Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A angústia do infinito, de Luiz Delfino


Texto-fonte:

Luiz Delfino dos Santos, Poesia Completa, org. de Lauro Junkes,

Florianópolis: Academia Catarinense de Letras, 2001, 2 v.

ÍNDICE

  

Quinze de Novembro de Oitenta e Nove (1889)

Tiradentes – O grande Mártir

Primeira parte

Tiradentes

Segunda parte

O grande Mártir

Hino ao Protomártir

O crime

A tirania e a guerra civil (1897)

Mona Lisa

A fornarina

O Ipê e a Liana

O pai José

A festa na escola

A angústia do infinito (1899)

Quinze de Novembro de Oitenta e Nove

À América

O Brasil Novo

Livre enfim dos seus últimos ferros,

Das cadeias mais vis desatado,

Calmo, forte, invencível, ao lado

Dos irmãos desta América o vês:

Livre, em pé, ante o mar menos livre,

Não lhe enturva a vergonha o semblante

De ter ele — tão grande e possante —

Um senhor, que o avassala, em seus reis.

Levantado em seus monte e serras,

Do áureo plinto de folha e granito,

A águia branca, que roça o infinito,

Vê subir, e ele inveja não tem:

Rubra aurora, que o cinge, e o encontrava

Hirta a fronte, empanada de pejo,

Sente que hoje, imprimindo-lhe um beijo,

Beijo a fronte de um livre também.

Já não mancha esta América vasta

O Brasil, vasto, enorme colosso,

Aço rude de escravo ao pescoço,

No olhar largo de um deus a pesar:

O farrapo de treva deixado

Pelo tempo já ido, em seu dorso,

Num momento, num último esforço,

Sacudiu em mil voltas no ar.

Renascemos pra América livre:

Viva a América livre e sem peias:

Fundam todos as velhas cadeias,

Peso ignóbil na nossa cerviz:

Tudo à forja; renove-se tudo,

Da cidade ao recesso da mata,

Desde as cristas dos Andes ao Prata:

Arda em luz toda nova o País.

Liberdade, ó gentil foragida,

Deusa austera entre as deusas austeras,

Tu chegaste e contigo outras eras,

Outros sóis, outros céus mais azuis:

Há no ambiente uns aromas mais novos,

Bater de asas à borda dos ninhos...

Listrões de oiro bordando os caminhos:

Luz, mais luz... muita luz... muita luz...

Há rosais pelas bocas sangrentas

De suas rosas cantando perfumes...

Dança louca de estrelas e numes,

Dança louca de ondinas e sóis...

Canta, envolto nas algas e espumas,

O ombro nu, verde, um pouco de fora,

Mesmo o oceano, que ri e que chora,

Chora e ri, junto à praia, entre nós.

Astros de oiro, estrelados abismos,

Reis e deuses, é livre quem pensa,

E não tem outra fé, outra crença,

Outro amor e esperança não tem,

Que não seja esta luta perene,

Contra vós fatalmente levada:

Deus, és tu, Liberdade, e mais nada:

Céu, és tu, ó conquista do Bem.

Viva a América livre entre os povos,

Livre e só entre os  mais continentes:

Honra e glória ao imortal Tiradentes;

O patíbulo hoje é o seu pedestal:

Honra e glória aos soldados da pátria;

Honra e glória a este povo sublime,

Que dos reis, que dos vis se redime,

Calmo ainda na ebriez triunfal.

Ó Romano, a virtude é só nome?

Tu negando-a, afirmaste a virtude:

Dás na ação e na doce atitude,

Brasil livre, e senhor dos teus reis,

Um exemplo inda novo, e não visto:

Esta terra, esta gente, esta raça

Arroubada a este sopro, que passa,

Ser o espanto do Tempo vereis.

Esta grande conquista foi nossa...

Nossa enfim: nenhum rei no-la tira:

Nem o poeta a renega na lira,

Nem a história há de, infame, a negar:

Fomos nós, que esta pátria avivamos:

Fomos nós, que a fizemos de novo:

Glória! Glória à conquista do povo,

Que rompeu a prisão secular.

Maldição sobre as frontes vergadas,

Sobre as mãos estendidas, buscando

Vida, sangue em cadáveres, quando

Tudo é grande — olha em torno e verás:

Tudo é grande, e cascalham risadas,

Que andam rindo já dentro da história,

Recolhendo este dia de glória,

Obra nossa, e de avós, e de pais...

Rei? Não mais: não queremos; não vinga

Entre nós essa raça maldita,

Que só crê, pensa, e sonha, e medita

Ter no povo, que a sofre, uma grei;

Planta exótica e má de outras zonas,

De outro céus; de outro sóis, de outra esfera...

Quem de um rei senão ferros espera?

Bastou já: não queremos mais rei.

Que é um rei? — É um ídolo apenas

Que a ambição e a ignorância levanta,

A que o bravo não dobra uma planta,

Baixo culto dos tímidos só:

Vulto erguido no meio dos povos,

Como a sirte nos mares deitada,

Onde a vaga, que a toca, esmagada,

Não é mais vaga, é uma nuvem de pó.

Sabeis vós, pobres povos incautos?

Antes que um grande povo apareça,

E o homem possa erguer alto a cabeça,

Possa ver do alto auroras e sóis,

Quanto ferro batido no ferro,

Quanto sangue inocente esgotou-se;

Como flores caídas à fouce,

Quantas frontes caíram de heróis!

Não queremos mais rei; o mais sábio,

O mais justo, o mais forte, o mais casto:

Salomão com juízo tão vasto,

Com leis novas um novo Moisés:

Mesmo Deus, que outra vez se lembrasse

De ser rei, e entre estrelas surgisse,

Belo, grande, amor todo e meiguice,

Não golpeadas as mãos, nem os pés.

Não — Ninguém tente a empresa arriscada

De irritar o leão generoso;

Ninguém tome o seu calmo repouso,

Como falta de audácia: olhai bem:

Pôr-lhe um rei hoje ao alcance das garras!...

Dize ao raio, buscando-te: — espera:

Passa ileso através da cratera:

Mas não tente esse crime ninguém!

Norte e sul num amplexo eviterno,

Num delírio de crença e igualdade,

Jurem todos por ti, Liberdade,

Jurem todos viver ou morrer:

E se um dia, no campo da luta

Alguém ouse atacá-lo, cobarde!

Saiba o culto que na alma nos arde,

Sinta como é cumprido um dever.

Brasileiros, guardemos unidos

O torrão desta pátria querida:

Demos tudo que é seu, alma e vida;

Tudo à pátria é preciso entregar:

Tudo é dela: a ela tudo devemos:

Esta pátria hoje é nossa de todo;

Arrancou-se este escrínio de lodo,

Arrancou-se esta pérola ao mar.

Velhos reis medievais, velhas raças,

Entre anseio, entre susto, entre pasmo,

O Brasil, com seu calmo entusiasmo,

Grande assim, não podíeis supor:

Vistes, forte, explosir de improviso,

Quem vós críeis tão baixo e tão nulo!...

Assim rompe de negro casulo

Flor aérea de esplêndida cor.

Assim rompe uma estrela a Colombo,

Outros sóis se constelam no espaço,

E dentre algas, corais, e sargaço,

Outro mundo aparece a Cabral;

Assim surge essa nova bandeira

De repente por terras e mares...

Dize aos povos, por onde passares,

Que és de um povo já livre o fanal.

Levas tu uma nesga vermelha,

Que recorde o ser livre o que custa?

Muito sangue, que a raça robusta

Deu à terra, e que à terra há de dar:

Preito ao sangue de heróis deslembrados,

Nos calvários das forcas trepando:

É assim, pavilhão venerando,

Que ir tu deves por terra e por mar.

És a paz, ó bandeira da pátria?

És a paz: — mas a paz aconselha

Que o clarão dessa aurora vermelha

Deve em todos os céus resplender:

Mostras nele a lembrança do sangue,

Que, se agora não foi derramado,

Rios dele há no tempo custado,

E inda há sangue, inda há sangue a perder!...

Que cadeias nos cercam, que fios

Invisíveis, como hera selvagem,

Que entre fendas buscando passagem

Muros prende, que em torno abrangeu:

Que heras doidas envolvem nossa alma!

Somos livres, mas fomos escravos;

E inda temos as pontas dos cravos

Que pregaram em cruz Prometeu.

E inda resta essa velha atitude

Da alma humana esmagada e vencida:

Triste, sim! Liberdade querida,

Largo tempo esse gesto hás de ver:

Bate a malho Canova o carrara,

Becerril bate a prata a martelo;

Cada golpe é o vagido do belo;

Na alma humana é preciso bater.

E a alma humana desperta, e festeja

Seu primeiro triunfo: ela sente

Ser levada por nova torrente,

Haustos sorve de vida auroral:

Tem a terra ante si dilatada,

Tem o céu brasileiro o mais puro...

Como é grande o seu grande futuro,

Liberdade, ao teu grande ideal!...

Furacões de jasmins e açucenas,

Céus, que arranco dos céus nos pedaços,

Sóis inquietos, que prendo em meus braços,

Ígneas rosas, cecéns da manhã,

Veigas de oiro em retalhos trazendo

Rios de oiro em dois dedos de mata...

O meu hino isto tudo desata

A teus pés, pátria minha louçã.

Sim! é livre o Brasil!... E ainda ontem,

Libertado do escravo, se ouvia

Louco brado de louca alegria

Soar no mundo: — essa nódoa era vil,

Larga, extensa, profunda, horrorosa!...

A dos reis, mais hedionda, restava!

Bravo à terra não deles escrava!...

Bravo! Bravo!... Está livre o Brasil.

 

Tiradentes - O Grande Mártir

 

Primeira parte

Príncipes mortales, republica, aeternam esse.

          

Tácito  —  Annalium.

 

21 de abril de 1890

Tiradentes

Tiradentes, figura auroral, grande, eterna

Iluminando toda a Ilíada moderna,

Pousada ao limiar do século ficou:

Bem como águia, que cimo e cimo sobe o monte,

E das asas, que espalha, enche todo o horizonte,

Do patíbulo toda a história iluminou.

Cada degrau foi um cimo, que ele transpondo,

O atirou pelo céu amplíssimo e redondo:

Levantaram-no tanto, a pô-lo junto aos sóis,

O cadafalso foi-lhe a pirâmide imensa,

Que quanto mais se observa, e quanto mais se pensa,

Só lhe podiam dar os velhos faraós...

Os reis só podem ter a ideia onipotente

De Balbecs erguer pelo deserto ardente,

De impérios circular de muros perenais,

De palácios meter dentro de uma montanha,

Ou de arrancar-lhe a rocha à palpitante entranha,

E esburacar o céu à cruz das catedrais:

Porque eles sabem como um povo se encadeia,

E podem realizar qualquer monstruosa ideia,

Debaixo dos seus pés um mundo inteiro pôr,

Servindo, sem desdéns, o seu faustoso orgulho,

Os astros fazem pelo espaço mais barulho

Do que faz todo um povo escravo e sem pudor.

Arrastar todo um povo ao mesmo iníquo trilho,

Prender ao mesmo jugo o pai ao pé do filho,

E a alma espremer de um reino em cima dos Kremlins,

Um rei podia ter desses projetos grandes:

Transformar numa estátua enormíssima os Andes,

Soltar Babéis no ar, rir dos sóis nos festins.

Na louca embriaguez do seu poder insano

As ondas castigar, vergastear o oceano,

Dar leis ao furacão, castrar o temporal;

Atear incêndio em Roma, e dele ao reverbero

Cantar à lira ebúrnea uma estrofe de Homero,

Vendo o povo fundir, como ao fogo o metal...

Foi, pois, um rei também que ergueu o monumento,

Que pôs de pé e dele em cima um só momento

O Encélado revolto, em castigo exemplar:

Levantou essa enorme obra de ódio e vingança,

Que pelo tempo adiante estendeu, e que avança

Como uma cordilheira armada num altar.

Nisso o triângulo vil tornou-se, ó patriota,

Ó raça de Titão, que esconde oculta grota,

E aparece de chofre indômito e de pé,

E tudo muda em torno inopinadamente,

E que entre si o vendo, o povo de repente

Pergunta, quer saber: — donde veio? quem é?

Tu vieste da dor indômita da vida:

Foi tua mãe primeira a lágrima dorida,

Que te queimou a tez ao triste som de um ai:

Um dia os laços vis da escravidão rompendo,

Sublime, como um deus, colérico, tremendo!...

Teu pulso livre foi o teu primeiro pai...

Tu vieste da dor humana revoltada...

Vens da sombra da história, ó alma sublimada:

Vens do fundo do tempo e do primeiro horror:

Vens de tudo que faz sofrer, esmaga e oprime:

Vomitou-te a justiça irada contra o crime.

Contra todo poder, contra todo senhor...

Contra Deus, contra o céu, contra o que te rodeia!

É tua alma a revolta; a tua alma está cheia

De reserva e furor; e um ódio te ficou

Desta longa miséria à vida humana atada:

Mesmo atrás de uma flor esconde-se a emboscada:

Natureza, quem és? Ai! eu mesmo quem sou?

Tu vieste de um triste acorrentado ao mundo,

Que caiu sob o céu inclemente e profundo,

Que sentiu a opressão primeira, e que gemeu:

Foi contra o céu portanto a primeira investida:

Foi contra a própria dor, foi contra a própria vida,

Titão grande e infeliz, raça de Prometeu.

Alas: abre-te, história; alas: dai-lhe passagem:

Fê-lo herói, fê-lo grande a indômita coragem:

Fez-lhe mais alto a forca a fronte levantar;

E a fronte levantou para encontrar um cimo:

— Sou um Cristo, pensou, — morro, porém redimo:

Meu sangue há de também um povo resgatar. —

Também a inundação da nova ideia veio

Pôr um fogo divino e grande em vosso seio,

Cabe o que é grande em nosso inda maior país:

Seu coração agita um nobre entusiasmo:

Em pouco tempo o mundo há de ouvir dele pasmo

Que livre soube ser, e sabe ser feliz.

Subindo a forca, não amaldiçoava a gente,

Que boa pode ser, sem poder ser clemente;

Ninguém ataca em vão as velhas tradições:

Há códigos que só pode rasgar um povo;

Tudo é crime e castigo onde houver fato novo:

E é a glória afrontá-lo à voz das maldições.

Lei igual e fé livre eis o progresso todo:

Mas era um criminoso, era um perverso, um doudo;

Meter numa revolta assim toda a nação:

A Liberdade só continha em si tudo isto;

Tiradentes na forca, era à cruz Jesus Cristo:

Era o novo porvir, era a revolução.

Eterniza os heróis e os modela a virtude.

Ele guardou na vida e na morte a atitude

Do arcanjo, que inda aos pés pisa o dragão do mal:

Têmpera firme, como o bronze estatuário,

Igual no tempo bom, igual no tempo vário,

Deu aos homens um tipo ingênuo e colossal:

O Brasil, essa terra em que nasceu, a terra

Que tudo quanto é rico, e bom, e grande encerra,

A terra que não tem noutras terras rival...

Deixá-la em breve? como a entranha o lanceava!...

Sim! morria por ver livre a formosa escrava...

E como é bom morrer por um grande ideal!

O não morrer seria amaldiçoar a sorte

Que faz sair um Deus vivo da própria morte;

É ventura encontrá-la  em seu caminho e ter

Ocasião de dar por uma ideia a vida:

A morte afirma a ideia, afirma e a consolida...

Por um grande ideal oh! como é bom morrer!...

Aprendamos com ele o ódio à tirania:

No sangue, que correu, quando o algoz o feria,

Pôs a história o buril vibrante de emoção,

E cinzelou, chorando, o lirial poema:

Juremos em punhais fundir a sua algema

Contra quem outra vez nos force à escravidão.

Em tela, em oiro, em ferro, em mármore, em granito

Mostrá-lo é, pois, dever, o olhar nos astros fito,

A cabeleira ao vento, adivinhada a voz:

Solta em aro de sóis, fulgindo-lhe ao pescoço,

A corda infame, e aos pés a forca, onde o colosso

Subiu herói e deus transformou-se entre nós.

Serás, ó Liberdade, a revolta perene:

Armada sempre em guerra, ereta, enfim solene,

Não podes descansar, nem poderás dormir:

O dormir é deixar em paz o pensamento,

Ficar o oceano sem a agitação do vento,

Sem nova ideia e sem alma nova o provir!...

 

Segunda parte

Non unus mentes agitat furor...

Juvenal - Satira

 

21 de abril de 1893

  

O grande Mártir

Não foi só a intuição clara da liberdade

O que foi grande nele; o que à posteridade

Em turbilhão de luz o arrebatou; — não foi:

O que aureola sua existência, o que imprime

Esse nimbo divino em seu busto sublime,

Aos vulgares heróis dar a história não sói.

Oh! não! não é de um deus qualquer sua estatura,

Tem um outro estalão, pois que tem outra altura:

Os Hesíodos dão-lhe, em céu novo, um lugar;

Só acendeu seu sangue uma ideia alta e vasta,

Mas o pouco que coube em seu destino basta

Para a glória de um povo e as glórias de um altar.

Bastara para dar uma eterna memória

A cem heróis e encher muitas nações de glórias;

Há Panteão que ainda heróis não recebeu;

Para a Ilíada dera um canto único a Homero,

Moisés a um Buonarroti em mármore severo,

Pois da forca — um Horeb — ele a lei nova deu.

Guardar pura a grandeza intemerata de alma,

Seu triunfo foi esse, essa foi sua palma.

Aspiração, trabalho, obra, fim, ideal:

A virtude, que faz dos homens deuses, talha

O soco, que os eleva, e estreleja a mortalha,

Que o tempo lança sobre uma ação imortal.

