Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Arcos de triunfo, de Luiz Delfino


Texto-fonte:

Luiz Delfino dos Santos, Poesia Completa, org. de Lauro Junkes,

Florianópolis: ACL, 2001, 2 v.

ÍNDICE

Beatificação

Naufrágio irreparável

Milagre

Domador de monstros

Um grande pintor

A estátua do crime

Pelo céu abaixo

Nênia

Um arco de triunfo

O que é preciso

Eh, perché dorme...

Ad sidera

Buon citarista

Akros

A grande sombra

Árvore simbólica

Beatificação

José Maria do Amaral

O altitudo!

S. Paulo

Oh! quando o via pela rua adiante,

A fronte nua, lívida, sulcada,

O olhar severo, o porte de gigante,

Mas, sobretudo, a coma prateada,

Como em cascata, aos ombros despenhada;

E a barba longa em torno do semblante,

Que era medalha em lírios enquadrada,

Eu me lembrava de Florença e Dante...

Depois de ter o Inferno percorrido,

Que país de oiro e azul teria em breve?

Não sei. — E ele ia, como um deus vencido,

Abrindo as asas invisíveis, leve,

Grande, aéreo, afastando-se, metido,

Por entre sóis, em píncaros de neve...

Naufrágio irreparável

Pereira da Costa

Oh! quando, o último instante, o achei na cama,

Branca a face, sem cor... da cor da cera,

Alheado, estranho, vi por vez primeira

Faltar-lhe aos olhos a divina chama.

Atravessava um surdo choro o drama,

Enquanto eu lhe buscava à cabeceira,

No violino, a obra e a vida inteira...

Lágrimas de oiro à noite o céu derrama...

Porém... na noite dele?... e olhei: — ao lado

Hirto, e ainda vivo, o feérico instrumento

Sobre as águas do pranto, um mar cavado,

Pareceu-me boiar, ir indo lento,

Ir... por um frio vento arrebatado,

Ele a gemer, tudo a gemer... e o vento...

Milagre

Agostinho Motta

Se ele ouvisse na sua sepultura

A tua voz sentida e suspirosa

Chorar-lhe a morte triste e prematura...

De cada branca pérola mimosa,

Não só mimosa, virginal e pura,

Ele fizera a tela grandiosa

Onde juntara à tua formosura

Os lumes de sua alma radiosa.

O pincel, — morto sol na mão descrente, —

Acordara outra vez, dourando o idílio

De floresta que foi seu sonho ardente.

Fora-lhe a cova um trono, e não o exílio...

E isto tudo fizera de repente

Uma lágrima só que cai de um cílio.

Domador de monstros

João Caetano

Como uma estrela monstruosa, o drama

Lança as garras na cena e se dilata,

E quando a cauda de clarões desata,

Como leões fugindo aos antros, brama.

Quer-se um atleta então, que o horror e a chama

Do olhar do monstro não fascine e abata:

Que se levante dessa luta ingrata

Agarrado aos milhões de mãos da fama.

Foi ele um domador. — Hoje enfim dorme!

Que pedaços de sóis, na queda enorme,

Levou consigo o Encélado sombrio!...

Caiu, como o colosso da floresta,

Que abala o solo, e esmaga tudo... e reta

O espaço, em torno, lúgubre e vazio...

Um grande pintor

Victor Meirelles

Foste, a hora bateu, irmão de Urbino,

Juntar-te ao mestre na celeste esfera:

Para ficar com teu pincel divino,

Ninguém ousou dizer à morte: — Espera.

Pisando o pé no solo eterno, o hino

Do triunfador, à tua musa austera,

Soou de sol em sol: foi teu destino

O amor do ideal, que o belo inspira e gera.

Correu-te a vida por areal em fora;

Da terra nossa a enorme dor partilho:

Quem tua alma entre nós vai ter agora?...

Teu gênio a história da arte encheu de brilho;

Pátria, ajoelha; amou-te muito, chora:

Quem mais deve chorar tão grande filho?...

