Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

 Madrigais, de Juvêncio de Araújo


Texto-fonte:

Juvêncio de Araújo Figueredo, Madrigais,

Florianópolis: Tipografia do Conservador, 1888.

ÍNDICE

Giestas

I (Faz lua)

II (A luz clareia)

III (Muito bom dia)

IV (O féretro passava)

V (Arruma para trás)

VI (Chegaste enfim)

VII (Das límpidas alturas)

VIII (A noite era de julho)

IX (Vai alta a madrugada!)

X (Ia findando o dia)

XI (Em frente à minha casa)

XII (Tinha caído a tarde)

XIII (Agora mesmo vim)

XIV (Era uma tarde límpida)

XV (Ela tinha chegado)

XVI (Vamos ver as fogueiras)

XVII (Toda a minha cabeça)

Baladas

I (Bem sei que tens)

II (Loiras crianças)

III (Acompanha-me à floresta)

IV (O mar que vês)

V (Guardo ainda aquela trança)

VI (Manhã radiosa!)

VII (Não sei que dúlcidas falas)

VIII (Deita, Mimi)

IX (E vás embora)

X (Priminha, se aqui passasse)

XI (Há muito mais de dois meses)

XII (Morreu a linda criança)

XIII (Vês o mar...)

XIV (Por sobre as ondas do mar)

XV (Há muito tempo, morena)

 À MEMÓRIA DE MEUS PAIS

 

Giestas

Ao Dr. Joaquim R. Monteiro e a Cruz e Sousa

 

I

Ao Dr. Gama Rosa

Faz lua. – Nos caminhos

as moças e os rapazes

brandos como os lilases,

puros como os arminhos,

passam, vindo da casa das novenas,

de uma linda casita

muito alegre e bonita,

que fica assim num alto, entre verbenas.

Uma casita de janelas francas

de onde se avista o verde-escuro mar

rugindo, heroico, dentre espumas brancas.

O plácido luar

prateia as verdes searas

que vegetam nas longas esplanadas

onde as estradas claras,

vistas de bem de cima, nos parecem

enormes fitas que desaparecem

ao longe, nas quebradas...

Pelos ares a fora

vibra o metal das trêmulas risadas,

como por entre o despertar da aurora

o cantar dos canários amarelos.

Cheiram à rosa os úmidos cabelos

das morenas simpáticas

que os rapazes namoram

e doidamente adoram,

sentindo n'alma irradiações prismáticas.

Soam longe cantigas palpitantes,

cantigas feitas d'aço,

em peitos d'ouro, em almas de diamantes:

peitos tão puros e almas tão gloriosas

como a luz das estrelas silenciosas

nos parecendo lâmpadas suspensas

pelas paragens límpidas, imensas

do transparente côncavo do Espaço.

A serena alegria

tão casta como o dia

canta-lhes n'alma como um rouxinol,

umedecendo os corações abertos

onde há sonhos despertos,

desde a infância querida

que ri e canta pelo campo, ao sol

de um céu de madrepérola brunida.

.................................................

No entanto nos caminhos

sigo os batidos de moças e rapazes

brandos como os lilases,

puros como os arminhos,

mas um pouco nervoso e aborrecido

dos meus amores francos,

na casa das novenas,

entre jasmins e rosas e verbenas;

e vou-me embora e deixo a minha amada,

pelo simples respeito

daquela caminhada

me abrir no pé direito...

um calo... dos tamancos!

 

II

À Delminda Silveira

A luz clareia a límpida varanda

de onde nós dois sentados,

por uma janelinha aberta aos ares

magníficos da tarde,

passeamos os ávidos olhares

por sobre os verdes cromos delicados.

Ao sol das quatro que arde

por entre nuvens douro,

um rapazito de cabelo loiro

e chapeuzinho à banda,

passa cantando dúlcidas baladas,

as baladas de rimas cor de rosa,

frescas canções de amor e de esperanças,

tão virginais e cheias de ternuras

como os fluidos do olhar das aves mansas.

Há uma viva saúde nas verduras.

E do mar sobre as ondas sossegadas,

de espumação radiosa,

dos batéis mansamente vão-se abrindo

as velas, às rajadas,

como asas brancas, asas de gaivotas

de nós se despedindo

para longínquas regiões ignotas.

O vento burburinha no arvoredo

dum verde-bronze escuro,

como aos nossos ouvidos

uns lábios róseos, úmidos, queridos

murmurando a carícia de um segredo

divinamente puro

e terno e apaixonado...

Pelas bandas de além, no verde prado

vibra, por entre os flóreos espinheiros,

a cantoria alegre dos coleiros!

III

A Oscar Rosas

Muito bom dia, dona.

Venho de ver o mar tranquilo e doce

nas curvilíneas praias alvadias

se debruçando assim como se fosse

algum leão cansado.

Oriental madona

d'olhos pretos banhados de harmonias,

tu és o meu cuidado

mais forte e palpitante.

Eu por ti sinto o eflúvio da amizade,

o dulçoroso eflúvio

caindo-me no peito, inebriante,

como um vivo dilúvio

de luz de sol por toda a imensidade.

Quero-te um bem que tu nem julgas, filha!

Como és toda bonita,

principalmente quando,

numa graça infinita,

aos ombros nos arrumas a mantilha

e arrumas todo o teu cabelo loiro,

bem como quem arruma chuvas d'ouro...

E o teu olhar é um místico resumo

de encantos puros, sobrenaturais,

nos quais a vida de ilusões perfumo.

Olhar de um astro em noite azul de Agosto,

feito de beijos e de madrigais.

E é um céu o teu rosto!

A tua voz possui o mel das rosas

purpúreas, aromáticas e belas.

Ouvindo-te falar, eu sinto delas

emanações as mais deliciosas.

Como eu tenho ciúme ao ver-te ao lado

de um burguês desdentado,

um visconde que já não tem cabeça

e que ao jantar cochila...

Como eu quisera dar-te os meus segredos

no teu parque, através dos arvoredos...

Mas antes disso, ó minha viscondessa,

manda a razão que o bom do teu criado

amarre os cães de fila...

IV

A Bernardino Varella

O féretro passava

carregado por velhos e rapazes

que tinham dentro d'alma a sombra de asas

do um desgosto fatal pelo defunto.

Nas janelas das casas

e dos engenhos e das vendas junto

via-se muita gente que chorava

pelas profundas ilusões falazes

deste mundo cruel – tendo no rosto

as expressões de um grande sentimento.

