LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sonetos e poemas, Alberto de Oliveira
Texto-fonte:
Alberto de Oliveira: Sonetos e Poemas,
Imprensa de Moreira Maximino & C., 1885.
ÍNDICE
A minha mãe
A Luiz Delfino
“La végétation déploie ses formes les plus majestueuses sous les feux brûlants qui rayonnent du ciel des tropiques...
...Un seul arbre entrelace de paullinia, de bignonia et de dendrobrium, forme un groupe de plantes qui, séparées les unes des autres, suffiraient à couvrir un espace considérable de terrain.
A. HUMBOLDT — Tableaux de la nature
I
Entre verdes festões e entrelaçadas fitas
De mil vários cipós de espiras infinitas,
Mil orquídeas em flor, mil flores, — sobranceira,
Forte, ereta, na altura a basta fronde abrindo,
C’roada do ouro do sol, aos ventos sacudindo
A gloriosa cimeira;
A árvore, abrigo e pouso à águia real, sorria.
Dez léguas em redor o bosque inteiro via,
E os campos longe, e o val, e os montes longe, tudo;
Nuvens cortando o ar, e pássaros cortando
As nuvens, e alto o sol, na alta esfera radiando,
Como fulgente escudo.
Ampliondeante a rainha o manto seu na altura
Abria. Coube ao tempo a rígida armadura
Vestir-lhe. A intacta fronte, era um cocar guerreiro
Que a cingia, e o tufão que o diga se era forte,
Quando o intentou dobrar; do proceloso Norte
Diga-o o tropel inteiro.
Passaram sem feri-la, esbravejando às soltas,
A chuva, o temporal; e das nuvens revoltas
Alumiou-a, à luz do raio, a tempestade;
Mas, chegando a manhã, lá estava, altiva e bela,
Incólume, de pé, zombando da procela,
Na ária da liberdade.
Então, na sua veleta, em seu maior fastígio,
Dos bravos corvos do alto e ouvia-se em remígio;
Grandes águias a luz cruzando, tenebrosas;
Enquanto, de eco em eco, um berro imenso atroava
A selva, e, ouvindo-o, o touro, híspido o pelo, arruava
Nas planícies umbrosas.
E que ubérrimo seio a toda vida aberto
Era o seu! Quanto amor à sombra do deserto,
Quanto! quando, o raizame ao solo preso, as cimas
Dava esta árvore à luz, e o orvalho brando, ao vento,
Via-se a gotejar, de momento em momento,
Das ramagens opimas!
Giganta e mãe, alteando os ombros, quanta vida
No ar não fez florescer dos flancos seus nascida!
Quando a verçuda copa às virações estranhas,
Dava ao sol, respirando o mundo ambiente, a quanto
Ser não nutriu, fecunda, ou preso no seu manto
Ou nas suas entranhas!
Ia-lhe caule acima, em longos cirros, toda
A hera da floresta, os vegetais em roda
Deixando, a ver mais alto o céu, mais livre agora;
E o líquen verde, o musgo, o feto, as capilárias,
E as ginandrias gentis, epífitas, e as várias
Bromélias cor da aurora.
Por seus braços afora, em voltas de serpentes,
Grateando, a suspender as maranhas virentes,
As baunilhas em flor alastravam; se abriam
Os ciclantos, e ao lado, acompanhando os liames
Das bignônias, ao sol, em trêmulos enxames,
As abelhas zumbiam.
Filiforme, oscilando, ao píncaro suspensa,
A trama dos cipós se desatava imensa;
Em seu colo, não raro, a cobra a fulva escama,
Com os estos do verão, fez esmaiar, — enquanto
Tardo pássaro estivo, em suspiroso canto,
Voava de rama em rama.
Não raro, em bando inquieto, as variegadas plumas
Viram aves, talvez, ali crescer. E algumas,
Talvez, entre a expansão tricótoma e sadia
Desses ramos, o ninho altivo penduraram,
E, primeiras da selva, as asas levantaram
Para saudar o dia.
Mais que um seio de amor, um teto de piedade
Foi est’árvore. Ao vento, à chuva, à tempestade
Fugindo, brenha a brenha, e de terror transido,
Não raro o tigre em pouso aqui sorriu, seguro,
Enquanto atroava o raio, em firmamento escuro,
O espaço enoitecido.
Não raro o sol soturno a corça e o leão transpondo,
Quando o incêndio estouraz ao longe em rouco estrondo,
Inflado em raiva, a um sopro, aliava as fúrias, vieram;
E, afuzilando o olhar, o pelo hirsuto, à míngua
D’água, o orvalho estival assado aqui, com a língua
Nestas folhas beberam.
Não raro! E quanta vez de extinta raça, à aragem
Matinal, não se ouviu do rito a voz selvagem
Saudando o sol aqui, sob esta arcada! E, à lua,
À noite, quanta vez, na aura vernal trazido,
Não se veio perder de estranha dança o ruído
Nesta folhagem nua!
E era grande! e era bela est’árvore assombrosa!
Tudo a amava, em redor, e, altiva, em luz gloriosa,
Lançava aos céus robusta, a sua fronte, em festa;
E um imenso canto ecoava aos pés da soberana...
Mas... Como a palpitar do cacto agreste à liana,
Não tremeu a floresta!
II
...Entrara a selva um dia um homem. Sopesava
Tersa afiado mangil. Em torno a vista crava,
A árvore vê. Levanta o truculento olhar.
Toma-lhe a altura enorme às ramas, a espessura
Ao tronco. E o ferro, audaz, de sólida armadura,
Faz sinistro vibrar.
Mas nem sequer um ramo estremeceu. Violento
De novo no ar volteia o tétrico instrumento,
E soa o golpe. Ainda um ramo nem sequer
Estremeceu. Resiste a casca espessa, o escudo
Da corcha. P’ra fendê-la, ao braço heroico e rudo
Mais esforço é mister.
Pois novo esforço. Gira a arma assassina ao pulso
E lá vai, lá bateu, que é força entrar. Convulso
O homem de novo às mãos sacode-a. Inda outra vez
Sacode-a. O aceiro brilha, e do cortante gume
A fúria estona o tronco. E há, talvez, um queixume
No madeiro, talvez...
Mais outro esforço. E no ar, como mandrão guerreiro,
Zune o ferro, e feriu o precípite, certeiro:
A casca espicaçou-se em lâminas sutis...
Correu pronto tremor o caule informe, erguido,
E, subterrâneo ouviu-se o eco de um gemido
Na alastrada raiz.
Outro golpe, outro abalo. Em finas lascas voa
De novo a casca, e da arma ao rudo acento ecoa
A solidão. Pergunta espavorida a flor
À ave: — Que voz é esta? — E o tigre, a furna entrando:
— De onde parte este grito? E os rufos leões, parando:
— Quem faz este rumor?
E é da ruína estupenda o lúgubre alarido
De montanha em montanha e bosque em bosque ouvido.
Tudo, da grimpa excelsa ou da planura, o Val
E o rio, o cedro e a rocha, o enho e a palmeira, pondo
O olhar nos céus, escuta aquele excídio hediondo
E crime sem igual!
A grande árvore cai! A ramaria forte
Treme em cima, dançando uma dança de morte.
Rompeu-lhe o alburno agora e vai-lhe ao coração
A secure. Uma a uma as fibras rangem; fala,
Ringe, arqueja o madeiro, e, pouco a pouco, estala,
À mortal vibração.
A grande árvore cai! Já se lhe inclina e verga
A fronte, e aos pés, a gruta, — o seu sepulcro, enxerga!
Astros, sol, amplidão, esferas de ouro, céus,
Nuvens, sopros do mar, e pássaros da aurora:
A grande árvore cai! mandai-lhe em prato agora
O vosso último adeus!
A grande árvore cai! Como entre o firmamento
E o mar alto, o viajar, um grande mastro ao vento
Oscila: oscila assim seu corpo imenso no ar.
Elos, cirros, cipós, que o segurais, deixai-o!
Rompeu-se-lhe a medula, e já rechina o raio...
Não o ouvis estalar?!
A grande árvore cai! Do tronco seu robusto
Não te afastes na queda, expira com ela, arbusto
Segui-a ao sono extremo, ó corvos, e águias reses!
Morrei com ela! Seu ventre o ferro cruel retalha...
Cosei-lhe em flor e em luz esplêndida mortalha,
Florestas tropicais!
E caiu! rudemente e com ela rodaram
Com ela cedros na gruta, e os montes estrondearam...
Rasgou-se ao bosque o teto, a túnica se abriu;
E a pomba o ninho, a boa a preza, o fruto erguido
A ave, tudo deixou de pronto, espavorido,
Quando a árvore caiu!
E da ruína estupenda o lúgubre alarido
Foi de ermo em ermo e foi de bosque em bosque ouvido;
Tudo, da grimpa excelsa ou da planura, o val
E o rio, o cedro e a rocha, o enho e a palmeira, pondo
O olhar nos céus, tremeu àquele excídio hediondo
E crime sem igual!
