LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Imortalidades III – (Livro de Helena – A Lenda do Éden), de Luiz Delfino
Texto-fonte:
Luiz Delfino dos Santos, Poesia Completa, org. de Lauro Junkes,
Florianópolis: ACL, 2001, 2 v.
ÍNDICE
Love is my sin...
Shakespeare ― Sonnets
À Helena
Com sombras deste lado e luz do lado oposto,
Este livro reflete a tua alma e o teu rosto:
Vem de ti este livro, e é para ti somente,
Bem que não sei quem és; que às vezes me pareces
O anjo doce do amor, o casto anjo das preces;
Que outras vezes erguendo a cabeça imponente,
O olhar fulvo brandindo, e a voz austera e rouca,
Do arcanjo que caiu tens o orgulho insensato;
Que me pareces boa e me pareces louca;
Estrela, que se mira em límpido regato;
Vulcão, que tem rugido e chamas de cratera;
Céu, onde habita o raio e o sol da primavera;
Abismo, onde a alma cai em sombra, que a devora;
Que tens luz, que eu não sei se é do inferno, ou da aurora,
Se vem dos anjos bons ou dos anjos danados;
Ser superior, que esmaga Anteus desesperados,
Monstro, esfinge, colosso informe enfim que odeio
E que amo, e cujo casto e monstruoso seio
Tanto me faz querer, como fugir, e cujo
Atrativo é maior, quanto mais dele fujo;
Clarão, do qual em torno ando queimando as asas,
Sentindo bem que morro à luz com que me abrasas:
Foi por ti que escrevi este livro, indeciso,
Um pé fora e outro pé dentro do paraíso.
Hás de lembrar-te ainda da tremenda
Queda dos nossos pais, que a história conta:
Helena, sobe os séculos, remonta
Ao livro santo e após do Éden a lenda.
Aqui há muito que se leia e aprenda.
É na aurora da vida que desponta
O amor, que tudo eleva e tudo afronta:
É bom que cada qual o saiba e entenda.
Deixar a luz, para cair na treva,
Deixar tudo o que é belo e grande a troco
De um sonho vão, que ao erro e à dor nos leva!...
Deus dava tudo: e tudo inda era pouco:
Que mais queria Adão? Que mais quis Eva?
Ter tudo e querer mais? — Não é ser louco?!...
Quando pediu, um dia, o homem primeiro,
Cansado de estar só no Éden fruindo,
Quando pediu a Deus, entressorrindo,
Para gozar consigo, um companheiro,
Deus quis mostrar-se excepcional obreiro,
E fez, então, o que houve de mais lindo,
Fez a Mulher, primor, que ele exibindo,
Pôs, mudado em seu eixo, o mundo inteiro.
Era demais aquela maravilha:
Mais do que o sol, mais doce que o sol, brilha;
Aparição assim jamais foi vista.
Viam-se estrelas mesmo à luz do dia;
E o cântico que em tudo então se ouvia,
Era um Te-Deum da natureza ao artista...
Mas o Senhor, em tudo extraordinário,
Deu-lhe uma companheira com certeza
Compatível com sua natureza,
Joia sem preço em seu divino erário.
Ser grato era-lhe agora necessário:
Amá-la muito, a chama sempre acesa
De um grande incêndio e lirial pureza
Trazer no coração, feito um sacrário.
Sentiu que, perto dela, ele crescia:
Na alma igualá-la viu dia após dia;
Viu ter em si a mesma etérea essência.
Deus moldara-o também para ser dela;
E rir ouviu, na aparição tão bela,
Dentro e fora de si toda a existência.
Quase atônito Adão, e ebriado ao vê-la,
Deslumbrado, porém não satisfeito
Ficou desta obra augusta, em seu conceito
Melhor que a luz, mais bela que uma estrela;
Disse em si: — Por que fez tal obra? E fê-la
Mais do que lhe pedira com efeito:
E, inquieto o coração dentro em seu peito,
Foi de braços abertos recebê-la.
Oh! como o corpo tinha um suave cheiro!
Oh! que delícia penetrante e doce!...
Era o céu todo ante um pequeno argueiro!
Por que digno de a ter consigo fosse,
Lhe era preciso ser um deus primeiro...
E um terror vago na alma ao pasmo enleou-se.
Deus perdido no fundo do seu sonho
Tinha na mente um grande pensamento,
E, como o lume errante e incerto ao vento,
Ora triste ele estava, ora risonho.
Parecia dizer em tal momento:
— Tenho medo da obra que componho:
Assim: há de ficar um monumento:
Mas... doutro modo... era melhor... suponho! —
Deus, artista, deixou vencê-lo o gosto:
De modo que um ao outro soto-posto
Dava um só... De escultor obra genial.
Apenas um do outro era metade:
Um era a força junto à majestade:
Outro a doçura, a graça, o belo, o ideal...
Mas Deus, no caso, tinha sido omisso...
Apenas tinham leve conjectura,
Só um desejo, uma ânsia, uma tortura...
Sem poderem querer mais nada disso.
Cada qual ao escultor, que o fez, submisso,
Nenhum deles por si achar procura
Onde estava outra forma de ventura...
