Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Bilhetes Postais, de Coelho Neto

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Obra de Referência

Biblioteca Virtual de Literatura

ÍNDICE

AO LEITOR

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

XV

XVI

XVII

XVIII

XIX

XX

XXI

XXII

XXIII

XXIV

XXV

XXVI

XXVII

XXVIII

XXIX

XXX

XXXI

XXXII

XXXIII

XXXIV

XXXV

XXXVI

XXXVII

XXXVIII

XXXIX

XL

XLI

XLII

XLIII

XLIV

XLV

XLVI

XLVII

XLVIII

XLIX

L

LI

LII

LIII

LIV

LV

LVI

LVII

LVIII

LIX

LX

LXI

FORA DA MALA

AO LEITOR

Os livros são alimento do espírito — tens aqui um lunch, leitor faminto. Não receies indigestão nem limites o farei aos vols-au-vent que te sirvo — busca um prato mais sólido. Se tens estômago filósofo vai a despensa de Spencer ou de Comte; podes mesmo talhar uma lasca de Aristóteles ou de Spinoza, e se gostas de sanduíches então melhor — lê um aforismo sábio um bilhete depois e logo em seguida uma sentença sisuda. Se tens estômago delicado vai aos poetas que sabem temperar as estrofes com pedacinhos de estrelas, cintilas de olhos apaixonados, queixas de corações, alheios d’alma; agora se és da raça terrível do marquês famoso procura as crônicas do Barba- Azul ou de Richelieu devora os contos de Boccacio e os de Margarida de Angoulême ou vai ao fundo dos séculos, no fumeiro antigo, sacode o pó venerando que deve estar pousado sobre as conservas afrodisíacas... e que te façam bom proveito as odes de Safo e os cantos de Anacreonte. Isto é um livro de lunch.

Não tenho ideias doutas — fiz, com o meu bom humor esta pastelaria para os que não têm dispepsia... moral, se me permites a ênfase. Não creias na verdade dos conceitos... Vai lendo e, ao fim do livro fecha-o e pede aos deuses uma próspera velhice descansada e serena para o autor se te tiverem agradado os escritos ou as lages quentes do abismo se te arrependeres da estopada.

Dá a teu filho e dá à tua esposa esta leitura amável — é preferível, para formação do espírito, às páginas elucidarias e patrióticas do Diário Oficial.

Um pedido apenas — não emprestes o volume. Se te agradar exalta o seu merecimento ao teu amigo para que ele possa gozar como gozaste, se te não agradar gaba-o ainda: ao teu alfaiate, ao teu sapateiro, para que da vingança eu tire o proveito consolador. Lembra-te, desconhecido amigo, da sabedoria latina: tertius gaudet. Tertius sou eu, gaudet é o verbo da minha oração egoísta. E adeus!

Até Josaphat, o vale da última exposição universal. Ser feliz e bem diz e a hora do teu nascimento.

A vida é uma grande cousa. Adeus!

Respeitos à senhora.

ANSELMO RIBAS.

I

Para os dias de inverno as leituras calmas, de uma sobriedade concisa e seca, não são propriamente as mais recomendáveis — é preferível folhear uma brochura de Péladan o mago, reler duas ou três dissertações de Tabarin, compulsar as memórias sensacionais de Richelieu, a acompanhar a substanciosa sinopse de Lamairesse — a Índia antes de Buda, tão profundamente filosófica, impregnada de versículos verídicos e de aforismos jurídicos de Manou.

É verdade que Lamairesse é também o tradutor do Kama Sutra, o sensualíssimo código do amor na Índia, onde vem largamente explicado em bons, em magníficos termos, de uma precisão acima da decência, tudo quanto se deve observar no silêncio aromático de um gineceu, quando, velado o pórtico e acesas as caçoulas, a indiana liberta o corpo palpitante, voluptuoso e ardente, do peso incômodo das sedas e das musselinas. Mas Lamairesse, no seu segundo livro, esqueceu totalmente o erótico para fazer análise das diferentes fases míticas da Índia, desde o primeiro estabelecimento dos ariahs no Balkach, até as suas grandes expansões pelo mundo, com os seus poetas místicos e os seus profetas videntes. Lendo-o tenho encontrado, com grande surpresa minha, estranhas analogias de temperamentos, análises que parecem feitas à minha vista, em indivíduos que me são familiares, que eu diariamente acotovelo no trânsito das ruas, na intimidade das casas, na promiscuidade das brasseries, em toda parte, enfim, onde me movo. Se não vejam o que diz o orientalista no ponto em que se refere ao temperamento, ao caráter dos índios:

« Quando se pergunta a um homem do povo a razão de um de seus atos, mesmo os mais insignificantes, ele responde invariavelmente: « é o costume.» Outro povo que vive bem longe das vetustas margens do Ganges tem, com igual invariabilidade, a mesma resposta quando se lhe faz uma pergunta relativa a qualquer ação do seu espírito ou do seu corpo. Sob o ponto de vista do amor da Pátria, Lamairesse é conciso —« o patriotismo lhes é desconhecido.» Esse outro povo, tão distanciado do Himalaia, tão arredado dos vales aceitosos por onde andou o Mestre Perfeito pregando as purificadoras doutrinas do Bem Final, também desconhece esse sentimento, justamente exalçado pela musa épica ou, se o conhece, trata-o com indiferença absoluta. Preocupa-se mais com as intermitências do câmbio e com a alta dos fundos públicos e particulares, justamente como os índios, julgando pelo que diz o autor do precioso livro: » O dinheiro é a preocupação constante dos índios, o único objeto das suas intermináveis conversas e de todas as suas discussões »

Quanto à coragem espontânea, quanto ao livre e altivo impulso de ânimo em defesa de legítimos direitos, em prol de uma causa de bem comum, em que entrem em jogo a tranquilidade do indivíduo, o bem-estar da família e da coletividade, diz o comentador: São capazes de grandes atos de bravura quando conduzidos ou arrebatados, mas não por livre iniciativa»... como esse outro povo, jungido à opressão, humilhado, abatido, mas sempre passivo e mole por falta « da iniciativa dos fortes e dos independentes », iniciativa que tem dado à história mais de uma página sublime.

E por aí vai de assunto em assunto, analisando, comentando, discutindo, ora a fertilidade das terras, ora a fraqueza, a versatilidade dos espíritos, com uma sóbria linguagem, mas tão cheia de verdade que muitas vezes, à força da impressão de leitura, por uma tal ou qual associação de características, chego a reconhecer nos tipos, quer de kchattryas, quer de párias homens que tenho visto, sem nunca ter pisado o solo santo da Índia, com os quais tenho trocado ideias e discutido assuntos.

Não vão inferir que pretendo mostrar analogia entre o caráter do índio e o do brasileiro. São tão diferentes os dois povos... E o brasileiro é lá capaz de sofrer afrontas? Nunca!

II

Efetivamente há bárbaros que não admitem que uma senhora tenha interferência nos negócios públicos; acham que a mulher só está no seu papel quando trata de negócios particulares da vida privada.

Protestam contra a mulher que vota, protestam contra a mulher que advoga, protestam contra a mulher que cura; entretanto, penso eu, haverá coisa melhor do que ser feito, por uma mulher, deputado, intendente, senador, ou... impe... quero dizer — presidente do Divino? Haverá coisa melhor do que ser posto no olho da rua por uma mulher, depois de ter praticado coisas hediondas? Haverá, por acaso coisa melhor do que mostrar a língua a uma senhora e consentir que ela nos apalpe, que ausculte os nossos órgãos, que nos tome o pulso...?

Bárbaros adversários do belo feminino. Eu, que aqui estou, daria uma perna ao Diabo se uma mulher me levasse à câmara. Se algum dia me subir o sangue à cabeça, forçando-me a quebrar a dita a alguém, o meu advogado há de ser uma advogada.

A mulher fala demais, dizem, mas meus caros, o melhor advogado é aquele que mais berra —um mudo faria uma tristíssima figura no tribunal de júri. Acham que a mulher é curiosa, mas a curiosidade leva a indagação e diagnóstico é o nome científico da curiosidade. Acham que a mulher não tem senso prático, não admitem que as senhoras vão às urnas porque as senhoras deixam-se levar por cantigas... e os homens?

Que votem as senhoras, que advoguem, que legislem, já estou farto de governos masculinos... as mulheres que venham, que saiam a campo as saias.

Vós outros que admites a mulher atriz, a mulher caixeira, a mulher casada, a mulher viúva, a mulher, etc., etc., porque não haveis de admitir a mulher formada? Concedeis à filha de Eva a carta de amor e negais a de bacharela, por quê? Deixai que passe a mulher.

Nós somos o fator, mas a mulher também não deixa de o ser. Se começamos a guerreá-las... que será de nós? Pazes, meus amigos, abramos os braços às mulheres, elas que venham! Não deformemos o triste esqueleto humano, roubando-lhe a melhor costela.

Nada de exclusivismo — a mulher pode perfeitamente exercer as funções que nós outros exercemos, salvo nos casos do... art. 2º § 3° das disposições transitórias dos contratos... Mas, pelo amor de Deus! nada de guerrear o sexo. Pazes... Eva que surja.

III

AOS GINÓFOBOS

Correm os dias subsidiados a razão de 3$125 por hora... e não há número.

A rua do Ouvidor regorgita de representantes. Políticos do Norte e do Sul encontram-se à porta dos alfaiates e falam da situação e das culturas nas terras de onde chegam, deplorando os acontecimentos do Sul e a safra, a apatia e a falta de braços, reclamando a criação dos partidos e colonos... Na câmara... continua a placa — « não há número». Que número fatídico será esse que opõe tamanho obstáculo à marca da vida nacional? De que estranhos e complicados algarismos depende a situação?

Se a questão é só de números, proponho que se mande à câmara uma tabuada ou os logaritmos de Callet. Mas, a meu ver, cifra-se em outras coisas a intrincada e insolúvel charada, que não é de cifras, justamente por ser indecifrável.

Falta de número, dizem os jornais, e número significa, segundo Aulete—« a relação que existe entre qualquer quantidade e uma outra tomada como termo de comparação e que se chama unidade; a expressão da quantidade ».

Interpretemos—um ábaco e um giz... vejamos: « A relação ou o ponto de incidência entre uma quantidade (o Estado) e outra quantidade (a União) chama-se «um deputado». A quantidade que se toma como termo de comparação — é a Pátria e o número, o deputado é a expressão dessa quantidade...Ora, não havendo número, não há expressão da quantidade — Pátria, ou, em outros termos, não há patriotismo.

Abaixo, pois, o eufemismo das atas. Escreva-se doravante: «Não houve sessão por falta de patriotismo» e será mais clara, mais positiva e mais matemática a expressão da verdade.

IV

                                                                         A FELIX MARIALVA

Heloísa, em uma sentida carta que ela diz tristemente ter escrito «com lágrimas» queixa-se da tua indiferença gélida, atribuindo esse estado sombrio do teu espírito a um novo amor.

Andas a concorrer com a volubilidade, meu sensível artista. Foste refugiar o espírito entre fráguas, não para ter os olhos voltados para o azul excelso e a alma mergulhada na contemplação; fugiste para derriçar livremente, é o que parece, é o que infiro da lamentosa missiva escrita com tão preciosa tinta. Não sei quando farás pausa. Creio que já é tempo de procurares residência definitiva para o teu coração doidivanas, que anda a correr aventuras pelos casais campestres como um Moelibeo, a desfolhar bucólicas sentimentais para todas as Amaryllidas desse viçoso lugar, onde reina com tanta intensidade a febre de amor. Apazigua essa ardência, não entristeças Heloísa... Que mágoa ver aqueles olhos azuis chorando! Que crueldade vê-los pisados e denegridos!

Queixa-se a pobrezinha de que não tem dormido, pensando em ti, porque, apesar de mais nova — diz com uma ingenuidade adorável: foi encarregada de velar por ti. «Quando a mamã, quase a expirar, chamou-a para beijar-lhe a cabeça loura, disse-lhe com melancolia — que cuidasse do Felix, que fosse para esse filho uma segunda mãe». E hás de convir —Heloísa, apesar dos seus dezoito anos, tem sido de uma heroicidade pasmosa, resistindo ao amor, sufocando os ímpetos do seu corpo adorável e da sua mocidade, rejeitando todas as ofertas para cumprir a promessa que fez à moribunda, de ser a segunda mãe do mais estroina dos filhos amadrastados.

Peço-te encarecidamente, pelos olhos azuis de Heloísa, tua irmã, tua adorável mãezinha, que voltes ao aprisco e aviso-te para que evites essa triste desgraça: —Heloísa prometeu oferecer à Senhora as suas formosas tranças, se te regenerasses. Vê quanto sacrifício, bárbaro! ...

Enxuga os piedosos olhos da desolada vestal e esconde todas as tesouras para que não suceda a grande desgraça de cair em ofertório, por tua causa, aquela opulência de filandras de ouro.

V

A ideia do cônego Harford, de Londres, da aplicação da música a medicina como princípio terapêutico, não tem nada de fin de siècle. Os antigos conheciam-na e praticaram-na com sucesso. A melopatia teve a sua era de florescimento e os seus clínicos notáveis: a lira de Amphion acalmava as fúrias e operava magnificamente nos casos de delírios. Orpheu dominava os alucinados tocando o seu heptacordio divino. Na Bíblia geme o kinnor davídico abrandando as cóleras de Saul. Na Finlândia os enfermos, sentindo-se próximos da morte, mandavam chamar o escaldo do cantão e ficavam restabelecidos, diz Andersen, ouvindo o poeta nacional que se abeirava do leito como sacerdote e como médico e agitava a alma, prestes a partir, com a narrativa lírica de um episódio pátrio. Nos campos de batalha, findo o massacre, vêm-se corpos erguidos num supremo esforço, ouvindo o som triunfal dos hinos, a distância. O fato em si não é uma novidade.

Cabe ao sábio, empregando processos experimentais de análise, de acordo com os modernos métodos científicos, estudar os vários e diferentes sons, distribuí-los, para organizar a dosagem, sem o que pode suceder o caso de morrer o enfermo por uma violência do mi sustenido ou por insuficiência do bemol. Não é de menos importância a distribuição dos instrumentos. No formulário melopático, que será brevemente publicado, há as seguintes aplicações mais usadas:

Afecções do fígado — uso da clarineta em grande escala. Um pouco de bombo não é para desprezar.

Afecções do baço: Trêmulo de violino — 5 minutos; duas escalas cromáticas de flautim; 4 pancadas de bombo; I guincho de requinta. É infalível.

Nas moléstias cerebrais deve ser de grande proveito para o paciente um pouco de rabecão. Nas cefalalgias, tambores e pratos; em casos rebeldes: timbales. Nas histerias e em geral nas enfermidades do sistema nervoso, cordas de violoncelo ou infusão de cravelhas. Reumatismo, ciática, nevralgias, cedem imediatamente com o auxílio de fagotes, pistons e trombone. Nas moléstias de olhos é aconselhado o oboé'; dizem que a violeta tem dado magníficos resultados. Nos casos de anemia profunda, oficleide simples, duas vezes por dia, uma escala antes de cada refeição. Nas apoplexias, proibição absoluta de pratos— violinos, em último caso, gaita de fole.

Para os surdos duas bandas de músicos alemães. Nas moléstias das crianças, é aconselhado o realejo.

Em todas as afecções cardíacas—harpa ou cítara. Nos casos de alienação, quando nada mais se consiga da camisola de força—um coro de trompas.

Um compasso errado pode transtornar o tratamento.

Há casos de cura completa comum acorde apenas.

Na tuberculose é extraordinária a aplicação do violão—para a dança de S. Guido, vicia e cavaquinho.

A doutrina aí fica, os mestres que a experimentem.

VI

                                                                          À G. GENTIL

Ovídio escreveu a Arte de amar, os bramas deixaram um código de leis sobre o assunto. Eu podia, para eximir-me do trabalho, dizer-vos simplesmente: lê-de Ovídio ou consultai o Kama Sutra; mas V. Ex. dirá que não quer saber de velhos conselhos e eu a retorquir: pois, minha senhora, nihil suh sole novunt. Mas enfim... que se há de negar a uma senhora que nos procura aflita, desnudando a sua alma?

A grande experiência tornou-me sábio em questões dessa ordem. Sou capaz de dizer-vos, apenas provando o vosso beijo, se sois loura ou morena. Pelo calor da vossa mão vou dizer o estado do vosso espírito, pelo... vou dizer, sem errar num dia, o número exato dos meses. Pratica somente, minha senhora, porque ainda não houve cálamo nem pena que escrevesse sobre isso.

E sei também quantas espécies ha de beijos: ah! minha senhora! minha senhora! e como se deve falar de amor, que inflexão deve ter a voz, a luz como deve estar e a baptiste e... tudo, tudo. E para triunfar do amor, tenho também o segredo de um filtro, que...  Mas não quero tornar pública a receita, para evitar uma revolução perigosa.

Posso levar o alívio às pacientes, direis que pretendo fazer de Sganarello, não há tal; juro-vos por Vênus e por seu filho: o meu intuito é unicamente de humanidade. Deixar uma pobre alma em tortura quando se dispõe de um meio evidente de alívio é iníquo.

Não fujo à explicação que me pedis. Como disse acima, sou um repositório de processos, tenho um que é uma espécie de cocktail: uma mistura de leis de Ovídio, dos Bramas, de Beranger, do nobre marquês que deixou renome e do prude de Brantôme, um clássico— misturei, sacudi todas as informações e desse ecletismo tirei um processo, que é divino.

Os romanos seriam capazes de honrar-me com uma festa pública, se eu lhes desse a explicação que reservo para momentos... de carvoeiro. Em mim encontra V. Ex. o nec plus ultra. Eu sou quem tudo sabe, porque tenho experimentado tudo, inclusive o atroz sofrimento que tanto afligiu o pobre Dr. Pangloss, mas publicar a minha receita, isso nunca!

Diga V. Ex. onde poderei deixá-la ou levá-la e então, pela deusa Cotyto o juro! tudo sabereis e ficaremos no mundo os dois únicos possuidores do grande segredo de... Marque o ponto, minha senhora.

VII

                                                                   AOS REPRESENTANTES

Ainda que a luminosa sentença: «viver às claras» esteja na ordem do dia, os pais da pátria entenderam, fiados talvez no adágio: «a noite é boa conselheira», que não seria mau viver um pouco às escuras e instituíram, com aplausos unânimes da Companhia do Gaz, os cursos, quero dizer, as sessões noturnas.

A noite é fecundamente sugestiva e demais é axioma incontestável que não há nada de novo debaixo do sol, mas debaixo da- lua, à la belle e’ tolle? quem poderá dizer os mistérios que existem...

Fazem muito bem os pais da pátria tentando ver á noite o que a claridade do astro rei, incompatível com o regime atual, não conseguiram ver. A nictalopia não é um nome vão — é uma moléstia de que podem dar testemunho evidente o Dr. Moura Brasil e os compêndios.

O dia é o momento da ação, a noite é o momento da concentração — e do silêncio. A câmara terá dificuldades, talvez, em observar o segundo preceito, mas que observe o primeiro, que se concentre, que medite e que aproveite o orvalho bem-feitor que dá vida aos lírios e que, de certo, não se negará a prestar auxílio à flor imarcescível da retórica das 7 1/2.

Os lírios desabotoam à noite, os namorados também; a alma expande-se, a paz serena convida o espírito a aprofundar arcanos.

Antigamente, à noite, reuniam-se os conclaves, agremiavam-se os videntes, convocavam-se as assembleias trágicas e à fulva claridade de lumes, em vales afastados, relampejavam lâminas no punho dos que juravam. Hoje, como a evolução abrandou os ânimos, não se assiste mais a espetáculos desse gênero, a menos que não se compre a cadeira ou o camarote para gozo coletivo da penca doméstica, a sogra inclusive.

Em devezas esconsas há evocadores que fazem vir espíritos para a palestra póstuma, mas esses são os excepcionais. Geralmente a bisca e o chá preenchem as horas até o momento da oração, da touca até às orelhas e do mergulho fofo em vai de linho.

A câmara vigilante dará ao país o grande exemplo da abnegação, produzindo leis e bocejos, votando projetos e pescando, com assomos de patriotismo e roncos de pesadelos. O povo, com essa lição, na câmara doméstica, fará esforços para não ficar atrás dos pais da pátria — e a produção será espantosa e teremos dentro em breve, graças ao patriótico e inigualável procedimento dos representantes o assombro prolífero da imigração espontânea. A câmara que vote em verba especial um subsidio para as amas de leite.

