Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

O Cristo e a adúltera, de Luiz Delfino


Texto-fonte:

Luiz Delfino dos Santos, Poesia Completa, org. de Lauro Junkes,

Florianópolis: ACL, 2001, 2 v.

ÍNDICE

 

Eras do amor

Estátuas de hoje

Vergiss mein nicht

Eu e os Césares

Flor de parasita (1886)

Versões

Victor Hugo

O dedo da mulher

A natureza

Baudelaire

O veneno

Teófilo Gautier

Niobe

H. Heine

Intermezzo - XLI

Francesco Petrarca

Em vida de Laura (Paz não tenho...)

Em vida de Laura (Feliz em sonho...)

Em vida de Laura (Em que parte...)

Em vida de Laura (Neste meu dúbio...)

Na morte de Laura (Aquele belo rosto...)

Na morte de Laura (Quando vejo do céu...)

Na morte de Laura (Seus olhos, que eu...)

Byron

Poesias diversas

Campoamor

O pai, o filho, o cão

Catullo

À Lésbia

Ziguezagues

O Cristo e a adúltera

Eras do amor

A M. R.

Busca-se um céu estranho ao céu que vemos,

E um anjo em voos deste céu senhor!...

Talvez exista!... a tarde é triste: sonha-se!...

É a esperança do primeiro amor.

Acha-se um anjo na mulher querida:

Bem como o aroma que trescala a flor,

Ela nos enche de perfume a vida...

É o sorriso do primeiro amor.

O céu é claro e transparente; a lua

Nada no azul em lânguido palor...

Furta-se um beijo tímido... e desmaia-se...

É a ventura do primeiro amor.

Um dia — cedo — o talismã se parte,

E a sombra passa da primeira dor...

Fica a mulher; e o anjo foi!... Gememos!

É o gemido do primeiro amor.

Pouco depois a mocidade morta

Sobre o passado — mar sem fim nem cor —

Boia abraçada ao anjo seu... Choramos!...

É a saudade do primeiro amor!

 

Estátuas de hoje

Sim! é bela esta estátua, é obra primorosa;

Modelou-a um artista ousado e inteligente:

Só lhe falta sentir; — mas parece que sente;

Tanta expressão lhe aviva a face esplendorosa.

É Vênus, é Vestal, é Diana; tem tudo:

Uma constelação num pedaço de Paros:

Parece que hoje em dia os Fídias não são raros,

Pesar do jornalismo a respeito andar mudo.

Notem bem o calor da pele delicada,

Fios de oiro em lugar de áureos finos cabelos,

Dois olhos que têm luz enrolada em novelos,

E o abandono do andar de princesa enfadada.

É um progresso. —Nunca o estatuário heleno,

Ou o artista romano esse ar à pedra imprime,

Nem mesmo Prometeu, em mundo mais pequeno,

Quando o mármore move ao fogo do seu crime.

Dizem que um dia vendo um mármore já morto

Dessas estátuas, um cirurgião eminente

Autopsiou-o e achou, entre calmo e absorto,

Das vísceras faltar o coração somente.

Havia no lugar em que o músculo não stava

Uma poça de pranto e metal derretido,

Como entre o crepitar de liquefeita lava,

Oiro que rola e cai por abismo perdido.

Vergiss mein nicht

Ricorditi di me...

Dante — Purgatório

Não te esqueças de mim quando algum dia,

Ai! te disserem que morri enfim:

Tu, que foste minha última alegria,

Não te esqueças de mim.

Não te esqueças de mim: no rosto rubro

Da dor que hás de sentir, me vendo assim,

Uma lágrima triste eu já descubro...

Não te esqueças de mim.

Não te esqueças de mim: uma saudade

Dirás, — trazer ao seu sepulcro vim... —

Que prazer sentirei! Oh! por piedade,

Não te esqueças de mim.

Não te esqueças de mim ou vivo ou morto,

Na dor ou no prazer, — luto ou festim:

Sê na vida ou na morte o meu conforto...

Não te esqueças de mim.

Não te esqueças de mim: mas se um momento

Te esqueceres, que tudo esquece enfim,

De novo morrerei: guarda-me o alento

Não te esqueças de mim.

Não te esqueças de mim: na asa doirada

De um teu irmão, um loiro serafim,

Virei do céu dizer-te: — Ó minha amada,

Não te esqueças de mim.

Não te esqueças de mim... Quando voltares,

Na palidez sem brilho do marfim,

À pátria eterna, eu te direi dos ares:

Não te esqueças de mim.

 

Eu e os Césares

E que me importa a espada de Alexandre

Que a Europa, a Ásia, a África conquista?

César, Pompeu, Napoleão o Grande,

Quando te tenho, ó minha amada, á vista?

Com eles só num ponto me comparo,

Pois perderam a terra conquistada:

E eu te posso perder, ó minha amada,

Conquista de um tesoiro inda mais raro.

Sós não fizeram eles suas guerras:

E eu era só no meu amor imerso;

Eles apenas conquistaram terras,

Eu conquistei a joia do universo.

Deles não resta um campo de batalha,

Issus, Granico, Iena... Maratona...

Que um só dos favos dos teus beijos valha,

Quando o céu aos meus sonhos te abandona,

Quando um anjo nas asas rutilantes

Traz-me tua alma — um floco de brancura —

E quando durmo e dormes, — palpitantes

As nossas almas numa só mistura;

Como um lago que ao encontro de outro veio

E por um ponto se confunde e liga:

São dois, são um: — o seio contra seio,

Ó minha doce, Ó minha santa amiga.

Que pois me importa a espada de Alexandre

Que quase o mundo para si conquista?

Não há César, não há vencedor grande,

Quando eu te tenho, ó minha amada, à vista...

 

Flor de parasita

Tem a flor de parasita

Bom perfume e bela cor:

De bem pouco necessita,

Para ter vida esta flor.

Um tronco seco em que estenda

As raízes: para mim,

Da vida na triste senda,

Nem galho seco e ruim.

Nada. — Um pálido sorriso

Onde pôr o coração,

Quanto me fora preciso

Para viver: porém não.

Nada. — A flor de parasita,

Que assim tão linda nasceu,

De bem pouco necessita:

Pois inda tem mais do que eu.

 

Versões

Victor Hugo

 

O dedo da mulher

Canções das ruas e dos bosques

Deus fez uma joia; frágil,

Misterioso alfenim,

Da sua mais branca argila,

Do seu mais puro caulim.

Fez, ó mulher, o teu dedo,

Primor augusto e gentil,

Dedo que na alma nos toca,

Que nos mostra o céu de anil.

Meteu nesse dedo o resto

Da luz, que vinha de atar

À fronte aérea da hora,

De que a aurora vai raiar.

Pôs nele o tremer do berço,

Pôs nele a sombra do véu,

Alguma cousa da estrela,

Um nada de ave do céu.

Deus o azul misturando

Nesse dedo, o quis fazer

Bem branco, pra ser bem puro,

Bem forte, pra terno ser.

E bem bom, porque não saia

Dele o mal alguma vez,

Dedo, que Deus fez pequeno,

Mas como o seu dedo fez.

Com ele ornou a mão de Eva,

Esta casta é débil mão,

Que qual sonho pousa à fronte

Dos pobres filhos de Adão.

Esta mão incônscia e humilde,

Que o incerto homem conduz,

Que estremece transparente

Do destino à tíbia luz.

Mulher, na tua apoteose...

Anjos, que os olhos baixais,

A beleza é pouca cousa,

A graça não é demais.

É preciso amar. — Flor, vaga,

Alcion suspiram com dó;

A graça é só um sorriso,

A beleza um raio só.

Deus, que quer que Eva apareça

Ante nós — no mesmo chão —

Fez para o amor a carícia,

Para a carícia tua mão.

E quando este dedo amante

Da argila tirou enfim,

Alegrou-se: — o Deus supremo

Se orgulha de obras assim.

Ei-lo!... disse aos anjos, quando

O belo dedo acabou.

Depois dormiu... O diabo

Logo... ali logo acordou.

No abismo em que Deus repousa,

Toldando o oriente surgiu...

Do dedo róseo à pontinha

Pôs uma unha... e sorriu. —

A natureza (As Contemplações)

Mármore os rios são, granito a terra,

Engelha-nos o frio, eis chega o inverno:

Queres, boa árvore, ser em nossa casa

O fogo do natal? —

Fogo, me elevo

Aos altos céus, do solo eu tronco saio:

Corta, bom lenhador. Homens, mulheres,

Pai, avô, aquecei as mãos ao fogo,

Vossas almas em Deus. —

Queres, boa árvore

Ser timão de charrua? —

Sim; o limo

Profundo e espesso todo revolvendo,

Da terra arrancarei a espiga de oiro.

Quando pela planície a relha passe,

Vereis os campos todos loirejando,

E dos sulcos por ela enfim rasgados

Sair a paz com olhos luminosos,

Erguer-se a aurora desmanchada em risos. —

Árvore bela, verdejante, umbrosa,

Senhoreando a balsa, árvore, aonde

O cabrito montês abrigo encontra;

Queres ser um pilar da casa do homem? —

Corta. Eu bem posso suportar os tetos,

Como em meus seios suportei os ninhos;

Sagrada é tua habitação, ó homem,

Eu a bendigo... Aí no amor, na sombra

Tu te recolhes pensativo, e as crianças

Farfalham, como as folhas que murmuram. —

Árvore boa, dize, acaso queres

Ser mastro de um navio? —

Amo ser pássaro:

Corta, bom carpinteiro: olho o navio,

Como olhais no profundo arcano o túmulo,

Ele me arranca à terra, e palpitando

Através o infinito me arremessa.

Irei ver esses céus enormes, onde

Nunca o inverno habitou, e na passagem

Hão de falar-me enxames de existências:

Como o sepulcro não aterra o sábio,

O profundo oceano envolto em sombras

Não me apavora. Corta. —

Árvore, queres

Ser patíbulo? —

Não: cala-te, homem,

Vai-te, machado, para longe... À vida,

À vida cheia de indignação pertenço.

Juiz, some-te, afunda-te, carrasco,

Fugi, demônios. — Sou a árvore dos bosques,

A árvore dos montes: cubro a relva,

Enchem-me o seio sazonados frutos.

Deixai minha raiz, deixai meus galhos:

Ide. — Homens, matai, nadai em sangue,

Ó obreiros da morte, ímpios e duros:

Mas não vinde arrastando ferro e cordas,

No meio destes robles gigantescos,

Um cúmplice buscar. Em vossos crimes

Não façais com que a árvore vos sirva,

A árvore augusta, cheia de mistérios,

A quem segreda o vento. Na asa lôbrega

Trazem as nossas leis tremenda morte;

Eu sou filha do Sol, sede-o das trevas.

Fugi. Deixai em seu deserto a árvore,

Nos vossos jogos, nos prazeres vossos,

Junto aos vossos festins, e aos vossos cantos,

Esposai o suplício à forca: —seja:

Fazei-o: ponde a morte ao pé da vida,

Matai no espaço duma festa a outra

O infeliz acurvado à culpa, e aos males,

Que eu aos meus galhos não mistura espectros...

Baudelaire

O veneno (As flores do mal)

Veste o vinho a mais sórdida palhoça

De um luxo milagroso:

E no oiro de um vapor rubro, que engrossa,

Faz surgir mais de um pórtico, que roça,

Como um sol, que descamba, um céu nevoso.

Dilata o ópio o ciclo do impossível:

Alonga o ilimitado;

Afunda o tempo, e o gozo inexcedível;

E de um morno prazer, negro, terrível

A alma encharca, inda além do que lhe é dado

E nada disto vale o tóxico horrendo,

Que teus olhos distilam,

Lago amargo, em que cai a alma tremendo:

Abismo, em que meus sonhos, que cintilam,

Como em verde lagoa, estão bebendo.

Não vale nada a baba de tua boca,

Que tem prodígio enorme:

Aí sem pena uma alma se sufoca:

Aí no olvido esmaia, e inerme toca;

E a morte acha-a na lama, em que ela dorme...

Teófilo Gautier

Niobe (Poesias diversas)

Um Fantasma de mármore sentado

Num pedaço de pedra, as mãos no rosto,

No joelho o cotovelo, os pés na terra,

Eterno chora um íntimo desgosto.

Que mágoa acurva-te a abatida fronte?

De que poço de dor tiraste o pranto?