Se tudo andava em luxuriante viço!
Renques de rosas, filas de amarantos,
Sândalos, frutos, ondas de perfume,
Misturando-se aos mais variados cantos;
Joias e pedrarias de água em lume...
Não lhes bastavam já esses encantos,
Nem Deus entre eles como de costume...
Um via o outro; a si porém não via:
Numa ingenuidade imensa, ter certeza
De sua grande e esplêndida beleza,
Os dois quiseram nos vergéis um dia.
A menina dos olhos refletia
Um e outro: era isso uma estranheza:
Não lhes bastava: a natural grandeza,
O tamanho gentil lá não havia.
Foram mirar-se ao espelho luminoso:
A água, ao tê-los em si, ficou mais linda;
Guardou, pra os ter melhor, maior repouso,
Ebriada e muda a fruir de uma tal vinda:
Disse Adão: — Como Deus me fez formoso! —
Eva: — Sou, do que Deus, mais bela ainda! —
O ar cantava, ao ouvi-la e ria, ao vê-la.
O sândalo precípite inclinava
A fronte verde, quando ela passava:
Nua, a fonte quisera em si contê-la.
Quem nos braços pudesse adormecê-la,
Para os lírios contar, que ela pisava:
Tinha por ela a flor o amor de escrava;
Tinha por ela a luz o amor da estrela.
À sombra de oiro dos cabelos bastos
Brilham no olhar mais doce os sóis mais castos,
Vestia-a só diáfana alvorada.
A esposa, a mãe talvez houvesse nela;
Mas... tão humilde, e, além de humilde, bela:
Era a Virgem de auréolas cercada.
Assim os esperava a eternidade!
Iam calmos assim para o infinito,
Sem nenhuma emoção, de espanto um frito...
Numa monótona perpetuidade...
Da paz sem trégua a grande intensidade!
Deus num halo de glória a iriar, um mito,
De aloés, incenso, mirra o odor bendito,
Longa aleluia, plena felicidade...
Oh! que desejos de mudar de cena;
De ver tudo ao contrário, amada Helena;
De esquecer por uma hora o canto e o riso,
De ver a fera em cóleras uivando!...
Mas era tudo tão suave e brando!...
Mas era tudo aquilo o paraíso!...
Hoje tem a tristeza a augusta vida,
Essa tristeza que do céu radia,
Que enche de sombras o mais puro dia,
E que a cismar, pensar, amar convida;
Deles só a alegria era sabida:
Nunca mudava, nunca, essa alegria!
E lento e lento, o coração batia
À luz de um sol jamais interrompida.
Eva era toda a essência de uma rosa,
Adão a boca ideal, rubra e mimosa
A respirá-la por jardins tranquilos.
Perto, ali mesmo, a fabricar seus ninhos,
Torcendo a palha ao bico, os passarinhos
Iam cantando, e os dois a rir e a ouvi-los!
A relva era de idílica beleza:
Era a selva de sândalo cheiroso:
O ar vinha cantando ao par ditoso
Hinos verdes de esplêndida grandeza.
O leão de olhar macio e sem dureza
Buscava os pés lamber-lhes carinhoso:
Respirava o silêncio num repouso
Doce, como era em torno a natureza.
Adão da Virgem pura e imaculada
Bebia aos beijos, sem querer mais nada,
O leite do seu corpo, — ebúrneo vaso... —
Deus ria à parte, vendo-os prazenteiros;
Ou riam todos três, dias inteiros,
Deus, Eva e Adão, sem arte, em grupo, ao acaso.
Deus os via de longe, arfando em zelos
Indo pelos vergéis, e vindo a passo,
Nus, pelo sol, de luz enchendo o espaço...
E anjos vinham do céu a surpreendê-los.
Quadro novo, era cada vez, ao vê-los
Presos por transparente e forte laço;
E a fronte, e o rosto, e o colo, e a espádua, e o braço,
Pernas e pés em véu de áureos cabelos.
Não era em vão o sexo diferente,
Imo rumor, rumor de um fogo ardente
Lhes crepitava em delicioso anseio.
E quando Eva em transporte enleava o esposo,
Adão sentia um dolorido gozo...
Gozo e dor a pungir-lhe a fundo o seio...
Quando Eva só ensaia algum caminho,
Há de alegria em tudo uma vertigem:
Quando ela um pé levanta, chilra um ninho;
Dá de um pássaro a um canto novo origem.
Do bosque as feras todas se dirigem,
Para vê-la passar, deixando o arminho
Escuro; a neve dele é só caligem,
Tanto ela esplende — Adão ficou sozinho...
Hoje é sua a apoteose — O Éden toma
Uma estranha beleza; — e maravilha,
O que de bom na natureza assoma:
Em cada galho de árvore um sol brilha:
Da selva vem mais novo e doce o aroma:
Mesmo, como aos seus pés, o céu se humilha!...
— Eva, não sei o mal que nos espera!
Mas... enquanto não vem, quero, ao teu lado,
Gozar contigo desta primavera. —
Sobre a pele de um tigre Adão deitado
Sentia o dorso estremecer da fera:
Ao pé Eva montava um leão dourado.