A única coisa que faz tremer um pouco a pátria é que no fim da sessão, fora de horas, não suceda à câmara alguma que a force a dizer como o poeta: «Ah! Foi um sonho! » Para que não se dê semelhante escândalo, será prudente que os tímpanos não parem, porque a ordem (da noite não é a da cena cômica – ressonar; a ordem é ser deputado simples ou com... sono.

E agora... por enquanto... muito boa noite, senhores representantes.

VIII

                           AO MATTEO BRUZZO

Em má hora deixaste o estaleiro que te serviu de berço, em má hora ganhaste as águas santas do mar. No dia em que molhaste a proa pela primeira vez, a misteriosa erynna da Itália, filha das impassíveis lagoas pontinas, a Malária, banida de Roma pela charrua do lavrador, combatida pelo braço forte do ilota que exorcismou o terreno com a água benta da fronte — o suor, a Peste errante acolheu- se acocorada nas cavernas novas do teu bojo rescendente ainda à resina das árvores dos Pyrineos, onde foram buscá-las os lenhadores montanheses.   Foi a tua primeira passageira, Matteo Bruzzo, a Peste dos paludes.

Abriste as velas claras aos ventos dos largos mares, sulcaste os oceanos, abicando em portos, surgindo em ancoradouros — deixando fardos e gente, tomando novas cargas, mas sempre balançando, ao som da berceuse dolente da onda, a trágica e misteriosa passageira que se exilara no mais íntimo do teu corpo.

Os tubarões, quando deixas um porto, seguem na esteira espumarenta à espera de que a amurada caia nas suas goelas escancaradas o cadáver com que pagas o tributo à Peste.

Balizas a tua derrota de um modo estranho: marcos são os cadáveres que alijas. — O canto nostálgico dos imigrantes que vêm à proa, olhando o céu, é triste como um De Profundis, e a hélice, batendo as águas, parece que vem abrindo túmulos pelos mares além, dia e noite, incessantemente.

A tua passageira atrai as suas irmãs sinistras. Se tocas em algum porto inficionado, mesmo que não comuniques, levas o contágio. Já a Febre Amarela viajou contigo, o Cólera há poucos anos e agora novamente. És repelido de todos os portos, como um maldito, a morte viaja em teu seio, és um iate colossal das Pestes. A Malária possui-te.

Bem melhor seria que parasses em meio do oceano e ao sol e às chuvas deixasses que os ventos rompessem as tuas velas abertas como sudários, deixasses que a onda apodrecesse a tua quilha e que as tormentas devorassem o teu corpo maldito, pobre navio fantástico, porque, apesar da tua sina, que faz com que fraternizes com o judeu andejo porque em toda a parte gritam pela boca dos canhões: ao largo! ao largo! quando te aproximas, és mais feliz que Ahasverus... ele, o errante, é imortal e tu não, podes apodrecer como pontão, em qualquer porto, para benefício da humanidade e paz doa homens dos lazaretos...

IX

                                                                 A ARLEQUIM

Afirmam por aí, trefego pandigo, que resolveste abandonar a troça. Não sei que fundamento tem tal diz-se... Essa versão não passa de balela... Tu não podes viver como um burguês empantuirando a pança em bródio infame, dormindo à sesta num sofá de vime, enquanto a lua a serenata geme.

Eu não creio, Arlequim, no que me dizem, tu não deixaste a guzla favorita.

Vem do retiro, surge, meu boêmio! Vem desmentir a pérfida calúnia; e, se achares dormindo entre lilases, a saltitante e viva Colombina, dá-lhe um beijo na boca que a desperte.

Vai procurar Pierrot, que anda arredio, e Pulcinello, que ninguém vê mais. Traze esse bando garrulo; convida toda a legião de clássicos estroinas. Bate os bosques que outrora eram batidos pelos tropéis dos sátiros hilares. Traze toda essa turba de bachantes, ao crebro som metálico dos címbalos. Traze Sileno, embora em carraspana meio tombado na anca do jerico, vai à profunda e lúrida floresta, descobre a gente que exaltava o riso, para que, ao menos uma vez por ano, este povo tristíssimo consiga escancarar as rígidas mandíbulas n’uma sonora gargalhada franca.

Que diabo! a coisa nem parece a mesma... Vá lá que o raro espírito dos áticos, ou mesmo o fino espírito gaulês, por preguiça não tenham vindo à rua... Mas tamanha tristeza na cidade!... Nem vestígios sequer de uma bandeira, nem as folhagens do bom tempo antigo! nada dos velhos símbolos de Momo... É muito, hás de convir, pândego amigo.

Vem trazer-nos um pouco de alegria, ó divino Arlequim das pantomimas! Vamos! Que custa? arriba e salta à rua.

Que saudades do trepido pandeiro! Que saudades da lânguida mandera!

Anda tão murcho o pobre fluminense que até pode morrer de hipocondria... Que te custa sair um dia apenas? Por quem és, nobre amigo, atende e salta!

Mas Arlequim não dá sinal de si!

Que carnaval, meu Deus! Que pasmaceira!

X

                                                                               À P.

Evangelhos cerúleos, santos, santíssimos e imaculados símbolos siderais, mais claros que Athair, a estrela que os nômades veneram, olhos, meus Evangelhos, onde minha alma extasiada recapitula o doce saltério, olhos feitos de eflúvios, benditos olhos, vinde, que eu vos veja, olhos cerúleos, vinde!

Pálpebras, cortinas brancas do santuário, descerrai-vos e que as franjas douro dos cílios fiquem como baldaquino e como altar, e arqueando-se, como um íris de paz, o hemiciclo dourado das tuas sobrancelhas, protegendo cariciosamente as pupilas de ametista úmida.

Tuas faces tingem-se de rosa, é a madrugada do amor que as tinge, amada... Dá-me que eu veja os astros prisioneiros.

Só acredito que vivo quando me descubro refletido nos teus olhos doces... Dá-me que os veja pois, a ver se eu vivo.

Os templos não se fecham jamais! o primeiro que passa pode bater à portaria santa para pedir e rezar ao Deus Senhor... Minha alma anseia: é ela que ronda aflitamente em torno dos teus olhos... batem meus lábios, soam beijos, não ouves, soam e ressoam beijos sobre as pálpebras...

Abre-as, deixa que eu veja ainda os olhos castos, cor do azul, que é o ideal, cor do azul, que é o Etéreo, dá-me que os veja ainda, uma vez, e mata-me depois, e crucifica-me sobre a cruz branca dos teus braços, no Calvário do teu solo, que eu morrerei contente, entre os pequeninos ladrões dos meus sentidos — teus seios, contanto que, na hora angusta do martírio, subas com a tua boca a aplacar a sede do meu amor, dando-me a beber, pela purpúrea esponja de teus lábios, o sensualíssimo beijo da Volúpia...

Dá-me, dá-me que antes do suplício eu recapitule o doce saltério... Há sempre um círio aceso para os mortos: dá-me pois, dá-me pois, o cirial cerúleo dos teus olhos'

XI

Autoridades conspícuas e criteriosas têm discutido o suicídio, aceitando-o como um ato refletido, de suprema audácia, ou repelindo-o para o arquivo dos delírios e das alucinações. Há mesmo quem afirme, apoiado em razões ponderosas, que o suicídio é a manifestação do desalento, o extremo da covardia — o suicida é um evadido da vida.

Não quero baralhar a meditação dos filósofos com palavras vãs; entendo que o suicídio é o suicídio, e fico neste entendimento.

Acho que o homem livre tem direito de vida e de morte sobre si mesmo. O mundo é estopante e insípido; por que razões há de um pobre diabo ficar escravizado ao tédio, quando a ciência da morte está hoje tão aperfeiçoada...? Mas há motivos tão fúteis, que não merecem o desespero de um homem...

Francamente, saber a gente que os lindos olhos adorados de Julieta têm a moldura roxa porque não se fecham durante as longas noites que ela atravessa debruçada à janela, pronunciando baixinho o nome de outro... é mesmo para um desgraçado engolir de um trago um litro de qualquer coisa ou alojar no crânio uma bala; mas suicidar-se por um mandado de despejo, é levar muito longe o brio.

Quando não há El-Rei o perde, diz a sabedoria dos caloteiros, e a ideia do calote, vem aqui a pelo dizer, nasceu no espírito do homem no dia em que o Diabo inventou o primeiro credor.

Penhorados confessamo-nos diariamente: penhorados por isto, por aquilo, por fulano, por sicrano... que mal há pois em sermos penhorados pelo senhorio? Trastes despejados... tanto melhor. Na rua é que, não ficamos, dizem os experimentados, e efetivamente não ficam; lia sempre um canto para os trastes.

Esse homem que se deixou arrebatar pelo desespero, ganhou alguma coisa com o sacrifício? Nada, absolutamente nada. Começou por perder a vida, não pagou a dívida, deixou a família abandonada e com a mobília às costas e mais a despesa do enterro e por cúmulo morreu em pecado. E o senhorio? Mandou com certeza lavar o aposento, para que não ficasse uma gota de sangue no soalho, e colou escritos.

Se o ideal do suicida era legar à família um exemplo forte de honradez, perdeu as balas e o tempo, porque não fez mais do que concorrer para o aumento da grande lista dos tolos. Se, ao contrário, era fazer a sua independência alijando dos ombros o fardo da vida pesado e ingrato, alcançou o seu desejo, tendo agora sobre os mesmos ombros cansados não mais a responsabilidade do cômodo que o matou e da venda que lhe absorvia os lucros, mas simplesmente a terra... que lhe seja leve.

XII

                                                                         A FELIX MARIALVA

Velho, setenta anos, talvez. Cavanhaque branco, carapinha hirsuta, transbordando do cocar de grandes penas variegadas; à cinta um enduape. Maillot cor de carne, chinelas vermelhas oureladas de arminho branco; no peito fundo lentejoulas e pedaços de galão de ouro e de prata, um tan-tan na mão esquerda, e na direita, calçada em luvas de meia, enrugadas, poentas, a vaqueta de tamborilar o ritmo do passo selvagem.

Aí tens tu o croquis do mais extraordinário tipo dentre quantos meus olhos viram nessa tristíssima segunda-feira de junho, que a intendência obrigou a fantasiar-se para fingir ridícula e extravagantemente um dia de carnaval. É o tipo de um cucumby.

Vinha à frente, entre as duas alas do bando muito ancho, muito senhor de si, arrumando violentas pancadas no seu gong de couro, aos pinotes, como um grande orang. E queres tu saber, meu caro, tive piedade desse pobre bruto, piedade, digo bem, e vais saber porque.

Conheci um negro d’África, Augusto ou João, qualquer coisa; chamavam-no em casa Cobó, tio Cobó não sei porque, mas pouco importa ao caso. Esse pobre diabo, maduro em anos, mourejava sem descanso, desde a Circuncisão até o S. Silvestre, com uma bravura de fazer inveja aos braços de vinte anos, e era tudo — carreiro, pastor, entendia de cozinha, sabia içar uma vela e dar rumo a uma balsa, e quando era preciso tomava da enxada para a capina das roças.

Mas, lá vinha um dia em que não havia quem o contivesse. Desaparecia e procurasse-o quem quisesse, andava longe, em folga, distraindo a sua nostálgica tristeza.

Um dia, ao cair da tarde, vindo de volta à casa, ouvi guizalhada, ruído de adufes, batuque surdo de muitos dançadores, numa espécie de clareira, não longe da estrada que eu seguia. Deixei o animal e meti-me corajosamente pelo mato enredado, e sabes tu quem fui encontrar aos pinotes numa grande roda de negros empenachados, com um ceptro na mão, urrando, mas urrando...? Cobó, o pobre negro. Quis esconder-me, mas um molecote, assanhado na dança, veio numa corrida até onde eu me achava com um grú-grú feroz, levantando então a cabeça, deu comigo e estacou.

—  Nhô! Escusado é dizer-te — o alarma do crioulinho pôs em debandada a aringa: uns para aqui, outros para ali. Cobó, meio atônito, adiantou-se com o cetro na mão.

—  Que diabo é isto, Cobó?

Olhou-me espantado a princípio, com grandes olhos, mas vendo a minha calma risonha, disse coçando a cabeça:

—  É canjerê, nhô... Negro foi rei na terra... Esse é dança de lá — e sacudiu-se num saracoteio.

—  Tu foste rei?

—  Foi rei... Esse é dança de guerrear... Tá lembrando, nhô... tá lembrando tempo de rei...

E havia tanta saudade nessas palavras do Cobó, tanta saudade, Marialva, que me senti comovido até às lágrimas e parti para deixá-lo na liberdade da sua recordação, evocando entre arvores, coma sua gente, o tempo heroico do seu domínio real, quando era senhor de uma aringa nos vastos e abrasadíssimos sertões da África. Aí tens: Cobó de vez em vez fugia para rememorar o seu fastígio no canjerê selvagem, e esse cucumby de setenta anos trouxe-me recordações da minha infância, do tempo em que fui achar o velho negro, todo em plumas, numa grande roda aos berros... De sorte que vendo saltar esse negralhão sarapintado veio-me logo ao espírito uma interrogação ingênua:

—  Quem sabe se esse não foi rei também como Cobó? Quem sabe?

XIII

                                                                    A MME...

Se o fetichismo no amor é uma verdade... Dizem os sábios, minha senhora, e a ciência tem feito tantos progressos que seria imperdoável deixar em esquecimento tão agradável matéria e ultimamente os sábios, de óculos na penca, andam às voltas com o amor, procurando descobrir as grandes causas do sentimento divino para debelar, talvez, os perniciosos efeitos de uma pupila ou de uma pequena mão que...

O fetichismo existe.

Há homens, por exemplo, que não podem sentir o odor di femina — perdem a cabeça, entram a fazer loucuras e outras coisas piores.

Outros desvairam-se a indiscrição de uma fímbria de saia deixa transparecer un petit bout de jambe...

Li algures que um homem casara com uma mulher horrorosa, sem dentes, quase pelada e vesga.

Interpelado por um amigo respondeu, pondo os olhos em alvo:

— Ah! se lhe visses a nuca!... Se visses a nuca que ela tem!... e deu um estalo com a língua.

Outros perdem a cabeça por coisas mínimas — pelo modo de pronunciar o r, pelo tatibitati, por um certo cacoete, etc. Um conheci que fazia versos a um pé torcido — o pé da sua amada.

Disse-me cheio de convicção que se ela pisasse como as outras mulheres seria uma vulgaridade — a graça, a elegância dessa encantadora criatura vinha do desequilíbrio.

Finalmente, minha senhora, tenho um amigo que é doido por batatas, e casou com uma viúva simplesmente por causa do nariz.

Não sei como classificará a senhora esse vezo — os sábios chamam fetichismo.

Se eu sou susceptível....? é a sua segunda pergunta.

Quando me beliscam, minha senhora — Umas vezes zango-me, outras vezes fico em êxtase, porque há beliscões públicos, são esses que me fazem perder as estribeiras, e há beliscões por baixo da mesa e são os que me põem a cabeça a juros.

Das outras susceptibilidades falaremos mais tarde.

XIV

No tempo do Serapeum não causaria espanto ver sair triunfantemente, entre alas sacerdotais, seguido de Anubis, o cão, e de Isis, a vaca amorosa, Apis, o boi sagrado. Atrás, em teorias, os músicos hieráticos, tocando a salambô suavíssima, a cyniras e o sescek consagrado à boa deusa para que o povo das margens do Nilo, do Delta à Hepta-nomida, viesse com palmas e óleos aromar e tapizar o caminho que deviam pisar as patas sacratíssimas do venerável gado.

No Egito seria caso vulgar o passeio bovino — os chlochytas não deixariam as fúnebres oficinas nem Israel desceria dos andaimes para ver passar o cortejo religioso. Mas aqui, na cidade por excelência, administrando a intendência, «vai tudo raso», nos dias correntes do século XIX, parar ao sol para ver um boi nutrido e forte, nédio, anafado e luzidio, parece-me rematada tolice.

O boi do Egito tinha prerrogativas divinas — era deus, e como tal digno do máximo respeito e de toda veneração — Apis simbolizava Osiris. Prestava-se culto, não ao boi, mas ao Remunerador e Regulador supremo, o povo tinha motivos sobejos para prosternar-se diante do toutiço bovino, mas que estranha coisa viam os curiosos que ontem admiravam dois touros negros que um sujeito, de carapuça de flanela azul, à moda da lezíria, tocava pacientemente pelo cais da Glória? Que via o povo nos pacíficos ruminantes? divindades? a salvação das nossas almas? a remissão dos nossos pecados? a vida futura? Osiris? Santo Antônio...? não... O povo via mais praticamente, com os olhos que a terra há de comer, a alcatra, o filet, os mocotós, o ragout, e já penetrando com a argúcia das águias e dos famintos, via as dobradinhas, a fressura toda e aquele corpanzil, a 1$ o quilo, ensopado com batatas.

Se os pobres animais falassem estou certo de que diriam ao povo: Ave! morituri te salutant! Os desgraçados caminhavam para o matadouro resignadamente, fazendo apetite à massa.

Seria melhor que os passeassem prontos — ensopados, assados, de grelha ou de forno, para privar o povo do suplício da água na boca.

Mas, o que não me parece moralizador, é esse ambular aperitivo pelas ruas da cidade. Deem ao boi a sua sorte, vendam-no aos quilos, reduzam-no a almôndegas, mas não a fenômeno. Entristece ver esse meigo e robusto companheiro da família humana, que trouxe os primeiros carros dos arias, que arrastou pela primeira vez a charrua nas terras, exposto como uma curiosidade, arquejando ao sol, picado de vez em vez pela aguilhada de um campino.

Se eram bois para o bife deviam estar com S. Diogo, se eram para a senhorita Lola deviam estar na praça, mas na praça não podiam aparecer decentemente, porque os coitados eram... não eram... eram... partidos, devo dizer.

XV

                                                           A LUIZINHA, do cordão azul.

Não é uma carta de amor que te escrevo, o gênero está muitíssimo explorado, demais quero ser sincero contigo que foste sempre tão meiga e tão paciente, porque, acredita — jamais esquecerei a abnegação evangélica com que te prestavas a ouvir os detestáveis sonetos em que eu procurava cantar os teus olhos e a tua trança negra. Não é uma carta de amor, Luizinha, é uma simples lembrança de saudade de quem foi com tanto empenho partidário fanático do teu cordão e dos teus olhos.

Pelo que se me tem escrito do Recife sei que não apareces mais nas festas pastoris da Estrada Nova, não porque tenhas esquecido os cantos de Natal nem tampouco porque receies entrar em luta com a Marocas, do cordão encarnado, mas porque Fulgêncio d’Annunciação, que desposaste, é um ciumento da casta de Othelo.

Vives hoje da tradição. Os que te veem passar, mole e pesada, lastimam-te comiserados. Já não és a mesma de outrora. A Luizinha que eu uma vez num assomo de lirismo, comparei a uma libélula, arrasta os passos, ofegante e rotunda, porque Fulgêncio d’Annunciação tem em vista o prêmio, oferecido pela intendência, ao mais fecundo casal.

Em uma carta disse-me alguém falando de ti... «Perdeu inteiramente a graça de deusa, não é mais a Luizinha esbelta e trefega, que tirava os cânticos, junto ao berço do Menino Deus, é uma couveuse, uma espécie de Cybele procriadora. O Gaudêncio que ainda não a esqueceu de todo, chama-a nas horas de desespero a Vênus Genitrix... De pastora nada conserva a não ser o rebanho de filhos com que vai à missa aos domingos em companhia do bárbaro. »

Pobre Luizinha! Às vezes penso em abalar para ver se é verdade o que afirmam os ausentes, mas tenho medo... Que será de mim se esbarrar com o teu rancho e contigo, sempre para cada hora, descabelada e triste como uma vítima a caminho do suplício?

Não, é melhor que não te veja mais para que não desapareça da minha saudade a Luizinha meiga, a libélula do meu lirismo, saltitante e alegre, risonha, lépida e... sem filhos... Oh! a Luizinha mãe de família! o meu formoso cordão azul mudando fraldas! Triste coisa é o mundo, detestáveis novenas de meses que deformareis a própria Vênus de Milo, se ela não fosse esperta como foi... e de mármore.

Deus te dê uma boa hora, Luizinha... e adeus!