Quando, um dia, vencido o olhar passou em torno,

Não viu mais chefes: tudo era um silêncio morno,

E, na infame mudez, ninguém stava de pé:

Faltou-lhes fé, que a dor trai, prende, ilude, engana:

E ele a teve: ele criou na liberdade humana,

Guardou, como a Vestal no altar pagão, a fé.

Ele apenas soldado, apenas companheiro,

Ele, o último, a fé o fez grande e primeiro:

Nele o caráter foi força, heroísmo, ação:

E pensava, subindo a forca: — um povo exalto:

E essa augusta bandeira há de ondular mais alto

Do que a forca: — Ei-la! ondula... O herói teve razão.

    *

*      *

Caiu o pavilhão no lodo da devassa:

Venceram-no: assim vence o sol nuvem que passa.

A nuvem passa, e fica a grande flor de luz:

Não há nuvem por mais sanguinolenta e grossa,

Que ofuscar o clarão da liberdade possa:

Com Judas ela está; ela está com Jesus.

Ela é toda a existência e a humanidade toda:

Nero a amou; Otão deu-lhe uma alma ebriosa e douda:

Como o deles, ó deusa, é nosso amor igual:

A diferença é que Nero e Otão na mente insana,

Pensavam nela ter uma mulher romana,

Ela!... da consciência a alma universal!...

Como um bom pensamento é alegre e aligeira:

Um óleo santo e puro em seus cabelos cheira;

Abrem-lhe asas no céu, como um cisne no mar:

Quando alguém pensa ter-te, ó alma, ó mãe, voaste:

O que ele agora aperta é uma inútil haste:

A bandeira, que és tu, canta e assobia ao ar.

    *

*     *

Monstruosa loucura, oh! cegueira! oh! demência!

Cada ser, pobre algoz, não tem uma existência,

Como a tua, de amor e cóleras capaz?

Anda o olhar da revolta em cada cousa, em tudo!

Roubas a alma de um povo, e o povo há de ser mudo!...

Lanças o vento ao oceano, e o oceano há de ter paz?!...

Não ouves tu, não vês, que assim que o mar acorde,

Ira-se, e ulula, e ronca, e espuma, e salta, e morde,

E ao seio amplo de fera aspa o teu corpo nu?

E que o povo também, pegão que redemoínha,

Quando quer fazer seu o que por seu já tinha,

Ruge feroz e então mais feroz do que tu?

    *

*     *

Este povo inocente, esta criança obscura,

Que ódio a tudo que sobe a um acre horror mistura,

Um eterno Caim ante um eterno Abel,

Tem a noite em sua alma, a dor em sua entranha,

Sabe que toda sombra é de toda montanha,

E diz que busca o templo e só acha o bordel.

Tem a revolta, como o mar o movimento,

Basta a uma a centelha, ao outro basta o vento;

Havendo em ambos ódio, há em ambos furor:

Basta, para embalar o mar, a tênue brisa;

Mas o povo é da luz da instrução que precisa:

Tem na ciência a paz, tem na abundância o amor.

Pobre, a tua miséria é do rico a miséria:

Para todos a vida é questão triste e séria;

Tudo acaba e desfaz-se, o raio, como a flor;

O palácio de Creso, a mesa de Luculo;

Glória, ambição, poder, domínio... é tudo nulo

Ante a sede, ante a fome, ante a cloaca, ante a dor.

Sim! dor, fraqueza, engano, ilusão, erro, luto...

É por isso que sofro? É por isso que luto?

Pobre verme, que inchou a crença alvar que é deus!

Pesando o céu e leis à eternidade impondo,

Querem atar ao dedo este universo hediondo,

Sobem, vermes, ao céu, ao chão vêm, Prometeus!...

A indigência, a cegueira... o eterno Édipo cego,

O naufrágio na terra, o naufrágio no pego,

E um desdém, com que a entranha enche de ar a ambição...

Mas... é isso que faz a raça humana grande;

Tem asas a loucura, asas vastas, que expande

À busca de ideais, que talvez busca em vão!...

    *

*     *

Diz consigo o tirano: — Eu abro o calabouço:

Eu a voz da verdade e a voz do amor não ouço;

Prendo à fronte a calúnia, onde um nimbo há de abrir:

Eu arvoro a mentira em bandeira de guerra,

Faço o sangue correr, embebo dele a terra;

Mesmo em leivas de sangue há rosais a florir.

Que espero da hecatombe, e da viuvez que espero?

Há de tudo esbarrar em meu silêncio austero:

Amo aquilo por que vós tendes tanto horror:

Chamo inércia ao que vós chamais assassinato:

À força de ser forte, o meu poder resgato:

Obra de arte, eis-me aqui: o povo é meu autor.

É o povo que inventa a idolatria, e chama

Ao fetiche seu Deus; e o vitoria, e o aclama,

E o serve, escravo e vil, sem nenhuma altivez:

Falais de mim? Falai só do gênero humano,

Que se escraviza a um sonho e arranca-lhe um tirano,

Quando inda a cobardia um tirano não fez? —

    *

*      *

O tigre de Ceilão, negro, ousado levanta

A cabeça orgulhosa em torno: o vento canta:

Do mar lhe vem tinindo um cheiro quente, o olor

De homens, que, trauteando uma usual barcarola,

Fazem dançar a fusta à flor da água, que a rola,

Num balanço de almeia, à praia aberta em flor:

O tigre espera a malta adrede armada, insciente,

E eriçado: — ele tem a força, a garra, o dente,

Prudência, agilidade, audácia, e assim não sai

Da atitude, em que o tem o instinto, e a argúcia rara:

Contra o ataque, que chega, ele o salto prepara...

Mas o fogo rompeu... ele rui, ele cai.

Não rugiu, não lutou: ele esperava a luta;

Venceu, quando deixou por vez primeira a gruta:

Onças, águias, leões, panteras combateu:

A luta corpo a corpo, a luta dente a dente,

A luta leal do forte, essa esperou somente!...

Não lutou, e caiu: — não lutou, e morreu!...

Devia assim tombar o nosso herói!... Um dia

Sem luta e sem combate era vencido: e via

Um clarão levantar-se ao longe no porvir,

E vir-lhe até a fronte, e, auréola divina,

Rodeá-la, cingi-la, enquanto ele se inclina

No patíbulo augusto, e é próxima a cair...

   *

           *     *

Foi contra a tirania, ó Mártir, teu martírio:

Do teu sangue emergiu a brancura de um lírio;

É em ti que na hora angustiosa, nós

Vimos pedir conselho, ensino, ânimo, exemplo;

A ti, que tens nossa alma em festa, como um templo,

Nós, que ouvimos da Pátria a queixa em tua voz.

Jamais soube enfeixar vesga mediocridade

A um grande pensamento uma grande vontade,

À força de um princípio a força da razão:

Falta-lhe tudo, agulha, e mar, e vento, e porto:

Povo, que um timoneiro assim conduz, stá morto,

E anda de um vagalhão em outro vagalhão.

Tirano, paz. — Por que não ouvir a harmonia

Da harpa interna, que canta em nós? Paz vos daria:

O canto de Davi dava paz a Saul:

É da justiça, e paz, e luz que nasceu a auréola:

Por que não procurais dar-nos paz — essa pérola —

Por que não meteis na alma a bondade — esse azul?...

    *

*      *

Não se iluda ninguém que encarcera uma ideia:

Não tem a consciência ou clausura ou cadeia:

Não para o raio à voz de qualquer aguazil:

Sangue, batalha, forca, exílio... o que quiseres...

Basta, para vencer-te, o grito das mulheres;

Basta, para esmagar-te a lágrima infantil.

Cansa ver, ruma e ruma, os corpos mortos: cansa

A voz rouca do ancião, e o choro da criança:

Para espalhar o mal, sem temê-lo, quem sois?

A asinha desta mosca, o ferrão deste inseto

Não vos deixa um instante, e andais irado, e inquieto...

E irritais todo um povo e adormeceis depois?

Dormir!... Dormir!... Que nome a tirania entrega

Ao mundo, à história, ao tempo! A humanidade o nega,

Confessa o crime, e o acusa; a inocência o maldiz!

Ah! se existe na terra o infeliz, que presumo,

Destino, enche-o de luz, razão, muda-lhe o rumo...

Que não há infeliz maior que este infeliz.

Não: de todo não perde o sentimento nobre

De ser grande: não há povo nenhum, que dobre,

Cobarde — infamemente a um seide a cerviz:

Jamais o pensamento humano prisioneiro

Procurando sair, disse ao seu carcereiro:

Olha: a porta aqui stá na lâmina de um cris.

E sai de qualquer modo inopinadamente,

Como o raio ao cair, como ao encher a torrente,

Terrível, ameaçador, implacável, fatal...

Sai. — Vem da lei que rege o espírito e a matéria:

É a boca da fome a cuspir a miséria,

É a ferida enfim, que vomita o punhal.

    *

*     *

Austera Liberdade, amor, paixão, respeito,

Ó companheira ilustre, eu dei-te à mesa, ao leito,

Nos turbilhões, a sós, sempre amante teu fui;

Jamais eu lamentei por ti uma loucura:

És a virgem madona, és a madona pura,

Que afla o meu coração, e em meu ser todo influi.

A este amor corresponde o ódio à tirania,

Ódio que cria heróis, ódio que deuses cria,

Ódio que na medalha é o anverso do amor:

E este ódio é deixa antiga à força bruta e cega:

Este ódio o tempo aumenta, engrossa, e ao tempo entrega:

É o ódio do oprimido ao ódio do opressor.

    *

*     *

Ó minha Pátria, ó terra, ó resplendente Hebe,

De joelhos meus ais e lágrimas recebe:

Não és a morta, que cobre um branco lençol:

O teu último dia, ó mãe, ó mãe, não veio;

Há um rasto de sangue a jorrar do teu seio:

Mancha o teu horizonte ensanguentado sol...

Mas o tempo virá, e a hora vitoriosa...

O mar, verde esmeralda, o sol, vermelha rosa,

Calçando esse os teus pés, o outro à fronte a luzir,

Hás de ser a matrona americana e bela,

Dando sob o teu céu, — estrelejada umbela —

Arras à Liberdade, amplo asilo ao porvir.

   *

*     *

Mártir de um grande ideal, tens no mundo o teu plinto.

Ante o conspecto teu eu não sei o que sinto

De augusto, e santo, e nobre, e de altivez, em mim!

Não!... Se tu foste, e eu sei que tu foste, acabou-se

O reinado do crime: um reinado mais doce

Nunca mais entre nós há de agora ter fim.

Seu puro e meigo olhar, quando à forca subia,

Era o perdão, que olhava, a bênção, que saía;

Misturava a carícia ao queixume esse olhar:

Oh! esse olhar piedoso e negro de tristeza

Do céu tinha a amplidão, do mar a profundeza,

E inda os lumes do céu, e inda os saibos do mar.

Nas horas de miséria, em que esgoto a vergonha

Do que vai nelas, dá que em ti meus olhos ponha,

Para ver o caminho, e nele o sol e a luz:

Vai adiante de mim, sombra heroica e sublime,

Se amar a Liberdade hoje ainda for crime,

E se o crime de amá-la ainda à infâmia conduz.

Hino

Ao Protomártir Tiradentes

Ele o Brasil entrevendo

Escravo, inerte, ao abandono,

Arroja um brado tremendo:

— Não tem senhor, não tem dono.

Tiradentes se levanta,

Livre o Brasil há de ser,

Liberdade! a causa é santa:

Viver por ela, ou morrer,

Esta pérola tão linda,

Esta pérola sem par

Brilhava na c’roa ainda

Dos senhores de além mar.

Tiradentes se levanta,

A sua entranha era de oiro,

Seu corpo verde e robusto:

Era o mais rico tesoiro

Ganho ao oceano sem custo.

Tiradentes se levanta,

A flor das terras escrava!

E a Liberdade sorria

Em cada sol, que raiava,

Nas visões de cada dia.

Tiradentes se levanta,

Como uma águia prisioneira

Ele estava a estranhos pés:

Da cadeia a voz primeira

Tentou tirá-la aos anéis.

Tiradentes se levanta,

Foi Ele o único embora,

Que o crime seu confessara,

Crime, em que entra uma aurora,

Que um lírio branco acabara.

Tiradentes se levanta,

Tinha em si da pátria a imagem,

Tinha em si da pátria o amor

Onde bebeu a coragem,

Donde lhe veio o valor.

Tiradentes se levanta,

Não recuou dos tormentos,

Não negou, não foi cobarde;

Foi sua bandeira aos ventos,

— Liberdade, inda que tarde.

Tiradentes se levanta,

Tiranias... quis vencê-las;

Ficou em luta Ele só:

Deitaram-no sobre estrelas,

Crendo arremessá-lo ao pó.

Tiradentes se levanta,

Para amortalhar a aurora

Não há na terra lençol:

Deu luz, e nos dá agora,

O que prometia — o sol.

Tiradentes se levanta,

Hoje o grande visionário

Corda ao colo, às mãos a palma,

Tem na história um santuário,

Tem um sacrário em nossa alma.

Tiradentes se levanta,

Livre o Brasil há de ser,

Liberdade: a causa é santa:

Viver por ela, ou morrer.

O crime

Cobarde, não se prende um povo livre,

Como se prendem multidões de escravos;

Nem se transforma exército de bravos

Em carcereiro vil de uma nação:

Cada soldado que te serve, infame,

Sabe que é cidadão e brasileiro,

E que seu sangue verterá primeiro

Contra quem deu ao povo a escravidão.

Nenhum deles é teu: é desta pátria,

Que ontem mesmo arrancamos das cadeias:

Nenhum deles é teu: traidor, não creias

Que o Brasil caia imbele à tua voz:

Em cada coração pula a revolta,

Gira um combate em cada pensamento:

E o vento, que entra em teu palácio, o vento

Leva um punhal de cada um de nós.

Confiamos-te um dia a Liberdade:

Nosso ideal, nossa fé, nosso direito

Entregou-se  à tua honra: há maior preito?

Pensamos ter honesto guarda em ti.

Tu juraste à República, em seu berço,

Que a cobrias com tua nobre espada:

Alma de lodo, que traição danada:

Hoje bradaste ao mundo enfim: — Menti!

Eras o infame déspota escondido

Dentro da roupa astral da Liberdade:

Ousaste nela pôr as mãos: não há de

Ceder vencida a ti, como um senhor:

Da América a alma ainda está com ela:

Tem ela em cada brasileiro um filho;

E antes dela perder a força, e o brilho,

Hás de tu aos seus pés cair, traidor!

Pensar no crime e não recuar... Na vida

Quem esse dia te escarrou aziago?

O teu olhar feroz, inquieto e vago

Nos diz que era melhor voltar atrás:

Mas é tarde: a impoluta espada agora

Até aos copos te rolou no lodo:

E sobre ela passasse o oceano todo,

Pura, inda assim, não a tornara mais.

César — anão, a pátria te renega:

Ninguém mais reconhece em ti seu guarda;

Quebra esse gládio, despe-te da farda

Que há de vestir qualquer soldado leal:

Tu mereces a roupa e a marca em fogo

Dos ladrões que se apanham pela estrada;

Tu não mereces mais cingir a espada,

Que foi o nosso orgulho e o teu fanal.

Nesse dia de opróbrio e de vergonha,

Repetiram-se as páginas da história:

Subiu mais uma vez à tona a escória

Dos que só reconhecem quem venceu.

Algema-se a nação? Isso que importa?

Trai-te a pátria? é só para engrandecê-la:

E sob o influxo de maligna estrela,

Da baixeza e traição fez-se o himeneu.

Seguiu-se a isso uma mudez sem trégua:

E esse silêncio que a cidade exala

Sobe ao teu lar, caminha, enche-te a sala,

Vai-te a alcova sem dó dizer: — traidor! —

Desse agitado sono, que não dormes,

Esse silêncio aumenta-lhe a amargura:

Esse silêncio é a única armadura

De que arma a Liberdade o nosso amor.

É a página em branco esse silêncio:

É o cenário ainda sem atores,

Onde o idílio traçado ontem com flores,

Vai trocar-se por drama de ódio e fel:

Esse drama vai ter teu nome infame:

E atrás de ti e a um lado, e de outro, e em frente,

Olha, a vingança aí vem atroz, fremente,

Montada em rapidíssimo corcel.

Que loucura arrastou-te a tal fraqueza?

Não se trai sem castigo um povo inerme:

Ele é o colosso e tu agora o verme:

Desceste tanto, quanto ele subiu.

Sitiou-te o Direito e a Liberdade,

Mesmo no meio aí dos teus soldados:

Nós não somos, canalha, os sitiados:

Nunca o crime durou, jamais venceu.

Quando o dia maior da nossa história

Viu-te montado em frente à nossa ideia,

Não era dele de que estava cheia

A tua alma ignorante, erma e banal:

Foste apenas um chefe inconsciente,

Seguindo uma bandeira desfraldada,

Que para ti não respondia a nada,

Desconhecido o esplêndido ideal.

Aventureiro entre os heróis lançado,

Mediram-te eles pela sua altura:

Deles o brilho eleva-te a estatura,

Deles a alma emprestou-te a luz: depois

Deram-te o nome, a honra, a glória, os loiros,

Os loiros seus triunfais: mas quem sabia,

Que eras só um truão? Naquele dia,

Que eras tu um herói, quem não supôs?

Vendeste a pátria? A pátria não se; vende:

Trair a Liberdade? Enfim que prova?

Ela sai sempre das prisões mais nova:

Trai-te, quem a trair: foi teu condão

Não poder esconder ao tempo, aos homens,

À virtude, ao heroísmo, à história, ao mundo

Tua alma: e despertaste o horror profundo

Que acorda sempre em todos a traição.

Mas, desgraçado, sabes que há na história

Jaulas eternas, onde ruge o crime?