Que sentes tu no coração de estátua,

Pra que os seios de pedra ergam-te o manto?

Os cantos dos teus olhos tantas lágrimas

No mesmo ponto e sempre hão gotejado,

Que um tanque, onde beber as aves podem,

Tens da coxa no mármore quebrado.

Niobe virgem, mãe das sete dores,

Símbolo mudo da miséria humana,

Do que os teus prantos no Calvário, ou Atos

Há maior rio em terra americana?...

H. Heine

 

Intermezzo – XLI (Poemas e legendas)

Fantástica história, alta noite de estio:

Num vermelho fulgor

Meu amor reluz magnífico e sombrio...

O meu sombrio amor!

Tímidos, mudos, sós buscando escusa trilha...

Tímidos, mudos, sós,

Andam pelo vergel a furto. A lua brilha.

Cantam os rouxinóis.

Pelo encantado bosque erram os dous amantes,

Tímidos, sós, os dous;

Vêm dos claros, ao longe, olhares deslumbrantes:

O luar lá dentro os pôs...

A alma estacou, bem como estátua, a amada bela,

Calma, serena e doce:

E o jovem cavalheiro ali diante dela...

Diante dela ajoelhou-se.

Chega alguém do deserto... um gigante... o colosso...

Foge a moça aterrada;

E mal ferido rola ensanguentado o moço

na relva ensanguentada.

Findou-se a história: e ainda em marcha brônzea e dura,

Pausadamente cada perna

Move-se, ao longe, o monstro, até que o engole a escura,

A escura boca da caverna.

Francesco Petrarca

Em vida de Laura (Em vida e na morte de Laura)

Narra a sua miséria, que atribui a Laura

Paz não tenho, sem ter motivo à guerra:

Temo, espero, ardo em fogo, e sou de gelo:

Quero subir ao céu, e caio em terra:

Nada abraço, e o universo ando a contê-lo.

Preso, a prisão não se abre, e não se cerra:

Prendem-me o coração, mas sem prendê-lo:

Não me dá vida ou morte Amor, e erra

Minha alma sob o enorme pesadelo.

Odeio-me a mim mesmo, alguém amando,

Grito, sem, boca ter, sem olhos vejo:

Quero morrer, e a morte me apavora.

A dor me apraz, e rio-me, chorando:

Não quero a morte, a vida não desejo...

Eis o estado em que estou por vós, Senhora...

Em vida de Laura

Diz que há vinte anos sofre amando Laura sem nenhum proveito.

Feliz em sonho, e em lânguido contento

Leva-me uma aura estiva, e a sombra abraço,

Vou mar sem margens, e sem fundo, e faço

Alicerces na areia, e escrevo ao vento.

O sol admiro, quando ele do espaço

A palpável virtude no opulento

Clarão envolve, e sigo enfermo e lento

Da corça errante e fugitiva ao encalço.

A perder-me não ser, sem luz, sem norte,

Procuro algum socorro, noite e dia,

E chamo o amor agora, agora a morte.

Amo-a, há vinte anos; que ganhei? Valia

Chorar tanto, e só ter tão triste sorte?

Sob estrela melhor nascer podia.

Em vida de Laura

Comenta a beleza da alma e do corpo de sua amada

Em que parte do céu, e exemplo, e ideia

Achou a natureza este modelo?

Que outro rosto em primor pôde excedê-lo,

Quando ao seu rosto o céu Deus encadeia?

Que ninfa à fronte, à selva enfim que dea

Lançou ao ar mais fino e aéreo cabelo?

Mais puro coração, quem pode tê-lo?

Mata disto minha alma a própria cheia.

Em vão qualquer beleza além se admira:

Só quem não viu, quão plenos de ternura,

Com que súplice luz seus olhos vira.

Quem de ouvi-la não teve inda a ventura,

Quem nunca soube como ela suspira,

Não sabe como o amor ou mata ou cura...

Em vida de Laura

Longe de Laura, teme nunca mais a ver, duvidando de sua morte e da esperança de ainda a ver.

Neste meu dúbio estado ou choro, ou canto,

Temo, espero, suspiro e em branda rima

Afogo a minha dor: amor esgrima

Contra mim todo o mal que pode entanto.

Hei de ver outra vez seu rosto santo?

Que Deus levou-a às regiões de cima?

Ou Ele só a minha vida anima,

Para que a chore em meu eterno pranto?

Queria o céu estrela radiante:

E Laura, o sol do meu viver, já erra

No céu: que lhe importou seu pobre amante?

E assim vivo em terror, a infinda guerra:

Não sou quem fui, e vago delirante,

Sem saber do caminho, o estranho à terra.

Na morte de Laura

Sofre por ter a morte extinto o sol da beleza humana e por não ter outro consolo senão ao vê-la em sonho ou na imaginação.

Aquele belo rosto esvaecido

E os olhos seus, ó morte, hás empanado:

Espírito mais belo separado

De um corpo mais gentil jamais há sido.

Em que instante este bem foi-me extorquido!

Fui dos acentos de sua voz roubado,

E a grande dor, em que caí prostrado,

Tirou-me a cor à vista, o som ao ouvido.

Mas em sonho ela volta, e me consola;

Tenho em sua piedade o meu recurso,

Dá-me a sua vista, como a um pobre, a esmola.

Se eu recontar pudera o seu discurso,

Que riso então a fronte lhe aureola,

Fizera amá-la até de um tigre ou urso.

 

Na morte de Laura

Narra que ao romper a aurora mais suspirava por Laura e a comparação das alegrias alheias exagera a sua miséria.

Quando vejo do céu descer a aurora

De oiro e rosas a fronte laureada,

Volta-me o amor, e digo: eis reclinada

Nesse palácio minha Laura agora.

Tu conheces, feliz Titão, a hora,

Em que o tesoiro encontrarás da amada,

Mas eu, só com a vida terminada,

Posso ir vê-la ao lugar, em que ela mora.

Vossa separação não é tão dura:

Vai-se a alvorada, e a noite após mais bela

Enche-te a coma branca de ventura:

Para mim dia e noite a sombra os vela,

Pois que a minha levou à sepultura

Tudo que era prazer, e vinha dela.

 

Na morte de Laura

Privado de Laura, não mais fará cantos de amor.

Seus olhos, que eu cantei ardentemente,

Rosto, pés, braços, mãos já não diviso:

De mim mesmo arrancaram-me, e o juízo

Para os ter, eu fugia a toda gente.

A crespa coma de oiro reluzente,

O lampejar do angélico sorriso,

Que fazia da terra um paraíso,

Não tem mais vida agora; é pó somente.

E vivo? e calmo tudo em torno eu olho?

Não tenho mais a luz, que amava tanto:

Sou como nau lançada em rudo escolho.

Morra; também meu amoroso canto;

De lágrimas a lira em luto eu molho:

Para chorá-la fique só meu pranto.

 

Byron

Versos gravados numa taça feita de um crânio humano (Poesias diversas)

Encerro em mim o filtro da alegria:

Não fui da morte a presa:

Não te amedrontes: outro não diria

O mesmo com certeza.

Beber e amar foi toda a minha vida.

Furtaram-me ao jazigo;

Bebe em meu crânio: mais devora o verme

Do que teu lábio amigo.

Taça, onde fervem vinhos espumosos

No festim que fulgura,

Melhor aí reino, que entre esses convivas,

Que enchem a sepultura.

Esgotem dela o espírito festivo,

Que já foi meu outrora,

Quem ao demo o mandou, bebendo nela

Bota as tristezas fora...

Anda: bebe depressa, a pleno copo...

Quando tu fores morto,

Outros hão de em teu crânio achar um dia

Forças, prazer, conforto.

E por que não, ó fútil criatura?

Que seja a tua sorte,

Crânio, que em vida bens não sabes dar-nos,

Dá-los depois da morte.

 

Campoamor

 

O pai, o filho, o cão (Fábulas originais - Lições amargas)

Subia um serro apoiado

O pai no filho: o tufão

Bramia desesperado: —

Acompanhava-os um cão.

Fraqueja o velho: era o peso

Mortal: não pôde seguir

De rastro, exausto, no teso...

E a neve em cima a cair!...

E enquanto acaba: caminha,

Diz ao filho, — foge, vai,

Adeus... — Responde-lhe asinha

O filho: — adeus, pois, meu pai... —

Salvo e inda perto, voltara

O rosto, e viu ele então,

Que onde morto o pai ficara,

Ficara também o cão.

Catullo

 

À Lésbia

Tu, Lésbia, queres que Catulo diga

Com quantos beijos o farás contente:

Põe um sobre outro os grãos do areal ardente

Da Líbia, onde Cirene o odor prodiga,

Que do templo de Jove onipotente

Vai do sagrado Bato à tumba antiga;

E amontoa depois, ó minha amiga,

As estrelas da noite erma e silente,

Que olham furtivos, terreais amores...

Conta: o insensato poeta necessita,

Quer, para mitigar os seus ardores,

Cifra assim ideal, longa, infinita,

Que não dê que falar aos faladores,

Nem sinta a inveja, inveja a tanta dita...

Ziguezagues

Nomen totum inane...

Cícero — Tuseul.

I

É... Tu não andas, tu voas:

E toda mulher assim?

As únicas cousas boas,

Que nos deixaram, enfim

Serão elas? — E este enleio,

Em que há prazer, mas há dor,

Será de ti que me veio,

Junto a não sei que terror?

Deixa um pouco esse ar severo;

Olha, esse ar não te vai bem:

Se soubesses o que quero?

Mas esse riso, a que me vem?

É como lâmina fria,

Que à boca rasga o coral:

Vilaniza essa ironia,

Humilha, fere, faz mal...

II

Se o meu amor fora um mundo,

O mundo do meu amor

Achara espaço assaz fundo,

Não sendo em ti, para o pôr?

O nosso globo flutua,

Sem pejo dos imortais,

Nu, junto a si sempre a lua...

Vou fazer como ele faz.

E é isto o que nos convinha:

Eu vastos céus abrirei:

Tu irás, como rainha:

Eu ao teu lado, o teu rei...

Por nosso caminho estrelas,

Muito barulho entre os sois:

Tu rindo delas, ao vê-las;

Eles com ódio de nós...

Se ouvires de algum planeta

Qualquer motejo chinfrim,

Com ele um outro se meta...

É ir... é ir... nosso fim.

E ciente é bom que te faça,

Que há uma constelação,

Que quando algum feliz passa,

Põe-se a ladrar, como um cão...

Tu quiseras contentá-la;

Eu quereria também;

Mas pobre! é muda, não fala:

Ou não responde a ninguém.

Foi-lhe o destino adverso,

E tradição há que diz,

Que inda lhe dando o universo,

Nada a faria feliz...

E enches-me tu o horizonte!...

E o teu suavíssimo olhar

É como a lua no monte,

E eu, como aos pés dela, — o mar!

III

Séria estás? Não ris agora?

Móbile é sempre o porvir?

Dos teus azuis desce, Aurora,

Chega-te a mim, vem-me ouvir.

Olha — ... vê... Sonhei que tinhas

Aos ombros, brancas, gentis,

Duas cândidas asinhas...

De nada mais saber quis...

Dos teus dois ombros de neve...

De cada um ombro, em que pus

Alma e vida, uma asa leve

Sairá mais leve que a luz?

Despir-te um pouco, é de certo

Necessidade fatal:

Ver tudo bem, ver de perto...

Crê: é só ver: não faz mal.

Meu sonho é bem feiticeiro,

Sai dele não sei que dó...

Mas sai também um bom cheiro:

E é este cheiro teu só.

Contudo vou pôr o dedo

Nos ombros teus, ambos dois:

Terei... (por ti sinto um medo!...)

Cegos meus olhos depois?

IV

E a onda eu sou, tu a sirte:

Tu és a sirte sem luz:

A bater, sem demolir-te,

Escolho, quem me conduz?

Que vento, que correnteza

Me vai levando ao parcel,

Para ti, triunfal beleza,

A mim, perdido batel?

Que destino te faz rocha?

Rocha, quem dura te fez?...

Flor, do cálix desabrocha:

Mostra-te em toda nudez:

Como a vaga pra os escolhos,

Anjos, para todos vós,

Sãos os gemidos dos olhos,

São as lágrimas da voz.

Agora não se mistura

Um homem com seres tais:

Rios de mel e ventura

Secaram, não correm mais.