A Olavo Bilac
Admirable compensation!... En plongeant si bas dans la vie, je croyais y rencontrer les fatalités physiques. Et j’y trouve la justice, l’immortalité, l’ésperance.
MICHELET — L’insecte
I
Ser lagarta, em verdade,
É uma cousa bem triste!
O asco provoca, enoja... Ah! só por crueldade,
Ou brinco, ou raiva ultriz de alguma divindade
Este animal existe.
Zeus, que no Olimpo excele,
Toma de um touro, em dia,
A forma, e arrasta Europa, e a longe praia a impele:
Mas fosse Europa flor, e da lagarta a pele
Zeus acaso enfiaria?
Não! de escrúpulos presa,
Ao vê-lo assim, fugira
Ao seu lesmoso lábio o agenória princesa;
E, alvo lírio real, a estremecer, surpresa,
Toda se retraíra.
E quem há que se agrade
De um entre assim? resiste
Quem ao vê-lo? e se o viu, quem é que um piedade
De animal tão ruim? Ser lagarta, em verdade,
É uma cousa bem triste.
II
De uma eu sei, entretanto,
Que cheguei a estimar
Por ser tão desgraçada!
Tive-a hospedada a um canto
Do pequeno jardim;
Era toda riscada
De um traço cor de mar
E um traço carmesim.
III
Dava-lhe a custo e mal a sombra pequenina
De galhinho sem vida um pé de casuarina.
Batia-lhe de rijo o sol no dorso, forte,
Vergastava-a de rijo o vendaval do Norte;
Subia acima o ramo, abaixo vinha, à vasca
Do vento. E o pobre ser, segura sempre à casca,
Lesmava-a toda. Enfim, mais forte a aragem brinca
À noite, assopra, zune, e o débil galho estrinca,
Estala, e entre os mais, andando à roda, o aparta.
Veio com ele ao chão a mísera lagarta.
IV
E afirmo-o, podeis crê-lo, eu vi-o! em toda aquela
Selvazinha gentil de arbustos pequeninos,
Onde o clerão sussurra e o grilo tagarela,
E azoinam da cigarra os tiples argentinos;
Não houve um seio só de acanto ou margarida
Que se quisesse abrir, piedoso, ao sonolento
Animal, que à procura entre eles foi de vida,
E entre eles foi cair porque o mandara vento.
Torceu-se então na sombra ao ser objeto a imunda
Boca, e enquanto ao redor é tudo em paz dormido
O sítio, um casto aroma a noite incensa e inunda,
Estas vozes lhe ouvi, à feição de um gemido:
V
“Cansei-me, em vão, pedindo! Às rosas de ostro embalde
Falei e aos girassóis de grande c’roa jalde:
Não quiseram me ouvir girassóis e rosais.
Beijei suplicemente os pés dos vegetais;
Ninguém me quis, ninguém! Passei, como mendiga,
Implorando a chorar um pouco e estância amiga...
Tudo em vão, porque a tudo o nojo inspiro, o horror!
Treme a folha ao sentir-me e treme ao ver-me a flor.
E aqui estou, fria, exposta ao vento enorme,
Sozinha, e sem dormir, e vendo o céu que dorme!
Noite, oh! sê testemunha, eterno e mudo espião,
De minha dor sem nome e desta ingratidão!”
VI
Disse e pensou na morte. E com o mortal excídio
Pensou tudo acabar... E pensou no suicídio.
Ia-se a pouco e pouco adelgaçando o véu
Noturno. A estrela d’alva iluminava o céu.
Fez o túmulo em vida e sepultou-se nele.
Ides ver que a magoava a sua própria pele.
VII
Claro rompia o sol no céu do Oriente. À grande
Natureza, que em tudo a sua força expande,
Pensou que, sendo Abril na terra alegremente,
Dormia num casulo um’alma descontente;
E, então, porque, talvez, entre emplumado bando,
Visse uma borboleta isolada pairando,
Toma o sedoso esquife, arranca à morte a vida;
Sopra a negra matéria informe, envilecida,
Anima-a! Uma asa faz de cintilante gaza,
Pérvia à luz, ideal; e faz após outra asa,
Corta-as, justa-as, sorrindo, e nelas pondo a vista,
Como em rapto genial trabalha a mão do artista,
Rabisca-lhes por cima um desenho chinês...
A crisálida, então, abriu-se dessa vez,
E da lagarta que era eis surge a borboleta.
Pasma, olhou em derredor, e, assim como uma seta,
Rompeu livre o azul...
VIII
O azul rompeu do espaço.
Pôs-se a voar, a voar, sem trégua, sem cansaço,
Té que descendo os pés, que eram dous áureos fios
De aranha, em frente a um lago, entre uns ramos sombrios
Pousou. Reviu-se n’água. A alegria nas asas
Cintilava-lhe assim como os rubins em brasas
Numa coroa. A luz cantava em torno, ao vê-la
No lago a se mirar como uma linda estrela.
Do pólen seu na cor, que embalde o Ticiano
Sonhara, o ádito escuro, o impenetrado arcano
Estava da tinta ideal que, em sol delida, a imensa
Sfera tinge de azul, de ignotas mãos, suspensa.
Os perfumes que então das urnas de ouro, em vago
Bando, a aurora deixara esparsos sobre o lago,
Vieram, marchando no ar, invisíveis, saudá-la.
Já se ouvia no bosque aos pássaros a fala,
A manhã na amplidão voava, desenrolando
As sulias cor de fogo.
E ela, as asas vibrando,
Voou também na amplidão.
IX
O meu jardim agora.
Podeis florir, cecéns e cravos cor da aurora!
Fugiu com a noite, foi com a noite e o vento aquele
Íncubo hediondo e vil de ascosa e imunda pele.
Cravos da cor do sol, cecéns, flori radiosas!
Enxambre a luz do Oriente a túnica das rosas.
Sus, camélias! Mas eis, ridente e iluminada,
A nossa borboleta. Inquieta, desejada,
Vai por tudo vibrando as suas asas loucas;
E foi lagarta! e andou cuspida de mil bocas!
E foi monstro! e rojou de ventre como as feras!
E irritava o gramado, e nauseava as heras!
Ei-la, que garbo agora! Ostenta de mil cores
D’asa o prisma ideal entre as ruidosas flores.
Tudo a procura e quer e é um longo anseio mudo.
E, vede-a, a vingativa! um beijo cede a tudo!
Mas quem pode exclamar, ao vê-la assim tão bela:
— Ela é minha! se o ar e todo o espaço é dela!
Ama, voa, a asa estende, agora beija, agora
Foge, volta de novo, e beija, e vai-se embora.
E é em vão que a roseira inunda-se de aroma,
Em vão a flor do sol aos raios de ouro agoma,
A açucena na alvura em vão su’alma ostenta,
Em vão para atraí-la o cravo se ensanguenta,
A papoula flameja. Ela é a Mimi leviana:
Ama, e treme, e delira, e voa, e foge, e engana.
Sabei, lírios, sabei, dálias, sabei vós quantas
A amais, sabei, jasmins, sabei, cheirosas plantas,
— Miosótis cor do céu, pasmai com o caso incrível!
Sabei todas que vós combateis o impossível,
Querendo possuí-la! Ó virentes alfombras!
Ó tufos de verdura! Ó verdura das sombras!
Ó camélias sem cor! Ó lírios cor de opalas!
Ó cristais das manhãs! manhãs de eternas galas!
Ninhos! sons! harmonia! e sol! e firmamento!
Ela não será vossa! em vão é o vosso intento!
Pois um único amor, uma paixão estranha
Domina-a:
A trama de ouro e o fulvo olhar da aranha.
A Fernando de Sá Vianna
Toda azul como os grandes olhos dela.
C. DE ABREU
I
Suponho que era Abril
O mês, mas pouco importa, talvez Maio
Ou mesmo Junho fosse...
Nunca por céu de anil
O sol na fulva lágrima de um raio
Vi desmaiar mais doce.
Só, como a pena vai
No ar, ou só como a nuvem no horizonte,
Eu caminhava. Tudo,
Uma folha que cai,
Uma ave que esvoaça, a água do monte,
O monte, ao longe, o mudo
Deserto, tudo a mim
Me assusta. E eu caminhava. Agreste e feio
Era o sítio. E, avançando,
Por distrair-me, enfim,
Ia uma a uma, como a tudo enleio,
As árvores contando.
Tomava-me o pavor
D’essa hora, ali, só, acompanhado
Só de meus pensamentos...
Ao mínimo rumor
Cria ouvir um fantasma, e o bosque, ao lado,
Povoar-se de lamentos,
Rédea solta, ao vagar
Do cavalo, assim posto, a quanto havia
Árvore de em roda
Encarava. E, ao passar
Por tudo, a tudo triste em roda via
Pela planície toda.
E creio que era Abril
O mês! mas pouco importa, talvez Maio
Ou mesmo Junho fosse...