Que é feroz Talião, e esmaga e oprime

Quem oprimiu? Ignoras tu talvez

Que há torturas, que para sempre infligem

Os Tácitos no seu austero estilo?

Compreendes tu aquele inferno, aquilo

Que Dante abriu, criou e eterno fez?

Não percorreste os círculos, aonde

Brama a traição desordenadamente?

Alma imbecil, tua alma enfim não sente

Num carro negro o anátema que vem?

Como acode à minha alma um dó profundo,

Quando te vejo na cloaca urrando...

Ó infeliz, ó triste, ó miserando,

Quem te pode salvar? Que horror!... Ninguém.

Amanhã luzirá sobre o horizonte

O sol sem nuvem de uma paz florida,

E a Liberdade, em fundo azul, vestida

Como uma noiva esplêndida e feliz.

Amanhã as canções do espaço infindo

Hão de encher de alegria e luz os prados:

E os janizaros vis, os teus soldados

Hão de ser amanhã o teu juiz.

Hão de encher de baldões o teu jazigo,

E do teu nome guardará memória,

Num canto escuro, lamentando a história,

Como de um vil, que o orgulho cega: e após

Te lançaremos podre  ao esterquilínio,

Ideal sinistro do traidor cobarde:

Esta nação te conheceu bem tarde:

Mas inda é tempo: — arreda-te de nós.

Separar, dividir um grande povo,

Como um faisão, que à mesa se retalha:

Fazer um largo campo de batalha

Do campo, onde sorria a messe e a paz...

Na água tranquila e azul dos nossos mares

Sangue mesclar numa caudal corrente;

Lançar no lar a guerra de repente...

Que crime... E foi teu crime esse ato audaz.

Cobriu de pejo o rosto a Liberdade:

A traição enfiou-se de vergonha,

Porque ela mesmo, ela, a traição medonha,

Sentiu-se menos forte e infame e vil.

Deste a beber, em taça de oiro à Pátria,

Em vez de néctar, um letal veneno;

E a espada, que se creu às mãos de Breno,

Caiu nas mãos de um malabar senil.

Houve quem o aplaudisse então: não houve

Quem aplaudisse outrora Heliogabalo,

E a orgia infrene? Houve quem foi coroá-lo...

Em todo o tempo houve a ambição vulgar:

Esses estão aqui, ali, fervilham;

Vós, se inda tendes ou pudor ou medo,

Forrai a cara; é tempo, inda há lagedo

Com que podeis cobri-la à luz — e andar.

Oh! que vergonha de ser homem, quando

O torvelim das almas de repente

Melancolicamente, estranhamente

Verga ao vento que passa, e verga e cai;

Quando um soldado, doudo da vertigem

De um poder que jamais sonhara, pensa

Ter nas mãos enfeixada a rédea imensa,

Que embrida um povo e o embrida sem um ai...

Oh! que dor de ser homem! Ver um homem,

Que rouba, ilude, mente, trai, falseia

A nossa imagem mesmo, e a nossa ideia;

Que passa austero e finge, como um clown,

Que arranca a gargalhada, o triunfo, o aplauso

À turba a rir, que, em torno à arena, assiste!...

Lúgubre é isto, como o espasmo triste

Que abre a boca das covas pelo chão...

Das entranhas dos séculos arranca

Todas as queixas, todos os gemidos:

A voz eterna, o grito dos vencidos,

Da raça humana escrava a dor fatal!

Tudo quanto há custado a Liberdade!

E enquanto a casa e o campo em lutas arde

Que achemos para ti perdão, cobarde?

Deixar no ninho a cobra, é natural?

Oh! não podemos perdoar-lhe... Ele era

Quem tinha às mãos a Liberdade nossa:

Ele a prendeu, traidor: há pois quem possa

Lavá-lo desse crime enorme? — Não.

Os brancos lírios virginais do vale,

As estrelas, que ao céu a noite lança,

A alma sem ódio e pura da criança,

A luz, as flores negam-lhe perdão.

Rios, que passam refletindo montes,

Os penhascos nos mares debruçados,

Ouvindo os hartos, soluçosos brados

Das ondas sobre fulva areia em mó,

Sentem por ti o escárnio dos que sabem

Que têm por si a eternidade e o espaço:

E que em breve hão de ver-te em longo abraço

Na enxurrada,  que às praias lança o pó.

Pagou-te o povo o que lhe parecia

Ter-te devido no momento augusto,

Quando inda cheias de palor do susto,

Ouvindo farfalhar o vendaval

Da revolução, as mães buscam seus filhos,

Tu, com teu gládio esplêndido o continhas;

E cavavas com ele as grandes linhas

Entre a idade moderna e a medieval.

Enalteceu-te. — E tu mentiste ao povo,

Que te pôs à nação de sentinela:

Tu não quiseste crer nas forças dela,

Julgaste-a sem virtude e sem pudor.

Parou surpresa. — Espera, ela há de erguer-se,

Para vingar-se e dar-te horas amargas:

Para esmagar-te, abrindo as asas largas,

Vai-te do alto cair, como um condor.

Quando amanhã, retido como fera,

Dentro dos seus reparos derradeiros,

Fores tu, por teus próprios companheiros,

Posto em sítio, como hoje eles estão;

Muito acima da própria vida a pátria,

Guardado intato o seu caráter rijo,

Arrancarem-te fora do esconderijo...

Que pensarás dessa áspera lição?

Que te estará dizendo inda o remorso

De bico adunco e garra lacerante,

Inda há pouco colérico e gigante,

Agora... agora já humilde e réu?

É que uma pátria não se ataca embalde,

E de repente à noite o céu olhando,

Nem saberás se os astros stão chorando,

Se neles ri-te o escárnio em todo o céu.

Não ouves já o cliquete das armas,

E o rumor surdo, ultriz, que se avizinha?

Como a poeira de vozes, que remoinha

E lança o povo em iras de pegão?

É ele! vem: sim, há de vir! não tarda:

Um povo não se vinga de outra sorte,

Ou star por ele condenado à morte,

Ou ele morre; vivo e escravo, não.

Quando, do azul voltando, o fogo trouxe,

Que devera animar-lhe a argila fria;

Quando o divino Prometeu um dia

Disse à estátua: — caminha: e ela o entendeu:

Foi, como escrínio que se entorna; e enchia

O ar do oiro da voz e o oiro da trança:

Viu-a um deus da floresta, e ao vê-la, a alcança,

E ei-lo a imitar no roubo a Prometeu.

Toma-lhe a chama que a animava: e logo

Pôs-se a correr, gritando, o bosque todo:

Queimou-o um beijo; um beijo pô-lo doudo,

E o eterno ardor consigo eterno traz:

O povo, que osculou a Liberdade,

Sentindo dela o ardor, jamais a deixa:

E o eterno fogo em que anda e a eterna queixa

É de quem, arda embora, inda quer mais.

Se tu tiveras, como o povo sente,

Sentido a chama dessa luz divina,

Perante a qual o próprio céu se inclina

E o homem põe freio ao mar, doma os tufões,

Não a terias nunca atraiçoado:

Oh! não pensares tu, oh! não supores,

Que inda para os maiores salteadores

São já grandes demais hoje as nações...

Mas tu só foste escuro e ignaro chefe,

Que outros chefes guiavam no caminho:

Essa Ilíada imensa tu sozinho

Não souberes pensar e construir:

Faltou-te o gênio, que vê longe e cria:

Só compreendeste a maquinal vitória:

Num corcel negro chegarás à história,

E há de, como um jogral, ter-te o porvir.

Traidor! há de chamar-te a Liberdade:

Há de todo o país traidor chamar-te:

Morre, traidor, envilecido parte,

Deixando a história trêmula de horror:

Como a vaga de praia em praia, rola

De idade em idade, réprobo e maldito;

Morre, infame; e ao morrer o último grito

Ouve, convulso, hirto, a tremer: Traidor!...

A tirania e a guerra civil

Eis a guerra! a flor rubra e sangrenta

Pelos campos do sul e do norte!

Quem plantou as sementes da morte,

Quem plantou as sementes do mal,

Palmas bata: os grãos todos vingaram:

Deu bem tudo a fatal sementeira:

Eis a guerra! — E quer queira ou não queira,

Flor da guerra, o teu fruto é fatal.

Eis a guerra, eis o sangue, eis a luta!

Eis o fumo, eis o pó da batalha!

Leões de bronze, que lançam metralha,

Rugem, como indomados leões...

A loucura da guerra começa:

Soa o hino de sangue a rebate;

E o clarim, que conduz ao combate,

Acha uma alma nos próprios canhões.

Campo e campo alça a mesma bandeira,

Erguem todos o mesmo estandarte;

Do comando no grito, que parte,

Parte o grito do mesmo ideal;

A pátria é a mesma, é o mesmo o amor dela:

Não é luta com um povo inimigo;

Cada qual leva a luta consigo,

A paixão pela terra natal.

Resolveu o problema nefando

De esconder a traição, que medita,

E no meio da luta maldita

Ri contente de si o traidor:

Fazer mal, como a planta daninha,

Como quem faz o bem por instinto,

Foi um sonho! e esse sonho era tinto

Só de nódoas de sangue e de horror.

Semeou a discórdia no povo,

Baixo, vil, desleal e cobarde,

Pois devera, mais cedo ou mais tarde,

Arder tudo na guerra civil.

Oh! da jaula espreitava o momento

Famulenta e colérica fera,

Que em seu antro aos seus cálculos dera,

Para em breve empolgar o Brasil.

Vento e vento, ódio e ódio lançava

Ao quadrante: encheu todo o horizonte:

Nem pradeira, nem vale, nem monte,

Nem cidade, nem vila poupou;

Quando enfim desses ventos lançados,

Ele ouviu o fragor da tormenta,

E criada essa messe opulenta,

Que ele, Judas, três vezes negou...

Riu consigo: isso mesmo esperava:

E na obra por ele criada,

Ergueu alto a traidora da espada,

Deu três voltas, mas não a vibrou!...

Ver irmãos contra irmãos combatendo

Peito a peito, em delírio medonho...

Se isto mesmo era o sonho... o seu sonho;

Se esse sonho de sangue o embalou! —

Quer mostrar, que era o cálice de oiro,

Que é a esperança, e que a fé simboliza,

Fazer da âncora uma eterna divisa,

Como um símbolo eterno de paz:

E agarrada a nação pelo colo,

Sobre as ondas de sangue ancorada,

Mostrará às nações sua espada,

Que era só de salvar-nos capaz.

A ambição demagógica e infame

Canta à sombra da força e da intriga;

Como excessos os povos fatiga,

E aos abismos da guerra os atrai

No voraz torvelim dos combates,

Onde o irmão mata o irmão, e na bruta

Raiva infrene e selvagem da luta,

Ergue o filho o punhal contra o pai...

Exaurida a nação, desonrada,

Toda em sangue, em farrapos, em ódios,

Foragidos os homens, sacode-os

O tirano, hirto e audaz vingador.

É a lei sua espada, a sua força

A fraqueza de um povo vencido:

Pobre povo!... esmagado, traído,

Que só tarde ai! conhece o traidor!...

Com a calma do tigre esfaimado,

Do chacal com a vil cobardia,

Farejando a presença do dia,

— Lençol branco de morto — a cobrir

Esta pátria na terra estendida,

No olhar vago, hirto, lúgubre, torvo,

De cada ódio crocita-lhe um corvo,

Que ouço haurindo inda um sangue por vir.

Como em Roma esse povo parece

Soberano, e rei ser justifica

Quando à força, o seu trono abdica,

E é só livre, p’ra livre não ser:

Seja embora qual seja o regímen,

Sob o qual o rei-povo caminha,

É a espada que sai da bainha,

Que em si tem toda a força e poder.

Brasileiros, se acaso inda resta

Em vossa alma uma tênue centelha

Dessa chama doirada e vermelha,

Que ardeu na alma de nossos avós,

Que é a eterna paixão, que nos prende

À defesa da terra sagrada,

Onde vive e onde jaz sepultada

Tudo quanto ela guarda de nós:

Se inda tendes uma áscua na cinza

Morta e fria de vossa coragem;

Se da pátria entre ferros a imagem

De vós pode arrancar um só ai!

De ser livre, se ao menos desperta

Em um de vós qualquer vaga lembrança,

Brasileiros, à luta, à vingança,

Ao combate! — Essa pátria salvai...

Mas poupai esse chefe corrupto:

Castigá-lo é deixá-lo com vida,

Porque a morte tão só consolida,

Para um outro tirano, o poder.

Com o ferro amolado no ferro,

César morto, inda o povo romano

Acha logo um Otávio, um tirano,

Cobardia e alma em si p’ra o sofrer.

Não troqueis por desonra a desonra:

Não: um crime não vinga outro crime:

A vingança, que um povo redime,

É ter vivo entre si o traidor:

Como o tigre e o jaguar das florestas,

Que só vive da carne, que empolga,

Agarrado e domado resfolga

Mudo aos pés do viril domador.

Enforcai-o no vosso desprezo:

Nenhum ódio por ele vos tome:

Sem asilo, sem honra, sem nome,

Ante a grita dos crimes que fez;

Apupado, corrido, maldito,

Tiritando de horror e de medo,

Apontado por todos a dedo

Como infame... e esquecido de vez...

Passe assim pelas ruas, transite

Pela história expulsado da história,

Onde o biltre acha sempre a memória

Do seu nome na voz que o maldiz...

Sim! que o nome não chegue aos vindoiros:

Que não fique ao falsário este triste

E ruim gozo, o saber que persiste

Imortal mesmo um nome infeliz!...

Mas essa alma já morta desperta?

És capaz, raça vil e pacata,

De um só ato, que crimes resgata,

E faz nele heróis novos supor?

És capaz, povo inerte e vencido,

De acordar, quando ruge a vergasta

Sobre ti, e ao senhor dizer: — Basta —

E a vergasta erguer contra o senhor?

Não, ó povo: eu bem vejo que dorme;

Que o teu sono é profundo, de sorte

Que é mais fundo que o sono da morte,

E não passa do sono do vil.

Ó Tirano, ó Cobarde, triunfas

De quem dorme esse sono insensato...

Mas tu sonhas também, chefe ingrato:

Tua pátria é também o Brasil...

Tu te esqueces, traidor, que o oceano

Em correntes fatais se recorta,

Que mais de uma que vai como morta,

Vive, e surge ao tufão, que a mordeu:

Que é o oceano, que dorme tranquilo

Sob as vagas, o povo esmagado...

Mas se acaso desperta... cuidado!...

Nada poupa: uiva, passa, venceu...

Mas se morre... ele é um deus, ressuscita:

Varre o campo de todo o tirano;

Vaga e garra do irado oceano,

Vaga e garra do indômito mar,

Rolará o teu corpo em seu seio,

E da praia lançado a outra praia,

Quando pensam que em pó ela caia,

Há de em praia mais negra rolar...

Sim! a história tem mares ocultos

De águas mais lutulentas, pesadas,

Onde boiam as almas danadas,

Onde remam seus sujos galés,

Como tu implacáveis, sedentos

De vinganças de sangue e de guerra,

Que mancharam de crimes a terra,

Maus, traidores, falsários, cruéis...

Pensas tu, que enganando, indeciso,

Escondendo a verdade de todos,

Ter contigo ou só vis, ou só doudos,

Que tu moldas com um gesto de mão?

Pensas tu, que és astuto bastante,

Que concentras em ti tanta força,

Que o leão mudar possas em corça,

E em ser corça consinta o leão?

De Juan Rosas, Oribe, Rivera

Lê a história... essa tétrica história:

Foi-lhes negra bandeira de glória

Implantar no país o pavor:

Sobre um lago de sangue coalhado

Levantaram seu trono de um dia:

E o terror nada eterno procria:

O terror só fecunda o terror!

Ó cobardes, ó filhos de escravos,

Brasileiros, dos Andes ao Prata,

Raça vil, raça híbrida, ingrata,

Ajoelhai-vos: eis vosso senhor!

Não stá nele o poder de esmagar-vos;

Stá em vós... stá na vossa fraqueza!

Ri de vós, povo vil, com certeza...

Povo vil... vil, sem alma, e pudor...

Mesmo havendo um Catão, e que surja

Dentre vós algum Bruto, e que morra,

Quando o sangue divino lhe corra

Por vós mesmos da pátria no chão...

Não sois dignos de heróis, que combatam

Por quem quer ser apenas escravo:

Não: não surja de vós um só bravo,

Nem um Tell, nem um Bruto ou Catão.

Sob a tóxica baba do Chefe,

Que definhe a nação brasileira:

Livre ser, nunca mais alguém queira...

É vergonha ser livre entre nós:

Joelho em terra, anda, infame canalha,

Beija o pó dos seus grossos sapatos,

Beija, beija, ó vil corja de ingratos,

Ninguém erga um só grito por vós.

Ninguém saiba que um dia um sol grande,

Um sol livre abriu luz neste solo...

Se luziu, foi somente no colo

Onde havia uma vil cicatriz;

Cada livre era apenas um livre

Servidor do primeiro tirano;

Com teu nome meu nome profano:

Não sou mais filho teu, meretriz.

Oh! tristeza, oh! desonra, oh! vergonha!

Não poder eu lançar-me na luta,

Porque tu, ó nação prostituta,

Não conheces mais honra e mais fé:

Entregaste o teu seio materno

Aos caprichos de impuro caudilho:

Não... não... não... eu não sou mais teu filho,

Minha mãe esta pátria não é...

Mas agora, que aos crimes a deixo,

Olhos vende-me o véu mais escuro,

Por não ver tanto horror no futuro,

Tanto sangue a crescer sobre si:

Ninguém mais pronuncie o meu nome...

Não: ninguém saiba, ou diga, ou suponha,

Que eu nasci nesta terra, oh! vergonha!

