Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sonetos e poemas, Alberto de Oliveira


Texto-fonte:

Alberto de Oliveira: Sonetos e Poemas,

Imprensa de Moreira Maximino & C., 1885.

 

ÍNDICE

PRIMEIROS POEMAS

A ÁRVORE

A LAGARTA

A BORBOLETA AZUL

O ANACORETA

HORAS DE OURO

NOITE DE CHUVA

PER TENEBRAS

A CRUZ DA MONTANHA

VERTUMNO

A ENCHENTE

SONETOS

A GALERA DE CLEÓPATRA

O LEITO DA ROMANA

MANTO REAL

A PONTE VERMELHA

A JANELA E O SOL

FIM DE UM CONTO

MAZEPPA

SOMBRA

TITÂNIA

À ENTRADA DO INVERNO

GALATEIA

ÚLTIMA DEUSA

LENDO OS ANTIGOS

PARAÍSO VEDADO

A ESTÁTUA

À ENTRADA DA PRIMAVERA

ENTRE AS ÁRVORES

VOX RERUM

DE VOLTA DO CIRCO

AO LUAR DE VERONA

PUBESCÊNCIA

NOX

POBRE MÃE!

VASO GREGO

VASO CHINÊS

SIRINX

DEIA

O ÉBRIO

ENFIM!

MORTOS PARA SEMPRE

SAUDADE DO ÉDEN

BEIJANDO-A

PERSPECTIVA

EMENTÁRIO

ÚNICA

SEGUNDOS POEMAS

OLHOS DOURADOS

AS TRÊS FORMIGAS

MÁRMORE

A UM POETA

CANÇÃO DAS LÁGRIMAS

OS AMORES DA ESTRELA

HISTÓRIA DE UM CORAÇÃO

A AGONIA DO HERÓI

 

A minha mãe

PRIMEIROS POEMAS

 

A ÁRVORE

A Luiz Delfino

“La végétation déploie ses formes les plus majestueuses sous les feux brûlants qui rayonnent du ciel des tropiques...

...Un seul arbre entrelace de paullinia, de bignonia et de dendrobrium, forme un groupe de plantes qui, séparées les unes des autres, suffiraient à couvrir un espace considérable de terrain.

A. HUMBOLDT — Tableaux de la nature

I

Entre verdes festões e entrelaçadas fitas

De mil vários cipós de espiras infinitas,

Mil orquídeas em flor, mil flores, — sobranceira,

Forte, ereta, na altura a basta fronde abrindo,

C’roada do ouro do sol, aos ventos sacudindo

               A gloriosa cimeira;

A árvore, abrigo e pouso à águia real, sorria.

Dez léguas em redor o bosque inteiro via,

E os campos longe, e o val, e os montes longe, tudo;

Nuvens cortando o ar, e pássaros cortando

As nuvens, e alto o sol, na alta esfera radiando,

               Como fulgente escudo.

Ampliondeante a rainha o manto seu na altura

Abria. Coube ao tempo a rígida armadura

Vestir-lhe. A intacta fronte, era um cocar guerreiro

Que a cingia, e o tufão que o diga se era forte,

Quando o intentou dobrar; do proceloso Norte

               Diga-o o tropel inteiro.

Passaram sem feri-la, esbravejando às soltas,

A chuva, o temporal; e das nuvens revoltas

Alumiou-a, à luz do raio, a tempestade;

Mas, chegando a manhã, lá estava, altiva e bela,

Incólume, de pé, zombando da procela,

               Na ária da liberdade.

Então, na sua veleta, em seu maior fastígio,

Dos bravos corvos do alto e ouvia-se em remígio;

Grandes águias a luz cruzando, tenebrosas;

Enquanto, de eco em eco, um berro imenso atroava

A selva, e, ouvindo-o, o touro, híspido o pelo, arruava

               Nas planícies umbrosas.

E que ubérrimo seio a toda vida aberto

Era o seu! Quanto amor à sombra do deserto,

Quanto! quando, o raizame ao solo preso, as cimas

Dava esta árvore à luz, e o orvalho brando, ao vento,

Via-se a gotejar, de momento em momento,

               Das ramagens opimas!

Giganta e mãe, alteando os ombros, quanta vida

No ar não fez florescer dos flancos seus nascida!

Quando a verçuda copa às virações estranhas,

Dava ao sol, respirando o mundo ambiente, a quanto

Ser não nutriu, fecunda, ou preso no seu manto

               Ou nas suas entranhas!

Ia-lhe caule acima, em longos cirros, toda

A hera da floresta, os vegetais em roda

Deixando, a ver mais alto o céu, mais livre agora;

E o líquen verde, o musgo, o feto, as capilárias,

E as ginandrias gentis, epífitas, e as várias

               Bromélias cor da aurora.

Por seus braços afora, em voltas de serpentes,

Grateando, a suspender as maranhas virentes,

As baunilhas em flor alastravam; se abriam

Os ciclantos, e ao lado, acompanhando os liames

Das bignônias, ao sol, em trêmulos enxames,

               As abelhas zumbiam.

Filiforme, oscilando, ao píncaro suspensa,

A trama dos cipós se desatava imensa;

Em seu colo, não raro, a cobra a fulva escama,

Com os estos do verão, fez esmaiar, — enquanto

Tardo pássaro estivo, em suspiroso canto,

               Voava de rama em rama.

Não raro, em bando inquieto, as variegadas plumas

Viram aves, talvez, ali crescer. E algumas,

Talvez, entre a expansão tricótoma e sadia

Desses ramos, o ninho altivo penduraram,

E, primeiras da selva, as asas levantaram

               Para saudar o dia.

Mais que um seio de amor, um teto de piedade

Foi est’árvore. Ao vento, à chuva, à tempestade

Fugindo, brenha a brenha, e de terror transido,

Não raro o tigre em pouso aqui sorriu, seguro,

Enquanto atroava o raio, em firmamento escuro,

               O espaço enoitecido.

Não raro o sol soturno a corça e o leão transpondo,

Quando o incêndio estouraz ao longe em rouco estrondo,

Inflado em raiva, a um sopro, aliava as fúrias, vieram;

E, afuzilando o olhar, o pelo hirsuto, à míngua

D’água, o orvalho estival assado aqui, com a língua

               Nestas folhas beberam.

Não raro! E quanta vez de extinta raça, à aragem

Matinal, não se ouviu do rito a voz selvagem

Saudando o sol aqui, sob esta arcada! E, à lua,

À noite, quanta vez, na aura vernal trazido,

Não se veio perder de estranha dança o ruído

               Nesta folhagem nua!

E era grande! e era bela est’árvore assombrosa!

Tudo a amava, em redor, e, altiva, em luz gloriosa,

Lançava aos céus robusta, a sua fronte, em festa;

E um imenso canto ecoava aos pés da soberana...

Mas... Como a palpitar do cacto agreste à liana,

               Não tremeu a floresta!

II

...Entrara a selva um dia um homem. Sopesava

Tersa afiado mangil. Em torno a vista crava,

A árvore vê. Levanta o truculento olhar.

Toma-lhe a altura enorme às ramas, a espessura

Ao tronco. E o ferro, audaz, de sólida armadura,

               Faz sinistro vibrar.

Mas nem sequer um ramo estremeceu. Violento

De novo no ar volteia o tétrico instrumento,

E soa o golpe. Ainda um ramo nem sequer

Estremeceu. Resiste a casca espessa, o escudo

Da corcha. P’ra fendê-la, ao braço heroico e rudo

               Mais esforço é mister.

Pois novo esforço. Gira a arma assassina ao pulso

E lá vai, lá bateu, que é força entrar. Convulso

O homem de novo às mãos sacode-a. Inda outra vez

Sacode-a. O aceiro brilha, e do cortante gume

A fúria estona o tronco. E há, talvez, um queixume

               No madeiro, talvez...

Mais outro esforço. E no ar, como mandrão guerreiro,

Zune o ferro, e feriu o precípite, certeiro:

A casca espicaçou-se em lâminas sutis...

Correu pronto tremor o caule informe, erguido,

E, subterrâneo ouviu-se o eco de um gemido

               Na alastrada raiz.

Outro golpe, outro abalo. Em finas lascas voa

De novo a casca, e da arma ao rudo acento ecoa

A solidão. Pergunta espavorida a flor

À ave: — Que voz é esta? — E o tigre, a furna entrando:

— De onde parte este grito? E os rufos leões, parando:

               — Quem faz este rumor?

E é da ruína estupenda o lúgubre alarido

De montanha em montanha e bosque em bosque ouvido.

Tudo, da grimpa excelsa ou da planura, o Val

E o rio, o cedro e a rocha, o enho e a palmeira, pondo

O olhar nos céus, escuta aquele excídio hediondo

               E crime sem igual!

A grande árvore cai! A ramaria forte

Treme em cima, dançando uma dança de morte.

Rompeu-lhe o alburno agora e vai-lhe ao coração

A secure. Uma a uma as fibras rangem; fala,

Ringe, arqueja o madeiro, e, pouco a pouco, estala,

               À mortal vibração.

A grande árvore cai! Já se lhe inclina e verga

A fronte, e aos pés, a gruta, — o seu sepulcro, enxerga!

Astros, sol, amplidão, esferas de ouro, céus,

Nuvens, sopros do mar, e pássaros da aurora:

A grande árvore cai! mandai-lhe em prato agora

                O vosso último adeus!

A grande árvore cai! Como entre o firmamento

E o mar alto, o viajar, um grande mastro ao vento

Oscila: oscila assim seu corpo imenso no ar.

Elos, cirros, cipós, que o segurais, deixai-o!

Rompeu-se-lhe a medula, e já rechina o raio...

               Não o ouvis estalar?!

A grande árvore cai! Do tronco seu robusto

Não te afastes na queda, expira com ela, arbusto

Segui-a ao sono extremo, ó corvos, e águias reses!

Morrei com ela! Seu ventre o ferro cruel retalha...

Cosei-lhe em flor e em luz esplêndida mortalha,

               Florestas tropicais!

E caiu! rudemente e com ela rodaram

Com ela cedros na gruta, e os montes estrondearam...

Rasgou-se ao bosque o teto, a túnica se abriu;

E a pomba o ninho, a boa a preza, o fruto erguido

A ave, tudo deixou de pronto, espavorido,

               Quando a árvore caiu!

E da ruína estupenda o lúgubre alarido

Foi de ermo em ermo e foi de bosque em bosque ouvido;

Tudo, da grimpa excelsa ou da planura, o val

E o rio, o cedro e a rocha, o enho e a palmeira, pondo

O olhar nos céus, tremeu àquele excídio hediondo

               E crime sem igual!

 

A LAGARTA

A Olavo Bilac

Admirable compensation!... En plongeant si bas dans la vie, je croyais y rencontrer les fatalités physiques. Et j’y trouve la justice, l’immortalité, l’ésperance.

MICHELET — L’insecte

I

  Ser lagarta, em verdade,

  É uma cousa bem triste!

O asco provoca, enoja... Ah! só por crueldade,

Ou brinco, ou raiva ultriz de alguma divindade

  Este animal existe.

  Zeus, que no Olimpo excele,

  Toma de um touro, em dia,

A forma, e arrasta Europa, e a longe praia a impele:

Mas fosse Europa flor, e da lagarta a pele

  Zeus acaso enfiaria?

  Não! de escrúpulos presa,

  Ao vê-lo assim, fugira

Ao seu lesmoso lábio o agenória princesa;

E, alvo lírio real, a estremecer, surpresa,

  Toda se retraíra.

  E quem há que se agrade

  De um entre assim? resiste

Quem ao vê-lo? e se o viu, quem é que um piedade

De animal tão ruim? Ser lagarta, em verdade,

  É uma cousa bem triste.

II

  De uma eu sei, entretanto,

  Que cheguei a estimar

  Por ser tão desgraçada!

  Tive-a hospedada a um canto

  Do pequeno jardim;

  Era toda riscada

  De um traço cor de mar

  E um traço carmesim.

III

Dava-lhe a custo e mal a sombra pequenina

De galhinho sem vida um pé de casuarina.

Batia-lhe de rijo o sol no dorso, forte,

Vergastava-a de rijo o vendaval do Norte;

Subia acima o ramo, abaixo vinha, à vasca

Do vento. E o pobre ser, segura sempre à casca,

Lesmava-a toda. Enfim, mais forte a aragem brinca

À noite, assopra, zune, e o débil galho estrinca,

Estala, e entre os mais, andando à roda, o aparta.

Veio com ele ao chão a mísera lagarta.

IV

E afirmo-o, podeis crê-lo, eu vi-o! em toda aquela

Selvazinha gentil de arbustos pequeninos,

Onde o clerão sussurra e o grilo tagarela,

E azoinam da cigarra os tiples argentinos;

Não houve um seio só de acanto ou margarida

Que se quisesse abrir, piedoso, ao sonolento

Animal, que à procura entre eles foi de vida,

E entre eles foi cair porque o mandara vento.

Torceu-se então na sombra ao ser objeto a imunda

Boca, e enquanto ao redor é tudo em paz dormido

O sítio, um casto aroma a noite incensa e inunda,

Estas vozes lhe ouvi, à feição de um gemido:

V

“Cansei-me, em vão, pedindo! Às rosas de ostro embalde

Falei e aos girassóis de grande c’roa jalde:

Não quiseram me ouvir girassóis e rosais.

Beijei suplicemente os pés dos vegetais;

Ninguém me quis, ninguém! Passei, como mendiga,

Implorando a chorar um pouco e estância amiga...

Tudo em vão, porque a tudo o nojo inspiro, o horror!

Treme a folha ao sentir-me e treme ao ver-me a flor.

E aqui estou, fria, exposta ao vento enorme,

Sozinha, e sem dormir, e vendo o céu que dorme!

Noite, oh! sê testemunha, eterno e mudo espião,

De minha dor sem nome e desta ingratidão!”

VI

Disse e pensou na morte. E com o mortal excídio

Pensou tudo acabar... E pensou no suicídio.

Ia-se a pouco e pouco adelgaçando o véu

Noturno. A estrela d’alva iluminava o céu.

Fez o túmulo em vida e sepultou-se nele.

Ides ver que a magoava a sua própria pele.

VII

Claro rompia o sol no céu do Oriente. À grande

Natureza, que em tudo a sua força expande,

Pensou que, sendo Abril na terra alegremente,

Dormia num casulo um’alma descontente;

E, então, porque, talvez, entre emplumado bando,

Visse uma borboleta isolada pairando,

Toma o sedoso esquife, arranca à morte a vida;

Sopra a negra matéria informe, envilecida,

Anima-a! Uma asa faz de cintilante gaza,

Pérvia à luz, ideal; e faz após outra asa,

Corta-as, justa-as, sorrindo, e nelas pondo a vista,

Como em rapto genial trabalha a mão do artista,

Rabisca-lhes por cima um desenho chinês...

A crisálida, então, abriu-se dessa vez,

E da lagarta que era eis surge a borboleta.

Pasma, olhou em derredor, e, assim como uma seta,

Rompeu livre o azul...

VIII

O azul rompeu do espaço.

Pôs-se a voar, a voar, sem trégua, sem cansaço,

Té que descendo os pés, que eram dous áureos fios

De aranha, em frente a um lago, entre uns ramos sombrios

Pousou. Reviu-se n’água. A alegria nas asas

Cintilava-lhe assim como os rubins em brasas

Numa coroa. A luz cantava em torno, ao vê-la

No lago a se mirar como uma linda estrela.

