
Que Homeros cantam das antiguidades,
Serás uma talvez das mais felizes,
Terás um templo em todas as idades.
Dirão teu nome todas as cidades,
Como os de Vênus, Safo, ou Diana, ou Ísis,
Imortal nestas Imortalidades...
Isto, Helena, a ti mesma eu sei que dizes.
Todo o mel de Hibla nos teus lábios bebo;
E sempre dele ardente e sequioso,
Como a chuva o areai, teu mel recebo:
E transformo em canções todo o meu gozo:
E, ante o noturno céu do olhar teu meigo,
Vivo, como o universo sem repouso...
Talvez alguém daqui a dez mil anos,
Revendo ruínas, queira dar-se à pena
De saber, onde o teu tugúrio, Helena,
Existiu: e nos tombos busque os planos,
Que certo o leve aos sítios soberanos
Em que o mármore, o jaspe, a prata em plena
Irradiação de luz do céu serena
Fez um berço de amor e seus arcanos.
Esta concha de deusa bela e amante,
Nosso oásis, Helena, o nosso ninho
Nesse palácio estético e galante,
Cheio de beijos teus, e teu carinho;
Verão na catedral hoje triunfante,
Ruína enorme então pelo caminho...
E caminhava sempre distraído
Por uma ideia, que minha alma enchia;
Afastado de Helena por um dia...
Deixara o campo, enfim tinha partido.
Ao meu lado rangia o seu vestido:
Sutil véu de tristeza me cobria:
De uma saudade doce ia pungido;
Mas... pensar nela o bem que me fazia!
Sempre julguei que o nome seu ecoava,
Mas que ninguém sabia quem cantava,
E onde ocultei nossa mansão amena:
Mas indo pelas ruas da cidade,
Dizia atrás de mim a mocidade:
– Vês? não conheces o cantor de Helena? –
Deixa o tempo passar; e embora passe
Do corpo teu o mármore divino,
Ficará impoluto: em tua face
Sempre há de haver um brilho peregrino.
Eu ensinei as cousas; e inda ensino
O prazer a sorrir-te, onde te achasse:
Segredei uma prece ao teu destino:
Hás de ser, como o sol, que morre, e nasce.
Não perderás a tua mocidade;
Rasguei-te funda esfera azul, serena,
Onde abrirás as asas à vontade;
Onde podes ser águia, ou ser falena:
Dei-te a beber a Imortalidade
Nos versos meus. – Fui o teu Deus, Helena...