Terra amada, em que vivo e nasci!...

Mas enquanto mergulha nas trevas

Esta terra tão grande e tão nobre,

Enquanto ela de cinzas se cobre...

Por que tempo? Quem sabe? Eu não sei!

Como estrela escondida entre nuvens,

Para ti, minha pátria querida,

Coração, alma, brios e vida,

Em áureo escrínio impolutos guardei.

Tudo acaba! É possível, miséria!

Que não tenha essa terra tamanha

Qualquer cousa lá dentro da entranha

Que lhe lembre essa inércia em que jaz?

Te rebolcas em chão lutulento:

Esqueceu-te este céu radiante,

Só capaz de conter um gigante!

Infeliz! Quem tão pobre te faz?

Mas que é isto? ouço o toque a rebate!?

Este povo de novo desperta?

Este grito terrível de alerta,

Que atravessa de norte e de sul

Todo o espaço, é do povo... esse povo,

Que na cova dos leões se abrigava?

E é da raça viril, não da escrava...

Não da escrava, a que vive em paul?...

Este povo desperta, levando

O seu ódio ao tirano à garupa:

Catadupa indo após catadupa

Despenhado de enorme alcantil.

Guerra! Às armas! Abaixo o inimigo!

Armas! Armas! De pé, mocidade!

Vais ser livre hoje enfim, Liberdade!

Sou teu filho, ó Mãe-Pátria, ó Brasil!

Nele só anda toda a revolta:

Ele só é o inimigo, o tirano.

Guerra! Guerra!... Ó Brasil soberano,

Mostra ao filho, que trai, quem tu és:

Tu és o ódio, e opressor, o carrasco

Desta grande nação iludida...

Ou ela fica esmagada e vencida,

Ou vencido... ele escravo aos teus pés.

 

Mona Lisa

O retrato da bela Mona Lisa

De Leonardo da Vinci é o seu retrato:

Nada conheço mais perfeito e exato,

Nada melhor a pinta e a idealiza.

Teófilo Gautier, falando dela,

Diz que há muitas pinturas superiores,

Que Rafael de Urbino e outros pintores

Têm-nas de forma mais correta e bela:

Que ela já não é moça; que há fadiga

Entre as doces carícias do modelo,

Entre as formas gentis; que  basta vê-lo,

Para que logo, quem entender, o diga.

Mas aquela feição já meio gasta,

Que entre as asas de luz o tempo estraga,

Arrebata, seduz, enleva, embriaga

A alma menos ardente e entusiasta.

Triste, o vestuário negro inda a entristece;

É quase a roupa usual de uma viúva,

E pela noute do cabelo em chuva,

Da fronte pelo rosto um crepe desce.

Porém o olhar sagaz, aveludado,

Cheio de languidez e de promessas,

Como abismo de trevas muito espessas,

Da luz do sol por cima iluminado...

Atrai-nos esse olhar — lago incendido! —

É meigo, doce, irônico, profundo,

E tem o vago radiar de um mundo,

Que rola por um céu desconhecido:

E enquanto por abismos nos despenha,

Que só conhecem almas sonhadoras,

Desceis de cima às curvas sedutoras

De uma graciosa boca, que desdenha,

Curva-se um pouco, ergue-se logo, ondula,

Com tanta graça amável e ternura,

Que, quando ela moteja, uma criatura

Crê que o céu se entreabriu e em luz se azula.

Desdenha a boca, o olhar acaricia

Numa vaga atitude de princesa,

E enquanto a alma vos tem inquieta e acessa

Não vos consente a mínima ousadia.

Vinci emprestou-lhe o incerto colorido

De uma quimera: é mais que um sonho e é menos:

Cava-lhe abismos, sopra-lhe venenos,

E, quem cai, ou quem bebe, está perdido.

Parece que o pintor embriagado

Pelo modelo, que também o amava,

Mas cujo louco amor não confessava,

Porque quem ama é sempre desgraçado;

Tem de atender a tantas filigranas

De posição, de orgulho e de vaidade,

Que fica preso o amor, presa a vontade

Entre as cadeias das razões humanas.

Lançou, pois, na figura da Gioconda

Um artifício, um véu longínquo e vago,

Como quem olha a pérola num lago

Tão transparente que não vê a onda.

De nossos olhos para longe a afasta:

E quando a vemos a sumir-se prestes

Para o ideal entre as visões celestes,

Gritamos: — Longe... estás já longe... basta.

É bem real a cópia do modelo:

É da mulher: mas é também do sonho:

É um abismo lúcido e medonho:

É do infinito o enorme pesadelo...

Magia, encanto o espectador enleava

Pensa-se em Deus, na criação formosa,

No céu, na flor, na estrela luminosa,

Pensa-se em Vinci, em nós, pensa-se em Eva.

E vagamente o espírito descobre

Que ali cintila a alma do poeta,

E aquela móbil sombra, que o inquieta,

É a sua tristeza imensa e nobre...

É a Gioconda. — Sob a forma expressa

Há o infinito de uma ideia incerta:

Uma indizível música desperta:

Prende, entusiasma, quer... e não confessa;

Pois no meio de todos seus encantos,

Um sentimento só firme e seguro

Não confia a ninguém, no olhar tão puro,

Na grácil boca levantada aos cantos.

Ouvis-lhe a voz em doces confidências

Roçando o vosso ouvido: perturbado,

Convulsa o coração: ajoelhado,

Rasgar buscais as vagas reticências...

Ébrias promessas murmurando a boca,

Os olhos lançam voluptuosos raios,

E vossa alma no meio de desmaios,

Palpita, oscila, treme, anseia louca.

Ides ousar talvez uma palavra:

Sustêm-vos o desdém dos lábios dela,

E ante o impossível só de a ter tão bela,

O impossível amor inda vos lavra.

Abismo, esfinge eterna, Mona Lisa

Enquanto vos embala na esperança,

Dizer parece: — Ó alma de criança,

Lisa, a ver-te brincar aos pés, precisa.  

Casta, ingênua, inefável, voluptuosa,

Sempre a expressão suave e feminina:

Todavia assim mesmo se imagina

Quanto é sábia, sutil e cautelosa.

Dizem que Vinci em quatro longos anos,

Que no imortal retrato trabalhara,

Aquela obra incompleta inda deixara,

Bem como ele o deixou nos seus enganos.

Eis a Gioconda, a esplêndida pintura!

Vago poema cheio de quimeras.

Amas, pintas, Leonardo, e em vão esperas,

Como eu também, bastardo de ventura.

O retrata da bela Mona Lisa

De Leonardo da Vinci é o seu retrato:

Nada conheço mais perfeito e exato,

Nada melhor a pinta e a idealiza...

A fornarina

I

Rafael, encontraste a Fornarina,

Como a gota outra irmã no mar: — no entanto

Foi achá-la o teu gênio, e o fogo santo,

Que tua obra imortal inda ilumina.

Como o pincel passava sobre a tela,

Todo embebido da mulher divina,

Que a Virgem de Alba era a Fornarina,

E que era a Fornarina a imagem dela!

O esplendor da mulher se confundia:

Graças, tons, virgindade, amor, pureza

Tudo era dela: — a estrela sempre acesa

No céu azul da tua fantasia.

Criar uma mulher, a Mãe divina,

Dar tal encanto, tanto enlevo e calma...

Estava o tipo dentro de tua alma:

Que outra mulher além da Fornarina?...

A fronte curva, e graciosa, as linhas

Tinham do céu: a face as formas puras,

Um pouco cheias, como as criaturas,

Que já nasceram para ser rainhas:

O corpo escultural: cada mistério

Tu conhecias dessa estátua viva:

E dessa estrela em tuas mãos cativa

Hauriste, em cálix de oiro, o lume aéreo.

A espádua branca, o lábio teu sequioso

Escaldava de beijos delirantes;

Daí rolando aos seios palpitantes,

Perdiam-se em cairéis de infindo gozo.

A cor dos seus cabelos, em cascata,

A cor dos olhos em sublime lume,

E aquele corpo esplêndido, que assume

Da antiga estátua grega a forma exata:

Gestos, ondulações, linhas e tintas,

O doce brilho, a flacidez que encanta...

Pois mandam-te pintar a Virgem Santa,

Com isso tudo a tua Virgem pintas.

Não há mulher que te seduza tanto,

Não há mais santa criação que aquela,

Não há um tipo de mulher mais bela:

É tua força, e luz, e vida, e encanto.

Dela tiraste as imortais figuras,

Que fizeram tão grande o teu destino,

Que deram Rafael Sanzio de Urbino

Ao mundo inteiro, e às gerações futuras.

II

Que aroma dessas Virgens se levanta:

Como há volúpia em toda essa atitude!

É a vida em sua inteira plenitude,

Cheira toda à mulher a Virgem Santa.

Buscou-a o céu na terra: a terra é dela:

Flui-lhe o sangue de Adão dentro das veias;

Das humanas paixões do amor stão cheias

Cada Madona, que ele ergueu da tela.

Porque nelas a vida ele mistura,

E um coração nos seios lhes palpita,

Lembrando a dor, lembrando o amor, e agita

A nossa alma e alma assim dando à pintura.

Nada perde a mulher, e a Virgem ganha,

Mais chegada até nós: recorda a argila

A erguer-se, e o sol a pôr-lhe na pupila

O céu poisado em cima da montanha:

E em torno a fera tão submissa e branda,

E aos pés a flora rica do Oriente,

Que ainda em torno dela andar se sente,

Que em torno da mulher de Sanzio inda anda.

Ainda lembra os anjos coruscantes,

Que desciam do céu a contemplá-la:

E Deus no gênio dos artistas fala,

Como Deus à mulher falava dantes.

E como a estrela imensa, que ilumina

Essa angélica forma de gigante,

Ia o clarão de sua bela amante,

Quasi todo o seu gênio — a Fornarina.

  

III

Quem era essa mulher? Que idade tinha,

Quando a viste lavando os pés ao lago?

Fosse quem fosse: eras um rei Mago

E o teu amor a levantou rainha.

Deus coroou-te, ao nascer, um rei artista:

Derreteu-te vulcões de luz nas veias:

E para enfim fixar tuas ideias,

Pôs-te aquela Madona um dia à vista.

Deus mandou estender cetins na terra,

Para o moço gentil andar sem custo:

E pôs na palidez de nobre busto,

O que o céu tem de bom, de grande encerra.

Fê-lo formoso, como Apolo o Oriente,

Enquadrou o seu rosto feminino

Em bastas ondas de um cabelo fino;

E o sol do gênio lhe engastou na fronte:

Foi pouco dar-lhe tudo que fascina,

Beleza, gênio, a Itália por arena:

Para que a vida lhe esplendesse plena

Deu-lhe o amor da mulher na Fornarina.

Foi voluptuoso, artístico, esquisito

Em fazer Rafael, tecer-lhe a vida;

E dar-lhe enfim numa mulher querida

O amor da glória, a sede do infinito.

Seu pincel só sabia aquela imagem;

Aquela luz lhe levantava o braço:

E quando vinham dias de cansaço,

Seu sorriso dizia-lhe: — Coragem.

Eu ebrio-me, Sanzio, em contemplar-te,

Haurindo o amor, que é dentro em nós um astro.

Naquele seio branco de alabastro,

Onde em beijos bebeste as glórias da arte.

Que serias, franzina criatura,

Sem essa luz nos lodaçais de Roma?

Oh! com ela ninguém teu cetro toma:

Reinas tu só, monarca da pintura.

Tuas Madonas, obras seculares,

As tuas Virgens, Rafael de Urbino,

Teu nome guardarão, pintor divino,

Enquanto a glória merecer altares.

Mas em cada cabeça, ó Fornarina,

De qualquer obra deste pintor grande,

Os séculos verão como se expande

A luz da tua imagem peregrina.

Feliz o artista que encontrou asinha

Uma mulher formosa, amante e amada,

Tem para o céu a veludosa escada,

Tem para a glória a estrela que encaminha.

  

IV

O amor das grandes almas é severo,

Lança na fronte sombras de tristeza:

É o sinal sublime da realeza,

Quando o rei tem por nome — Dante ou Homero.

Essa coroa aureola a fronte a Tasso;

Milton a tem flamívoma e eviterna:

Tem-na o cantor da Ilíada moderna,

Camões, em fundo, tormentoso traço.

O amor é um sentimento augusto e sério;

Como o mar, solitário, imenso, amargo:

É como o céu azul, profundo e largo:

É, como o mundo, cheio de mistério.

O amor prolonga abismos dentro da alma,

Coalhados de oceanos de ventura:

Faz solidões de tanta profundura

Como os céus, onde os sóis rolam em calma.

É o olhar da mulher toda a harmonia

Deste universo soterrado e vivo:

Do seu marmóreo dedo está cativo

O Deus, que dentro em si tais mundos cria.

Ai! se ele os cria p’ra a mulher amante,

Torna-se grande e rico, como um Creso,

Faustoso, como Paulo Veronezo,

E, como Ticiano, deslumbrante.

Mas... deve ser por certo grave e austero,

Quem para os mundos seus o amor aceita,

Tendo de Sanzio e Rubens a palheta,

Ou tendo a lira do imortal Homero.

O amor nos enche de terror intenso

Do vasto irradiamento do infinito:

Todo o universo em plácido conflito

Pesa do amor no sentimento imenso.

Por isso o amor é cheio de tristeza,

Como uma aspiração ao paraíso,

Como o que é vago, amplíssimo, indeciso

Na mãe do amor, na grande natureza.

V

Risos, não; só a lágrima ansiosa

Pode cair na ocasião de um beijo:

É mais uma carícia do desejo

Sobre as rosas da carne em que se goza.

Rafael, aos clarões da Fornarina,

Iluminando páginas de Homero,

Épico, grande, altíssimo, severo,

Como um herói da Ilíada, domina.

Inda vos toma o susto, inda a ansiedade,

Quando o arcanjo da luz, na luta horrenda,

Da treva o arcanjo esmaga, e torna a lenda

Palpitante de horror e de verdade...

Inda os sábios da Grécia discutindo

Na sua velha e gloriosa escola,

Enquanto o sol no céu heleno rola,

Estás vendo a falar e estás ouvindo.

Obras, modelo, espalha em toda a parte,

Desde S. Nicolau de Tolentino,

Até que o seu engenho peregrino

Na Transfiguração excede a arte.

Mas no teu seio esplêndido de vida

Ele alentava a inspiração ardente:

O leão do seu gênio transcendente

Tragava as carnes da mulher querida.

Quando, para ser grande, Deus destina

Um Dante, um Rafael, — o vate, o artista,

Poucas vezes ao lado e sempre à vista

Põe-lhe a estrela da glória — a Fornarina.

Medir a força só pelo martírio,

Dar a estatura do varão augusto,

Do gênio a garra, o músculo robusto,

Encher o crânio todo de um delírio;

Pô-lo de fora do caminho humano,

Fazê-lo ser de um século futuro,

Levantar pedra a pedra, e muro a muro,

Atirar-lhe aos seus pés, rugindo, o oceano,

Tudo que a inveja inventa, e o ódio rumina...

Quem vencer pode, se faltou-lhe um dia

O único sol, que as almas alumia,

O amor, que salva, e achou-se em Fornarina?...

VI

Na tua vida, Sanzio, eu não concebo

Este segredo da razão divina,

Pois que dando-te gênio e a Fornarina,

Impôs-te a sorte de morrer mancebo.

Oh! Romeu, Julieta, Hamleto, Ofélia,

Desdêmona, que à glória a alma abandona,

Oh! desgraçados, a feliz Madona

Por fim a mesma lei à morte impele-a.

Quem viveriam ao céu de vossos braços,

Bebendo a vida à flor de vossa boca,

E alma lançara, mariposa louca,

Buscando o céu no fundo dos espaços?

O céu é vossa carne cor de rosa,

Convulsada ao calor do hímen ardente:

É tudo quanto fala, e diz, e sente,

Uma na outra, a boca sequiosa.

É a carícia de uma espádua nua,

O ansiar de umas pomas rutilantes,

Que escapam ao tocar das mãos amantes,

Como uma e outra vaga, que recua.

Os níveos braços em suave curva

A si nos conchegando em doce enleio,

Pernas, quadris, o rosto, o colo, o seio,

Que a alma nos prende, cega, enleva, enturva.

Que céu em cada linha do seu rosto!

Que céu em cada frase, em cada beijo...

Pois este céu eu palpo, eu gozo, eu vejo...

Quero lá outro céu... talvez suposto!?...

Deus não quer isto. Apaixonadas almas,

Sensíveis corações, Deus não quer isto:

Separa-vos assim: está bem visto

Que Deus não quer florindo as vossas palmas:

Deus não consente tanto amor... — Devora

A mesma luz do amor, que vos consome:

Não mataríeis vossa eterna fome,

Comendo os astros, e bebendo a aurora.

A fome enorme, toda a sede vossa,

O céu azul coalhado de ambrosia,

Como uma taça cheia e luzidia,

Dera-vos Deus... talvez matar não possa.

E um beijo vos consola!... Almas de artista,

Tem vosso amor a duração eterna:

Da amante um veiço, um braço, o colo, a perna

É todo o céu, que vos reluz à vista!...

VII

Como ficou teu coração absorto?

Como ficou teu céu sem luz, vazio,

Quando viste ao teu seio inane e frio,

Ó Fornarina, o teu amante morto?

Beijaste a branca fronte com transporte,

Que ele não respondeu com beijo ardente:

Ai! no teu sol, ainda no oriente,

Desceu a noite lúgubre da morte.

Ó Fornarina, ó Sanzio, foi bem pouco

O tempo que durou vossa ventura:

Separou-vos a mesma sepultura

Que separou de Ofélia Hamleto louco:

Que de Romeu fez separar Julieta,

Que separou Desdêmona de Otelo;

Ó Fornarina, ó Sanzio, o amor do belo

Cresceu com o amor do sonho, que deleita.