Isso acabou-se de todo:

Não mais crer nisso é mister:

Não toca as asas no lodo

Mais anjo algum: Deus não quer.

Dera uma raça gigante:

És dela um modelo audaz:

Fora, clarões no semblante;

Dentro, uns novos ideais.

Muita revolta escondida:

Fundo olhar dos Prometeus:

Na terra, amor; no céu, vida...

A tempo esmagou-os Deus.

V

Aos milhões as primaveras,

Ricas, coroadas de sois,

Passaram: passaram eras,

Visões do tempo, por nós:

Tudo em vórtice grupado

Luziu, viveu, ficou pó,

Menos tu, ser do passado;

Menos tu, menos tu só.

Menos tu, fatal presente,

Presente augusto e fatal,

Tu, que a dor me dás somente;

Mais... tu, que és todo o meu mal.

Eu te encontrei por meu dano!...

Áurea taça, em que o mel jaz,

Possui-te gruta do oceano,

E à tona não voltarás.

No ossário teu de esmeraldas

Cantará trenos o sul,

Enquanto, ó céu, lhe desfraldas

Tua ampla bandeira azul.

Quem tentaria essa luta?

Quem fora a taça buscar

Dentro do fundo da gruta,

Dentro do fundo do mar?...

VI

Mistério, por teu caminho

Anda dantesco animal:

Deus vai, e não vai sozinho:

Segue-o um pó morto em geral.

Ossos dos sois do levante

Aí passam no mesmo andar;

O verme segue o elefante,

A gota acompanha o mar.

E vão músicas pingando

Sangue, e soluços, e ais,

Que as cobardias em bando

Levam com marchas triunfais.

E as fascíolas nojentas,

E a esqualidez dos covis...

Ó lírio, donde rebentas!...

Matais, por onde floris!

Farraparia divina,

Húmus em veigas louçãs,

Num fortalego, uma minha

De cousas boas, e sãs.

Lição de Deus, (quem o crera?)

Dada em tão vasto aranhol:

Mentira, assim dás bandeira;

Traição, assim dás farol...

E a um mundo ignóbil ensinas,

O que ele sabe demais

Nessas sinistras doutrinas,

Que enchem bíblias e missais.

VII

Fumam de estranhas caçoulas

Venenos de um rubro odor:

Há fel na entranha das rolas,

Há insídia em cada flor,

Um gemido em cada riso,

Um pranto em cada prazer:

Deus mesmo, no paraíso,

Não deu à serpente o ser?

Alegria das crianças,

Flores de um dia, rumor

Das benditas esperanças,

Das brancas canções de amor;

O fartum, que o mal exala,

O aroma, que exala o bem,

Vão todos na mesma vala:

Com eles vai Deus também.

E isto tudo ali fermenta;

Erguem-se disto ideais:

Sai desta ironia benta

A vadiação dos rosais;

Belezas das grandes cousas,

Grupo de crimes, após

Em cima disto repousas!

Em que consórcio andais vós!...

Dorna de uvas machucadas,

Que este universo contém,

À tona as grandes risadas,

E as grandes lágrimas vêm...

Desce abaixo, volta acima,

Como enche e vasa a maré,

Tudo quanto é obra-prima,

Ou primor de obra não é.

Este levedo mistura

Escória, espuma, ebriez:

E a vida, e a morte, criatura,

Andam lá dentro e não vês!...

E o réptil entre os ninhos,

E ao pé do berço os chacais!...

Ides ao céu, passarinhos?

Garras no céu encontrais.

O tempo todo devora...

Fundidos noutro crisol,

Ele vomita outra aurora,

E cospe aos sois outro sol;

E um dia o homem, que anima

Faúla, e o orgulho de um rei,

Ele o derruba de cima

Da terra, na mesma lei,

Na mesma força, que explode,

Que mundos faz e desfaz:

Que Deus pôr termo a isto pode?

Quem de outras leis é capaz?

VIII

Tiveste a mesma sentença,

És um mistério: e é em vão

Que em ti a gente ver pensa

Mulher, como outras o são;

E o queres ser, é verdade:

Amor é o teu cheiro, amor

É o ambiente, em que andas: e há de

Deus entre nós se interpor?

Tens sempre sobre o teu rosto

A luz do sol, que se foi;

Pálida luz do sol posto,

Que vai após, como sói

Essa morbidez dolente

De uma princesa feudal,

Que tem seu marido ausente,

Em guerra santa, e afinal

Não sabe dele; e há bem anos

Sofre daquela viuvez;

Foi com tantos soberanos,

Com tantos condes e reis

Resgatar a sepultura,

Que está nas mãos de infiéis:

Sempre viu nisso loucura:

Cristã da cabeça aos pés.

Louva a ciência infinita,

Com seus avisos tão bons:

É Deus, que a fortuna dita,

Ele é que espalha os seus dons:

Ele é que conhece como

Com tanto amor, tanta dó,

Pendura na árvore o pomo,

E lança o homem no pó.

Ímpio, atrás com teus assomos:

Queixar-se é já crime audaz:

Nós nem sabemos quem somos:

Mas ele sabe o que faz...

Condena razão de tudo,

Mas responde: esta mulher

Não é mulher? — Ficas mudo,

Como um argueiro qualquer?...

IX

Minha alma, que devaneia,

Dentro em mim sinto cantar

Alegre canção, mais cheia

De alga e sargaços do mar.

*  *  *

És a princesa dormente,

Eu o príncipe feliz:

Hás de ser minha somente:

É uma fada que o diz.

Escadaria de prata,

Esmeralda o corrimão,

No chão veludo escarlata,

Tocha de oiro em cada mão...

Virás da selva ao meu paço,

Rósea, fresca, matinal,

Aurora presa ao meu braço,

Como ao rochedo o coral.

Tal uma boca esfaimada,

Há de uma porta se abrir,

E, de repente, num nada,

Nos há de os dois engolir.

E o que ela dentro entesoura

De um beija-flor, de um bulbul,

Parece nesga, que fora

Cortada de um céu azul.

E a sombra com tal quentura,

E a luz com tal maciez,

Como quem sabe e mistura

Rafael Sanzio a Valdez.

Noite em teus olhos em chama,

Guarda em minha alma fiel

Um diamante por cama,

Uma estrela por dossel:

Por toda a parte o delírio

De umas cousas divinais:

Amor saindo de um lírio:

Vênus a ver-te e a dar ais.

E virão eras, mais eras,

Outros mundos, outros sois,

Outonos e primaveras...

Lá dentro escondidos nós.

Depois de um tempo passado,

Quem de nós se lembra mais?

Que vida!... sempre ao teu lado!...

Tanto amor... quer tanta paz!...

Eu beberei os teus beijos,

Eu comerei teu olhar:

Nos teus cabelos sobejos

Me hei de cobrir, ao deitar...

Dois colibris num só laço,

Até o mundo ter fim;

Num eternal, grande abraço,

Num grande, e eternal festim:

Se minha mente não erra,

Se do porvir rasgo o véu,

Acabaremos na terra,

Principiaremos no céu...

X

Isto é um sonho, que abrolha

De uma haste da flor do mal:

Há um outro amor branco... Olha,

Tão branco, que é lirial.

Amor é o grande trabalho,

É amor a maior dor:

Amor é baga de orvalho,

Que a noite entorna na flor;

Amor é toda a alegria:

Amor é todo o ideal:

É a divina utopia,

É a humana visão real;

Se amor não é a verdade,

O que há de verdade, pois

Se da terra à imensidade

Deus outra cousa não pôs?

A verdade verdadeira

Em que outros céus acharão?

Como em toda sementeira,

Stá a verdade num grão,

Num beijo dado na boca,

Num riso vindo do olhar,

E custa cousa tão pouca

Toda a amargura do mar!...

Toda a ciência reunida,

Lágrimas, glória, labor,

De uma vida bem vivida,

É a obra grande do amor...

XI

Sinto uma névoa profunda,

Que nasce, que de ti vem,

Que todo o meu ser inunda;

Que em torno a tudo há também...

Alma belíssima, emblema

Destes mistérios serás;

És do insolúvel problema,

Que o eterno vício em si traz?

Que me segreda esta vida?

E este longínquo rumor

É de uma roda escondida,

Que andam agora a compor?

Todo este carro quem tira?

Por que talvegue ele vai?

O vento, por que suspira?

O sol, por que sobe e cai?

Para fazer um bom traço,

O sangue e a dor lhe convém?

A estrela, que lança ao espaço,

Só dessa argila é que tem?

Como o carvão cristaliza?

Para polir algum sol?

De algum gemido precisa,

De um morto exige o lençol?

É das lágrimas nos fios,

Que os céus suspende talvez?

Com elas deu água aos rios,

Com elas os mares fez?

Mata a flor, grande operário

O inseto, e extrai dela o mel:

Quem sabe se é necessário

A Deus também ser cruel?

E para dar voz à brisa,

Ao céu azul e esplendor,

Quem sabe se ele precisa,

Coitado! da nossa dor?!...

XII

Trepa, algarismo maldito,

Entre as longas solidões,

Vê se apanhas o infinito,

Nas garras dos teus bilhões...

Prende e mede a eternidade...

Quantos quilômetros tem?

Dize-nos toda a verdade:

E onde ela está, donde vem?

Anda, enfileira o alfabeto,

Equação sobre equação,

E, trape, como um inseto,

Põe-me este Deus cá no chão.

Nesta imensa madrugada,

Que cunho de insensatez,

Obra nenhuma acabada,

Nenhuma completa vez...

Como uma eterna ruína,

Como um aleijão sem fim,

O que acaba não termina:

E inda o que nasce, é ruim...

E o mais é que isto piora:

E a cicatriz do pesar

Vem num começo de aurora,

Sem sol — a flor — jamais dar;

Que morre, e não morre nunca,

Que se transforma, e que traz

A marca da garra adunca,

À espera de outro gilvaz.

E veste uma roupa nova,

Tresandando a um velho pó...

Então o espaço — essa cova —

Tem só cadáveres?... Só?...

Chamam isto obra bonita,

Que é um escrínio, um primor?

Mas seu autor, onde habita?

Onde anda o famoso autor?

Enchem seus cromos vidraças?

Em tua sala o não tens?

Erguem-lhe estátuas nas praças?

Vamos dar-lhe os parabéns.

Mas aonde encontrá-lo?... aonde?

Em que mundo, em que país?

Em que cantinho se esconde

O belo ancião feliz?

Tem grandes barbas nevadas?

Anda em nuvens ideais,

Como as Sés ricas, torreadas,

Têm nos seus quadros rurais?

Um Angélico contrito,

Alma mística e fiel,

Viu Deus descer do infinito,

De luz encher-lhe o pincel;

E conturbá-lo, e prendê-lo

Dentro do seu resplendor,

De modo a vê-lo e a não vê-lo,

Que um Deus não se pode expor?!

Vê-lo e não vê-lo... Acredito:

Fé cega não pode ver:

É grande, como o infinito,

Ele é o ser, e o não ser.

É pois aí que se acouta?

E inda há lugar para o mal?

Stá, como o mar, numa gota?

Como num grão, o trigal?

Não: não!... E o eterno problema

Não tem jamais solução:

Se ele é a razão suprema,

Parece não ter razão...

*  *  *

E és tu, alma ingênua e boa,

Quem rasga o abismo, e quem faz

O turbilhão, em que voa

Uma alma inquieta, e sem paz?!...

XIII

Vestis a clâmide branca,

Brancas estrelas, vestis

Aquela alegria franca

Da ingenuidade feliz.

Zombais de mim, visões puras?

Olhos das noites azuis,

Não vedes dessas alturas,

Quem à morte nos conduz?

Quem vos ilude, e vos leva

Em largo rir de jogral,

Rasgando frouxéis de treva,

Num vago giro banal?

E essa vida prolongada,

Vivida assim devagar,

Fica a gente condenada

A nunca ver acabar?

Rides do inseto que dura

Só um segundo, porém,

Viveis vós mais por ventura?

Um ciclo o outro contém.

Morrer!... Morrer!... Pois somente

Morrer, e após noutro ser

Entrar na mesma corrente,

Para de novo morrer,

Sem uma hora de repouso,

Sem um momento de paz?...

E um Deus fez isto? — Não ouso

Crer Deus quem disto é capaz.

O Deus... o Deus em que creio,

Que o vosso Deus é talvez,

Esse universo assim feio...