E eu perguntei pela família dele,

que assim ficava nesse atroz desgosto.

Senhor, é um pobre que deixou no mundo

cinco filhos, coitados, cinco filhos

dos quais nenhum sequer por um momento

poderá trabalhar.

A sua vida fora um mar profundo,

fora um mar de amarguras...

Ah! meu senhor, aquele

a quem pranteiam tantas criaturas,

tinha por bens apenas dois novilhos,

em vez de ter uma casinha ao menos

para aos filhos deixar,

os filhos, sim, tão pobres e pequenos.

Chora-lhe a morte a esposa estremecida

num doloroso pranto amargo e triste...

Naquele peito de mulher existe

uma alma forte mas por fim vencida.

Quantas crianças choram-no, coitadas!...

E o féretro seguia,

tão grave como um monge,

o caminho da velha Freguesia...

À beira das estradas,

ao meio das porteiras,

umas simples e rudes lavadeiras

com lenços brancos acenando ao longe,

também choravam docemente o morto,

lançado-lhe um olhar vago e lutuoso,

o vago olhar absorto

que vem do humilde coração saudoso.

Mas entretanto a tarde declinara.

Ouro fulvo do sol se dissipara.

E além e além... na vastidão dos campos

entre as matas sombrias,

caíam tristes as neblinas frias

e fuzilava a luz dos pirilampos...

V

A João Corcoraca

Arruma para trás os teus cabelos

e prende-os numa fita.

Vamos dar um passeio nas campinas

e ouvir cantar nos ramos

os lindos gaturamos

e os alegres canários amarelos,

nesta manhã bonita.

Traz aquelas meninas,

as tuas filhas de cabelo louro,

que, como as aves límpidas cantando,

farão um belo coro

de arrebatantes músicas divinas.

Quero ouvi-las cantar

e ver seus olhos pretos fascinando

a branca estrela d'Alva

que surgindo do mar

brilha no azul puríssimo do espaço.

Dá-me o teu róseo braço,

esse teu róseo braço de princesa

e anda fitar comigo a natureza.

Em teu seio que cheira à rosa e malva,

que é tão macio como

um delicado, um saboroso pomo

d'onde se escorre um vinho,

irá toda a minh'alma, agasalhada

como dentro de um ninho

de paina uma ave esplêndida, dourada.

Iremos por aí, de braço dado,

sob o renque dos verdes laranjais,

alegres e contentes

como dois namorados que se estimam.

Lembraremos um dia de noivado.

Nos frescos roseirais

há colibris que rimam

lindas canções joviais

quentes de amor e de alegria quentes.

Rica manhã de Abril!

Céu azul-claro, doce, reluzindo,

por onde a aurora surge, colorindo

tudo de um belo tom primaveril!

Nada melhor do que por estas horas

dar-se um largo passeio

entre as tenras verduras da floresta

e ver-se a terra, o céu e o mar em festa

e respirar-se o sândalo de um seio

rubro como as auroras.

E vós, meigas crianças,

cantarolai ao longo das estradas,

do vosso amor as rútilas baladas

feitas de luz e feitas de esperanças.

VI

A Carlos de Paria

Chegaste enfim, chegaste

do teu belo passeio.

Mal sabes tu porém quanto receio

eu tive por cismar que o teu parente

talvez te acompanhasse...

Que ciúme então se tal se realizasse...

Não pude fazer nada,

nem mesmo ler os versos que mandaste,

aqueles sonoros versos radiantes

como raros diamantes.

Eu tinha a nostalgia de um doente.

Pensei de acompanhar-te pela estrada

onde, como uma olímpica princesa

oriental, passaste

a deslumbrar a toda a natureza.

Tive uns azedos laivos de ciúme...

Mas chegaste afinal, ó pomba amada.

E que leve perfume

do teu cabelo nas madeixas trazes

das roseiras em flor e dos lilases...

Vens contente e radiando

como uma ave encantada.

De certo ouviste dentre os laranjais,

dentre as frondes das árvores vibrando

os passarinhos cantos triunfais.

Viste do mar as ondas murmurosas,

as lindas ondas desse verde mar

que levantam espumas luminosas,

alvas, como que feitas de luar!

Tive um ciúme na verdade imenso

por cismar, por pensar que talvez fosses

acompanhada por alguém que eu penso.

Os teus sorrisos doces

dão-me um vivo conforto ao coração

e uma forte alegria...

Mas dissipou-se a dúvida sombria...

Acompanhou-te apenas o teu cão!

VII

A Ernesto Viegas

Das límpidas alturas

a aurora vem rasgando

a túnica radiosa,

ternamente vibrando

as baladas do amor pelas verduras.

E toda a natureza

a seus pés se ajoelha, e reverente

lhe beija a mão gloriosa,

como pelos palácios do Oriente

se beija as ricas mãos de uma princesa.

Dos alegres canários

rompe os ares azuis, claros do Maio

fresco gorjeio matinal de vários

tons que recordam mil gargantas d'ouro

por um céu vasto onde o ideal espraio

à luz de um rosto loiro.

Pelos cercados de jasmins e rosas,

à beira dos caminhos,

onde no estio as aves luminosas

costumam fazer ninhos,

do orvalho os pingos puros e sagrados

têm a casta aparência

de umas benditas lágrimas de prata

na branca flor divina da inocência

dos corações magoados.

O sol como uma esplêndida cascata

d'ouro em pó, vai radiando e colorindo

o largo espaço azul, côncavo, infindo,

undiflavando as nuvens que parecem

asas de sonhos ideais, profundos,

que levam dentro em si mundos e mundos

desses amores que nos fortalecem.

Andam pelos quintais

as cândidas crianças

de rosto suave e lábios cor da aurora,

rimando os madrigais,

as verdes esperanças

da sua vida angélica e sonora!

E a minha namorada,

rosa de Abril nevada,

enquanto o pai no laranjal toma ares,

da janela que dá para o caminho

me estende a mão alvíssima e louçã,

a sua mão de arminho,

que tanto me seduz,

vibrando-me de cara os seus olhares

simpáticos, bonitos e faiscantes

como os raros diamantes

dos cabelos de luz

da Estrela da manhã!

 

VIII

Ao Dr. Luiz Delfino

A noite era de Julho.

Ouvíamos da porta o cadenciado

e plácido marulho

do mar lambendo as praias alvadias,

brandamente prateado

de um místico luar.

Que lindo estava o mar!

Das canoas dos velhos pescadores

os remos mansamente iam cortando

as vivas ardentias

que parecem diamantes rutilando.