Tu foste a luz, a cor, o estilo, o tema

Do livro escrito com pincel divino:

A Fornarina e Rafael de Urbino

São as figuras do imortal poema.

Foste desta existência o grato aroma,

Gênio, força imoral; ardor fecundo

Com que ele o nome teu lançava ao mundo,

Quando os seus quadros espalhava em Roma.

Feliz quem teve a estrela radiosa

De um amor, como o teu, ó Fornarina:

É Rafael: — excede-se, domina;

E haure um néctar sutil e estranho; e goza.

VIII

Oh! quem não viu a bela imagem tua

Numa das virgens, na Madona austera,

Nuvens de anjos cercando, um pé na esfera,

E outro pé a embarcar em curva lua?

A doce irradiação de luz divina!

Como o sol se prolonga em cada brilho

Que flui dos braços teus, sustendo o filho,

Pesando um mundo à destra pequenina!...

Quem não sente a alma convulsada toda,

Quem não dobra o joelho ao chão contrito,

Ante o deslumbramento do infinito,

Que há, bela Virgem, do teu rosto em roda?

O céu se perde em transparente frágua!

Um poema de luz tira à palheta:

Nasce daquela criação perfeita

Do consórcio de um beijo e de uma espádua.

Bebeu o molde puro, linha a linha,

Nas conchas nacaradas do teu seio,

Na fome louca, no convulso enleio,

Com que fartar-se às tuas carnes vinha.

Partir-se uma existência meio a meio;

Ser-se Tasso e Leonor, Beatriz e Dante,

Ter cada qual um coração distante,

Que a fortuna jamais juntá-los veio;

Eis a sorte dos gênios. — Tua sorte

Com Rafael foi outra, ó Fornarina,

Inda que em vossa criação foi sina

Abraçados andar depois da morte...

IX

Ó da virtude adoradores falsos,

Voltai o rosto à minha pobre musa,

A estátua nua só na Grécia se usa,

Cabeça e tronco nus, os pés descalços.

Deixaríeis fechada eternamente

A nacarada concha do Oceano,

Porque podíeis, por qualquer engano,

Ver dentro dela a pérola esplendente.

A grande obra de Deus, e de Canova,

De Miguel Ângelo a obra prodigiosa

Nua se banha em lumes cor de rosa,

Sem que o céu raios seus contra ela mova.

Deus colocou nas suas mãos no Éden

O primeiro trabalho de escultura;

Volúpia, encanto, graça e formosura

À natureza os semideuses pedem.

Quem tem na alma a paixão da natureza,

O culto à luz, que Prometeu trouxera

Roubada ao céu do seio duma esfera,

Ama a nudez flamante da beleza.

Como um sol que apanhasse e palpitava

Sob as mãos escorrendo a luz de um astro,

Espremia o teu corpo de alabastro

Na grande obra imortal que meditava.

Da glória preparaste-lhe o proscênio:

Fizeste-o igual ao Tasso, a Homero, ao Dante,

Com sangue e carne quente e palpitante

Tu sustentavas o leão do gênio.

Tu foste a forma exata e soberana,

O molde onde fundia a eternidade;

Donde arrancou a criação que há de

Destacar, como um Deus, na história humana.

A forma tipo, o mármore modelo,

Nu, esplendente, de correta linha...

Deus foi o Apeles da gentil rainha,

Que deu ao gênio, para engrandecê-lo.

Porém o teu espírito animava

Esse mármore vivo e cintilante:

E para compreender tão grande amante,

Tinhas uma alma grande, que bastava.

A ideia nobre e calma em luz fulgura

Na tua fronte plácida e ridente,

E quem te vê, conhece e palpa, — sente

Uma alma bela, como a criatura.

A alma conserva a linha da beleza

Do vaso eônio, em que anda e se ilumina:

Teu gênio todo foi, Vestal divina

Guardar-lhe a chama de seu gênio acesa.

Deve-te o mundo a glória de o ter feito:

Paga-te o mundo em verdejantes palmas:

Ó Fornarina, ó Rafael, as almas

Andaram tão iguais no vosso peito!

Feliz quem na alma tem fogo divino,

Quem — Prometeu — o seu mármor anima;

E o raio ardente lhe não cai de cima,

Mutilando-lhe a vida, obra e destino!...

Assim na carne viva e palpitante,

Sanzio bebeu-te o belo, ó Fornarina,

És tu quem só é grande e quem fascina,

Quem na arte o faz Homero, e Tasso, e Dante.

É desses homens o fatal destino,

Emprestar seu triunfo em torno a tudo:

Vejo o Triunfo de Flora enleado e mudo,

Mas só triunfa o gênio de Poussino.

X

Ó minha Virgem, cujo rosto é níveo

Da palidez das virgens fabulosas;

Ó desmaiada irmã das brancas rosas,

Da minha alma agitada aroma e alívio;

Hão  de por fim apodrecer as telas

De Sanzio, de Correggio, de Leonardo,

Talvez num verso escapo ao olvido, o bardo

Vença o tempo melhor que todas elas.

O estatuário prende a sua ideia

Na página assombrosa de granito,

Em que ele algema a sombra do infinito,

Crendo ser o infinito que encadeia.

Quando o tempo, que ao abismo tudo impele,

Arrancar-lhe da fronte a eternidade,

 Lançando-os nele, horrendo de verdade,

Quais na queda os Titãs de Romanelli.

O mármore e o granito esculturado

Pelos Homeros do cinzel grandioso,

Hão de ter um ocaso, que eu não ouso

Prever, sem ter o coração golpeado!...

Dar forma ao belo então é sempre absurdo,

Dizes, ao dar sob meus pés, ó seixo?

Já  que tudo tem fim, não luto: deixo;

Não te ouço, brejo: multidões, sou surdo.

Farças do dia, improvisados lobos,

Vestindo o arminho límpido dos cisnes,

Não chegueis até mim... Marnel, não tisnes

O manto branco, que há nos meus arroubos.

Eu que me envolvo em halituoso aroma,

Que sai dos lábios seus, como de um cofre,

O meu tédio, banal criatura, sofre,

Sofre o asco, que ao ver-te, a alma me toma.

Não vos pertenço, não: sou outro: posso

Sofrer de vós a injúria, o escárnio, o apodo:

Hei de cair em vós, lezíria e lodo,

Sem manchar-me? — Zombai: eu não sou vosso.

São os meus ideais um céu profundo,

Que não sabeis que terra está cobrindo:

Curva-se sobre este céu: azul mais lindo

Ele tem: tem mais verde mar o mundo:

Outras canções: mais rútilas mulheres,

Como os anjos do Guido e Ticiano:

Pérolas belas de um ridente oceano

São aos milhões: apanho as que quiseres.

Vós, que viveis a vida só dos parvos,

E que tendes aos pés um ciclo estreito,

Não compreendeis o que hei dentro do peito!

É o bom e o belo, o que só posso dar-vos.

Cá no meu mundo um beijo estala, como

Abre uma rosa, ou nasce a estrela; cheira,

Cheira e brilha e enche disso a terra inteira,

Tal desabrocha saboroso pomo.

Éden, donde o floral somente explode,

Não procureis na insídia a vil serpente:

O Deus, que o fez, e o guarda, é mais clemente:

Como é Deus, quer ser mau, ser mau não pode...

Obras de artista, a eternidade é vossa:

E enquanto o mundo carregar Atlante,

Como o mar, que não para um só instante,

Vossa imortalidade aumenta, engrossa.

  

XI

Ó meu amor, ó minha Fornarina,

Idealizada em mais sublime forma,

Anjo encarnado na selvagem Norma,

Anjo, na forma da mulher divina;

Ó deusa ideal, ó Beatriz amada,

Ó minha Onfalia, um Hércules vencido

Chora, para aquecer-se ao teu vestido,

Sem esperar de ti talvez mais nada!

Mas... quem és tu, ó nuvem cor de rosa,

Toldando o céu azul de minha vida?

És a visão de uma mulher querida:

De um sonho a imagem doce e vaporosa.

De Ésquilo o drama apaixonado e triste

Inda há de apavorar o mundo inteiro,

Sem que já reste um luminoso argueiro

Da grande obra de pedra, que inda existe.

Ó meu amor, pudesse eu algum dia

Cravar teu nome dentro do meu verso,

Só de ecoar deixara no universo,

Quando o arcanjo da morte, a mão já fria,

Lançando ao sol, dos lumes depenado,

Dos astros p’ra os cadáveres abrindo

Larga vala no espaço umbroso e infindo,

Então gritasse: — Está tudo acabado!

XII

Podem os semideuses da poesia,

Milton, Camões, Homero, Dante, Tasso,

Byron, astros de amor plantar no espaço:

Teu humilde cantor nunca o faria...

Sofro, como eles tenho igual delírio,

E um coração afeito a amar somente:

Ter a Beatriz, não ter a lira ardente,

Foi meu pobre destino e o meu martírio.

Ai! passei ermo e inquieto o nosso solo,

Tendo as visões de Shakespeare e Guido,

Tendo o soluço, a lágrima, o gemido,

Sem ter a glória e um raio só de Apolo.

Mas tive a tua imagem peregrina

Sempre em meus olhos viva e rutilante,

Quando cantava o gênio deslumbrante

De Sanzio, e o seu amor à Fornarina:

E me lembrava de mil cousas belas,

Com que te c’roar a fronte radiante,

Levantar epopeias, como Dante,

Ou como Rafael dar vida às telas:

Ver-te no meio de esplendor divino,

Num carro por um nume trabalhado,

Por— duas virgens pelo céu tirado,

Como a Diana esplêndida de Urbino:

Lembrava-me ser Deus, e mais do que isso:

Mais do que Deus erguendo Eva do Éden,

Erguendo-a, como os meus desejos pedem,

Erguendo-a, sim! mas sendo um Deus submisso:

Lembrava-me forrar onde tu fores,

Onde pudesse pôr teus pés mimosos,

Das espáduas dos deuses fulgurosos,

Ou de astros feitos desmanchadas flores...

Enfim, um chão feérico de arminho!...

E em vão acalentava uns tais desejos!...

Só me resta de tudo os loucos beijos

Com que forro, em meus sonhos, teu caminho...

Só me resta de ti, mulher divina,

Ver-te, sentar-me às vezes ao teu lado,

Sem saberes que sou um desgraçado,

Que viu em ti a sua Fornarina.

Mas há cousa talvez que mais inquiete

Meu pobre coração, que assim te adora.

Visão, que o aterra, sombra, que o apavora,

Como a de Banque em frente a Macheth...

É pensar que por tua imagem pura

Um dia passe nuvem tenebrosa,

Que encha meu céu azul e cor de rosa,

Que inda de ver-te arranque-me a ventura!...

O Ipê e a Liana

Je suis devoré maintenant par un besoin de métamorphoses. Je voudrais écrire tout ce que je vais. Non tel qu'il est. Mais transfiguré. La narration exacte du fait réel le plus magnifique me serais impossible. II me faudrait le broder encore.

G. Flaubertt - Correspondance

I

És, ó Ipê, um rei erguido nas montanhas:

Daí dominas tu serros, campos, vergéis:

A tua mãe, a terra, o leite das entranhas

Deu-te e enrolou-te em ferro a espádua, o torso, os pés.

És colossal, és forte; e a beleza do tronco

Iguala a tua força enorme, ó Briareu:

Quando te morde o vento a rama, ergues um ronco

Grande, como o do mar, que iroso em rochas deu.

Em cada nó do corpo os anéis vais marcando:

És milenário, és velho, ó rei das matas: tens

A mocidade eterna e o porte venerando

Dum olímpico deus do sangue do qual vens.

Tua antiga nobreza esconde o tempo; e a história

Com c'roa de esmeralda a tua fronte achou;

E a clâmide virente aos ombros: tanta glória

Ergueu-te aos reis da terra, e aos deuses te igualou.

Salve, ó filho do sol, antiquíssima raça!

Dos Titãs guardas gestos, ousadias, feições:

Só a nuvem revoa, e a águia só por ti passa!

Viste o Olimpo ruir, e as velhas gerações.

Inda hoje és belo, quando o sol c'roa-te os cimos

Com raios, que jamais o tempo esborcinou:

Seremos amanhã, nós que inda hoje nos rimos?

Tudo evolui e passa; – e o teu tempo ficou.

Tu és irmão talvez da própria eternidade:

Mesmo o infinito, em ti, alguns pedaços tem:

Assististe do mundo à louca mocidade:

Quaisquer restos de um deus teu sangue em si contém.

Mas... com que seiva a terra um tal gigante cria!

Se a mesma eternidade em ti adormeceu!

E quando um deus, que reine então, a busque um dia,

Há de acordá-la em ti, ouvindo-a: – Aqui stou eu.

II

Luxuriante palmeira ereta no levante,

Em alta signa e bela a América ali pôs,

Para meter no bosque augusto o viandante,

Que queira ver o Ipê, e a Liana depois.

Na mesma direção do bosque melodioso,

Uma mangueira imensa em torno a reflorir,

Convida o viajor fatigado ao repouso,

Para depois mais pronto o caminho seguir.

E em pé ver a provecta, a sacrossanta imagem

Do venerando Ipê, que outro não tem igual,

E chegar ao lugar, e dar fim à romagem,

Vendo o soberbo Ipê, o grande Ipê ideal.

III

Agora que esse Ipê, de raça antiga e forte

Viu o Olimpo caído e mortos seus avós,

E viu banhado em sangue, e careteando a morte,

E vive único, e belo, e imenso ao pé de nós;

Que o deus, que ocupa o trono, e empunha o cetro agora,

E num Cáucaso novo a Inveja aprouve enlear,

E, o Olimpo arrasado, o céu onde ele mora

Encheu de criações belíssimas, sem par...

Esse deus, novo rei de um novo céu, tempera

O gume do poder nas chamas doutra luz;

E o Ipê deixa imperar na mesma larga esfera,

Pelo mesmo caminho o engrandece, e o conduz.

Quem sabe... o que haverá ainda no infinito?

E que é nele mudar um deus, um chefe, um rei?

Muitas vezes mudar de deus, mudar de rito,

Para encher o infinito, é bem pouco: eu bem sei.

Alas, deixai passar, ó crentes, agarrados

Como liquens à rocha imóvel, como um grão,

Que com outros um dia após enfileirados,

Há de rolar em poeira a um mais forte tufão...

Artes, saber, do mundo o perenal sustento,

Eternas religiões, tudo enfim que será?...

Nenhuma solidez oferece o monumento!

Tudo se há de mudar; tudo se mudará.

Assim não tem o Ipê a humilhação estranha

De ir a outro país mendigar um favor:

Vive sempre de pé sobre a sua montanha

De ninhos cheio e de parasitas em flor.

  

IV

E inda à noite ele é belo! – Em asas transparentes

Mete-lhe um gênio à fronte estrelas aos milhões:

Na esmeralda da coma as pérolas luzentes,

Grandes, parecem ser de heráldicos brasões.

Não tendo irmão e igual, é pois rei das florestas;

A rica natureza o estema lhe passou,

Não de bronze, mas de oiro, e c'roas assim destas

De astros, sóis, noite e dia: e eterna assim ficou.

Salve, ó filho de Atlante; enches todo o horizonte,

E vives docemente em paz na nova lei;

Só nuvens, águias, sóis passam por tua fronte;

Dominador da selva, ó portentoso rei.

Nesta exageração em nada eu exagero:

É ir ver na montanha o espaço que o

Titão Ocupa largamente, impassível, e fero,

Com bramidos de mar, e roncos de tufão,

Com arrulhos de pomba e trilos de saíra;

E às vezes numa paz, numa insigne mudez!...

E há quem nesta atitude angélica o prefira!

Tem mais gesto de um deus, quanto mais sério o vês!...

V

Sinto-me à sombra dele em íntima ternura,

Como se me mesclasse ao colo a própria mão:

Bebo de bruços toda a profunda ventura,

Que um ser estranho entorna, e não daria em vão.

Não ouço o mundo: e em mim o vago redemoinho

De vozes procurando outro qualquer rumor,

Como uma gota à gota: estou aqui sozinho,

Haurindo o seu repouso; e sem ele o supor!...

Que o vento o não agita um pouco, é-me preciso,

Que ele não saiba nunca o que aqui vim fazer:

Que não desmanche, ou cerre a porta ao paraíso:

Que ele ao triste não dê, que saiba, um desprazer.

Ah! se soubesse acaso a minha mágoa, ao vê-la

Eu teria um remorso! E não quero existir

Perturbando de noite o sono duma estrela,

Ou de um tronco, que está sobre tudo a florir!

E como ele ouviria, um dia, o meu lamento,

Ele, que me deu sombra em sua sombra, e faz

Questão de não prender nos seus galhos o vento,

Ele, que sempre em pé, bom e provido jaz.

Nem eu jamais tivera alguma melodia

Que ele não entendesse, e não dissesse bem

Do sossego fruído em todo aquele dia,

Que com ele vivi: com ele... e mais ninguém!...

VI

Esta árvore gigante e heroica era um profeta,

Falava, sem se ouvir da voz as vibrações;

Sabia muito e tinha assim de um velho asceta

Das cousas mil, que vês, as profundas razões.

— Como eu hão de florir, neste país augusto,

Outros gigantes: tudo em torno mo prediz:

Fui em tempo um humilde, um delicado arbusto,

E hoje a glória sem par deste excelso país.

A minha robustez, toda a minha grandeza

De uma alma, que vos mostra o seu pleno vigor,

Vem da alma, que eu herdei da vasta natureza,

Onde se agita a força, onde palpita o amor.