A estátua do crime

Almeida Reis

Trouxe um dia uma fada as brancas mãos coalhadas

De quanta pedraria ela escondido tinha;

Todo o escrínio real da rainha das fadas,

Que inveja causaria à mais nobre rainha!...

Tinha também um gênio uma folha de vinha,

Feita de uma esmeralda, e cecéns enfeixadas

De diamantes, no seio estrelas variegadas,

Verdes, rubras, azuis da cor de água marinha...

Era, para uma estátua ornar de um deus da Jônia,

Que a um plinto brônzeo já de pedra da Lacônia,

Nosso Canova erguia em mármore mais branco...

Era para o teu deus de mármore sublime...

Mas foram dele (horror!) chegando, e vendo o Crime

Inda agitar-lhe o braço, o rosto, o tronco, o flanco!...

Pelo céu abaixo

Arthur Barreiros

Ferido o corpo, o espírito esmagado

No prélio, — como em dia de batalha

Em nau já curva ao vento, que farfalha,

Bandeira solta em mastro escalavrado

Rufando, dentro em pé inda o soldado

Sem terror, rota a espada, em trapo a malha,

Ouvindo uivar o casco, que escangalha

Entre garras de sirte o oceano irado,

Espera... espera: o moribundo moço

Esperava!: — porém, qual no arcabouço

Mastiga a vaga a selva do aparelho

E o mar cantando, engulha, enchendo o bojo,

Vi-o afundar-se, e como um sol de rojo

Ir-se em meio a amplidão de um céu vermelho...

Nênia

F. A. de Carvalho Júnior

Morreu por vós, esplêndidas falenas:

Em vós viveu, cativo e delirante!

Como era belo ter esse gigante

Preso, a estorcer-se em vossas mãos pequenas.

Do ardente sonhador, na aurora apenas,

Entre os raios da coma lourejante,

Descansa agora o plácido semblante

À sombra de uma coroa de verbenas.

Por que deixastes resvalar ao solo

A lira de oiro, túmida de arpejos,

E a fronte em fogo do formoso Apolo?

Ai! cortaram-lhe  as asas aos desejos!

Por que não o acordais em vosso colo

Ao rumor lento de um chover de beijos?

Um arco de triunfo

Pedro Luiz

Dê-me uma grande lágrima a procela,

Talhada como um bloco de granito,

Olhos postos no céu e no infinito

Eu levantara a sua estátua nela.

Que vulto augusto, que figura bela,

Que herói, que semideus do antigo rito!

Dou-lhe o meu arco de triunfo, — um grito:

Dou-lhe o meu panteão, — uma capela.

Não basta: quero que entre na floresta,

E ouça os faunos e as dríades cantando

Seus cantos, dele em torno em coro, e em festa.

E quando ele voltar de ouvi-los, quando

Busque o leito, terá, na longa sesta,

Da glória o colo, e em pranto, ela o embalando...

O que é preciso

Luiz Guimarães

Na primeira página do livro Sonetos e Rimas

Como vedes, deixo

O vosso canto, e o meu juízo escrito...

Diogo Bernardes — Égloga

Ó minha doce amiga, abre-me o seio,

Onde eu poise um momento a minha fronte,

Enquanto o livro, que já li, releio

Escrito em grandes letras no horizonte:

De ondas de oiro e de luz murmura cheio,

E as carícias, que tem, não há quem conte,

Torna a mulher na terra um céu, eu creio,

Bem como o sol torna esmeralda um monte.

Aos pés de um ente angélico e bondoso,

Não sentes tu, no próprio amor, o esposo

Beber a glória em rica taça ideal?...

Este teve a mulher, que o emparaísa,

Que a alma grande do poeta enfim precisa,

Como tem fome de água e relva o areal...

Eh, perché dorme...

Gonçalves Crespo

I

Born for immortality.

Wordsworth - Sonnet

Logo que se espalhou o caso triste,

Vestiram crepe as musas brasileiras,

E ao choro do olivedo, em que caíste,

Juntou-se a dor das lânguidas palmeiras.