Deus não fez isto, não fez...

Não foi talento ordinário,

Quem o esboçou, sim! Mas deu

Aos mundos forma de ossário,

E o horror do vasto hipogeu.

Quem passa? Passam defuntos,

Passam vivos em tropel!...

Pois para os ter todos juntos

Fez obra honrado alvanel!...

XIV

Tu, que esta vã natureza

Meteste em prisões fatais,

A quem da verdade é presa,

Deus, aonde meterás?

Eu nu, sedento, faminto,

Sem palmo de terra, sem

Armas, enfim verme extinto;

Tu Deus, saber, força e bem...

Quando acharmo-nos um dia,

Frente a frente, sós nós dois;

De quem será a agonia,

Eu vítima e tu o algoz?

Vê se há nisto fatuidade,

Se há nisto delírio, enfim

A minha louca vaidade

De ti vem, não vem de mim.

Dou rosas à primavera?

Ao sol luz: à luz calor?

Veneno à serpe, antro à fera?

Quem dá tudo és tu, Senhor.

Porém se em definitivo

Eu for condenado, então,

Ó pobre Deus vingativo,

Tu tens de já meu perdão.

Olha, Senhor, não te iludas,

Serás a treva, eu a luz;

Serás pior do que Judas,

Serei melhor que Jesus...

Quem dar não pode, recebe;

E é dar melhor que pedir;

A flor que abre, e odora a sebe,

Faz rir a sebe, e o céu rir.

Eu Deus, findado o universo,

Acabara a eterna dor;

E tudo ficara imerso

No meu infinito amor.

XV

Orgulho algum não me agita...

Mas tu não crês Deus atroz?

Deu-nos a dor infinita:

Que mal lhe fizemos nós?

Isto vem já de tão longe,

Que o uso embotou o olhar,

E cremos que todo o monge

Stá num hábito talar.

E a nossa ferocidade,

Mansa, pacífica, em nós,

Não é a mesma em verdade,

Que a de um animal feroz?...

Um na selva o lenho talha,

Que serve à choça, e ao caixão;

Um outro ao mar lança a tralha;

Ao mar um outro o farpão.

E para que tanta lida?

Para a hecatombe geral

Que do animal custa a vida,

A vida de outro animal.

Do sangue o homem rebenta,

E no esplendor de um salão,

Quem se lembra que ensanguenta,

Todos os dias, a mão?

E serve, como tafulho

Desta falta original,

O trapo do nosso orgulho,

Por cima... um pó de oiro ideal.

A pobre da fera humana

Ser raça dos Prometeus?!...

Como é, pois, que Deus a engana?

Parece-se assim com Deus?...

Mistério! mistério tudo!...

Mistério!... mistério só,

Pois passe Deus, grande e mudo,

E o cubra, erguendo-se, o pó...

E eu ficarei, como fico,

Eunuco à porta do harém,

Mendigo ao alpendre do rico,

Adão ao muro do Éden.

E hemos sentir o perfume,

Hemos músicas ouvir,

Do que vai lá dentro, ó Nume...

Cá fora a chuva a cair,

O frio a pedir guarida,

A fome a pedir o pão,

Cura a gritar a ferida...

Deus é cego e surdo então?

*  *  *

Perdão, pra quem fez a vida,

Perdão, pra quem fez a dor:

Ó natureza abatida,

Perdão pra o teu criador.

XVI

Vejo, por tua tristeza,

Na noite do teu olhar,

Onde há a imensa grandeza

Do céu, estrelando o mar;

Que tu, ouvindo-me, dizes:

— Não sei do que é Deus capaz:

Quem pode fazer felizes,

Por que desgraçados faz?

Há nessa estranha conduta

O enigma do seu amor?

Do berço ao sepulcro — luta —

Do sepulcro ao céu — terror?! —

Dizes ainda: — teu verso

À larga espádua conduz

O moribundo universo,

Pregado, e ululando à cruz!...

XVII

Procura-se com ansiedade

Deus... Deus... Mas Deus onde está?

Onde apanhar a verdade?

Quem pode ir vê-lo, que vá...

A alma é forçada ancila,

Que ignora, que pouco vê,

De um corpo, que à sombra oscila,

Trêmula, inquieta, à mercê

De um mar sombrio!... Que esforço,

Que inútil peso levar,

Para colher sois, no dorso,

A rede ao sombrio mar.

E deixa a rede de malhas,

Que lançam, para apanhar

Alguns grãos do céu, migalhas...

O Deus, que céus pode dar.

Porém quem sabe, e quem ousa

Saber se pode também

Dar mais qualquer outra cousa,

Se para dar ele tem?

Ó misericórdia imensa,

Ó caridade, outro amor,

Encheis a alma de quem pensa

De compaixão, em favor

Desse Deus: que ele não possa,

O que se espera, fazer...

Tal é a bondade nossa,

Que o perdoar é dever.

Mas se este perdão tão doce

Negasse-nos ele?... E após?...

Mas que importava que fosse

Deus menos grande que nós?

Seja-se em tal conjectura

Vencido: aviltado, não:

Guardemos sempre a estatura

De um Prometeu, de um Titão:

Como o Satã da legenda,

Que o céu a Deus roubar quis:

E tem na fronte tremenda

O sol de uma cicatriz,

Que o raio fez, que o pôs fora

Do céu, onde era primaz,

Do céu... pelo qual não chora;

Do Deus... que ver não quer mais;

Numa eterna teimosia,

Que o faz um ser superior,

Sonhando, ainda algum dia,

Ao céu voltar, mas senhor.

XVIII

Não vale um átomo um mundo?

Não vale a floresta um grão?

Os germes, que estão no fundo

De um verme, nos céus estão.

Está na célula a esfinge,

Como está dentro do sol:

E o Deus, que a luz tece, a finge

Num sudário, ou num lençol.

É cada pedra uma boca,

Que guarda em si uma voz:

E a vaga é uma voz rouca,

Que canta a sátira atroz.

Se estas bocas, na agonia

Do sofrimento, amanhã

Gemessem todas, dir-se-ia

— As armas: — gritar Satã,

Que às armas agarrando as crinas

Dos turbilhões pelo ar,

Ter fosse às mansões divinas,

Litígio a Deus renovar.

Que espetáculo!... Imagino!...

Ver logo tudo em tropel

Nesse ataque repentino

A Deus, por arcanjo infiel.

Em crepúsculos vermelhos

Ensanguentados parcéis;

Mortos titãs de joelhos,

E desmontados corcéis

Correndo pelo horizonte

Sujo do pó dos vulcões,

Batendo às cristas do monte

Corpos rolando aos milhões;

Rasgando mãos não sabidas

Pedaços de céus azuis,

Aos sois limpando as feridas,

Que sangue dão e dão luz;

Junto às trombetas de guerra,

Clangor de clarins; os pés

Fixos no dorso da terra,

Punhos em astros revéis...

De um ponto e doutro diverso

Anjos, num grande motim...

Na agonia do universo

Um simulacro de fim...

Param. Um lado desiste...

Vem saudar o triunfador

Com um riso a lágrima triste;

Com um riso mais triste — a dor.

Parece que, tudo volta,

Como foi dantes, a ser:

Satã pregando a revolta:

Deus mostrando o seu poder...

XIX

Como o oceano ferve, estua

Meu ímpio canto banal:

Mas nele a medalha tua

Crava um sagrado ideal.

E haverá aí tanto espaço,

Tanto, como o mar, e o céu;

Sou eu o deus, que isto faço,

Sem picaresco ingranzéu?

Céu de trevas, mar de lodo,

Feitos de sons a passar...

Pois nisto o universo todo

Há de cair e rolar:

E vão dizer: — tudo lança

Na água lutulenta... e o azul

Do céu, à noite, não dança

Dentro da água de um paul?

Quem sai da dúvida ilesa?

É a vida algum festim?

Que vale um palácio à Cresa?

E a gruta a Caco por fim?

Valem as terras e os mares,

Vale inda o universo em grão,

Ante milhar de milhares

De séculos, que vêm, que vão?

Quando esta máquina gasta,

Ou sem prisões mais, rolar

No meio de um fasta-fasta,

Quem virá tudo inumar?

De todo o solar sistema

Dada enfim a integração,

Que Hesíodo fará o poema

De outros deuses, que virão?

Que nova atitude o espaço

Ante o universo há de ter?

Não mostrará já cansaço

A mão, que isto anda a suster?

Onde estará o Deus imerso?

Porque depois, é falta,

Tem de extinguir-se o universo

Num cataclismo geral.

As forças da natureza

Perdidas de todo então,

Não oporão mais defesa

À universal destruição.

Nem testemunha de pedra,

Nem leito seco de um rio,

Nem musgo, que em tudo medra,

Da teia enfim nem um fio;

À festa de um dia inteiro,

À ebriez da saturnal,

Na mó do extinto braseiro

Um cadáver colossal...

Depois... o aniquilamento...

Nem mesmo frio, ou calor,

Nem silêncio, nem lamento,

Nem gesto, nem voz, nem cor...

Nem o fantasma da morte,

Nem da lágrima o cristal,

Nem boa, nem a má sorte...

Ai!... nem Deus, nem bem, nem mal.

O aniquilamento inteiro,

O aniquilamento só:

Nem o que deixa o braseiro...

Nada!... nem cinza... nem pó...

Nódoa do universo mudo,

Pobre Sísifo! ao supor

Que tudo fez, perdeu tudo...

Torna ao trabalho... Que horror!...

Força, Penélope horrenda,

Que ninguém fez, que não viu,

A obra errada ela emenda?...

Donde esta esfinge surgiu?...

Deus, tempo, espaço, matéria,

Força que faz e desfaz,

Voltais à mesma miséria?

Não há, não pode haver paz.

Tomará tudo outro jeito?

Quem isto tudo já fez,

Não sendo alvanel perfeito,

No mesmo deixa outra vez.

Sobre o novo monumento

Um sol de mais esplendor:

Porém maior sofrimento;

Porém enfim maior dor!...

Eis a terrível verdade:

Há de ser, não há fugir:

Embora em remota idade;

Embora em longo porvir!...

Nesse intervalo, combate;

Levar acima a Babel:

Feita, é navio que bate,

E se escangalha ao parcel!

Depois apanhar destroços,

Tudo de novo fazer:

Tudo feito, ossos, mais ossos;

Morrer outra vez... morrer!...

Eis a terrível verdade:

Há de ser, não há fugir:

Embora em remota idade,

Embora em longo porvir...

Círculo imenso... eviterno,

E num maelstrom pior,

Que leva Deus, céu, inferno,

Tudo... em redor... em redor!...

Nem para Deus há fugida:

Acaba: torna: acabou:

Vem o fantasma da vida

Dizer ao espaço: — Aqui stou...

XX

Negro do oriente ao poente,

Astros mortos a granel,

Mão nenhuma, que isto aguente,

Como a coluna o bocel.

Atrás da sombra, do fumo,

Do pó esconde-se alguém,

Que infinitos em resumo,

E inda outros espaços tem.

Da sombra o olhar, todo treva,

Do silêncio a muda voz,

Como um ombro, que se eleva

Num grande desdém feroz,

Respondem, como responde

A quem sabe a sombra ouvir:

E a gente não sabe aonde

Ouve a ironia... rir... rir...

Ímpio!... Alma humana aleijada,

Imunda, mouca, voraz,

Da cadeia, a que anda atada,

Os vincos sangrentos traz...

Mudar a vida uniforme,

Sair do sulco, deixar

O quartel vasto, em que dorme;

Buscar luz noutro lugar...

Ver que uma consciência pura

Anda a apontar-lhe ideais,

Por tirar-lhe a poeira escura,

Que lhe encobre outros sinais,

Que hipocrisia não seja,

Nem seja estúpida fé:

E inove o campo a peleja,

E ponha o homem de pé,

E espreite um vão, uma fenda

Dessa defesa mural,

Por onde se entre, e se renda

Vencido o Titão do mal.

Isso não quer. — E a verdade

É que séculos virão,

Que sobre esta humanidade

Hão de ir indo, e sempre irão;

Medíocre sempre, imersa

Num fundo e largo torpor,

Fazendo-a a fome, perversa,

Fazendo-a cega, o terror.