Nunca por céu de anil
O sol na fulva lágrima de um raio
Vi desmaiar mais doce!
II
Quando da serra, além, sobre a campina
Era a sombra maior, e além da serra
Mais flamejante o céu, — volto o cavalo;
Faço-o pisar do rio a areia fina,
E assim vou através do longo valo,
Mal sentindo aos meus pés falar a terra.
Corre direito ao bosque o rio. Inclina
Sobre ele os verdes calejados braços
Um’árvore, de pé nas rotas fráguas;
A espaços uma rama peregrina
Oscila ao vento, vai com o vento; a espaços
Vem à face tristíssima das águas.
E eu, derramando os olhos sobre aquilo,
Notando o aéreo brando movimento
Daquela rama na corrente, inquieta,
Cismava. Quando pelo azul tranquilo,
Pelo cálido azul do firmamento,
Vejo vir uma grande borboleta.
Nos caniços, ao pé, de pluma em pluma,
Pairou. Susteve as asas leves. Logo
Em direção ao sol partiu. Morria
A tarde. Em fogo as nuvens, uma a uma,
Torreavam no ocaso; e o céu em fogo
Vales, montes de púrpuras cobria.
III
A borboleta azul que espaço afora
Segue, não n’o sei bem...
Dela talvez me fala, onde ela mora
Talvez more também.
Talvez de seu cabelo desatado
Voasse, como uma flor,
Como o laço de fita embalsamado,
Que usa, da mesma cor.
Ela, formosa e tímida violeta
Mal desbrochada à luz,
Ela o céu ama, como ama a borboleta...
Ambos são tão azuis!
IV
Vejo a casa, afinal, onde ela mora,
Ela que a idade apenas
Talvez conta, aljofrada à luz, da aurora,
Da menor das falenas.
Ela que à minha dor abriu-se acaso,
Como um bom firmamento,
E cuja mão, se a beijo, é como um vaso
Onde me dessedento.
Certo esperava todo aquele dia...
Achei-a ansiosa, e ao vê-la,
E ao ver-me, eu vi: de pranto um bago havia
Em seu olhar de estrela.
Lançou-me do pescoço em volta os braços,
Deu-me a boca breve,
Depois, com o andar da pomba, atrás dous passos
Moveu risonha, e louca,
Fugiu. Tornou. Trazia à trança loura
Um laço azul, o amado
Laço da cor do céu, que a sobredoura
De um reflexo sagrado.
— “Fico melhor assim, não acha, com esta
Fita azul?” E sorria...
Morrera o sol, calara-se a floresta,
Apagara-se o dia.
V
Sobremanhã parti. Molhava a neve
O pendor da montanha. No arvoredo
Próximo, as penas a ensaiar de leve,
Um pássaro em segredo
Se ouvia. O som das águas derivadas
Da serra o chão da gruta, lento e lento,
Ia acordando. As folhas orvalhadas
Palpitavam com o vento.
Uma fita de fogo no Levante
Subia. E a estrela d’alva, imensa e bela
Tauxiava o plano da cerúlea tela,
Como um grande diamante.
VI
Com a buzina de caça pendurada
À cinta, quanta vez do excelso tope
De um monte, enquanto ao longe o pó da estrada
Um cavalo a galope
Batia, quanta vez não vi distante
O fumo de seu teto, embaixo erguido,
Como um lenço acenar-me! E a vista errante
Quanta vez, comovido,
Não fiz pousar na copa verde-escura
Do seu telhado, enquanto ao sol de estio
Voava um pombo nos ares, à procura
De outro pombo erradio!
VII
Leva à casa gentil, e era tão perto!
Um plano desigual:
Sinuoso trilho na colina aberto.
Aqui do cipoal
A laçaria: a flórida latada
Ora vai, ora vem,
Baila com o vento em trepidante escada.
Torsos troncos além;
Uma flor escarlate ao pé de um ninho...
Do sassafrás o olor
Recende, e borda as margens do caminho
A madressilva em flor.
Filipêndulas mil de cima a baixo
Serpenteiam sutis;
E ao longe ostenta um pássaro o penacho
De abrasado matiz.
Resplende o sol. Abre-se um cacto. A aragem
Vem mais fresca do sul...
E em tudo, aérea, trêfega, selvagem,
Paira uma grande borboleta azul.
VIII
A borboleta azul do mato, que ora
Voa aqui, ora além,
Dela talvez me fale, onde ela mora
Talvez more também.
Talvez de seu cabelo desatado,
Voasse, como uma flor,
Como o laço de fita com que a vejo,
Que usa, da mesma cor.
Ela, formosa e tímida violeta,
Mal desbrochada à luz,
Ela ao céu ama e ama a borboleta...
Ambos são tão azuis!
IX
Viera Outubro. Que mágoa
Em tudo! A água não corre; em vão procura
A árvore triste com a ramada escura
Os rios... faltos d’água.
Secaram-se as correntes;
Aos pés do caminhante
A areia range, iriante,
Em reflexos ardentes.
Viera Outubro, viera.
O sol jamais tão forte
Iluminara a esfera.
Desfloriam-se os vales,
Já golpeados da morte.
Do pequenino cálix
Às arqueadas umbelas
Passava o estrago. E à luz do meio-dia,
O vento os campos áridos enchia
De folhas amarelas.
X
Consta que ela, uma tarde, em que radiante
Das nuvens de ouro a abóboda se erguia,
Os braços nus para a amplidão distante,
Em falta de asas, trêmulos abria.
É que, aos raios do sol bailando inquietas,
Suspensas no ar, em dança vaporosa,
Um vago bando azul de borboletas
Vira passar na tarde luminosa.
XI
Desde esse dia nunca mais puderam
Meus olhos vê-la. É bem provável voasse!
Dela não soube e as flores não souberam.
A casa aí está, porém, qual se a habitasse
Ainda. E, abrindo a livre ponta da asa,
Douda, erradia, exul,
Em torno à velha casa
Paira uma grande borboleta azul.
Ao Dr. Henrique de Sá
E eis o loto da noite, unindo-se à lua desafogada das nuvens.
KALIDASA — Raghu-Vança
Foi com surpresa e espanto, em erma e atra espessura,
Que Rudhra, o sábio, o grande, o anacoreta indiano,
Rudhra que tem no olhar o brilho sobre-humano
Do incansável labor da penitência obscura;
Foi, com surpresa e espanto e num delírio vago,
Que uma vez do luar que límpido nascia
Estas cousas ouviu, na floresta sombria,
Ditas distintamente ao loto azul de um lago:
“Vem! — dizia o luar — descerra uma por uma
As pétalas azuis!
Dou-te um lago de espuma,
Onde melhor flutues!
Vem! como a Apsara é minha, a tu’alma desata,
E sobe entre desmaios!
Dou-te alvíssima prata...
A prata de meus raios!
Dou-te o leque de luz com que me vês no Oriente,
Dou-te o cofre de opalas
Que entorno em meu crescente
Pelas eternas salas!
Dou-te nuvem, estrela, espíritos, quimeras...
A luz, o orvalho dou-te,
E o canto das esferas,
E os incensos da noute!
Vem, adorado ser, tu das alturas digno!
Rompe a brutal matéria,
E deste àquele signo
Eleva-te, alma etérea!”
Tal, com surpresa e espanto, em erma e atra espessura,
Certa noite ouviu Rudhra, o anacoreta indiano,
Rudhra que tem no olhar o brilho sobre-humano
Do incansável labor da penitência obscura.
A Alberto Conrado
Ah! que ne puis-je remonter vers ces heures fortunées, retrouver ces loisirs enchanteurs!
TOPFFER — Nouvelles genevoises
I
Era, lembro-me ainda! à beira-mar. — Desperta,
Fala, minha saudade! — Uma janela aberta
Sobre a azul extensão das águas, e a ventura
Dentro, lá dentro, aos pés daquela criatura
Que foi minha, que amei, que eu possuí, que apenas
Eu gozei...
Quando o sol, pelas tardes serenas
De Agosto, o mar não só de branca espuma, o etéreo
Mar de nuvens também, — como de escudos o éreo
Campo, — acendia; e em torno àquelas águas, cheias
De sons, a salsa praia em cada grão de areia
Seus diamantes brilhava: era de ver a casa
Rente às ondas! A luz em telas de ouro em brasa
Era a púrpura viva, era a tapeçaria
Das salas, — luxo estranho e oriental! subia
Pelas paredes; longa, em véus tírios, crescente,
Implicada, do teto ao solho esplandecente
Desdobrava-se. O chão riscava-se dos passos
Das sombras a correr em trêmitos, a abraços,
Soltas, súbitas indo. E em casa porta, à entrada,
Punha o fulgor da tarde uma coroa, e em cada
Coroa infindos rubins, crisólitas, gemantes
Pedrarias, rocais de estrelas, de diamantes
Cintilavam. E sempre o ouro do sol, descido
Ao mar, pela janela, entre os vidros, fundido
Em torrentes, bolhando, entrava. Um grande espelho
No aço puro estampava aquele céu vermelho
De lá fora; ao cristal de sua face o estranho
Colorido do ocaso olhava-se. De estanho
Ora as nuvens ali, ara de opalas, ora
De cártamo e sandiz, de vermelhão, de aurora
Tintas voavam, num grande exército, imitando
Já um templo, uma cidade, um mar de sangue, um bando
De ruínas, já de um deus em bronze a estátua, e os vultos
De enormes animais há séculos sepultos.