Ternas canções de amores

subiam das canoas para o espaço,

canções vibrantes, de aço,

ternas canções felizes

lembrando à mocidade o mar dourado,

o mar das crenças e das utopias

onde sonhos de esplêndidos matizes,

tão joviais, alegres e tão puros

cantam como nos ninhos

nas ramagens seguros,

os tenros passarinhos,

as avezinhas de plumagem branca.

Vinha uma aragem franca,

vinha do norte e entrava na saleta

caiada a fresco, muito bem caiada,

com janelas abertas para a estrada.

A bela Julieta,

uma pequena de olhos alagados

de luz de céu e boca cor de rosa;

pequena de trazer apaixonados

dois centos de rapazes,

desses que eram capazes

de passar uma vida tormentosa

por lhe beijar as tranças dos cabelos,

as veludosas tranças,

confortava-me o peito

com vivas esperanças

e profundos desvelos...

Falava-me a respeito

dos namorados que tivera outrora,

aos quinze anos gentis, na primavera

de sorrisos castíssimos de aurora

de um fresco mês de Agosto.

Mas que tudo passou como a quimera...

Que hoje então me adorava

muito, do coração...

dizia-me ela sempre a me fitar

... e se não fosse para mim desgosto

me contaria ao certo

uma grande paixão que ainda a matava

por um rapaz que amara como irmão,

o pequeno Roberto,

esse meigo rapaz

que lá tinha ido se ordenar em Roma

e estava p'ra chegar.

Ele era um poeta, um ramo de lilás,

pois como tu também fazia versos

de suavíssimo aroma,

em luz de sol imersos...

Um ciúme fatal me envenenava.

Houve um grande silêncio torturante.

Trocamos um olhar – No mesmo instante

pôs-se ela logo a me beijar a mão

numa doce alegria indefinida,

frenética a dizer que m'estimava

muito, do coração...

E tinha a voz dolente e comovida

e nos olhos azuis o azul mais lindo...

Mas eu violento, incrédulo, nervoso

ergui-me despeitado e fui saindo.

Ela ansiosa me chama

com voz que afeto exprime

e o veemente desejo de quem ama.

Não lhe atendi mais um minuto a voz

e sai furioso...

É que eu lembrara bem naquele lance

a Amélia, do romance

naturista O Crime

do Padre Amaro, de Eça de Queiroz.

 

IX

Ao Dr. Araripe Júnior

Vai alta a madrugada!

Uma por uma as lâmpadas do Etéreo

vão-se a sumir na tinta purpureada

do clarão matinal, fresco e sidéreo

Pelas estradas brancas

de saia levantada, nos joelhos

torneados e vermelhos,

as expansões da luz vivas e francas,

das aves às cantigas

frenéticas, nervosas,

as belas raparigas

vão entre o amor o as cismas luminosas,

ardentes, virginais,

como as estrofes quentes e os matizes

dos ternos madrigais

dos corações ingênuos e felizes !

Uma harmonia doce

vibra, do vento, ao largo das campinas,

assim se fosse

um concerto de músicas divinas.

Do orvalho as gotas puras,

as lágrimas do Azul,

caídas sobre as cândidas verduras,

ao fresco vento sul,

e ao sol que surge agora

com sua luz que esplêndida colora

os pontos mais distantes,

assemelham-se aos límpidos diamantes

da loja de um francês

onde ela entrara palpitante, rindo,

a comprar, uma vez!

E enquanto a madrugada

vai já alta no céu – da passarada

vai na floresta então repercutindo

um canto festival – e as mudas flores

das borboletas aos subtis adejos,

abrem-se como beijos

da natureza em meio aos resplendores!

 

X

A memória do Arão Ramos

Ia findando o dia.

O sol faiscava pelo céu do Poente,

e descia, descia

as escadas purpúreas,

como um globo de vidro, transvasando

radiações sulfúreas...

A tarde vinha as pálpebras fechando.

Nas casas dos vizinhos

os rapazes brincavam pelas eiras,

rindo e cantando umas canções de amores,

lindas canções brejeiras

da infância cor da aurora,

que alegre nos irrora

o coração de vivos esplendores.

Trinavam febrilmente os passarinhos

agitando as plumagens,

na maciez tenuíssima dos ninhos

suspensos nas ramagens,

como ninhos de esperança,

nos corações ingênuos das crianças.

Vinham do morro os homens do trabalho,

os simples lavradores

fortes como o carvalho,

no tirano lutar das suas dores.

Traziam n'alma o oceano da alegria,

o oceano d'ouro e prata,

que entorna em nosso peito uma cascata

de puros sons, tão doces e nitentes

como fluidos de límpidos luares

meridionais, nevados, transparentes,

no espelho azul dos mares.

Das casas pelas portas

entrava o aroma olímpico das rosas,

dos jasmins, violetas e giestas

nos cercados das hortas.

Raparigas modestas

pelas curvas das praias passeavam

como em bandos as pombas virginais.

E do mar sobre as ondas murmurosas

as gaivotas alvíssimas ruflavam

as asinhas, gloriosas,

castas e leves como os madrigais!

 

XI

A Jansen Júnior

Em frente à minha casa

mora uma moça de cabelo loiro.

De manhã quando pelo céu transvasa

a fresca luz da aurora,

pela janela afora

ela vibra umas dúlcidas cantigas

quentes e palpitantes,

que bem valem diamantes

num rico cofre de ouro.

Chamam-na a flor das lindas raparigas

deste belo lugar,

por ter uns olhos pretos

(verdadeiros infernos)

tão puros, tão simpáticos, tão ternos

como o cristal de um místico luar.

Tenho-lhe feito inúmeros sonetos

nos quais pintei-lhe a vida esplendorosa

que eu no campo passava

a viva luz gloriosa

do sol que pelos páramos faiscava.

Tem um quintal de flores

puras como os amores

que no meu peito floresceram tanto,

irrorados de castas primaveras,

asas brancas ruflando

por céus azuis adentro – como um canto

de olímpicas quimeras.

E como uns fios d'ouro os seus cabelos

pelas róseas espáduas vão radiando

de tal maneira, que dá gosto vê-los.

E quando o sol desmaia,

ao entardecer, passeia pela fonte

que fica além do verde-escuro monte

d'onde, sentada, avista o mar na praia.

N'alma bate-lhe as asas a saudade

por um bem que se foi e que não veio

para beijar-lhe a rubra flor do seio,

a flor da virgindade.

