Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Cinza e bruma e Poemas dispersos de Othon d'Eça. Florianópolis: Fundação do Banco do Brasil; Ed. da UFSC, 1992. Poemas DispersosOthon Gama d'Eça

Minha ilha

Bendita sejas pelo tempo afora,Ilha do meu Amor! Meu verde altar,Onde a minha alma ajoelhada ora,Com a contrição de quem vai comungar.Em ti exalto a imagem do meu lar;O casarão em que a saudade vela,A contemplar além, beijando o mar,A silhueta azul do Cambirela.E canto as formas túmidas, redondas,Dos teus morros bordados de esplendores!A cidade que sonha, ouvindo as ondas,E os meus velhos amigos pescadores!Ilha do meu Amor! Bendita sejas,No que tu mostras e no que sugeres!Na serena postura das igrejas,E nos olhos castanhos das mulheres!E bendito o teu céu cor de safiraE o teu agreste corpo de esmeralda!E o mar, que em torno a ti de amor suspira,E lábaros d'espuma ao sol desfralda!E bendito o teu povo de praieiros,Que constrói ele mesmo o seu casal;E fala a velha língua dos troveiros,Como falava o avô de Portugal!Cerro os olhos e vejo na lembrançaO que tu tens de belo e de lendário:Um regaço de praia onde um barco descansa.Sob as ramas de um cedro solitário!Ou então uma fonte, um caminho, um telhado,Docemente a surgir nos braços do arvoredo. E refolhos de mato abobadado,Com chilreios, e sombra, e perfume, e segredo!OferendaIlha do meu Amor! Por ti palpitaO mais apaixonado coração!Tu és a minha verde Sulamita,A luz do meu olhar e a minha devoção. (República – 09/12/1923)

Cantigas ilhoas

I

Cantiga da minha vida,Cantiga do coração!Apenas por mim sentida,Nas horas de solidão...Cantiga da minha vida,Divina consolação!Coitada da entrevadinha,Que no caminho encontrei!Tão velha, tão pobrezinha,Que até de pena eu chorei.Coitada da entrevadinha,Que só me disse: "Não sei!"Morreu-lhe a mãe, coitadinho,Na noite em que ele nasceu!Ficou sozinho no Mundo E só – no Mundo cresceu!Morreu-lhe a mãe, coitadinho,No dia em que o pai morreu!No cálice da madrugada,Eu vi a rosa de Pã!Tão linda, e toda orvalhadaComo uma deusa pagã...No cálice da madrugada,Eu vi a flor da manhã! (Revista "Terra" – maio/1920)

Cantigas ilhoas

II

Meu amor partiu para a guerra,Quando o meu filho nasceu.Fiquei sozinha na terra,Porque meu filho morreu.Meu amor partiu para a guerra,E já de mim se esqueceu.Mas levo sempre a pensarQue tudo foi Deus quem quis.E sorrio, sorrio a lembrarO tempo em que fui feliz!Mas levo sempre a pensarMaria! Por que sorris?E fico, então, para um canto,A desfiar hora e hora.Choram meus olhos, enquantoCigarras cantam lá fora!E fico, então para um canto,Rezando à  Nossa Senhora! (República – 26/06/1921)

Cantigas ilhoas

III

Como a cigarra vadiaEu cantei de olhos no céu.E cantando noite e diaNinguém, ninguém me entendeu.Como a cigarra vadia,Meu coração já morreu.Agora no seu lugar,Geme e chora uma velhinha,Que vive sempre a fiar,Toda branca e curvadinha.Agora, no seu lugar,A saudade está sozinha.E o floco que vai fiandoÉ feito dessas cantigasQue eu fui na vida espalhandoPelas estradas antigas.E o floco que vai fiandoFere-lhe as mãos como urtigas!Mas o sangue que gotejaDas suas mãos engelhadas,Caindo n'alma florejaEm roseiras encantadas;Mas o sangue que gotejaDeixa as mágoas consoladas.(República – 20/04/1923)