Em círculos o Éden todo vinha
Ver sem cuidos ali seu rei brincando:
Mostrava a mesma pedra o olhar mais brando:
Move-se a selva... a selva então caminha?
Tudo vem... tudo chega-se à rainha:
Cantam sobre ela os pássaros em bando;
Como um vago terror, de quando em quando,
De vê-los ir, a natureza tinha...
Não dizem nada as santas escrituras,
Do que Deus conversava ali com elas,
Com essas duas criações tão puras,
Com essas duas criações tão belas.
Lá não havia rixas e querelas,
Noites sem sóis, lugubremente escuras:
Língua houve só para contar venturas,
Em vozes claras, límpidas, singelas.
Saber? o quê? e para quê? A vida
Perto do céu, sem dúvidas da sorte,
A lentos sorvos de prazer bebida,
E sem que o fio de oiro alguém lha corte,
Não tem questão qualquer desconhecida,
Nem tem que ir dar combate à dor e à morte.
Deus, talvez triste, um pouco anda erradio
Num manto azul de luz todo envolvido,
Anda na selva só, quase escondido:
Cisma... para... caminha... Está sombrio.
Veio do céu um dia aborrecido,
Como quem busca um clima em val mais frio:
Em tanta glória tinha ali vivido,
Que o Éden lhe fora um plácido desvio.
Como fez anjos, fez também aquilo...
Adão... Eva: de argila os fez, tranquilo.
Depois olhou-os: meditou... Foi mudo.
Deus não recua: o que Deus faz, stá feito:
Há lei também, em que anda ele sujeito:
Deus é Deus: porém Deus não pode tudo!...
Visto de longe Deus é um gigante,
De uma beleza, de uma mocidade,
Que só podia ter a Divindade...
Era assim visto a andar, porém distante.
Como em chamas, etéreo, deslumbrante,
Havia um vago em sua majestade,
Que já não parecia a realidade,
Que antes era visão de instante a instante.
Tinha seis asas de oiro em cada ombro:
Era uma maravilha, era um assombro:
Era um arcanjo em luz, quando ele passa.
Mas à medida que chegando vinha
O aparato de um Deus perdido tinha,
Guardava só de Adão o porte e a graça.
Sentiu-se Adão, um certo dia, alheado:
A quanto tempo ele existia? Quanto...
Quanto tempo teria então passado
Nessa ebriez do seu divino encanto?
Era mais que tortura aquele espanto!
Era uma dor... como uma dor do lado,
Ou golpe, a espera de um remédio santo,
De que ele enfim pudesse ser curado:
Por toda a parte olhava: — ele ia absorto:
Jamais vira cair um corpo morto,
E cria que era assim que ele caía.
De Eva buscava a deslumbrante face;
Que fora dele se Eva lhe faltasse?
Deus, Éden, tudo então lhe faltaria.
Sofrer, e não saber por quê? — Que luta!...
Ter o esplendor de um mármore com vida,
Vestal guardando a chama ininterrupta,
Fazendo um mal, que vem de ser querida?!...
Labareda no corpo arder escuta
Lá dentro: é Eva ao fogo derretida,
E a mesma luz, de que ela anda vestida,
Saindo, entretanto, em singular permuta.
Sofrer? — Sofrer!... Mas nada lhe doía!
Era um outro prazer, outra alegria...
Um pungir!... E isso mesmo era-lhe um gozo!...
Não definia bem o sentimento:
Vaga delícia amarga de um tormento...
Era um bem, que o deixava sem repouso...
Eva no entanto tinha qualquer cousa:
Sentia em si a langue morbideza,
Que ela cria envolver a natureza,
Que explicar a si mesma ela não ousa.
Em Adão suas mãos divinas pousa,
Como quem busca apoio e fortaleza:
E de uma dor secreta alheada e presa,
Dizia-lhe a tremer: — Sou tua esposa...
Piso em falso num sólido terreno:
Para as estrelas, para Deus apelo,
Apelo para o azul do céu sereno:
Há uma embriaguez, um mal do belo,
Há no amor mesmo puro algum veneno
Que acre o torna, e anda em nós, como um flagelo. —
E Deus vinha descendo a veiga amena,
E Adão sentia logo um novo alento,
Espantado de si, e o esquecimento
Daquela confusão, daquela pena.
Eva irradiantíssima e serena
Respirava do olhar um tal contento,
Que o Éden todo bebia esse momento
De inexcedível gozo em taça plena.
Deus bem sabia o mal que tinha feito:
Quis juntar neles dois um par perfeito,
E o fez em rapto e artístico delírio.
Tinha tudo de grande essa obra imensa:
Mas olvidou-se, pondo-os em presença,
Que os não fizera para o amor do Empíreo.
Por vez primeira a vê passar a cobra,
Dentro de lua em círculo, num halo:
Que prodígio!... Outro nunca há de igualá-lo!
Pensou: e a língua estende, e volta, e dobra.
Tudo que é belo e esplêndido lhe sobra,
Deus mesmo sente em si um grande abalo!
Pode tudo: o que pois há de orgulhá-lo?
Mas... que encanto ele vê numa tal obra!