E tantos anos que já são passados,

com tão tristes cuidados,

com tão sombria e pálida lembrança...

O seu magoado olhar

por sobre o mar se perde,

vibra no verde mar;

mas vem-lhe ao coração muita esperança

só porque o mar é verde!

XII

A Cruz e Sousa

Tinha caído a tarde. – Nas campinas

a luz do sol morria

numa encantada e olímpica harmonia

de coloridos vagos.

Pelas fontes e lagos

nas águas cristalinas

o azul do céu brilhava brandamente.

Íamos de braço dado.

Os seus negros cabelos

caiam-lhe no seio perfumado

como algum pomo vindo do Oriente.

Acima dos rosados tornozelos,

o seu vestido azul

descobria uns pezinhos,

lindo casal êxul

de penugentos, nítidos pombinhos...

E o seu olhar então?!...

Nunca um olhar mais lindo

me derramara sobre o coração

tão imensas ternuras,

radiações tão límpidas, tão puras

de algum serene, infindo,

celestial clarão.

E cada risadinha que soltava

dos lábios castos, úmidos, rosados

como frutos da aurora,

parecia um canário que trinava

numa varanda de cristal, sonora.

Os cromos purpureados,

as bonitas paisagens,

faziam-lhe o mais doce bem estar.

E gostava de ver o largo mar

nas praias reluzentes

reproduzindo esplêndidas miragens

nas suas vagas mansas

onde bandos e bandos de crianças

travessas e ridentes

banham-se ao sol das tardes luminosas.

Os colibris voavam dentre as rosas

e zumbiam abelhas

nas cercas dos quintais

das casinhas vermelhas

onde à janela e costuravam moças

simples e virginais,

numa saúde, num vigor de roças

e tenros vegetais.

Falávamos na infância azul da vida.

Ao longe o sol morria

calmo, tranquilamente.

E sobre o triste coração da gente

e sobre aquelas casas

uma noite sem lua então descia,

como as profundas asas

de uma grande saudade indefinida...

 

XIII

A José Boiteux

Agora mesmo vim de ver o mar

como um espelho de cristal radiando

aos dormentes eflúvios do luar.

Está tranquilo e brando

como um grande lagar

de inefáveis doçuras

derramadas das límpidas alturas

de um céu aberto como um templo em festa.

Pelas praias em fora, pelas praias

vão-se as moças da aldeia, lindas moças

d'alma sincera e honesta,

trajando brancas e arrendadas saias

de frescura de linho ainda nas roças.

Todas alegres, todas galhofeiras,

entre expansivas, fervidas risadas,

levam no peito o coração contente

como as aves fagueiras

nas verdurosas, longas esplanadas

de um sítio agreste, cultural, saudável,

rufiando as asas venturosamente.

Entre elas vai a minha musa avante

toda risonha, lirial e amável,

meiga criatura que na trança ondeante

usa violetas e jasmins e rosas...

É mais modesta que elas todas. Vejo-a

de vestido de cassa

como se acaso visse das radiosas

plagas do Azul alguma estrela... e beijo-a

num sonho ideal que as ilusões quebranta.

Daquelas moças é a que mais me encanta,

é para mim a que possui mais graça.

XIV

A Marciano Soares

Era uma tarde límpida e formosa,

fresca, saudável, plácida, azulada,

caindo sobre os morros

em luminosos jorros

de luz imaculada

de leves tons de rosa.

O sol descia a escadaria de ouro,

afogando num rútilo clarão

o seu enorme crânio,

mas tão calmo e sereno

como quem desce a um fundo subterrâneo

com uma grande lâmpada na mão,           

em busca de um tesouro sagrado e luminoso

como os olhos do terno Nazareno.

O canto melodioso

das aves entre as múrmuras ramagens

dos salgueirais, rompia

a gaze azul dos ares,

numa branda e simpática harmonia

de emolientes luares

derramados no verde das paisagens.

Eu tinha entrado em casa da pequena,

uma linda morena

de sorrisos ingênuos nos olhares...

Os agrestes perfumes das verduras

entram pelas janelas.

E as madressilvas perfumosas, puras,

com jasmins e com rosas

entrelaçadas, formam bambinelas

que descem do beirado

vermelho do telhado.

A casinha, metida entre o arvoredo,

parece um alvo ninho

de algum dourado e meigo passarinho

que de manhã bem cedo,

alegremente as asas vai ruflando,

a cantar, a cantar pelo caminho

como quem vai cantando

estrofes feitas de um purpúreo sonho

que as ilusões mais castas alvorece.

Tem o aspecto risonho

a casinha que um ninho me parece,

a casinha caiada,

cheia de luz ao vir da madrugada

sonora e fulgente:

porque d'onde ela está se vê o Oriente,

da porta ou do terreiro

onde as galinhas brancas e pedreses,

d'asas num ruflamento prazenteiro,

parecem conversar...

A pequena falara em se casar...

Na sua boca fresca e perfumosa

havia uma promessa deliciosa

de amor e beijos ideais – e havia

nessa boca divina de harmonia,

da virgindade os cândidos ressábios...

– Foi nesta tarde que eu beijei-lhe os lábios...

Há de fazer dois meses.

XV

À Ibrantina de Oliveira

Ela tinha chegado de um passeio

nobre como o de alguma baronesa.

Ela Linha chegado

de ver o mar e toda a natureza.

Fresco como um jasmim

puríssimo, orvalhado,

lhe palpitava ansiosamente o seio

através do colete de cetim.

E sentou-se a meu lado.

Da sua fresca e juvenil cabeça

altiva como se de uma águia fosse,

o cabelo nos ombros lhe flutuava

em crespos, solto, límpido, e cheirava

a patchuli e a pétalas de rosa.

Toda alegre e travessa,

engraçada, simpática e bonita,

tinha nos lábios úmidos um doce,

celestial e encantador sorriso,

vedado paraíso

de inefáveis carinhos

e dulçorosos bálsamos d'esperanças.

Seus negros olhos sobre mim passeava,

seus negros olhos de uma luz bendita,

onde a etérea alegria

me parecia até que gorjeava

bem como as brandas avezinhas mansas

ao despontar do dia,

nos seus macios e plumosos ninhos.

Da nevada e gentil cor das espumas

o seu vestido relembrava algumas

laranjeiras em flor,

na primavera azul da mocidade

quando se sonha com jasmins e rosas,

e risonhos noivados

na catedral esplêndida do Amor,

a viva claridade

de uma porção de crenças virginais

que descem de paragens luminosas.