XVI

Vive em Paris compondo alexandrinos que Sarah recita diante do escol finíssimo da Arte, mas se vivesse entre nós, esgotando o seu estro neste luminoso país das musas, Richepin teria abalado para a praia das Flechas, atraído pelos noticiaristas que exaltaram a beleza de uma Esmeralda pernambucana. O autor de La Glu, levado por um impulso quase paternal, iria rodar entorno das barracas procurando decifrar a gíria dos ciganos, esperando ouvir de alguns o epílogo sentimental da história de sua Miarka para vir contar, no seu estilo rendilhado e sonoro, como terminou a aventura da cigana, em que desvio, à luz de que astros foram celebradas as núpcias boêmias da filha da ursa. Richepin teria enveredado pelas barracas para ouvir a história romântica dessa moça raptada, teria recolhido as canções zingaras e talvez trouxesse, para alumiar o mistério da vida dessa gente nômade, a história remotíssima da sua origem.

Mas... que não trouxesse a história, que não se preocupasse com o segredo impenetrável desses peregrinos, sem um romance, sem o canevas de um poema, sem uma canção, não deixaria as tendas, o poeta dos maltrapilhos.

Ninguém conhece ao certo o episódio inicial da vida errante dessa moça do Norte. — Será de recente data o rapto ou foi ele feito quando vagia ainda a desgraçada esposa do cigano? Há ou não uma Gudula às margens do Capiberíbe invectivando um Quasímodo oficial de Justiça?

Terá havido violência da parte dos bandoleiros ou essa formosa estrangeira na tribo, num acesso de romantismo, sonhando como Miarka os largos horizontes do mundo e vendo desfilar na estrada branca a caravana dos ciganos, enlevada, atraída, foi seguindo a marcha ouvindo as guzlas até que exausta, sentindo-se desfalecida, pediu pouso na carroça do chefe?

Quem poderá dizer a verdade sobre esse estranho idílio, em que há uma Ariadne que chora não de saudade, não por se ver abandonada, mas de tédio, de nostalgia, cansada desse amor ambulante e dessa jornada infinda ao som de guizos, precipitada sempre, com pequenas pausas enquanto as velhas choramingam à porta das cidades, leem buena-dicha e fazem dançar os ursos; enquanto os velhos apregoam caldeirões de cobres e os moços assaltam rebanhos e casas, assassinando calma e friamente, com a canção nos lábios?

Richepin, se vivesse entre nós (mas felizmente não vive!) colheria um largo subsídio para uma história comovente, em que fosse protagonista a moça raptada, e teríamos de novo as descrições fantásticas, as grandes danças ao som de tamboris, os misteriosos oráculos das bruxas, os assaltos e os amores ardentes à plena luz, enquanto o burrico carregado de campainhas e de guizos abrisse a marcha aos eternos emigrantes. Mas, entre nós, o caso dos ciganos não passa das notas do repórter...

É verdade que Richepin vive em Paris...

XVII

Não posso atinar com os motivos das perseguições de que são vítimas os curandeiros... A polícia não permite que exerçam a medicina os herbanários que, em vez de alisarem durante seis anos os bancos acadêmicos, andaram pelas campinas e pelas montanhas cavando raízes, catando simples com a paciência evangélica dos Linneus e' dos Martius. A polícia entende que a cura não pode ser feita sem uma carta conferida, em sessão solene, pelas congregações sábias. — Quem diagnostica é o grau, quem receita é o grau, quem atesta é o grau. Não basta que um homem tenha dedo para a coisa, é mister que tenha anel no dedo predestinado, porque a verde esmeralda dos argolões científicos leva esperança ao espírito dos enfermos.

Entretanto os dois pais da medicina, Hippocrates e Esculápio, não cursaram faculdades. Não consta da história que os semideuses que conseguiram ressuscitar defuntos tivessem atravessado os seis anos de estudos, em anfiteatros anatômicos ou em laboratórios químicos; estudaram em plena natureza e conseguiram merecer as honras póstumas do título de «pais da ciência» — dois curandeiros como o caboclo, dois curandeiros como Bombardó.

Em medicina, como em religião o que salva é a fé... a fé é a grande, a principal terapêutica. Se assim é, por que razão insiste a polícia em perseguir o curandeiro A. chamado para velar junto do paciente B., se esse paciente estava convencido de que só conseguiria a cura bebendo as drogas inofensivas da farmácia não matriculada? Demais, o curandeiro tem a sua prática, conhece tão bem ou melhor do que o médico as vantagens do cipó chumbo e as qualidades drásticas da mamona — aplicar é fácil... Mas a polícia não entende assim; acha que um homem não pode morrer convenientemente senão ás mãos de um médico — o médico é o único que tem o direito de assistir e de atestar porque para os casos de morte foi que a Civilização instituiu um curso de seis anos, obrigado a colação de grau e a uma joia no anular... Para dar cabo do próximo basta uma faculdade; é por isso talvez que a polícia combate a concorrência... e não vejo outro motivo, porque realmente entre curandeiro e médico há tanta conformidade que... etc., etc.

XVIII

                                      Fragmento de uma carta de Felix Marialva.

 "Pequim...

Louvado seja o Senhor! — exclamei. Acho-me em terras do cheiroso Oriente. Vou agora ouvir as músicas que embalaram o berço da Humanidade, vou encontrar os macios e lânguidos olhares das que, noutro tempo, fizeram as delícias dos conquistadores tártaros. Que bela primavera vou eu gozar aqui à sombra fragrante das velhas selvas, ouvindo o murmúrio dos rios nos leitos cavados ainda pelas águas do segundo dia!

E desafogando o meu entusiasmo em um sonoro suspiro vesti a túnica de seda bordada a ouro, com um pitoresco ramilhetado, consenti que me raspassem a cabeça, e nesse todo chinês deitei-me em uma esteira de junco ventarolando, devoto e calado diante de um ídolo de barriga enorme, em cujo umbigo bato com uma vaqueta quando careço da presença de Fú.

Ao cabo de meia hora de recolhimento, bateram à minha porta três pancadas leves.

— Entre, quem está! Era Fu.

O tankia adiantou-se — olhos baixos, lábios mudos, braços cruzados e um rabicho mofino saindo-lhe da reluzente calva, como a raiz de uma cebola. Vinha trazer-me o chá — chá pérola, que de outro não tomei enquanto percorri terras do Meio. Depois da bebida, para dar expansão à língua e ouvir cousas extraordinárias, convidei familiarmente o tankia a encolher-se em uma esteira de bambu que puxei para o centro da sala. O chinote resistiu vexado, mas, por um, sentou-se,

— Vamos lá, rapaz, desamarra essa cara de agonia e conta-me a tua vida. Escusado é dizer-te que não vim ao Celeste Império simplesmente para comer arroz — vim também beber conhecimentos. Desata a língua sem cerimônia e, aqui que ninguém nos ouve, fala-me a verdade sem véus, a pura, a verdade das verdades.

O tankia falou com uma voz pungitiva, e a proporção que discorria como se a sua dor estivesse a dar à bomba no poço da sensibilidade, vinham-lhe às amêndoas fios correntes de lágrimas:

«Desde que o sol me alumia, vivo cavando a minha sepultura. O tankia tem nos olhos dois oceanos—às vezes aquecidos pelo sol, acariciados às vezes pela lua — mas sempre cheios d'água.

«Nós, tankias, temos por dote, quando as nossas mães não nos esperam no nascedouro com o carinho que asfixia, nós, tankias, senhor, temos por dote a Dor, a grande Dor que não tem cura. Andam juncos nos rios, anamitas à proa assobiando ao vento, mas o crocodilo nada sob a quilha... Voam carros nas leiras, mas o vento destrói com uma lufada tudo que o pobre leva... Se criamos matam-nos e roubam-nos. A ave familiar do tankia é o corvo — triste símbolo, mas verdadeiro emblema... Não temos cemitérios para os mortos, mas temos cemitérios para os vivos. Trabalhamos de ‘sol a sol sem cantar, sem sorrir e, de quando em vez, a peste do alfange imperial ceifa a pobreza que geme.

«O miserável aqui, meu senhor, nem pode baixar os olhos sobre o lugar em que descansou um lírio branco amado. O coração morre quando começa a nascer. Aqui trabalha-se para morrer...

«O que ainda nos consola é ver à hora triste da tarde, no amplo e sereno céu, passar triunfalmente, remigiante, a falange altiva das águias do Thibet.

«O que ainda nos consola é o cheiro balsâmico e benfeitor das nossas matas, onde é bom morrer quando as grandes pétalas desabrocham ao aparecimento da jardineira aérea — a lua branca do céu.

«É bom morrer, meu senhor. É muito bom morrer. »

— Mas, por Deus, não há então no mundo um remédio para tamanhos males?

—    O ópio que traz o sono, que é a anestesia da alma... ou então o supremo bem, a paz sem fim...

—    Qual é...

—    O suicídio...

E o tankia passou a mão pela garganta, fazendo craaat, como se em verdade tivesse cerceado a goela... e espichou uma língua saburrosa.

Receitei-lhe água de Rubinat. »

XIX

                                                 À * *

Não, minha senhora, quem lhe disse tal mentiu... Sou nervoso, tenho de quando em vez acessos, mas de melancolia, acessos mansos, se permite que assim me exprima. A meu ver, a melancolia é uma loucura triste...

Mas, se tenho em minhas mãos as mãos de qualquer senhora, se ouço boas palavras, se me entontecem aromas, se pelos meus ombros se derramam cabelos e se me abraçam... não, qual triste! sou o mais comunicativo que é possível.

Correm por aí calúnias; sei bem que invejosos dizem fabulas, inventam lendas a meu respeito, mas esse vilão que lhe disse tal mentira, hei de apanhá-lo, para que repita diante de mim e diante da senhora a infâmia.

Se às vezes exalto-me — e isso sucede-me de quando em quando — tenho razões fortíssimas... Triste de mim se me não exaltasse... mas sei comedir-me, não vou além do chic, porque tudo tem um termo... Mas não sou de languores, não tenho os dengues efeminados que o caluniador me atribui — amoroso, meigo, não nego... Também não é decente e cavalheiroso tratar uma senhora à maruja — quer-se bom tom, uma certa delicadeza afável, mimo. Uma senhora não admitirá jamais que a tratem rispidamente.

Sou nervoso, mas sem tics. Os meus nervos têm educação, minha senhora. Exaltam-se uma ou outra vez, por exemplo, diante de uma infâmia como a tal... que... Não, minha senhora, pelo amor de Deus, por tudo que há de bom e de santo neste mundo, responda-me: quem foi que lhe disse que eu grito?

XX

 AO ESSÊNIO

Amado Essênio, dizem lendas (e vai bem longe o tempo em que as ouvi contar) que hoje dormes vigiado por uma teoria de anjos para que não suceda ao mundo a desgraça irreparável de ser devorado por um incêndio ou por um novo dilúvio contra os quais nada poderão fazer as bombas de que dispõe a triste humanidade. Entretanto, amado Essênio selvagem, que mal te fizemos nós? podemos repetir como o borreguinho da fábula (e tu és tão amante dos borregos!): no tempo em que padeceste não éramos nascidos...

Sofreste muito, não há dúvida: — Foste para o deserto, comeste gafanhotos, apanhaste muitas bronquites, porque teus ombros tinham apenas para resguardo uma pele de ovelha, por fim passaram-te a faca impiedosamente, porque do fundo do teu cárcere de Makeros dizias verdades terríveis às gentes, sem distinção de casta.

Mas, amadíssimo precursor do artigo de fundo, preclaro progenitor do apedido, consola-te... Por muito menos, oh! por muito menos! andam Joãos sem carneiro (quem lhes dera um quarto, não para morar, fazem pouca questão disso, para comer) por imensos desertos piores que os da Galileia, (por esse ao menos de vez em vez entrava um vulto meigo de samaritana, fazendo a travessia)— muito mais tristes sem sicômoros, sem cinamomo, infectos plantados de árvores que matam, alagados de pântanos, atravessados, vê bem Essênio dispéptico, atravessados por antropófagos de dois pés, de quatro pés, não sei se de mais...

Não garanto que tenham comido gafanhotos e mel silvestre, porque ainda não tive em mãos o menu do que comem, mas que têm sido comidos (o que é um pouco pior) que o digam os mosquitos que têm morada às margens do Rio Negro, que não é positivamente o Jordão Lustral.

Não sei se ainda têm as cabeças sobre os ombros, alguns têm-nas perdido por vezes diante dos horrores, mas não consta que o alfange, ou coisa equivalente, de uma Salomé tenha-as passado para um prato de prata.

Outros, João, vivem em presídios piores do que Makeros. Lá, pelo menos, tinhas de quando em vez a consolação de ouvir as músicas do tetrarca e os outros, queres tu saber o que eles ouvem? os silvos dos ventos e o ululo das águas bravas. Consola-te, meu Essênio e não venhas por aí com uma carga d’água...ou de fogo; nada de indignações violentas.

Que diabo, meu santo... tu tens o paraíso, houve sempre um pedaço de céu para receber-te depois das invectivas com que puseste rasos o governo de Roma e outras coisas mais e más; tens bombas, tens fogueiras, as donzelas invocam-te, as velhas acendem círios junto ao teu símbolo e os outros Joãos, meu santo? e os outros que andam por esses matos ao sol, à chuva, entre os jacarés e os índios, sem lar, sem pão e sem família... nem habeas corpus tiveram...

Deixa-te de histórias meu santo, tu, à vista dos que hoje sofrem, és um João-Ninguém... Se queres ver o que é martírio vem cá em baixo...

XXI

 AOS CEGOS

Ó vós outros que não tendes vista, vós omnes que não vê Ira um palmo adiante do nariz, exultai, porque o nó cego acaba de ser cortado por uma senhora recentemente chegada do estrangeiro, que «trouxe um remédio para todas as moléstias de olhos, menos a gota serena »

Como vedes, digo, como ouvis, as cataratas vão desaparecer da superfície dos olhos limitando-se, e já não é pouco, à superfície da terra, adeus, belidas; conjuntivites até mais ver...! o mundo vai ficar de olho vivo, graças ao misterioso remédio da estrangeira. Os cegos poderão fazer pequenas experiências, porque a coisa é tão maravilhosa que só mesmo vendo, e se da aplicação obtiverem resultado visível, continuarão ou mandarão o elixir à fava, tendo conseguido a vista comas primeiras provas. É por isso talvez que a milagrosa senhora exige pagamento à vista.

Só será cego doravante quem não quiser ver.

Não se me dava de ser testemunha ocular de uma cura; sempre queria ver a cara que faria um cego esbarrando com as pessoas mais íntimas e conhecendo-as de vista...

*

Das moléstias de olhos só não cura a gota serena, mas em nosso país a gota é outra, menos tranquila talvez, porém mais oficial — a serena pouco estilicida nesta viçosa parte da América. Os outros males desaparecem, como por encanto, com uma simples aplicação do remédio forasteiro, de cujo segredo é portadora a exótica senhora.

Os amorosos, cegos de paixão, poderão ver as pequeninas traições de Carlota ou de Julieta, através da nuvem hipócrita que elas sabem fazer com muitos beijos, com muitos risos, enlaçando o pescoço purpúreo e suarento dos seus respectivos sustentáculos com os anéis brancos dos seus braços.

Os incautos poderão descobrir as ciladas dos pregões dos dividendos disto, daquilo. A polícia ganhará a pista dos gatunos, os gatunos fugirão com mais prudência às vistas da justiça, que, por um capricho sem nome, em fins do resplandecente século de todas as liberdades, inclusive a de prender toda a gente, traz os olhos, abafados, en tenue folgazã de cabra-cega.

A intendência também lucraria vantajosamente se acudisse ao reclamo da senhora, fazendo no seu olho preclaro e solicito aplicações constantes do luminoso elixir ou coisa equivalente (ninguém sabe o que é, por ser segredo) e distribuindo-o pelos munícipes obscurecidos, como fez com o cow-pox, na era calamitosa da varíola, para que pudessem cumprir o preceito filosófico da constituição, sabiamente inspirado pelos videntes quakers da ortografia econômica, que é este—«Viver às claras...?; porque, apesar da vontade que há em todas as nossas almas sinceramente patrióticas, andamos às apalpadelas, como Teseu no labirinto, e tateando lançamos nas trevas a pergunta ansiosa: «Para onde vamos, irmãozinho? Que caminho é este...?

E ninguém responde, porque ninguém vê mais.

Venha a nós o remédio da senhora, pelo amor de Deus!

XXII

                                                          À Exma. Sra. D. L.

Acho perfeitamente natural o que V. Exa. chama um «esquisito capricho de mulher ». São tais e tantas as referências que tenho feito ao Felix Marialva, que não é V. Ex. a única que me tem escrito com relação ao misantropo mais original dentre quantos tenho encontrado em meu caminho. Declino da tarefa de que me encarregais, porque não me seria fácil descrever o «tipo» do meu amigo; tenho porém em meu poder uma carta, datada de Junho (dentre serras bravias), em que ele mesmo traça o seu retrato moral. Ei-la:

«N.—A tua carta veio surpreender-me na selva, onde faço tranquilamente a minha higiene de silêncio. Trouxe-me a um carvoeiro dentro do saco da merenda, mais fiel e mais seguro do que a mala do estafeta. Queres que te fale de mim, instas com Caliban para ouvi-lo rosnar, excitas o sakey simplesmente para estudar a forma rudimentar da linguagem... Pois aí vai...

« De homem do século guardo apenas o tédio... nada mais. Deixei crescer o cabelo, deixei crescer a barba e estou de tal modo erriçado, que, quando por acaso paro diante d’água e vejo o meu reflexo, penso que do fundo do rio vem surgindo o espectro cabeludo de um merovíngio. Visto-me de panos grossos porque assim preservo o corpo do frio e dos espinhais das matas, menos agudos, menos venenosos do que a calúnia da tua cidade elétrica.

«De feminino absolutamente nada, apenas a pálida Diana, que vem à noite, sempre branca e sempre muda, adormecer a terra e derramar lirismos na alma — (a minha infelizmente já não comporta esse bem suave, porque, como os famosos copos de quassia, de que tanto usaste para curar a tua dispepsia, deixa amaríssimo tudo que recebe). — O que tu chamas pessimismo — é bom senso. Perguntas que livro leio — os mesmos que liam os trogloditas — a natureza.

«E lendo-a penso com tristeza que... nem ela, a pobre natureza, escapa à babugem dos críticos, porque andam sábios comentando a marcha luminosa dos seus astros e outros, mais rasteiros, analisando a vida das suas flores. Tenho saudades de Heloísa, mas confesso-te que o carinho em excesso enfada-me. A preocupação de outrem mata-nos a autonomia.

«Não há nada que mais esterilize do que a ternura: um olhar sempre voltado para um ser acaba por adormecê-lo...

« Sou um selvagem, adoro a minha independência e essa só a posso adquirir na solidão.

«A tua consulta sobre danças é curiosa e extravagante.

«Queres que te diga francamente a minha opinião? daria alguma coisa para assistir à dança macabra... E no gênero cotillon só admito o sabbat. É tarde.

« O carvoeiro canta carregando o burrico. Vai partir, e como não tenho outro portador, remato a epístola.

«Essa mancha tufada não é de lagrima — sabes que não tenho líquidos sentimentais. — Caiu sobre o papel uma gota d’água. Adeus.

«P. S.—Ainda há quem se fie na opinião pública? — Felix

Aí tem V. Ex. o Felix Marialva.

XXIII

                                                                    AVISO AOS INCAUTOS

Grande crime... ter amores com uma judia!

Colombo, foste o mais vulgar dos homens... Descobriste a América, sim; em compensação descobriste uma judia... Vestiste o burel, oh! e a israelita que desnudaste, genovês lascivo...? Tuas virtudes, a pureza de tua alma, todo o martírio da tua vida, as privações, os apodos, os terríveis mares, a cruz que trouxeste ao seio do mundo virgem... tudo quanto a tua temeridade levou a termo, que vale...? A pureza pontifícia pesou tudo isso e a concha em que tua alma jazia elevou-se' tão alto, que chegou ao céu... Anunciaram as fanfarras de S. Pedro que ias ser canonizado. O Vaticano rejubilou, os sinos tiveram frêmitos nos campanários, os marinheiros exultaram, iam ter um advogado junto de Deus para invocar no momento em que se vissem perdidos nas águas vastas, tocadas pelas tormentas... mas crac! um beijo e aí estão todos os sonhos por terra... Porque? Colombo não foi um puro? que fez de mal o intrépido marinheiro? teve amores com uma judia... Oh! negro pecado... Oh! crime nefando!

Alma que escapaste da canonização, erra pelos espaços perseguida pela matilha terrível dos beijos da israelita... Amaste, pena, sofre, expurga-te da ignomínia de teres feito como Jesus. O céu não permite amorosos— quem tiver beijado faça cruzes na boca e vá preparando malas para a... região de I’eterno dolore...