Tempos virão, que em toda esta terra, que enlaço,

Há de haver aos meus pés, trepando pelos céus,

Talvez mais rijo tronco e inda mais rijo braço

Para sustê-los como arcos e botaréus.

Eu ficarei aqui, como a relíquia santa

Deste páramo vasto, onde cresce o Brasil,

Onde vasta legião de passarinhos canta,

E onde o sol me encontrou leve, imberbe, e gentil.

Eu ficarei aqui, como uma testemunha

Da grandeza e porvir deste belo país,

Que inda ninguém supõe, que inda ninguém supunha

Fosse eu, como é ele, amplo, grande e feliz...

Agitava-se então a verde coma ao vento,

Um oceano a fremir cantava-lhe na voz:

E como que guardava um outro pensamento,

Que devia chegar num idílio até nós.

As florestas em baixo, opulentas e bastas,

Eram somente a grama, em que seus rijos pés

Descansavam, pousando; eram as colchas vastas

Estendidas, mesclando os bosques aos vergéis.

VII

Dizem que viram, num conjunto estranho, um dia,

Como num temporal de estio em grosso mar,

Tudo quanto era bosque, ou por em torno havia,

Tudo quanto era rio, em val perto, clamar:

Por declive de pedra em pedra alvoroçados

Tudo quanto era selva, e tronco, e veiga, ali

Reunir-se num bródio, à noite, aos gestos, brados,

Bulhas de saturnais, pios de bem-te-vi,

Regougos de aves más, de asas negras colhidas,

Cantos de sabiá, brasílio rouxinol,

Fulvos canários e rolas enternecidas

Metendo, em vários sons, sinfonia em bemol:

Em fantástico bando, esverdinhado e rubro,

Ao metálico sopro enorme de um clarim,

Em noite morna de um mês tépido de outubro,

Davam ao solitário Ipê régio festim.

Era como um banquete em grande aniversário

Dado à árvore imensa, excelsa, e superior,

Que a todos abraçava, e em movimento vário

Mostrou sempre ternura, e intrépido valor.

No zigzagar do raio, o estrondo das trombetas,

Que abalava o céu todo, e o bosque, e a serra, e o val,

Ouviam-se salmear velhos anacoretas,

Vinha de toda a parte um sopro universal.

Depois daquela festa, onde tudo se unira,

Para dar ao gigante arras de um grande amor,

Tudo estava tranquilo, e tudo enfim dormira:

Substituíra a grita um delicioso torpor.

VIII

Inda o arvoredo não murmurava; a folhagem

Parecia dormir, como tudo em redor:

Tudo imitava o Ipê na sua augusta imagem,

E na serenidade, e indolência, e frescor.

A atmosfera estava em nitidez serena,

Não recordava o espaço um som, como se Pã

Tivesse dado fim ao sibilar da avenha,

E procurasse a gruta, ao chegar a manhã.

O rio era um espalho, em que o céu se mirava

Com seu formoso azul, repolido a buril,

De cascata em cascata o silêncio pairava

Sobre ele, e o lapidava em seu colear gentil.

Tudo dormia então: tudo estava dormindo:

Mudaram-se em mudez os gritos do festim:

Porém aquele sono em tudo era tão lindo:

Só um vivo feliz pode dormir assim!

Mas quando despertou mais tarde a um sol mais quente

Aquela natureza em todo seu vigor,

Que blandícia no riso, e que gesto dolente,

Onde se haure inda fresca a embriaguez do amor.

Alto, mais alto sempre o Ipê sobre o caminho,

Que o dom tem de afastar o arábico djin,

Será como um imenso, um bem tecido ninho,

Onde se ouça somente um cântico sem fim.

Esta árvore, que acaso em tempo algum inverna,

Netos nossos verão, como viram avós:

Não ter princípio e fim, ser como um Deus eterno,

A nós, não imortais, parece-nos a nós...

IX

E a Liana? — Essa lá stava invicta no seu plano

Maravilhosamente o festejo a gozar,

Com que brindavam seu augusto soberano,

Sem querer mais prazer, nem mesmo outro lugar.

Seus braços estendia a desatar-se em flores,

Multiplicava os seus apertos em redor:

Para o másculo tronco ela era toda amores,

Como ele tinha nela o seu único amor.

E por toda manhã, que orvalhara a campina,

Que abrira pelo céu seu purpúreo clarão,

Mais rebrilhava a Liana esbelta e peregrina,

Mais lhe roubava aroma a fugaz viração.

Saía, como sai do mar a lua cheia,

Cada vaga enflorando, e dando-lhe o matiz

Da rosa branca que no seio lhe pompeia,

Saía, sem dizer o que a noiva não diz,

Quando risonha e triste ao mesmo tempo deixa

O leito, onde passou a noite sem dormir,

E ao colo emaranhada a formosa madeixa,

Busca ao balcão ar fresco, e haure-o a sonhar, e a rir.

Viam-na todos mais feiticeira e garrida,

Prodigando-se mais com carinhoso ardil;

E toda essa explosão de exuberante vida

Acabrunhava o Ipê: — se esmagara o alcantil!...

Passam os dois assim sua alegre existência;

Condores vêm chegando, albatrozes se vão,

E a Liana e o Ipê no enlace, e eflorescência

No mesmo amor perene, e ardor na eterna união...

X

Quando vinha o uracão nas asas das procelas,

Velho iracundo, o alforje aos ombros, e ao bordão

De raios encostado, e vozes de querelas

Formidáveis uivando em fúria, e em confusão,

Pairar ia ao cairel das últimas montanhas,

E esmagando entre as mãos de bronze os florestais,

Soltava pelo espaço imprecações estranhas,

E arrancava Titãs, quasi, Ipê, teus iguais;

E os rolava no dorso inchado da torrente,

Que espumava em furor, torcida cascavel;

E, o alforje desatando, ao céu lançava a enchente

De cavalos de sombra, em hórrido tropel.

O uracão percorrera, urrando, a Europa toda,

Após da África e da Ásia as chãs dos areais:

E ei-lo encostando a fronte ousada e quasi douda

Ao Ipê; e olhando em volta os pontos cardeais,

Suspendia o furor das infernais quadrilhas,

E arrancava do céu o lôbrego lençol:

Com mau humor dizia: — Ó sol, por que não brilhas?—

Quando já todo o céu de luz enchia o sol.

XI

E o Ipê ouvia o seu estranho e audaz murmúrio:

E então ele contava a história multicor

De homens, deuses, e céu, e terra, no tugúrio

Da verde coma oculto e largo historiador!

Escrevendo e ditando ao mesmo tempo a frase

Ao velho Briareu, sempre verde, e sem cãs:

Velho pois, como o mundo, Ipê, tu tens na base

No livro milenário a história dos Titãs.

Ias ouvindo os temporais descabelados,

Que deixavam por baixo, ao passarem, os céus,

Os Olimpos, os reis, reinos desconjuntados,

Reinos novos por cima, armados de troféus.

Sobre ruínas, sobre as pedras revolvidas,

Os náufragos de toda espécie em todo o mar:

E sabias, Ipê, rememorar as vidas,

E a morte dos heróis tu sabias contar.

Todos te viam com religioso acato

No manto régio e amplo, em que o sol te encontrou:

No semblante de um deus aos outros deuses grato

Dizes: — Aqui do tempo eu testemunha sou.

Nos meus braços eu tenho um mundo em miniatura;

Entre flores eu vivo; e olho em flores o val:

E por mim todo o sol, que entra em mim, se perdura,

E duma choça faz um palácio real.

De pixidulas com musgos ornamentadas

Me arreiam, enfeite e encanto ao trono varonil:

Vermes luzentes, que têm asa enlaminada

De oiro e prasio e esmeralda, aí contam-se aos mil.

Baixos relevos que vai o tempo esculpindo,

Como num Partenão um Fídias genial.

O velho Ipê assim é o templo mais lindo:

Em que parte do mundo haverá outro igual?

XII

Gênio, amor, ódio, e dor, e inveja, o desespero,

Viu que passaram já, e está vendo passar,

Ele, que o céu conhece, e todo mundo inteiro,

E está ouvindo o mar gemer noutro lugar;

E que inda o ouvir chorar sob enormes florestas,

E outras aves cortar profundos céus azuis:

E prófugas de vez algumas aves destas

Jamais hão de voltar, quando o sol rubro luz.

Mesmo as águias, que vão as negras asas largas

Abrindo e dormem pelo azul do céu ao ar,

Quando vêem longe, e embaixo, as montanhas amargas

E é morrer num abismo, irem nelas pousar...

Mesmo as águias já são aves menos ferozes,

Que noutro tempo tinha o mar, a terra, o céu,

São pombas brancas os enormes albatrozes,

Voando ao sul, na vaga em gelo, e no escarcéu!...

E está vendo que tudo está mudado e muda:

E que não sabe se debaixo de si

Conserva a mesma serra, e se há um deus, que ajuda

A conservá-lo vivo, e ereto, e o mesmo aí!...

Sabe só que ele vive, e que aumenta de tronco:

E que por largo espaço ergue a coma gentil;

E que já viu um povo inteiramente bronco

Enchendo a mata esparsa e enorme do Brasil.

E que já viu da Europa, em meio às tempestades,

Vir em conchas, nações, e pôr na praia os pés,

E não ficar ali, cobrindo de cidades

Sítios com tabas, onde ouviam-se borés.

Só Deus sabe o porquê dessas mudanças todas:

Não será o universo um palco teatral?

Todas nossas razões são fúteis, ou são doudas:

Deus será o poder; e o poder é fatal!...

— Vejo daqui ao longe uma pequena ermida

Sobre uma rocha: e longe e muito longe... além...

Uma rotunda, como uma árvore vestida

De aberturas, e toda em flor, como eu também.

Eu sou a árvore antiga, a árvore dos anos,

E não me lembro mais da terra em que nasci:

Eu reconheço toda a série dos humanos:

Mundos nascer, crescer, viver, morrer já vi!...

Nada me espanta: eu vi mudadas tantas cousas!

Que uma poeira de reis vi levar o tufão;

As estátuas de alguns, de outros marmóreas lousas,

Grandes reinos em pé, quem sabe, onde estarão?...

Por isso todos vêem minha eterna ventura:

Meu riso eterno sem jamais o variar:

Eu sei que tudo acaba; eu sei que tudo dura;

Deus sabe disso: Deus anda nisto a pensar...

XIII

Mas como sobe, e enflora, ó doce americana,

Filha deste país, com que o sol se casou.

Viçosa, agreste, e em flor a flexível Liana,

Que ao Ipê magnificamente os braços enlaçou!

São dois, são um. E em vindo a louca primavera,

Que enfim de vez não sai do céu deste país,

Que músicas na fronde o sabiá tempera,

Que perfume na flor de esplêndido matiz!...

Que borboletas em perpétuo giro, em dança,

Em caprichosa volta, amarelas, azuis,

Verdes, brancas, passando uma e uma, e não cansa

A cantiga sem letra — o vôo eterno — à luz.

Da Liana a madeixa é de esmeralda em brasa,

Que ela mescla à do Ipê de espessa e verde cor:

Dois namorados são, a sós brincando, em casa,

Trocando cada qual beijos com mais ardor!...

A casa deles é de bela arquitetura,

Maravilhosamente erguida, e tem docéis,

Há tendas, e jardins, e leitos de verdura,

E a orquestra, em que entram só alados menestréis.

Na água argêntea, em que banha as múltiplas raízes,

Revê a esbelta forma em límpidos cristais:

Não têm melhor espelho odaliscas felizes,

Que vivem só de amor, e sonhos orientais.

Por aquela singela e dorida pilastra,

Que a gente crê que aos céus sustenta os capitéis,

A Liana soberba ergue-se, e trepa, e mostra

Os seus cabelos, que se dobram, como anéis.

As florinhas azuis, e as flores amarelas

Da Liana e do Ipê crêem-se de um tronco só:

Todas são tão gentis, todas assim tão belas;

Todas no mesmo feixe, e inda no mesmo nó.

O olhar cheio de inveja em vão neles procura

Donde vem a Liana e onde começa o Ipê;

Pois Deus tornou tão forte e estreita essa estrutura,

Que o traço, que os separa, enfim quer ver: não vê.

Torce, retorce, e puxa, ensanguentando os dedos

O analista, que quer sondá-los com rigor:

Stão, como o fogo preso ao seio dos rochedos,

Como no coração stá vinculado o amor.

Sabe só que ao gigante abraça-se a Liana,

Que a morte poderá somente os separar,

E que não pode nunca a curta vida humana

Ver de um lado a Liana e doutro o Ipê tombar.

E abraçada ao seu noivo, ao seu príncipe amante,

Ela, a doce Liana, é princesa também:

De astros e sóis lhes pesa a c'roa cintilante,

Que os anjos, pajens seus, do céu trazer-lhes vêm.

Como uma brisa eterna, a brisa que murmura,

Pendura-se na rede, em que ela se prendeu:

A onda verde do mar soluça na espessura

Dos verdes ramos seus: canta-lhe um hino Orfeu!

Uma cigarra, como um povo todo inteiro,

Lança os sons dum clarim, em festival troféu;

Não há mudez no val, não ha mudez no outeiro:

Todo aquele rumor encheu a terra e o céu...

  

XIV

Quando em fundo de prata e azul esborcinado

Aparecia o Ipê em noites de luar,

Era um enorme efebo ao balcão elevado

De um castelo, guitarra às mãos a dedilhar.

A noite azul, a luz às sombras entrechada

Semeavam visões brancas, como jasmins,

Entre ameno rumor, como se alguma fada,

Bailando no ar, fizesse o oiro ouvir dos chapins.

Havia esse suave e álacre murmurinho

Que se ouve sempre dentro, e em redor dos moitais,

Feito de trilos e surdos pios de ninho,

E das largas canções das aves aurorais.

Em bela noite assim, noite de verdes chamas,

Que fantasmas na serra e em céus lácteos produz,

Luz na coma, e nos pés, luz nos braços, nas ramas,

Todo aquele Titão enchia-se de luz...

Tudo cantava nele, e quando se mexia,

Das roupagens em cheiro acre, e vivo, um odor,

De alcova de noivado, ou de um templo saía,

Toda a esfera envolvendo em um fluente vapor.

Ele vivendo numa eterna apoteose,

Começava uma festa, onde uma outra acabou:

Tece-se uma grinalda, enquanto outra se cose,

E dia e noite é isto: a festa não parou...

  

XV

Ouvia conversar a terra e o céu de perto,

Tão juntos, que um e outro estavam-se a oscular:

E era um colóquio em um murmúrio vago e incerto,

Como o oceano com o sol, quando o sol sai do mar.

Dava-lhe uma alegria intensa e grave ouvi-lo:

A alegria também aviva a seiva, e dá

Uma nova verdura ao tronco: esses tranquilos

Momentos são tão bons! Melhores onde os há?...

A calma grande é bela, a calma procriadora

Tem da mente divina a benfazeja ação;

Deus lançando aos milhões por suas mãos em fora

Mundos e sóis, sem ela os lançaria em vão.

E quem sabe o segredo augusto, que continha

A palavra dos dois, que o sacro Ipê ouviu?

Que extrema limitava, ou que invencível linha

Há em tudo que cai, e em tudo que surgiu??

Dessa árvore a presença heroica e benfazeja,

Representando só embora a criação,

Era a ideia, que liga, e prende, e aperta, e adeja

Da terra ao céu, do céu à universal razão.

Oh! a existência é boa: — A canção do trabalho

Tempera a luta que tem qualquer de enfrentar:

É para a flor que brilha o rosicler e o orvalho,

é a paz do oceano a fremir e a cantar...

  

XVI

Presta-se a tudo, Ipê, a tua mocidade,

És velho, e és sempre novo, e mais belo e gentil:

Estás acostumado a ser eterno, e à idade

Aprumas sempre mais teu ereto perfil.

Era familiar com todas as quimeras:

As estrelas do céu costumavam cair

Nos braços seus, e vir dumas longes esferas,

Só para estar com ele, e sonhar, e dormir.

Que diriam então? — Que ouvia ele delas?

Quem soube nunca, e quem há de saber jamais?

Elas perto de Deus, descendo às serras; elas

Cariátides de oiro, anjos, não sei que mais.

Era a sombra de um deus de antiquíssimos mundos,

De naufragados céus, e naufragados sóis,

De não sonhados céus por esses céus profundos,

Cujos restos jamais chegarão até nós.

Ninhos, clarões, e o vento, e a lua, e os pirilampos

Davam ao Ipê à noite estemas a luzir;

Esse Titão da serra a dominar os campos

Não podia furtar-se à glória de existir.

Vê-se que ele era um rei: era o rei dos gigantes!

Se a noite era só noite, e sem luar, então

Vermiculado em luz de lanternins ondeantes

Tinha na fronte, como heráldicos brasões.

Oh! como é boa a vida, a vida assim passada

Sempre entre festas, sempre em meio do prazer,

Com tudo ao pé de si, sem jamais faltar nada!

E sem jamais pensar que há de um dia morrer!

Ser a imagem vivaz da própria eternidade,

Ir sempre, progredir, nunca voltar atrás:

Como Deus existir, ser, e não ter idade:

Não perder, como o oceano, e o céu — o azul jamais!

XVII

Do Brasil foi do Ipê ao longe a história e fama,

E, parecendo um deus da Ásia exilado, quis

Vê-lo um dia por si sacerdote de Brahma:

Veio: os viu, os amou: eis a lenda o que diz.

Como tudo é mistério em toda natureza,

Ninguém tentou rasgar este mistério mais:

Onde há toda verdade? Onde há toda certeza?

Em que lugar do céu ou da terra o acharás?

Como veio e em que tempo abriu ele passagem?

Estava acostumado às fundas solidões:

Pelo caminho a luz foi-lhe a eterna coragem,

Que enche a mente, que sonha, e alenta os corações.