Do pólen seu na cor, que embalde o Ticiano

Sonhara, o ádito escuro, o impenetrado arcano

Estava da tinta ideal que, em sol delida, a imensa

Sfera tinge de azul, de ignotas mãos, suspensa.

Os perfumes que então das urnas de ouro, em vago

Bando, a aurora deixara esparsos sobre o lago,

Vieram, marchando no ar, invisíveis, saudá-la.

Já se ouvia no bosque aos pássaros a fala,

A manhã na amplidão voava, desenrolando

As sulias cor de fogo.

E ela, as asas vibrando,

Voou também na amplidão.

IX

O meu jardim agora.

Podeis florir, cecéns e cravos cor da aurora!

Fugiu com a noite, foi com a noite e o vento aquele

Íncubo hediondo e vil de ascosa e imunda pele.

Cravos da cor do sol, cecéns, flori radiosas!

Enxambre a luz do Oriente a túnica das rosas.

Sus, camélias! Mas eis, ridente e iluminada,

A nossa borboleta. Inquieta, desejada,

Vai por tudo vibrando as suas asas loucas;

E foi lagarta! e andou cuspida de mil bocas!

E foi monstro! e rojou de ventre como as feras!

E irritava o gramado, e nauseava as heras!

Ei-la, que garbo agora! Ostenta de mil cores

D’asa o prisma ideal entre as ruidosas flores.

Tudo a procura e quer e é um longo anseio mudo.

E, vede-a, a vingativa! um beijo cede a tudo!

Mas quem pode exclamar, ao vê-la assim tão bela:

— Ela é minha! se o ar e todo o espaço é dela!

Ama, voa, a asa estende, agora beija, agora

Foge, volta de novo, e beija, e vai-se embora.

E é em vão que a roseira inunda-se de aroma,

Em vão a flor do sol aos raios de ouro agoma,

A açucena na alvura em vão su’alma ostenta,

Em vão para atraí-la o cravo se ensanguenta,

A papoula flameja. Ela é a Mimi leviana:

Ama, e treme, e delira, e voa, e foge, e engana.

Sabei, lírios, sabei, dálias, sabei vós quantas

A amais, sabei, jasmins, sabei, cheirosas plantas,

— Miosótis cor do céu, pasmai com o caso incrível!

Sabei todas que vós combateis o impossível,

Querendo possuí-la! Ó virentes alfombras!

Ó tufos de verdura! Ó verdura das sombras!

Ó camélias sem cor! Ó lírios cor de opalas!

Ó cristais das manhãs! manhãs de eternas galas!

Ninhos! sons! harmonia! e sol! e firmamento!

Ela não será vossa! em vão é o vosso intento!

Pois um único amor, uma paixão estranha

Domina-a:

  A trama de ouro e o fulvo olhar da aranha.

 

A BORBOLETA AZUL

A Fernando de Sá Vianna

Toda azul como os grandes olhos dela.

C. DE ABREU

I

               Suponho que era Abril

O mês, mas pouco importa, talvez Maio

               Ou mesmo Junho fosse...

               Nunca por céu de anil

O sol na fulva lágrima de um raio

               Vi desmaiar mais doce.

               Só, como a pena vai

No ar, ou só como a nuvem no horizonte,

               Eu caminhava. Tudo,

               Uma folha que cai,

Uma ave que esvoaça, a água do monte,

               O monte, ao longe, o mudo

               Deserto, tudo a mim

Me assusta. E eu caminhava. Agreste e feio

               Era o sítio. E, avançando,

               Por distrair-me, enfim,

Ia uma a uma, como a tudo enleio,

               As árvores contando.

               Tomava-me o pavor

D’essa hora, ali, só, acompanhado

               Só de meus pensamentos...

               Ao mínimo rumor

Cria ouvir um fantasma, e o bosque, ao lado,

               Povoar-se de lamentos,

               Rédea solta, ao vagar

Do cavalo, assim posto, a quanto havia

               Árvore de em roda

               Encarava. E, ao passar

Por tudo, a tudo triste em roda via

               Pela planície toda.

               E creio que era Abril

O mês! mas pouco importa, talvez Maio

               Ou mesmo Junho fosse...

               Nunca por céu de anil

O sol na fulva lágrima de um raio

               Vi desmaiar mais doce!

II

Quando da serra, além, sobre a campina

Era a sombra maior, e além da serra

Mais flamejante o céu, — volto o cavalo;

Faço-o pisar do rio a areia fina,

E assim vou através do longo valo,

Mal sentindo aos meus pés falar a terra.

Corre direito ao bosque o rio. Inclina

Sobre ele os verdes calejados braços

Um’árvore, de pé nas rotas fráguas;

A espaços uma rama peregrina

Oscila ao vento, vai com o vento; a espaços

Vem à face tristíssima das águas.

E eu, derramando os olhos sobre aquilo,

Notando o aéreo brando movimento

Daquela rama na corrente, inquieta,

Cismava. Quando pelo azul tranquilo,

Pelo cálido azul do firmamento,

Vejo vir uma grande borboleta.

Nos caniços, ao pé, de pluma em pluma,

Pairou. Susteve as asas leves. Logo

Em direção ao sol partiu. Morria

A tarde. Em fogo as nuvens, uma a uma,

Torreavam no ocaso; e o céu em fogo

Vales, montes de púrpuras cobria.

III

A borboleta azul que espaço afora

               Segue, não n’o sei bem...

Dela talvez me fala, onde ela mora

               Talvez more também.

Talvez de seu cabelo desatado

               Voasse, como uma flor,

Como o laço de fita embalsamado,

               Que usa, da mesma cor.

Ela, formosa e tímida violeta

               Mal desbrochada à luz,

Ela o céu ama, como ama a borboleta...

               Ambos são tão azuis!

IV

Vejo a casa, afinal, onde ela mora,

               Ela que a idade apenas

Talvez conta, aljofrada à luz, da aurora,

               Da menor das falenas.

Ela que à minha dor abriu-se acaso,

               Como um bom firmamento,

E cuja mão, se a beijo, é como um vaso

               Onde me dessedento.

Certo esperava todo aquele dia...

               Achei-a ansiosa, e ao vê-la,

E ao ver-me, eu vi: de pranto um bago havia

               Em seu olhar de estrela.

Lançou-me do pescoço em volta os braços,

               Deu-me a boca breve,

Depois, com o andar da pomba, atrás dous passos

               Moveu risonha, e louca,

Fugiu. Tornou. Trazia à trança loura

               Um laço azul, o amado

Laço da cor do céu, que a sobredoura

               De um reflexo sagrado.

— “Fico melhor assim, não acha, com esta

               Fita azul?” E sorria...

Morrera o sol, calara-se a floresta,

               Apagara-se o dia.

V

Sobremanhã parti. Molhava a neve

O pendor da montanha. No arvoredo

Próximo, as penas a ensaiar de leve,

               Um pássaro em segredo

Se ouvia. O som das águas derivadas

Da serra o chão da gruta, lento e lento,

Ia acordando. As folhas orvalhadas

               Palpitavam com o vento.

Uma fita de fogo no Levante

Subia. E a estrela d’alva, imensa e bela

Tauxiava o plano da cerúlea tela,

               Como um grande diamante.

VI

Com a buzina de caça pendurada

À cinta, quanta vez do excelso tope

De um monte, enquanto ao longe o pó da estrada

               Um cavalo a galope

Batia, quanta vez não vi distante

O fumo de seu teto, embaixo erguido,

Como um lenço acenar-me! E a vista errante

               Quanta vez, comovido,

Não fiz pousar na copa verde-escura

Do seu telhado, enquanto ao sol de estio

Voava um pombo nos ares, à procura

               De outro pombo erradio!

VII

Leva à casa gentil, e era tão perto!

               Um plano desigual:

Sinuoso trilho na colina aberto.

               Aqui do cipoal

A laçaria: a flórida latada

               Ora vai, ora vem,

Baila com o vento em trepidante escada.

               Torsos troncos além;

Uma flor escarlate ao pé de um ninho...

               Do sassafrás o olor

Recende, e borda as margens do caminho

               A madressilva em flor.

Filipêndulas mil de cima a baixo

               Serpenteiam sutis;

E ao longe ostenta um pássaro o penacho

               De abrasado matiz.

Resplende o sol. Abre-se um cacto. A aragem

               Vem mais fresca do sul...

E em tudo, aérea, trêfega, selvagem,

Paira uma grande borboleta azul.

VIII

A borboleta azul do mato, que ora

               Voa aqui, ora além,

Dela talvez me fale, onde ela mora

               Talvez more também.

Talvez de seu cabelo desatado,

               Voasse, como uma flor,

Como o laço de fita com que a vejo,

               Que usa, da mesma cor.

Ela, formosa e tímida violeta,

               Mal desbrochada à luz,

Ela ao céu ama e ama a borboleta...

               Ambos são tão azuis!

IX

               Viera Outubro. Que mágoa

Em tudo! A água não corre; em vão procura

A árvore triste com a ramada escura

               Os rios... faltos d’água.

               Secaram-se as correntes;

               Aos pés do caminhante

               A areia range, iriante,

               Em reflexos ardentes.

               Viera Outubro, viera.

               O sol jamais tão forte

               Iluminara a esfera.

               Desfloriam-se os vales,

               Já golpeados da morte.

               Do pequenino cálix

               Às arqueadas umbelas

Passava o estrago. E à luz do meio-dia,

O vento os campos áridos enchia

               De folhas amarelas.

X

Consta que ela, uma tarde, em que radiante

Das nuvens de ouro a abóboda se erguia,

Os braços nus para a amplidão distante,

Em falta de asas, trêmulos abria.

É que, aos raios do sol bailando inquietas,

Suspensas no ar, em dança vaporosa,

Um vago bando azul de borboletas

Vira passar na tarde luminosa.

XI

Desde esse dia nunca mais puderam

Meus olhos vê-la. É bem provável voasse!

Dela não soube e as flores não souberam.

A casa aí está, porém, qual se a habitasse

Ainda. E, abrindo a livre ponta da asa,

               Douda, erradia, exul,

               Em torno à velha casa

Paira uma grande borboleta azul.

 

O ANACORETA

Ao Dr. Henrique de Sá

E eis o loto da noite, unindo-se à lua desafogada das nuvens.

KALIDASA — Raghu-Vança

Foi com surpresa e espanto, em erma e atra espessura,

Que Rudhra, o sábio, o grande, o anacoreta indiano,

Rudhra que tem no olhar o brilho sobre-humano

Do incansável labor da penitência obscura;

Foi, com surpresa e espanto e num delírio vago,

Que uma vez do luar que límpido nascia

Estas cousas ouviu, na floresta sombria,

Ditas distintamente ao loto azul de um lago:

“Vem! — dizia o luar — descerra uma por uma

               As pétalas azuis!

               Dou-te um lago de espuma,

               Onde melhor flutues!

Vem! como a Apsara é minha, a tu’alma desata,

               E sobe entre desmaios!

               Dou-te alvíssima prata...

               A prata de meus raios!

Dou-te o leque de luz com que me vês no Oriente,

               Dou-te o cofre de opalas

               Que entorno em meu crescente

               Pelas eternas salas!

Dou-te nuvem, estrela, espíritos, quimeras...

               A luz, o orvalho dou-te,

               E o canto das esferas,

               E os incensos da noute!

Vem, adorado ser, tu das alturas digno!

               Rompe a brutal matéria,

               E deste àquele signo

               Eleva-te, alma etérea!”

Tal, com surpresa e espanto, em erma e atra espessura,

Certa noite ouviu Rudhra, o anacoreta indiano,

Rudhra que tem no olhar o brilho sobre-humano

Do incansável labor da penitência obscura.

 

HORAS DE OURO

A Alberto Conrado

Ah! que ne puis-je remonter vers ces heures fortunées, retrouver ces loisirs enchanteurs!

TOPFFER — Nouvelles genevoises

I

Era, lembro-me ainda! à beira-mar. — Desperta,

Fala, minha saudade! — Uma janela aberta

Sobre a azul extensão das águas, e a ventura

Dentro, lá dentro, aos pés daquela criatura

Que foi minha, que amei, que eu possuí, que apenas

Eu gozei...

                 Quando o sol, pelas tardes serenas

De Agosto, o mar não só de branca espuma, o etéreo

Mar de nuvens também, — como de escudos o éreo

Campo, — acendia; e em torno àquelas águas, cheias

De sons, a salsa praia em cada grão de areia

Seus diamantes brilhava: era de ver a casa

Rente às ondas! A luz em telas de ouro em brasa

Era a púrpura viva, era a tapeçaria

Das salas, — luxo estranho e oriental! subia

Pelas paredes; longa, em véus tírios, crescente,

Implicada, do teto ao solho esplandecente

Desdobrava-se. O chão riscava-se dos passos

Das sombras a correr em trêmitos, a abraços,

Soltas, súbitas indo. E em casa porta, à entrada,

Punha o fulgor da tarde uma coroa, e em cada

Coroa infindos rubins, crisólitas, gemantes

Pedrarias, rocais de estrelas, de diamantes

Cintilavam. E sempre o ouro do sol, descido

Ao mar, pela janela, entre os vidros, fundido

Em torrentes, bolhando, entrava. Um grande espelho

No aço puro estampava aquele céu vermelho

De lá fora; ao cristal de sua face o estranho

Colorido do ocaso olhava-se. De estanho

Ora as nuvens ali, ara de opalas, ora

De cártamo e sandiz, de vermelhão, de aurora

Tintas voavam, num grande exército, imitando

Já um templo, uma cidade, um mar de sangue, um bando

De ruínas, já de um deus em bronze a estátua, e os vultos

De enormes animais há séculos sepultos.

Era naquele espelho, entre a magia extrema

Do ocaso, que ambos nós de rutilantes estema

Cingidos, sobre a minha a sua mão, tomados

De assombro, a tudo mais alheios, afastados,

Quietos, mudos, sem voz, nos olhávamos. Ela,

Como ao fundo de um rio uma longínqua estrela,

A meu olhos lá dentro aparecia ao fundo

Do vidro, em meio à luz do flutuante mundo

De nuvens. A amplidão cercava-nos, a fronte

Nossa errava no céu; e a linha do horizonte

Prolongava-se além vermelha e infinda. E em tudo

Sempre o ouro do sol naquele espelho mudo

A cair, a cair...

                 E sobre a fulva poeira

Do ouro que ali chovia, a minha vida inteira

Ajoelhava, e em tropel meus dias; e era tanto

O esplendor que os tinha e tão profundo o encanto

De tal vida, que os sons de outra existência, o passo

Das auroras no céu, dos astros pelo espaço,

Da luz, que assoma e assoalha o esplêndido tesouro:

Parecia o rumor daquelas horas de ouro.

Uma vez, casualmente, olhávamos no liso

Aço um castelo ideal, fantástico, indeciso,

Que uma nuvem do mar erguera, e às vespertinas

Sombras dava o clarão das pêndulas ruínas.

Destas parte, num jorro, em cintilante e clara

Onda o incêndio do sol poente iluminara;

Rubro sangue listrava-a, a luz lambia-a em roda,

E era toda despenho e labaredas toda.