Era naquele espelho, entre a magia extrema
Do ocaso, que ambos nós de rutilantes estema
Cingidos, sobre a minha a sua mão, tomados
De assombro, a tudo mais alheios, afastados,
Quietos, mudos, sem voz, nos olhávamos. Ela,
Como ao fundo de um rio uma longínqua estrela,
A meu olhos lá dentro aparecia ao fundo
Do vidro, em meio à luz do flutuante mundo
De nuvens. A amplidão cercava-nos, a fronte
Nossa errava no céu; e a linha do horizonte
Prolongava-se além vermelha e infinda. E em tudo
Sempre o ouro do sol naquele espelho mudo
A cair, a cair...
E sobre a fulva poeira
Do ouro que ali chovia, a minha vida inteira
Ajoelhava, e em tropel meus dias; e era tanto
O esplendor que os tinha e tão profundo o encanto
De tal vida, que os sons de outra existência, o passo
Das auroras no céu, dos astros pelo espaço,
Da luz, que assoma e assoalha o esplêndido tesouro:
Parecia o rumor daquelas horas de ouro.
Uma vez, casualmente, olhávamos no liso
Aço um castelo ideal, fantástico, indeciso,
Que uma nuvem do mar erguera, e às vespertinas
Sombras dava o clarão das pêndulas ruínas.
Destas parte, num jorro, em cintilante e clara
Onda o incêndio do sol poente iluminara;
Rubro sangue listrava-a, a luz lambia-a em roda,
E era toda despenho e labaredas toda.
No ar circunstante havia um reverbero vivo
Como o de ígnea fornalha. Instante e convulsivo
O castelo ruía; e cada chama os nossos
Rostos afogueava. Os últimos destroços
Vi da mole fumante. Espessa e às voltas veio
Do alto a nuvem rolando; a luz varava-a, o seio
Se lhe abria combusto e, gotejando em lava
Rubra intenso cruor, esgarçava, esgarçava...
E quanto o sol rompeu por sobre aquilo e em vago
Lume, como ao depois de uma batalha, o estrago
Clareou vivo do incêndio, — olho e estremeço: havia
Sobre o espelho somente a minha sombra fria!
Eu somente ali estava, olhava eu tão somente
O vácuo! E estando a olhar, o espelho de repente
Empanou-se, e cresceu por dentro dele a escura
Noite, e o sol se apagou de sua face pura...
Uma estrela entretanto, apenas uma, do ocaso,
Nele às vezes resplende em direção do ocaso,
Mas tão triste de luz que imaginando, ao vê-la,
Fico se é por ventura aquilo mesmo estrela.
A Joaquim Serra
De horrenda cerração c’roada a Noite.
BOCAGE — Leandro e Hero
Que é das estrelas, que é dessas
Huris de loiras cabeças,
A que a alma, se a mágoa a afronta,
Remonta?
Em que outros céus, mais serenas
Girais, doidejantes, plenas
De luz, mais vivas, mais belas,
Estrelas!?
Este é soturno, este espaço;
Nele há das nuvens o passo
Somente, monstros em bando
Marchando.
Escuridão! chuva! névoa!
A vista cansada elevo-a:
É tudo sombra, um lampejo
Não vejo!
Escuridão! chuva! Imensa
Tenda de trevas suspensa
No ar, no horizonte mundo,
Por tudo.
Flébil, monótono escuto
Ranger, minuto a minuto,
O velho arvoredo ao vento
Violento.
E as águas longe, o bravio
Remesso, a queda do rio
Torneando as pedras, topando-as,
Trepando-as!
E como a chuva entristece,
E cansa e enfara e aborrece,
Miúda a cair de hora em hora
Lá fora!
Que vago torpor, que vaga
Molície os membros me afaga!
Estiro-os, bocejo; conto,
Reconto,
Mil várias cousas, me ouvindo
Absorto, extintos abrindo
Arcanos cuja saudade
Me invade.
Meus dias mortos de festa
E amor, em noite como esta
Plúmbeas, pesadas, estéreis,
O que éreis,
O que valíeis somente
É que eu compreendo, a mente
Para essa morta alvorada
Voltada!
Não tornareis forasteiras
Auroras de ouro! Às primeiras
Alvas que sombras sucedem
No Éden!
A noite agora, — a que habita
A alma — que a noite infinita
Emula que o céu semeia
Tão feia!
Sinto-a estender-se oprimida
Desta hora, e à fúria bramida
Do vento juntar e às águas
As mágoas.
Quando há de tédio, o que existe
De mais aborrido e triste
Me desespera, me enturva,
Me acurva.
Tenho a alma como entre um muro
De sombras, lúgubre, escuro!
O céu nem vejo que anima
Lá em cima!
Escuridão! chuva! imensa
Tenda de trevas suspensa
No ar, no horizonte mudo,
Por tudo!
E mais contínuo, de instante
A instante, mais sibilante
Aos refegões zune o vento
Violento.
E roucas, rudes, revoltas,
Bolhantes, rápidas, soltas,
Mugem as águas do rio
Bravio.
E a chuva cresce, recresce,
Em fúria, enfara, aborrece,
Às soltas saltando agora
Lá fora.
Oh! como em beijos me prendo
A ti, que eu só compreendo,
Retrato amigo, figura
Tão pura!
Retrato dela! composto
De graça e virtudes! rosto
Que tanto osculei, te interrogando,
Te amando:
Entra-me n’alma indeciso
Reflexo do Paraíso!
Ajoelho, e meu céu, meu templo
Contemplo!
A Bernardo de Oliveira
Blow, blow, thou winter Wind;
Thou art not so unkind
As man’s ingratitude;
Thy tooth is not so keen,
Because thou art not seen,
Altho’thy breath be rude.
Heigh-ho! sing; heigh-ho! unto the green holly,
Most friendship is feigning; most loving mere folly.
SHAKESPEARE
I
Era um caminho estreito
E escuro, nessa escura
Noite, à beira do mar, orlando-o. O aspeito
Do mar bem se não via,
Que era todo espessura...
Rumor d’águas somente o espaço enchia.
Eu, não sei como, andava
Nesse lugar medonho
A tais horas. A fronte me alagava
Suor frio, o cabelo
Tinha-o, como num sonho,
Eriçado de um negro pesadelo.
Ali, voejando às tontas,
Como estrige agoureira,
Paira o Medo, o Terror. Com as altas pontas
Os penedos, dispostos
Junto à podre albufeira,
N’água se veem com os achumbados rostos.
Coalhado do negrume
Da noite, anseia o espaço;
Ali não cala incerto escasso lume
De estrela. A infectos miasmas,
Porém, sente-se o passo,
Como o passo indeciso dos fantasmas.
Rofas moles de troncos
Gigantescos se alteiam
Deste lado; daquele, aspectos broncos
De penhascos; soturnas
Cavas grutas vozeiam
No eco abafado das equóreas furnas.
E a tremer nesse estreito
Caminho, pelo escura
Noite, escura e agitada, eu ia. O aspeito
Do mar bem se não via,
Que era todo espessura...
Rumor d’águas somente o espaço enchia.
Soavam surdos na treva
Os meus passos e, incerto,
Como quem sente que um fantasma leva
Trás si, olhava, o ouvido
Aguçando, e mais perto
Cria escutar um sepulcral gemido.
Empós mim certo erravam
Outras sombras, e em lento
Giro, à laia de espectros, se arrastavam!
Sim, com um rouco, um profundo
Com um sinistro lamento
Surdem das trevas em que a vista afundo.
Ah! parece-me, em dobre
Pasmo, estar inda a vê-los
Esses que o medo pânico descobre,
E a diabólico encanto,
— Horríveis pesadelos —
Se entremetem no sonho, espanto a espanto!
Todos vieram, vieram,
Vieram! todos em ronda
Lúgubre e extensa me encararam, e eram
Tão de horrores, que eu ante
Aquela turba hedionda,
Não fui mais que uma estátua nesse instante.
Quedei-me, em pedra imota
Vi-me; têmporas, pulsos
Sem vida, olhar sem luz, mente idiota...
E a legião sombria
Dos espectros convulsos,
Mudos, porém, da escuridão rompia.
Todas as minhas Dores
Vieram; todas em grita
Surda e horrente, com múltiplos clamores,
Ao meu lado passaram,
E da noite maldita
Com os soluços as trevas abalaram.