Os cantos dos coleiros

pelos verdes rosais

e pelos jasmineiros,

tinham – dizia a minha flor querida,

lhe enchido o peito de paixões secretas;

eles lhe pareciam

ternas canções de poetas

febris, alegres, joviais, dolentes,

d'almas flébeis e crentes,

cheias de um largo e místico sonhar!...

Na planura do mar

as céleres gaivotas que batiam

as asas delicadas,

lhe figuravam crenças em revoadas

pelos mares da vida

eterna, indefinida,

mares feitos de risos e amarguras,

mares profundos, insondáveis mares, –

abismos de pesares,

cavados de ilusão!

Todo o exalar suavíssimo das flores

se lhe infiltrava pelo coração,

como um licor de mágicas doçuras,

como um belo falerno

em gotas diamantinas

escorrendo nas taças cristalinas

do rico bródio de um Paxá moderno.

XVI

A Manoel Laureano

Vamos ver as fogueiras,

que hoje é dia do belo São João.

Vamos à casa da Maricas, vamos

nós dois que nos amamos.

No branco chão das eiras,

ao fúlgido clarão

das chamas coruscantes,

hão de estar muitos velhos e rapazes,

e muitas raparigas

novas, frementes, d'ímpetos audazes,

alegres, ternamente

conchegadas ao peito dos amantes,

ouvindo-lhes as lânguidas cantigas

e os contos engraçados

cujos protagonistas

são condes encantados,

em célebres conquistas...

Naturalmente hão de jogar-se as prendas,

dentro, na sala branca, iluminada,

onde logo na frente,

num bonito dossel, por entre rendas,

vê-se do santo a imagem venerada.

Veremos muitas canas

jogadas às fogueiras, ou dispersas

à mão ansiosa da rapaziada

que do prazer nas glórias mais insanas,

num murmúrio rude de conversas

salta, cambalhoteia pela estrada,

por milhares de vezes,

como cabras monteses...

Sobe o foguete ao ar, rápido estala,

num derramar de lágrimas de luz.

Que deslumbrante que há de estar a sala

d'onde o adorado primo de Jesus,

o discípulo amado,

junto ao dócil cordeiro imaculado,

nos lança o olhar profundamente mudo.

Como dá gosto à gente ir às novenas

assim, por noites claras e serenas!...

Agasalha a cabeça e vamos, vamos:

– tua mãe, teu filho e nós... que nos amamos...

Veste o róseo corpete de veludo

e põe nas tranças uma rosa aberta,

uma rosa que cheire a chá do Reno,

que te dê certa graça

a esse rosto moreno

que de meu peito as ilusões desperta...

O teu vestido azul-claro, de cassa,

aquele que te fica tão sentado

na cintura elegante,

hás de levar, e aquela linda manta

que levaste domingo à romaria...

Porém escuta, minha doce amante,

encantadora santa,

que não te zangues como no outro dia

com teus fúteis caprichos e ciúme...

Que boa noite alegre passaremos!...

oh ! que noite infinita...

Há de dançar-se, como é de costume;

e te previno já que dançaremos,

os dois, a Chama-Rita!...

XVII

A Virgílio Várzea

Toda a minha cabeça

estava cheia da visão de um sonho

pelos olhares de uma viscondessa

de rosto amável, límpido, risonho,

simpático, atraente,

que eu vira apenas uma vez somente.

Uma altiva madona d'olhos pretos,

d'olhos banhados de uma luz infinda,

tão rosada, tão linda,

inspiradora de ideais sonetos.

Seu cabelo bonito

fulgurava, cheirando

a sândalo esquisito,

longo, untuoso e flácido, rolando

acetinado e leve,

nas espáduas de neve,

entre as ondas alvíssimas das rendas.

Tinha no colo um rútilo adereço

das mais brilhantes e custosas prendas.

Na sua fresca boca perfumada,

um sorriso cantava-lhe, travesso,

numa graça infantil

de rósea madrugada

de um dia azul, meridional de Abril.

Todo aquele seu rosto

de uma epiderme cândida e cheirosa,

tinha a branda frescura imaculada

de uma rosa de Agosto,

de uma orvalhada rosa

que o sol infiltra de uma luz serena.

Da sua mão pequena

os dedinhos rosados,

tenros, franzinos, meigos, delicados,

batiam-me no rosto, petulantes,

numa terna carícia de quem sente

dentro de si o turbilhão fremente

das crenças palpitantes.

Nesse feliz momento

estávamos na sala

rica, dourada, aristocrata, nobre,

numa sala de góticas molduras,

onde os olhos do pobre

tremem de assombro e de deslumbramento,

simplesmente ao fitá-la.

Nas paredes pintadas

com esplendor oriental, radiosas

de tantas cinzeluras,

viam-se lindos quadros com paisagens

alegres, pitorescas, luminosas,

e cenas engraçadas

de príncipes e condes, em viagens

longínquas, demoradas...

Por sobre o branco mármore das mesas,

sobre o mármore branco de Carrara,

uma porção de fúlgidas miudezas

atraía as ideias:

vasos de fina porcelana rara,

níveas estatuetas

de célebres, amadas dulcineias,

galantes Julietas,

vários moluscos e cristais, ornatos,

flores, relíquias, álbuns com retratos...

Das janelas fitavam-se as parreiras

verdes, saudáveis, transbordantes de uva

e as altas laranjeiras

donde os pingos da chuva

das três da tarde, cintilando ao sol,

escorriam no chão.

Por essa ocasião,

do palacete no gentil pomar

ouvia-se cantar

maviosamente um terno rouxinol!

Numa azul otomana de veludo

esmaltada com flores d'ouro e prata,

eu estava a seu lado.

Casto olhar columbino me inundava

de uma viva cascata

de luz tão doce e que de tal maneira

dava-me aos nervos lânguida quebreira,

que eu me ficava inteiramente mudo.

Toda a minha cabeça

num conchego de ninho perfumado,

alegremente se acariciava

na mornura daqueles seios puros

como frutos maduros.

— E o róseo sonho ainda continuava.

A bela viscondessa

Beijocava-me a boca,

louca de amores, de desejos louca.

Prendi-a ébrio de paixão veemente,

Prendi-a pelo pulso,

mas logo, de repente,

sinto-lhe um grito trêmulo, convulso,

de quem quer desmaiar;

disperso e solto a viscondessa amada:

— Tinha prendido o pulso da criada

que me viera acordar.