Cantigas ilhoas

IV

À doce luz que desmaia,Por sobre as ondas do mar,O velho cedro da praiaParece um monge, a rezar!À doce luz que desmaia,Um vulto passa a cantar!E canta a linda cançãoDum passarinho doirado,Que um terrível furacãoDestruiu o ninho amado.E canta a linda cançãoDum pobre ser torturado.(República – 08/03/24)

Cantigas ilhoas

V

Cigarra d'asas de renda,Perdulária da canção,Verde folha duma lendaQue o outono atira ao chão!Cigarra d'asas de renda,Voz alada do verão!Chegaste! E quanta alegriaO teu canto espalha no ar!Até parece que o diaSe ajoelha a te escutar.Chegaste! E quanta alegriaVem teu canto despertar!Mas é breve a tua sorte,Que se desfaz como os ninhos!Vem o frio e vem a morte,e rolas pelos espinhos.Mas é breve a tua sorte,Flor de canto dos caminhos!A fonte vive rimandoCantigas claras, joviais.Que linda fonte cantando,Por sob os teus roseirais!A fonte vive rimando:– Não te queixes nunca mais!Desceu sozinha dos montes,A cantar, sempre a cantar.Se tens mágoas, não mas contes,Que pode a fonte chorar!Desceu sozinha dos montes,Sempre alegre, a borbulhar!Não chores, fonte da estrada,Não te voltes para trás.Canta sempre, deslumbrada,Cantigas claras, joviais!Não chores, fonte da estrada,Não te queixes nunca mais!Sois bem irmãs das aranhas,Rendeiras do Ribeirão!Tramando teias estranhas,Pra prender meu coração.Sois bem irmãs das aranhas,Tecendo espumas em vão!Os fusos dos vossos dedosQuanta vez tecem cantando,Enquanto tristes segredosAos poucos vão vos matando!Os fusos dos vossos dedosBailam e cantam sangrando.Por isso as rendas de linho– Espumas tristes de luar!São os perfumes do espinho,Vossa vida a rasgar!Por isso as rendas de linhoSão todas vós, a penar!Saudade é Dor meiguiceira,Carpida na solidão.Espinho de laranjeiraCravado no coração!Saudade é Dor meiguiceiraQue vem á boca em canção!Toda a vida da genteNum sonho azul que se esvai.Poeira resplandecenteQue do passado nos cai...É toda a vida da gente,Que se resume num ai!Nasci na concha redonda,Num dia de vento sul.Foi minha mãe – uma onda.Foi meu pai o céu azul.Nasci na concha redonda,Batizou-me – um deus exul!(República" – 11/02/1923)

Poemas da minha ilha

A Ivo d'AquinoTorres de S. Francisco! Velhas torres,Cheias de lenda e de tranquilidade,Como dois braços pétreos da cidade,Para os homens pedindo a Deus favores!Nada perturba a expressão severa,A ascética postura e o sossegoDessas torres velhíssimas e sujas!No rumor de luz da Primavera,E o trissar hediondo do morcegoE o chirrio agourento das corujas!Sua legenda é a imagem de DestinosQue vão subindo iguais e iguais sonhando,E as mesmas canções ambos cantando,Nas baladas helênicas dos sinos!Nestas noites de vento e de geadas,Ao calor do meu lar as rememoro,Tão sombrias e mudas, engolfadas,Na solidão da rua Deodoro!(República – 28/12/1919)

Versos do meu exílio

Para a emotiva e pura alma de Altino FloresSinos de minha Terra! Éreas flores de Lis! Imaculadas flores de Maria!Eu quisera escutar-vos, noite e dia,Para ser mais Feliz!Quanta vez vos recordo em repiques festivos,Ou plangentes de mágoas, tristes e sentidos!E que vos tenho ainda dentro dos ouvidos,Como os cantos do mar nas valvas redivivos!Sangra o Sol, a morrer, num Gólgota profano,Coroado de azul, ungido de verbena!Erra em tudo o esplendor do verso marianoDos salmos que entoais nas tardes de novenaE vem depois o Inverno... a paisagem encanece,E fica, erma, a viver o sonho das neblinas,Dentro, então, da bruma, essa música pareceUm coro ritual de monjas ursulinas!Sinos de minha Terra! Éreas flores de Lis!Imaculadas Flores de Maria!Quem pudera escutar-vos, noite e dia,Para ser mais feliz!(República – 14/12/1919)