Vós também, Sonhos torvos,
Também vós me seguistes,
E, quais rodam do céu num ponto os corvos,
Vós, revoltos, em bando,
Íeis, negros e tristes,
Com a asa de fumo em torno a mim rodando.
Viestes, males contidos
No coração, sepultos
No coração, no coração sofridos!
E, arremedando as Fúrias
No sanhudo dos vultos:
Viestes, Raivas, e Cóleras, e Injúrias!
Também ali te achavas,
Olhar de Ódios gratuitos,
Boca de inveja sórdida, que bavas
Tudo e estragas, e danas;
Zombaria, que a muitos
Sob disfarce calculado enganas!
Nem tu mesma faltaste,
Traição fria e engenhosa,
Que na sombra teus golpes estudaste;
E uma vez, muda e calma,
Inesperada e enganosa,
Ervado ferro me embebeste n’alma!
Todos viestes. E o medo
Num frio intenso e agudo
Corre-me as carnes. E, impassível, quedo,
Semi-ânime, exangue,
Petrificado, mudo,
Represa a voz, pasmado o olhar, o sangue
Gelado, hirtos na testa
Os cabelos, — em roda
Eu via erguer-se da espectral floresta
As mil formas, ao vento
Que passava; e ela toda
Gemia agora um sepulcral lamento.
II
Pouco a pouco, porém,
Como quem sai de um fojo infecto e os ares
Livremente respira;
Como o que à tona vem
De um rio, alteia o corpo, erra os olhares,
Move dos braços, se desprende e tira
Das águas: pouco a pouco
Desperto, acordo, a vista em roda, inquieto,
Lanço, as sombras inquiro...
O mar violento e rouco
Geme ainda; na noite há o mesmo aspecto,
E um suspiro se escuto, é meu suspiro.
Corava a escuridão
Não sei que luz nesse momento: um fraco
Ponto de ouro em começo,
No céu; quase um clarão;
Depois; depois todo o horizonte espesso,
Toda a névoa das formas, todo o opaco
Das cousas se alongava,
Se dispartia, dava entrada àquela
Luz indecisa; o espaço,
Turvo que era, ali estava
Pérvio agora a se abrir, de traço a traço,
Em áureas nódoas se embebendo dela.
III
Era o dia! era o sol! Ascende a luz, palpita,
Com a asa etérea a roçar a abóbada infinita.
Treme a noite, e é assim como um grande reposteiro
Que ondula em quedas de ouro e se desdobra inteiro;
Mar de fogo e rubins, e opalas, — a alvorada,
Entra pela amplidão, alaga-a, e despenhada
De cima, em rios cobre a terra inteira. Agora
Nem uma sombra mais, um pesadelo! A aurora
Dissolveu-os! O mar a música sombra
Adoça, ouvindo ao longe as cítaras do dia.
No ar a est’hora talvez um anjo passa, aberta
A asa, anunciando a manhã que desperta.
Sus, minh’alma! E eu revia o sítio em que tamanho
Horror me salteara: o trilho estreito, o estranho,
Ermo, os pedrouços mil do sítio, informes, tudo,
Troncos, a água, a albufeira, o abismo, o oceano, rudo
E ora, atento, no chão buscava ver se um traço
Espectral descobria ou sinal de algum passo.
Tudo a luz dissipou, varreu, levou radiosa!
Nem um vestígio mais dessa noite assombrosa!
E quando a fronte ergui, todo o Oriente, em fogo
Vivo a arder, se mostrava. O sol nascente logo
Surgiu e ao seu clarão suavíssimo, indeciso,
Inundava-me o rosto o primeiro sorriso.
A Arthur Orozimbo
Sobre o marco de pedra a cruz se eleva,
Como um farol de vida em mar de escolhos.
A. HERCULANO — Harpa do crente
I
No alto da serra inculta, onde a virente copa
Torce o vento à araucária, e o temporal galopa,
Despertando, ao tropel das músicas noturnas
Que arrasta, a escuridão das covas e das furnas:
A desoras quem cruza o vale extenso embaixo
Vê, se acaso ergue a vista, o como arder de um facho.
É uma estrela? Não sabe. Um foto fátuo? um duende?
Um fantasma? E aturada e misteriosa esplende
A luz, em meio ao espanto e negridão da noite.
II
Mas a chuva nem sempre, o temporal, o açoite
Do vento na alta serra as árvores abala;
Muita vez rompe a lua, entre névoas resvala
O áureo globo lá em cima, ao longo das vertentes
Coando em frouxo chover as lágrimas luzentes.
Então brando rumor, — a voz da Natureza
Em secreta volúpia, — uma quase tristeza
E gozo, — em tudo acorda. O pinheiral suspira,
E se ouve em cada gruta a voz de ignota lira.
III
Outras vezes é o céu só com as estrelas, cheio
Delas de extremo a extremo, e precintado ao meio
Da alva faixa que estende a Via-Láctea enorme.
Tudo queda e repousa. E a serrania dorme
Sob esse escuro azul de um céu que tem por cima.
IV
Em tais horas não sei que novo brilho anima
A luz que medo pôs a quem passou distante
Na planície. Lá está, por noite assim, radiante
Como a estrela da tarde. Esta, entretanto, a porta
Do poente entrou de há muito, e é desmaiada, é morta.
V
Não, — das cimas da serra, ó árvores, contai-o!
Não é de um astro a luz, não é da estrela o raio
Esse arcano clarão. Ele ilumina um’alma.
Lá se agita uma sombra. A movediça palma
Não é do coqueiral, quando a procura o vento
E dela extrai com o sopro um músico lamento.
E essa harmonia? ... Acaso o mesmo vento acorda
Som tão doce?! ... Silêncio! ... É de uma guzla a corda.
Alguém canta. Abre a noite o ouvido atento. A escarpa
Escuta. A humanas mãos se despedaça um’harpa
Lá em cima, e o estranho acorde, a melodia estranha
Flui num rio de prata ao longo da montanha.
VI
Mas que acerbo sofrer, que súbita agonia,
Estas notas traspassa e inverte esta harmonia?!
Vamos, galguemos o alto à serra alpestre e informe!
Lá na soidão sem termo há um desespero enorme,
Sofre alguém, pena alguém... Humana voz me fala...
Um grito igual ao meu naquela altura estala!
VII
Dorme seu grande sono a natureza inteira.
Tardo o passo, anelando, a íngreme ladeira
Subo. Que escuridão, que mar de espessa treva
Rola a meus pés embaixo, entre meus pés se eleva!
Ondas negras sem fim! amplo dilúvio escuro!
A uma parte e outra parte a sombra alteia um muro
E me oprime. Entretanto a escarpa vingo, o rosto
Volto ao despenhadeiro, ao abismo transposto...
Ainda um passo, e descubro a luz que me há tentado.
VIII
Entre o implexo palmar há um teto levantado.
É um palácio. Porém somente uma janela
Aberta cede à noite o seu fulgor de estrela,
Luz sonora, — que vem nela arrastado um hino.
Hino vasto... É um gemer, é o grito de um destino
Doloroso. Lá dentro uma mulher ao piano
Canta, ensinando à noite o que é o lamento humano.
E o instrumento febril onde os seus dedos correm,
Onde dos olhos seus as lágrimas escorrem,
Geme, como se um cisne, em mágico transporte,
Dentro dele soltasse o seu canto de morte.
IX
Tem vinte anos. É bela. O canto entristecido
Soa mais alto agora, é mais alto o gemido.
O arquejante instrumento um novo carme acorda,
E da aberta janela a música transborda
Dentro da noite. À luz, dir-se-ia aquele imenso
Hino, em fúmea espiral, como a espiral do incenso,
Subia, e em cada volta em que se enovelava
No ar, sentada uma queixa e uma lágrima estava.
Mas plangeu subitâneo o piano gemebundo
Outra carme. É a saudade ardente que, este mundo
Deixando, a alma consigo ao túmulo transporta:
“Adeus, tudo o que amei!” E o canto a face morta,
As mãos postas, o tronco inerte, inteiriçado,
Lembra do que se foi... Um novo tom magoado:
É a canção dos que à Terra a superfície fria
Correm, sempre buscando a sombra fugidia
Que partiu: “Onde estás!?” — E em cada acento o piano
Grita, chama, interroga, e se espedaça insano.
E o instrumento febril onde os seus dedos correm,
Onde dos olhos seus as lágrimas escorrem,
Geme, como se um cisne, em mágico transporte,
Dentro dele soltasse o seu canto de morte.
X
Sob a janela, só, por entre o movediço
Palmeiral, há uma cruz de mármore maciço.
Guarda um túmulo. O chão de saudades coberto.
Está. Saudosa a luz, com seu brilhar incerto,
Vem beijá-la e trazer-lhe a alma sonora e os prantos
Dessa que dentro rompe em lágrimas e cantos.
XI
E ela cantava sempre. Os pássaros dormidos
Despertavam no bosque. E o bosque é todo ouvidos.
A água os pés de alabastro apressa na corrente
Para ouvi-la, e desliza, e corre mansamente.