E andar nesta eterna cisma:

Não ver água, vendo o mar:

Querer pôr pés na marisma,

Sem ludrosos os tirar;

E ouvir com calma o barulho

De um enfatuado reitor,

Que a tinta do seu orgulho

Sabe, a seu tempo, onde pôr:

Por mil modos assaltada,

Até por fim aprender

A não saber querer nada,

Nada sabendo querer.

E Aristóteles ensina,

O que Jesus ensinou:

Mas vencerá a doutrina

De Hobbes, Pascal e Rousseau?...

Sei? — Mas olha, mesmo agora,

Agora mesmo aliás,

Não faz isto hora por hora?

Pois que outra cousa ela faz?

Diz, como ourada de um tombo:

— O Papa não declarou

Santos Gil Blas, ou Colombo

Ou Dom Quixote, ou Boileau?...

Ignorância de espavento,

Vai, como um balão no ar,

Fala, e ergue a cabeça ao vento,

Ri-lhe à boca um riso alvar.

Sempre vencido o direito,

Cega a justiça não vê:

Tudo errado! E com efeito

Perguntam ainda: por quê?...

E é assim, que às vezes acorda

O povo, como um leão;

E como do mar à borda,

Do vento ao impulso ondas vão.

E a multidão assanhada,

Vesga, espumando, em furor,

Não quer saber de mais nada;

Inventa heróis, quer senhor...

E ganha uma estátua equestre

Nesse dia de maré,

Plutarco, ou José de Maistre,

Ou outro qualquer D. José.

Lapidai, raça de mochos,

Quem anda à luz: isto é bom,

E aos deuses mudos e coxos

Mostrai ou Cristo, ou Fílon...

XXI

Mas esta agonia lenta,

Mas esta dor perenal

Que desde o princípio aumenta,

Que não acaba afinal:

Esta pesada corrente,

Que à vasa agrilhoa o ser,

Que o arrasta incessantemente,

À podridão toda ver:

Que o avilta, abate, envergonha,

Que o leva triste ao covil,

Que faz da vida peçonha,

Do humano ser cousa vil:

Que nossas virtudes rouba,

Que rouba nossa altivez,

Quem fez? — Num antro de loba

Mora, quem isto assim fez.

Todo mar é só espuma;

Toda vida é só rumor;

A glória artifício; e em suma

Cinza e pó todo o esplendor...

O berço cheio de choro;

Na cova o choro também...

Compra a vida ouro, e mais ouro,

Quando à vida a morte vem?

E assim lá vão pouco a pouco,

Cantando a mesma canção

Loucos de um mundo, que um louco

Fez... não sei por que razão.

XXII

Bacon, ou Fulton, ou Volta,

Ou Spinosa, ou Platão,

Que em cada século volta,

Nulos Prometeus serão?

Porás ao rabo de um raio

Pedaços de arame, e zás!

Irá, como um papagaio,

Até que não queiras mais.

Podes ao sol dizer: — Pinta:

E escravo e humilde ele vem,

E sem pincela, e sem tinta,

Que quadro o sol pinta bem!...

Porém a ideia vencida,

Rouca, esgrouviada supor

Que possa ser combatida,

E em seu lugar outra pôr:

Desarranjar todo mundo

Por uma verdade só;

Ir, por um grão de oiro, ao fundo

De uma montanha de pó:

Ideal novo ao pensamento

Dar, e à vida outro fanal:

É loucura! e todo advento,

A quem o traz é fatal.

Dar a Sócrates cicuta,

Cortar o pescoço a Orfeu,

Ir João Huss à chama, — é a luta

Do fumo, e do pau, que ardeu.

O pau arde, o fumo fica:

E a cinza o que diz à luz?

Parece que a luz suplica

A tudo quanto a produz;

Parece que é devedora

A tudo em torno de si,

Ela, que topázio doura

Ela, que acendo o rubi...

Ela, que quando sorria,

Ou ri, como sabe rir,

Dá mais ouro que daria

O que há de Sofala a Ofir.

— Para um presente de boda

Uns pequeninos milhões —

— Ó Primavera: estás douda?

Quem, como tu, tem mais dons?

Responde a luz: — A grandeza

Me vem de ti: eu sou vil

Sem o teu oiro, princesa,

Noiva eterna do Brasil. —

Os rios vêm das colinas

Em leitos de oiro e cetim

Entre os diamantes de Minas,

E as pérolas de Barein.

Onde mais verde esmeralda?

O diamante Grão-Mogol

Não vale o que tem na espalda

Este Brasil, todo sol.

Quando não stou de ti perto,

Nem stou neste áureo país,

Acho o universo um deserto:

Meu ninho eterno aqui fiz.

E a luz, que as veigas esmalta,

Que veste e acende os desnus,

Milhões às vezes lhe falta:

Virás a ser pobre, ó luz?

Se te virem maltrapilha,

Descalça, triste, infeliz,

É que tudo morreu, filha:

Sem ti ninguém viver quis;

Nem viver pôde: tu eras

O sangue reparador,

O sangue das primaveras,

O sangue do nosso amor.

Sem teu fulgor, luz querida,

Luz, sem ti nada produz:

Ó luz, sem ti não há vida,

Festas não há sem ti, luz...

XXIII

Trevas da noite... a contê-las

Vens... lutas, lutas, até

Que as enche um sangue de estrelas,

Que sai do teu fulvo pé.

Luz, pensamento, tu restas

Às vezes, como à traição,

No fundo horror das florestas

Um viandante ante um ladrão,

Atado a um tronco, a mordaça

À boca, vendado o olhar...

E o pensamento assim passa,

Como oiro ao seio do mar...

Oiro, que afunda na areia,

Que à tona nunca mais vem:

Quem prega à cruz grande ideia,

Ó crime, que crime tem?

Ter a coragem do medo,

Da infâmia ter o valor;

Eis o eviterno segredo,

Que há entre o escravo e o senhor.

Treva!... Treva!... Treva infrene,

Que a alma ulcera e enche de pus,

E faz a guerra perene,

Guerra da treva e da luz.

E assim é que o homem, toupeira

Lembra a gruta, em que nasceu:

E a fera, — queira ou não queira —

Mistura ao destino seu.

Mas nenhum mal haveria

Se Deus não quisesse o mal,

E abrisse o sol da alegria

Num diadema universal.

XXIV

Mas... sofrer e andar... Paciência:

Nada de olhar para trás:

Pois, passo a passo, a ciência

Nos faz o que Deus não faz.

É lenta cada conquista;

Contudo tem seu valor;

E já — escalada à vista,

Tenta-se as mãos nos sois pôr.

Sim! quando a terra for morta

De sede, esgotado o mar,

Quem abrirá uma porta

Ao homem, para passar?

A um mundo, que não volita,

Que inda não é, que inda jaz

Na gestação infinita?

É dessa audácia capaz?

Ele prevê, e procura

À catástrofe escapar:

Da possível sepultura

Sair, ter pronto outro lar...

Ter outra terra, outro dia,

Ter outro sol, sol melhor,

Do que o que hoje o alumia...

E tudo espreita em redor.

Não alienar o destino,

É seu escopo: não quer

Que entre nele um ser divino;

Um deus estranho qualquer:

Se ainda houver homens, se ainda

Na perene evolução,

Em lugar da espécie finda

Já não for nova criação...

Se vem de tão longe... oscila...

Tão longe, e tão devagar,

Nunca em paz, nunca tranquila:

E a mudar sempre!... a mudar?...

Que força esta raça anima!

A quantos centos de mil

Anos vividos em cima

Da água... ou dentro de um covil...

Só!... Se a ciência nascente,

Alguma força ancestral

Em terra anil de repente

Não mostra acaso fatal.

Contra: o mar, a terra, o vento,

A fome, a sede, a nudez:

Quanta dor!... Quanto tormento!...

E ela indo sempre: bem vês.

Sempre em revolta; e caminha,

Negando o melhor dos seus,

Dorosa, irada, sozinha,

Abandonada de Deus.

Dá tempo ao tempo; e a contemplo,

Deixando em tudo um sinal,

Uma batalha, um exemplo,

Um sacrifício ao ideal.

E apenas será um germe,

Que vai por aí fora... vai

Como o casulo de um verme,

Do qual um ser novo sai.

XXV

Uma miragem, que ilude,

Tudo, além dos mundos, é,

Nem há encontrar virtude

No que é delírio da fé.

Eu sei que alguém me condena;

Com que poder, ou razão?

Devolvo-lhe a mesma pena:

Um dia os céus falarão.

E Leibniz e Epiteto,

Bossuet... sim! que hão de dizer?

Mistério!?... Pois não é reto

Um verme Deus compreender.

Qual é a culpa do verme?

Ser verme só, não ser mais,

Sentir dentro da epiderme

O chumbo, o bronze, fatais:

Peso que o prende, e não deixa

Ver quem lhe quer tanto bem,

Que em círculo estreito o fecha,

E, sem mostrar-se, o retém?

Hamilton, quando te escuto

Falando nos livros teus,

Ouço que um só atributo

De Deus saber, é ser Deus.

A tradição, que se funda

Ferrenha, astuta, sagaz,

Torna a alma humana corcunda...

E esse aleijão não sai mais.

A nasciência presume

Quasi ocisar a razão:

E assim se faz o costume;

E assim se faz o vulcão...

Com toda sua grandeza

É o homem tão infeliz,

Que é sempre crime, ou fraqueza,

Condenar ao que maldiz,

Ao que blasfema, e procura

Sair desta escuridão,

Como quem muralha fura,

Para fugir à prisão.

Giordano Bruno não leva

Da fogueira, que o extinguiu,

A luz, a dúvida, a treva...

Nada com ele partiu:

Ficou de clarões mais cheia

A luz da chama, a lição;

Quem mata ao fogo uma ideia?

Quem decapita a razão?

Mas inda que me enganasse,

Sem pavor erguendo o olhar,

Diria a Deus, face a face:

— Não erra o sol, nem o mar:

Teve o mar linha batida;

O sol o caminho achou:

O homem pensa, duvida:

Eu duvidei: homem sou. —

XXVI

Como quer a igreja, acabo

Cedendo aos preceitos seus;

Deixando a ciência ao diabo,

E a religião a Deus.

Deus que o não perca de vista;

É de enganá-lo capaz:

Cada dia uma conquista,

Com cara de bom rapaz!...

Anda sempre em busca-busca

Daqui, de acolá, de além:

Desembainha a farrusca,

Sem medo ter a ninguém.

Quando se sente de jeito,

Quando anda a devanear,

Prende um cravo rubro ao peito,

Vai passeio a beira-mar.

Aquela extensão lhe agrada,

Aquele azul lhe faz bem,

E aquele vapor, que nada

Sobre esse abismo em vaivém.

Foge das turbas; medita:

Tem por elas esse amor,

Essa piedade infinita,

Que sente um ser superior

Pelo ser fraco iludido

Desde o berço até morrer,

Na miséria, em que há vivido,

Miséria, em que há de viver.

Cinge-lhe a fronte a tristeza,

Auréola do pensador,

Nuvem que tem em si presa

Do raio a luz, e o rumor...

Tudo o que faz, é bem feito;

É ligeiro, é serviçal,

E é por tal modo aceito,

Que o mesmo mal lhe quer mal:

Que o bem lhe dá os bons dias,

Cedo, a alvorada inda a vir,

Que ele semeia alegrias,

Onde uma dor vai surgir.

É um cavaleiro andante,

Que nada cega, ou retém:

É o seu lema: — adiante:

Dar, sem escolher a quem.

Deus corre bem algum risco!

Numa certa ocasião,

Apanha, e amansa um corisco,

Que é hoje um pombo em sua mão.

Tem muita cousa que o abone:

É prestidigitador:

Prendeu um dia o ciclone,

E, sabe, onde ele o foi pôr?...

Numa gaiola de ferro,

Lá dentro anda ele a bufar:

E às vezes solta tal berro,

Que caem pássaros do ar.

Bufa... bufa... e apesar disso

Emprega-o o trabalhar,

E faz em terra o serviço,

Que os barcos fazem no mar.

Saem-lhe dos olhos, das patas,

Das narinas, dos quadris,

Cidades, que enchem as matas,

Matas, que pingam rubis.

As florestas, aos seus roncos,

Veem povos novos brotar,

Como da entranha dos troncos

Hamadríade ao luar.

Anda sempre à descoberta

Da lei das cousas: verão

Aqueles, que andam alerta,

Que é grande a sua ambição.

É com chave, é com gazua,

É com A mais B, que faz

Tudo quanto põe à rua,

Tudo que à luz do sol traz.