No exílio

Como é triste o Inverno nestes diasDe névoas lentas e sombrias!A luz é pardacenta,Fumarenta,E cheiaDa melancolia enervante, sonolenta,Que o dia monótono semeia!Imóveis, espetrais, as árvores vazias,Transidas de solidão,Dentro das neblinas frias,Erradias,Crescem, e assemelham-seA garatujas feitas a carvão.As cores esmaecem, se apagando,Nesses tons de camurças esgarçadasQue, descendo do céu e caminhando,Deixam manchas de sombras pelo chão.Como é triste o Inverno nestes diasDe névoas lentas e sombrias!Uma aragem gelada que trespassa,Como pontas finas de punhais,Condensa vapores nas vidraças,Gelando as gotas d'água nos beirais!E a paisagem friorenta,Cismarenta,Esbatida entre a gaze fumacenta,Quem a deforma, adelaça e a esfarela, PareceUns debuxos manchados em flanela.Uma estranha saudade me adormece,Ao calor amoroso do braseiro,Onde uma chama, trêmula, desmaia.E sonho a dança verde das ondas sob o sol,Que transforma as espumas num chuveiroDe aljôfares e rendas, pela praia!E revejo as manhãs de casto sol,Quando os montes no mar são mais azuis,E os cantos clarinantes, cristalinos,Das cigarras, dos pássaros, dos sinosParecem a vibração da própria luz!Como é triste o Inverno nas montanhas,Com esses céus de chumbo! e as talagarçasDas brumas lentas e estranhas!E as cordoveias d'água, como açoites,Batendo nas paredes, nas vidraças,E arfando,Latejando,Dentro da solidão negra das noites!E a neve a bailar como sombras em bando,E o minuano dolorosamente,Desesperadamente,Pelas frinchas, pelas árvores, guaiando!(O Estado" – 29/12/1957)

As falas das areias

Oh! Alvos cômoros de areiasExilados na Lagoa, Qual a dor que vos anseiaPara andardes sempre à  toa?Que tortura vos enleia,E dentro de vós reboa,E à  luz do dia se alteiaEm giba que se amontoa?E os cômoros que me escutaram,Subindo à  escada do vento,Vieram a mim e falaram: – Nós somos como a criatura,Mudamos todo o momentoEm busca a uma ventura.

Marinha

Desce, lento, o crepúsculo do ar.Longe, impreciso, o vulto de uma velaÉ um risco de giz a se apagar.Há um crespo fulor de opala e turmalinas,Por sobre as águas trêmulas do mar!Ao fundo da baía, enorme, o Cambirela,Com atitudes plásticas e estranhas,Embrulha-se num manto de neblinas,Para dormir o sono das montanhas!Nenhum rumor esgarça o silêncio de plumas,Dentro da sombra azul em que mergulha a vida!Somente o borbulhar molhado das espumas,É que em manchas de rendas se desfaz;Tem uns anseios de água mal contidaRoçando as pedras ásperas do cais...........................................Mas, estranha, enervante, singular,A noite baixou!– Como a noite entristece a todos nós!A cidade repousa. Sobre o mar,Entre as luzes esparsas dos faróis,Veio a nódoa da lua espadanar.(1936)

A lua e a ponte

Dorme a cidade junto ao mar tranquilo,Onde nadam reflexos em cardumesE ondeiam sombras efêmeras e estranhas.Em torno oscilam os longos fios de lumesComo os festões de um vago peristilo.É tarde. A noite busca o abrigo das montanhas;E o vento arisco espalha e amadureceAs maresias verdes do canal.Passa um grande barco de altas vergas em cruz.E enorme, redonda, a lua cheia parece,Entre as duas torres da Ponte Hercílio Luz,Um luminoso gongo de cristal.(O Estado – 09/07/1957)