Mudo, em êxtase, o espesso e trêmulo arvoredo
Inclina a fronte, escuta, e é pensativo e quedo.
Vem dos covis chegando a procissão tardia
Das sombras, e a bailar trepidamente, espia
De longe, o ventre escuro a rastos. As inquietas
Asas colhe a lucerna; o sono as borboletas
Interrompem, vergando ao pequenino galho
A flor que o cálix volta, d’onde pende o orvalho.
Folha a folha, asa a asa, espuma a espuma, o fio
D’água, o inseto, o palmar, em silêncio sombrio,
Suspendem-se, e mais livre a música desata
Sobre tal quietação as estrofes de prata...
E o instrumento febril onde os seus dedos correm,
Onde dos olhos seus as lágrimas escorrem
Geme, como se um cisne, em mágico transporte,
Dentro dele soltasse o seu canto de morte.
XII
Traduz o piano agora um desespero imenso.
Como que em cada nota há um coração suspenso
Por lágrimas, que passa e vai sangrando. Ao brado
Da dor, violento grito, estremece o teclado,
Tine e vai estalar. É que a loucura, — gêmea
Do amor incontentado, — irrompeu em blasfêmia.
Mas num surdo — perdão — o fúria se amortece,
E a alma arrependida em prantos aparece...
XIII
Pela janela aberta, em jorros a harmonia
Golfava, enchendo a noite. Enquanto no abandono,
Qual se o morto folgasse em seu último sono,
A cruz, braços ao ar, na sombra estremecia.
A Henrique Magalhães
Tudo o que vejo parece
Triste de minha tristeza,
E tudo mais me entristece.
BERNARDIM RIBEIRO
I
...........................................................................
E crendo achá-la, a sombra fugidia
O intricado rompeu da mata escura,
Não dando conta que expirava dia.
— “Dize, dize onde estás!” — Pela espessura
Chama, e ao teto do bosque o olhar levanta,
Abaulado dos arcos da verdura,
Mas verdura sem flor, que a toda planta
A volúvel espira, a trama, o enredo
Nos quentes estos o verão quebranta.
Os desfloridos braços do arvoredo,
Que encruzados lá em cima um sopro agita,
Falam de um dia que morreu bem cedo.
Ora as heras não mais, a parasita
Verde às colunas vegetais se enrola
E o corpo elando os píncaros enfita.
O estragoso calor que tudo assola,
Mal do cacto silvestre abrir consente
À cárdea flor a tímida corola.
De eiva tocado, ao ramo seu pendente,
Todo fruto arregoa, e assim responde
De um ar que é todo fogo ao peso ardente.
— “Dize, dize onde estás!” — E as grutas — onde,
Onde estás! — com os seus ecos repetiram;
Ignora tudo que lugar a esconde.
E errando acaso o peregrino, viram
De repente seus olhos que acabava
A selva, à luz que súbito sentiram.
Uma larga planície o sol dourava,
Mas tão triste que n’alma ao caminhante
Com vê-la a sua dor se acrescentava.
— “Dize, dize onde estás! A cada instante
Chamo-te, e ao menos nem sinal descubro
Que na areia imprimiu teu passo errante.
Na ausência tua tudo expira! Outubro,
— Quente mês que aborreço — às mãos volteia
Em cresta às folhas o seu facho rubro.
E eu, que a teu braço a cornucópia cheia
Vi dar ao mundo provida o tesouro,
Com que dor vejo a Terra ardente e feia.
Pois a não cobre o teu cabelo de ouro!”
II
Disse, e olhou derredor. Distante, às vivas
Luzes da tarde, interrogando o vento,
Balançam-se as palmeiras pensativas.
Todo o céu, todo o azul do firmamento
Está cheio da mágoa e da tristeza
Que a alma lhe traça nesse atroz momento.
No ar, no monte, no vale e na devesa
Como que um’harpa estranha e dolorosa
Chora e parte-se às mãos da Natureza.
E ele a vista, de lágrima saudosa
Toda embebida, em frente ao sol que expira,
Sumiu nos ermos da amplidão radiosa.
— “Dize, dize onde estás!” Fala e suspira,
E às nuvens longe vendo as soltas alas
Que ao céu varrem a nítida safira;
Umas de ouro, de púrpura, de opalas
Outras... E a alma ansiosa e entristecida
Cá do exílio da Terra a interrogá-las!
— “Dize, dize onde estás! Que despedida
Foi a tua, que assim que te partiste
Vi que estes campos desertara a vida!?
Cai morta a flor que num sorriso abriste,
Murcha-se o ramo, seca-se a corrente,
Onde molha o arvoredo a sombra triste.
Té do campo a verdura, — e isto consente
Teu amor! — onde meiga adormecias,
Torra e cresta o verão com o raio ardente.
Se tornassem contigo aqueles dias!
Se volvesses!... Mas vejo que interrogo
Um vão fantasma nestas nuvens frias!”
E das nuvens, magoada, a vista logo
Soltou-se, entre o crepúsculo que vinha,
Como um péplum, velando o céu de fogo.
Era a hora em que ao vale se encaminha
A noite, pelo píncaro do monte;
Voa à face dos lagos a andorinha...
Uma faixa de luz da serra à fronte
— Sol das almas lhe chamam — reaparece,
Mas logo esmaia, e é trevas o horizonte.
E a alma das cousas, o sussurro, a prece
De tudo à estrela que nasceu primeira,
Nos raios de ouro levantar parece.
E n’água morta, do regato à beira,
As desfolhadas árvores se encaram...
E à voz, que há pouco à Natureza inteira
Falava, as nuvens trêmulas quedaram;
E longe, como um rancho de cativas
Que, olhando em roda, sem dormir ficaram,
Balançam-se as palmeiras pensativas.
A Antônio Aguiar
Aumenta a inundação, cresce de mais a mais.
BURGER
Foi sobre o pôr-do-sol que a água, espumando, às roncas,
Começou de crescer: pelas fragosas voltas
Das vertentes a uivar; pelo pendor, às soltas,
Das pedras a mugir; pelos algares, broncas
Socavas, barrocais, sonoras grutas, o ermo
Zoando, com o propagar dos ecos seus sem termo:
Descia. Em plúmbeo céu, de esparsas franjas no alto,
Baldaquins de vapor do temporal, se arqueavam,
E ainda, de quando em quando, ao raio, que de assalto
Rompe-os, douram-se ao lume, e o seio etéreo cavam,
Onde, em sulcos de fogo, os súbitos coriscos
Se encruzilham febris, serpentejando em riscos.
Doce raio de sol, dentre o compacto enxame
Das nuvens ora escapo, ia aquecendo o monte,
E era assim, na amplidão, como luzente arame
De ouro, da Terra às mãos, suspenso no horizonte;
Doce raio de luz depois da chuva! o dia
Dele, a terra espiando, em lágrimas sorria.
Toda a inculta extensão dos campos, pouco a pouco,
Ia a enchente alagando. O que era um rio ecoa,
E é mar, engrossa, e alteia, e ferve, e espuma, e rouco,
Morde as margens, empola, empina-se, acachoa,
Bolha, brama, e à feição de indômito cavalo,
Roto o freio, lá vai, — salta de valo em valo;
Voa, impelindo em fúria o peso d’água, às matas,
Que ora o vendo a raivar, tão fero e desabrido,
Falam: “De onde é que vens que o manto, a uivar, desatas
E ruges, tu que outrora, em sono azul dormido,
Com as colinas em roda, — escravas tuas — leve
Beijava-as, de leito entre os lençóis de neve?!”
E a água desce: as rechãs, as fértiles planuras
Incha, faz apaular-se; entre o raizame adunco
Dos grossos vegetais se infiltra, nas escuras
Charnecas e marnéis os lírios sorve, o junco
Dobra, arrasta, ao covil surpreende a fera, ao ninho
Baixo arranca os frouxéis e assusta o passarinho.
Embalado lá vai correnteza abaixo agora
Um tronco. Em vão lutou, rijo madeiro opondo
À enxurrada brutal que, na evulsão sonora,
Come ao rochedo os pés, o penhasco em redondo,
Cerca, fá-lo pender, inclina-o mais, e, de ira
Cheia, impele-o, forceja, e monte abaixo o atira.
Soa o vale. Da enchente a boca informe avança;
Rói aqui já do campo os altos; o arvoredo
Ameaça, abarca, aperta; esta ramada, a frança
Deste arbusto alcançou, trepando do laspedo,
E esfolhou-a, e bramiu; mais alto sobe, e inunda,
Torce-se toda, e bofa, e em frêmito redunda.
Velha humilde choupana, onde estancara a sede
Viajor que um dia inteiro o sol queimara, — o seio
Despovoado apresenta, ermo e soturno; e vede:
Linfa escassa que os pés lhe andou molhando, em meio
Da várzea, ameaçadora agora ferve, e a vaga
Arremessa-lhe à porta, e pouca a pouco a esmaga.