E esta pedra, que aí stá, quasi de forma humana,

E que um brâmane imita em êxtase de pé,

E que cobre um festão da amorosa Liana,

E dá-lhe um braço amigo e piedoso o Ipê.

O monge dizem ser, que viu a árvore enorme,

De muitos braços, como na Ásia os deuses têm,

E que morreu de velho a amá-los, e ali dorme,

E parece que ainda ali se sente bem.

Três sabiás, que sobre a cabeça pousando,

Cantam, quando o sol vem, e quando o sol se vai,

Fazem da pedra como um monge venerando,

A dizer em redor: — Vivei! Cantai! Amai!...

XVIII

Olho-te então, ó doce, ó branca americana,

Filha, como eu também, deste grande país:

E digo: — Por que tu não foste esta Liana?

Por que não fui o Ipê? Que deus isto assim quis?

O pai José

Era um pretinho velho o bom do escravo,

Mas velho, como era,

Vinha-lhe da alma exalação perene

De eterna primavera.

Não conhecia o peso das algemas:

Sua alma era a piedade,

Suspiro às vezes triste e involuntário

De mágoa e de saudade.

Por entre os fachos aurorais, às vezes

Num olhar fundo e longo,

Via surgir outeiros, vales, campos,

Choças, e enfim o Congo.

Fumo... visão... saudades!... Em torno estava

Loura, chilreante e bela

A matinosa multidão, enquanto

Mexia ele a panela.

Era o rei da cozinha: e a dominava

Com nobre desempenho:

Que ondulante fumaça enovelava

O seu cheiroso reino!

Tinha aquele portento nas mãos negras

A mágica vergasta: 

Com a colher, dizia a um, e a outro:

Nhonhô, afasta... afasta...

Fingimos fome... No país das fadas

Não há melhor cozinha:

Não cheira tanto, como estou lembrado,

Que ali cheirava a minha.

E o pai José, mostrando que ralhava,

Inda fidelidade

Guardada à nossa mãe, lá vinha um prato,

Com grande hilaridade

Recebido por nós: estas delícias,

Da vida ornato e enfeite,

Ele nos dava, como a aurora aos montes

Mel de oiro e branco leite.

E aqui jaz nesta rasa sepultura,

Sem pedra e sem letreiro,

O bom amigo, o pai José, o escravo...

O nosso cozinheiro!

Flores de gratidão derramo agora

Onde ele está sepulto:

São verdadeiras lágrimas, que choro

Sobre este chão inculto.

Ai! quando ele morreu, não levou tudo

Para a cova consigo:

Ai! que saudades nos deixou o negro...

O nosso pobre amigo!...

Sob essa crosta bárbara e sombria,

Que eterna primavera,

Que alma cheia de luz e de perfumes

Lá dentro não coubera!...

Quando, para estudar, da loira turba

Algum de nós fugia,

Emigrando, qual prófuga andorinha,

Que tristeza o invadia...

Chorava... Até que um dia já de volta

Chegava o senhor-moço...

Era um dançar de louco, em torno dele,

Um curvar de pescoço,

Bater de palmas, dar com os pés em terra,

E a tudo, que ele via,

Ao céu, ao sol, aos muros, e arvoredos

A bênção ele pedia.

Já lhe caíam lágrimas dos olhos,

Já ria, já gritava:

Era um vulcão, que a luz de mil auroras

Num instante entornava!

Veio a morte um de nós buscar um dia,

Que grandes gritos doudos!

Parecia chorar pelo universo,

Por si, e por nós todos!...

A dor profunda lhe abalava a entranha:

Ele a mostrava em tudo:

Chorava a dor, nas lágrimas chorava,

Chorava-a o lábio mudo.

Adeus, meu pobre preto, adeus! — Contigo

Minha infância querida

Dorme também da mesma relva à sombra,

Que te cobre a jazida.

Esta saudade adorne-te o sepulcro,

Porta da liberdade:

Ninguém ossário encheu de amor tão grande,

E tão grande piedade!...

 

A festa na escola

Poesia recitada pela aluna Carlina Delfino

Agradecimento

Obrigada, Senhora, em meu nome e no desta

Infância alegre e boa, áureo enxame ridente;

Temos no lábio agora uma frase somente,

Que canta dentro em nós e ilumina esta festa.

Em nós fervem, Senhora, as emoções mais vagas,

Que encherão de rumor nossas cabeças loucas,

Como as conchas do mar esplêndidas e ocas

Guardam dentro de si a Odisseia das vagas.

É chegá-las ao ouvido, e elas estão cantando;

Ouve-se o vento; as naus abrem as brancas velas,

E os cisnes colossais das grandes caravelas

Por entre os dois azuis vão trêmulos boiando.

Como um eco sem fim, fica em nós a lembrança:

O conviver da escola, o estímulo do estudo.

A ambição de saber, de compreender bem tudo,

A terra, o mar, o céu, os sóis, a eterna dança,

Que une uma estrela a outra, e o universo encadeia,

De saber que é também um astro o nosso globo,

De ir-se dele até Deus e de arroubo em arroubo

Recuar dele e parar num sutil grão de areia!...

Raça de Prometeus à rocha prisioneira

É nossa ânsia: asas ter, e ter nelas alento:

É por isso que a gente encara o firmamento,

Desde que se susteve em pé a vez primeira.

Seria bom saber, sem ser preciso esforço:

Mas nascemos bem como uma águia desplumada,

E subir os degraus da misteriosa escada,

Para ver bem quem leva o céu, e os sóis no dorso,

É o trabalho grande, é a nossa ansiedade!...

Ó torres de Babel, ousadias ferozes,

Que quereis os céus de águia e os céus dos albatrozes,

Sois a fome do azul, que endoida a humanidade!

Desde os Titãs guerreando os deuses solitários,

Pondo o Pélion no Olimpo e pondo o Olimpo no Ossa,

Cada instante que passa os mártires engrossa,

E enche a vala comum de heroicos legionários.

E haja estio, haja luz, canta logo a cigarra;

Já fabricando o mel divino a abelha nasce;

Nós temos o universo imenso à nossa face

E à treva oculto punho a humanidade amarra!

Eis a nossa revolta, ó Deus, que nada excita!...

É preciso lutar... lutar... lutar... lutemos:

Milhões de mãos jogando ao mar milhões de remos

Vamos ver em que porto aproa a nau maldita.

A faísca estelar em nossa carne gira:

Em cada gota de sangue inflamado e rubro,

Um dos nossos avós a trabalhar descubro,

Um que já conspirou e que inda em nós conspira.

Na catedral da escola, e no templo paterno

Aprende-se a viver da vida augusta e altiva,

E essas lições são como a marcha ardente e viva

De metálicos sons, sons eris de hino eterno,

Que em nós revivem como o eco soberano

No búzio esculturado ao molde do habitante,

Que escondido em seu bojo e enfrentando o gigante,

Viu de perto o combate entre os tufões e o oceano.

Há no ensinar um nobre, um sublime trabalho:

Vem o amor com que é feito ainda engrandecê-lo:

É a estátua a expressão apenas do modelo,

Ressente-se o buril do éreo beijo do malho.

Quando mulheres já, as épocas serenas

Buscamos do passado, e os encantos e enlevos

Dos dias de hoje, então como os baixos relevos

Do formoso frontão do Partenão de Atenas,

Odes brancas de escopro em páginas de Paros,

Brilhantes, como a luz do seu céu transparente,

Belos, como o seu mar, veremos de repente

Surgir a nossa infância entre perfumes raros,

Entre os grupos gentis de nossas companheiras,

Entre as graves feições e os adoráveis bustos

De mestres, pais, irmãos, obreiros bons, robustos,

Pondo em nosso caminho a orquestra das roseiras:

Este convívio de hoje, oh! quem de nós não sente

Que hemos salvar do olvido, onda que tudo invade?

Assim pode escapar e escapa à tempestade

Um ninho flutuando à tona da corrente!

A angústia do infinito

Love, love, nothing but love, still more!

Shakespeare - Troilus and Cressida

Quando ontem fui, e lhe bati à porta,

Respondeu-me uma escrava:

— Não stá — Não stá? Mas isso, que me importa?

Isso, que me importava!...

Desci a escada, em rápida carreira,

Oirado, em fogo a face;

Parei: gritei à escrava de maneira

Que ela ouvisse e voltasse:

— Sair... Então deixou-me algum bilhete? —

— Nada. Muito apressada

Saiu!... — Na mesa?... Olhaste o gabinete?

— Nada, Senhor — Pois nada?...

— Tarda muito? insisti com certo enleio —

— Quinze dias somente:

Talvez mais... — Uma viagem de recreio? —

— Não disse nada à gente —

Fiz ir o carro ao próximo arrabalde:

Disse: — ver outros numes:

Do aroma forte dos rosais embalde

Não terei os perfumes.

Fui ao teatro à noite; e noite toda,

Numa alegria eterna,

Aplaudi muito a dançarina douda,

Que mais erguia a perna.

Fui no entreato ao camarim vermelho:

Beijei-lhe a mão, que tinha

Discreto aroma; pus em terra um joelho;

Chamei-a de rainha.

A mão lançou-me à mão, — gentil, risonha:

Acendeu-me o desejo?

Não... um asco, a repulsa, um tédio, o pejo;

Ai! corei de vergonha!...

Fosse ela boa, fosse casta, e a Milo,

—A pérola no lixo,

Eu não a amava, eu não queria aquilo:

—Aquilo... era um capricho.

Que estranha dor! que insólita amargura!...

Com que alacridade

Ri... ria, que ninguém viu a loucura,

De me rir sem vontade.

Em casa, à volta, em leito sem cortinas,

Arrojei-me de bruços,

Só, convulso, vestido, de botinas,

Em delírio, em soluços!...

II

Dormi!? — Dormir!... — No soluçado arranco,

Não sei. — Numa agonia

Pior que a morte, retalhado o flanco,

Onde o punhal jazia,

Sentia a dor encadear-me ao leito!

As estrelas em coro,

Pareciam chorar sobre o meu peito

Suas lágrimas de ouro:

Pobres estrelas do papel pintado,

Que forrava a parede!

Havia embaixo um lago alvo, espelhado;

Quis beber... tinha sede!

Ergui-me um pouco. — Um trilho abria o barro:

Uma mulher vermelha,

De mão ilharga, e na cabeça um jarro

Sobre a acesa guedelha,

Parecia descer a escarpa ondeante,

Vir para mim num gesto

Torpe e mau de luxúria: e neste instante,

Oh! como inda a detesto!...

Voltei-me, cheio de indignação e nojo;

O papel do outro lado

Tinha um Baco, de pâmpanos coroado,

A rir de mãos no bojo.

Ninfas de cara rubra e mãos de chama,

Depois de uma vindima,

Ao ar, ao céu, bailando, os pés na grama,

A saia abaixo e acima,

Pareciam pedir um Fauno à gruta,

Hirto, magro, lanudo,

Meio inclinado, como quem escuta,

Como quem gosta, mudo.

Cerrei os olhos... Abri logo. — O morro

Muito verde, azulado,

E o vermelhão do trilho em frente!... Alheado,

Preguei o olhar no forro.

Tábuas de pinho, brancas de cerusa,

Em macho e fêmea, feias,

Pensei: que gosto mau tudo isto acusa!...

Quantas serão? — Contei-as.

Uma... duas... três... quatro... e cinco e seis... (O teto

Oscilou num fogacho)

Oito... errei: — vou contar de novo, inquieto,

Ruum! tudo aquilo em baixo.

Pó, — espirais, — a feila, um rolo... Ah! grito,

Olho... nada. — Levanto

Sobressaltado o corpo, opresso, aflito,

E um tremor... um espanto!...

Ar... ar livre, ar do céu, ar lá de fora,

Ar... ar... é que eu queria:

Vento crespo, que aos pés levanta a aurora,

Muita luz, muito dia.

Dormi? — Tentei: fora tão bom!... Caía,

Dorme, dorme... não dorme...

Sono... não: um cansaço: e uma alegria;

De sofrimento enorme!...

Um luar quente, a tépida brancura,

A cada dor sentida,

Iam-me entrando... entrando... enchendo a vida!

Se o ferro também cura!...

Queria dar-lhe assim, se ela a quisesse...

Como entendi o monge,

E o cilício!... se a cada dor, que cresce,

O céu stá menos longe!...

Fitei um quadro... A cena da janela:

Julieta de frente;

Romeu subindo: a noute digna dela,

Estrelada e silente!...

Uma pequena alâmpada, que o vento

Por vezes agitava,

Riscava na parede do aposento

A careta da escrava.

Um relógio de pêndula, escondido

Num ângulo, à direita,

De mim zombava, a cuspinhar-me ao ouvido;

— A preta, a preta, a preta... —

E a imagem dela, enfim, que me sorria,

Atravessando a sala,

Ia fugindo... lentamente... ia...

Numa névoa de opala.

III

Tinha a Ilíada ali... O texto grego

A um lado, ao lado oposto

Versão: — quis ler: só vi seu meigo rosto,

Meigo... mas muito meigo.

Sófocles! Hum!... Eurípides?... enervante.

Ésquilo? um bruto: assoma...

Horácio?! Horácio... o poeta, o escravo, o amante

Das patrícias de Roma...

Lídia era bela, lúbrica Barina,

Liceia era de Vesta,

Aquela branca, esplêndida, divina...

Esta melhor... mas... esta!...

Glicéria tinha as mamas resplendentes,

De mármore de Paros,

E as escravas serviam-lhe os olentes,

Os falemos mais raros:

Rosas, verbenas, pérolas de incenso,

O corpo aurilavrado,

Num níveo seio de mulher moldado,

Num par de asas suspenso;

O altar de relva ornado, intenso o aroma,

Rendilhadas fumaças,

E o explodir triunfal da vida em Roma,

Junto ao explodir das taças;

E os perfumes abrindo-se num manto

De oiro por céus serenos...

Dava tudo à romana e inda o seu canto,

Perseguido de Vênus...

Ó cristalizações de luz, divinas

Visões arrebatadas

Do tempo à tona, em asas peregrinas

De ritmo esculturadas;

Moças do Lácio, cuja voz sonora

Metia ele em seus cantos;

E agora o vinho, e o amor, e o riso; e agora

A raiva, e o ciúme, e os prantos,

Embalam-se, entre vossos longos cílios,

Lagos de azul tranquilo;

Laçarias de sons, pombais de idílios

Borda-lhes fino estilo:

Lapida o sonho e a forma na tableta,

Os sóis nela mistura,

Nesgas do céu estende, e irrompe feita

De sons a formosura.

Quero aprender a cinzelar teu hino,

Quero-te a lira eterna...

Não... não... Petrarca, o nosso amor divino,

Cante musa moderna.

O que conto pausado, em mole ritmo,

Ao trotar frouxo e brando

Das parelhas irmãs da estrofe, um cimo

Era apenas tombando...

O Olimpo todo a cascalhar em ode

Pompeante e guerreira,

Um pegão de mulheres, que sacode

Um hino aos sóis em poeira!

IV

Quimeras!... Procurava em vão a estante,

Olhando, em volta, o quarto:

Baco maior, crescera, era um gigante,

Bonachão, rindo, farto.

Romeu descia a escada: Julieta

Toda inclinada, toda...

Parecia fazer-lhe uma careta,

Meio a rir, meio douda.

O outro insistia: — a voz esganiçada

De uma velha matreira,

Em grande touca de abas enterrada,

Cortava a brincadeira...

Parecia-me ouvir o último beijo

Da moça delambida,

Como uma nota trêmula, rangida

Nalgum velho realejo.

A luz subia a orla do horizonte...

Cantava a cotovia:

Passos, rumor de gente a andar, defronte;

Por quê? não sei: eu ria.

Acabei por tremer num rir convulso...

Via passar ao longe,

Levando as tripas dum rosário ao pulso,

Hirto, em cabelo, um monge.

Logo atrás dele duas sepulturas...

Duas... por que só duas?

E atrás, atrás um bando de figuras

Esguias, negras, nuas...

Correndo, enovelando-se, caindo,

Em massa, em redemoinho...

Até que enfim sumiam-se em caminho...

Via-os raivoso, e rindo...

Baco... voltei ao Baco rubicundo:

Julguei que se mexia!

Que riso alegre e bêbado não ria!

E o riso é o rei do mundo!...

Parecia girar, a rir, sozinho,

As nádegas torcendo;

E a adega, — o bojo — como um mar de vinho

Ondulando, mexendo...

De repente lembrou-me de ter visto,

Numa gravura inglesa,

Outro Baco... um nariz, um bojo... isto:

E a pança muito tesa,

E a larga cara rubra, e sem vergonha,

Baco de carne e osso;

A boca cheia de malícia e ronha,

Beiço maciço e grosso,

Cantos da boca um pouco descaídos,

Um ar de falso orgulho;

Ricos, porém safados os vestidos,

Fartura de barulho...

Era Sir John Falstaff: — o coitado,

Magro, como um cachorro,

Sonolento, amarelo, azul, deitado

Balbuciava: — eu morro...

Tinha crido no vinho e na cerveja,

No lombo e no chouriço;

E ouvia missa, e frequentava a igreja,

Quando lucrava nisso.

Por que, não sei. — O Homero da risada,

Como Gargantua e Sancho,

Um burguês fanfarrão de capa e espada,

Nédio, vermelho, ancho,

Cauteloso da pele e da barriga,

Pacato e rechonchudo,

Como o via morrer no fim de tudo?

Não me explicava a intriga.

— Mau grado meu, a uma tal dança assisto,

Meu vermelhão borracho!...

Pensava: — e uma hoteleira, escada a baixo,

Trazendo à mão um Cristo

De marfim, velho, escuro, e o diadema

De espinhos à cabeça,

Parou um pouco: e eu disse-lhe: — não trema,

Ande depressa, desça.