Elegia da neve

A Francisco FagundesA neve baila em passos de algodãoE paira, e treme, e adeja, e voluteia,E cai, depois, serena, sobre o chão!É cinza o céu, com laivos cor de areia,E as árvores, tranquilas,Com véus de tule branca sobre os braços,Guardam sonhos de verde nas pupilas,E glorificações de sol, pelos espaços!Não passa no silêncio um sopro de existência!Somente um solitário pássaro friorento,Tristonho e arrepiado,De vez em quando pia o seu lamento,Da beira de um telhado.É a saudade, talvez, da companheira,Que o punge e que o maltrata.Recordações de Amor, em manhã soalheira,Quando iam beber nos arroios de prata!Nas vidraças a luz empalidece.Tudo é branco e deserto! O dia emudeceu!E curvo, e frio, e triste se pareceA um grande mausoléu!Que tristeza me fere e me endolora,E anestesia o pobre coração!A neve, em flocos, cai lá fora,E paira, e treme, e adeja, e voluteia,Bailando uma ciranda de algodão!(Republica – 13/09/1923)

Baladas do silêncio

A Haroldo CalladoTardes de Inverno!...Tristes e desertas!...De frangalhos de névoas mal cobertas!Ante a lenta expressão dos vossos passos,Tudo em torno parece meditar,Na postura de quem, cruzando os braços,Sente a vida esvair-se, devagar!...Tardes de Inverno!... Almas silenciosas,Que se ferem nas tramas dos espinhos,Derramando das chagas dolorosasTodo um sangue de névoas, nos caminhos...Eu vos sigo de olhar cheio de pranto,Estoicas e serenas!Como aluém que, sozinho, para um canto,Relembra as suas penas!.............................................Tardes de Inverno!... Lentas, enevoadas,E cheias de moleza!...Margaridas exuis, pelas estradas,Morrendo de tristeza!(Oásis – julho/1918)

Velas

A Tito CarvalhoA vela que vem, côncava e brancaComo um túmido seio de mulher!Quanto alvoroço aos corações arranca!Quanta alegria viça em quem a quer!A vela que cai, imóvel na distância,Como um ponto sombrio de exclamação!Tristeza de quem fica, ressonânciaDa saudade que foi num coração!Velas que vêm! Velas que vão! SingelasComo folhas, estranhas como opalas!É o destino plácido das velasTrazer felicidades ou levá-las!

Manchas

É a triste lagoa, a pobre água parada.

Só o vento consegue, passageiramente, enrugar-lhe a superfície lisa, balançar as manchas d'espumas verdes que fervem, imóveis, no seu dorso de polvo.

Quando a noite desce e os escaravelhos do campo se recolhem, alguns sapos emergem, a espiar as estrelas, sujos de lodo visguento.

E é só quando a água parada sente a sensação efêmera do movimento.

Sob o sol a lagoa adormece, entorpecida como polvo.

Apenas, de quando em quando, sobe do fundo paludoso uma bolha prateada, que rebenta na superfície morna e oleosa e fica imóvel, flutuando entre outras, aberta e úmida como a flor dos pântanos.

Tudo é deserto, infinitamente deserto, em torno da água parada!

E de tanta solidão, e de tanta tristeza, uma garça velha e suja, sobre um pé, escondendo a cabeça sob a asa, ficou tão indiferente e tão insensível que um pequeno caburé, sinistro e feio, posou-lhe no dorso para sentir, através dos seus olhos redondos e amarelos, a enervante melancolia das cousas.

(Republica – 02/03/1924)

Balada da árvore

Plantei, cheio de amor, na minha estradaEssa árvore que o vento desfolhou,Era linda a minha ama fatigada,À sua sombra meiga repousou.Toda a minha alegria enternecidaEstava nela e nela se aninhou.Mas, veio o Inverno e a essa árvore queridaA primavera nunca mais voltou!Bailando ao vento a copa desgrenhada,O seu pranto de folhas derramou.Triste pranto de mágoa resignada,E que humilde e serena se calou.Era tão linda a rama adormecida,A carícia do sol que a fecundou!Mas veio o Inverno e a essa árvore queridaA primavera nunca mais voltou!Pelo destino plácido pisada,A doce árvore em tédio se abismou.O meu sonho de sombra abençoada,Como um sonho de sombra se apagou.Fora a verde Ventura prometida,Que os meus olhos de poeta alvoroçou!Mas, veio o Inverno e a essa árvore queridaA primavera nunca mais voltou!OferendaMinha pobre Ventura encanecida,És a árvore que o vento desfolhou!Deixou-te o Inverno exânime, despida,E à  triste solidão da tua vidaA primavera nunca mais voltou!