Da lira de oiro as cordas feiticeiras

Presas às noites tropicais sentiste,

E o gentil berço das canções primeiras

De azuis e sóis de nossos céus vestiste.

Era o teu hino o múltiplo gorjeio

De sabiás e rouxinóis, saindo

Num grupo só, num só divino enleio.

Mas... será certo que isto tudo é findo?

Corram, palpem-lhe bem de novo o seio,

E não o acordem, se ele está dormindo...

Ad sidera

II

For a time farewell...

Byron — Manfred

Pois que é verdade, adeus, ó companheiro...

Puseste a lira de oiro a tiracolo,

E num ginete pálido e ligeiro

Foste com o anjo que te leva ao colo.

Hei de dizer àquele pobre solo,

Onde plantaste o triunfal loureiro,

Que tu dos astros procurando o polo,

Ele certo ficou sem jardineiro.

Hei de dizer ao rouxinol, que vinha

Ouvir-te a voz de cima do arvoredo

Para melhor cantar sobre a tardinha,

Que quando alguém viaja azul em fora,

A gente espera... espera... muito embora,

E, como tu, não volta mais tão cedo...

Buon citarista

III

E, come a buon cantor, buon citarista

Fa seguitar lo guizzo della corda

In che più de piacer lo canto acquista.

Dante — Paradiso.

Ouçamo-lo cantar. — No mês das flores

A voz gentil tem matinal frescura:

O dia em cada idílio se pendura,

Dão-lhe as aves e os sóis luz e rumores.

Morde-lhe a aurora a lúbrica pintura;

Tempera a sombra as cruas, rubras cores:

Nera, rompendo o anel da miniatura,

Sai nua a rir, e corre aos gladiares.

Passa casta visão de noiva: — à festa

Lança idílios a luz; e um deus sereno

Acende a tenda azul sobre Modesta;

E ao herói Manchego no trespasse resta

Aquela ameaça, aquele eterno aceno

Com que morto e indignado inda protesta.

Akros

The mind is its own place, and in itself

Can make a Heaven of Hell, a Hell of Heaven.

Milton — Paradise Lost

Alteia o canto. — Lúgubre e sombrio

El-Rei, vesgos os olhos de loucura,

Sentindo o horror do crime, e o calafrio

Do remorso, que o punge e que o tortura,

O velho monge cardeal procura;

O velho monge espera: enche o vazio

Da apainelada sala, imensa, escura,

Um Cristo à cruz, de olhar coalhado e frio.

Como Valdês arroja à tela a ideia,

Dando-lhe a cor dantesca da epopeia,

Sobe-lhe o canto em levantado arroubo!

E então nos mostra em luta a musa austera

O monge-lobo uivando e o rei-pantera:

Um as garras no céu, outro no globo...

A grande sombra

Castro Alves

Speak; I am bound to hear

Shakespeare

Bota — sobre as espumas flutuantes

Do oceano do tempo — acalentado;

E foge assim pela maré levado,

Ao hino das estrelas cintilantes.

Eco apenas dos cânticos gigantes,

Que em chamas ideais tinha moldado;

Das mãos caiu-lhe a lira de oiro, em antes

De ter os mundos, que sonhou, formado.

Que epopeias lhe andaram pela fronte,

Como vulcões a arder num vasto monte!...

Ergueu-se na atitude de um colosso.

No oceano do tempo hoje enfim dorme;

E a sombra, que deixou, a sombra enorme

Viu-se que era a de um sol, morrendo o moço.

Árvore simbólica

José de Alencar

— Que fazes tu, em meio do caminho,

Loureiros ideais amontoando?

Olha... com astros já formei teu ninho:

Vem dormir... inda há dia, e estás suando.

Falou-lhe a morte assim com tal carinho,

Que ele dormiu, a obra abandonando:

E quando o mundo o procurou, foi quando

Viu que um sol cabe num caixão de pinho.

Devia ser-lhe marco à cabeceira

Uma águia, abrindo as asas remontada...

Não tem... plantemos tropical palmeira.

O tronco esbelto, a coma derramada

Dará ideia duma vida inteira

Sempre a subir... sempre a subir coroada...