Chegam-se as feras: — Eva a compreendê-las;
Ruge o leão: — há muito não se espanta:
Mesmo lambe-lhe as mãos, que olha, e quer vê-las:
E vão na fronte auréolas de santa,
Dos céus nos olhos com milhões de estrelas,
Clarões nos pés de um sol, que se levanta.
A queda!... O que era a queda? A eterna ameaça?
E aos pés o luxo, e a paz, e o paraíso?
Para cair, o que era então preciso?
Sorria! e com que riso, e calma, e graça!
Não: não hei de cair, por mais que faça:
Tudo em meus lábios vem deitar um riso:
Por caminhos de relva em flor deslizo:
Obra de Deus temer pode a desgraça?
Tão feliz, mas tão boa, quem não há de
Crer, que pode cair? — Quem pode vê-la,
Sem provar-lhe os tesouros de bondade?
Deus preveniu-se em tempo inda, ao fazê-la:
Deu-lhe o instinto, que a guarda, e por piedade,
Pôs os raios do sol na opaca estrela.
Eva agora com gosto a serpe ouvia:
— Vem, modelo sem par de formosura;
Anda contigo um céu, ideal criatura,
O sol não dá mais doce e claro dia.
Eras digna de ter maior ventura:
Existe o fruto da sabedoria:
Deus proíbe tocá-lo: outro Deus cria;
Quem o comer, vai, sobe a grande altura.
Teu gesto bom a todos conquistando,
O Éden fará irredutível, mudo. —
E dando à branda voz um tom mais brando:
— Não te aflijas ao ouvir um grito agudo;
Come com Adão o fruto; — e come, quando
A grande paz da sombra invade tudo. —
Muitas vezes no Éden de repente,
Batendo as asas múltiplas, doiradas,
Os arcanjos em grupo, em revoadas,
Vinham cantar aos três, parando em frente,
E ao som das doces harpas dedilhadas,
Melancólica história, em voz dolente,
Narravam, de ações más no céu passadas,
Que Deus venceu, mas não ficou contente.
Eva, tremendo, ao ouvir, um pouco fria,
Sob um véu fugitivo de tristeza,
Conchegava-se a Adão; — Adão sorria.
Dessa ideia ela agora andava presa;
Parte do céu com sóis cair ouvia:
Mas isto era um mau sonho com certeza...
— Há só para o que é triste agora ensejo:
Hão de vir dias cheios de amargura:
Não nos bastava aqui tanta ventura?
Como sabe em teu rosto um casto beijo!
Eva, não quero mais, nem mais desejo:
Só mal — só mal a inveja te procura;
Só em pensares nisso, olha, criatura,
Ponho os olhos no chão, quando Deus vejo.
A que imprudência a serpe te convida!
Vê que podes mudar a nossa sorte,
Mudar tudo em nós, mulher querida.
Acautela-te tu de ti; sê forte:
Disse a cobra, que o fruto era o da vida:
Mas disse Deus que o fruto era o da morte. —
Não sabiam, felizes! que existisse
Outra atitude, e vale, e campo, e flores;
A mesma claridade, as mesmas cores!
Ah! quem amar nesses jardins os visse!
Uma inocência, um raio, uma ledice
Batiam asas cheias de esplendores:
Anjos passando, pássaros cantores...
— Se isto acabasse! — Eva consigo disse.
Bastava a Adão a sua companheira;
Ela enchia-lhe bem a vida toda:
Tinha a razão, a boa conselheira.
Esse eterno festim de eterna boda
Deixar! Expor a paz da vida inteira!...
Era, além de ser má, uma ação douda!
Um revoar de arcanjos nunca visto,
Com plumas de rubis e de safiras,
Estes com harpas, serafins com liras;
E Adão consigo a refletir: — Que é isto?...
— Eva, não vês? É novo: e não te admiras?
Eva, repara: em que olhes bem, insisto,
Rumor de vozes, músicas em misto;
Anjos nus, cheios de secretas iras!...
Deus no meio entre os mais brilhantes raios,
O Príncipe da luz movendo um dedo,
E os Tronos voando em torno dele: olhai-os...
Deus fala agora, vê, baixo, em segredo:
Há clarões, tendo súbitos desmaios...
Eu não sei por que tremo... Eu tenho medo... —
— Eva, ânimo! está próxima a hora.
Deus tem medo de vós; — sabei-o ao certo:
Reúne todo o céu aqui: stá perto
De banir-vos, os dois, de pôr-vos fora.
Éreis só três — Deus, Eva e Adão: — agora
Não sois só três em plácido deserto!
O segredo, que nisto anda encoberto,
Eu sei, vi-o chorar! Tem medo! chora!...
Não é perder-vos, não: o que lhe importa,
É deixar de ser Deus: ele vos teme,
E lança os olhos com terror à porta
Por onde há de sair em breve; e geme!...
Comei do fruto... a sua força morta,
Sereis Deus com poder imenso, extreme...