O besouro

A Mâncio da CostaAbrindo o élitro de oiro ao sol do meio-dia,Solta as asas de renda um besouro irisado.E voa, num boleio em que vibra e irradiaO mistério que tem no seu corpo esmaltado.Um prisma de cristal... Alada lira eólia,Que vai deixando, após, um som no espaço, a errar.Chamou-o, com certeza, o odor dessa magnólia,Em cujo colo branco o inseto foi pousar.Ei-lo, imóvel, sugando o néctar que o entontece,Indiferente e frio... Um inseto qualquer...Mas na carne da flor o besouro pareceUma joia a luzir num seio de mulher...(República – 08/09/1923)

O fumo do meu cigarro

Do meu cinzeiro exótico de barro,Esguio, espiralante e leve,O fumo azul do meu cigarroSobe – pobre fumo nevoento e breve!A tua espúmea ondulação de renda,Bizarra, singular e fantasista,Tem aparências longas de legenda,Qualquer cousa de um verso impressionista.Como eu te invejo a vida passageira,– A tua vida efêmera de som! –E essa tua panache flibusteira,E o teu aroma capitoso e bom!Ao ver-te agora inquieto de repente,Não sei porque me vem ao pensamento,Que o meu cinzeiro é um elmo reluzente,Com longas plumas bracejando ao vento;E que esta mesa humílima e pequena,Cheia de livros, autos e papéis,Num momento se muda numa arena,Ornada de pendões e de broquéis.E ouço trompas altivas, e alaúdesDe menestréis, e cantos de troveiros,E vozes de mulher, e brados rudes,De servos e palafreneiros!E penso até que, de viseira erguida,Eu desafio à  luta quem quiser,Alegremente aventurando a vidaPor dois olhos castanhos de mulher!E o meu cigarro se apagou, depois...E vi então como era igual e breveMeu pobre fumo espiralante e leve,Esta vida de sonho de nós dois.

Noturno

Num canto do salão, entre jarrões antigos,O piano acordou nos lamentos de um Noturno.Lá fora esvai-se a tarde. Os muros e os postigosEnchem-se das brumas de um poente taciturno.Chopin fere, febril, as teclas de marfim.E a música dolente no salão sombrioEvoca um leque azul de nácar e cetim...A mulher que ele amou!... A névoa sobre o rio.Um harpejo em bemóis... Sobre o ebúrneo teclado,De repente emudece o poema que o endolora...Uma data, talvez, que o Noturno memora...As mãos de George Sand... Um beijo demorado...Um instante de amor vivido na Polônia,Sob o lúpulo verde e flores de begônia,Que passou, como passa, um aroma doirado! ..................................................................................................O velho carrilhão de um relógio flamengoCanta, sobre a chaminé, o minueto de tial.A vida dormeceu no salão solarengo,Onde há rosas morrendo em vasos de coral!...(Atualidades – junho/1950)

Dor sem orlas

Para o pecado dos homens e o luxo das mulheres.Quando o inverno vier e vos achar sozinhos,Sem mais consolo, ao canto da lareira,E o vento e o frio atroz, ao longo dos caminhos,Forem cortando a folha derradeira;Quando o tempo esfriar o vosso ardente sangue,E a saudade estiver mais perto de vós:– Na triste solidão da vossa vida exangueHaveis de vos sentir muito mais sós!Então, mal escorrer do vosso olhar sem brilhoEsse pranto infecundo e malsinado,Sofrendo a amarga falta do sorrir de um filho,– Havereis de maldizer vosso passado!(O Estado – 28/07/1957)