De seu teto de colmo aburacado a pomba
A asa abriu, demandando um céu melhor. Vacila,
Mal sustida, a parede, e balouça-se, e tomba,
E esbroa-se na queda a avermelhada argila.
Fica o esqueleto só, de pé, sinistramente,
Combatido ainda assim da aluvião crescente.
E a água desce: hora a hora, ei-la a brotar a serra;
Brota-a o charco, o sapal, a estrada, a penedia,
Brota-a, brota-a a devesa, os borraçais, a terra
Toda; e avoluma a enchente, avulta, aumenta; amplia
O corpo, e imensa espraia em tudo, e se derrama,
E tudo atroa, e espuma, e ronca, e ruge, e brama.
Da assomada do monte olha-o o coqueiro, ao vento
Dando os leques; o corvo altívolo, surpreso,
Olha-a de cima, do ar, o espaço; o firmamento
Olha-se nela; o sol, por breve instante, o peso
Das nuvens afastando, olha-a também e a umbela
De ouro lá embaixo viu que se acendia nela.
Veio a noite, também, marchando, e, debruçada,
Olhou-a do alto; olhou-a a estrela, do negrume,
Da amplidão repontando em transparente lume;
Enquanto do Levante entre o vapor, à entrada,
Do céu, com o argênteo limpo, a lua enorme e estranha
Espiava, erguendo o rosto acima da montanha.
I
Rio abaixo lá vai, de proa ao sol do Egito,
A galera real. Cinquenta remos lestos
Impelem-na. O verão faz rutilar, aos estos
Da luz, de um céu de cobre o horizonte infinito.
Pesa, abafado e quente, o ar circunstante. Uns restos
De templo ora se veem, lembrando velho rito;
E inda um pilono erguido, uma esfinge de granito,
De empoeirada figura e taciturnos gestos.
De quando em quando à flor do Nilo se destaca,
D’água morna emergindo, a escama de um fakaka;
O íbis branco revoa entre os juncais. Entanto,
Numa sorte de naos, Cleópatra procura
Su’alma distrair, prestando ouvido ao canto
Que a escrava Carmion tristemente murmura.
II
Ao Dr. J. P. de Magalhães Castro
Pelo cedrinho tálamo odorante
O ostro fenício, a púrpura mais bela,
Raros bissos de trama deslumbrante,
Tudo palpita com a presença dela.
Trabalho Argel de finas mãos, brilhante,
Caiu-lhe o peplo. O rosto se revela...
Romanos olhos sob a treva ondeante
Da coma esparsa, que um luar estrela.
Eri-lavradas trípodes custosas,
Kam-klins, caçoulas, derramai no espaço
Aloes, sândalo, mirras vaporosas.
Entrando o leito, em tímido embaraço,
Ela a túnica abriu um pouco, e as rosas
Mostra das pomas, levantando o braço.
III
Da flava Ceres falta-te ao cabelo
A cor, que o seu dourava e os trigos doura;
Tens negra a trança e, deverei dizê-lo?
Fica-te assim melhor, não sendo loura.
Crespa, enredada em serpes, tentadora,
Cheiro-a, aspiro-a, febril, e ardendo em zelo;
E ela em meus lábios, qual se a Noite fora,
De volúpia infernal me imprime o selo.
Toco-a, aperto-a, desato-a fio a fio,
Estendo-a nos meus ombros, velo ondeante;
Tomo-lhe as pontas, o teu rosto espio:
E entre os claros da trama escura e bela,
Creio, vendo-te a luz do olhar radiante,
Ver a réstia de fogo de uma estrela.
IV
Um passo além daquele campo, há um velho
Bosque: é de um lado a ponte. Entre as cantigas
Da água, o rio, debaixo, as grossas vigas
Traz refletidas no sombrio espelho.
Arcos iguais de sólido aparelho,
Curvos, como do tempo com as fadigas,
Com a larga oval e as resistentes ligas
Olhais formam pintados de vermelho.
E a água, à tarde, espumando em bolhas, toda
De luz tinta e da cor que tem por cima,
A correr, a correr, fulgura e roda.
E a muda ponte espia ao longe, espia
Quem vem, que cavaleiro se aproxima
Para transpô-la no final do dia.
V
A Antônio Nogueira
— “Deixa-me entrar, — dizia o sol — Suspende
A cortina, soabre-te! Preciso
O íris trêmulo ver que o Sonho acende
Em seu dormido virginal sorriso.
Dá-me uma fresta só do paraíso
Vedado, se o ser nele inteiro ofende...
E eu, como o eunuco, extático, indeciso,
Ver-lhe-ei o rosto que na sombra esplende.”
E, fechando-se mais, zelosa e firme,
Respondia a janela: “Ah! que estouvado!
Eu deixar-te passar! Eu, néscia abrir-me!
E essa que dorme, sol, que não diria
Ao ver-te o olhar por trás do cortinado,
E ao ver-se a um tempo desnudada e fria?! — “
VI
A R. Porciúncula
...E por ali nos fomos... — prosseguia
O ancião — Lúcia, mais pálida do medo
Da noite, as mãos tomando-me — em segredo,
Baixo, uma prece, trêmula dizia.
Alta era a serra, altíssima! sombria
A cena a tais desoras. O arvoredo
Estava tácito, mudo, imoto, quedo...
Nem uma aragem derredor se ouvia.
De repente, de súbito, naquela
Noite o ouvido me fere um som medonho...
Rola um corpo na escarpa: o vulto é dela!
Acompanha-me ainda esta saudade...
Dorme no abismo o meu primeiro sonho...
Dos outros não me lembro nesta idade.
VII
À anca brutal do tártaro cavalo,
Vede-o: lá vai na rápida corrida,
Em brutal solavanco e rude abalo,
Pelos campos da Ucrânia, a toda brida.
Corre, voa o corcel! não há domá-lo!
E a campina, a floresta enegrecida,
Cheia de lobos, e a corrente, e o valo
Corta e cruza na sanha enfurecida.
Quantos, como o polaco, arrebatados
Leva o ginete audaz do pensamento
À suarenta garupa pendurados!
E em vão forcejam por suster com os braços,
Entre o ar que assobia e o firmamento,
O incansável corcel de alados passos!
VIII
Mulher, não te conheço!
G. CRESPO
Vens de um sepulcro, as cinzas remexendo,
Os ossos que encontraste à mão reunindo;
Fria, palidamente fria, e enchendo
De pranto o horror da morte averno e infindo.
E que sepulcro descoberto e horrendo
É esse? Olho-o e conheço, a um tempo ouvindo
Nele os meus e os teus ais que em som tremendo
Vão-se, ao modo dos lêmures, carpindo.
Vens do passado, Sombra, e uivando choras...
Seguem-te empós, — cadáveres medonhos,
Meus dias mortos, lívidas auroras.
Mas que me queres tu? Se é fome impura
Que inda te rói, sacia-te nos sonhos
Que levaste contigo à sepultura.
IX
A Francisco Sodré
Titânia, ao lado o rei que os elfos manda, assoma
Na floresta encantada, à luz da lua. — “Abri-vos,
Ramos verdes! de flor de penetrante aroma,
Móveis arcuais festões, vendo-a passar, cobri-vos!
Em alas, troncos mil de viridente coma,
Onde em fofo aranhol de abrocadados crivos
Brilha o orvalho que a luz das finas pedras toma...
Eis Titânia! de pé, meus válidos cativos!”
Tal a voz de Oberon vai proclamando, e em cheio
Da trompa, que da cinta ele suspende e emboca,
Esfuzia e desperta o grande bosque, em meio
Da noite; enquanto a lua enorme esplende, e a gruta
Longe as letras do canto apaixonado avoca,
Abre o ouvido de pedra, e atentamente escuta.
X
A Alexandre Guimarães
I
A barba espessa aos pés, molhada em neve,
Caída, e o manto às costas, de neblinas,
Alquebrando ancião, sobre as colinas
O Inverno, afuma o tempo, e o sol proscreve.
“De onde veio tão cedo!?” As quimeras
Flores e o céu vão perguntar em breve,
Quando a encosta a dobrar na volta leve
Que o rio quebra, à curva das campinas.
“De qual tenda de gelo, em fins de polo,
Velho enfermo, acordaste, e ora te encostas
Aqui e ali, com sono, a fronte ao colo?
Anda, que é cedo ainda, à cama! ao leito!”
Mas surdo o Inverno avança, o manto às costas.
E a espessa barba a lhe sobrar no peito.
II
Pois venha o Inverno desflorindo a entrada
Destes campos, e a neve aos serros monte;
Já me não dói que em pouco abandonada
Seja a planície próxima defronte.
Erme-se o velho, esfolhe-se a ramada,
Volúveis nimbos pairem no horizonte;
E dentre a opaca cerração reponte
Tíbia pálida a luz da madrugada.