No ar circunstante havia um reverbero vivo

Como o de ígnea fornalha. Instante e convulsivo

O castelo ruía; e cada chama os nossos

Rostos afogueava. Os últimos destroços

Vi da mole fumante. Espessa e às voltas veio

Do alto a nuvem rolando; a luz varava-a, o seio

Se lhe abria combusto e, gotejando em lava

Rubra intenso cruor, esgarçava, esgarçava...

E quanto o sol rompeu por sobre aquilo e em vago

Lume, como ao depois de uma batalha, o estrago

Clareou vivo do incêndio, — olho e estremeço: havia

Sobre o espelho somente a minha sombra fria!

Eu somente ali estava, olhava eu tão somente

O vácuo! E estando a olhar, o espelho de repente

Empanou-se, e cresceu por dentro dele a escura

Noite, e o sol se apagou de sua face pura...

Uma estrela entretanto, apenas uma, do ocaso,

Nele às vezes resplende em direção do ocaso,

Mas tão triste de luz que imaginando, ao vê-la,

Fico se é por ventura aquilo mesmo estrela.

 

NOITE DE CHUVA

A Joaquim Serra

De horrenda cerração c’roada a Noite.

BOCAGE — Leandro e Hero

Que é das estrelas, que é dessas

Huris de loiras cabeças,

A que a alma, se a mágoa a afronta,

               Remonta?

Em que outros céus, mais serenas

Girais, doidejantes, plenas

De luz, mais vivas, mais belas,

               Estrelas!?

Este é soturno, este espaço;

Nele há das nuvens o passo

Somente, monstros em bando

               Marchando.

Escuridão! chuva! névoa!

A vista cansada elevo-a:

É tudo sombra, um lampejo

               Não vejo!

Escuridão! chuva! Imensa

Tenda de trevas suspensa

No ar, no horizonte mundo,

               Por tudo.

Flébil, monótono escuto

Ranger, minuto a minuto,

O velho arvoredo ao vento

               Violento.

E as águas longe, o bravio

Remesso, a queda do rio

Torneando as pedras, topando-as,

               Trepando-as!

E como a chuva entristece,

E cansa e enfara e aborrece,

Miúda a cair de hora em hora

               Lá fora!

Que vago torpor, que vaga

Molície os membros me afaga!

Estiro-os, bocejo; conto,

               Reconto,

Mil várias cousas, me ouvindo

Absorto, extintos abrindo

Arcanos cuja saudade

               Me invade.

Meus dias mortos de festa

E amor, em noite como esta

Plúmbeas, pesadas, estéreis,

               O que éreis,

O que valíeis somente

É que eu compreendo, a mente

Para essa morta alvorada

               Voltada!

Não tornareis forasteiras

Auroras de ouro! Às primeiras

Alvas que sombras sucedem

               No Éden!

A noite agora, — a que habita

A alma — que a noite infinita

Emula que o céu semeia

               Tão feia!

Sinto-a estender-se oprimida

Desta hora, e à fúria bramida

Do vento juntar e às águas

               As mágoas.

Quando há de tédio, o que existe

De mais aborrido e triste

Me desespera, me enturva,

               Me acurva.

Tenho a alma como entre um muro

De sombras, lúgubre, escuro!

O céu nem vejo que anima

               Lá em cima!

Escuridão! chuva! imensa

Tenda de trevas suspensa

No ar, no horizonte mudo,

               Por tudo!

E mais contínuo, de instante

A instante, mais sibilante

Aos refegões zune o vento

               Violento.

E roucas, rudes, revoltas,

Bolhantes, rápidas, soltas,

Mugem as águas do rio

               Bravio.

E a chuva cresce, recresce,

Em fúria, enfara, aborrece,

Às soltas saltando agora

               Lá fora.

Oh! como em beijos me prendo

A ti, que eu só compreendo,

Retrato amigo, figura

               Tão pura!

Retrato dela! composto

De graça e virtudes! rosto

Que tanto osculei, te interrogando,

               Te amando:

Entra-me n’alma indeciso

Reflexo do Paraíso!

Ajoelho, e meu céu, meu templo    

               Contemplo!

 

PER TENEBRAS

A Bernardo de Oliveira

Blow, blow, thou winter Wind;

Thou art not so unkind

As man’s ingratitude;

Thy tooth is not so keen,

Because thou art not seen,

Altho’thy breath be rude.

Heigh-ho! sing; heigh-ho! unto the green holly,

Most friendship is feigning; most loving mere folly.

SHAKESPEARE

I

  Era um caminho estreito

  E escuro, nessa escura

Noite, à beira do mar, orlando-o. O aspeito

  Do mar bem se não via,

  Que era todo espessura...

Rumor d’águas somente o espaço enchia.

  Eu, não sei como, andava

  Nesse lugar medonho

A tais horas. A fronte me alagava

  Suor frio, o cabelo

  Tinha-o, como num sonho,

Eriçado de um negro pesadelo.

  Ali, voejando às tontas,

  Como estrige agoureira,

Paira o Medo, o Terror. Com as altas pontas

  Os penedos, dispostos

  Junto à podre albufeira,

N’água se veem com os achumbados rostos.

  Coalhado do negrume

  Da noite, anseia o espaço;

Ali não cala incerto escasso lume

  De estrela. A infectos miasmas,

  Porém, sente-se o passo,

Como o passo indeciso dos fantasmas.

  Rofas moles de troncos

  Gigantescos se alteiam

Deste lado; daquele, aspectos broncos

  De penhascos; soturnas

  Cavas grutas vozeiam

No eco abafado das equóreas furnas.

  E a tremer nesse estreito

  Caminho, pelo escura

Noite, escura e agitada, eu ia. O aspeito

  Do mar bem se não via,

  Que era todo espessura...

Rumor d’águas somente o espaço enchia.

  Soavam surdos na treva

  Os meus passos e, incerto,

Como quem sente que um fantasma leva

  Trás si, olhava, o ouvido

  Aguçando, e mais perto

Cria escutar um sepulcral gemido.

  Empós mim certo erravam

  Outras sombras, e em lento

Giro, à laia de espectros, se arrastavam!

  Sim, com um rouco, um profundo

  Com um sinistro lamento

Surdem das trevas em que a vista afundo.

  Ah! parece-me, em dobre

  Pasmo, estar inda a vê-los

Esses que o medo pânico descobre,

  E a diabólico encanto,

  — Horríveis pesadelos —

Se entremetem no sonho, espanto a espanto!

  Todos vieram, vieram,

  Vieram! todos em ronda

Lúgubre e extensa me encararam, e eram

  Tão de horrores, que eu ante

  Aquela turba hedionda,

Não fui mais que uma estátua nesse instante.

  Quedei-me, em pedra imota

  Vi-me; têmporas, pulsos

Sem vida, olhar sem luz, mente idiota...

  E a legião sombria

  Dos espectros convulsos,

Mudos, porém, da escuridão rompia.

  Todas as minhas Dores

  Vieram; todas em grita

Surda e horrente, com múltiplos clamores,

  Ao meu lado passaram,

  E da noite maldita

Com os soluços as trevas abalaram.

  Vós também, Sonhos torvos,

  Também vós me seguistes,

E, quais rodam do céu num ponto os corvos,

  Vós, revoltos, em bando,

  Íeis, negros e tristes,

Com a asa de fumo em torno a mim rodando.

  Viestes, males contidos

  No coração, sepultos

No coração, no coração sofridos!

  E, arremedando as Fúrias

  No sanhudo dos vultos:

Viestes, Raivas, e Cóleras, e Injúrias!

  Também ali te achavas,

  Olhar de Ódios gratuitos,

Boca de inveja sórdida, que bavas

  Tudo e estragas, e danas;

  Zombaria, que a muitos

Sob disfarce calculado enganas!

  Nem tu mesma faltaste,

  Traição fria e engenhosa,

Que na sombra teus golpes estudaste;

  E uma vez, muda e calma,

  Inesperada e enganosa,

Ervado ferro me embebeste n’alma!

  Todos viestes. E o medo

  Num frio intenso e agudo

Corre-me as carnes. E, impassível, quedo,

  Semi-ânime, exangue,

  Petrificado, mudo,

Represa a voz, pasmado o olhar, o sangue

  Gelado, hirtos na testa

  Os cabelos, — em roda

Eu via erguer-se da espectral floresta

  As mil formas, ao vento

  Que passava; e ela toda

Gemia agora um sepulcral lamento.

II

  Pouco a pouco, porém,

Como quem sai de um fojo infecto e os ares

  Livremente respira;

  Como o que à tona vem

De um rio, alteia o corpo, erra os olhares,

Move dos braços, se desprende e tira

  Das águas: pouco a pouco

Desperto, acordo, a vista em roda, inquieto,

  Lanço, as sombras inquiro...

  O mar violento e rouco

Geme ainda; na noite há o mesmo aspecto,

E um suspiro se escuto, é meu suspiro.

  Corava a escuridão

Não sei que luz nesse momento: um fraco

  Ponto de ouro em começo,

  No céu; quase um clarão;

Depois; depois todo o horizonte espesso,

Toda a névoa das formas, todo o opaco

  Das cousas se alongava,

Se dispartia, dava entrada àquela

  Luz indecisa; o espaço,

  Turvo que era, ali estava

Pérvio agora a se abrir, de traço a traço,

Em áureas nódoas se embebendo dela.

III

Era o dia! era o sol! Ascende a luz, palpita,

Com a asa etérea a roçar a abóbada infinita.

Treme a noite, e é assim como um grande reposteiro

Que ondula em quedas de ouro e se desdobra inteiro;

Mar de fogo e rubins, e opalas, — a alvorada,

Entra pela amplidão, alaga-a, e despenhada

De cima, em rios cobre a terra inteira. Agora

Nem uma sombra mais, um pesadelo! A aurora

Dissolveu-os! O mar a música sombra

Adoça, ouvindo ao longe as cítaras do dia.

No ar a est’hora talvez um anjo passa, aberta

A asa, anunciando a manhã que desperta.

Sus, minh’alma! E eu revia o sítio em que tamanho

Horror me salteara: o trilho estreito, o estranho,

Ermo, os pedrouços mil do sítio, informes, tudo,

Troncos, a água, a albufeira, o abismo, o oceano, rudo

E ora, atento, no chão buscava ver se um traço

Espectral descobria ou sinal de algum passo.

Tudo a luz dissipou, varreu, levou radiosa!

Nem um vestígio mais dessa noite assombrosa!

E quando a fronte ergui, todo o Oriente, em fogo

Vivo a arder, se mostrava. O sol nascente logo

Surgiu e ao seu clarão suavíssimo, indeciso,

Inundava-me o rosto o primeiro sorriso.

 

A CRUZ DA MONTANHA

A Arthur Orozimbo

Sobre o marco de pedra a cruz se eleva,

Como um farol de vida em mar de escolhos.

A. HERCULANO — Harpa do crente

I

No alto da serra inculta, onde a virente copa

Torce o vento à araucária, e o temporal galopa,

Despertando, ao tropel das músicas noturnas

Que arrasta, a escuridão das covas e das furnas:

A desoras quem cruza o vale extenso embaixo

Vê, se acaso ergue a vista, o como arder de um facho.

É uma estrela? Não sabe. Um foto fátuo? um duende?

Um fantasma? E aturada e misteriosa esplende

A luz, em meio ao espanto e negridão da noite.

II

Mas a chuva nem sempre, o temporal, o açoite

Do vento na alta serra as árvores abala;

Muita vez rompe a lua, entre névoas resvala

O áureo globo lá em cima, ao longo das vertentes

Coando em frouxo chover as lágrimas luzentes.

Então brando rumor, — a voz da Natureza

Em secreta volúpia, — uma quase tristeza

E gozo, — em tudo acorda. O pinheiral suspira,

E se ouve em cada gruta a voz de ignota lira.

III

Outras vezes é o céu só com as estrelas, cheio

Delas de extremo a extremo, e precintado ao meio

Da alva faixa que estende a Via-Láctea enorme.

Tudo queda e repousa. E a serrania dorme

Sob esse escuro azul de um céu que tem por cima.

IV

Em tais horas não sei que novo brilho anima

A luz que medo pôs a quem passou distante

Na planície. Lá está, por noite assim, radiante

Como a estrela da tarde. Esta, entretanto, a porta

Do poente entrou de há muito, e é desmaiada, é morta.

V

Não, — das cimas da serra, ó árvores, contai-o!

Não é de um astro a luz, não é da estrela o raio

Esse arcano clarão. Ele ilumina um’alma.

Lá se agita uma sombra. A movediça palma

Não é do coqueiral, quando a procura o vento

E dela extrai com o sopro um músico lamento.

E essa harmonia? ... Acaso o mesmo vento acorda

Som tão doce?! ... Silêncio! ... É de uma guzla a corda.

Alguém canta. Abre a noite o ouvido atento. A escarpa

Escuta. A humanas mãos se despedaça um’harpa

Lá em cima, e o estranho acorde, a melodia estranha

Flui num rio de prata ao longo da montanha.

VI

Mas que acerbo sofrer, que súbita agonia,

Estas notas traspassa e inverte esta harmonia?!

Vamos, galguemos o alto à serra alpestre e informe!

Lá na soidão sem termo há um desespero enorme,

Sofre alguém, pena alguém... Humana voz me fala...

Um grito igual ao meu naquela altura estala!

VII

Dorme seu grande sono a natureza inteira.

Tardo o passo, anelando, a íngreme ladeira

Subo. Que escuridão, que mar de espessa treva

Rola a meus pés embaixo, entre meus pés se eleva!

Ondas negras sem fim! amplo dilúvio escuro!

A uma parte e outra parte a sombra alteia um muro

E me oprime. Entretanto a escarpa vingo, o rosto

Volto ao despenhadeiro, ao abismo transposto...

Ainda um passo, e descubro a luz que me há tentado.

VIII

Entre o implexo palmar há um teto levantado.

É um palácio. Porém somente uma janela

Aberta cede à noite o seu fulgor de estrela,

Luz sonora, — que vem nela arrastado um hino.

Hino vasto... É um gemer, é o grito de um destino

Doloroso. Lá dentro uma mulher ao piano

Canta, ensinando à noite o que é o lamento humano.

E o instrumento febril onde os seus dedos correm,

Onde dos olhos seus as lágrimas escorrem,

Geme, como se um cisne, em mágico transporte,

Dentro dele soltasse o seu canto de morte.

IX

Tem vinte anos. É bela. O canto entristecido

Soa mais alto agora, é mais alto o gemido.

O arquejante instrumento um novo carme acorda,

E da aberta janela a música transborda

Dentro da noite. À luz, dir-se-ia aquele imenso

Hino, em fúmea espiral, como a espiral do incenso,

Subia, e em cada volta em que se enovelava

No ar, sentada uma queixa e uma lágrima estava.

Mas plangeu subitâneo o piano gemebundo

Outra carme. É a saudade ardente que, este mundo

Deixando, a alma consigo ao túmulo transporta:

“Adeus, tudo o que amei!” E o canto a face morta,

As mãos postas, o tronco inerte, inteiriçado,

Lembra do que se foi... Um novo tom magoado:

É a canção dos que à Terra a superfície fria

Correm, sempre buscando a sombra fugidia

Que partiu: “Onde estás!?” — E em cada acento o piano

Grita, chama, interroga, e se espedaça insano.