Renúncia

Deixa o que tens e vive da EsperançaE dentro do teu sonho te agasalhes!Somente é puro o Bem que não se alcança!– Será mais belo o fruto sem que o talhes!Não creias na Ventura que não cansa.E a tua Fantasia – não a esgalhes.Constrói a tua Torre da faiançaCom as mesmas Ilusões que ao sol espalhes.Tudo farta na Vida e tudo é luto!Esse Bem que parece te alegrarE uma árvore e não dá fruto!Felicidade está no desejar,Porque se tem na vida o olhar enxuto,Quando se vive apenas a esperar!

Profissao de fé

E dizem que não te amo! E falam tantoDeste amor imortal que nos enleia,Que eu te amo, até, os males que semeiaO vesgo olhar de inveja e de quebranto!Ruge a insídia em redor, ruge! E no entantoCada vez este afeto se incendeia,Como chama que o vento mais alteia,E mais brilho derrama em cada canto!Mas que importa a maldade dessa gente,Que zune e zune em vão como um besouro,E há de um dia cansar-se, certamente!És para mim a luz que me extasia!E o teu corpo – o trigal de espigas de ouroE o teu beijo – o meu pão de cada dia.(República – 17/02/1924)

Misteriosa

A Tito CarvalhoEla era esguia e fina, e pareciaUm vaso italiano de cristal.Toda a gente, na rua, quando a via,Gostava do seu vulto original...Era a graça, o perfume que inebriaDum modo estranho e sobrenatural.E essa gente, encantada, nem sabiaSe no mundo nascera uma outra igual!– Donde veio, diziam, flor tão rara?Qual o canto da terra? Que cidadeO seu berço de plumas embalara?Mas ninguém nunca soube a verdade:Que essa flor de volúpia desataraNum humilde casebre da Trindade!(República – 27/09/1923)

Esses teus dedos...

A Edmundo da Luz PintoOs teus dedos,Com essas unhas longas e felinas,Que sugerem carícias e segredos,E volúpias perversas e assassinas;Esses teus dedosSão dez punhais de lâminas rosadas...Quando imóveis, serenos, sobre um livroCheio de letras godas e ouropéis,São pistilos de nácar, onde refulge o crivoDas pedrarias raras dos anéis,E das pétalas das unhas esmaltadas!...Porém, sobre o teclado ebúrneo de um piano,A correrem nervosos, sem cansaços,Os teus dedos são cobras assustadasSe agitando na ponta dos teus braços...(República – 18/09/1923)

Sinfonia pagã

Veio com a primavera e as rosas de SetembroEssa verde alegria das folhagens.E tímida chegou! – eu bem me lembro –Nos rebentinhos ruivos das galhagens.Houve um canto vermelho em toda a Natureza,Que em frêmitos de seiva se propala.As águas borbulharam de presteza,Na ventura amorosa de saudá-la!E o velho Pã, sugando os pâmpanos das parras,Ergueu as mãos agradecendo a Ceres,A pensar nas cantigas das cigarrasE no corpo nervoso das mulheres.(República – 7/04/1923)

Meditação

A Henrique FontesNesta manhã que os ares embalsama,Eu tenho a sensação nunca sentidaDe que palpita em todo panoramaUma Vida maior que a nossa vida.E em vão tenta minh'alma, dessa trama,Saber-lhe a contextura incompreendida.Mas como a borboleta em torno à chama,Ela se cansa e cai, desfalecida!E sempre estranha, sempre, há de ficarA subjetiva vida de paisagem,Sem que a possamos nunca desvendar!Porque a dextra divina, que a moldou,Suprimiu-lhe a expressão da sua imagem,Como em todas as cousas que criou!(República – 29/03/1923)