— Esta serpente esquálida e medonha,
De pele áspera, de escamas cheia, escura,
Que a sombra escusa dos moitais procura,
E que parece ter do sol vergonha;
Traiçoeira, sutil, de má figura,
Que faz que dorme e faz pensar que sonha,
Não tem ninguém no Éden que a suponha
Capaz de uma ação boa, uma ação pura;
É vil; ondeia, salta, o corpo arrasta:
Todos a fogem, como de um perigo,
No flóreo prado, na floresta vasta:
Ninguém a quer: não tem um só amigo.
Eva, foge também da serpe; — basta
O susto, em que ando; o horror que anda contigo.
— Gentil Princesa, se ainda vir eu ouso
Lembrar que tardas em colher o fruto,
É que, enquanto o não tens, eu não repouso,
E com visões aterradoras luto.
Ah! não demores meu supremo gozo:
Sem justas ambições te não reputo:
Sereis, tu só e teu sagrado esposo,
Donos disto: do próprio Deus o escuto.
Serão ordens somente os teus olhares,
E a natureza, em tudo obediente,
Dará vida ao que dentro em ti pensares.
Baixará aos teus pés o céu fulgente,
Anjos e sóis, escravos aos milhares
Virão servir-te, Deusa onipotente!
E Deus mais uma vez tristonho e doce
Chegou-se ao par gentil com passo tardo,
E lhes disse: — Por vós de amor eu ardo,
Como se todo sarça em fogo eu fosse.
Não se esqueceu, Adão, Eva, lembrou-se
Que vos proibi tocar nesse bastardo
Fruto, que fere e mata, como um dardo?
Lembrar-vos isto, aqui hoje me trouxe.
Nas faces um rubor maior, mais lindo
Eva tinha; no olhar um resoluto
Raio fulvo a animá-lo... — O céu infindo,
Tornou Deus, toda a terra há de ser luto,
E aos vossos pés o mesmo Éden fugindo
Dirá... Comeram do maldito fruto!
Eva a Adão: — Olha a serpe, o que tem dito:
No pomo está todo o poder, é certo:
Não quer Deus o segredo descoberto,
E traz no tronco o olhar constante fito.
O meu poder com teu poder permuto;
Adão, é já bem pouco o teu trabalho,
É só metade, come, acaba o fruto.
Quando o pomo não foi mais preso ao galho,
Em cima a noite se vestiu de luto,
E caiu, como lágrimas, o orvalho:
Rompeu da árvore logo agudo grito,
Como o de um Deus, que andasse ali por perto,
E tudo transformou-se num deserto
Árido, feio, lúgubre, infinito...
Ao caírem os dois, tudo caía:
Belos ainda, vê-los já não ousas:
Havia em tudo as lágrimas das cousas;
Quem não chorava então, também não ria.
Do Éden de ontem nada mais havia:
Em cardume andam doudas mariposas:
Por ervas mortas só teus olhos pousas:
Tudo é total, tudo é melancolia.
Sabem: — fizeram jus à sua ruína:
E vão, perdoando aos anjos, que se excedem,
Ao pô-los fora da mansão divina.
Já não podem querer; já nada pedem.
E Adão, beijando-a: — Esposa peregrina,
O amor nos resta; e o amor resgata um Éden.
— Anjos, saímos já: nada queremos:
Das mãos nos escorrega o paraíso,
Como o irradiamento de um sorriso,
Que está perto de nós, e nós não vemos.
Isso, que nosso foi, já foi, não temos:
Tudo, ó Eva, perdemos de improviso;
Saibamos bem deixar o que perdemos:
O orgulho do vencido hoje é preciso.
Mas em te possuindo, Eva querida,
Tenho o gozo infinito em minha vida:
Não vale a nossa perda um grão de areia.
Deus não soube pesar o cruel castigo:
Tenho flores, jardins, vergéis contigo:
De Edens contigo está minh’alma cheia.
Surge Adão; Eva após; Deus os exorta:
Tinham no paraíso eterno encanto:
Roubam o fruto, que é vedado, e entanto
Deles toda a ventura é logo morta.
Vê-os Deus... Deus agora os não suporta,
E envolve a face irada em rubro manto:
Cai-lhes dos olhos o primeiro pranto:
Rangeu, o Éden fechando, a brônzea porta.
Tinha lá dentro sândalos, e nardos:
De cada lado um anjo a espada eleva:
O sol golpeia-os com seus áureos dardos.
Urram leões em torno, ao pé, na treva,
Eriça-lhes a terra urzais e cardos...
Mas junto a si Adão inda tem Eva.
— Basta-me, ó Eva, o teu olhar ainda,
Para não querer ver nem mesmo a aurora:
Eu te prefiro ao sol, à estrela linda,
Que a curva azul do céu à noite o enflora.
Quis-te lá dentro muito, e mais cá fora:
Eu te possuo: seja a dor bem-vinda:
Com teu prodígio e amor o Éden não finda;
Digam os anjos, que acabou embora.
Se o Pai viesse, e me dissesse: — Esqueço:
Voltemos todos, como no começo:
— Não, lhe diria, estou feliz e rico.
Esta mulher é minha toda inteira;
Preso à sombra de sua cabeleira,
Dela à sombra acabar eu quero. — Fico.