E o instrumento febril onde os seus dedos correm,

Onde dos olhos seus as lágrimas escorrem,

Geme, como se um cisne, em mágico transporte,

Dentro dele soltasse o seu canto de morte.

X

Sob a janela, só, por entre o movediço

Palmeiral, há uma cruz de mármore maciço.

Guarda um túmulo. O chão de saudades coberto.

Está. Saudosa a luz, com seu brilhar incerto,

Vem beijá-la e trazer-lhe a alma sonora e os prantos

Dessa que dentro rompe em lágrimas e cantos.

XI

E ela cantava sempre. Os pássaros dormidos

Despertavam no bosque. E o bosque é todo ouvidos.

A água os pés de alabastro apressa na corrente

Para ouvi-la, e desliza, e corre mansamente.

Mudo, em êxtase, o espesso e trêmulo arvoredo

Inclina a fronte, escuta, e é pensativo e quedo.

Vem dos covis chegando a procissão tardia

Das sombras, e a bailar trepidamente, espia

De longe, o ventre escuro a rastos. As inquietas

Asas colhe a lucerna; o sono as borboletas

Interrompem, vergando ao pequenino galho

A flor que o cálix volta, d’onde pende o orvalho.

Folha a folha, asa a asa, espuma a espuma, o fio

D’água, o inseto, o palmar, em silêncio sombrio,

Suspendem-se, e mais livre a música desata

Sobre tal quietação as estrofes de prata...

E o instrumento febril onde os seus dedos correm,

Onde dos olhos seus as lágrimas escorrem

Geme, como se um cisne, em mágico transporte,

Dentro dele soltasse o seu canto de morte.

XII

Traduz o piano agora um desespero imenso.

Como que em cada nota há um coração suspenso

Por lágrimas, que passa e vai sangrando. Ao brado

Da dor, violento grito, estremece o teclado,

Tine e vai estalar. É que a loucura, — gêmea

Do amor incontentado, — irrompeu em blasfêmia.

Mas num surdo — perdão — o fúria se amortece,

E a alma arrependida em prantos aparece...

XIII

Pela janela aberta, em jorros a harmonia

Golfava, enchendo a noite. Enquanto no abandono,

Qual se o morto folgasse em seu último sono,

A cruz, braços ao ar, na sombra estremecia.

 

VERTUMNO

A Henrique Magalhães

Tudo o que vejo parece

Triste de minha tristeza,

E tudo mais me entristece.

BERNARDIM RIBEIRO

I

...........................................................................

E crendo achá-la, a sombra fugidia

O intricado rompeu da mata escura,

Não dando conta que expirava dia.

— “Dize, dize onde estás!” — Pela espessura

Chama, e ao teto do bosque o olhar levanta,

Abaulado dos arcos da verdura,

Mas verdura sem flor, que a toda planta

A volúvel espira, a trama, o enredo

Nos quentes estos o verão quebranta.

Os desfloridos braços do arvoredo,

Que encruzados lá em cima um sopro agita,

Falam de um dia que morreu bem cedo.

Ora as heras não mais, a parasita

Verde às colunas vegetais se enrola

E o corpo elando os píncaros enfita.

O estragoso calor que tudo assola,

Mal do cacto silvestre abrir consente

À cárdea flor a tímida corola.

De eiva tocado, ao ramo seu pendente,

Todo fruto arregoa, e assim responde

De um ar que é todo fogo ao peso ardente.

— “Dize, dize onde estás!” — E as grutas — onde,

Onde estás! — com os seus ecos repetiram;

Ignora tudo que lugar a esconde.

E errando acaso o peregrino, viram

De repente seus olhos que acabava

A selva, à luz que súbito sentiram.

Uma larga planície o sol dourava,

Mas tão triste que n’alma ao caminhante

Com vê-la a sua dor se acrescentava.

— “Dize, dize onde estás! A cada instante

Chamo-te, e ao menos nem sinal descubro

Que na areia imprimiu teu passo errante.

Na ausência tua tudo expira! Outubro,

— Quente mês que aborreço — às mãos volteia

Em cresta às folhas o seu facho rubro.

E eu, que a teu braço a cornucópia cheia

Vi dar ao mundo provida o tesouro,

Com que dor vejo a Terra ardente e feia.

Pois a não cobre o teu cabelo de ouro!”

II

Disse, e olhou derredor. Distante, às vivas

Luzes da tarde, interrogando o vento,

Balançam-se as palmeiras pensativas.

Todo o céu, todo o azul do firmamento

Está cheio da mágoa e da tristeza

Que a alma lhe traça nesse atroz momento.

No ar, no monte, no vale e na devesa

Como que um’harpa estranha e dolorosa

Chora e parte-se às mãos da Natureza.

E ele a vista, de lágrima saudosa

Toda embebida, em frente ao sol que expira,

Sumiu nos ermos da amplidão radiosa.

— “Dize, dize onde estás!” Fala e suspira,

E às nuvens longe vendo as soltas alas

Que ao céu varrem a nítida safira;

Umas de ouro, de púrpura, de opalas

Outras... E a alma ansiosa e entristecida

Cá do exílio da Terra a interrogá-las!

— “Dize, dize onde estás! Que despedida

Foi a tua, que assim que te partiste

Vi que estes campos desertara a vida!?

Cai morta a flor que num sorriso abriste,

Murcha-se o ramo, seca-se a corrente,

Onde molha o arvoredo a sombra triste.

Té do campo a verdura, — e isto consente

Teu amor! — onde meiga adormecias,

Torra e cresta o verão com o raio ardente.

Se tornassem contigo aqueles dias!

Se volvesses!... Mas vejo que interrogo

Um vão fantasma nestas nuvens frias!”

E das nuvens, magoada, a vista logo

Soltou-se, entre o crepúsculo que vinha,

Como um péplum, velando o céu de fogo.

Era a hora em que ao vale se encaminha

A noite, pelo píncaro do monte;

Voa à face dos lagos a andorinha...

Uma faixa de luz da serra à fronte

— Sol das almas lhe chamam — reaparece,

Mas logo esmaia, e é trevas o horizonte.

E a alma das cousas, o sussurro, a prece

De tudo à estrela que nasceu primeira,

Nos raios de ouro levantar parece.

E n’água morta, do regato à beira,

As desfolhadas árvores se encaram...

E à voz, que há pouco à Natureza inteira

Falava, as nuvens trêmulas quedaram;

E longe, como um rancho de cativas

Que, olhando em roda, sem dormir ficaram,

Balançam-se as palmeiras pensativas.

 

A ENCHENTE

A Antônio Aguiar

Aumenta a inundação, cresce de mais a mais.

BURGER

Foi sobre o pôr-do-sol que a água, espumando, às roncas,

Começou de crescer: pelas fragosas voltas

Das vertentes a uivar; pelo pendor, às soltas,

Das pedras a mugir; pelos algares, broncas

Socavas, barrocais, sonoras grutas, o ermo

Zoando, com o propagar dos ecos seus sem termo:

Descia. Em plúmbeo céu, de esparsas franjas no alto,

Baldaquins de vapor do temporal, se arqueavam,

E ainda, de quando em quando, ao raio, que de assalto

Rompe-os, douram-se ao lume, e o seio etéreo cavam,

Onde, em sulcos de fogo, os súbitos coriscos

Se encruzilham febris, serpentejando em riscos.

Doce raio de sol, dentre o compacto enxame

Das nuvens ora escapo, ia aquecendo o monte,

E era assim, na amplidão, como luzente arame

De ouro, da Terra às mãos, suspenso no horizonte;

Doce raio de luz depois da chuva! o dia

Dele, a terra espiando, em lágrimas sorria.

Toda a inculta extensão dos campos, pouco a pouco,

Ia a enchente alagando. O que era um rio ecoa,

E é mar, engrossa, e alteia, e ferve, e espuma, e rouco,

Morde as margens, empola, empina-se, acachoa,

Bolha, brama, e à feição de indômito cavalo,

Roto o freio, lá vai, — salta de valo em valo;

Voa, impelindo em fúria o peso d’água, às matas,

Que ora o vendo a raivar, tão fero e desabrido,

Falam: “De onde é que vens que o manto, a uivar, desatas

E ruges, tu que outrora, em sono azul dormido,

Com as colinas em roda, — escravas tuas — leve

Beijava-as, de leito entre os lençóis de neve?!”

E a água desce: as rechãs, as fértiles planuras

Incha, faz apaular-se; entre o raizame adunco

Dos grossos vegetais se infiltra, nas escuras

Charnecas e marnéis os lírios sorve, o junco

Dobra, arrasta, ao covil surpreende a fera, ao ninho

Baixo arranca os frouxéis e assusta o passarinho.

Embalado lá vai correnteza abaixo agora

Um tronco. Em vão lutou, rijo madeiro opondo

À enxurrada brutal que, na evulsão sonora,

Come ao rochedo os pés, o penhasco em redondo,

Cerca, fá-lo pender, inclina-o mais, e, de ira

Cheia, impele-o, forceja, e monte abaixo o atira.

Soa o vale. Da enchente a boca informe avança;

Rói aqui já do campo os altos; o arvoredo

Ameaça, abarca, aperta; esta ramada, a frança

Deste arbusto alcançou, trepando do laspedo,

E esfolhou-a, e bramiu; mais alto sobe, e inunda,

Torce-se toda, e bofa, e em frêmito redunda.

Velha humilde choupana, onde estancara a sede

Viajor que um dia inteiro o sol queimara, — o seio

Despovoado apresenta, ermo e soturno; e vede:

Linfa escassa que os pés lhe andou molhando, em meio

Da várzea, ameaçadora agora ferve, e a vaga

Arremessa-lhe à porta, e pouca a pouco a esmaga.

De seu teto de colmo aburacado a pomba

A asa abriu, demandando um céu melhor. Vacila,

Mal sustida, a parede, e balouça-se, e tomba,

E esbroa-se na queda a avermelhada argila.

Fica o esqueleto só, de pé, sinistramente,

Combatido ainda assim da aluvião crescente.

E a água desce: hora a hora, ei-la a brotar a serra;

Brota-a o charco, o sapal, a estrada, a penedia,

Brota-a, brota-a a devesa, os borraçais, a terra

Toda; e avoluma a enchente, avulta, aumenta; amplia

O corpo, e imensa espraia em tudo, e se derrama,

E tudo atroa, e espuma, e ronca, e ruge, e brama.

Da assomada do monte olha-o o coqueiro, ao vento

Dando os leques; o corvo altívolo, surpreso,

Olha-a de cima, do ar, o espaço; o firmamento

Olha-se nela; o sol, por breve instante, o peso

Das nuvens afastando, olha-a também e a umbela

De ouro lá embaixo viu que se acendia nela.

Veio a noite, também, marchando, e, debruçada,

Olhou-a do alto; olhou-a a estrela, do negrume,

Da amplidão repontando em transparente lume;

Enquanto do Levante entre o vapor, à entrada,

Do céu, com o argênteo limpo, a lua enorme e estranha

Espiava, erguendo o rosto acima da montanha.

 

SONETOS

 

I

A GALERA DE CLEÓPATRA

Rio abaixo lá vai, de proa ao sol do Egito,

A galera real. Cinquenta remos lestos

Impelem-na. O verão faz rutilar, aos estos

Da luz, de um céu de cobre o horizonte infinito.

Pesa, abafado e quente, o ar circunstante. Uns restos

De templo ora se veem, lembrando velho rito;

E inda um pilono erguido, uma esfinge de granito,

De empoeirada figura e taciturnos gestos.

De quando em quando à flor do Nilo se destaca,

D’água morna emergindo, a escama de um fakaka;

O íbis branco revoa entre os juncais. Entanto,

Numa sorte de naos, Cleópatra procura

Su’alma distrair, prestando ouvido ao canto

Que a escrava Carmion tristemente murmura.

 

II

O LEITO DA ROMANA

Ao Dr. J. P. de Magalhães Castro

Pelo cedrinho tálamo odorante

O ostro fenício, a púrpura mais bela,

Raros bissos de trama deslumbrante,

Tudo palpita com a presença dela.

Trabalho Argel de finas mãos, brilhante,

Caiu-lhe o peplo. O rosto se revela...

Romanos olhos sob a treva ondeante

Da coma esparsa, que um luar estrela.

Eri-lavradas trípodes custosas,

Kam-klins, caçoulas, derramai no espaço

Aloes, sândalo, mirras vaporosas.

Entrando o leito, em tímido embaraço,

Ela a túnica abriu um pouco, e as rosas

Mostra das pomas, levantando o braço.

 

III

MANTO REAL

Da flava Ceres falta-te ao cabelo

A cor, que o seu dourava e os trigos doura;

Tens negra a trança e, deverei dizê-lo?

Fica-te assim melhor, não sendo loura.

Crespa, enredada em serpes, tentadora,

Cheiro-a, aspiro-a, febril, e ardendo em zelo;

E ela em meus lábios, qual se a Noite fora,

De volúpia infernal me imprime o selo.

Toco-a, aperto-a, desato-a fio a fio,

Estendo-a nos meus ombros, velo ondeante;

Tomo-lhe as pontas, o teu rosto espio:

E entre os claros da trama escura e bela,

Creio, vendo-te a luz do olhar radiante,

Ver a réstia de fogo de uma estrela.

 

IV

A PONTE VERMELHA

Um passo além daquele campo, há um velho

Bosque: é de um lado a ponte. Entre as cantigas

Da água, o rio, debaixo, as grossas vigas

Traz refletidas no sombrio espelho.

Arcos iguais de sólido aparelho,

Curvos, como do tempo com as fadigas,

Com a larga oval e as resistentes ligas

Olhais formam pintados de vermelho.

E a água, à tarde, espumando em bolhas, toda

De luz tinta e da cor que tem por cima,

A correr, a correr, fulgura e roda.

E a muda ponte espia ao longe, espia

Quem vem, que cavaleiro se aproxima

Para transpô-la no final do dia.

 

V

A JANELA E O SOL

A Antônio Nogueira

— “Deixa-me entrar, — dizia o sol — Suspende

A cortina, soabre-te! Preciso

O íris trêmulo ver que o Sonho acende

Em seu dormido virginal sorriso.

Dá-me uma fresta só do paraíso

Vedado, se o ser nele inteiro ofende...

E eu, como o eunuco, extático, indeciso,

Ver-lhe-ei o rosto que na sombra esplende.”

E, fechando-se mais, zelosa e firme,

Respondia a janela: “Ah! que estouvado!

Eu deixar-te passar! Eu, néscia abrir-me!

E essa que dorme, sol, que não diria

Ao ver-te o olhar por trás do cortinado,

E ao ver-se a um tempo desnudada e fria?! — “

 

VI

FIM DE UM CONTO

A R. Porciúncula

...E por ali nos fomos... — prosseguia

O ancião — Lúcia, mais pálida do medo

Da noite, as mãos tomando-me — em segredo,

Baixo, uma prece, trêmula dizia.

Alta era a serra, altíssima! sombria

A cena a tais desoras. O arvoredo

Estava tácito, mudo, imoto, quedo...

Nem uma aragem derredor se ouvia.

De repente, de súbito, naquela

Noite o ouvido me fere um som medonho...

Rola um corpo na escarpa: o vulto é dela!