Flor de haxixe

A João Tolentino JúniorTece a trama de seda uma pequena aranha.A trama se parece uma Rosa de Vento!Mas a obreira de ouro, obreira de talento,Urde já a espiral que a Rosa toda apanha.Do abdômen a verter a filosela estranha,Roda, avança e não para um rápido momento!Alto, também o sol, num vão do firmamento,Vai tecendo, de luz, uma teia de aranha!Ei-la agora auscultando o coração da mata,O zumbir dos insetos, bem no ângulo de um galho,Calma, na intersecção de mil linhas de prata.Vendo-a, pensei rever, nos jardins de Mohamede,Farta do seu Paxá e farta do seu serralho,A favorita nua, a dormir numa rede!(República – 23/12/1919)

Paradoxal

A Oliveira e Silva"Vamos! – disse a ilusão. – O mundo é largoE em toda a parte crescem roseirais.Deixa a saudade, esse teu canto amargo,E essas tuas lembranças maternais!""Há delícias sem conta em cada pouso,E em cada pouso o Amor a te esperar!Vem ser feliz, meu pobre desditoso,Que bem nenhum terás em recordar!"E eu fui seguindo ao longo das estradas,Sempre atrás do seu vulto enganador.Tive os pés a sangrar, as mãos pisadas,E nunca foi tamanha a minha dor!– Mas, por que me tiraste da saudade?Por que tu mentiste? – eu lhe dizia:E ela voltava os olhos sem piedade,A me mostrar a nuvem fugidia.E caminhei assim anos a fio!Mas como o filho pródigo voltei,O peito exangue, pálido de frio,A me acolher no lar que abandonei.Hoje vivo de novo recordando.E de tudo o que o Tempo me deixou,Só me resta nos olhos, acenando,Esse vulto falaz que me enganou!(Republica – 28/02/1923)

Diálogo romântico

Se eu te dissesse: – Não! Se eu te negasseO pão do meu Amor,E sozinho na terra te deixasse?– Choraria de dor!Se eu te dissesse: – Vem! há tanta luzRendando a ramaria,Ao teu sólio encantado me conduz?– Vibrava de alegria!Se eu dissesse, fremindo como louca:Cinge-me ao coração,E aquece com teus beijos minha boca?– Morria de emoção!(República – 11/04/1923)

Milagre de amor

Quando a estrela da manhã, alta, subia,Reluzindo e fremente como um guizo,Três almas se encontraram, tiritando,À porta sideral do Paraíso.E a primeira bateu. E haviaUm altivo desdém nos seus gestos de mando.– Quem bate? – de dentro perguntaram.– Um Rei que foi na Terra poderoso!– Que sementes divinas espalharamAs tuas mãos? – Batalhas! Valoroso,Venci e conquistei cidades e países!E a porta de oiro, muda, inviolada,Como se tivesse raízes,Fulindo e cintilando radiosa,Permaneceu fechada!E a segunda bateu. E a voz harmoniosaDe novo perguntou: – Quem bate? –Um Sábio que viveu a meditarE longos anos passou no duro embateDo saber. E envelheceu para criar!E a porta de oiro, muda, inviolada,Faiscando e fremindo como um astro,Continuou fechada!E a terceira bateu. E a mesma voz:– Quem bate? – serena e doce interrogou.– Um Poeta que sempre andou de rastroPela Vida e que a Vida maltratou!– Que fizeste na terra? – Eu amei,E pondo em cada rima aromas e arrebóis,O meu amor em versos espalhei!Por toda a esfera azul um canto se expandiu!Então, rútila, resplandecente,Rodando nos seus gonzos, lentamente,A porta de oiro se abriu!(Atualidades – 1946)

O milagre do teu nome

Bem ao pé da parreirinhaQue o vento sul derrubou,Havia uma roseirinhaQue o frio de julho matou.Ninguém sabia quem tinhaSido o cristão que a plantou,Pois, à toa, a roseirinhaNasceu, floriu e murchou...Mas um dia que eu passava, – Minha Santa Milagreira! –Por perto dela e cantava,Teu lindo nome ela ouviu,Porque logo, alviçareira,Ficou verde e refloriu...(República – 13/02/1923)