Ela desceu. — Na mesa à cabeceira,

Em cambraia de Holanda

Depôs o Cristo de cabeça à banda,

Entre velas de cera.

Feito, voltou; a alcova ao céu abrindo,

Olhava uma janela

O rio; o sol, e a luz entrava nela,

Saltando, ondeando, rindo,

Como uma dançarina luminosa,

Numa roupagem branca,

Que sobe a corda de metal lustrosa,

Pula e aplausos arranca.

Sir John ria. — O rio então baixava

Num largo movimento,

Aos poucos, devagar, sem pressa, lento,

Sem qualquer onda brava.

Ligeira brisa, mal ruidosa, olente

Das algas e mariscos:

E ao longe o campo, e a sombra a espaço e os riscos

Dos troncos, longe, em frente;

O campo verde, a tinta do arvoredo,

A luz do meio dia,

Como uma boa folha de Toledo,

Cortava e repolia;

E a argila, e a pedra, e as casas da cidade,

O tijolo amarelo,

Troncos, relvas, jardins, tudo era belo

Naquela claridade.

Bordando o azul vidroso e transparente,

Em meneios macios,

Nas águas, sem marulho, e lentamente

Mexiam-se os navios.

Um, que voltava as asas prateadas,

Como um monstro marinho,

Dando voltas, cantando em roda ao ninho

Das ondas espelhadas,

Cisne enorme, num trêmulo arrepio

Das eriçadas plumas,

Como um idílio, ia descendo o rio

No lírio das espumas.

Era um desenho límpido no espaço

Aquilo tudo em torno,

A luz, a sombra, o ângulo, o contorno,

A forma, a linha, o traço.

Cerrando os olhos, pondo a mão na fronte,

Um instante a matrona,

Enquanto John parece que ressona,

Percorrera o horizonte.

O cabelo vermelho à luz ardia:

A ignição fina e doce

Dava-lhe chispas de afiada fouce

À estampa luzidia.

O sol a pino tudo açacalara;

Metera tudo em chama:

E John grotesco a rir, convulsa a cara,

Batalhava na cama.

Os lençóis encardidos remexia

Em voltas impotentes;

E para os dedos trêmulos sorria,

Mostrando os sujos dentes.

— São flores... flores... Veio a primavera...

Campos verdes... há flores...

Logo... mais tarde... agora não... espera...

Irei... depois que fores...

A caseira: — Sir John Falstaff, escuta:

Calma, sossego... filho... —

Ele: — Não vou... não vou... por mais que lute...

Um trilho!... Um trilho... Um trilho!...

Por aí vai-se à casa dos planetas,

Aonde os deuses moram!

Também há disso? Eu vejo estrelas pretas...

Que de cousas se ignoram...

Meu Deus! Meu Deus!... — gritou: e em voz não clara,

Quatro vezes ou cinco,

Baixo, — meu Deus! — e a face cor de zinco

Tremia e se afilara.

— Deixe-se disso, isso entristece, fere,

Assusta essa lembrança...

Depois... mais tarde... logo... há tempo... espere...

Coragem, John, confiança.

— Que diz lá, mocho? — Sir Falstaff, é cedo;

Não se aborreça: fale

Cousas alegres: vá, não tenha medo...

— Ele: — Está verde o vale,

Há flores... não?... há primavera? diga,

Não há, boa caseira?

Stou vendo flores, muita loira estriga...

Olhe... muita roseira...

Veja aqui: — e apontava dedo e dedo,

Arquejo sobre arquejo,

Delirando: — Ó Senhora: olhe um segredo...

Dei tantos... vá: um beijo. —

— Que quer, Sir John?... — Olhe, um Xerez bonito,

Cheiroso, alambarado.

Em vidro fino, límpido, esquisito,

Em rosas mergulhado...

Junte... — parou: — o que, Sir John? — Que queres?

A memória!... Pedia...

Olha, na taça, mescla ao Malvasia

Três, ou quatro mulheres.

Riu-se: fora melhor chorar. — Esguia

Era a penca, escavada

A têmpora, caída a boca, — fria,

Negra a língua, gretada!

— Xerez!... tornou: um copo ao desafio:

Vinho, sim, não conselhos,

Olhe: primeiro cubra-me os joelhos;

Os pés depois: faz frio?

Que fio!... e cantam rouxinóis! E esta!

Com rosas as roseiras!

Mudou tudo! este inverno, e em flor as leiras!...

Acho irônica a festa!

Xerez, Xerez... ó miss, ó mãe, ó tia,

Da última vindima...

Cubra-me os pés... — Palpou-lhe a perna, fria!

Levou a mão acima,

Aos joelhos, à coxa, acima, ao resto...

Tudo estava gelado:

Deu-lhe o Xerez; mas não bebeu; num gesto

Pôs o copo de lado.

— Ele não lhe pediu mulheres, tia?

— Não me lembro... mas... ora!...

Se não bebeu o vinho, que pedia...

Deitava-as também fora...

— Pediu, diz um rapaz, ouvi pedi-las:

Ouvi, ouvi chamá-las;

Eu enchia-lhe disso inda as pupilas;

Punha-as por estas salas,

Por onde abrisse os olhos longamente...

Pôs John as mãos nos ares,

Levantou para o céu os seus olhares,

E riu-se de contente.

E para ver melhor, abria, abria,

Grandes, longos, redondos

Os olhos, pouco e pouco e sempre, e pondo-os

Nalgum sol, que fugia...

Duas lágrimas grossas, luzidias

Depois... (e inda ando a vê-las)

Rolaram pelas suas faces frias,

Como duas estrelas.

Na cara havia um longo e mudo choro:

Na boca muito aberta

O barulho do céu, quando desperta

O sol num trono de oiro.

Sim!... qualquer cousa, uma mulher formosa

À porta do infinito

Sperava-o já: lançou-lhe a mão ansiosa,

E um grito... o último grito!...

Tremeu: ficou um mármore. Mais nada!...

Podeis mandá-lo à terra,

Boa mulher: é morta a gargalhada

Imortal da Inglaterra!

Urrou a horda à porta da hoteleira:

E foram-se cantando:

Mas no dorso de cada mão grosseira

Os olhos enxugando...

V

À grita, aos passos acordou: sonhava?

Eu não sei: eu tremia:

Falstaff estava morto... eu vi, chorava...

Stava morto, inda o via!

Mas, de repente, os três encontro-os juntos;

John, Gargantua e o Pança,

Rindo, como podiam rir defuntos,

Berrando-me: — descansa,

Pela confusa história trabalhada

Em meu cérebro ardente,

Dormi... talvez: não descansara nada;

Mudara a dor somente...

Cansado, cheio de fadiga, morto,

E vivo a um tempo, via

Passar um monstro alado, e o olhar absorto

Da fera reluzia!...

Livros, que lera, quadros, bronzes, lava

De pedras multicores,

Num caos de luz, num nimbo de vapores,

Tudo ria, ou chorava!...

Outra vez, novamente o Baco, e cheio

De estrondosas risadas,

O céu alegre, e as ninfas desgrenhadas,

O colo nu, e o seio...

O arruído dos pés, o campo, a dança:

As deusas em crescente

Bamboleio, — e o nariz, a perna, a pança,

E o gesto impertinente

Da mulher, que descia... taco... taco...

Na bulha das tamancas,

Bolindo e rebolindo, — o olhar velhaco!

Anchas, ferozes ancas,

E o jarro escuro, untuoso, esguio, feio,

Pregado à coma hirsuta,

A cara alaranjada, enorme o seio,

Porca... aaah!... e astuta... astuta!...

Fauno, piscando os olhos reluzentes,

No chão batendo as patas,

Entornava da flauta os estridentes

Ecos por essas matas,

Pela clareira, em volta, ao pé, em bando,

Numa fita vermelha

De aves de fogo, ao cio, ao amor, cantando,

As duas, em parelha,

Via as estrelas, em sonoro enxame,

Trançando e destrançando

Voltas, coreias lúbricas, arfando

Nuas, num jogo infame.

O espalto, a luz, a cor, o iriar das chamas

Tinha o rangido, a grita,

A traição, o rir mau, o rir das camas,

Em que amplo o amor se agita.

Tripudiava o papel todo aos meus olhos:

O lago luzidio

Mostrava-me a dentuça dos escolhos:

E eu tinha frio... um frio!...

Zim... Zim... Zim... Zim... Zim... Zim... Zim... Zim... Zimbindo,

Zunindo, num cardume

Espesso, uns vermes iam-me tingindo

O ar de um verde lume;

Um morria; outro ardia em luz fosfórea,

Falsa, abracadabrante,

Fugaz, torcida, zigzagada... história

De susto a todo instante...

Fugir disto, ir ao ar, ar livre, ar franco,

Ir... fi... como um foguete...

E agarrava-me à cliva, ao colo, ao flanco

Da sombra de um ginete...

E era um trotão: e embaixo aberto um valo!...

Eh! Hupa... hupa... hupa...

Nada... e zás, dentro dele eu e o cavalo...

Eu chumbado à garupa.

E aí, assim, no fundo, embaixo, vivo,

Não golpeado, não morto,

Apalpava o escondrilho, pensativo,

Mudo, espantado, absorto;

Agarrado na cama, enrodilhado,

Encolhido, arco em arco,

Numa náusea, em suor, era arrastado,

Qual na tormenta um barco.

A falsa sensação continuava

Logicamente o estrago:

Que frio!... mas por que, e como estava

Dentro, na água do lago?

Um lago de papel!... (e o verdadeiro

Mesclava-se ao insensato)

Mas enfim eu lá stava inteiro... inteiro...

O corpo, a carne, o fato.

Escangalhada, num balanço lento,

Ruído abafado, morno,

Ia a alcova descendo, ar frio, e um vento

Em volta, em giro, em torno.

Era a febre! O veneno de Lecusta

Mata... logo matava!...

Este outro, o amor, pior, mais lento, custa...

A terra cava... cava...

Obreiro arguto, a luz da primavera

Para a cheirar; renova

Os golpes, dois, mais dois, mais três... Espera:

Canta... e rindo abre a cova!...

Quando disto saí, como de um poço

De lágrimas tirado,

Pus a cabeça ao sol, faces, pescoço

E o corpo inda molhado!...

VI

Ela voltou, correto o seu vestido,

As duas mãos pequenas

Enluvadas, e ao ver-me emagrecido

Riu-se, notando-o apenas.

E disse um dia à mais formosa amiga,

Meio encostada à cama...

— Queres enfim... tu queres que te diga?

Acho, que ele me ama...

VII

Nunca viste engolir um mundo a esfera?

Um astro desplumado?

O esqueleto de um sol sem luz? — Tolera

Ver-me aos teus pés prostrado,

Dizer-te: — olha, vê tu, se te aconselhas

Com o jovem sol, que nasce:

Que deixe o beijo das manhãs vermelhas

Eterno em tua face.

Dize ao céu, que não é nenhum desdoiro,

Nem para um deus, ter zelos,

Deixar o oiro das estrelas de oiro

Eterno em teus cabelos.

Pede à luz, tua irmã mais velha apenas,

Que nunca se rebele,

Que cante, oculta em moita de açucenas,

Eterna em tua pele.

Manda a força tirânica, que impera,

Que em tudo se revela,

Que prenda aos passos teus a primavera,

E o eterno aroma dela:

Que este universo, que outro arrasta, e rola

Em torno de milhares,

Venha pedir, chorando sóis, a esmola

De um só dos teus olhares...

VIII

Oh! dirão que é loucura ao meu desejo!...

Quem é o sábio e o doudo?

Não pesa mais que o hálito de um beijo,

Este universo todo.

O sol, os sóis, o que enche a esfera, a chama,

O abismo, o abismo inteiro,

Deuses, vos digo, que isto tudo é lama:

Vale o sol um argueiro...

Fizera o argueiro e enchera os céus profundos:

O trabalho mais sério

É ter espaço para pôr os mundos.

Eis o grande mistério!

Eu sou um pobre Encélado revolto,

Preso, vencido, atado,

Neste pequeno ergástulo deixado,

No ar, no espaço, solto.

Eu, que não sei dar vida a um grão de areia,

Eu, que ando a ver estrelas,

Que te pusera aos pés uma mancheia,

Se pudesse prendê-las,

Eu guardarei na lira, que dedilho,

Por toda a eternidade,

A sombra de oiro, o esplêndido rastilho

De tua mocidade.

IX

Quando cheia, porém, de noites fores,

Verás sobressaltada,

Que as ânforas dos sóis onicolores,

Não, já não têm mais nada.

Verás o tempo, enquanto te descuidas,

Que mortos lírios lança

Sobre as cascatas cambiantes, fluidas

De tua louca trança!

De um lado os sóis, e de outro um verão, (cismo)

Que pesa mais? — Não rias:

No fundo vão e azul das teogonias

O abismo enlaça o abismo.

E eu dei-te a eternidade em cada verso!...

Ó louca, que fizeste?

Um pouquinho de amor vale o universo:

E o que há de mais celeste?!

Verás que o tempo oxida o firmamento;

Que a dança dos planetas

Não tem mais pompa e vai sem movimento;

E em voltas imperfeitas,

O ditirambo alegre das orgias,

O fugato das cores,

Da golelheira luz as harmonias,

Epodos triunfadores,

Repetem, sob os arcos nus da esfera,

Arfando de fadiga,

Num cansaço, arrastada a voz, a espera

Que a festa não prossiga.

X

Sentir de perto em teu sovaco o cheiro,

Um fio de cabelo

Perto de mim, em mim, o corpo inteiro

Parecia prendê-lo.

Mais amor, que te dei, quem dá-lo pode?

Porque vi um pedaço

Quase no fim do teu formoso braço

Esculturei-o em ode.

Por dentro e fora iluminada em festa,

Em soalheira alegria:

E eu, para ouvi-la, à terra, e aos céus pedia...

E eis dela inda o que resta:

— Quando das roupas um pedaço fino

De carne deslumbrante,

Harmoniosa e musical, num hino

Guerreiro e triunfante,

Como nas grandes marchas vitoriosas,

Tudo o que brilha ao vento,

Escapa, rola num deslumbramento

De estrelas desfiladas,

Busco a ode sonora, em luz, na pompa

Real de um manto rubro,

Que a estrofe, que a antístrofe, e o epodo rompa,

E guarde o que descubro

Da tua quente carne, que palpita,

Corusqueia, cintila,

E põe-me os sóis da abóbada infinita

A arder sobre a pupila!... —

Não tinha fim... um drama em três mil atos,

Faze apenas ideia,

Tinha aos meus pés o céu, e o Olimpo, e o Atos,

A Ilíada, e a Odisseia.

Um rumor de metáforas pomposas,

Um luxo levantino,

Tufões de céus, e turbilhões de rosas,

Arcarias de um hino,

Um hino largo, rubro, auriflorido,

Metálico, estrelado,

Pelo infinito em lágrimas cantado,

Depois de o ter ouvido:

Áureo, cróceo, vivaz panejamento,

Com muita pedraria,

Mais luz, mais sóis, que em todo o firmamento,

Cada estrofe vestia!

XI

Este clamor não te parece um grito

De Titão esmagado?

Sinto em mim todo o peso do infinito,

A que estou condenado.

Tenho na fronte de gilvazes cheia

A cicatriz do orgulho:

E lanço ao céu a indômita cadeia

Com todo o seu barulho.

Deuses, dai-me, ou roubai-me o céu aos olhos:

Deitar-me à cara, à fronte,

Os astros, como escolhos sobre escolhos,

Ou monte sobre monte:

Que eu sinta a voz terrível do universo,

E os astros deslocados,

Tudo em cima de mim: só eu submerso,

Mas de punhos cerrados:

Que eu matara ao universo e vos metera

Em prisão nos espaços,

Só para tê-la uma hora, uma hora inteira,

Uma hora entre meus braços,

Mas... melhor fora a esfera sossegada,

E eu amoroso e mudo

Rindo aos seus pés; e o dedo seu de fada

Segurando isso tudo!...

XII

E depois que ele deixa o firmamento,

Que à terra, enfim, se lança,

Depois, depois do último tormento,

Da última esperança,

Olha, o grito maior do pelicano

(E que isto te console)

Grito igual ao que sai de um peito humano!...

Não é o dar-se à prole,

Lacerar com seu bico a própria entranha,

Ver que o sol escorrega

Dos seus olhos, e rola, e cai, e o banha

De uma poeira que o cega:

Star vendo o sangue, que borbota, e corre,

Que engolem com ruído...

É por morrer uma vez só, que morre,

Dando aquele mugido!...

Por não poder mil vezes pela prole

– Morrer, – com esse grito,

Enquanto ele se farta, e o sorve, e engole,

Apedreja o infinito.

XIII

Esta loucura de te amar, acaso

Posso conter? Pois ousa:

Faz que o sol pare ao oriente, a lua ao ocaso:

Vê: tenta qualquer cousa.

O epitalâmio, que o argueiro canta,

Trepado noutro argueiro;

A luxúria da terra, o amor da planta,

Acaba isso primeiro;

Suspende as maldições do mar perverso:

Contém o torvelinho;

Anula o berço, despedaça o ninho:

Fu... u... u... u!... apaga o universo...

Uma cegueira!... um turbilhão de pólen

Enchendo o céu e a terra:

E o amor!... e o amor!... — E ao pé do amor a guerra,

E os sóis, que se entrengolem!...

Faz as covas a morte: a desfazê-las

Desce o amor, e renova,

Com toda podridão, que achou na cova,

O clarão das estrelas...

A eterna história, a eterna queixa, o grito

Que sai dos lábios fora!...

É o amor que nos ceva e nos devora,

A angústia do infinito!...