Acompanha-me ainda esta saudade...

Dorme no abismo o meu primeiro sonho...

Dos outros não me lembro nesta idade.

 

VII

MAZEPPA

À anca brutal do tártaro cavalo,

Vede-o: lá vai na rápida corrida,

Em brutal solavanco e rude abalo,

Pelos campos da Ucrânia, a toda brida.

Corre, voa o corcel! não há domá-lo!

E a campina, a floresta enegrecida,

Cheia de lobos, e a corrente, e o valo

Corta e cruza na sanha enfurecida.

Quantos, como o polaco, arrebatados

Leva o ginete audaz do pensamento

À suarenta garupa pendurados!

E em vão forcejam por suster com os braços,

Entre o ar que assobia e o firmamento,

O incansável corcel de alados passos!

 

VIII

SOMBRA

Mulher, não te conheço!

G. CRESPO

Vens de um sepulcro, as cinzas remexendo,

Os ossos que encontraste à mão reunindo;

Fria, palidamente fria, e enchendo

De pranto o horror da morte averno e infindo.

E que sepulcro descoberto e horrendo

É esse? Olho-o e conheço, a um tempo ouvindo

Nele os meus e os teus ais que em som tremendo

Vão-se, ao modo dos lêmures, carpindo.

Vens do passado, Sombra, e uivando choras...

Seguem-te empós, — cadáveres medonhos,

Meus dias mortos, lívidas auroras.

Mas que me queres tu? Se é fome impura

Que inda te rói, sacia-te nos sonhos

Que levaste contigo à sepultura.

 

IX

TITÂNIA

A Francisco Sodré

Titânia, ao lado o rei que os elfos manda, assoma

Na floresta encantada, à luz da lua. — “Abri-vos,

Ramos verdes! de flor de penetrante aroma,

Móveis arcuais festões, vendo-a passar, cobri-vos!

Em alas, troncos mil de viridente coma,

Onde em fofo aranhol de abrocadados crivos

Brilha o orvalho que a luz das finas pedras toma...

Eis Titânia! de pé, meus válidos cativos!”

Tal a voz de Oberon vai proclamando, e em cheio

Da trompa, que da cinta ele suspende e emboca,

Esfuzia e desperta o grande bosque, em meio

Da noite; enquanto a lua enorme esplende, e a gruta

Longe as letras do canto apaixonado avoca,

Abre o ouvido de pedra, e atentamente escuta.

 

X

À ENTRADA DO INVERNO

A Alexandre Guimarães

I

A barba espessa aos pés, molhada em neve,

Caída, e o manto às costas, de neblinas,

Alquebrando ancião, sobre as colinas

O Inverno, afuma o tempo, e o sol proscreve.

“De onde veio tão cedo!?” As quimeras

Flores e o céu vão perguntar em breve,

Quando a encosta a dobrar na volta leve

Que o rio quebra, à curva das campinas.

“De qual tenda de gelo, em fins de polo,

Velho enfermo, acordaste, e ora te encostas

Aqui e ali, com sono, a fronte ao colo?

Anda, que é cedo ainda, à cama! ao leito!”

Mas surdo o Inverno avança, o manto às costas.

E a espessa barba a lhe sobrar no peito.

II

Pois venha o Inverno desflorindo a entrada

Destes campos, e a neve aos serros monte;

Já me não dói que em pouco abandonada

Seja a planície próxima defronte.

Erme-se o velho, esfolhe-se a ramada,

Volúveis nimbos pairem no horizonte;

E dentre a opaca cerração reponte

Tíbia pálida a luz da madrugada.

Chegaste, és minha, abraço-te... Lá fora

Que importa o Inverno?... esqueço-o, e vou cantando,

Que a Primavera nos teus olhos mora;

E ver-te é vê-la que me vem trazida

Por dous sóis, das mãos leves derramando

A cornucópia de Aqueloo florida.

 

XI

GALATEIA

A S. Sebrão

Foi, rompendo o mirtal de verde manto,

— Morria a tarde, além, tonitruosa,

Bóreas soprava — que uma voz maviosa

Feriu-lhe o ouvido, em prolongado encanto.

Dizia a voz: — “Ó deusa, ó cobiçosa

Alva espádua do mármore mais santo,

Não seres minha!...” E era mais doce o canto,

Quando de pronto a Ninfa, de amorosa,

Surge. E com os lábios grossos aplicados

À flauta, um monstro vê cantando. Espreita...

Foge... E ao fugir com os passos apressados:

“Ah! que tão doce música que escuto,

Não coubesse a uma boca mais bem feita

Que a boca de um gigante horrendo e bruto!”

 

XII

ÚLTIMA DEUSA

Foram-se os deuses, foram-se, em verdade;

Mas das deusas algumas existe, alguma

Que tem teu ar, a tua majestade,

Teu porte e teu aspecto, que és tu mesma, em suma.

Ao ver-te com esse andar de divindade,

Como cercada de invisível bruma,

A gente à crença antiga se acostuma,

E do Olimpo se lembra com saudade.

De lá trouxeste o olhar sereno e garço,

O alvo colo onde, em quedas de ouro tinto,

Rútilo rola o teu cabelo esparso...

Pisas alheia terra... Essa tristeza

Que possuis é de estátua que ora extinto

Sente o culto da forma e da beleza.

 

XIII

LENDO OS ANTIGOS

A Alberto Franco

Vamos reler Teócrito, senhora,

Ou, se lhe apraz, de Teos o citaredo;

Olhe a verdura aqui deste arvoredo

À beira d’água... E o sol que desce agora.

Lécio, o pastor, nesta colina mora,

Onde as cabras ordenha. Este silvedo

Retém de Umbrano à frauta a voz sonora,

Guarda este arbusto a Títiro o segredo.

Esta água... Olhe, porém, como é tão pura

Está água! O chão de nítidas areias

Plano, igualado, límpido fulgura;

E onda é tão clara que, entreabrindo o louro

Cabelo, em grupo as trêmulas sereias

Vêm-se lá embaixo neste fundo de ouro.

 

XIV

PARAÍSO VEDADO

Guarda-lhe a porta à câmara esquisita

Um anjo; e, se ela dorme, esse anjo espreita

Em roda, e ao punho o alfanje de ouro estreita;

E, se ela treme, o alfanje de ouro agita.

Não há transpor essa mansão bendita!

Pés profanos lá dentro quem suspeita?

Vela a guarda, de pé; na mão direita

Arde o ferro luzente que exercita.

Em paz, desejo meu, que ardente estuas!

De seus límpidos pés o arminho brando

Nem te é dado roçar com as asas tuas!

Olha-a apenas da porta... e a sombra escassa

Dessa arma inveja, fulgurante, quando

Móbil projeta-a, e ela em seu rosto passa.

 

XV

A ESTÁTUA

A Generino dos Santos

Às mãos o escopro, olhando o mármor: “Quero

— O estatuário disse — uma por uma

As perfeições que têm as formas de Hero

Talhar em pedra, que o ideal resuma.”

E rasga o Paros. Em divino esmero,

Eis se arredonda a fronte em nívea espuma;

Eis ressalta o nariz de um talho austero;

Alça-se o colo, o seio de avoluma;

Alargam-se as espáduas; veia a veia

Mostram-se os braços... Cede a pedra ainda

A um golpe: e o ventre nítido se arqueia.

A curva, enfim, das pernas se acentua...

E ei-la acabada a estátua, heroica e linda,

Cópia divina da beleza nua.

 

XVI

À ENTRADA DA PRIMAVERA

Vem de onde estás! C’roaram-se as colinas,

Como noivas do sol, do sol com os lumes;

Ah! com as chuvas de há pouco nem presumes

Que verdes que se alisam as campinas!

Revestem-se os outeiros de boninas,

Como outrora de acanto o altar dos Numes;

Flóreas caçoulas partem-se em perfumes;

Já vão fugindo as últimas neblinas.

É um toro verde o chão do vale. Ao brando

Mover da aragem dobram-se as palmeiras,

Como ancilas, os leques agitando.

Vem de onde estás, que em tudo vejo aqui

Teu nome escrito, e as aves que primeiras

Voaram, já estão a perguntar por ti.

 

XVII

ENTRE AS ÁRVORES

Da assombra alameda entre os dispostos

Em ordem grupos de árvores passamos.

Ela tinha nos meus seus olhos postos...

Soava no espaço a música dos ramos.

Eu... com que doce voz que nos falamos!

Com vê-la abria mão de ruins desgostos;

Da espessura entre os flóridos recamos

Coava-se a luz, batendo em nossos rostos.

Ela, quando mais próxima do lado

Que há ali, com um cisne à flor, me disse, ao vê-lo...

O eco da sua voz no ouvido afago.

Havia, no ar, do sol a imensa mágoa;

E no lado a estampar-se o seu cabelo

Era um sol a afundar-se dentro d’água.

 

XVIII

VOX RERUM

A Anastácio Vianna

Por toda a noite, inquietas despertando

Da lua ao beijo de ouro iluminado,

No alto páramo azul, de lado a lado,

Andaram as estrelas perguntando:

— “Que há na Terra, lá embaixo?... Um tom magoado

Vem as esferas místicas entrando...

Trina que voz? que deus de enamorado

Vai da harpa curva os ecos derramando?”

Ingênuos astros! digam de uma em uma

As ondas do oceano, a face calma

Diga dos lagos, diga a flor, a espuma,

Diga o rochedo, a folha, a ventania,

E as palmeiras, abrindo palma a palma,

De onde e por quem aquela voz se ouvia.

 

XIX

DE VOLTA AO CIRCO

A A. Duarte

Cisma ao triclínio a bela que da Acaia

Veio à luta assistir de homens e feras,

E como traz do olhar no céu, que esmaia,

Outro céu, outro sol, outras esferas.

Que há por que triste seja a loura Aglaia?

Corados vinhos golfam das crateras,

Luzem taças no ar, e a mesa espraia

Rubro mar de licor e festões de heras.

Embalde! embalde púrpuras cantando,

Tinintes copas cruzam-se festivas...

Pensa Aglaia em Leucipo: a arena entrando,

Como era belo! os braços nus, pendente

A espada, o pique posto às mãos ogivas...

Era o sol dos atletas do Oriente!

 

XX

AO LUAR DE VERONA

Ao Dr. Henrique Batista

I

Desceu da escada o mármore polido

Porque, enfim, minha voz de medo a medo

Chamando-a, como um pássaro perdido

Outro chama da sombra do arvoredo.

Da lua de ouro o disco umedecido

Se empinava no céu. Tristonho e quedo

Era tudo em redor; somente ouvido

Fazia-se das auras o segredo.

Veio. Assustada, pálida, distante

Olhou-me e estremeceu, talvez no instante

Em que eu também, de longe, estremecia.

Ah! se um canto entre as ramas que oscilavam

Então se ouviu, não foi a cotovia...

Entre dous corações que se apertavam.

II

Entrou. Ainda suponho a portinhola

Ouvir nos quícios rápida impelida

Fechar-se. E nada mais! Da umedecida

Noite o perfume balsâmico se evola.

Da casa o mudo aspecto me consola:

Muda como eu, parede a prumo erguida,

Como eu, sem conto estrelas, dolorida,

Estás a rever de um céu que as desenrola.

Largas janelas, peitoris altivos,

Colunas da açoteia alevantada,

Como eu, quedais lá em cima pensativos.

Porta onde ela passou, que ma encobriste,

Também tu, qual me vês, estás fechada,

E imota, e muda, e solitária, e triste!

 

XXI

PUBESCÊNCIA

Entreaberto botão, entrefechada rosa,

Um pouco de menina e um pouco de mulher.

MACHADO DE ASSIS

Há pouco, dentre a suspendida arcada

Do modesto jardim, que a luz vigora,

Estava a rir e a cantar, desentrançada

A coma entregue aos hálitos da aurora.

Vede-a agora, porém: não canta agora,

Não ri. Da leira de jasmins plantada

A censura partiu que a traz mudada?

Quem a asa de ouro lhe empeceu num’hora?

Cisma, sozinha está melhor cismando;

Olhos demissos, que um desejo estrela,

Quando fala é com medo e titubando...

Nunca tanto carmim rosou-lhe a face...

Como que o sol desperta dentro dela,

E aquele sangue é o da manhã que nasce.

 

XXII

NOX

Chove, embrusca-se o tempo, e quando ao frio

Fuzil, trovão, nos côncavos ribombas

Do céu, vejo passar, como num rio

Nadantes monstros, nuvens de éreas trombas.

Só, desta alcova, cárcere sombrio,

Onde entre morte e amor, minh’alma, tombas,

Meu ser, meu coração, meus ais lhe envio,

Por céu de bronze solitárias pombas.

Não vê-la, e o tempo ver, que mais redobra

Sombra e noite que envolve a natureza,

Plena d’água, de horror, de medo e espanto!

Abro a janela: e a escuridão que sobra

Das cousas, me enche o peito de tristeza,

E, em fina chuva, os olhos meus de pranto.

 

XXIII

POBRE MÃE!

A. C. Coelho

Olhos fitos na altura, — enquanto morre

A tarde, enquanto à flor do firmamento

Correm as nuvens, — como as nuvens, corre

Até junto de Deus teu pensamento.

Ao filho enfermo, nesse atroz momento,

Pedes que ele socorra; e enquanto escorre

Teu pranto, da oração no exaltamento,

Mãe sublime, supões que ele o socorre.

Mas um grito de súbito no centro

Ouves do coração pressago. Ansiando,

Entras em casa. O filho está lá dentro

Morto, e ao beijá-lo ouves-lhe ainda, ó louca!

De teu nome saudoso o rumor brando

Das derradeiras sílabas à boca.

 

XXIV

Tal como douda garça, aos mares! Uma vela!

Uma vela! e é partir. Afronta o horror das vagas

Negras se a noite as monta e as incha o vento, às pragas

E ao clarão e estridor do raio e da procela.

Nem todo o equóreo abismo, entre as equóreas fragas

Ruindo, errante e estouraz, com a espuma à fauce e aquela

Luz dos ruivos fuzis como serpentes nela,

Pode o inferno igualar que em teu silêncio esmagas.

Rompe, atira-te ao pego, a escuridão profaça

De a venceres no horror que no teu peito engrossas;

Talha os ventos, o oceano, as ondas sulca, e passa...

Talvez longe, entre o sol de estranho, ao fundo

Do horizonte, há um deserto em que dormir tu possas,

Sem o incômodo olhar dos homens e do mundo.

 

XXV

VASO GREGO

À Exma. Sra. D. Clarinda P. de Lima

Esta de áureos relevos, trabalhada

De divas mãos, brilhante copa, um dia,

Já de servir aos deuses como agastada,

Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.

Era o poeta de Teos que a suspendia

Então, e ora repleta ora esvazada,

A taça amiga aos dedos seus tinia,

Toda de roxas pétalas colmada.

Depois... Mas o lavor da taça admira,

Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas

Finas hás de lhe ouvir, suave e doce.

Ignota voz, qual se da antiga lira

Fosse a encantada música das cordas,

Qual se essa voz de Anacreonte fosse.

 

XXVI

VASO CHINÊS

À Exma. Sra. D. Aglae P. de Lima

Estranho mimo aquele vaso! Vi-o,

Casualmente, uma vez, de um perfumado

Contador sobre o mármor luzidio,

Entre um leque e o começo de um bordado.