Natal do céu

Pobrezinha de Deus, queria o seu Natal!E, contrita a rezar, na capela da aldeia,Suplicava ao Senhor que tanto Bem semeiaUm grão de sua Graça para o seu casal!Não pedia, no entanto, o ouro que estonteia,Nem que maior ficasse a leira e o seu trigal!Pobrezinha de Deus, queria o seu Natal:Um pouco mais de luz e azeite na candeia!E Dezembro chegou! Veio a missa do galo,O presépio onde havia um Jesus pequenino,Que dois anjos do Céu baixaram a coroá-lo!E o bom Nosso Senhor que ouvira essa oraçãoDa súplice mulher pôs-lhe um louro menino,No rubro sapatinho do seu coração!(República – 25/12/1919)

Romance

Ela passa na tarde de ametista,Elástica, sonâmbula, nervosa...Duas gotas de aroma cor-de-rosa,Entre riscos de gaze futurista...Onde vai? Ninguém sabe... Na modista...E a amiguinha cochicha, maliciosa:– Naquela rua estreita, silenciosa,Onde mora o pintor impressionista!...Ela passa... adorável... diferente!...E na curva distante da alameda,O seu vulto se esquissa, lentamente,Desce a noite serena, clara e quente.– Não te esperava!... Um sussurro de seda...E as janelas se apagam, de repente!...

A velha figueira do jardim

Essa velha figueira,Que na saudade vive junto a mim,Possui a sombra mais hospitaleiraE é a árvore mais bela do Jardim.Há na sua expressão tranquila e doceAlguma cousa de augural,Como se ela fosseUma sacerdotisa vegetal!Viu crescer a cidade em redorE o sol, na praia, em profusão,Como um perdulário messidor,AmadurarAs mãos cheias de flocos de algodão,Que as ondas atiraram, verdes, para o ar!Contam que, num momento, as frondes estendeu,Quando, num dia longe,A sua sombra curta, extático, morreuUm santo e peregrino monge.E desde então essa velha figueira,Humanizada e boa,Guardou no ser a alma forasteira,Que pela terra andara, errando, à toa!Toda a culpa ancestral, assim, remiuNas suas folhas desnudas!Sendo árvore infecunda, refloriu,Como antes de Judas.Hoje, em cada galho um braço viridenteParece abençoar a circundante alfombra.E que essa figueira agora senteA glória de viver para dar sombra!(Estado – 16/06/1957)

Os onze do morro

São os onze guris vadios e esfarrapados:Negros e mamelucos, brancos e mulatos,Toda a fauna infantil dos becos escarpados,Dos casebres de pau que apodrecem nos matos!É a equipe exul do Bode! É a equipe heril dos bambas,Que tem por chefe o Mango, um garoto safado,Que joga numa extrema e, se perde, faz lambas,Dá pulos e marradas como um bode alçado!Um retalho de rua, uma nesga baldia,Duas pedras no chão marcando o gol... E basta!E entre latas e cisco a torcida vadia,Em que avulta, a gritar, a fã nervosa e casta.A pelota da equipe é um pomo de ironia!Diferente da bola em gomos dos granfinos,Que vale muito mais que o salário de um dia,E o gringo Papai Noel não dá a tais meninos.É a pelota de trapo, feia como um bicho!Suja, miserável, endurecida e vária...Um pedaço de meia e farrapos de lixo,A pelota sem prol, plebeia e proletária!Foi Mango que a enjambrou, cantando de contente:Rija como um calhau, mais forte do que tudo!Não há chute que a estoure, nem há mão que a estripe!Mas aos pés dos guris tem fofos de veludo,E quando vara o gol parece até que senteA alegria que enlaça os moleques da equipe!Entre a turma e a pelota há um traço que os resume:A marca de uma origem, teia de um capricho;Nasceram os guris em casebres sem lume...E a pelota saiu de uma lata de lixo!Desce a noite no morro. Os onze regressaram.Sobre os sonhos sem cor da miséria que dormeE as cinzas e os carvões das fomes que abrandaram,A esperança constrói uma ilusão, singela!Mas enquanto a cobiça, na cidade enorme,As vigílias acende e as angústias sacode,Nos casebres do morro Deus protege e velaO sono ingênuo e puro da equipe do Bode!