Anda a fazer guerra à guerra:

Mais algum tempo, e verás,

Que tu jamais deste à terra,

O que ele vai dar-lhe: a paz.

Que Deus o siga, segundo

É meu juízo, depois

Quem há de levar o mundo

Será um só dentro os dois.

Velho egoísmo, o absurdo

De uma arte tradicional

O homem ao bem torna surdo:

Mas o bem vence afinal.

Vencerá ele; e a verdade

É que então o chichisbéu

Muda o céu da humanidade,

Pinta o inferno, e o faz de céu.

E aí irá com urgência

Passar a lua de mel

A nova deusa, — a Ciência

E o seu noivo, — o deus — Lusbel.

Quanto espírito indeciso

Quisera, disto ao saber,

Ter um pé no paraíso,

Outro pé no inferno ter

Para escolher o momento,

Que aos sons do hino triunfal,

Vá longo acompanhamento

Dar graças a um novo ideal...

XXVII

Quem leva a terra, e a governa,

Quem burila novas leis

Na sua marcha eviterna,

Não são governos, nem reis;

Nem odiosas tiranias,

Que rubras mortalhas são,

Que embrulham em sangue os dias,

E as noites em pranto; — não:

São os grandes sonhadores,

Os sedentos de ideais,

Que às guerras com seus horrores

Preferem os madrigais:

Que, como Lineu do Oriente

Ao som de órficas canções,

No carro, em que vêm, somente

Tiram domados leões.

Que montam louras crianças,

E que as deusas imortais

Açoitam, rindo entre as danças,

Com a ponta dos aventais:

São também heresiarcas,

Que nunca souberam rir:

Valem Dantes e Petrarcas

Todas as minas de Ofir:

Não saem dos flancos da guerra

Senão cóleras e dor,

Quando a ventura da terra

Pode sair de uma flor.

É um colosso isolado,

Um pensador genial,

Que aos reis, — bom grado ou mau grado —

Lança um código fatal.

A que o século obedece,

A que não há resistir,

Por ser a luz, que esclarece

O fundo negro ao porvir,

Por ser o vento mareiro,

Que enche as velas, e conduz

O navio, e o marinheiro

À terra santa da luz:

Por ser a mão, que propina

Sutil tóxico letal

À tirania divina,

À tirania do mal...

XXVIII

É do sábio o paraíso,

É prêmio do seu labor,

Ter aumentado um sorriso,

Ter diminuído uma dor;

Ter dado ao homem a alegria

De amar, e de não temer:

Riscar qualquer cobardia:

Ter sua razão de ser

Em não eivar de quimeras

A aflita existência e dar

Para longínquas esferas

O que há tão perto do lar;

Ser bom, compassivo, humano,

No que fará, no que fez,

Buscar nas leis do seu dano

Do todo o seu bem as leis:

Humanizar a justiça,

Razões não dar mais ao réu;

Criar um crime — a cobiça:

Da terra ter todo o céu:

Organizar um ensaio

Para empregar todo o mal

A fazer bem, como o raio,

Como o fogo e o vendaval:

Ensinar a catadupa,

Como o corcel faz também,

A dar, bom grado, a garupa,

Para a conquista do bem.

XXIX

Ao sol, à luz, ao oceano,

Ao que vês, ao que não vês,

Tirar às leis do teu dano

Do bem só todas as leis:

Fazer um céu, que se explica,

Se palpa, e se tem à mão:

Único céu, que nos fica

Depois de tanta ilusão.

Isto não basta, não chega:

Não basta, sim! quereis mais?

Mas por que atalho ou que veiga

Outro caminho abrirás?...

Homem, conta só contigo:

Trabalha, conquista o bem:

Haja um Deus bom, teu amigo...

Mas não contes com ninguém.

Faz o teu céu: retifica,

Põe-lhe um sol mais, um clarão:

Olha, este é o céu que nos fica,

Depois de tanta ilusão...

Mas se houver outro? — Que importa?

Se há crime, quem é o réu?

Há céu para gente morta,

Sem para o vivo haver céu?

Mas... que é isto, o tempo, o espaço?

São almas, são corpo? — Não:

Entre as pernas dum compasso,

Tempo e espaço caberão?

O sábio interroga e teima,

Tempo e espaço, o que hão de ser?

E o simplíssimo problema

Não pode mais resolver?

Quem vê o tempo? — e de certo

Nem mesmo o espaço se vê:

Isto tudo está tão perto:

Quem o define? E por quê?

Existem sim! é exato:

Entanto o que são por fim?

A alma humana, outro fato,

É ou não é fato assim?...

E arremessaram-nos todo,

Um a um, sem mais nem mais,

Como um pegulhal de doudos,

Como ondas aos vendavais.

E corre-se a peitavento

Por um tenebroso mar,

Sem saber o pensamento

Em que ilha ou terra vai dar.

Seria a fortuna humana

O não ter sido, ou não ser,

Dentro de um sono — o nirvana —

Nada: nem dor nem prazer:

Funda mudez... nenhum gozo...

Não existir, não viver:

maciço, eterno repouso...

Não ser, e não poder ser!...

Ou a eterna imobilidade

De um Deus na contemplação

É toda a felicidade

Das almas justas, ou não?!...

E vai de uma a outra ideia

O infeliz sonhador,

A ler a fria Odisseia,

A Odisseia do terror!...

Que cria o incondicionado,

Sem uma forma real:

Que pode mais ter-nos dado

Uma ciência ideal?...

XXX

Mas, o Ser, és tu? E luto,

Sem saber o que és: — então

Serás, quem sabe? o absoluto

Remendando o infinito?... Não?

És? — Não afirmo, e o não nego:

Sem fé ninguém o afirmou:

Eu, para vê-lo, sou cego:

Para ouvi-lo, surdo sou.

Parece que, no limite

Em que a razão se nos pôs,

Não quer que ninguém o fite

Nem que lhe digam: — Nós dois.

Mas sabe de donde veio,

E para que lado irá?

E se é formoso, se é feio,

Se tudo que pode, dá?

E se algum tempo lhe sobra

Para, o que é mesmo, saber:

Pode levar, como a cobra,

A cauda à boca, e morder?

Poder unir os extremos

Nesse giro circular:

Para que: nisso que vemos,

Senão um ser limitar?

Sem ter princípio, nem termo,

Ser meio só e não ser:

Único e só!... só e ermo!...

Há quem Deus possa entender?

Tudo há de ser-lhe atualismo:

Sem passado, sem porvir:

Ser ele o seu próprio abismo!

De si não poder sair!?

O filósofo eminente

Que pobre imbecil não é!

Pascal todo é fé somente:

Reid, Kant, Platão, tudo é fé...

A inteligência, uma cega,

Da fé também cega irmã,

Hoje uma afirma o que nega

Outra em seguida amanhã...

E a humanidade, rebanho,

Que o fetichismo conduz,

Tem sempre o mesmo tamanho,

O mesmo molde a produz.

Da dor sair, quando morre,

E o gozo eterno encontrar:

É como o rio que corre...

E os rios vão ter ao mar...

Essa hipótese não falha?

Um dia vai ser feliz:

Na terra a grande batalha!

No céu o triunfo ultriz...

E o mecanismo, e a rotina

Dão-lhe uma feição geral;

E ao mal, que a vida fulmina,

Junta inda mais este mal.

E tudo, que nos rodeia,

Nos prende, e tão brutal é,

Que ela invisível cadeia

O mais olhizaino pé.

Deve ser grande o infinito!...

Do seu tamanho há de ser,

Para ir a ti tanto grito,

Sem que ouças um só gemer!...

Pela boca da ferida

É que esta cólera sai:

É esta úlcera — a vida —

Que clama contra o Deus Pai.

É todo bom, pode tudo,

Todo é saber, todo é bem:

Mas este Deus fica mudo?

Tanta miséria!... E não vem?

Tanta dor, e só promessa,

Só esperança, isto só!...

É para o homem, confessa,

Deus grande, merecer dó.

Tanta ilusão, tanto dano,

Tanta lágrima, Senhor?

Que podes tu, Soberano?

Pai, onde está teu amor?

Dar um lamento num grito,

Uma queixa universal

A Deus, que importa? — é um gito

Que leva ao molde o metal.

XXXI

Como a ignorância limita

O que é humano, por mais

Que indague a causa infinita,

E busque as razões finais;

Nos meandros, em que se interna,

A consciência ficou:

Razão, a razão eterna

Tua razão limitou.

Andar acima dos astros,

Querer subir mesmo além:

Nós que inda andamos de rastros!...

E nada sabemos bem!...

Que vamos de plaga em plaga,

Que vamos de mar em mar

Como a vaga após da vaga,

Sem saber onde ficar:

Sem saber o que procura

O nosso espírito e quem

Nos leva nesta aventura,

E que direito em nós tem!...

E tudo vai mal seguro,

Numa fatal confusão...

Terás razão, Epicuro?

Hegesias, terás razão?...

XXXII

Que importara nova aurora,

Dos homens um novo escol:

Nada mudara se fora

Nosso o céu de sol a sol.

Pode mudar qualquer cousa

A filosofia, o saber,

A arte enfim: mas quem ousa

Mudar a essência do ser?

Preparam a todo o instante

O mecanismo fatal:

Para ir-se ao céu distante,

Ter mais brilhante fanal...

Vítimas por toda a parte:

Quedas e quedas: por fim

Mais razões, mais luz, mais arte:

Tudo há de ser sempre assim!

Quando será este sonho

Um fato, simples, real?

Que importa? Tudo é medonho:

Tudo há de ser sempre o mal.

Embora sejam primeiros

Bartolomeu de Gusmão

E Santos Dumont — obreiros

Tendo a suprema visão;

Querendo ir ao céu profundo,

Ir muito além, muito além,

Vagando de mundo em mundo,

Em tudo buscando o bem...

Mais saber, mais artifício,

E sempre o mesmo sofrer:

Mais arte, maior ofício:

Na meta sempre o morrer...

E o que Deus de bom faria

Era não fazer a dor,

E em tudo pôr alegria

E em tudo espalhar o amor.

XXXIII

Há no meu canto ligeiro

Modos das cousas dispor

Do colibri brasileiro,

Metamorfose de flor?...

Há, sim, guardada a diferença,

Sempre igual tema por fim:

Olha, quem ama não pensa,

Mas o que pensa ama assim...

Poucas notas; alegria

Pouca também; muita dor!...

Vêm as sombras do meu dia

Da noite do teu amor...

Tendo ao pé teu rosto lindo

Na luz de um velado sol,

Urdo, como eu vou urdindo

Este enredado aranhol,

Esta sonorosa tela

Feita e desfeita, e sem fim,

Porém de ti toda cheia,

E cheia também de mim!...

XXXIV

De um ideal de formosura

Não há o esmolar o amor,

É como a linfa mais pura,

Que não tem gosto, nem cor.

Conserva eterna a atitude,

Não tem fraquezas: só tem

Inteira aquela virtude

Que ao ser librado convém.

Que importa, pois, anjo austero,

Ver se tens asas reais?

Descer em ti já não quero,

Não quero ver nada mais.

Por onde andou meu desejo!?

Asas... Asas. — Para quê?

Se há anjo em ti de sobejo,

E em ti mulher não se vê...

És uma quimera apenas:

És como um ser e um não ser,

Como o odor das açucenas,

Que às mãos ninguém pode haver.

Ninguém haver pode, é certo:

Mas anda ali muito ao pé;

Existe, vive, está perto;

Mas — apanhá-lo, é que é!...

Ir, alvo sonho, é teu fito:

Já... já... assim como assim...

O espaço é largo, infinito...

Engano! o espaço tem fim...

Mas vai: — eu fico ermo todo,

Pois deixa o alfaque o escarcéu:

Sim, vai da terra, — este lodo, —

Para essa pérola, — o céu. —

Vai, na crença elaborada

Por dois mil anos, até

Que se não creia em mais nada,

Ou que se tenha outra fé.

Quero teu rosto tranquilo

Da brancura do luar,

Como as Virgens de Murillo,

De estemas de ouro cercar;

Hão de mais belo torná-lo:

Circula a santa o pintor

Das ricas cores de um halo,

Da glória de um resplendor.

Vai e as asas não te hei visto;

Com todo encanto vais tu:

Da terra assim subiu Cristo,

Cristo, que ao céu subiu nu.