 

Baladas

A Virgílio Várzea e Horácio de Carvalho

 

I

Bem sei que tens um peito aberto como um ninho,

como um ninho cheirando a rosas e a violetas,

onde minh'alma vai – errante passarinho,

se agasalhar batendo as asas irrequietas.

Bem sei que o teu olhar parece um céu de Maio,

tranquilamente azul, tranquilamente doce.

Céu por onde o ideal da minha vida espraio

como se esse ideal um grande oceano fosse.

Bem sei que em tua boca há palpitantes risos,

muitos risos febris, esplêndidos, vibrados

com ingênua expressão, puríssimos, precisos

aos peitos mais leais e aos corações magoados.

E sei que o teu cabelo – esse cabelo fino

caindo-te por sobre o seio palpitante,

tem o mesmo perfume olímpico o divino

do cabelo ideal das moças do Levante.

Pelas frescas manhãs, as flores delicadas,

as flores da campina, as perfumosas flores

enastram brandamente o branco das estradas

por onde passas tu cantando aos teus amores.

E teus mimosos pés de mágica escultura,

moldados como uns pés de pálida chinesa,

têm toda a graça e toda a mística brancura

de dois lindos jasmins de angélica pureza.

Quando passas, o sol, vitoriosamente,

cintila, ri e canta aos teus sonoros rastros.

E digo-te ainda mais e mais, pomba inocente,

que até gostam de ver-te, à noite, os outros astros.

Tens toda a compleição artística das virgens

que Sanzio desenhou com tintas primorosas.

E descendes talvez das orientais origens

das valquírias do norte altivas e formosas.

Praxíteles talvez, jamais esculturasse

um corpo mais gentil, brunido como a prata.

Beethoven não sonhou, talvez nunca ideasse

harmonia melhor do que essa voz desata.

E sente-se por sobre o coração dilúvios

de crenças virginais rufiando as brancas asas,

como do sol por entre os límpidos eflúvios

os pombos a voar pelos beirais das casas.

Como um lago de luz, num parque, – entre as ramagens

dos roseirais em flor, quando a lua aparece,

ao ver-se do teu corpo as cândidas roupagens

todo o puro cristal da ideia resplandece.

 

II

Loiras crianças, loiras e morenas,

crianças belas, cândidas, rosadas,

como vos quero e adoro, almas nevadas

vindas do azul das regiões serenas.

Quando eu escuto as ternas cantilenas

que dispersais, correndo nas estradas,

julgo-as canções febris e namoradas

de aves por entre arbustos de açucenas.

Gosto de amar-vos, virginais crianças,

vós que deixais nos corações magoados

tantos milhões de fúlgidas lembranças...

Vinde, vinde a meus braços fatigados.

A infância! a infância é um ninho de esperanças...

Cantarolai, ó pássaros dourados!

 

III

Acompanha-me à floresta,

nada receies, ó filha,

porque minh'alma, à modesta

luz de teus olhos, se humilha.

Vamos... Quero-te a meu lado,

claro sol dos meus amores.

Passeamos de braço dado,

entre o perfume das flores.

Pela natureza vibra

o teu carinhoso olhar

que é como terno luar

que no espaço se equilibra.

Dá-me o braço... de bem perto

veremos as pombas mansas,

e iremos de peito aberto

fazendo entrar esperanças.

Veremos como as paisagens,

pelas encostas dos morros,

produzem vivas miragens

da luz aos brilhantes jorros

sobre as ondas insondáveis,

as lindas ondas do mar

verde – esplêndido lagar

de doçuras inefáveis.

Vamos... Tu nem imaginas

quanto de teus olhos vivo;

flor das flores mais divinas,

meu branco lírio expressivo.

Às vezes quando num sonho

te sinto e vejo, criança,

como um cárcere risonho

prende-me a tua lembrança.

As minhas crianças mais belas

encharco ao vivo clarão

dela que em meu coração

passa derramando estrelas!...

Dentro era meu peito a alegria

bate as asas, canta e voa...

como uma ave, à luz do dia

nas margens de uma lagoa.

Gosto que vás aos passeios,

principalmente comigo

que adoro a flor de teus seios

e essa tu'alma investigo...

Com teu vestido azul-claro,

teu vestido de fustão

de pouco mais de tostão

ao metro (assim mesmo caro

p'ra ti que és pobre) me engraças,

me alegras e me entonteces...

– És um astro – quando passas

mil corações resplandeces.

Tu andas talvez mentindo!

Lá por cima é que tu moras,

filha, noutro mundo infindo,

de mais límpidas auroras.

Vendo-se os teus lindos olhos

de um misterioso fulgor,

crê-se em Deus, ó minha flor,

e a vida não tem abrolhos.

As rosas que as pétalas puras

molham no orvalho do céu,

quando lá pelas alturas

a aurora o místico véu

sacode do seio rubro,

lembram-me essa boca, ingrata,

que às vezes de beijos cubro

ouvindo-lhe a voz de prata.

As rosas lembram-me a tua

boca, porque, meu amor,

tem ela o mesmo frescor

em cada rir que flutua.

Como também me recorda

a cantoria das aves

esse teu falar que acorda

e desperta o sol, aos suaves

trinados dessa garganta

d'ouro e cristal, ó querida!...

– Tu és a estrela que encanta

a noite da minha vida.

O meu mais franco desejo

é ver-te, ó pomba infantil,

por um céu azul de Abril

revoando como um beijo.

As tuas mãos têm da malva

o fresco aroma e a pureza.

Mãos de uma pele tão alva!

Benditas mãos de princesa!

Acompanha-me à floresta,

nada receies, ó filha,

porque minh'alma, à modesta

luz de teus olhos, se humilha.

 

IV

O mar que vês nas praias tão bonitas

pelas rajadas tépidas batido,

esse mar, esse mar que tu, querido

e eterno amor, continuamente fitas,

é como o mar das lágrimas benditas

que temos cá no coração ferido,

ora por mil saudades invadido,

ora por esperanças infinitas.

As suas verdes e undiflavas águas

rugem bem como dentro em nós as mágoas,

e outras vezes, tão calmas se parecem

que eu mesmo julgo que esse mar é feito

das doçuras de algum sonho desfeito

e dessas crenças que do Azul nos descem!

V

Guardo ainda aquela trança,

a trança do teu cabelo,

recordo do uma esperança

que é o meu mais fundo desvelo.

E beijo sofregamente

essa relíquia adorada,

de mil perfumes do Oriente,

cheirando à rosa orvalhada.