Fino artista chinês, enamorado,

Nele pusera o coração doentio

Em rubras flores de um sutil lavrado,

Na tinta ardente de um calor sombrio.

Mas, talvez por contraste à desventura,

Lá se achava de um velho mandarim

Posta em relevo, a singular figura;

Que arte em pintá-la! a gente acaso vendo-a,

Sentia um bem estar com aquele chim

De olhos cortados à feição de amêndoa.

 

XXVII

SIRINX

A João Ribeiro

I

Pã não era por certo deus tão lindo

Que merecesse ninfa como aquela;

Fez mal em persegui-la, e bem fez ela

Pedir a um colmo encantamento infindo.

Só de vê-lo as oréadas, sorrindo,

—E destas uma só não foi tão bela

Como Sirinx, — armadas de cautela,

Pronto aos mirtais botavam-se, fugindo.

E, pois, por tal cornípede devia

Gastar as áscuas de amoroso incêndio?

Não! — E a influxo das Náiades, um dia,

Perseguida do deus, o movediço

Ládon procura, estende o corpo, estende-o...

E ei-la mudada em trêmulo caniço.

II

Que se imagine como o deus ficara

Quando, crendo estreitar a Ninfa esperta

Que lhe fugia, apenas uma vara

Delgada e frágil contra o peito aperta.

Vendo-o em tal ilusão, que assim lhe armara

Amor, da oposta margem descoberta,

Um risinho de escárnio, que o desperta,

Tiniu do rio na corrente clara.

Então, da planta virginal, no assomo

Da raiva, o caule fino o deus vergando,

Parte-o em várias porções, de gomo em gomo.

Tais partes junta; e em música linguagem,

Com os pastores no canto concertando,

Põe-se a soprar no cálamo selvagem.

III

Da agreste cana à módula toada,

Da Arcádia pelos íngremes outeiros

Vinham descendo, em lépida manada,

Lestos, saltões, os Sátiros ligeiros.

E a flébil voz da flauta, soluçada

De ternuras, soava entre os olmeiros;

Já nas grutas as Náiades em cada

Sopro os ecos lhe escutam derradeiros.

Hamadríadas louras palpitando

Estão no líber das árvores; danosas

Napeias saltam do olivedo, em bando.

E presa à flauta a Ninfa que a origina,

Sirinx pura, as notas suspirosas

Derrama d’alma à vibração divina.

 

XXVIII

DEIA

A A . MENDES

Quando ela entrou, com um gesto de rainha,

Pálida e bela, altiva e desdenhosa,

Quedou-se em torno a sala rumorosa,

Tão nobre aspecto a divindade tinha.

Quem era essa mulher esplendorosa

Que a luz do raio e a luz do sol continha?

Falia, interroga a multidão ansiosa...

Ninguém soube jamais de onde ela vinha.

E inda depois que a aparição divina

Sumiu-se, no clarão que atrás deixara

Queimam-se as almas em que amor domina;

E em vago sonho inquieto e prolongado

Reveem todos a forma aérea e clara

E a imensa luz d’aquele vulto amado.

 

XXIX

O ÉBRIO

A SOARES DE SOUZA JÚNIOR

Ébrio, cambaleando, à monótona giga

D’água que vê saltar na praia aos ventos, anda,

Contam — desde que o sol o extremo céu demanda,

Um louco enviando ao mar uma rude cantiga.

Pisa a areia, resvala, aos tombos vai, desanda,

Cai, pragueja... afinal descansa, de fadiga

Dorme. A boca no vácuo um termo vão mastiga.

Sobre ele a noite o orvalho, à tênue luz, ciranda.

Então, bufando o mar em côncavos recolhos,

Dos buídos pés lamber-lhe as plantas vem, no entono

Da vaga. Enquanto a lua ao longe aponta e, em molhos

De prata, abrindo a luz, desce do ebúrneo trono,

E, pousando na praia, os avinhados olhos

Beija ao ébrio, e, de pé, vê-lo a roncar no sono.

 

XXX

ENFIM!

Enfim... Nas verdes pêndulas ramadas

Cantai, pássaros! vinde ouvi-lo! rosas,

Abri-vos! lírios, recendei! medrosas

Miosótis e acácias perfumadas,

Prestai-me ouvido! Saibam-no as cheirosas

Balsas e as leiras úmidas plantadas;

Aves e flores, flores e alvoradas,

Alvoradas e estrelas luminosas

Saibam-no, saiba o céu com a esfera toda

Que, enfim, sua mão, enfim, sua mão de leve...

Borboletas, que pressa! andais-me em roda!

Auras, silêncio! Enfim, sua mãozinha,

Sua mão de jaspe, sua mão de neve,

Sua alva mão pude apertar na minha!

 

XXXI

MORTOS PARA SEMPRE

Só meu amor quisera permitido.

A.de Souza de Macedo. — Ulissipo.

I

Stava a pensar há pouco que ela vinha,

Como dissera: e, entrando em casa, ao braço

Do marido, — na escada, entre embaraço,

Estendia-me a trêmula mãozinha.

Com as mais pessoas conversando, a linha

Ora vê do horizonte, ora o terraço...

E eu suponho, a lhe ouvir o som do passo,

Tornar ao tempo em que a julgava minha.

No quarto, onde medito e leio e estudo,

Apraz-lhe entrar; depois, à despedida,

Mal disfarça uma lágrima no adeus!

Vai-se. Abro o cofre da passada vida:

O mesmo é o seu retrato, e vejo em tudo

Seu nome escrito e os juramentos seus!

II

Tal supus e ela quis que se cumprisse,

Mas com a emenda de um mal que não tem cura...

Sim, no olhar o notei, talvez que o ouvisse

No riso mesmo e em sua voz tão pura.

Chegou... Longe daquela criatura

Que a maltrata, a passada meninice

Avivara-lhe o rosto, e a formosura

Mais esplendia de seu todo. E disse...

Disse com os olhos úmidos, da fala

Com a tremura, com o gesto doloroso,

Disse tudo... E ao notar que estremecia

Todo o meu corpo em frêmito nervoso,

Prudente e honesta, um dedo ao lábio: — “Cala!

Cala!” — também a estremecer, dizia.

III

Como uma sombra amiga que a piedade

Afigure, em meu quarto a imagem dela

Ficou, dos zelos a infernal procela

Domando com a divina majestade.

Avulta, cresce e me domina aquela

Sombra, e ao meu peito ouvindo a tempestade,

Com um olhar de ternura e de bondade

Serena-a, como uma serena estrela.

É razão que eu me curve, e sonho a sonho

Desça do azul, em que fundei no vento

Belo templo ideal que ora desaba...

Ouve, minh’alma, o estrépido medonho...

Ouve, e treme de ouvi-lo, pensamento!

É teu mundo de amor que cedo acaba.

IV

Que me quer esta lágrima?... Chorei-as

Todas... Mas tu, ó lágrima querida,

Tu só ficaste, e vais rolar sem vida,

Longe de suas mãos de finas veias!

Ela também, ó lágrima sentida!

Teve de pranto as pálpebras tão cheias,

Como de um lírio, em meio das areias,

A urna de orvalhos, de manhã perdida.

Mortos para sempre!... Lágrima, secaram

Tuas irmãs! com elas des’parece,

E apaga-te, como elas se apagaram!

Olha: à face que amei se eu te levasse

Num beijo extremo e te espalhado houvesse,

Tu gelaras... tão fria é sua face!

V

Mortos para sempre!... Cala-te, e padece,

Coração! ela o quis: padece e cala...

Ela que honesta e pura te aparece,

E, um dedo ao lábio, te aconselha e fala!

Como inda em vida arremessado à vala,

A dor no esquecimento te arremesse;

E seja a tua derradeira prece

Teu respeito em servi-la e venerá-la.

Ela também, que a dor que te amortalha

A ambos colhe no golpe, cai ferida

E o rosto a quentes lágrimas orvalha...

Mortos para sempre!... Ó sombra! escuridade!

Só, de teu seio, escutarei sem vida

O rouxinol da última saudade.

VI

Mortos para sempre!... Branca, inanimada,

Tu cosida à mortalha escura e fria,

Inda no alvor de teu primeiro dia!

Eu — com ver-te tão cedo amortalhada!

Mortos para sempre! Um’hora de alvorada,

Um minuto de céu quem nos diria

Foi nosso amor nessa manhã sombria,

De receosas lágrimas banhadas!

Mortos, mortos pra sempre!... E hás de em teu leito

Tremer, cuidando que da noite, fora,

Chega um fantasma que te aperta ao peito...

E ao peito, ao peito eu, só, no meu jazigo,

Tu’alma pura apertarei — se um’hora

Posso na morte adormecer contigo.

 

XXXII

SAUDADE DO ÉDEN

A LEANDRO MALTHUS

Entre dous montes — o do Ocaso, tinto

Da cor viva do murice, brilhante,

E de rosas cingido o do Levante —

O Éden ficava, o nosso vale extinto.

Nele, às mãos uma Flora deslumbrante

Verde enredava estranho labirinto;

E o val sorria ao sol, torcendo o cinto

De águas de prata pelo corpo, ondeante.

Ali voavam os pássaros mais raros,

Catasolados, púrpuros... abriam

Alvas de nácar sob os céus mais claros;

E as horas breves da ventura, quando

Ali estavas, mais longas me sorriam,

O ouro das asas pelo chão deixando.

 

XXXIII

BEIJANDO-A

Naquela boca melindrosa e pura,

— Taça antiga finíssima, lavrada,

Sorvo a ambrosia aos deuses consagrada,

Do soma indiano os estos da ventura.

Em cada beijo que lhe tomo, em cada

Sopro há a lasciva cálida loucura

Que, ébria, douda, convulsa, alucinada,

Nos lautos bródios báquicos murmura.

De amplos côncavos cântaros divinos

Cuido ver o falerno que espadana...

Loiram cerames rútilos mitinos;

Rebrama a orgia, — e ao lúbrico alarido,

Heroínas e heróis, em grita insana,

Brindam ao deus de Sêmele nascido.

 

XXXIV

PERSPECTIVA

A A. C. de Oliveira Vianna

Vê como a Natureza é grande e bela!

Olha aquele apinhado de colinas,

E o sol que desce, e está do céu na tela

Como um borrão de tintas purpurinas.

Olha estes ares límpidos! aquela

Planície ondeante, liquidas campinas;

E já no Oriente esta primeira estrela...

E estas furando o espaço repentinas!

Olha aquelas aquátiles gaivotas

Que d’asa arrancam na marinha bruma;

Arquipélagos longe... ilhas remotas...

E a Noite agora, enchendo os horizontes,

Olha — as nuvens lá desce de uma em uma,

Tropeçando no píncaro dos montes.

 

XXXV

EMENTÁRIO

Fragmentos

Perdut’hò quel, che ritrovar non spero

Dal Borea all’Austro, o dal mar Indo al Mauro.

Petrarca

I

Austero e frio, entrar no aposento

O médico: — “É preciso o seu cabelo

Cortem.” — Dissera. E eu vi, — nem sei dizê-lo!

Cair-lhe as tranças nesse atroz momento.

Agora mais faminto, mais violento

Crescia o mal. Da morte o escuro selo

Já sobre a fronte lhe notava, e ao vê-lo,

Dor a dor me estalava o pensamento.

O olhar preso no meu, no etéreo fundo

De seu olhar um anjo me acenava,

Como a dizer: — “Já basta deste mundo!”

Com um sorriso no lábio, ela morria...

E o anjo lá estava: em seu olhar, me olhava,

Em sua boca, em seu sorrir, sorria.

II

Ó minha Laura, quem do livro aberto

Em que líamos ambos, os amados

Olhos teus afastou, para fechados

Serem no sono de uma noite, incerto!?

Quem dentre os níveos dedos delicados

Em que o trazias, lendo-o, de mim perto,

O poema arrancou que eu vi coberto

De tantos sóis que tinha, imaginados?!

Doce leitura! negra pausa infinda...

Como que por encanto ainda hoje eu creio

Ver aberto esse livro e lê-lo ainda;

E em cada folha em que meus olhos ponho,

Palpita o nosso amor com o mesmo anseio,

E as nossas ilusões com o mesmo sonho.

III

Disse ao poeta a Saudade: “Ao mundo ascende

Dos sóis, por lá, das asas minhas, vê-la...”

E o poeta subiu de estrela a estrela,

Subiu. Chamou debalde. Alonga, estende

Os olhos... O ar somente avista. Empreende

Maior passo. Mais sobe. Em luz mais bela

Arde o espaço. Mais sobe. E em toda aquela

Altura apenas o silêncio o entende.

Como a infinita serra, — a grito e grito,

Olhando acima e atrás, trepa o infinito...

Estende a mão, procura... estende a mão,

Procura... estende a mão, procura... e luta

Debalde, e fala, mas somente escuta

O rolar das estrelas na amplidão.

IV

Porventura algum dia acaso ouviste,

À noite, a voz das velhas cartas, quando,

Papéis antigos remexendo e olhando,

No recesso dos íntimos buliste?

Eu conheço essa voz, sei que ela existe.

De antigas letras descorado bando

Tenho ouvido falar, se vou pensando,

Vendo-as à luz, apaixonado e triste.

Daqui sai de um irmão que se desvela

O conselho; entre mostras de piedade

Nesta linha há uma lágrima; naquela

De amigo ausente inda a expressão conforta;

Nesta — arrasam-se os olhos de saudade —

Vejo as letras finais da amante morta.

V

Vês com as arcadas negras suspendida

No ar esta ponte imensa, — o céu de um lado,

A terra do outro, e tudo ilimitado?

Seu nome queres tu? chama-lhe — Vida.

Vê como horrenda é toda, e alta e comprida!

Faz medo... — E onde termina? — Onde acabado

É tudo e novamente começado:

No mistério, na treva indefinida...

— E esses vultos que a estão, mudos, subindo?

— Sombras. — E esse atro uivar medonho, e grito?

— Dores. — E acima é o céu que está fulgindo?

— É o céu — E para em salvo atravessar

Esta ponte e ir lá ter, que necessito?

— Amar, amar, eternamente amar.

VI

Teus olhos, flor, vêm-me lembrar o encanto

De outros olhos, porém de luz mais bela,

E tanto que cegava, e tanto, tanto

Que eu mais julgava-a a luz de alguma estrela.

Tudo neles havia e estava quanto

No lume etéreo e vivo se revela,

Tão fundos que do céu se via o manto

Cem léguas através dos olhos dela.

Anjos por eles doidejantes iam

N’uma acesa espiral, e sons frequentes

De asas rufiadas rápidas se ouviam...

Nuvens brancas, estrelas de oiro fino,

Luares de prata, raios transparentes

Tudo boiava n’esse olhar divino.

 

XXXVI

ÚNICA

Estás a ler meu livro, e é bem que exprimas

Certo pesar. Nem uma vez, nem uma

O teu nome estas páginas perfuma!

E outros há aí por títulos e rimas.

“Quem são essas que vêm de estranhos climas,

De idades mortas, da salgada espuma

Do mar, da Grécia, de teu sonho, em suma,

Que mais que a mim tens celebrado e estimas?”

Dirás. E o livro, se meu ser traslada,

Se o fiz de modo tal que me traduza,

Contas dará de quanto em si contém;

Saberá responder que és sempre amada,

Que nele estás, pois foste a sua musa,

E essas mulheres só de ti provêm.