O inferno deve ser calçado de corações... Que alamedas idílicas, que vergéis deliciosos no Orco. Se todos os apaixonados pertencem ao mau Anjo, pobre céu sem mulheres...! como deves ser insípido, como deves ser triste com os teus patriarcas, com os teus penitentes roxos do cilicio, com as tuas monjas estéreis, mirradas, com os teus anjos pudicos...

Colombo não é considerado santo simplesmente porque, antes de se fazer de vela à conquista de outros mares, de outras terras, fez uma pequena conquista de amor... uma judia, descendente talvez dos profetas da primeira era, mulher do sagrado povo de Elohim. Para onde irá minha alma então? e a tua, leitor?

Se ele, por uma, sofre tamanha pena... quantos martírios não sofreremos nós?

Santo... nunca pensei em tal... não tenho os requisitos necessários para o nicho; demais, o incenso: ne faz dor de cabeça, mas um lugarzinho no céu não é coisa que se desdenhe...

Confesso que me julgava digno dessa atenção, mas se Colombo perdeu tudo por causa de uma judia... que será de mim, Santo Padre... onde irá parar minha alma, tão carregada de pecados?

Ah! mulheres! mulheres! até nos negócios dos santos se intrometem...

XXIV

                                                                         A FELIX MARIALVA

Coligir sonhos... E chamas a isto a «evidência da loucura» Acho a frase de um diferente eufemismo, porquanto vejo nela a intenção cruel de dizer que uma boa porção da humanidade que rebusca, sofre das faculdades mentais. Coligir sonhos, meu Deus! nada mais inocente, e quem sabe se esse trabalho que te parece uma «preocupação fútil de espírito transviado» não virá prestar auxílio a subsequentes pesquisas psicológicas? Há tanta gente que coleciona! Sei de tantos!

Entre os que conheço — colecionadores - de borboletas, de moedas, de conchas, de répteis, de bons ditos, de anedotas, de versos, de suicídios, avultam dois pela excentricidade— um que coleciona fios de cabelos e procura o da ocasião para completar o seu quadro capilar, outro que coleciona as últimas palavras. Oh! o das últimas palavras!... Só tem uma leitura: as necrologias; só tem uma preocupação: os mortos. Se lhe consta o falecimento de alguma celebridade, enfia a sua toilette de ver defuntos e parte... Entra pela casa do morto, carnet em punho, lápis aparado, indagando: «Qual foi a sua última palavra? Que disse antes de expirar? »

No seu canhenho encontrei esta observação curiosa: —«Últimas palavras de L (um poeta): morreu como um passarinho, sem dizer: ai, Jesus!»

O dos cabelos tem pago bem cara a sua mania. Já se bateu em duelo várias vezes. Na Alemanha apanhou uma valente estocada por ter arrancado um fio de cabelo (dois metros e 50 de comprido) à cabeça de uma certa fidalga durante a representação do Lohengrin. Em Lisboa um general reformado, possuidor de um único fio, trouxe-o embaraçado em um processo por perdas e danos, por ter sido privado do seu Abencerragem — Ele gaba-se desse e de outros fatos e mostra com orgulho os preciosos fios, numerados, historiados, em pequeninos estojos... Se achas loucura a tua mania, que dirás das que dominam os dois amigos que acabo de citar? Coligir sonhos... sobre ser original é chic e... ultra psicológico, meu Felix.

Conta comigo e sabes bem que sou um sonhador fertilíssimo.

XXV

                                                             À CIDADÃ

A pruderie da intendência não consente que o transeunte faça concorrência ao corpo de bombeiros no serviço altamente higiênico da irrigação das ruas da cidade. As mangas podem molhar as calçadas, podem mesmo alagar a cidade num diluvio profilático contra os micróbios que passam despercebidos às vassouras mecânicas da Gari, mas o burguês, o pacato, o respeitável e apertado burguês esse não tem direito de pôr as mangas de fora. A intendência não permite e alega umas tantas cousas cheias de moralidade e de higiene que põem o pobre contribuinte em calças pardas.

O cachorrinho, pode alçar a perninha nos muros da intendência, o cachorrinho não paga multa, tem imunidades; o burguês, esse não. Se para nas esquinas onde, graças à extinção dos conventos, não há mais frades de pedra para consolo dos espíritos religiosos e liquidação dos apertados, um fiscal pundonoroso, seguindo o rastilho húmido do «útil mesmo brincando», cobra a rega fisiológica, às vezes mesmo antes da operação final, quero dizer, das últimas reticências... A intendência, respeitando com severa austeridade os princípios pudicos da decência, anda de olho alerta e, mal presente que um homem, impelido pela sua própria condição de eterno derivativo, vai se cosendo ao muro, prudentemente, cautelosamente, franzindo a cara num esforço, chegasse-lhe ao ouvido e, em-vez de fazer como as amas o pchii carinhoso e soberanamente diurético, pede-lhe dez mil réis em nome dos princípios sisudos da municipalidade. O homem paga sem tugir, paga e corta, porque o fiscal, no seu grande zelo de mantenedor da limpeza pública, não consente que o desgraçado leve a termo o seu desabafo cor de cerveja Spaten.

É por isso que o povo anda cheio de necessidades.

Mas, honrada e sóbria fiscalização urbana, ainda que mal pergunte — onde queres que o munícipe, vassalo, contribuinte e alistado, alije? onde, em que ponto, em que número? se estamos sem número, sem cômodo próprio para esses misteres, em que o fisco anda a meter-se como o célebre bichinho dos rios da Amazónia?

Ó preclaríssima intendência, respeito imensamente as tuas intenções de saneamento, estou de pleno acordo com as posturas municipais... mas parece-me que são demasiadamente fortes contra as posturas individuais. Deixa que cada um ponha onde bem lhe parecer... já que não há retiros suficientes para satisfação de quantos são violentamente atacados pela corrente interna para as quais, nos primeiros tempos, a prudência das mais inventou a represa das fraldas...

Ou cubículos ou uma postura municipal obrigando-nos a usar calças de pano esponja... porque, apesar da carestia dos gêneros, é muito 10$ de cada vez que...

XXVI

                                                               AO MARECHAL DEODORO

Lenta, pávida, sombria a Morte sinistra ronda o, leito do triunfador. Investe e recua diante do olhar flamíneo do herói, sereno na (agonia como foi na Victória; calmo no sofrimento como na hora da apoteose quando, levantando a sua espada como o anjo bíblico, expulsou da Pátria os repudiados.

A Morte opera lentamente; vai aluindo o bravo, fibra a fibra, vence-o aos poucos. Tem-no subjugado, mas, na inércia dolorida do corpo tombado, a alma enérgica e guerreira vela, o espírito resiste tranquilamente defendendo o arcabouço das investidas pérfidas da garra misteriosa.

No corpo, pronto para o catafalco, apenas os olhos chamejam, rebrilham com fulgores de astros — são como dois círios sobre um esquife.

No fundo das pupilas fixas, resplandecentes, lúcidas, passam de quando em vez as visões das vitórias — e no adito, no mais profundo da retina, a imagem indelével da Pátria sorri como uma pequenina santa dentro de um escapulário.

E o moribundo sonha, sonha recapitulando toda a sua vida de paladino e aos seus ouvidos, cansados do ruído fúnebre do estertor, soam deliciosamente, como se viessem de muito longe, os hinos triunfais e as hosanas do povo e passam de vagar as visões na pupila — lutas, combates, reptos pela honra da Pátria, pela tristeza dos oprimidos, pela ânsia dos escravos e, finalmente, a última visão, rápida como um relâmpago, a liberdade do povo, a independência do berço.

Mas uma sombra vela a resplandecente claridade e uma lágrima rola da pálpebra arroxeada do bravo. Será a lágrima da saudade... ou mais angustiosa ainda?

Mais forte, mais terrível que a sentinela sombria que não lhe deixa o respaldo do leito, essa lágrima abate a alma e prostra o coração ferindo-o profundamente... Cerra os olhos e pensam todos que é findo o período glorioso do guerreiro, mas lentamente a pálpebra levanta-se, os olhos circulam ansiosamente e o coração entra a pulsar precipitado, como num rebate, e no mais profundo da retina, a imagem indelével da Pátria sorri como uma pequenina santa dentro de um escapulário...

De todas as suas visões essa é a mais forte a mais consoladora; as outras esvaem-se, desaparecem, somem, essa somente fica — Foi o seu guião nas campanhas, será o seu viático no supremo transe. Presente sempre essa visão e lenta, pávida, sombria, a Morte sinistra que ronda o leito do triunfador... nada mais, nada mais, porque a memória dos ingratos é como a dos escampos—só existe para o eco do que vibra...

XXVII

                                                                    A F. LIMCEIRO

De todos os decifradores de enigmas, o que obteve melhor prêmio foi, sem dúvida alguma, Édipo que apanhou a coroa de Tebas. Devo dizer, entretanto, que a proposição da Esfinge não era das mais difíceis. Há hoje quem decifre problemas muito mais intrincados, sem ambição a reinados, sem ambição á gloria, pelo simples prazer de parafusar. Conheço um velhote que tem a mania das charadas — e homem de bem, avô duas vezes; vive folgadamente das suas rendas e não tem preocupações, porque não comprou debentures — o seu único cuidado é achar conceitos. À tarde, quando vem ao jardim chuchurrear o seu café, traz quatro ou cinco charadas prontas, e é vê-lo então às voltas com o genro e com a nora.

— Vá lá, metam o dente se são capazes... E, atira-lhes: Este elemento da preposição...Toma uma pitada e corrige: do advérbio... Este elemento do advérbio... De olhos baixos esfrega o nariz com o alcobaça, procurando o conceito, mas o genro acode imediatamente: — Arca, meu sogro...

— Ó homem, que pressa! Nem esperou o conceito... Quando o genro faz dessas, o velhote amua-se e ninguém mais lhe tira uma palavra durante toda a tarde. A filha que, melhor do que ninguém, conhece o pai, já preveniu o marido para que evite as precipitações, porque o velho é capaz de feri-los no que eles têm de mais precioso — a herança.

A nora, por esperteza ou por outra coisa qualquer, não decifra nem à mão de Deus Padre, e o velho adora-a...

Consta-me que o genro pretende imitá-la...

Esse velho descobriu um gênero de charadas que, no dizer dos matadores — é uma estopada. Não sei, infelizmente, como é — deve ser horrível, penso eu, mas perfeitamente inofensiva. Tenho certeza de que seria aprovada pela junta de higiene, caso quisessem sujeitá-lo a exame.

O enigma é mais sério, mas tem igualmente os seus cultores apaixonados. A. F. R., sisudo funcionário público, já uma vez passou pelo vexame de ser posto fora de uma casa por ter proposto um enigma, aliás inocente, a um casal de moralistas quand même.

Dirigiu-se ao marido, homem abafadiço, principalmente em se tratando de delicados pontos de honra.

O enigma proposto foi este:

«O senhor é casado e sua mulher tem um filho, quem é seu pai?»

O homem, fulo de ira respondeu mostrando a porta à A. F. R. «Que o pai era o diabo!» Mais tarde A. F. R., muito pungido, explicou-me a coisa: que aquilo era uma espécie do «Quem é o pai dos filhos de Zebedeu?» O pai em questão não era com efeito o pai do filho, mas o pai do interpelado... Como vêm, é tudo quanto há de mais inocente, pois custou ao zeloso A. F. R. uma amizade que lhe proporcionava jantares magníficos e ficou nisso, porque o marido, felizmente, estava com reumatismo na mão direita e no pé, também direito. Ainda assim, apesar dessa cena doméstica A. F. R. não perdeu a mania — anda agora propondo um outro, também ambíguo... Deus queira que não lhe custe a perda de outra amizade que lhe proporcione almoços.

Com prudência, meu caro senhor, pode- se cultivar o gênero de diversões pelo qual o meu amigo dá o cavaco. Eu não sou dado ao vicio; se fosse, havia de conciliar as coisas de modo a não provocar escândalos nem aborrecimentos, e facilmente — dando o enigma, a charada e logo em seguida a decifração... e o prêmio, se a coisa fosse a valer.

Acho eu que assim ninguém teria razões de ressentimentos.

XXVIII

Não é o abade Faria, esse velho quase centenário, que tiritava numa célula gretada pelo mar, húmida, gélida e tenebrosa do castelo d’If, não é ele que vem dar a um Dantes qualquer um novo segredo de milhões ocultos.

Não é o abade, garanto, pode ser seu filho, seu neto (se é que o venerando eclesiástico teve dessas coisas) esse soldado de Espanha, que tanto escreve e que tantos certificados consegue, contando que entregou indiscrição da terra uma fortuna e provando que arrasta algemas no fundo do seu cárcere lobrego.  

Esse bravo, irmão do Cid pela pátria e pela vida, (de soldado, não de tesoureiro,) além de implicado em uma revolta militar que abortou, não sei se por efeito de algum processo científico, teve de deixar precipitadamente as veigas floridas da península dos amores, porque também, ó desventura! viu-se a mãos com a caixa do regimento, não a de rufo, a sonora e pesada caixa das pesetas, que vale o que pesa, valha a verdade, porque muito há de ter pesado na consciência desse revoltoso.

Com a caixa atravessou os Pirineus e dos cimos dos montes que repercutiram os atroadores rugidos da trompa de Rolando disse o adeus eterno aos vergéis andaluzes e aos eirados de Granada e ganhou o mundo com seu rico fardo.

Podia tê-lo deixado em um banco qualquer para viver regaladamente dos juros, mas não quis —a ambição travou-lhe do braço e obrigou-o a tomar um paquete que demandava a terra do pendão auriverde, em cujas plagas desembarcou o soldado, internando-se imediatamente, como Timon desiludido, para confiar à terra o seu tesouro. ‘

Cavou uma jazida num sítio misterioso e lá deixou a maquia e não houve sequer um bem-te-vi que visse. Mais tarde, aguilhoado pela saudade da mulher e dos filhos, voltou à pátria. Mas, apesar do disfarce, porque tomou ares pungidos de mendigo, foi reconhecido e logo lhe ataram as mãos e entre aguazis seguiu para a masmorra o desgraçado que se deixara levar pelos cantos do coração, que muitas vezes traem como uma sereia.

Entre as muralhas frias, sobre a palha da prisão, distrai-se, não como Sylvio Pellico educando insetos, mas como S. Paulo — fazendo epistolas às gentes do Brasil, epístolas em que conta que deixou (em umas diz que na estação da Serra, diz em outras, talvez para evitar repetições, que na aba do monte Santa Tecla que é uma das eminências do Rio Grande do Sul) a caixa do regimento.

Acho estranho tudo quanto escreve esse bravo militar, mas noto que não diz coisa com coisa. A B. afirma sinceramente que a caixa está enterrada no Buraco Quente, lugarejo ignorado e pobre que fica recostado a uma serra; a C. garante que está no Pau Grande. Por que essa mudança constante?

Eu, se fosse ambicioso, procuraria o tesouro não nos sítios indicados, mas no único lugar onde com certeza ele demora e de que ninguém até hoje se lembrou — no Porto das Caixas. Lá é que deve estar a do regimento espanhol.

Procurem!

XXIX

A MLLE AFRODITA

Não sei, mademoiselle. É possível que conseguisse domar a curiosidade, é possível que me deixasse estar encolhido a um canto do cubículo, refrescando as carnes, antes de aventurar-me ao primeiro mergulho; mas... se me chegassem aos ouvidos o farfalho das roupas que levais à praia, escorrendo levemente num abandono voluptuoso, pelo corpo... o trêmulo balbucio tiritante de quem cruza os bracinhos nus, ainda tépidos do leito, e os risinhos...

Se me chegasse o aroma de Spciosa que é o vosso preferido, com que lavais as carnes; se ouvisse a vossa criada, a loura Ketty, dizer num tom britânico: — «Agora as calças mademoiselle...»

Se... perdão... Não sei onde iriam parar meus olhos, se nas alturas como os de Santo Antão nas horas da tentação, se... na pequena frincha indiscreta que descobristes no cubículo onde fazeis toilette para o banho.

Que eu providencie... meu Deus! Que eu vá ver... Mas, mademoiselle, não ouso... não me atrevo. Para que me certifique do crime 'do garoto que fez um look-into (não sei se permites o neologismo) é necessário que eu examine minuciosamente o sitio e que espie... V, Exa. há de convir comigo.

Pois bem, mademoiselle... custa-me a confissão... mas — ou sou mais infeliz que o tal garoto, ou V. Exa... por indisposição, sem dúvida, ontem não foi ao mar (talvez por isso as ondas gemiam tanto). V. Exa. não foi e, se assim afirmo, é porque me sobra certeza. Não julgue V. Exa. que andei de grupo em grupo perguntando:

— Viram Mlle. Afrodita? Não vem hoje Mlle Afrodita?

Não! seria incapaz de tanta indiscrição... Quereis saber donde me vem a certeza de que não fostes ontem? eu... (e peço-vos mil perdões por este crime. Por muito menos Pentheu acabou às mãos das fúrias) eu... espiei. Espiei, mademoiselle, e, sinceramente, não achei motivo para condenar o garoto — nada vi, absolutamente nada, de sorte que não tenho elementos para acusação.

Resolva-se V. Exa. a... a comparecer amanhã, a... vestir-se de sorte que eu, espiando pela frincha do gabinete contíguo, possa convencer-me, vendo (e não há melhor prova de convicção) de que houve um garoto que ousou surpreender-vos, mademoiselle, espiando por uma fresta enquanto a loura Ketty vos tirava dos ombros o jupon felpudo oferecendo-vos, em troca, a cambraia da camisa.

Sem convencer-me de viso... nada avanço. Respeitador...

XXX

As sessões noturnas não têm despertado interesses, mas bocejos. A Pátria que faça cruzes na boca e que perca as esperanças. Um deputado declarou, há dias, que à noite preferia a sua alcova à câmara, e ajuntou que a bancada podia, quando muito, ser um leito pro custo (há uma visível alusão ao subsídio).

O benemérito que teve a lembrança de convocar reuniões deliberativas para depois das sete é um sonhador, por certo, ou nictalopie e julgou que os seus colegas veriam melhor as coisas à noite do que de dia. Mas (e cabe aqui esta objecção luminosa), se à luz clara do sol o presidente não vê número no recinto, como querem que seus olhos descubram à luz do ex fumo? .

Demais, a Pátria deve ser cordata: há deputados assinantes do Ducci, outros do Tomba. Durante o dia lá estão corretos e adormecidos nas suas respectivas cadeiras da câmara; é justo, pois, que à noite sejam homens como os mais, e são; basta vê-los nas suas respectivas cadeiras, das plateias.

Nem todos têm coragem de queimar as pestanas, e acho eu que é, quero dizer, que não é bonito confundir os representantes da nação com os comboios — noturnos, deputados noturnos... isso até faz pensar em coisas do outro mundo.

Um orçamento votado à noite deve ser muito tenebroso; demais, um dos princípios fundamentais da República opõe-se às sessões «extra» viver às claras à noite, só com a vela na mão, mas isso é agourento. No escuro, às claras, é impossível, logo: há um princípio preclaro lesado — faça-se luz sobre o caso. Rege-nos ou não a lei de: cartas na mesa, jogo franco, ou pão, pão; queijo, queijo? Vamos às claras ou às escuras? Em que ficamos?

Parece-me que há um escrúpulo da parte de alguns representantes, fieis cumpridores dos preceitos — não vão à noite para não transigir.

Estou certo de que, se alguém interpretar o lema, as sessões serão concorridas. Todavia será prudente que a mesa proíba aos senhores deputados quaisquer objetos que os possam fazer cair em sono, como: travesseiros, carapuças, camas de vento, redes... Ainda assim é preferível que se reúnam, ao menos o presidente poderá resmungar para a nação que «a câmara vai dormir sobre os casos»

XXXI

Aos que admiram as excentricidades do misterioso Marialva que não deixa a sua selva selvaggia, ofereço este mosaico de «ideias lançadas a esmo em uma larga folha de papel da China;

.    .      .       .      .     .      .      .     .     .     .     .     .      .     .     .     .     .     .    .     .     .    .     .   .

A alma é um raio de sol interior como o sol é a grande alma da natureza.

Quando a luz desaparece a natureza concentra-se e sonha, porque as flores que desabrocham no silêncio da noite são os sonhos da terra.

A alma também, quando se concentra, as nossas pálpebras fecham-se e a treva do sonho, como a noite, desce-nos sobre o corpo e sonhamos.

O sono é o ocaso da alma.

A terra, durante o seu descanso, tem o pio funeral do moço — nós temos o pesadelo.

Quando amanhece, quando desponta o dia, a luz entra peles nossos olhos—as duas claraboias do corpo — e ilumina essa cafurna. Tudo desperta e canta.