À traição da serpente Adão irado,
Mas sem perder de todo a calma, via
Como em torno de si tudo caía,
E como deles Deus ficou vingado.
Deus mesmo estava mudo e perturbado!
Deus ouve tudo, mas naquele dia
Deus não quis nada ouvir, e nada ouvia:
Chorava o ar só, — ao ouvir Adão, coitado!...
— Pai, é teu sangue, bebe... é teu: flagela
A mulher, que fizeste assim tão bela,
E o homem, que foi tua melhor criatura.
Eva, és maior que a própria Divindade:
Vai palpitar-te ao flanco a humanidade,
A obra, que é sua, a geração futura.
— Senhor, Deus, Eloim, sede clemente:
Mostrai-lhes sempre aos dois os bons caminhos,
Que não pisem aos pés urzes e espinhos,
Que tenham água em límpida corrente.
Que seja o céu azul, o sol fulgente;
Lhes preste a natureza os seus carinhos:
Deem-lhes os troncos folhas, sombra e ninhos,
Seja-lhes sempre aroma e luz o ambiente.
As árvores cantavam, misturando
O orvalho, pranto em gotas, brando e brando:
E as cítaras brandindo iam também
Anjos, com tristes salmos, repetindo:
— Perdão, piedade, amor a par tão lindo.
E o Éden todo, a chorar, dizia: — Amém.
— Senhor, Deus, Eloim, somos os ninhos,
Os vossos grandes cedros enfeitamos,
Nascem aí os vossos passarinhos,
Que são o encanto dos seus verdes ramos.
Só para vós nossas canções entoamos,
Temos sempre de vós festa e carinhos:
Seguimo-vos por todos os caminhos,
E, sabeis, como todos vos amamos.
Tende pena de vossos pequeninos,
Que juntos vêm a vós, cantando os hinos,
Que eles sabem cantar, pedir também
Perdão aos vossos filhos tão queridos:
Foram, Deus bom, coitados! iludidos!
E o Éden todo, a chorar, dizia: — Amém!
— Eloim, Eloim, Clarão intenso,
Que com as tuas próprias mãos fizeste
Eva e Adão, que em ti se manifeste
Poder de obra maior... maior eu penso.
É a piedade de um perdão imenso,
Para esse par belíssimo e celeste:
Tudo teu esplendor de luz reveste,
Rompe, rasga o nevoeiro inda o mais denso.
Eu sou a rosa dos jardins do Éden,
Que em nome vem das flores, que te pedem
Perdão... as flores, em meu nome, vêm,
Senhor, Senhor, pedir-te o esquecimento...
O erro deles foi o de um momento... —
E o Éden todo, a chorar, dizia: — Amém.
Cítaras, harpas, outros instrumentos,
Nebéis, teorbas, cistros dedilhando,
Agora brando, agora inda mais brando,
Com letras de saudosos pensamentos,
Os serafins em lúgubres lamentos,
Anjos, arcanjos, querubins errando,
Pareciam voar no Éden cantando
A surda mágoa de íntimos tormentos.
Um miserere longo, e soluçado,
O céu, reunido ali, clama ajoelhado,
Em pranto: enquanto um Trono só desfere
Um cântico tão triste ao som da lira,
Como Deus nunca ouviu, nem mais ouvira...
— E o Éden todo chorava: — Miserere...
Gritos de festa? Para quem seria,
Música, hinos, preces e louvores,
Todos esses multíplices rumores,
Que Adão soar no Éden calmo ouvia?
E olhos grandes à esposa dirigia,
A ver se o rosto lhe traía as dores:
E murmurava: — quando triste fores,
Só então perderei toda alegria. —
Era de tarde. — O sol pelo horizonte,
Banhado em sangue, a luz soluça, e o monte
Desce, e vai-se escondendo mar além:
Inda perto Eva e Adão, naquela hora,
Ouviam esses cânticos cá fora:
Que eram no Éden: — Miserere e Amém.
Deus nada ouviu: e amanheceu sentado
Perto de um cacto, que só tinha espinhos,
Sem braços para suspender os ninhos,
Ou cantar algum pássaro isolado.
Tudo estava de súbito mudado:
Encheram-se de pedras os caminhos;
Afastados vergéis, jardins vizinhos
Eram sáfaro chão aos sóis deixado.
Não de argila, de mármore, suponho,
(Foi seu segredo) obra melhor faria:
Fez isso: obra de gesto em leve sonho!
Depois de tudo, ao declinar o dia,
Ao céu Deus só, incógnito, tristonho,
Por escadas de lágrimas subia...
Quando a primeira lágrima caindo,
Pisou a face da mulher primeira,
O rosto dela assim ficou tão lindo,
E Adão beijou-a de uma tal maneira,
Que anjos e Tronos pelo espaço infindo,
Qual rompe a catadupa prisioneira,
As seis asas de azul e de ouro abrindo,
Fugiram numa esplêndida carreira.
Alguns, poisando à próxima montanha,
Queriam ver de perto os condenados,
Da dor fazendo uma alegria estranha.
E ante o rumor dos ósculos dobrados,
Todos queriam punição tamanha,
Ansiosos, mudos, trêmulos, pasmados...