Ninguém julga o quanto gosto

desse teu cabelo louro.

E mesmo ninguém, aposto,

tem tido maior tesouro.

Guardo-o bem numa caixinha

que me fez uma espanhola,

das plumas de uma avezinha

que eu tinha numa gaiola.

Numa caixinha graciosa

talhada por mãos de artista,

coisa rara e primorosa,

de abrir encantos na vista.

.......................................

Guardo ainda aquela trança,

a trança do teu cabelo,

recordo de uma esperança

que é o meu mais fundo desvelo...

 

VI

Manhã radiosa! Cai pelas verduras

o orvalho, em pingos, fresco e reluzente

como as gotas da lágrima inocente

feita licor nas almas das criaturas.

Dos canários as ternas partituras

rompem dos céus a névoa transparente

que o sol irrora de uma luz tão quente

como a dum sol de esperanças e ternuras.

Como um neorama o côncavo do espaço

dá-nos o brilho fulgurante do aço,

e pelos prados abrem-se os festões...

Como a seiva das dálias rosicleres,

das malvas, dos jasmins e malmequeres

palpita o amor em nossos corações.

 

VII

À Justina Touchaux

Não sei que dúlcidas falas

tu vibras nos meus ouvidos!

Eu só posso compará-las

a beijos indefinidos.

Se por acaso eu pudesse

voar, e após um instante,

duma estrela que floresce

no Azul, trazer-te um diamante,

da sua luz cristalina

que se entorna lá por cima,

faria uma doce rima

às tuas falas, Justina.

Pois há tanta suavidade

nelas e frescura tanta

que nem pode na verdade

imitá-las qualquer santa.

E esses teus olhos bonitos

relampejando quimeras,

dão-te luz as primaveras,

são dois astros infinitos.

Olhos feitos de alvoradas

de amor – e que são dois ninhos

de crenças imaculadas,

de ingenuidade e carinhos.

Olhos que a gente ao fitá-los,

numa linda caixa de ouro

tem desejos de guardá-los

como o mais rico tesouro.

Olhos desses... E rolando

também por sobre teus ombros

me causa grandes assombros

o teu cabelo, brilhando...

Nele há místicos aromas,

puros, finos e suaves

como das rosas nas comas,

como nos ninhos das aves.

E a palidez de teu rosto,

rosto de mármore vivo,

tem um profundo atrativo

quase a expressão de um desgosto.

Minh'alma gosta das flores,

e logo que se ajoelha

para te ver, como abelha,

bebe em teus lábios dulçores...

Ela compara-te as rosas

de um Abril feito de cismas

palpitantes e radiosas,

de mais que bonitos prismas.

Gosta de ver-te de perto,

de perto, quando os olhares

teus – celestes nenúfares –

brilham como um astro aberto.

Ama toda a primavera,

toda a música sonora

que esse teu sorriso gera

na tua boca de aurora.

Ouve-te as vozes e sente

os eflúvios que derramas

dess'alma que te arde em chamas

de um coração inocente.

De teu rosto na beleza,

nessa candidez serena

os pincéis da natureza

deram fluidos de açucena.

 

VIII

À Mimi

Deita, Mimi, neste ninho

de toalhas brancas bordadas.

Como um lindo passarinho

sonha coisas encantadas.

Tua mãe te beija e fita

o rosto, constantemente,

sentindo glória infinita,

gentil criança inocente.

Beija e afaga-te em delírio

essa boca tão vermelha,

como beija e afaga um lírio

um colibri ou uma abelha.

E se estás então dormindo

ela, com fundos desvelos,

junto a ti se ajoelha rindo

e beija-te os teus cabelos.

Aos teus ouvidos murmura

com voz dolente e sonora:

– dorme infantil criatura,

sonha com Nossa Senhora.

Beija-te as mãos pequeninas,

delicadas como as rosas,

tão puras e tão franzinas,

tão castas e tão formosas.

Se adoeces um instante,

dourada flor da alegria,

ela, tão zelosa e amante,

faz prece à Virgem Maria.

Promete velas aos santos,

definha, sofre, entristece,

derrama todos os prantos...

e... quanta vez desfalece...

Tu és todo o seu cuidado,

todo o seu sonho mais puro...

Ó dorme, lírio nevado,

até ao sol do futuro!

 

IX

E vás embora, e sabe Deus se um dia

voltarás, voltarás para me dares

outra vez teus dulcíssimos olhares

alagados de olímpica harmonia.

Partes (talvez cantando, cotovia!)

por esses verdes e distantes mares

tão inclementes para os meus pesares,

cheios de imensa dúvida sombria.

Vás... mas lírio do Azul, pomba celeste,

todas as crenças que ao meu peito deste

hão de seguir-me sempre em meu caminho.

E se um dia voltares, luz amada,

terás, do amor à fresca madrugada,

meu coração aberto como um ninho.

 

X

À Cecília

Priminha, se aqui passasse,

vindo lá dessas estradas,

um colibri que gorjeasse,

nas suas asas douradas

te mandaria, bonita,

uma carta de desvelos,

presa num laço de fita

da cor desses teus cabelos.

Nela verias o quanto

gosto das crianças loiras

que têm olhar terno e santo

como esse com que tu douras

toda a tua alegre vida,

essa vida cor dos mares;

– tão bela e tão colorida,

tão franca como os luares.

Crendo que vieste ao mundo

talvez dentro do um sorriso

da aurora de um céu profundo,

dar-te-ia então de improviso,

flor das claras primaveras,

ó filha do Azul, gloriosa

umas estrofes sinceras,

cheias do aroma da rosa.

Eu quando ponho-me a olhar-te

sinto uns íntimos desejos!

– Vivo só para adorar-te

e encher-te a boca de beijos.

Beijando-te os lindos lábios

da cor das auroras puras,

sinto os dúlcidos ressábios

do mel das frutas maduras.

O prazer que mais me eleva

aos ideais da Alegria,

é o de te ver – sendo eu treva

e tu – luz clara de um dia.

Pois vendo-te os frescos traços

do teu rosto de açucena,

abrem-se-me logo os braços

e tu vens-me a eles, pequena.

Mas quando passa um momento

que não te vejo esse rosto,

trago-te no pensamento

e sinto um grande desgosto.

Fico a cismar na amizade

que te tenho, ó flor querida,

que é a mim, na realidade,

a mais pura desta vida.

Penso até, princesinha,

quando te ouço a voz sonora

que no teu peito se aninha

toda a música da aurora.