 

SEGUNDOS POEMAS

 

I

OLHOS DOURADOS

A Afonso Celso Júnior

Ces yeux ! ces larges, ces brillantes,

ces divines prunelles !...

Edgar Poe. — Ligeia.

Os versos que ora trabalho,

Trabalho-os por teu olhar:

És o sol de que me valho

P’ra os doirar.

Susténs o helicônio cetro

Mais com os olhos que com a mão;

N’eles, pois, se inspire o metro

Da canção.

Loiras imagens, — pequenas

Abelhas da ideia, voai!

Com os vítreos pés das Camenas

Me rodeai!

Quero uma c’roa das flores

Mais lindas, — real, porém;

São dous os imperadores,

Vede bem!

Têm pleno domínio em tudo,

E, assim como um Faraó,

Vestem-se de ostro e veludo

E ouro só.

Eia, canção, o diadema

Desses monarcas gentis!

Merecem mais do que a estema

Das Huris!

Merecem o Paraíso

Radiante dos muçulmãos,

E o ramo de heliocriso

Dos pagãos!

Para cantá-los é força

Que do estro a boca febril,

Aleando a ideia, se torça

N’um anafil.

Que eu tenha à mão, porque a fira,

Fórminx ou cítara. A mim

Do aedo helênico a lira

De marfim!

Que os mais os trombões insuflem

Do poema. Não quero tal,

Mas lestas rimas que ruflem

A asa ideal.

— Exíguos clarins do verso,

Que n’elas, aliveloz,

Em metro escandido e terso

Cante a voz.

Sobre a canção que componho,

Loiras imagens, pousai!

E, como os anjos de um sonho,

Me rodeai!

As rimas se cubram do ouro

Dos olhos teus, porque, enfim,

Há n’eles mais que o tesouro

De Aladim.

Sim, que riqueza! que raro

Escrínio contém, mulher!

Ai! D’eles se os visse o Avaro

De Molière!

Entrai por tanta opulência,

Meus versos! n'esse esplendor

Louvai, não a Providência,

Mas o Amor!

Vamos, saudemos a dona

Dos olhos de ouro. Canção,

Voa, e depois te abandona

Em sua mão.

Direi a luz que semeias

Em minha noite, farol!

E as joias de que te arreias,

Como um sol!

Dos olhos teus os queixumes

Direi, a ternura e o bem,

E mesmo os vagos perfumes

Que eles têm.

Que cada estrofe traduza

Tudo o que encerram à flux

E interno. Esvoace a Musa

Em sua luz.

Que os versos que ora trabalho,

Trabalho-os por teu olhar:

És o sol de que me valho

P’ra os doirar.

 

II

AS TRÊS FORMIGAS

A Machado de Assis

Movendo os pés cor de brasa,

Foram as três, com cautela,

Subindo o muro da casa

       De dona Estela.

— Arriba! diz a primeira.

— Mais devagar... diz com isso

Segunda. Diz a terceira:

— Sei onde piso.

Noite fechada, propícia

À ideia, ao plano que as leva...

Nem de uma brisa a carícia!

Silêncio e treva!

De pronto um grilo de um canto:

— Onde ides, minhas amigas?

E um calafrio de espanto

Nas três formigas.

Ah! mas um rosto aparece

Em cima, numa janela...

— É ela? — O rosto parece

De dona Estela!

Tri... tri... entre as asas geme

O grilo. E pernalta aranha

Na trama de ouro em que treme

Quase o apanha.

E agora se atemorizam

As três. É tudo embaraços!

E a cal somente que pisam

Lhes ouve os passos.

Em uma após outra se encaram

Tremendo; ora hesitam, ora

Conversam baixinho, param

Por mais de uma hora.

Súbito como fracassa

O mura a um trovão, que as gela...

Arriara-se a vidraça

De dona Estela.

— Melhor é voltarmos, logo

Uma aconselha, em segredo;

Outra abre os olhos de fogo,

E é toda medo.

Terceira chora, encolhido:

— Tão alto! já estou cansada!

Meu Deus, certamente a vida

Não vale nada.

Mas sobem, que é necessário

Subir. Jesus, o benquisto,

Subiu também seu calvário,

E ele era o Cristo!

— Janela, enfim! num alento

Exclama a que mais anela

Primeira ser no aposento

De dona Estela.

— Por esta frincha... — Por esta...

— Melhor... — Entremos. — Avante!

E uma olha, analisa a fresta,

E rompe adiante.

Seguem-na as duas. Estreito

É o trilho. Vão. Tal num berro

Vai por um túnel direito

Um trem de ferro.

Ei-las estão da outra banda,

Na alcova. Espreitam em roda

À luz da lâmpada, branda,

A alcova toda.

E veem, por entre os adornos

De um leito vistoso, a bela

Fronte, o perfil, os contornos

De dona Estela.

Azul-celeste à parede

Sobre o papel que a reveste...

É toda a câmara, vede:

Azul-celeste!

Tenda de neve! — a cortina;

Dous bustos, um ramilhete

Além; descalça botina

Sobre o tapete.

Num quadro de luzidio

Ébano, um vulto guerreiro:

Perfil severo e sombrio

De cavaleiro

De Espanha; olhar atrevido,

Espada à cinta, e escarcela...

— É com certeza o marido

De dona Estela.

E o espelho... como cintila!

Parece de um lago a nua

Face, que leve se anila

Com a luz da lua.

No toucador como esparso

Há tanta cousa! um diadema,

Alvas penugens de garça...

Todo um poema!

E um vaso com a mais festiva

Das rosas! — Meu Deus, acaso

Há rosa também que viva

Dentro de um vaso?!

E à flor o assalto preparam

As três formigas... Ai! dela,

A flor, que os lábios beijaram

De dona Estela!

Descem o muro. Profundo

Silêncio. Tudo parece

A miniatura de um mundo

Que se amortece.

Sobem aos móveis. No teto

Nem sombra de asa perdida

Do mais pequenino inseto...

Tudo sem vida!

Chegam à rosa. Que altivo

Seio encarnado! Que encanto

Nesse encarnado lascivo

Que tem no manto!

E uma se adiante animosa,

Mais esta após, mais aquela...

Ai! rosa, querida rosa

De dona Estela!

Correm-lhe as pétalas. Uma

Desce-lhe ao pólen, que toma;

De boca aos pés se perfuma

Com seu aroma.

Enchem-se de ouro, que é de ouro

Su’alma. Sedas desatam

Que a prendem. Vida, tesouro,

Tudo arrebatam.

E de assombrosa riqueza

Vendo-se alfim carregadas,

E mais do que da árdua empresa

Recompensadas,

Lá vão a fugir, com o jeito

Do que em roubar se desvela...

Mas nisto estremece o leito

De dona Estela.

É dia. A dona da alcova

Já está de pé: e, ansiosa,

Por que mau sonho remova,

Vai ver a rosa.

Toma-a do vaso às mãozinhas;

Mas ao beijá-la, a senhora

Descobre as três formiguinhas,

e... sopra-as fora.

— Ah! que tufão repentino!

As três, no ar, na ansiedade

Da queda, exclamam sem tino...

— Que tempestade!

Longe, bem longe, erradias,

Caíram. Nem se mexeram

De espanto quase dous dias...

Depois morreram.

Eis das formigas o caso.

A rosa... fale por ela

Outra que é nova no vaso

De dona Estela.

 

III

MÁRMORE

Deixa-me extravagar, serena estátua.

És minha.

O escultor te depôs nos braços meus, rainha

De mármor; quando um dia o Paros trabalhava,

Eu no lavor da pedra o seu cinzel guiava,

Eu era o sonho, eu era a ideia, ele esculpia

O que eu d’alma arrancava, o muito que eu sentia

De amor, de luta e febre e de estos de loucura

E paixão. Fez-se a estátua. Em finíssima alvura

O seio ergueu-se, o colo, a fronte, o rosto. E eu, mudo

E extático, osculei-lhe a fronte, o colo, tudo!

A estátua é minha! a estátua entre os meus braços prendo!

Beijo-a, com o bafo a aqueço, as pálpebras lhe acendo

Com o meu olhar; ao peito as veias rasgo, e cheias

Torno-as de sangue meu, tomado às minhas veias;

E ela vive, ela anseia e treme! ela palpita!

Move os olhos de pedra! a mão levanta e agita,

E acorda! acorda e vê-me... E ao ver-me, oh! desventura!

Ei-la pedra outra vez, insensível e dura!

Ei-la estátua outra vez, silenciosa e fria!

Insano extravagar! Insana fantasia!

 

IV

A UM POETA

Oh! pasmo! oh! portento! oh! nunca visto caso!

A. Diniz

Conta um Hino pagão que certa vez o errante

Poliônimo deus, o efebo louro, o amado

Das Évias, — Baco, à estrema

Estando de um promontório, o manto desdobrado

Ao ombro, o tirso à mão, e à testa a parra ondeante

Posta a modo de estema;

Foi do Tirreno mar por uns piratas pronto

Arrebatado. O mar a embarcação ligeira

Corta. Bojada a vela

Vai com o vento. E atrás fica a luminosa esteira,

A agua fica a espumar; e, entre os raios sem conto,

O sol faiscando n’ela.

E aos d’aquela companha, olhando-os, um pirata

Diz: “É um filho de rei, por certo, este menino;

Eia, ao largo rememos!

Da Ásia aos haréns vendido, é força, é seu destino,

Será, e o ouro que der e as pérolas e a prata

Juntos repartiremos.”

Mas de súbito o deus, que os ouve, encantamento

Lança em tudo, e os perturba. O grande mastro a prumo

É um tronco; anda enlaçada

A hera n’ele. Um dragão lá voa em cima. O rumo

Perde a nau. Se emaranha a douda vela ao vento,

E é vinha empampanada.

São bacelos que em flor das mãos dos remadores

Rebentam, como ao sol, os remos. Cintilantes

Rácimos já palpitam . . .

Zumbem, como no Himeto, as abelhas. Brilhantes,

Tintos bagos no ar de pavonaças cores

Apinhados se agitam.

E da quilha da nau, como em convívio estranho,

Jorra o vinho no mar. São vinho as águas. Toda

Face é purpura. As vagas

Têm do licor de Chipre os róseos tons; em roda

Vinho fervem em flor, e vão de banho em banho,

Corar longe outras plagas.

E um leão aparece e ruge horrendamente

À popa; e, aberta a fauce imane, imensa e ruda,

Um urso. E a cordoalha

Ringe e torce-se toda e silva e se transmuda

Em hidras; e, derredor à boquiaberta gente

Do alto roja e se espalha.

Depois vegeta o mar, é todo verde. Extensa

Nava, campos sem fim distendem-se ondulando...

E de árvores frondosas

À sombra vêm-se agora as ovelhas pastando...

E a espuma, que era vinho, erra ao vento, suspensa,

Em pétalas de rosas.

Poeta, és como esse herói, cujo prodígio narra

O Hino Homérico. À voz de tua musa um mundo

Novo surge, amanhece

Outro sol; e da vida o imenso mar profundo,

Como aos olhos do deus que o mirto cinge e a parra,

Verde e ameno aparece.

Anjos, sombras, visões, que em tua mente ideias

D’ali rompem: d’ali, como às antigas aras,

Aos antigos altares,

A báquica falange avança e canta, e as claras

Formas nuas mostrando, ao passo das coreias,

Louros dão-te aos milhares.

 

V

CANÇÃO DAS LÁGRIMAS

A André Rangel

Como o excesso de um rio,

Que se espraia e derrama:

Amor, em quem confio,

Do coração que nunca está vazio

Fora em água sobeja e em fogo, em chama.

Sou como o campo em hora

De enchente: Amor me alaga,

E teu nome, Senhora,

Senhora minha, Amor que te namora

Está dizendo, a brincar de vaga em vaga.

Olha-me os olhos, fita

A agua d’eles, que escorre;

Amor os move e agita,

Uma lágrima cai, outra palpita,

Esta grita, esta canta, aquela morre.

Amor todas criado

Tem-m’as n’alma, Senhora;

Estila-as meu cuidado,

E do lago de lágrimas formado

Algumas sopra pelos olhos fora.

Escrevi que me havia

Como o campo na enchente:

A enchente, todavia,

Se se entorna no campo é sempre fria,

E a de Amor que me lava é fria e ardente.

Ardente, — é que encarcero

Desejo que me mata;

E sendo quanto quero

Impossível, me aumenta o desespero

De querê-lo com o ardor que me arrebata.

Assim, de meu desejo

O imperecível fogo,

Nas lágrimas sobejo,

D’entre as lágrimas sai quando te vejo;

E eis água e chama n’um contínuo jogo.

E tão contínuo e em tanto

Movimento, Senhora,

Que a vista minha, em quanto

Dura o jogo, se acende de meu pranto,

Qual de raios e lágrimas a aurora.

Tal Amor por castigo

Aos olhos me tem posto;

E o mais que usa comigo,

Se o não diz de olhos meus, não sei se o digo

Se contigo me vejo rosto a rosto.

Águas, chamas, tu queiras

Senhora, é tudo extinto:

Seca um beijo as primeiras,

Um sorriso me apaga as derradeiras,

Me apagando o calor que com elas sinto.

Amor nem mais te pede...

Urge! que dor mais alta:

Morrer de frio e sede

Quando fogo se tem que a vista impede,

E água tanta que fora aos olhos salta! ...

 

VI

OS AMORES DA ESTRELA

A Capistrano de Abreu

Fragmento do

Sábio inglês

Magoada, Musa, o olhar desconsolado,

Vens d’esse canto estéril de poesia,

Por mim forçosamente perpetrado.

N’ele a fímbria do céu não viste; a fria

Ciência, o frio estudo, o amado aspecto

D’alva acendendo as púrpuras do dia,

Roubou-te! E enquanto em peregrino afeto,

A ave cantava, o mar, o espaço, a terra,

Tu forjavas científico terceto.

Magoada Musa, as pálpebras descerra

Um pouco e a luz do sol sedenta bebe,

Longe do Sábio, longe da Inglaterra.

Meiga, em teu colo agora me recebe,

E, da áurea lira as cordas afinando,

Trava-a e suspende-a nos teus braços de Hebe:

Pois que o leitor, piedoso, descansando

Aqui, de já prostrado, te consente

Diversa cantes, e, a cantar, o bando

Ora das aves sigas, molemente,

Ora das soltas borboletas, ora

Das flechas de ouro do carcás do Oriente.

E enquanto, Musa, a vista se demora

N’esta manhã e em feria estás, enquanto

Punge os frisões, no etéreo carro, a Aurora,

Conta, o metro escandindo à voz do canto,

Como a estrela de prata, a imaculada

Estrela d’alva, a perola do manto

Celeste, à rósea luz da madrugada,

Na imensa altura estremeceu nervosa,

Como cândida noiva despertada.

Já, sob o palio azul, a tenebrosa

Noite as estrelas nítidas e belas

Prendera ao seio, como mãe piedosa.

De umas as brancas lúcidas capelas,

De outras o manto, as clâmides de linho,

Viam-se à luz da lua. Estas e aquelas,

Todas no lácteo sideral caminho

Dormiam, como um bando alvinitente

De aves, à sombra, entre os frouxeis de um ninho.