Nós temos o riso e o pranto, exatamente como a natureza que tem o sol e a chuva.

*

Cada um de nós tem um paraíso consigo — um deus governa dentro dele: é o Pensamento. Esse paraíso é o cérebro.

É o deus do cérebro o fecundo produtor do Belo. Jehovah não fez a música, nem a poesia, nem a arquitetura, nem a pintura — fez o homem.

O deus do cérebro completou a obra do Imortal.

Deus arrancou o mundo do caos; o Pensamento vai fazendo o mesmo.

Um teve o sétimo dia—o outro tem ainda o absoluto.

A oração vai até Deus — o Ideal vai além.

Um rodeia-se de santos e de profetas— o outro cerca-se de ideias e de problemas.

Um tem falanges e falanges de anjos —o outro tem a fantasia.

Um tem a vontade suprema—o outro tem a imaginação.

Um vê o passado, o presente e o futuro— o outro tem a memória e a saudade, o pressentimento e a intuição.

Um tem o raio — o outro tem a razão.

Um tem o juízo final — o outro tem a consciência.

Um criou Satã —o outro criou o remorso.

Um é imortal no azul — o outro nos poemas.

Ambos têm o dom da ubiquidade, ambos são impolutos, ambos são invisíveis.

Um domina a Terra — o outro domina o Céu.

... O grande Deus teve o Cal vario — o outro tem o coração.

XXXII

                                                                         A FELIX MARIALVA

Todas as manhãs, à primeira luz, vem gemer junto da minha janela uma mulher das Ilhas, macilenta e magra, cadavérica, com um pano passado em volta da cabeça, acompanhada dos filhos — dois pequenotes louros.

Senta-se molemente junto de uma árvore; no relevo de uma raiz e daí, compondo uma fisionomia lúgubre, entra a lamuriar contando a toda gente uma longa história de misérias curtidas no fundo lobrego de um quarto de estalagem.

Atiram-lhe esmolas ao colo. Alguns, mais compassivos, param contemplando-a, ela então, para exibir a sua desgraça, renova a lamúria, enchendo-a de episódios, em que entram, como elementos comovedores: a fome dos filhos, o frio das longas noites desabrigadas e a febre e a insônia cortada de pensamentos, molhada copiosamente de lágrimas.

Os pequenos, enquanto a mãe jeremia, brincam rolando nas pedras, felizes, indiferentes, volvendo-se de quando em vez com um salto de ganância para correr atrás de uma moeda, que um ímpeto mais forte de generosidade fez rolar para longe.

Até às dez da manhã a miserável chora— Às dez levanta-se trôpega, chama pelos filhos e parte vagarosa e triste ruminando lamúrias com a sacola cheia.

Em casa — garantiu-me um seu vizinho — canta.

Desfaz a tristeza do rosto, afina a desolada e enternecida voz, faz-se outra; muda, como o operário que à volta do trabalho atira para o canto a blusa suada e veste o linho fresco de uma camisa limpa.

Há quem a conheça bem. Contam episódios da sua vida. Dentre todos, porém, o que mais me assombrou foi saber que a mendiga, esquecendo a fome dos pequenos filhos, gasta tudo que esmola com um rapagão patrício, ilhéu como ela, que passa os dias a dormir no quarto miserável e à noite, com o produto da caridade, saí de troças com outros zangarreando modas.

E ele — é pelo menos o que dizem todos — é quem ensina à mulher as tristes jeremiadas que tanta pena fazem a quem as ouve...

Aí tens um tipo de misérias... e de amor.

XXXIII

                                                                           A J. L.

Pois não, meu caro senhor, teve-a e da pior espécie.

O paraíso, antes do seu aparecimento, era um lugar de delícias: os animais viviam numa promiscuidade pacífica, o cão passava pelo gato e indagava, com interesse, pela saúde de D. Úrsula, os ratos ouviam a voz dos bichanos sem preocupação, as ovelhas passeavam bras dessous, bras dessous com os lobos, mestre leão portava-se decentemente e os galos não precisavam do refúgio dos últimos galhos para evitar os dentes da raposa — reinava a grande fraternidade edênica Eva e Adão caminhavam pelas alamedas virgens tranquilamente, sem disputa, sem rusgas e nus...

Quando ela se fez ver enroscada em Hain, a árvore pérfida da ciência, as coisas tomaram novo rumo — apareceram os figurinos, apareceram as fanfreluches e Adão teve de marchar.

Com as primeiras despesas vieram os primeiros dissabores, o pai da Humanidade teve a conta da venda, do açougue, do armarinho e do sapateiro.

Eva não se satisfazia com a folha de vinha, queria sedas, gorgorões, chapéus e Adão vendo-se na contingência terrível de cavar dinheiro, atirou-se à terra.

Vieram os filhos e foi necessária a parteira, depois o berço, a ama de leite e etc., etc. O pobre homem, habituado à vidinha cômoda, começou a bradar contra Eloim e a dizer coisas medonhas. Eva, indiferente, continuava a exigir...

Direis que tudo isso provinha da tentação do demônio... e quem era o demônio? a serpente... e quem era a serpente? a sogra.

Pois não, meu caro, Adão teve também a sua sogra, foi a serpente, que é a origem malfadada de todas as outras sogras, com perdão das mesmas serpentes.

Pois não, meu caro senhor, Adão também foi genro.

XXXIV

Palpite — só assim explico o estranho desejo que tive anteontem de comprar um bilhete. Uma voz interior dizia-me constante, insistentemente: «compra um bilhete...compra um bilhete» e eu a fazer-me surdo, a evitar os quiosques. Mas não se calava a voz importuna «compra um bilhete» insistia. «Olha, na vitrina daquele quiosque, um solitário, compra-o, recolhe-o; sê o S. Vicente de Paula daquele gasparinho.» E eu, para fazer calar o meu interlocutor, comprei o bilhete mas, por uma cabula, como dizem os biqueiros, não quis ver o número. Dobrei-o, meti-o cuidadosamente no bolso do colete e pus-me a andar.

Nada de fazer castelos...! Dizem os supersticiosos que, quando alguém se põe a imaginar coisas do arco da velha fiado na roda da fortuna... roda — e eu não queria outra coisa do meu bilhete senão a grande.

Para não dar tratos à bola pus-me a caminho procurando grupos, leituras, palestras vivas, coisas que arredassem o meu pensamento da loteria até às cinco horas da tarde — à essa hora, com certeza, estaria feita a extração. Consegui em parte bem que, de vez em quando, a mesma voz que me aconselhara a compra do bilhete, dissesse paulatinamente: — «Mando fazer um terno, compro...» eu batia o pé, falava, cantarolava para abafar a voz insuportável.

Finalmente caiu a noite. Já havia o resultado; alguns quiosques embandeirados, outros cercados de curiosos. Corri ao meu... nada! Estava, como sempre, triste: nem um balão, nem uma bandeirola. As vitrinas forradas de bilhetes de outras loterias e, em grandes letras gordas, muito negras, em todas as faces — Amanhã. Meio desanimado como aspecto do meu quiosque, meti os dedos no bolso do colete: níqueis, uns papeluchos e nada do gasparinho — Recorri aos outros bolsos nada... na carteira... nada. Perdera o gasparinho.

Corri à casa — procurei sobre a mesa, entre as páginas dos livros, na cesta dos papéis... nada! E a voz, dentro em mim, murmurou sinistramente: «Foi premiado... deu a sorte... «Não sei narrar o meu desespero. Fui ao quiosque, falei ao homem: « Se não dera alguma coisa? » « Não! » Se sabia o número de todos os bilhetes que vendera? » « Sim! » «Se não tirara, pelo menos, a de quinhentos? Não. «A de cem?» Deu-me as costas, tomou a lista, abriu-a, esteve a examiná-la e disse, por fim, a um sujeito: «Tem o mesmo dinheiro... Quer um para amanhã?»

O mesmo dinheiro!... E se o meu tivesse o mesmo dinheiro?! Fiquei a pensar. O homem, vendo-me parado, seduziu-me com um número lindo... A voz gritou-me de dentro: «Leva-o, compra-o...» «Nunca!» bradei. O homem, que tomara a coisa com ele, respondeu amuado : « Oh ! mas não precisa gritar.»

E afastei-me do quiosque triste, ouvindo a voz que mandava comprar um « para amanhã» — e com esta obcecação terrível: - eu tinha tirado a sorte grande.

O bilhete... ei-lo... Achei-o ontem em um vaso de bronze do meu gabinete— 1461... Corri a O País —lá estava o resumo. Branco... Mas que alívio...! Que felicidade...

XXXV

Deus, eis o seu ideal. Confia e crê. Tem os olhos voltados para a Divindade — o absoluto é o seu horizonte, o seu extremo é o Eterno.

Seu êxtase chama-se misticismo, sua linguagem é a prece.

É mais do céu que da terra porque seu pensamento não rasteja, ascende — É o olhar ambicioso da Alma, é a ânsia mais intensa do desejo. Chama-se Fé — é uma nostalgia do Paraíso.

*

Meiga, reside no coração dos meigos, é um sonho sem fim, consolador e doce. Bálsamo nas agonias, sempre viva e sempre santa. Na aflição é o alívio, no desespero é a paz —mesmo através das lágrimas cintila como cintila o íris através do aguaceiro. Na vida, segue à frente como um guia invisível apontando a miragem da ventura; na morte e o ideal da bem-aventurança infinita. É uma ilusão que não morre. Chama-se Esperança. Deus, no momento em que despojou Adão, esqueceu de arrancar-lhe essa consolação suprema.

É o que nos resta da primitiva graça.

*

Humana, puramente humana — é um produto sentimental do coração piedoso: é lágrima uma vez, outra vez é esmola. É ela que sorri ao órfão e que leva pelos atalhos o cego sem arrimo.

No lar sem lume, desamparado e faminto, vede-a deixando o pão sobre o peitoril da janela; vede-a vestindo as criancinhas nuas; é beijo, é benção, é conforto. Viático da desesperança, sacramento misericordioso da miséria e do sofrimento — é a hóstia da pyxide do coração, hóstia porque na mesma partícula— em uma lágrima, em um sorriso, cm um pedaço de pão de esmola encontrareis uma centelha d’alma compadecida e meiga. É a Caridade.

*

São esses os três degraus da escada que conduz ao céu. Ide por eles, crentes compassivos e vede, tapeçado de flores o primeiro — o desse velho, resignado como o rendeiro de Hus, que viu os campos devastados pelo incêndio, vede como ele confia cm Deus e em vossas almas. Vede a Esperança que renasce nos corações dos órfãos da leitura, vede os olhos com que vos olham e acudi com a Caridade, acudi edificando sobre o cinerai do Liceu, com a vossa misericórdia, o novo abrigo para esses espíritos que as chamas deixaram em treva.

XXXVI

13 de Maio — a Páscoa dos escravos está batendo às portas. É o terceiro aniversário do êxodo dos negros. Curvemo-nos diante da turba que formiga ao longe, preparando-se para a marcha triunfal rememoradora da Egira.

Hebreus de Mizraim nós, os modernos vamos ter também a nossa festa dos tabernáculos — a festa das senzalas.

O cativeiro não foi exclusivamente para vós outros. Se construístes as pirâmides, se edificastes os templos na terra que o Nilo rega ao sol rubro, enquanto os vossos profetas cantavam as dores da vossa raça eles, os africanos, edificaram mais — fizeram com o seu sangue o adubo da terra, plantaram com os seus braços as primeiras sementes, tiraram as mamas das bocas dos filhos negros para as bocas dos senhores recém-nascidos, deram toda a força, toda a vida à terra, fizeram mais do que vós, hebreus, sofreram mais do que vós, israelitas.

Não interrompamos a festa sagrada dos negros — é um rito novo. O 13 de Maio é a data inicial da religião da Liberdade.

Respeitemos a crença dos que acharam Deus, respeitemos o hino dos agradecidos e confiemos porque, se o povo hebreu atravessou o desfiladeiro aquático do Mar Vermelho foi porque Moisés estendeu a vara sobre as ondas, e Moisés, se não fora Thermutis, a princesa, teria desaparecido nas águas do Nilo.

Entretanto o povo e Moisés, principalmente — o representante da raça — não ficou preso ao manto da filha do Faraó, na hora da liberdade, quando sentiu a opressão. Abandonou-a e à frente das turbas, zombando das falanges e dos carros de guerra mostrou a seus irmãos a Gana, longe, além do mar, florescente e acetosa...

Deixemos passar os que festejam a Páscoa.

XXXVII

O caso de Paula Mattos, tem dado que fazer à imprensa, e mais ainda à vítima que por se meter em camisa de onze varas está ainda em panos de água e sal. Cupido às vezes ilude — em vez de seta traz um cabo de vassoura. O amor à antiga caiu em desuso.

A moral não permite o derriço nem as piscadelas de olho; a guitarra foi substituída pela forma sacramental. Os raptores hoje não dormem nas estalagens das estradas como os contemporâneos de D. Juan de Marana — as coisas atualmente tratam-se na polícia e liquidam-se nas pretórias. Amor lírico é conversa fiada... demais nas alturas onde as coisas são mais inacessíveis.

O exemplo desse peregrino namorado que foi conquistar um beijo e saiu com os ossos num feixe, e pensando apertar nos braços freneticamente a amada viu-se de veras apertado, há de aproveitar a muita gente.

Que ideia fará do amor esse namorado que, indo buscar lã foi, sem piedade, tosquiado a bacalhau como se fosse o símbolo da quaresma? Que dirá do beijo o triste romântico que recebeu da bem-amada, em paga do seu sacrifício e do seu tormento, ingratidão tão crua e tão dolorosa? Que pensará do coração feminino esse infeliz que se deixou prender na cilada de um sorriso e em vez de saciar os lábios sequiosos cantando triunfantemente a vitória do amor expôs o seu precioso corpo perfumado a White-rose às carícias de um rebenque e às meigas fricções do guante de Otelo? Mais triste que a sorte de José é a desse desventurado — José deixou a capa e pôs-se ao fresco ileso no seu corpo; o de Paula Mattos deixou tudo: capa, calças, colete, chapéu, recibo, sangue e pôs-se a panos... de vinagre. Ingrato amor! a quanto obrigas!...

Esse, se alguém lhe perguntar em tom meigo, com a voz melíflua e terna: «Criança, sabes o que é o amor?»—responderá com certeza: «é uma sova!»

Boa definição mas... cara.

XXXVIII

Felix Marialva, o saquei escreve-me do seu desterro a propósito de rixas que por lá tem havido entre trabalhadores rústicos.

«... A Europa recorda o velho Nilo sagrado que, de tempos em tempos saía dos limites do seu leito e inundava as terras próximas, preparando a germinação, dando seiva às areias queimadas pelo sol comburente d’África. Ela também, a ala antiquíssima do mundo, de quando em quando, crescendo em massa a ponto de vencer os diques transborda, derrama-se, larga e fecundamente.

Nós, que estamos à margem do colosso, recebemos o refluxo fertilizador das ondas humanas; as nossas terras já se ressentem da passagem benéfica da inundação do trabalho. Os campos virgens, os sertões incultos, abandonados, começam a repontar em explosões de frutos, em eclosões de flores. É o Nilo humano que nos traz o humus, (o homem) permite a tradução.

Essa onda que chega percorre toda a pátria, demora-se nos pontos estéreis e no lugar dos espinheiros ondula a messe doirada, e no lugar dos capoeirões bravios rebenta a flor viçosa, cresce o tronco e, em vez da moita selvagem, uma cabana e dentro o grupo de uma família. Depois da lágrima do negro o canto do colono; depois do banzo africano a geórgica dos ceifeiros que vão e que veem carregando nos braços os cabelos louros da terra.

Aqui ficam os seus mortos queridos. Os velhos trabalhadores saudosos, enquanto outros novos vagam no colo das mães. Eles cedem tudo à terra, nas grandes horas dos dias quentes; lutam por ela, defendem-na contra as tempestades e batizam com o suor do rosto as novas plantas que nascem. 

Formam pelotões atrevido e entram brandindo as armas da lavoura pela brenha cerrada a dar combate aos troncos contemporâneos do dilúvio. Não se recusam ao trabalho por amor da terra. Entretanto esses homens que transportam da pátria tudo, que dela se despedem para nunca mais, não têm sequer o direito de levantar na aldeia que formam, igual às do país natal, um templo humilde para a Eucaristia da crença, depois do trabalho e depois da agonia.

Não têm direitos de espécie alguma — vivem hospedados: trabalham na terra, defendem a gleba, e ela, entanto, repele-os negando-lhes o direito desejado de pátria. E protesta-se quando, depois da longa labuta de anos, um desses homens fecha a cabana, arrecada os bens e volta à pátria abandonada.  

Protesta-se porque ele deixa o solo em que viveu, em que fez fortuna, mas não se lembram de que o emigrado foi sempre estrangeiro, que viveu refugiado no trabalho sem poder, ao menos, em um dia de festa, levantar no meio do campo, depois da colheita, um grito de vitória e de saudação que cortasse o ar, que subisse ao céu, forte, vibrando nos ecos a palavra maternal e consoladora: Pátria.

Ah! o chauvinismo dos rústicos, meu Anselmo.»

.   .    .    .    .      .      .       .      .       .       .      .      .     .     .     .      .     .     .     .     .     .    .    .      .

O chauvinismo dos rústicos! repito... E são eles que pedem braços e rabichos.

XXXIX

Que nova Danai andará por entre os mortais assombrando o mundo com a sua beleza imortal e provocando uma segunda chuva de ouro? Que estranhas causas terão atraído à terra a deusa que fez, em eras priscas, o encanto de Júpiter — o erótico e que atualmente faz com que perca a sua austera seriedade de monte cidadão Paula Mattos, o conspícuo? Será o doce nome do Sr. Anfilófio, saboroso como o mel do Himeto ou Catunda, o nome onomatopaico que exprime divinamente um samba? Porque terá baixado à região inferior a suprema beleza que deu causa à metamorfose olímpica? Ninguém sabe! É um mistério! Entanto é necessário que se faça luz sobre esse fato que pôs em alvoroço a cidade e fez com que as imediações do chafariz do lagarto ficassem como praça de feira em dia de mercado.

O governo não concedeu direito de emissão ao Paula Mattos, é criminosa, consequentemente, essa concorrência feita aos bancos que, pelo menos, têm um deposito nominal, em ouro, para garantia do papel, que sai. O morro não tem depósito, não tem fundos, não tem base, no sentido econômico e emite com um desplante que faz desmerecer o maior patife moedeiro falso. Se a polícia não puser embargos química do morro dentro em breve teremos, em frente ao chafariz do lagarto, novo encilhamento rivalizando com o da rua da Alfândega, que Deus tenha!

Se o herói do parto fosse o morro do Vintém, de acordo: Vintém poupado, vintém ganho, diz a moeda; o morro podia pensar diversamente esbanjando. Se fosse o morro da Providência, compreendia-se, atribuindo-se o facto à intervenção divina:

Deus, preocupado com a sorte dos homens, servindo-se de um expediente antigo nos fastos da história religiosa: o de aparecer num monte — o Sinai da emissão, para fazer rolar pelos flancos da montanha, em boa moeda corrente, uma prova incontestável da sua onipotência. Mas o morro da Providência não se meteu nisto, o herói é o de Paula Mattos, um pobre diabo sem teres nem haveres, que possui por único benefício um elevador que anda muito por baixo.

Ora, quem cabras não tem e cabritos vende de alguma parte lhe vêm. A polícia deve abrir rigoroso inquérito para saber porque meios o Paula Mattos adquiriu a fortuna que com tanta largueza distribui. O Paula Mattos não se meteu em operações de bolsa, não tinha ações, senão já teria deitado o seu coupé, não teve concessões, nunca deixou o seu posto, nunca foi visto em Lombard-street conseguintemente a sua fortuna foi adquirida por meios ilícitos e esse esbanjamento é uma prova.

Se o dinheiro lhe tivesse custado trabalho ele não faria ostentação de prodigalidade como fez para gáudio do povo e dos policiais que se fartaram de espaldeirar os cúpidos.

Espalhou-se um boato que não deixa de ser interessante por isto reproduzo-o:

Os moradores, querendo elevar o morro à altura de um princípio — porque hoje só se fala em Santa Thereza e no Corcovado — resolveram cotizar-se — a bolsa correu e não sem fruto. Aquele dinheiro havia de produzir, pensavam os homens — hoje quem distribui dinheiro empresta, não a Deus que perdeu o crédito entre os mortais, mas a certo rei d’aquém, d’além, de lá, de cá e coisas, que paga à boca do cofre, em títulos, não de dívida, de nobreza. O sonho dos moradores de Paula Mattos era um título para o morro, para que pudessem escrever nos seus cartões com toda a fidalguia:

«X. Rua do Paraíso, no morro visconde de Paula Mattos.»