Eu, sendo um deus, poderia

Possuir-te? Não: eu sei bem;

Vai: fica-me esta alegria:

Tu vais, sem ser de ninguém.

Alegria derradeira,

Tão triste, tão singular,

Como as lágrimas da cera

Depois da festa acabar...

O Cristo e a adúltera

(Mármore de Bernadelli)

I

Ó mármore esplendente, ó mármore assombroso,

Basta: é tempo demais: quero ver-te em repouso,

Desce o braço que impõe, muda a austera figura,

Volta o rosto: sorri; olha a gentil criatura:

Como é belo o perdão, quando é tão grande o crime!

Há turbilhões de amor em teu olhar sublime;

E  a multidão que ulula e em cólera imagino,

Fugindo responder-te à tremenda pergunta,

Achando ímpia a razão por que ali a tem junta,

Vai recuar de terror ao teu gesto divino...

II

Enquanto espero, ó pedra, ó mármore, responde:

Sabes acaso tu que um deus em ti se esconde?

Sabes o que outro deus de tua entranha arranca?...

À austera estupidez, a rude imobilidade

Dormiam longamente em tua face branca:

Ajoelharam-se em ti o tempo e a eternidade,

Um dedo enorme à boca e os séculos nos braços:

O sol, metendo à  fronte o esplêndido diadema,

Enchia o azul do céu do rumor dos seus passos:

E à luz, essa risada magnífica e suprema,

Que anda de céu em céu, de coreia em coreia,

Não ouvias cantar essa eterna Odisseia

Na amplidão, onde a estrela e onde o condor se aninha!

Ia prófugo o inverno;  a primavera vinha:

Do norte iam fugindo em bando os goelanos,

E voltando através dos glaucos oceanos,

Em busca de outros céus, de áureas veigas risonhas,

Como emigram também uma e outra as cegonhas,

E as andorinhas vão, antes delas, em bando,

Ó Édipo de pedra, ó cego miserando,

Deixaram-te deitado em frente do infinito

No teu sono profundo e espesso de granito!

III

Um dia, e de repente, a éreos golpes acordas,

E amanietado e preso ao nó de grossas cordas;

E entre os elos de ferro e a opressão das cadeias,

Corno muge a torrente e ulula  a catarata,

E morde, e esmói a relva, e arranca o tronco à mata,

Gritos de desespero aos aquilões semeias:

Muges, raça feroz dos plutões da montanha;

Do tigre tens o grito, a garra, a força, a sanha:

Range ao morder-te o ferro a custo o pulso bronco;

Sai de todo o teu corpo um convulsado ronco,

Como quem interroga o vale, a terra, o mundo,

Se em teu leito anterior aos hipogeus do Egito

Não podiam deixar dormir teu sono fundo?

Paras: não há parar. Recrudesce o conflito.

IV

Lutas: queres lutar; estás preso: não podes

Teus ombros duros como o ferro, então sacodes.

Prendem-te mais agora, arrancado, a um madeiro,

Vinte juntas de bois vergando de cansaço,

Como quem leva e arrasta indomado guerreiro,

Que rolasse de um sol, atravessando o espaço,

E descansadamente e vagarosamente,

Que em cada passo o esforço imenso e audaz se sente,

Chegam, caindo, e arfando ao solar da oficina.

Desatam-se os grilhões, o monstro então se inclina,

A terra geme, ulula; em denso pó se espalha:

Cai: assim cai um Deus em campo de batalha.

V

Ao vê-lo o domador, raiva nova o avigora:

É larva de um deus aquela pedra enorme.

Um deus é dentro dela, um deus lá dentro mora;

Vive lá dentro um deus e parece que dorme:

Clama: investe-a de malho às mãos, dizendo: — Agora.

Então começa a grande, a titânica luta:

Entre os dous, braço a braço, ­— o obreiro e a pedra bruta.

E ele assim recuando e malhando o Carrara,

É como o gladiador que estrangula na arena

O leão da Numídia aos braços, na serena

Atitude do forte; ou cai morto ou não para,

Enquanto não derruba asfixiada a fera:

A multidão tremendo, aflita, ansiosa espera.

VI

E enquanto espera, dize, ó glorioso obreiro:

Quando, aos golpes do malho impávido e certeiro,

Lançando o pó em torno, atroando a oficina,

Para arrancar da pedra a figura divina,

Febril, suarento, curvo o tórax, alheado

Do que vai pela terra e céu, e devorado

Dessa sede imortal de achar da pedra em meio

O belo, o justo, o ideal; arfando de receio,

Apavorado e a um tempo audaz, terrível, mudo,

Quasi perdendo a fé, quasi esperando tudo,

A mãos ambas cavando o bloco endurecido,

Cheio de rebeliões, ainda não vencido,

Rangendo numa raiva eterna e eterna luta,

Parecendo viver, querer voltar à gruta,

Ao monte, ao leito abrupto, ao seu despenhadeiro,

Donde o foram buscar e veio prisioneiro,

Estorcendo-se ao ferro em cima desfechado,

Saltando, recuando, avançando, num brado

De desespero e dor, sentindo-se ferido,

E hiante desatando agônico gemido,

Arrojando-se à cara e cuspindo a ameaça,

Em cavo grito surdo, em pesada fumaça

Do seu hálito duro, ígneo e pulvorulento,

Que te obriga a altear a cabeça um momento,

E procurar de pronto, em pé, sobre o horizonte,

Ar, que te encha os pulmões, luz, que te doire a fronte,

Não sentias terror, angústia, abalo, medo

De ver surgir de um jato o deus, que procurava

Teu ferrenho cinzel na entranha do rochedo,

E fulminando ao raio, ao fogo, ao incêndio, à lava,

Ao irradiamento branco, intenso, inopinado

Do deus por tuas mãos de súbito criado,

Cair hirto ao sopé do teu trabalho augusto,

Meio morto de luz, meio morto de susto?!...

VII

Tenho em frente de mim um deus: que importa o resto?

Vai fazer um milagre... Olhai, vede o seu gesto.

Uma pobre mulher corrida e quasi nua

Deita-te aos pés, Jesus, o clarão de uma lua.

Ela acolheu-se a ti e nela a formosura!

Que abismos nessa carne, e que luz nessa alvura!

Canta invisível nela um sol; ouço-lhe o trilo.

Não é Vênus de Cós, não é Vênus de Milo:

É Vênus de outro mar, é deusa de outra espuma.

Bela, não se parece enfim com deusa alguma:

É o belo-ideal fundido de outra ideia:

Prometeu desta vez roubando a luz divina

Coalhou-a, como pode e ninguém imagina,

E fez dela o ideal da mulher da Judeia...

VIII

Olha a pobre mulher: esta mulher amante

Esta manhã ainda, ao aço rutilante,

Reviu seu rosto belo, enrolou seus cabelos,

Perfumou-os de mirra, untou-os de mamono,

Cacheou-os na testa em múltiplos novelos,

Enquanto lhe dormia ainda um pouco o sono

Entre os cílios; enquanto em sua face linda

Com um longo beijo o sol não a acordara ainda.

Mas se à festa do leão não resiste a leoa,

Caiu esta, que é bela, e além de tudo é boa.

Deus, que os sois pelo céu andar em luta veda,

Deu-lhe a beleza — o abismo, e deu-lhe o amor — a queda.

Que dorso! Aquele branco e luminoso dorso!...

Aquele seio, aonde as pomas rutilantes

Vão nas asas fugir, sem fazer um esforço,

Vão fugir, adejar por esses céus distantes,

Ai! tão perto do céu! ai! tão fora do ninho,

Vejo-as quasi a saltar do transparente ninho:

Quero-os em pé, à luz, quero ver tudo isto...

O teu vasto linhol stá-me escondendo, ó Cristo.

O irradiar do torso esplêndido da adúltera

Vale o linhol de um deus, vale a inconsútil púrpura.

Caiu? Quero alteada essa cabeça fina,

Ver um colo que ondula e como flor se inclina

Na haste flexível: sim, quero ver como rola

Na pequenina orelha a egipciana argola;

E erguida e a mover-se, a andar, a rir, sim! vê-la:

Ver se a estrela é que a vence, ou se ela vence a estrela.

Mas enquanto ela jaz à tua sombra santa,

Enquanto esta mulher gentil não se levanta,

E espera em tua força, ó Jesus, certo abrigo...

Ficarei junto dela, ó mármore, e contigo.

IX

Mas se, ó domador de montanhas, procuro

Ver que faz o teu deus: ouve a voz do futuro.

Quando um dia ante nós na trípode a Sibila

Irrompe grande, enorme, e fala e impõe que a ouçamos,

Não há fugir à deusa, é necessário ouvi-la,

Do Eritreu ela venha, ou de Cós, ou de Samos.

X

A estátua de Moisés em Roma de hoje em diante,

De Baccio ao grupo augusto e esplêndido em Florença,

De Bouchardon ao Cristo e à pedra deslumbrante

De Canova, andará reunida esta obra imensa,

Audácia, arrojo, assombro, insensatez tamanha,

Como é tirar um deus ao flanco da montanha,

Porque tu és também, ó terrível gigante,

Raça de Prometeus, titânico possante,

Dos que fazem ao Olimpo a escalada medonha,

A um Cáucaso depois embora um Deus os ponha,

Geração dos viris, geração desses poucos

Que amanhã são herois, que inda ontem foram loucos,

Porque sem força oculta a duplicar-lhe o esforço,

Todo o peso de um mundo em cima do seu dorso,

Sem raios, sem Tabor, sem Sinai, sem o braço

De um anjo, um lírio à mão, asas movendo, o espaço

Fendendo em grande luz para vir a teu lado

Dar-te o impulso do céu, deixando mutilado

Teu gênio de metade,  e esse mesmo indeciso,

Sem trovões, sem milagre, e sem te ser preciso

Senão a própria ideia a fronte a iluminar-te,

Senão o grande amor puríssimo da Arte,

Vencendo o que não diz jamais que vence o forte,

Subjugando a corrente indômita da sorte,

Eras, como ao corcel da Ucrânia, amanietado

No flanco insubmetido, um gênio inda ignorado;

E o corcel voa, foge, atira-se e o arrebata,

Sobe a montanha, engole o vale e mete a pata

Sobre a urze e o rochedo, e no tremendo arroubo

Daqui ruge o leão, dali regouga o lobo;

Vertiginosamente assim rolando ao exício,

Golpeado, em sangue, em pó, em suor, exausto, frio,

Escancarando a boca ao céu, num grande arquejo,

Abrindo os olhos bem, num vago olhar sombrio,

Como quem pede à luz um derradeiro beijo,

Treme, e volta-se, e cai: mas os olhos não cerra:

E inda parece ver, horrendamente absorto,

Sobre a espuma, no chão, deitado, exangue, morto,

Erguer-se-lhe do flanco o rei da própria terra.

Tu assim lacerando a pesada cadeia

De obstáculos mil, no corcel dos teus sonhos

Amarrado, fugindo entre abismos medonhos,

Como quem se conhece e nada enfim receia,

Como quem põe os pés nas asas da quimera,

E sabe que uma Ucrânia e que um império o espera,

Igual ao teu valor, superior ao destino,

Para arrancar o belo, ó voraz libertino,

Mesmo de um fosso, onde há leões, descendo ao fosso:

Tu, ignorado herói, tu, terrível colosso,

Escorchador de sois, audaciosamente,

Podendo ser ferido e cair de repente,

Metes dentro de um monte o onipotente braço,

E arrancas dele um deus, arrancando um pedaço!...

XI

Ó grande lutador, já que tu fazes disto,

E sabes, novo deus, criar um novo Cristo,

Tua alma triunfal pondo-a nele de resto,

Na atitude, no olhar, no resoluto gesto,

Ante o qual já se vê que a multidão flutua,

Como o mar a bramir, mas que brame e recua;

Tu, que tens do país de Hesíodo e de Homero

As mãos divinas, que sabem criar as Vênus

Da luz do céu iônio e seus azuis serenos,

Uma vez, como irmão, falar-te ao menos quero.

Foge, na região serena do trabalho,

À ingratidão dos reis e à ingratidão dos povos:

Do seio alvo da pedra e do beijo do malho

Tira a raça triunfal dos viris deuses novos:

Mergulha o teu olhar profundo no futuro:

Aí tens o prêmio grande, o único, o seguro,

E a glória, que dirá ao seu filho: — Bem-vindo!