— Eva, choras? não sei por que tu choras!
Também caíam lágrimas dos galhos:
Tinha o chão todo pérolas e orvalhos...
Vi no Éden também pranteando auroras...
Pois já não me amas tu? Já não me adoras?
Por ti são leves todos os trabalhos:
No meu amor teus membros... agasalha-os...
Hei de em beijos vestir-te o tempo, e as horas.
Hão de servir-te em grupo as primaveras,
Serás rainha, como então já eras:
Há de cantar-te aos pés minha alegria.
Eva, junto de mim não sejas triste:
Foi com asas de pomba que caíste;
Nas mesmas asas te erguerás um dia...
Eva ao deixar o Éden viu de certo
Árido tudo, tudo enfim maninho:
Cantando o céu cantava um passarinho;
Lambeu-a um leão, que andava ali perto.
De urzes achava o chão todo coberto;
Não sabia pisar sobre os espinhos;
Faltavam-lhe os edênicos carinhos...
Em tudo via um pálido deserto.
Campos vastos, cascatas delirantes,
Florestas negras de árvores gigantes,
Vê, como o último som de morta lira.
Viu tudo; — e tudo olhou com doce calma;
Tinha o céu todo dentro de sua alma...
O que era belo, e grande e bom já vira.
Adão achava Deus correto e justo;
Não tinha a opor-lhe ou ódio, ou raiva, ou queixa,
E à leonina sombra da madeira
Erguia ao céu um tronco alto e robusto.
Não era um desafio ao Verbo augusto,
Que num só gesto as cóleras enfeixa;
Era a grandeza inata, que não deixa
O herói, que nunca conheceu o susto.
Um anjo mesmo em frente, e a sós, se o vira,
Talvez tremera, enfim talvez fugira,
Crendo que o espaço às mãos ele continha.
Eva, igualando-o, era maior ainda:
Vencida era soberba, e assim mais linda:
Eva continuava a ser rainha...
— Que espaço grande, lúgubre, vazio!
O sol está de nuvens encoberto:
Contra o longo e monótono deserto
Contigo, Adão, um novo Éden eu crio.
Sereno e calmo, Adão, o ar sombrio,
Achava em Eva o paraíso eterno:
Podia vir também agora o inverno,
Tinha nela o calor preciso ao frio.
Na terra triste, e como aborrecida,
Soprava um vento! O vento enfim que importa?
Hão de erguer com trabalho uma guarida.
Depois que dos vergéis cerrou-se a porta,
O ser primeiro, que caiu sem vida,
Foi uma rosa, que eles viram morta...
— Eva, chega-te a mim: em tudo há luta;
Tenho em mim mesmo um pensamento ardente:
Sem to dizer, não ficarei contente:
Minha alma com tua alma anda em permuta.
Quando contigo alheado, ao pé da gruta,
Hauro o ar perfumado, e leve, e quente,
Deus... o Deus que te pôs de mim em frente,
Ouço dizer-me: — A pena acaba: — Escuta,
Não pode ser eterna esta desgraça:
Não tens o instinto de uma estranha raça,
Na nossa estranha e indômita altivez?
Agora posso conservar-me mudo.
Eva, eu disse demais, mas disse tudo:
Vê bem quem somos: olha quem nos fez...
Vinha-lhe sempre, bem como um marulho
Eterno de água em queda, essa lembrança,
Que ele a se repetir não poupa, ou cansa:
— Foi pena o Éden perder, não foi esbulho.
Tinham na alma uma grande calma: e o orgulho
De quem guarda no peito uma esperança,
E é, bem como há de ser um mar, que alcança
A praia, sem espuma e sem barulho.
Raça de Deus, a raça perseguida,
Não recebera alento e força e vida,
Para acabar como animal qualquer.
Não sabiam que, um dia, deste crime
Sair devia uma mulher sublime,
E a Mãe de Deus seria essa mulher...
Adão foi forte, vendo tudo aquilo:
Que podia esperar senão castigo?
Inquieto dentro em si e só consigo,
Por Eva só mostrava-se tranquilo.
Eva pensava em cóleras ouvi-lo,
Vê-lo erguer-se terrífico inimigo...
E Adão: — Querida, crê, não te profligo,
Não era a queda para mim sigilo.
Mostrava no seu porte o heroísmo raro,
O heroísmo de uma alma grande e boa...
Para Eva ele assim lhe era mais caro.
Seu lábio um hino esponsalício entoa:
Ele devia à sua esposa amparo;
Tinha tudo a esperar do amor: — beijou-a.
Eva sorriu com tanta gravidade,
Que Adão viu nela a gratidão da esposa,
Tinha no gesto um cunho de verdade,
E toda em si de Deus alguma cousa.
Enleado ante essa estranha divindade
Roja-se aos pés, e olhá-la então não ousa:
Ela as mãos níveas, cheia de humildade,
Nos seus cabelos meigamente pousa.
Abriu no céu os olhos uma estrela,
Outra, e mais outra, muitas mais, por vê-la,
Os rouxinóis cantaram nos palmares...
A lua, que entre nuvens se escondia,
Num manto de oiro agora os envolvia...