Penso, julgando-te às vezes,

ó sonho azul, estrelado

uma ave que aqui a uns meses

me vem cantar no telhado.

Corno eu te quero! Aos joelhos

pondo-te aos beijos, sentada,

dou-te os melhores conselhos

a essa tu'alma adorada.

E então cismo, vou cismando

na infância azul das crianças,

que é a Felicidade sonhando

num berço feito de esperanças.

 

XI

Há muito mais de dois meses

(eu sempre os vivo contando)

que apenas te fito, às vezes,

por entre sonhos andando.

Dois meses sem ver-te o rosto,

não são dois dias, não!

Não julgas qual o desgosto

que trago no coração.

Dois meses de mim ausente

dás-me um profundo desvelo...

– Disseram que estás doente...

Que mágoas tive em sabê-lo.

Ontem de tarde, às três horas,

fui falar a um colibri,

que entre músicas sonoras

fosse visitar a ti.

E que te contasse as mágoas

da minha triste saudade

que é tão funda como as águas

do mar pela imensidade.

Um colibri de asas d'ouro,

que voa no meu quintal,

tão adorável, tão loiro

parece um madrigal.

Pedi-lhe que te contasse

a minha dor, pomba louca,

e que depois te sugasse

o mel da flor dessa boca.

Dessas tranças aloiradas

Contei-lhe o místico olor

como o das rosas douradas

ao sol de Abril, meu amor.

Dei-lhe ordem de visitar-te

as vezes que ele quisesse,

e nesse caso, ao falar-te

minhas saudades te desse.

Nas suas lindas asitas

que tão bem sabem voar,

mandei-te estrofes bonitas,

repletas do meu cismar.

Estrofes que tu ao lê-las

sentisses pela tu'alma

algum dilúvio de estrelas

caídas da noite calma.

À morna luz das esferas

Molhei-as, lírio gentil,

como em lagos de quimeras

se molha a crença infantil.

E das roseiras do prado

Inundei-as nos perfumes

e pus-lhe dentro um bocado

de desvelos e ciúmes...

 

XII

À D. Virgínia Natividade

Morreu a linda criança,

esse teu filho adorado.

Bateu asas a esperança

do teu coração magoado!

Senhora, eu só imagino

a dor que te vai no peito,

vendo esse pobre menino

morto... num caixão estreito.

Morto! aquele que adoravas

como se adora algum mito;

ele, o sonho que sonhavas,

ele, tão casto e bonito.

Fitas-lhe o pálido rosto

outrora rosado e belo.

Que mágoas e que desgosto

não sentes de certo ao vê-lo.

O seu rostinho parece

um lindo e cândido lírio

que tristemente emudece

à marmórea luz de um círio.

Fechou as suas pupilas

às ilusões e às quimeras

batendo as asas tranquilas

para outras largas esferas.

Está, que a gente até pensa

que dorme um sonho de rosas.

Que celeste paz imensa

nas suas faces mimosas.

Porém deves resignar-te

pois a mãe de Jesus Cristo,

que me ensina a consolar-te,

teve um pesar nunca visto,

que os séculos vai perpassando,

um pesar muito mais fundo

porque Jesus morreu quando

mais útil era no mundo.

 

XIII

Vês o mar... Que bonitas vagas estas,

mas mesmo que bonitas estas vagas

que tu, e a sol e a Estrela d'Alva, alagas

de doce luz de fúlgidas arestas...

Moras ali naquela casa. Em festas

vês sempre os lindos pássaros que afagas

com puro olhar azul, e te embriagas

nesses cantos que ecoam nas florestas...

Tens no quintal mil trepadeiras brancas

que nas janelas vão subindo francas,

e um roseiral na fonte, e uma parreira....

Pudesse eu vir passar aí um dia,

já que não posso, aurora da alegria,

unir à tua a minha vida inteira!

 

XIV

A Luiz de Araújo

Por sobre as ondas do mar,

nessa verde imensidade

boia o pálido luar

da tua grande saudade,

dessa saudade infinita

por um bem que se foi embora

como uma branca avezita

por entre os lírios da aurora.

Por um bem que era a doçura

do teu peito – desse ninho

sempre aberto à iluminura

do vivo sol de um carinho.

Ela era uma ave gentil,

linda ave talvez nascida

em rósea manhã de Abril,

em rósea manhã florida.

Ave que todos os dias

gorjeava canções de amores:

canções cheias de harmonias,

cheias do aroma das flores.

Cada vez que os seus olhares

olharam-te piedosamente,

entornavam-se luares...

e tu, vendo-os, ternamente,

metias o seu clarão,

toda essa luz palpitante

lá dentro do coração,

do teu coração amante.

Em seus lábios ruborados

bem como frutos maduros,

pairavam risos cantados

prendendo os beijos mais puros.

O seu cabelo, cheirando

a jasmim-do-cabo e à rosa,

pelas espáduas flutuando

tinha uma graça radiosa

do meu ideal palpitante,

onde uma crença se aninha,

se prende como um diamante

no colar de uma rainha.

Seus olhos de rola vinda

de um luar largo e profundo,

possui um fulgor como ainda

não vi maior neste mundo.

Com seu olhar infinito,

Vejo-a sempre pura e bela

porque da casa que habito

se avista a casinha dela.

 

XV

Há muito tempo, morena,

gostas de ler o que escrevo,

esses meus versos, pequena,

cheios do aroma do trevo...

Dizes, a respeito deles,

umas coisas bem graciosas,

principalmente daqueles

que te mandei entre umas rosas.

Escrevi-os à frescura

de uma tarde em que nós dois

tínhamos perto a ventura

e... beijamo-nos depois.

Ora, assim que tu me fitas

perguntas se trago versos:

umas baladas bonitas,

alguns madrigais dispersos...

Bem te conheço, a alegria

que em tu'alma bate as asas,

numa profunda harmonia

com que meu peito transvazas.

Quando dás-me o braço e vamos

através dessas campinas

por onde nos verdes ramos

cantam aves peregrinas;

Quando vamos pela praia,

por esse branco caminho;

tu muito simples, de saia

branda como a flor do linho;

Quando falamos às flores

e as flores n'alma nos falam

como quem fala de amores

que as nossas crenças embalam,

sei que toda a natureza

sorri ao ver-nos passeando:

 – tu, como oriental princesa,

e eu como poeta cantando,

cantando as frescas baladas

dos nossos vagos desejos,

nestas estrofes rimadas

com a carícia dos beijos...