E o morro poderia pendurar ao flanco, entre as ervinhas, as suas insígnias; poderia ter o seu retrato a óleo, en grande tenue. Perderia os seus direitos políticos e todas as garantias em compensação teria uma coroa no cume para fazer inveja ao quiosque do Corcovado.

E mais vale um gosto do que dois ou três vinténs.

Talvez seja exato o que dizem... Até onde irá a inania, santo Deus!

Se a moda pega temos o Neco comendador dentro em pouco.

XL

                                                                        A JERONYMO P.

«Se eu acredito na finalidade do mundo?»

Atualmente, meu desconhecido amigo, creio e com profunda mágoa.

Creio e devo dizer porque, cada um de nós tem a sua concepção de universo — para uns, esse universo não vai além de um vale, entre duas serras, um fio d’água derivando, a cabana rústica, a família e quando muito a aldeia com a torre alvadia do presbitério— no céu o sol, a lua e um milhar de estrelas. Para outros o universo é a pátria, para outros o mundo; são bem poucos os felizes que podem dizer que o universo é Pan. Eu, como quase toda a gente, limitei o mundo da minha vida...

Que tenho eu com extremos gelados? que tenho eu com as montanhas misteriosas da Ásia e com os desertos cálidos da Líbia? O céu com os seus astros, os mares, os grandes rios que bem me podem trazer...? Sou indiferente a tudo. Tanto se me dá que o bom Deus os conserve como que os destrua, deixe-me tranquilo e quieto com o inundo do meu amor que eu o bem direi em meus louvores agradecidos, contente com as constelações que me alumiam muito embora digam que em outros céus há outras mais resplandecentes, contente com as águas que cantam pelas minhas terras além embora digam que há rios largos como oceanos, de horizontes vastos que se confundem com o céu; contente com o meu cercado doméstico e com o meu universo.

Agora, para responder-vos, devo dizer: creio. Creio porque resumi toda a minha vida em meu amor, fiz da minha amada um universo à parte... Talvez não acrediteis, mas se eu vos disser que tenho nos seus olhos um céu sempre tranquilo iluminado sempre pelo seu olhar, aroma no seu hálito, luz de alvorada nos seus cabelos de ouro, rouxinoleio na sua voz e o seu coração que é o paraíso onde minha alma vive... Infelizmente, porém, minha amada enfermou... Dizei... dizei com sinceridade que será o mundo para mim sem ela? De que me servirão as estrelas do céu se a tristeza é uma treva incombatível? De que me servirão as harmonias da terra sem ela que me ensinava a ouvi-las...? De que me servirão os perfumes das flores se a sua boca não trescala mais...? Que será o mundo para mim se me falta o amor? o nada triste, cheia com o caos da minha melancolia... Dizei, se a minha amada morrer não terá para mim desaparecido o mundo?

XLI

A FELIX MARIALVA

Anoitece. Pela janela do pequenino quarto que ocupo — o mais alto, o menor, talvez, deste aprazível hotel, entra a respiração da tarde cheia do aroma agreste da montanha, branda, fresca, amorável, acariciadora, e mais a cantiga afinadíssima de uma rapariga loira que dá pelo nome poético de Heloísa — moça de hábitos singelos, muito simples, que passa as manhãs debruçada ao muro do terraço com um pássaro ao ombro, a cantar melodias inteiramente novas para mim, de um ritmo brando e inteiramente novo.

É loira; suíça, de um cantão central, conforme ouvi a um médico que deixou a clínica para curar-se de um reumatismo agudo.

Vive com os pais, a melodiosa Heloisa, vive com os pais — dois velhitos muito amigos, que cumprimentam a gente com um só gesto comum, porque trazem sempre as mãos enlaçadas como dois namorados.

Heloísa canta, debruçada ao muro.

De onde estou gozo de uma larga e variadíssima paisagem: — para um lado extensa verdura de campos, acabando na fralda dos montes escuros, o casario branco ora espalhado, ora compacto e aqui e ali um campanário fino, esguio, pontudo, como as toucas das moças da idade-média. Para outro lado o mar tranquilo, por onde vejo passar, de quando em vez, faluas.

Cerca-me, como em um paraíso, a viçosa vegetação alpestre. A poucos passos do hotel há um valo profundo acabando em cul de sac — movem-se vultos lá em baixo e uma cabrinha amarrada a um tronco, berra tristemente, dando uma nota bucólica a tudo isto.

De quando em vez chega-me na brisa, de longe, o eco melancólico do Angelus. Aproxima-se um fru-fru, uma piada ruidosa, latidos de cães — Heloisa volta-se para o pátio do hotel, eu acompanho o olhar azul e meigo da formosa suíça e os dois no mesmo silêncio, vemos entrar o rapazola aleijado que nos dá, pela manhã, os jornais, com um cipó na mão, tocando as aves domésticas que andavam a mariscar nos arredores.

Francamente, chego às vezes a pensar, quando contemplo este delicioso sitio que, enquanto eu dormia, um bom gênio transportou-me a um canto da Suíça — Isto aqui é pura, é genuinamente helvético — a mesma doçura, a mesma tranquilidade.

Pelas estradas crianças muito loiras, coradas, vestidas de branco, seguidas de suas bonnes rolam o arco ou jogam a bola, outras fazem passeios curtos escarranchadas em merinós pacíficos.

Homens tostados, que vão e que vêm, com o chapéu na mão por causa das trindades, cumprimentam a gente com um balbucio de respeito. A língua que ouço a toda essa gente que encontro nos jardins, na sala de jantar, junto d’água, é desconhecida aos meus ouvidos, a amabilidade das senhoras, a franqueza quase patriarcal dos homens... e Heloísa, a contemplativa Heloísa, auxiliam o meu sonho, concorrem poderosamente para esta ilusão em que vivo.

Falta apenas a ranz das vaccas, o célebre instrumento pastoril dos montanheses suíços, tão doce, tão da pátria que, se os tristes soldados da Confederação, arrancados aos casais dos seus cantões virentes, lembravam-se da música com que os pegureiros traziam os seus borregos pelas ravinas, ao cair da tarde, fugiam ao regimento deixando as armas na primeira ruína e abalando, a correr, para a montanha, ou suicidavam-se vencidos pela nostalgia...

Se te apraz vem daí passar um dia neste cantão de Santa Thereza.

XLII

A T. L

Que penso eu das mulheres?

V. Exa. mostra-me o caminho de Tebas. Quer que eu dê a solução do enigma que tem sido tantas vezes proposto aos altos juízos dos homens e mesmo aos oráculos divinamente inspirados.

Devo dizer, Exma., que não sou Édipo. Fui sempre avesso às charadas e impenetrável aos enigmas — o único problema que consegui decifrar até hoje foi: « Branco é galinha o põe» —conceito à la coque. Esse apenas, não mais.

Que penso das mulheres?... penso tudo, minha senhora... penso tudo... Não tenho razão de queixa contra o formoso sexo, prefiro prefiro-o mesmo ao outro, mas dizer à queima-roupa — o que penso... por quem é! perdoe-me... não tenho resposta para a primeira questão, a menos que não venha dizer o que me segreda a malícia: a mulher é um enigma sem solução... e é muito pulha, não acha? eu cá por mim digo a verdade — é muito pulha, mas profundamente verdadeiro.

Se a mulher deve ser emancipada?

No tempo da campanha abolicionista combati energicamente o partido chamado emancipador — queria a liberdade incondicional, inteira, completa — nada de meias medidas; hoje, pensando do mesmo modo, entendo que a mulher deve ser abolida.

Que penso da mulher como «inteligência? »

Para mim, minha senhora, sem blague — toda mulher é um gênio, dois gênios. Não há cérebro de homem, por mais fértil que seja, que disponha de tantos recursos como o de uma mulher. A coquetterie, outros dizem que é um instinto... vá que seja um instinto a coquetterie, mas as astúcias, os ardis habilidosos, as pequeninas mentiras de amor, as carícias lisonjeiras que escravizam, humilham e subjugam o miserável sexo vulgo — o forte, tudo que constitui o formidável segredo da atração de Eva, que é senão o resultado de um fecundo gênio criador...? Para mim, amável senhora, a mulher é um talento superior...

Que penso do amor feminino?...

Acho melhor ficarmos aqui; não aprofundemos.

XLIII

                                                                          QUESTÃO DIFÍCIL

Peço-vos licença para transcrever na íntegra a preciosa carta com que me honrastes, porque nela pressinto um interessante problema que, certamente, dará, muito breve, assunto aos cérebros eruditos que no presente estudam essas questões.

Devo declarar-vos, que não deveis tirar conceito das poucas linhas com que pretendo dar uma resposta à transcendente questão que me propondes, sem muito pensamento, ser do que me parece mais de acordo com a magnitude da hipótese formulada que a sujeiteis a outros espíritos mais alumiados, que eu, por minha vez, vou pedir o concurso da sabedoria dos que se entendem nesses e noutros casos semelhantes. Para esse fim é que transcrevo a carta de V. Exa.

«Illm, etc...

Sei que é contrário ao rebuço infelizmente, porém, não posso apresentar-me francamente a V. S. por conveniências que reconhecerá no decurso destas linhas.

» Acho-me em face de um caso extravagante e, talvez, novo que tem trazido à minha alma, atrozes sofrimentos, sofrimentos que eu receio ver transformados futuramente em remorsos e ânsias.

» Sou viúva. Os dois anos que vivi em companhia de quem hoje deploro foram de paz e de felicidade ininterrompidas, jamais o amor achou dois corações que tão apaixonadamente se ligassem — Não havia outro prazer para minha alma senão sentir que estremecia a alma que hoje me procura ainda porque, não sei como dizer, às vezes, quando me isolo, sinto como o contato de alguém que, misteriosamente, procura a minha mão e aperta-a e beija-a. Já uma vez encontrei sobre o meu velador um viçoso ramo de rosas brancas sem que pudesse saber quem as trouxera — e o que mais é, as rosas pareciam-se estranhamente com as que florescem sobre o túmulo do finado. Não sou supersticiosa, entretanto como explicar a vinda dessas flores tumbais para a minha alcova? Mas, deixemos os incidentes...

» A minha situação atual, se não fosse aflitiva como é, seria interessante e mais própria para ser explorada em folhetim do que para incomodar a atenção preciosa de V. S. mas... a dificuldade é esta: Fui pedida em casamento por um cavalheiro, velha relação de família, que me não é indiferente, como amigo, devo dizer, mas não sei se terei forças para corresponder dignamente ao seu amor, confesso, e a razão é... que amo ainda o meu primeiro marido—o morto.

» Casando, não sei, talvez seja uma extravagância própria do espírito de uma mulher enferma, penso que vou cometer um duplo adultério — meu corpo será do vivo, mas o meu espírito, minha alma?

«Responda-me por quem é e creia que assim fazendo aliviará o espírito de uma martirizada. — B.»

A questão é realmente difícil de resolver. Penso que V. Exa., desde que sente ainda o coração habitado por esse amor feliz, não tem o direito de profaná-lo. As provas visíveis da preocupação do meigo espirito, procurando-vos quando vos isolais, perfumando a vossa alcova com as flores nascidas do seu corpo, são enternecedoras e, a meu ver, fazem jus ao acatamento da vossa alma.

Se ele, no fundo do seu túmulo, ainda vos não esqueceu, senhora, como quereis matar, pela segunda vez com a vossa indiferença quem vos amou tanto, quem vos ama ainda?

Sou de opinião que... não deveis casar. Entretanto espero que outros venham esclarecer esse dificílimo assunto e conto com as soluções que me forem dirigidas para, publicando-as, corresponder ao vosso gentilíssimo apelo.

XLIV

                                                                                  AO SR. M. B.

Os garotos, que costumam criar as antonomásias, chamam-no o judeu errante. A sua história, em parte misteriosa, tem um prologo triste.

É cearense, do mais remoto sertão.

Acossado pela seca de um estio tórrido abandonou a choupana herdada e fugiu, pisando a ossaria brancacenta das ovelhas do seu rebanho, que tinham vindo balar sedentas sob o jirau onde murchava a última verdura. Veio pela soalheira, caminhando na aridez abrasada dos caminhos ermos, onde, de quando em quando encontrava a múmia de um retirante, a pele encarquilhada amortalhando o arcabouço encolhido, os joelhos tocando o queixo, os dentes descobertos num rito macabro. - Às vezes reboava um surdo lamento longínquo como o choro do gado e sempre o céu azul durante o dia, estrelado e claríssimo de luar á noite — e nas campinas rasas, queimadas, aves piando melancolicamente.

Em caminho encontrando uma leva que demandava a cidade, fez-se do bando e com ele sofreu o horror da travessia estéril, debruçando-se de quando em quando sobre as águas podres dos pântanos para beber avidamente, enquanto os mais religiosos, vendo nesses encontros um benefício de Deus, rendiam graças, beijando piedosamente as contas dos rosários. Quando chegou à cidade mal falava. Recolheram-no, até que um dia, pela manhãzinha, vieram despertá-lo no alojamento e saiu com os companheiros, tangidos todos como um rebanho. Cintilava no céu a estrela da manhã e uma brisa do mar agitava de manso as palmas das carnaúbas. Embarcaram...

Aqui, sem haveres, sem lar e sem amigos, começou a esmolar, cantando modas sertanejas... Um dia, porém, viram-no surgir de cartola, sobrecasaca, e um guarda-chuva em punho. Caminhava gesticulando, com esgares. Subiu às redacções dos jornais para formular a sua queixa: — Que o governo negava-se a pagar-lhe um dívida de 10.000 contos. Já havia representado, mas os homens do poder escusavam-se, adiando o pagamento do dinheiro que tanto lhe custara ganhar. Pedia que a imprensa reclamasse contra esse procedimento revoltante, e baixando-se, com ar misterioso prometia a metade, se fosse atendida a sua queixa. E partia, enterrando a cartola na cabeça, brandindo o guarda-chuva, a bradar contra o escândalo.

Um dia perguntei-lhe de que provinha essa dívida. O caboclo recuou, abrindo uns olhos enormes, espantado da minha ignorância

A sua barba negra e espessa, arrepiada num gesto brusco da mão direita, dava-lhe um aspecto fantástico e cômico ao mesmo tempo. Cuspiu por entre dentes, num silvo, e disse-me:

— Pois então... não sabe...!?

— Infelizmente não sei...

— Ó senhor! exclamou cruzando os braços e circulando um olhar pasmado por toda sala. Tranquilizou-se por fim, depois de muito sacudir a cabeça e espalmando a mão com força sobre a minha mesa: «Pois ouça lá.... »’Sentou-se. « Sou cearense... A seca murchou a minha plantação de cana, matou o meu gado e fez com que eu deixasse a minha casa, que, sabe Deus, a esta hora, já não existe mais!

Nessa casa vi morrerem meu pai e minha mãe, ali cresci, meu senhor, ali me fiz homem no meio do que era meu... Veio a seca e levou tudo...

E agora? quem há de pagar os meus prejuízos? Deus? não! Deus está muito longe... mas quem faz as vezes de Deus na terra não é o presidente? é... ele que pague então...»

— Mas... dez mil contos por uma cabana!

— Ainda é pouco... isso mesmo não paga o que perdi, meu senhor... De que serve um palácio... se eu nasci na cabana que o sol queimou, se as minhas recordações ficaram na cabana...? Nunca mais hei de ver o canto do meu berço nem o alpendre onde meu pai vinha sentar-se à tarde, enquanto minha mãe fiava... Dez mil contos! dez mil contos não pagam, meu senhor.?»

E eu, comovidamente, concordei: não pagam.

Aí tem quem é o homem que anda a reclamar a indenização fantástica.

XLV

A literatura encaminha-se para o pavor. Toda a legião dos poetas que hoje marcham à frente da caravana clangorosa que há de legar ao maravilhoso século futuro o ritmo para as epopeias, aberra-se do caminho que levava às fontes parnasianas, onde Apollo abeberava o seu rebanho de musas para enveredar pelas selvas escabrosas, povoadas de assombros, tonitroantes de evoés macabros, evocando os esqueletos esgrouviados das nixes para sabbats, em volta de fogueiras purpúreas, à claridade da lua, propicia às bruxarias. Há uma tendência para o horroroso, que faz recear muito pela razão dos cantores...

Tempos ingênuos de idílio, quem de vós hoje se lembra...?! O que a Musa moderna pede é o idílio febril, a alucinação, o pesadelo. Em vez de virgens de loiros cabelos e olhos melancólicos, desfolhando à margem dos regatos margaridas e malmequeres, em vez das bailadas sentimentais à sombra das laranjeiras carregadas de flores — mulheres energúmenas, nuas, com os lábios víscidos de espuma, tontas da orgia, com grandes tirsos, cantando delirantemente a ode fescenina das bambuchatas — a charogne verminando a um canto e Cottyto, a volúpia, fecundando a podridão com o seu olhar abrasado e húmido.

Ou a lascívia ou a loucura fantástica. Poemas obscuros escritos sobre as lapides frias dos túmulos, à luz trêmula e fugitiva dos fogos fátuos, ou finalmente o magismo com a sua pompa, com o seu cortejo astral de estrelas funestas e de estrelas propícias...

É uma invasão de bárbaros!

As musas, perseguidas pela legião tumultuosa das novas menades tiradas dos quarteirões do vício, molhadas de champagne, os cabelos esparsos, tontas, declamando em vozeria os versos de Richepin, abalarão espavoridas, deixando as harpas suspensas dos salgueiros como os poetas de Sion... e fugindo encontrarão as epopeias sombrias do frisson, trazidas por Maeterlinck, ou finalmente, sumindo-se na grande noite avermelhada pela luz sandicina de Saturno, o signo dos infelizes, verão surgir o vulto sinistro do Sar, que ditou o eroticon e escreveu, para arrepio das carnes pundonorosas, a etopeia... Pobres musas! como não hão de chorar o tempo cândido em que se cantava languorosamente, com os olhos em branco, picando as cordas do violão queixoso:

Qual quebra as vagas do mar...

E dirão soluçando — ao menos havia decência!

XLVI

                                                                  DO MEU CHARUTEIRO.

Selo ou não selo... eis a questão.

No fim de contas a campanha não é contra o imposto, é contra a cobrança — Decretassem o imposto para o inglês ver que ainda temos lei... mas não o cobrassem.

Positiva e claramente esse imposto não é mais do que uma vingança contra os adesivos.

«O imposto é uma imposição» disse algures um economista célebre e o purgativo Le Roy (*) abunda nas mesmas ideias.

O povo, tão sobrecarregado de ônus e de bônus, onde irá parar com tantas extorsões?

Se o imposto do fumo é geral, como deitaremos luto pelos que se lembrarem de falecer nesta época tão calamitosamente fiscal?

Um charuto, uma fita de crepe, valerão o mesmo aos olhos ávidos dos cobradores.

Os rondes e as espirais vão dar magníficos dividendos ao cinzeiro público, digo — erário.

Nesse conflito entram todos os rolos, tanto de fortes como de fracos, o Goiano e Pomba, o Araxá e o Barbacena...

O imposto do fumo não se traga...

*

                                                       

AO MEU CHARUTEIRO:

Se os gêneros têm subido tanto, inclusive o feminino, por que razão a nicotina havia de ficar no plano inferior? o equilíbrio é uma necessidade... Esse imposto não passa de um golpe de bolsa... de fumo.

XLVII

                                                                        A FELIX MARIALVA.

«Madrugada. O campo hebreu cheio de tendas cobertas de pele de cabra estendia-se a perder de vista, emergindo da bruma. O monte Nebo, em frente, alto, enevoado, lembrava uma pirâmide como as que deixáramos na terra do cativeiro. Um regato serpeava, deslisando sem bulha, aqui e ali salpicado de sol.

Homens apanhavam túnicas nas árvores, outros enchiam de maná o komor de barro e longe, uma multidão de velhos, vestidos de linho, desarranjava o tabernáculo ao som de trombetas estridentes e cânticos que mal me chegavam. De vez em vez, a uma nota mais forte, todos os braços erguiam-se fugindo das largas mangas na curva ritual dos ofertórios depois caíam moles, a um tempo, como impelidos pela mesma força. Eram os levitas que oravam.