Viam-se anjos por perto enchendo os ares.
Não tinham mais aquela estância amena,
E aquele fundo gozo ininterrupto;
Fora do Éden variava a cena.
Nem sempre o rosto agora andava enxuto:
Possa-lhes sempre o amor dar trégua à pena:
Longa dor lhes custou tão peco fruto.
Sem terror nunca havia um dia findo.
Um leão a bramir, como se fosse
Saciar a fome, em cólera atirou-se
À gruta, em cuja entrada era o par lindo:
Fitou-os, cauda e juba sacudindo,
E abraçando-os no olhar mais calmo e doce
Nas quatro patas, aos seus pés sentou-se,
Na grande paz, que ele sentiu, dormindo...
Buscava-a inquieto Adão um dia, quando
Viu pela veiga deliciosa e lisa,
Nessa nudez, que o artista diviniza,
Borboletas após, Eva brincando.
Ia ligeira, em movimento brando,
Ia, assim como um rio, que desliza,
Como uma ave no ar, no prado a brisa...
Adão e os anjos viam-na passando.
Tinha no olhar um raio de piedade,
No gesto uma espontânea majestade,
Que era da raça essa altivez infinda.
Tinha a graça infantil, doce e serena,
Tinha tudo, que tens em ti, Helena;
E mais do que tu tens, que é muito ainda.
Num dia de mais sol, e mais cansaço,
Em que as cigarras chilram loucamente,
Que é pouco o ar, que se respira, e é quente,
Sem pássaros, sem nuvens pelo espaço:
E à sombra do nopal, e braço a braço,
Haurem, sonhando, o perfumado ambiente,
Súbito aos pés, de rastos, a serpente
Veem que os circunda em sorrateiro laço...
Eva afastar... Adão mais nada espera:
Um pouco para trás o corpo dobra,
E o golpe parte, e o vil réptil lacera...
Virão mais... Força e ânimo lhe sobra:
Pode o tigre poupar; poupa a pantera...
Mas não pode jamais poupar a cobra...
Eva vendo-a morrer, só teve nojo,
Mesclando em tudo um pouco de piedade:
— E isto é obra de um Deus?!... Pensar quem há de!
Ele dar vida a um ser, que anda de rojo!
Que habita as urzes, que procura o tojo,
Para estar lá em mais seguridade,
Que é hipócrita e falsa, e a todo arrojo,
Não opõe força, opõe sagacidade.
Finge às vezes letárgico repouso,
Para atrair a si os passarinhos,
Que amam a luz do seu olhar choroso:
Ou abandona o seu moital de espinhos,
Para enroscar-se ao sândalo odoroso,
Ou dormir dentro, em paz, nalgum dos ninhos...
Epílogo
— Sem Éden, diz Adão, o mal que venha,
Não há um mal maior; nem maior luta
Ter poderemos ao sair da gruta;
De pé andemos sobre o espinho e a penha:
Na floresta, que ao lado se desgrenha,
No rugido da fera irada e hirsuta,
No areal deserto, que o areal permuta;
Mal maior sobre nós não se despenha.
Tudo é pouco a vencer, e lento e lento
Servir faremos mesmo o raio e o vento:
Tudo terá em nós um domador:
Somos de raça máscula e divina:
Teme-nos tudo, e tudo a nós se inclina:
É Deus em nós a inteligência e o amor...
Aqui acaba, boa e má, a história
Dos livros santos, cânones da fé,
Resta-nos só por eles a memória
Do que há de estar por séculos de pé.
Essa mulher caída, hoje quem é?
A Mãe de Deus: a humanidade adore-a:
Anda cheia de auréolas de glória,
E é maior que o universo, e mais até...
Helena, anos e anos em milhares,
Terá Eva em Maria culto e altares:
A lenda há de durar, como a esperança.
A pobre humanidade um céu deseja,
Deu-lhe esse céu consoladora igreja:
De aspirá-lo e querê-lo o homem não cansa...
Esta história do Éden eloquente
Tem episódios curtos porém cheiros:
Os males todos podem vir. — Temei-os,
Helena; os males chegam de repente.
Há sempre a inveja, há sempre uma serpente,
Que vem encher a vida de receios;
Que nos ensina falazmente os meios
De sair de um puríssimo ambiente.
Então tudo que é bom, mau nos parece:
De hora em hora, e de instante a instante cresce
Vago desejo, que jamais se diz:
É deixar os jardins amados, indo
Para um outro país qualquer mais lindo,
Onde, em outros vergéis, se é mais feliz...
A Odisseia de amor, querida Helena,
Triste e alegre, contigo compartilho,
Segue, como à canção segue o estribilho,
Uma mágoa tristíssima e serena.
Tu me ouvias deitada sobre o leito
Onde um perfume doce anda e cintila.
Tinhas as mãos cruzadas sobre o peito:
Ouvindo a Lenda, não te vi tranquila:
Eva nela é tão grande com efeito,
Que de pé não podias tu ouvi-la.
Depois de tanto gozo, e tanta pena,
Tinhas o rosto pálido, sem brilho,
Como a Madona ao enviuvar do filho
Aos pés da cruz, e junto a Madalena.