Vésper, porém, chorava: ela somente

De pé, cismando, o níveo olhar, mais níveo

Que a prata, abria na amplidão dormente.

Mirava todo o célico declívio,

Como buscando alguém que desejava,

Qual se deseja alguém que é doce alívio.

Só, no espaço desperta, como a escrava

Romana, ao pé do leito da senhora

Velando à noite, a mísera velava.

Um deus de formas válidas adora:

São seus cabelos ouro puro, o peito

Veste a armadura de cristal da aurora.

Quando ele sai das púrpuras do leito,

O arco na mão, parece de diamantes

E rosados rubins seu rosto feito.

Dera por vê-lo agora as cintilantes

Lágrimas todas, límpido tesouro,

Que tem nas longas pálpebras brilhantes...

Mas soa de repente um grande coro

Pelas cavas abobadas. . . e logo

Assoma ao longe um capacete de ouro.

O deus ouviu-lhe o suplicante rogo,

Ei-lo que vem! seu plaustro os ares corta...

Ouve o relincho aos seus corcéis de fogo...

Já do roxo Levante abriu-se a porta...

E ao ver-lhe o vulto e as chamas da armadura,

Fria, trêmula, muda, e quase morta,

Vésper desmaia na infinita altura.

 

VII

HISTÓRIA DE UM CORAÇÃO

                                  A J. de Moraes Silva

Coração humano, enfim...

A.   VIEIRA — Sermões

I

Dizendo irei de um coração que errara

O caminho na extensa e aborrecida

               Viagem desta vida.

E foi que o rumo das Paixões tomara,

Cego de si, sem ver outro caminho,

               O mísero e mesquinho.

Meio mundo correu como um faminto,

Sem contento. Dos Vícios como um cego

               Alargou-se no pego.

Em vez do néctar puro, o amargo absinto

A ilusão muita vez, que o tem por presa,

               Lhe escanceia na mesa.

Como uma grande aranha de ouro, o Engano

Lhe urde a teia e prepara. A cada passo

               Topa um novo embaraço.

Cruza a estrada do Mal de dano em dano;

Treme, tropeça, cai... não chora, entanto,

               Não chora: não tem pranto.

Endurou-se com as pedras; é insensível

Assim. Do amor a derradeira flama

               Já não tem. Já não ama.

Já não sente. E lá vai na senda horrível,

Não com a vida, mas cuida a cada instante

               Ir achá-la adiante.

II

E adiante segue. A vida, entanto, passa

Por ele, e a desconhece. Ora é uma aldeia,

Ora é a cidade; e a Natureza e os rios

Largos, e o mar, cujo horizonte abraça

Embalde a vista, e o sol que sobre a areia

Darda, ou penetra os palmeirais sombrios;

E a ave, e a sombra das flóridas ramagens,

E o bosque, e os ventos, e o bufido, o berro

Da fera, atroando as solidões selvagens...

Tudo por ele passa em vão, não vibra!

Não sente! É como lâmina de ferro:

Traz o óxido negro em cada fibra.

III

        Gasto assim, houve um dia

Em que esse pobre coração, viajando,

Foi ter à estranha região sombria.

        Não sabia dês quando,

Nem donde aquele sítio conhecia,

E foi-l’o indiferente interrogando.

       Qualquer cousa lhe dava

Contudo ideia do lugar tristonho

Em que ora em passo mal seguro entrava;

       Sim desse ermo medonho

Bem ao íntimo acaso lhe falava

Dúbia notícia ou desmanchando sonho...

     

       E o sítio, escura pluma

Dada a pavores descrever pudera

Somente, — aquelas árvores na bruma

       Chorando, aquela esfera

Turva de nuvens, em que vez nenhuma

Abre o quente esplendor da primavera.

IV

Foi por ali consigo extravagando

O coração; e, quando na espessura,

Viu que, os ramos sem folhas agitando,

Estava uma árvore anosa e pensativa

A olhá-lo em frente; a secular figura

Remexia-se toda horrenda e viva.

E logo ao longe a espuma, que em mortalha

Velava o rio, se espedaça e deste

A água represa há séculos se espalha.

E uma onda fala: — “Amigo, a que distância

Estavas, que hoje somente atrás volveste

Ao rio azul da sonorosa infância?”

Caminha, entanto, indiferente e frio

O coração, que o mundo e humano trato

Traz ouco e torpe e inanido e vazio.

Tudo que ouve em redor de acento a acento

Ecos são que o não ferem, tanto o ingrato

Pôs aldrabas no ouvido ao sentimento.

Contudo, estando ao cabo extremo dessa

Região, notou com certo pasmo que ela

Se ia fazendo mais tristonha e espessa.

Cala em tudo ar de morte, e com o sonoro

Vento, uns ciprestes dão por toda aquela

Parte um comprido e dilatado choro.

V

Deteve-se. O mistério

Inquire. É todo susto.

Em torno o cemitério

Olha, interroga, pasma...

Eis que de cada arbusto

Acena-lhe um fantasma.

— Olha! Esta amada estância

Pisa mais leve... Atende!

As cinzas sou da infância!

— Olha! na escuridade

Eu broto, flor que pende,

Eu, última saudade!

— Estás a pisar em cima

Daquela que deixaste

E que inda te ama e estima! ...

— Para, coração triste!

Porque me abandonaste

E a meu amor fugiste!

— Eu sou o amor piedoso,

A mãe eu sou divina;

Meu rosto doloroso

De lágrimas encheste.

Anda, ajoelha-te, inclina,

E abraça-me o cipreste.

VI

Aqui não pôde mais de dolorido

O coração; caiu por terra, ao passo

Que exclamava de lágrimas ungido:

“Morto ao mundo me vejo, mas que importa,

Se enfim vos acha e beijo e voz abraço,

Restos queridos de uma idade morta!”

 

VIII

A AGONIA DO HERÓI

A José de Sousa Monteiro

O astro veneno da frecha forçosamente devia matar Hércules, depois de haver atravessado a ferida mortal do Centauro. É o que penso.

SÓFOCLES

I

Jaz por terra o poder do rei de Ecália, Eurítus,

Celebra o vencedor na úmida Eubeia os ritos

Da vitória, e, exultando, em próspero retorno,

Volte à Traquina.

                          Longo, ebrifestivo, em torno

Do palácio, onde a sós a eneia moça meses

Doze curtiu da ausência as mágoas e os revezes,

Ruge o aplauso. Estafando os céleres, provados

Corcéis frígios que o chão percutem com os ferrados

Velocíssimos pés, nuvens de pó frechando,

Por entre aclamações, chegam de quando em quando

Os arautos. Sem conto, em curvas de que pende

Victriz louro e heliocriso, arcos, febril, suspende

A turba; às aras voa. Arde, fumega em pira

Sacra o incenso que Zeus na rude oblata aspira.

Doces tangeres, sons de frautas noite e dia

Se ouvem. Concita o povo às lutas, à alegria

Vinho estreme, ao tinir dos kilix cristalinos.

Evoé! Peian! de Heracle o nome altiva os hinos.

Tudo é festa, rumor...

                                    Muda, entretanto, aflita,

Absorta, absorto o olhar, longe dos mais medita

Dejanira. A razão lhe assalta e cega e ensombra

Como improviso horror, atra improvisa sombra.

Interno, obscuro mal traça-a, castiga-a, ignoto;

Quis fugi-lo, não pôde. Ensaia a prece, o voto...

Mal balbutiu-lhe a boca o voto, a prece... Anseia

Ora, e soluça e treme, ora a inflamada teia

Sente o Ciúme brandir lhe afogueando a mente,

E olhos vira infernais cheios de um lume ardente.

O euge em vão, o eco em vão, em vão de fora a festa

Popular lhe feriu ruidosa o ouvido. Infesta

À alma que assim lhe jaz torva, abafada, oculta,

Livre, em ludos, em folga a alma do povo exulta.

Só, porque sofra só, portas a dentro no ermo

Aposento encerrou-se, e ao peito enfermo o enfermo

Coração praz-lhe ouvir precipite... — secreta

Mágoa se lhe embebeu, como acravada seta,

Na roxa carne; pulsa, e do íntimo, ferido,

Sai-lhe, envolto com o sangue, um súbito gemido...

— A causa aí está do mal, palpa-a, conhece-a: é ela,

Outra não, a formosa além das mais, a bela

Escrava, — recém-colhida, entre os de Ecália inglória

Rotos muros, flor pura e prêmio da vitória.

Vira a mísera entrar seus régios paços, — presa

Alta do hercúleo braço — Iola, gentil princesa,

Filha de Eubeia, irmã de Ífitos, apolínia

Prole, e a alma ínscia então nem visos de ignomínia

Crera da amada parte. Eis repentino arauto

Chega, e na incauta voz tudo revela incauto:

Iola é amante de Herói...

                                    Surdo ao princípio, interno

Fere-a o Ciúme. Esforçou-se. Àquela parte o Inferno

Sopra, àquela remete, as unhas vibra; agita,

Rompe, lacera tudo, e uiva, e soluça, e grita.

Longe da noite o olhar de lágrimas, o seio

De gemidos, a sós, teve arquejante e cheio

A Rainha. Afinal, quando na estrada antiga

Do céu Febo surgiu com alípede quadriga,

E os cerros da Tessália eoa luz purpúrea

C’roava, estreceu-se em parte ao zelo infando a fúria.

Filtro a curas de amor lembra que à derradeira

Hora Nesso lhe dera, um dia, da certeira

Frecha heráclea prostrado em meio ao largo Eveno.

Nem supôs que o dragão passara-lhe veneno

Nesse amavio que era um sangue negro, o sangue

Que da aberta ferida, estrebuchante, exangue,

Vertera o monstro, — sangue horrível, que em mistura,

Pois nele se embebera a frecha ervada e dura,

Tinha o tóxico vil da hidra de Lerna, imensa.

Guardara-o. Pronta vai buscá-lo. Sem detença,

O Amor, que vê fugir-lhe e outrem procura, ignara

Aplica-o. Brônzeo cofre abre; formosa e clara

Túnica dele às mãos toma, distende-a, e em cima

Deita-lhe o imundo cruor que de vermelho a anima.

Do coalho peçonhento abeberada a trama,

Trata a veste enviar. Lichas, o arauto, chama:

— “Lichas, num pronto, já, sem mais demora, a toda

Brida, ou já num frisão ou já sobre eneia roda

Rápido voa, e em mãos põe de Hércules valente

Este mimo...” — Partiu precipitadamente

O arauto.     

                      Resserena o espírito da jovem

Rainha. Em brando fio as lágrimas que chovem

De seus olhos, estão, por sobre a face e o níveo

Seio, d’alma amarrando o desafogo e alívio...

Infeliz, desafogo e alívio passageiros!

Em breve, a todo o dar das rédeas, mensageiros

Rasgarão a planície, e hão de em crescente espanto

Contar-te o duro caso! Espedaçado o manto,

Hilo verás em breve, Hilo que se consome,

De ímpia mãe profaçar-te e renegar teu nome;

Enquanto em roucos sons, rouco ulular, ferozes

Roucos gritos sem fim coalham de estranhas vozes

O ar e abalado treme o Olimpo excelso, treme

A Terra, o eco se endouda, o Eta nas fragas geme:

E, hirto o cabelo, o olhar torvo expedindo assombros,

Erriçadas as mãos rasgando a carne aos ombros,

Roto, iracundo, atroz, rudo, medonho, horrível,

O alto, o ínclito Herói, o intrépido, o invencível,

A quem se humilha o Averno e Tanatos não doma,

Longe, rugindo ameaça e cóleras, assoma.

II

Lá vem Hércules! ouve: é a alma do Herói tebano

Que se queixa. Ouve mais: este gemente Oceano

Que se espraia no ar e a teus ouvidos chega,

Parte do homem melhor que houve na pátria grega,

Vem do exterminador de monstros, do inimigo

Dos maus, do protetor, do pronto amparo e abrigo

Dos fracos, — do amoroso espírito que um dia

Desce a buscar Teseu na região sombria

De Hades, — do compassivo, em quem do mar lançado

Morto à praia, uma vez, Ícaro abandonado

Achou mau que lhe erguesse um túmulo; do bravo

Que os Centauros estruí; do bom que odeia o pravo,

Do útil que a Peste, o Roubo e os Crimes extermina,

E a arte enfim de ser grande e de ser forte ensina.

Lá vem Hércules! Ouve: a Grécia inteira passa

Nestes gritos de dor, geme a um só tempo a raça

Dos valentes, o povo a que ele as ferropeias

Tanta vez sacudiu, quebrando-lhe as cadeias.

Do alto Olimpo às rechãs mais baixas, da montanha

Onde se deita o sol à água que inunda e banha

A planície, onde o corpo as Náiades a meio

Mostram, mal resguardando o alabastrino seio:

Tudo é pranto, e acompanha esse clamor dorido

Que do cabo cênio baixou de há muito e o ouvido

Rasga aos vales... Agora ei-lo mais perto soa!

Como em torno de Creta, enquanto aqui revoa

E aos pios foge e alcíon, longe com o vento a rastros

Quase que vão, sustendo o doudo linho, os mastros, -

Sobe o mar e, altivado, os céus tocando, de onda

Em onda, cai com um retumbo e horrendamente estronda;

Assim, bravo e ululante, o peito assoberbado

De ira, prorrompe o Herói num formidando brado.

— “Deuses! — minaz aspeito e horrível ameaço,

Deuses! — bramiu convulso e brande a clava, o braço

Hirto — Deuses, pagais-me assim por toda a parte

Servir-vos, levantando altares que dess’arte

Falem de vós!? ...” — E aferrada aos ombros convulsivos

A túnica infernal sentindo que lhe apua

A alma: “Enliço foi teu, perversidade é tua,

Não de outrem, Dejanira, este, o mais alto, o estremo

Dos suplícios! vê tu como me estorço e gemo! ...

Que ânsia, que interno horror, dentro no mais secreto

Da carne, em prol do Inferno este veneno abjeto

Pôs-me, que o sangue meu colérico o rebate

Dá do assalto a raivar, e às têmporas me bate! ...

Onde, em que dente vil de hidra do Érebo houveste

Em que serpe ou dragão de rotas fauces este

Vírus que assim me endouda e sorve e me devora

A alma?! ... Que Erínia averna em negro instante de hora

Negra mandaste às mãos tramar a veste odienta

Que me bebe a existência?! Ah! recrudesce, aumenta

O suplício! Ora é como um jorro de sulfúrea

Lava a ferver-me dentro, a enviperar-me a fúria...

Hilo...”

[...][1]

Súbito, àquela banda o ar se ilumina, estranha

Luz se abriu, cintilando, às cismas da montanha;

Fraca ao princípio, agora aumenta, sobe, ascende

Em línguas de ouro, e ao céu fúmea coluna prende...

É a fogueira. Crepita, arde, fulgura em torno

Rogal chama, esbraseia em fulvas àscuas o orno

Rijo, o rijo carvalho; e do votado aos Numes

Holocausto, ora à carne os ríspidos acumes

Domando, traz de si deixando a Terra e humana

Vida, à vida eternal dos deuses soberana

Voando na viva luz com que atravessa a treva,

Do Eta à glória do Olimpo a alma do Herói se eleva.



 

[1] . Página ilegível no exemplar consultado.