As manadas reuniam-se. Passavam às pressas, quase nus, berrando aos bois, os fortes pastores, guerreiros do cajado e da funda, da tribo valente de Ruben; outros tocavam a chuço os bois rebeldes e os carneiros morosos. Moças acendiam fogueiras e defumavam as roupas a mirra e a cínamo. Velhas paradas, olhando o céu dourado, balbuciavam; meninos saltando batiam sistros, enquanto um gigante prisioneiro estorcia-se, amarrado a um poste picado, de quando em quando, pela lança fina de um guerreiro de Israel.

A vítima arquejava, volvendo os olhos. O sangue escorria-lhe das feridas em lágrimas, purpúreas e crianças nuas, paradas diante dele, puseram-se a rir, batendo as palmas, quando a lança do israelita saiu-lhe do coração e o desgraçado escancarou a boca, no estertor, golfando sangue.

Fugi para a minha tenda horrorizado.

Uma mulher dormia estirada em um pedaço de linho, com os braços pela cabeça, quase nua. Olhei-a ... olhei-a muito. De repente ela abriu os olhos, fitou-me e desatou a chorar falando atrapalhadamente, a pedir-me perdão.

Era uma egípcia.

Uma egípcia entre o povo de Deus! Veio-me a indignação. Tomei de uma larga cinta de couro e ia bater a desgraçada quando a leve túnica, escorregando-lhe dos ombros morenos, deixou-a quase nua: os dois peitos virgens trêmulos pareciam pedir por ela. Detive-me. Nesse instante levantou-se um grande alarido no acampamento.

Saí à porta da tenda para ver o que era. Olhei.

A multidão cercava o monte Nebo e eu vi um grande velho de longas barbas brancas e túnica de linho, vagaroso, humilde, com os olhos no céu e os braços abertos ir subindo, subindo, subindo pelo monte, cercado por uma auréola de estrelas, por entre alas de serafins armados. Fiquei extático e, como passasse um pastor, perguntei quem era o velho e ele disse-me: Moisés! E foi-se, campo afora, gritando e sacudindo um pano: Hosana! Hosana!

Nisto uma criança passou batendo címbalos... contei sete pancadas. Voltei-me para entrar na tenda e... acordei...»

XLVIII

O Jardim Zoológico acaba de ser abandonado pelo seu diretor.

A erva pode crescer viçosa e abundante transformando o horto miserável num vasto tapis-vert, onde joguem à vontade todos os amadores da fauna que têm palpites nos bichos. Não há jaulas, não há aviários, não há tanques — são casas de azar onde, em vez de números, há a novidade excêntrica de animais vivos — um «jaburu» colossal e não um logradouro honesto.

O diretor dessa casa, aprovando com o seu silencio a tavolagem, descia aos olhos da gente honesta da atitude de um sábio à ínfima baixeza de um croupier. Fez muito bem o digno moço deixando o cargo que lhe fora confiado.

Esse lugar de naturalista está a pedir um homem que conheça a arte complicada de dar a bola e que não tenha escrúpulos em fazer com que o rei dos animais seja derrotado diariamente pelo símio, para gáudio da banca e dos encinhos que foram prudentemente substituídos pelo rateau.

Os animais urram famintos e sedentos. Os grandes tigres bariolados andam de um lado para outro, com a língua pendente, os olhos fulvos, uivando de sede; os leões cadavéricos dormem com a enorme cabeça entre as patas, nostálgicos soltando, de vez em vez, um ronco surdo, lançando olhares através dos varões da jaula para os que andam buscando palpites; as cegonhas encolhidas piam, e as jararacas, num adormecimento preguiçoso, enroscadas, transidas, silvam no fundo das suas covas e a erva exubera.

A selva vai reconquistando o seu terreno. Os galhos verdes entram pelas jaulas e os aviários, com grande pasmo dos bengalis, começam a ser invadidos pela vegetação reintegrada, porque o único homem que aparece de longe em longe entre os rebentos é o ficheiro que traz um pouco de carne para manter os quadrúpedes que são a fonte de renda da famosa batota bufônica.

De vez em quando um propitecus leva as duas mãos à cabeça solta um guincho e vem abaixo do poleiro morto; de fome, dizem uns, de sede, afirmam outros; de vergonha, emendam alguns.

O elefante escarva e ruge indignado, tão nobre e tão vilmente humilhado.

A vaca, que não é a do orçamento, muge, a ovelha bale, o corvo crocita e brada toda a bicharia contra a jogatina, mas os book-makers, que são os únicos visitantes do famoso jardim, fazem ouvidos de mercadores e continuam a comprar e a vender tontinas.

Dentro em breve bem pouco restará do Jardim Jogológico, porque os animais, abandonados, esquecidos nas suas prisões morrem de fome e de tédio.

O mato investe fazendo daquelas terras uma espécie de Paradou, mas acreditamos que nesses dias que não vêm longe o encarregado do jardim instituirá um jogo novo, uma roleta trágica sobre os esqueletos dos bichos e ganhará num dia o gogó do macaco, no outro dia o crânio do leão ou a charogne da vaca e então é bem possível que a higiene tome contas ao jardineiro. Mas até lá joguemos.

XLIX

                                                     AOS ACADÊMICOS DE S. PAULO.

Em S. Paulo, onde fiz as minhas primeiras armas, havia uma tradição oral, transmitida de geração em geração, como a história gloriosa dos antepassados corre em uma tribo contada pelos maiores aos novos da família, para perpetua memória e consagração imorredoura dos ancestrais heroicos.

Abancados às mesas do Corvo, à luz vacilante e lôbrega do lampião fumarento, emborcando bocks, nas grandes noites de Junho, trazia-se à palestra, n’uma espécie de evocação intelectual, os vultos dos que por ali haviam passado, com as suas liras, cantando amores e tristezas, uns céticos, outros crentes, apaixonados outros.

Lembro-me de ter muita vez levantado o meu copo para acompanhar os brindes feitos à memória de Castro Alves, e com que entusiasmo! todo o viço dos meus dezoito anos expandia-se e o saudar terminava num evoé delirante que muitas vezes, despertando os grandes cães que dormiam entre os toneis, tinha um remate lamentoso de uivos. Por felicidade os alemães obsequiadores acudiam com pontapés solícitos para sopitar a elegia cínica dos intrusos.

Castro Alves, com a sua poesia alevantada, vasada nos moldes de Hugo, estrofes talhadas abruptamente que caem como avalanches, conquistara a simpatia de grande parte da mocidade entusiasta do meu tempo. Nas festas acadêmicas, quando um poeta vinha à tribuna, esguedelhado e flamíneo, o auditório que fizesse como os romanos fizeram quando atravessaram o desfiladeiro do país dos Sabinos— que acobertasse a cabeça — porque os blocos não se faziam esperar, caíam em roldões dos lábios fluentes do inspirado. O público, entretanto, recebia com visível agrado essas estrofes sonorosas — o retumbar do verso era uma necessidade.

Mais tarde, lendo em soledade o poeta da Eutanásia, senti pendor para os seus escritos. Cumpre-me dizer com sinceridade que essa impressão que me empolgou o espírito devo-a ao seu poema em prosa A noite na taverna. Sei bem que muitas das situações ressentem-se da leitura aturada dos poetas ingleses; em todo caso, há uma grande e perfeita uniformidade de visão artística. Marlow, Byron Schelley, Poe, e tantos outros folheados pelo erudito acadêmico podiam ter desbastado o caminho, mas a viagem foi feita sem companhia e quando o poeta atravessou os umbrais do antro estava só, com a sua Musa, devo dizer, com a sua Musa de olhos doces e tristes.

Há quem o chame o «Colombo da Europa literária» porque foi ele que nos mostrou os amplos horizontes devassados pelo sentimento — ou pela Arte, que é a expressão desse produto d’alma — dos mestres do continente antigo. Não discordo e seria rematada ingratidão da minha parte aventurar dissonâncias, quando cantais louvores em homenagem justa e digna a um dos que mais se esforçaram para exalçar o nível do nosso espírito; mas haveis de permitir que livremente manifeste a minha opinião acerca da brilhante trindade que hoje resplandece no frontão da Academia. O meu poeta preferido é o último —Varella.

Não tinha o fulgurante assomo do primeiro, faltava-lhe a erudição, o grande subsídio literário do segundo, mas, em compensação, sobrava-lhe sentimento. E a paixão com que voltava os olhos para o sereno céu da sua terra! a meiguice com que escutava os cantos das matas verdes, a enternecida afeição que dedicava aos seus patrícios ingênuos, ao caipira cantador, à caipirinha lânguida, o trabalho paciente de ressurgir todo o idílio selvagem no poema Anchieta. A poesia, intensamente brasileira, vibra muito mais em minha alma, comove-me talvez por uma afinidade de espírito, e a verdade é que, esquecendo os arroubos de Castro Alves, os eruditos períodos de Azevedo, voto todo o meu entusiasmo ao dolente cantor dos Cantos do ermo e da cidade.

L

«Tendo desaparecido o sol, oferece-se uma gratificação a quem o restituir ou dele der notícias ao céu, que está inconsolável pela perda que acaba de sofrer. Protesta-se com todo o rigor da lei contra quem tiver acoutado o centro do sistema planetário»

Muito me obsequiariam os colegas transcrevendo este anúncio nas suas respectivas secções.

Decididamente não há quem resista a três dias de chuva (salvo seja). Passamos das duchas escocesas: manhãs abrasadas, crepúsculos de catimploras, para as jeremiadas geladas do chuveiro. Essas intermitências hidroterápicas podem ser magníficas para os enfermos, mas para o geral dos homens são detestáveis.

Há quem ache delicioso o tamborinar das goteiras ou o rufio violento das rafales; eu prefiro 39º à sombra com o sol que aventa o sangue, que desabrocha sorrisos e violetas.

Olhem para o céu e digam-me se não está com uma cara de estado de sítio? Não há bom humor, não há atividade, não há nada senão lama e guarda-chuva, tedio e reumatismos. Que há de fazer ura homem nesses dias de chuva e de frio se não meter-se na cama? Ah! mas a cama, quando não há sono, é um suplício. De papo para o ar, dedilhando no ventre, os olhos no teto, entra-se pela Espanha a construir castelos, ou então medita-se sobre os pontos difíceis da vida: a carestia e a virgula, a pelota e Gumercindo... Nem panem nem circenses, e aí vêm os suspiros e os lamentos, os ais arrancados ab imo pectore e o terror do fim do mês — pesadelos de revolução e de cobrança... e a chuva canta nas telhas sinistra e agourenta como o acauã fatídico. 

Não, a cama é hedionda... à rua impossível. Que se há de fazer? dormir, sonhar, ou não comer ovas de tainha? não comer ovas de tainha, que já fizeram uma revolução postal... Ler? sim, ler... a leitura consolai não compromete; é preferível um bom livro a uma ova... leiamos... Mas alguém nos interrompe a leitura: é o criado que nos vem chamar em nome de Sinhá velha... Sinhá velha é a sogra. O que é a chuva...! estamos sujeitos a tudo. Vejamos que quer Sinhá velha.

Ei-la, toda embrulhada em lãs, cercada de um rancho, com um livro aberto diante dos olhos. Chama-nos com austeridade e anuncia-nos a leitura:

Senhor, hoje é domingo, dia de guarda... ajoelhe-se... E escancarando o livro: Persignem-se ... o senhor também. Vamos ler a vida do beato S. Pancrácio... E fanha começa a leitura religiosa.

E a chuva canta nas telhas sinistra e agourenta como o acauã fatídico.

«Tendo desaparecido o sol, oferece-se uma gratificação a quem o restituir ou dele der notícias ao céu, que está inconsolável pela perda que acaba de sofrer. Protesta-se com todo o rigor da lei contra quem tiver acoutada o centro do sistema planetário»

E não é para menos.

LI

Outros mais felizes do que nós, filhos de outras terras abençoadas, onde amadurece a seara loira e os rouxinóis elegíacos embalam as horas tristes das noites, onde há aldeias metidas em profundos vales, velhos como os tempos, por onde passaram raças emigrantes e costumes e crenças e religiões, gozam tranquilamente o seu inverno, acolhidos ao canto do fogo ouvindo o crepitar da lenha e o ronron do bichano doméstico, enroscado voluptuosamente nas felpas moles de um pelego enquanto o vento zumbe por longos campos, salpicando de neve os tetos das casas donde sobe para o céu, denso e frio, o novelo de fumo, símbolo patriarcal dos lares.

Outros mais felizes têm o direito de passar a noitada confortavelmente encolhidos, sorvendo grogs quentes, em tête-à-tête íntimo, longe dos murmurinhos, longe de todo o rumor, num sossego invejável, deixando ao bom Deus o cuidado de refrescar as noites e de adubar a terra para os outonos futuros.

Outros mais felizes podem esperar, com as pelissas enroladas, os fogões atulhados de lenha, o armário sortido e a cama feita, a morte do sol, o aparecimento da neve, porque a Providencia, que tudo regula, pensou em dar-lhes, para quebrar a monotonia das manhãs azuis, névoas rudes de invernos e para substituir as estrelas que brilham eternamente a variedade dos flocos brancos que fazem tão bem ao sono, quando o leito é fofo e aquecido e não há frinchas no muro por onde possam entrar insidiosamente as pneumonias e os pleurizes no hálito regelado das noites.

Deve ser consolador saber a gente que no mês próximo vae ter sol na sua janela, que o seu jardim vae cobrir-se de flores, que as árvores novamente enfolhadas, vão carregar-se de frutos e que vão chegar as andorinhas. Como deve ser bom ter frio, tiritar com o queixo nos joelhos, abraçado as pernas! Como deve ser bom passar uma noite a ouvir a neve tamborilar nas telhas e ter a gente a certeza de que há gelo em todas as ruas, em todos os cantos... E dormir abafado, encolhido... só ou etc. e tal... Como deve ser bom? Felizes os que podem bater o queixo... Felizes os que vivem transidos. Bem-aventurados os que tiritam — ao menos têm n’alma a esperança dos dias de sol e do reverdecimento dos campos.

Nós aqui, pobres tropicais, que temos senão esse constante flamejar de um sol inclemente, que ri dos almanaques. que desmente os observatórios, que zomba dos sábios, que leva o seu despotismo a ponto de não permitir que S. João mantenha a sua tradição de pai do frio?...

Ó intendência, tu que tudo destróis, por que não acabas com o calor, por que não atiras um edital ao sol? Vê ao menos se consegues arranjar-nos uns tantos por cento do inverno europeu. Que diabo! Para que é que temos intendentes?... Frio ou fresco pelo menos; um pouco de brisa, ó interdência, e se achas que é de todo impossível dar-nos outro clima, distribui lenços, sorvetes e ventarolas e se ainda achas difícil o que aqui te peço, em meu nome e em nome da população abrasada, deixa-nos em calma, sim, mas põe-te ao fresco... 

LII

                                                                           A UM LAVRADOR.

Em matéria de rabicho só admito o amor e em questão de comer com dois pauzinhos nada, absolutamente nada.

A terra precisa de braços, pois deem braços à terra; a lavoura míngua à falta de quem a cuide, e... pois tenho eu com isto?

A literatura também anda a morrer; entretanto, ninguém se lembrou de mandar buscar mongoloides... É verdade que no terreno literário não se planta batatas e a lavoura espiritual, para que produza boas messes, não precisa de braços, precisa de cabeças; mas, que diabo, alguém já se lembrou de mandar vir cabeças? ninguém... entretanto, para dizer a verdade, é disso que precisamos, porque estamos na extremidade.

Não sou pro, Deus me livre... acho que nós podemos arranjar com a prata de casa, com a prata...? quero dizer; com o níquel...

Sei que há muita gente que dá a vida por uma chinota, mas as coisas da China não têm provado bem na terra da Santa Cruz: a laranja é azeda, os negócios têm dado em pantana e de mandarins estamos fartos...

A primeira embaixada dos celestiais, Fu e um outro nome feio que abunda no país do crisântemo, em Cucuhy e em toda parte, não fez nada —andou muito por baixo... O povo soberano não aceitou as credenciais do nome sujo escritas, não em papel de arroz, mas em Bromo paper. A nação deu um pontapé no...nome e fechou as portas, os portos, quero dizer.

A questão caiu... e agora ei-la de novo... A ocasião foi agarrada pelo rabicho e desta vez parece que a cousa pega... O Brasil inteiro, desde o Amazonas ao Prata, vai ficar reduzido a uma plantação de chá... Vamos ter chá preto, chá verde, chá padre, chá... péu... chá... ruto, chá... cota..., chá... rola..., chás de todas as qualidades, de todas as cores... chá... ramela... e... point de café, que é o crédito, que é o câmbio, que é tudo neste país de eternas luminárias, antes mesmo do chim.

LIII

                                                                          ÀS MÃES NEGRAS

Ajoelhada e humilde, as mãos postas, os olhos misericordiosos voltados para o céu, Maria, da tribo de Judá, orava ao Senhor piedoso e clemente, que salvara Israel do cativeiro. Pela janela aberta entravam os ramos verdes da madre silva e os pombos domésticos, no poial, arrulhavam, arrufando as penas à tépida carícia do sol da manhã. Fora, nas hortas viçosas, as mulheres mourejavam e sob um alpendre feito de uma latada pampinosa o esposo aplainava tábuas rescendentes do monte Líbano.

Súbito iluminou-se com uma claridade estranha a câmara virginal, onde sussurrava a prece —seis asas tatalaram e baixou, com a palma dos serafins na mão puríssima, um emissário do Céu, escolhido entre os eleitos para trazer ao mundo a santificação do ventre, para fazer na terra a exaltação da benção, sagrando a Mãe na concepção e fortalecendo-a para o amor supremo: Ave, Maria!...

E Jesus veio ao mundo sem a macula do crime.

Vós outras, dolorosas mães, mártires do eito, para que jamais tivésseis de fugir, evitando de ouvir os gritos lancinantes dos vossos pequeninos filhos, vós outras, mães escravas, sem o direito do beijo, sem o direito da benção, para que não produzisses mais soluços, para que não desses ao mundo frutos amaldiçoados, quantas vezes, no cimo dos cômoros adustos, ao sol flamejante, não levantastes os braços para o Deus de Piedade, clamando: — misericórdia! em nome do vosso amor! Quantas vezes, vítimas sem culpa! Quantas vezes não pedistes a morte ao Senhor dos desgraçados?

E sofrestes, até que um dia vos chegou aos ouvidos a mesma saudação bem-dita, anunciando a purificação do vosso ventre e a sagração do vosso amor.

Como a mulher de Judá, mães negras martirizadas, tivestes o vosso Ave! e o anjo que batizou dentro do útero como na mais santíssima das pias o fruto do vosso amor, veio do Céu, de certo, baixou das alturas elíseas, foi enviado pelo Altíssimo para consolação das aflitas, para salvação da inocência.

Mães negras, celebrai em vosso altar a anunciação sagrada, como a igreja celebra a anunciação da Virgem!

LIV

                                                                                     À LUIZA I.

A volubilidade... Já li uma defesa lírica desse sentimento, mas, confesso que, apesar do artístico manejo do poeta, não cheguei a concordar com ele... Volúvel...

Sol lucet omnibus, é verdade — e os olhos das mulheres são irmãos gêmeos das estrelas que, astros como são, devem resplandecer para todos, mas é tão bom saber a gente que possui, para gozo íntimo, duas estrelas cativas! delícia tanto sentir-se a alma acariciada pela claridade astral das pupilas amadas...

Já que não é dado aos sublimares beijar Vênus ou fitar de perto Athair, a fulgurante, que ao menos seja licito ter cada um o seu casal de estrelas, para que os pequenos idílios tenham luz bastante, para que o amor não realize os seus mistérios doces no escuro completo.

O principal, porém, não é possuir os dois astros, é saber que eles brilham exclusivamente para quem os seduziu pela primeira vez, porque, confessem que será doloroso vir um dia a saber-se que as pupilas azuis, negras ou mesmo verdes, que se acenderam à aproximação do nosso beijo, outra coisa não fazem senão brilhar, mal sentem vir dois lábios fechados em botão, para eclipsá-las na penumbra sonora de um beijo... de um longo beijo de amor!

Não, deixai que o sol brilhe para todos, deixai que as estrelas fujam para o mundo inteiro; os olhos que se conservem castos, porque não foram postos por Deus nas faces brancas para iluminação pública dois corações errantes...

LV

                                                                                  AO OCEANO

Falo-te em nome dos corações feridos, falo-te em nome da saudade eterna — entrega-nos os despojos dos que massacraste. De que te servem nas areias claras os corpos frios da maruja morta? — Queres talvez aproveitar o sangue para cristalizá-lo em ramas de coral? Queres talvez fazer da lágrima da agonia, a derradeira lágrima que foge como um adeus do sofrimento na hora do supremo adeus — pérolas para as tuas conchas? Queres extorquir todo o tesouro dos corações dos náufragos, Oceano? e as mães? que têm os olhos na praia ansiosamente alongados à espera de que uma vaga atire à areia o bagaço hirto de uma existência extinta? E as esposas, que ansiavam de paixão junto das rochas brutas, e nós todos, enfim, irmãos dos que mataste, que estamos como as coéforas de guarda ao grande tumulo que abriste, velho deus incansável — que nos pretendes dar, dize Molock estuante?