Sem a inveja ululando e os crótalos tinindo.

XII

Atende. É nossa mãe, a Hélade potente;

Anda no ar sorrindo, ao ver-te, artista ingente:

Ao semideus, seu filho, a geração distante

Vem saudá-lo e depor-lhe aos pés palma ovante.

Em bosques de loureiro e invisíveis devezas,

Há leitos de marfim e oiro e iônias mesas:

Há de sândalo e cedro embutidos de prata,

Tendo o risco ideal de uma enorme pantera:

De um lado a fronte e de outro a cauda, e cada pata

Formando os quatro pés; acaba em cima a fera

Um corpo de mulher de linhas melindrosas,

Onde em montes de neve há penugens de rosas,

Um fauno ri: um grupo irônico de Amores,

Agitando em silêncio asas onicolores,

Vai lançando uma e uma as flechas fugitivas,

Entre os deuses há luta: há queixa entre os convivas.

O povo, que saiu das entranhas de Paros,

Vê deusas a beber nos cíatos mais raros,

Em áureas hídrias, onde esplende a água do Hisso;

Desde as asas caindo em moles curvaturas

Há desenhos gentis de folhas e figuras:

Numa gravou o artista um grande deus submisso,

Ouvindo a flauta dupla à sombra de um loureiro

Entreaberto, deixando a rútila Hamadria

Mostrar-lhe o corpo nu, mais belo inda que o dia.

De um ruído de festa ecoa o bosque inteiro:

Atropelam-se, dando engambias pelos ares,

Trombetas recordando as árias seculares;

Casam-se aos crebos sons as notas cristalinas

Dos torcidos clarins, das flautas tibetanas.

Mordem o azul com raiva o incêncio dos rumores

Dos tímbales de ferro e o tufão dos tambores,

Metem dentro do bosque uma música grande,

Que rola, cresce, sobe, ondeira, engrossa, expande

Sanhudos vagalhões, candentes algazarras,

Que as almas prendem como em sonorosas garras.

Rasgam numa volata o éter do céu sereno

Umas flautas de Pã, complicadas de furos,

Tocando o hino de Orfeu ao rubro deus Sileno,

Cuja fronte senil coroam cachos maduros.

Segue-se logo a marcha atroante e alviçareira,

Que tem o reboar dos raios e dos ventos:

Ferem a um tempo igual os marciais instrumentos

Variados, em tropel, da música guerreira,

Que a Grécia deve a si e à conquista estrangeira.

O aloés de Socotrá, a mirra, o cinamomo

Desdobrando espirais, ardem dançando, como

As mulheres da Líbia, as pérsias prisioneiras;

As argolas dos pés, a prata das pulseiras

Fazem tinir e ondear o corpo doudejante,

Rindo em baixo o tapete, em cima a luz amante:

Quinor, halil, querem, e o ugale e a viola,

O exíguo sistro egípcio, a soturna tarola,

O triangular trigone, o quim vindo da China

Metem dentro do bosque uma marcha divina:

O instrumento do Epiro, a guzla da montanha,

Com que o gado a pastar o campônio acompanha,

Casam-se à orquestra forte, epodo triunfante:

Aos deuses e aos heróis, em festim deslumbrante:

Tanto canta o halil como canta o perfume:

De Hebe e Ísis ao lado Eco, sempre desperta,

Em variegados tons vibrava uma harpa alerta...

Evoé!... Passa Baco, o belo, o louro nume;

Rolam tigres o carro, onde o deus irradia;

E cada tigre negro um Amor monta e guia.

Vêm à festa de longe e estendem-se na erva

Deuses, como Plutão, deusas, como Minerva;

E alguns dos velhos reis, Alcmoroe e Melanto,

Codrus e Pandion espiam-na de um canto.

Brilham de mão em mão jarras de largo bojo,

E longo colo estreito artístico-lavradas:

Há numa Onfália rindo e Hérculas de rojo;

Noutra um vasto jardim, onde há gregas pasmadas;

Um homérico canta, um outro toca a flauta:

Noutra Júpiter busca uma ninfa; ela incauta

Finge-se, foge, e esconde o rosto deslumbrante

Na longuíssima noute escura dos cabelos:

Mas o lábio a tremer-lhe espera o lábio amante:

Juno desce do Olimpo, ouve o beijo, arde em zelos...

Noutras, no céu, na luz, num deus, num val, num monte

Vão copiando Orfeu, Bion, Anacreonte;

Noutras, traçando o artista o lineamento e a ideia,

Junta à graça do idílio a força da epopeia:

Noutras, variando em gesto, em arte, e ornando as mesas,

Cantam flores, cheirando: — há lâmpadas acesas

De oiro e argento de um bico, e várias formas raras:

A chama dança ao vento e ri, dançando, às aras,

Que têm, em moldes de oiro, os deuses tutelares:

Aos pés grasnam, pascendo, os grous familiares.

A água do clepsidro estala, cai, murmura,

Que é um instante o prazer, que asas tem a ventura.


Volta, passa e repassa, e volta a todo instante

Oba, e enoqueu, e cratera, e ríton espumante

Do vinho, que produz a pampinosa Delos:

Címbios de prata e de oiro, onde há desenhos belos

De folhagem de acanto e ramarias verdes,

Às mãos de Ilírias vão passando: é só beberdes.

O ambiente é largo, doce, olerente, quasi morno:

É enquanto os histriões as sonorosas rimas

Cantam de um vate iônio e arriscam pantomimas,

Olhos meigos descendo à turva alegre em torno,

Praxíteles coroado e Fídias resupino

Vazam fialos saudando o êmulo divino.

O pai dos deuses nunca aos deuses oferecera

Homenagem tão grande e duma tal maneira.

Jove deu-lhe a beber então em taça iônia

Cavada em transparente e rara cassidônia

Ambrosia do Olimpo amada e cara aos numes,

Olorada de nardo e excepcionais perfumes;

Fez o artista beber e a seu turno bebia

Ao mestre genial que ele ali aplaudia.

Do artista o paraninfo era o Victor Meirelles,

O mestre brasileiro, o nosso grande Apeles;

Os dois sob os frontões do pórfiro mais fino,

Entre colunas de oiro e mármor serpentino!...

XIII

Enquanto inebriado entre o rumor de vozes,

Dos hinos imortais entre as apoteoses

Radia a tua fronte e a deusa das cem tubas

Os últimos degraus espera enfim que subas,

Do alto templo da Glória e antes de erguer o grito,

Que o tempo apanha, para encher dele o infinito;

Enquanto, ó semideus, em teu banquene heleno,

Levantas os rítons que Quio encheu de aromas;

Enquanto ébrio de luz a terra inda não tomas,

Salvou à impura Hebreia o caso Nazareno?

Deus o fez grande; tu maior inda o fizeste:

Deus fê-lo um ser humano e tu um ser celeste:

Talhaste um braço forte, um torso de gigante:

Põe-lhe aos ombros um mundo, é já membrudo Atlante.

Oh! decerto venceu, e nesta hora a Judia

Anda a rir como o sol e como a luz riria!

Mas... não? Inda está presa?  Oh! grande eternidade!

Que pode então Jesus? Que pode a divindade?

Pode mais o cinzel, pode o mármore cego

Prender-te, ó Cristo, assim? Ó Cristo, assim deixar-te?

Pode mais do que tu o escopro, o gesto, a arte?

Rompe já a prisão, Jesus... senão... te nego.

XIV

Ó Deus, calma de vez a multidão em grita,

E baixa a branca mão de pedra de Carrara,

Que um ligeiro tremor, à luz do sol, agita.

Volta o rosto, Jesus: essa pérola rara,

Que caiu aos teus pés, treme cheia de medo:

A voz dela, Senhor, vai sair do rochedo:

Só lho impede o pavor que a abala, a cega, a enturva.

A mão, que tens sobre ela aberta, e onde uma curva

Ligeira faz lembrar a abóbada celeste,

Que a carícia amolenta e um lírio branco veste,

Se a multidão fugiu, retira-a brandamente.

Não sei se ela pecou, não sei se a Bíblia mente:

O que tens a teus pés é a beleza viva:

Mas na pobre mulher, na mulher fugitiva.

Na terra vã, Jesus, tudo é fragilidade:

Tu... tu só és amor, perdão, e caridade:

Se és homem, faz-te Deus a sublime doutrina;

Se és Deus, tens nela só a grandeza divina.

Dá que o astro ilumine, oh! dá que surja a estrela,

Que o ar gorjeie, ao ouvi-la, a luz sorria, ao vê-la:

Acaba esse tormento, acaba essa tortura:

Deus, queremos de pé a ideal formosura.

E vê-la. Quanto mais o mármore se humilha,

Enquanto em mais palor se banha, ela mais brilha.

Mas essa posição no fim de tudo é rude:

Não a deixes guardar a incômoda atitude:

Ó Cristo, embora irado um pouco ainda, eu vejo,

Que há em todo o teu corpo um frêmito... um desejo...

Pôs-te à boca de pedra um tal gesto a ternura,

Que é decerto o perdão, o que ela inda murmura.

Dos teus pés, ó Jesus, desamarra essa aurora;

É tempo de partir: venha o milagre. Agora!...

Ó Ieschu bar-Iossef de Nazaré, ó Cristo,

Dá-nos prodígio novo, um prodígio não visto,

Ergue a estátua abatida, inda aos teus pés, e faze

O que o artista não fez: ergue-a enfim sobre a base.

XV

Quero ver como emerge aquela formosura

Da sombra de terror em que a prende a escultura.

Oh! quero-a alevantada!... Ela assim com certeza

Mais bela inda será que o ideal da beleza!

Rompa-se, estale, quebre a invisível corrente,

Que a esmaga: ela esmagada ali, quem a não sente?

Abra-se a concha e surja a Vênus Citereia:

Não stá aos pés do Deus, que a ampara? O que receia?

Como o lírio abatido, ou vergada açucena,

Vê-la imbele, enrolada, hirta, trêmula!... é pena.

Volta-lhe o rosto, Deus, e faze à tua vista

Levantar-se a mulher, que pôs no chão o artista.

Sublime religião é a mulher: queixosa,

É religião sublime e já vitoriosa.

Nós queríamos ver num jorro de alegria

O alvoroço da luz, o barulho do dia,

E o mover de asas de oiro, e o endoidecido adejo,

Com que lhe canta à boca a égloga de um beijo.

As rosas de Saron, os lírios da Judeia

Cantariam, dançando em festival coreia:

E os perfumes da Arábia a rir, em doido bando,

Andariam de volta, em seus lábios brincando.

Que alarido de estrofe a roupa desfraldada

Faria pelo céu à primeira passada!

A auréola de luz que enrolou Fiesolo

Em seus anjos, viria agasalhar-lhe o colo:

Cobrira-lhe a nudez com deslumbrante arminho,

Mais branco e mais cheiroso, Hebreia, que teu linho.

Ó Deus, à multidão num gesto do teu dedo,

Mostra a estátua do Amor, não a estátua do medo.

XVI

Mas se o escultor prendeu à pedra um só instante,

Que do tempo arrancou seu pulso de gigante,

E se lhe misturou a escopro, à lima, a malho

A própria eternidade, à custa de trabalho,

Miguelangelizando o bloco, e o fogo ardente

Do seu estro, que acende o belo transcendente,

Sob aquele palor de mármore a escondendo,

Então tirou-te, ó Cristo, o teu poder, tremendo!

Guardarás para sempre o teu eterno aceno,

Tu serás inda o moço, o belo nazareno,

Mas sem poder e força, e voz, e sem virtude,

Amarrado, durante o tempo, na atitude

Em que te martelou o artista onipotente,

Para mostrar ao mundo o seu valor somente,

O seu gênio, a sua alma, o que pode a vontade;

Porque tu nesta pedra estás sem liberdade,

E quem faz o milagre, ó filho da Judeia,

É quem meteu na pedra, a ferro e braço, a ideia,

Quem te ergueu sobre o soco e aos teus pés pôs de rastro,

Num mármore sem luz, a irisação de um astro!

XVII

Viu-se o escultor vencer a própria eternidade:

É assim que os verá o tempo; e vê-los há de

Os dois, como das mãos do gênio o grupo veio:

A adúltera esmagada, atônita, vencida,

E o braço de Jesus, que sai da manga a meio,

No ar guardando a mão eternamente erguida.