Não venho relembrar as cóleras antigas — falo-te de ontem, falo-te da cilada dos teus monstros, falo-te do crime dos teus bandidos saxos — dessa insídia, o rochedo, dessa traição, a Sirte, que, embuçados covardemente na túnica da Noite negra, acompanhados pelos executores — o pampeiro e o raio, armaram perfidamente a tremenda cilada, de que tão cruelmente te aproveitaste com a vaga que é a tua garra, com a espuma que é o teu visco, para colher um pedaço do coração da Pátria.

São mais fortes do que tu as lágrimas das mães. A tormenta das almas vale bem a dos oceanos. Falo-te dentre o rumor dos soluços, falo-te dentre o chofrar do pranto a ti, Oceano, filho do mesmo Pai, a ti, mar insidioso e trágico que saíste como as estrelas, como as flores, como as aves, do mesmo Verbo que nos criou, a ti, constritor de vagas, inconsciência poderosa irmã da Terra, irmã dos céus, irmã do homem, a ti, tempestuoso Oceano, para que respondas em nome das mães, em nome das crianças e em nome do noivado — que fizeste dos teus irmãos, traidor? Que fizeste dos teus irmãos, Caim?.

LVI

«Allons enfants de la Patrie!

Para os entusiastas da tua tempera são estas as palavras preliminares do grande salmo da Humanidade — correspondem ao Ave da religião cujo ideal mais alto, se me permites dizê-lo, trouxe a esperança ao mundo, trouxe a consolação às almas. Dentro desse verso que qualquer poeta, o mais medíocre, escreveria há todo o poema da liberdade. Foi sobre esse motivo, tão simples na aparência que o povo de Paris fez o hino da sua independência ou antes, como costumas afirmar, da independência universal!

Não me parece, entretanto irrepreensível o verso da musa revolucionária — conheço melhores em Musset, em Hugo, em Lecomte de L’Isle e em vários outros; mas nenhum deles agitou o entusiasmo das massas com tal ímpeto como esse:

Allons enfants de la Patrie...

Deve haver uma razão oculta. Tu que és tão fervorosamente republicano, tu que tens estudos completos sobre o grande fato que decidiu da sorte das raças, tu que és o mais lido em coisas de revolução, explica-me essa simpatia do povo de Paris, tão requintadamente artista, povo que aplaude com frenesi um bom hemistíquio, povo que coroa os seus poetas e tem um Panteon para os seus homens.

Explica-me para que eu não faça mau juízo do senso estético dos revolucionários.

— Não sei. A Marselhesa, como em geral os hinos, não prima pela forma artística. Quem a compôs não conhecia os segredos da Arte, manejava melhor a espada do que a pena e não escreveu para recitações em saraus literários, escreveu-a para os chorais de sangue.

Os versos, apesar de toda a sua rudeza, exprimiam exatamente o sentimento do povo e foram escritos na dialética singela das massas. A Marselhesa é o poema popular — é simples como a oração. O Pater não tem estilo, entretanto salva as almas das penas. Demais, meu caro, há na Marselhesa a essência épica que a torna comunicativa, que lhe dá esse ardor que se estende por todos os que a ouvem. Enfim é uma a grande síntese... Queres ver? eis o primeiro verso.

Allons enfants de la Patrie.

É o apelo à revolta. Há nesse verso todo o entusiasmo de um povo que alicia e que marcha para a luta. Sente-se que vão passando as levas revolucionárias: é a partida dos bandos populares — é Paris que se levanta armado, chamando a França para o grande combate — é a revolução arrojando-se. Primeira parte do grande poema — a luta. O outro verso:

Le jour de gloire est arrivé!

— É todo um canto de vitória — é a conquista, a grande paz da família proletária, o descanso dos humildes, a liberdade, o dia de glória, enfim, o ideal conseguido pelos homens que vinham do fundo da idade média arrastando grilhetas.

Toda a história da revolução está resumida nestes dois versos que exprimem o momento da ação e a apoteose. Como vês, ainda podia ser menor; o poeta foi pródigo. O povo nas suas agonias supremas, não pede.

Sparta vence com Tirteu. Achas a Marselhesa rude como obra d’arte? pois olha, não foi a Legenda dos séculos que libertou a França, foi ela.

Há uma cousa mais forte que o sentimento de liberdade e esse não exige composições gloriosas — pede um homem, uma coragem um brado!

Se ela fosse escrita em bons alexandrinos... talvez ainda a Bastilha existisse.

LVII

                                                                 A FELIX MARIALVA.

A convite de um fanático fui ontem à pregação de Mlle. M., sacerdotisa iniciadora de um rito passional. O templo em que celebra a virgem loira é distante da cidade — os crentes esconderam-no em um bosquezinho de palmeiras e de araucárias, em torno do qual circula um fio d’água que canta — é toda a música sagrada que se ouve na hora mística dos êxtases. O interior tem mais o aspecto profano de um do boudoir que de um templo. As paredes, de alto a baixo, forradas de seda, de um rosa pálido. Móveis de madeiras claras, bibelots de Saxe, bronzes artísticos, vitrinas carregadas de chinoiseries e nos panneaux ou grandes kakimomos ou frescos representando cenas de Ovídio, o adorabilíssimo Ovídio que tu conheces e gabas. No plafond uma paisagem risonha, cheia de ninfas e de personagens caprípedes, que enlaçam dríadas lânguidas, enquanto um egipan frenético sopra uma Sírinx e outro, purpúreo, esguedelhado, choca os címbalos sonoros.

O altar, não sei como descrevê-lo... é mais de alcova. A cerimônia começa por um coro sáfico, cantado a meia voz por uma teoria de donzelas, os cabelos esparsos pelo corpo, porque os hábitos religiosos das monjas do rito novo são apenas capilares. Fiéis, de olhos baixos, mãos postas, absortos, invocam o supremo Phalle com gritos estridentes. Fora na frescura do horto, a água fluente canta e o luar pálido alumia as rosas que desabotoam e dentro vão correndo os passos do cerimonial. A Bíblia é um conjunto de odes. São profetas Anacreonte, Safo, Salomão, Ovidio, Boccacio e etc, etc... O martírio é divino... A cruz é feita pela sacerdotisa: — de pé, os braços abertos, n’uma atitude estática, representa ao vivo o emblema do martírio e as outras cruzes, meu Felix...! Só acode um desejo: ser crucificado, morrer, ter uma passionaria completa nesse calvário que rescende... Infelizmente, porém, não se crucifica quem quer... Antes da expiação há uma série de pequenas provas... Eu, neófito, passei pela primeira: comunguei— o cálice... o cálice foi a boca de uma diaconisa e a hóstia... han...! não me passou da boca... não me passou da boca.

Antes de purificado não poderei sofrer as outras provas mais duras... mas,., como estou religioso, meu Felix! como estou fanático...! é uma vergonha... Mas consola-me a esperança de uma canonização póstuma... Amém.

LVIII

                                                                        À INTENDÊNCIA

Entenda-se a intendência — quer a cidade limpa e os pés sujos. Remove o lixo das ruas e nega ao cidadão o direito de tirar o lodo dos pés (ao inverso do adágio). Manda varrer as vielas e proíbe que se engraxe os sapatos; permite a vassoura e degreda a escova. Ó, sábia instituição de edis, lembrai-vos de que Deus amou a limpeza, lembrai-vos de que a limpeza deve começar pelos pés que são a base do corpo, a menos que a vossa sapiência não resolva em contrário. Sem pés limpos não há limpeza completa — mens sana in corpore sano; pés lavados em botas engraxadas, eis a base do asseio universal.

Sei que os homens não valem pelos pés — nem os homens nem as instituições, ambos podem subsistir ainda que em mau pé, pode mesmo um indivíduo ter quatro pés lustrosamente engraxados sem que por isso ganhe mais alguma coisa no conceito das gentes, mas parece-me mais digno ver um homem com o pé luzido a vê-lo sordidamente com um pé de porco, com perdão da palavra.

A questão dos engraxates é grave... Cuidado, cândida edilidade! por muito menos perdeu Martinho as botas...! O povo da capital, essencialmente ilustrado, não se habituará, de certo, às botinas sem lustro.

Engraxar não é só uma limpeza para o fluminense — é um hábito. Que nos tirassem o da Rosa vá; mas o da graxa é muito e Deus queira que a intendência não vá além das botinas.

Quem há no Rio que às cinco da tarde passe pôr uma cadeira sem repousar os pés para a fricção do asseio? só os que andam descalços, esses não costumam engraxar as botas.

Os antigos, do tempo que chamamos obscuro, sacudiam o pó das sandálias à porta das cidades e nós, em fins do resplandecente século, somos forçados a carregar o pó das sarjetas nas gáspeas dos sapatos foscos.

Ó crua! já que resolveis tão sabiamente, ensinai ao fluminense o meio descalçar essa bota...

Meteis despoticamente as mãos pelos pés. Há quem diga que a vossa intenção foi toda democrática, quisestes por toda gente num pé de igualdade: como há munícipes que não dispõem do níquel, resolves acabar com o engraxate. O sujo deve ser igual para todos, eis o princípio, quero dizer, o fim da lei municipal.

Em tempos que vão para o esquecimento, lembro-me de que engraxava as botas e ando hoje com os pés cheios de lama, porque, infelizmente, não os posso trazer no bolso, sou forçado a pisar com eles as calçadas da cidade que parecem, muitas vezes, ter sido vítimas da mesma lei niveladora que tanto humilha o calçado.

Acho estranho que a intendência que foi sempre ilustre desilustre agora. Tirai-nos o bife, mas, por amor da decência, deixai-nos pelo menos a graxa.

Se algum dia suceder-me a desgraça de ser agarrado por um fiscal, por trazer as botas sujas, para quem hei de apelar? para os engraxates... pobrezinhos!

Tristes sapatos meus... vontade tenho eu de vos trazer bem limpos, mas como?

Mais infelizes do que vós, preclaros intendentes, somos nós todos munícipes. Vós outros sabeis onde haveis de limpar as vossas mãos que andaram a revolver pomada e graxa, sabeis perfeitamente que a uma parede qualquer podeis limpá-las, mas os nossos pés, os nossos poentes pés, ó intendência, onde os limparemos nós?

LIX

À Exma. SR. G.

Infelizmente, minha senhora, a minha educação não é tão perfeita quanto eu desejara. Há tantas coisas que ignoro, excelentíssima.

Em questões de toilettes, além da primitiva folha de vinha com que cobriram a nudez os nossos primeiros pais, conheço esses panos reles com que a civilização pundonorosa carrega a humanidade.

Acho, entretanto, que as leis da natureza, universais e imutáveis, deviam prevalecer, em vez dessas manias efêmeras de lãs e de linhos, que furtam à plástica feminina a graça esbelta que imortalizou os mármores divinos da Grécia pagã.

Se eu pudesse legislar ditatorialmente sobre a maneira de vestir, vós outras teríeis de chorar muitas lágrimas de saudade sobre as cinzas das fitas e das fanfreluches. Mandaria queimar, em um auto da fé solene, todos os cartões e todos os cortes de panos de Lyon e decretaria a morte dos bichos de seda, a morte dos carneiros, das alpacas e de todos os quadrúpedes que dão matéria prima aos teares.

Os campos de linho seriam devastados por um incêndio, todos os algodoeiros abatidos a machado, a ramie e as plantas fibrosas ceifadas, para que não houvesse no mundo mais tecidos e voltasse a humanidade melancólica à idade de ouro... e do nu.

Direis em objecção — que a moral escandalizada faria uma revolução; não creio. No idílio de Longus, tão inocente e tão meigo, vede esse pastor apaixonado Daphnis: traz apenas sobre as espaduas uma pequenina pele de cabra. Vede a sua amada: Cloé, quase nua. E tão cândidos, tão puros ambos, que nunca chegariam ao conhecimento do amor, se Lycenion não acudisse com a sua pratica para elucidar o pastorinho.

Quem será capaz de dizer que possuis como a Vênus que o lavrador heleno desenterrou num campo de trigo, muitos séculos depois do seu desaparecimento, a forma correta e nobre admirada pelos deuses lânguidos e pelos artistas da colina augusta? Quem dirá que possuís a linha maravilhosa sonhada pelos intransigentes? Quem dirá que sois mais branca do que o mármore da estatuária? ninguém dirá de certo, Exma., vendo-vos cativa de tantos estofos, abafada em tantas rendas, com o busto escultural enfezado pelo espartilho, com a garganta roliça e alva, apertada na golilha de veludo, a nuca, de um leve e fresco rosado, quase escondida pelos laçarotes, só restando o andar altivo e sereno de deusa ou de rainha com que atravessais orgulhosamente as ruas da cidade ostentando, não a maravilhosa e incomparável beleza do vosso corpo, mas os requintes de posponto, os apanhados, os ruches e os plisses com que a vossa costureira cruel e barbaramente deforma a vossa plástica... Nem as mãos fidalgas salvam-se porque vêm encarceradas em luvas peau de Suède. Salvam-se os olhos negros, a boca, que é uma pequenina flor desabrochada, a fronte, as rosas da face e os opulentos cabelos... Imaginai, porém, o sucesso que fareis se a civilização não vos obrigasse a esse suplício constante do arrocho... Imaginai o sucesso que fareis, se, em vez desse conjunto hediondo de farrapos, trouxésseis simplesmente, aflorando a carne, a folha de vinha clássica e paradisíaca? As costureiras sofreriam, mas a Arte e a beleza teriam um renascimento, teriam uma nova deusa em V. Exa. a quem se pode aplicar o galanteio com que a fada Diamant, no feerismo de Banville, saúda a sua irmã Cyprine:

« Comme la rose purpurine

Vous régnez, et c'est vous qui donnez la beauté

Dont s'enivre à plaisir le regard enchanté.

                       

LX

O governo do Estado vizinho pensa em mudar de situação. Sente-se mal em Niterói, porque, em suma, Niterói, apesar dos seus foros de ninfa, não passa de uma praia grande e não é decente nem higiênico que o governo de um Estado viva atirado à praia como qualquer caranguejo.

O governo tem vistas altas, quer viver nos cimos como as águias, deixa a planície pelos alcandores. Todo o bem vem de cima e, como o governo pretende beneficiar os seus administrados, guinda-se, vai pra riba, deixando as ribas salitradas de Guanabara, a linda. É um governo que sobe arrimado à boa vontade. Que a ladeira não lhe custe.

Há entanto a notar o apelo das outras cidades que disputam a honra de ser capital como as suas irmãs gregas disputavam a glória de ter visto nascer Homero.

Campos, a dulcíssima (psidium giiajava) manda as suas vistas. Vassouras, a preclara, manda a sua fotografia. Amanhã S. Fidelis, a eleitoral, remeterá o seu retrato a óleo. S. João da Barra mandará um fusain, a incendida Paraíba mandará uma gouache. Entre Rios mandará uma aguarela com Freixieiro, o puro e este lema imaculado: «Aqui não há liberdade de fazer coisas nem nada». O Macuco mandará uns rabiscos e os Quatis, todas as vilas e aldeias se farão representar, exigindo para o campanário respectivo o bastão de comando.

E o governo... o governo já tem as suas vistas: Teresópolis. Teresópolis é uma montanha; bom clima, águas admiráveis, um panorama excelente, digno de uma rotunda, áreas bucólicas ao crepúsculo, bom leite, carne fresca e admirável na estação calmosa. Dizem mesmo que é um magnifico lugar para convalescenças... mas Campos? e Vassouras? e os Quatis? Aqui é que a porca torce o rabo. Que dirá o governo aos campistas que gastaram uma fortuna no fotógrafo? Que dirá ao monástico S. Fidelis, que anda a sacudir as teias de aranhas dos prédios, que anda a espanar as cimalhas, preparando-se, pondo-se garrido para receber o poder e o funcionalismo...? Que dirá o governo a Maxambomba? que não é possível? que ficará para outra vez... é duro. É mais cruel matar uma ilusão do que matar o peru mais gordo do poleiro.

O governo deve procurar conciliar as coisas para que não fique cercado de despeitos. E há um meio — é ter diversas capitais correspondendo cada uma a um dia da semana. Niterói, capital aos domingos, por causa das barcas — há tanta gente que está habituada ao passeio marítimo da capital para a outra banda... Teresópolis às segundas; Campos às terças; Vassouras às quartas; Quatis às quintas (porque é preciso não esquecer os Quatis;) Paty do Alferes às sextas; S. Fidelis aos sábados... Assim as coisas ficarão perfeitamente.

Em suma acho que o governo, nessa questão capital da mudança, lucraria mais se em vez de estar a ouvir os deputados consultasse o comendador Coimbra.

LXI

Quem será o inventariante deste esclarecido século, que arrasta os passos trêmulos para o Silêncio, emaranhado em complicadas malhas de eletricidade, com um milhar de filosofias no coração cansado? Os herdeiros, açulados pela ganância, farejam avidamente o despojo do moribundo. Feliz de quem pudesse abrir o segredo, três vezes selado, do testamento maravilhoso!

História, tu és a Esposa bem-amada, tens a terça, por certo, e contenta-te com essa parte copiosa e rica que outro século não legou com mais prodigalidade do que este. Artes, Ciência, filhas estremecidas, não vos precipiteis, ninguém tocará no que vos pertence.

Ele nada esqueceu — essa mesma cadela sanguissedenta: a Guerra, tem repasto bastante: a carne palpita e rola desde as barricadas de Paris até a cafurna de Sedan, desde os campos de Plevna até as veigas e as praias da nossa terra e ainda está de pé, no matadouro da lei, a guilhotina como um magarefe abatendo a réis para o banquete da Tranquilidade humana.

Sonhadores, ficam-vos os novos deuses. Cristo repousa e, enquanto a Razão desvaira, Buda, Khrishna, Isis e todos os ancestrais do mistério caminham espalhando crenças, cantando hinos. O espírito de Sidarta ilumina os videntes e a deusa velada explica a germinação da terra à proporção que Siva, truculento e mudo, escancara a goela imensa como o vácuo para devorar a Vida.

Voluptuosos — o século de Péricles não chegou ao requinte de sensualismo que alcançou o século de Napoleão... A arte do prazer tocou o auge... mais, só o refocilamento. Nevroticos tendes o estojo de Pravaz e os frascos de éter volátil para os vossos envenenamentos; picai-vos, aspirai livremente e imbecilizai-vos em paz, rendendo graças ao Século que vos não esqueceu, morrendo.

Sapadores de tronos, Fígaros que andais pregando o Evangelho do terceiro estado, tendes a marmita fulminante, que resolve todas as dificuldades e que há de criar, mais tarde, quando tiverdes conseguido o triunfo, uma nova casta de revolucionários: os ricos.

Padres de Cristo, tendes a Fé imorredoura, explorai-a cavando as almas com a santíssima cruz. Mulheres, tendes a credulidade dos homens. Terra, a primavera há de vir até a última hora e o lavrador não esqueceu a charrua—tens a fecundidade dos sóis que te iluminaram. E tu, coração egoísta, não precipites as pancadas: o Amor é eterno como a Esperança.

Avaros, hão de viver sempre os estroinas, não desespereis julgando que ides ficar com as letras em branco — o ágil não desaparece; descansai, Shylocks.

Com o que fica do Século podeis entrar na Era nova garridos e satisfeitos e mais breve será o centenário de anos com o vapor e a eletricidade. Talvez fique no vindouro, resolvido o grave problema da Velhice — a vida correrá tão macia e tão rápida sobre os trilhos que um homem descobrirá pasmado, dobrando a última fronteira do século que, em vez dos 100 anos enrugados e calvos, tem apenas 25 primaveras frescas — tal será a velocidade da viagem pelo tempo nesses dias que vem admiráveis e cultos. Eu nada peço ao Século que morre senão que me deixe em paz e com saúde para que eu possa ouvir o vagido de Evo pimpolho e ter o prazer de ler regaladamente nas gazetas o anúncio do Eterno, pedindo uma ama de leite, sem filhos e sem achegos, para cuidar do recém-nascido.

F I M

Editor Proprietário DOMINGOS DE MAGALHÃES

               

TOMBO:    8.829

FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS

E LEIRAS DE ASSIS

BIBLIOTECA CENTRAL

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