Chegaste, és minha, abraço-te... Lá fora
Que importa o Inverno?... esqueço-o, e vou cantando,
Que a Primavera nos teus olhos mora;
E ver-te é vê-la que me vem trazida
Por dous sóis, das mãos leves derramando
A cornucópia de Aqueloo florida.
XI
A S. Sebrão
Foi, rompendo o mirtal de verde manto,
— Morria a tarde, além, tonitruosa,
Bóreas soprava — que uma voz maviosa
Feriu-lhe o ouvido, em prolongado encanto.
Dizia a voz: — “Ó deusa, ó cobiçosa
Alva espádua do mármore mais santo,
Não seres minha!...” E era mais doce o canto,
Quando de pronto a Ninfa, de amorosa,
Surge. E com os lábios grossos aplicados
À flauta, um monstro vê cantando. Espreita...
Foge... E ao fugir com os passos apressados:
“Ah! que tão doce música que escuto,
Não coubesse a uma boca mais bem feita
Que a boca de um gigante horrendo e bruto!”
XII
Foram-se os deuses, foram-se, em verdade;
Mas das deusas algumas existe, alguma
Que tem teu ar, a tua majestade,
Teu porte e teu aspecto, que és tu mesma, em suma.
Ao ver-te com esse andar de divindade,
Como cercada de invisível bruma,
A gente à crença antiga se acostuma,
E do Olimpo se lembra com saudade.
De lá trouxeste o olhar sereno e garço,
O alvo colo onde, em quedas de ouro tinto,
Rútilo rola o teu cabelo esparso...
Pisas alheia terra... Essa tristeza
Que possuis é de estátua que ora extinto
Sente o culto da forma e da beleza.
XIII
A Alberto Franco
Vamos reler Teócrito, senhora,
Ou, se lhe apraz, de Teos o citaredo;
Olhe a verdura aqui deste arvoredo
À beira d’água... E o sol que desce agora.
Lécio, o pastor, nesta colina mora,
Onde as cabras ordenha. Este silvedo
Retém de Umbrano à frauta a voz sonora,
Guarda este arbusto a Títiro o segredo.
Esta água... Olhe, porém, como é tão pura
Está água! O chão de nítidas areias
Plano, igualado, límpido fulgura;
E onda é tão clara que, entreabrindo o louro
Cabelo, em grupo as trêmulas sereias
Vêm-se lá embaixo neste fundo de ouro.
XIV
Guarda-lhe a porta à câmara esquisita
Um anjo; e, se ela dorme, esse anjo espreita
Em roda, e ao punho o alfanje de ouro estreita;
E, se ela treme, o alfanje de ouro agita.
Não há transpor essa mansão bendita!
Pés profanos lá dentro quem suspeita?
Vela a guarda, de pé; na mão direita
Arde o ferro luzente que exercita.
Em paz, desejo meu, que ardente estuas!
De seus límpidos pés o arminho brando
Nem te é dado roçar com as asas tuas!
Olha-a apenas da porta... e a sombra escassa
Dessa arma inveja, fulgurante, quando
Móbil projeta-a, e ela em seu rosto passa.
XV
A Generino dos Santos
Às mãos o escopro, olhando o mármor: “Quero
— O estatuário disse — uma por uma
As perfeições que têm as formas de Hero
Talhar em pedra, que o ideal resuma.”
E rasga o Paros. Em divino esmero,
Eis se arredonda a fronte em nívea espuma;
Eis ressalta o nariz de um talho austero;
Alça-se o colo, o seio de avoluma;
Alargam-se as espáduas; veia a veia
Mostram-se os braços... Cede a pedra ainda
A um golpe: e o ventre nítido se arqueia.
A curva, enfim, das pernas se acentua...
E ei-la acabada a estátua, heroica e linda,
Cópia divina da beleza nua.
XVI
Vem de onde estás! C’roaram-se as colinas,
Como noivas do sol, do sol com os lumes;
Ah! com as chuvas de há pouco nem presumes
Que verdes que se alisam as campinas!
Revestem-se os outeiros de boninas,
Como outrora de acanto o altar dos Numes;
Flóreas caçoulas partem-se em perfumes;
Já vão fugindo as últimas neblinas.
É um toro verde o chão do vale. Ao brando
Mover da aragem dobram-se as palmeiras,
Como ancilas, os leques agitando.
Vem de onde estás, que em tudo vejo aqui
Teu nome escrito, e as aves que primeiras
Voaram, já estão a perguntar por ti.
XVII
Da assombra alameda entre os dispostos
Em ordem grupos de árvores passamos.
Ela tinha nos meus seus olhos postos...
Soava no espaço a música dos ramos.
Eu... com que doce voz que nos falamos!
Com vê-la abria mão de ruins desgostos;
Da espessura entre os flóridos recamos
Coava-se a luz, batendo em nossos rostos.
Ela, quando mais próxima do lado
Que há ali, com um cisne à flor, me disse, ao vê-lo...
O eco da sua voz no ouvido afago.
Havia, no ar, do sol a imensa mágoa;
E no lado a estampar-se o seu cabelo
Era um sol a afundar-se dentro d’água.
XVIII
A Anastácio Vianna
Por toda a noite, inquietas despertando
Da lua ao beijo de ouro iluminado,
No alto páramo azul, de lado a lado,
Andaram as estrelas perguntando:
— “Que há na Terra, lá embaixo?... Um tom magoado
Vem as esferas místicas entrando...
Trina que voz? que deus de enamorado
Vai da harpa curva os ecos derramando?”
Ingênuos astros! digam de uma em uma
As ondas do oceano, a face calma
Diga dos lagos, diga a flor, a espuma,
Diga o rochedo, a folha, a ventania,
E as palmeiras, abrindo palma a palma,
De onde e por quem aquela voz se ouvia.
XIX
A A. Duarte
Cisma ao triclínio a bela que da Acaia
Veio à luta assistir de homens e feras,
E como traz do olhar no céu, que esmaia,
Outro céu, outro sol, outras esferas.
Que há por que triste seja a loura Aglaia?
Corados vinhos golfam das crateras,
Luzem taças no ar, e a mesa espraia
Rubro mar de licor e festões de heras.
Embalde! embalde púrpuras cantando,
Tinintes copas cruzam-se festivas...
Pensa Aglaia em Leucipo: a arena entrando,
Como era belo! os braços nus, pendente
A espada, o pique posto às mãos ogivas...
Era o sol dos atletas do Oriente!
XX
Ao Dr. Henrique Batista
I
Desceu da escada o mármore polido
Porque, enfim, minha voz de medo a medo
Chamando-a, como um pássaro perdido
Outro chama da sombra do arvoredo.
Da lua de ouro o disco umedecido
Se empinava no céu. Tristonho e quedo
Era tudo em redor; somente ouvido
Fazia-se das auras o segredo.
Veio. Assustada, pálida, distante
Olhou-me e estremeceu, talvez no instante
Em que eu também, de longe, estremecia.
Ah! se um canto entre as ramas que oscilavam
Então se ouviu, não foi a cotovia...
Entre dous corações que se apertavam.
II
Entrou. Ainda suponho a portinhola
Ouvir nos quícios rápida impelida
Fechar-se. E nada mais! Da umedecida
Noite o perfume balsâmico se evola.
Da casa o mudo aspecto me consola:
Muda como eu, parede a prumo erguida,
Como eu, sem conto estrelas, dolorida,
Estás a rever de um céu que as desenrola.
Largas janelas, peitoris altivos,
Colunas da açoteia alevantada,
Como eu, quedais lá em cima pensativos.
Porta onde ela passou, que ma encobriste,
Também tu, qual me vês, estás fechada,
E imota, e muda, e solitária, e triste!
XXI
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.
MACHADO DE ASSIS
Há pouco, dentre a suspendida arcada
Do modesto jardim, que a luz vigora,
Estava a rir e a cantar, desentrançada
A coma entregue aos hálitos da aurora.
Vede-a agora, porém: não canta agora,
Não ri. Da leira de jasmins plantada
A censura partiu que a traz mudada?
Quem a asa de ouro lhe empeceu num’hora?
Cisma, sozinha está melhor cismando;
Olhos demissos, que um desejo estrela,
Quando fala é com medo e titubando...
Nunca tanto carmim rosou-lhe a face...
Como que o sol desperta dentro dela,
E aquele sangue é o da manhã que nasce.
XXII
Chove, embrusca-se o tempo, e quando ao frio
Fuzil, trovão, nos côncavos ribombas
Do céu, vejo passar, como num rio
Nadantes monstros, nuvens de éreas trombas.
Só, desta alcova, cárcere sombrio,
Onde entre morte e amor, minh’alma, tombas,
Meu ser, meu coração, meus ais lhe envio,
Por céu de bronze solitárias pombas.
Não vê-la, e o tempo ver, que mais redobra
Sombra e noite que envolve a natureza,
Plena d’água, de horror, de medo e espanto!
Abro a janela: e a escuridão que sobra
Das cousas, me enche o peito de tristeza,
E, em fina chuva, os olhos meus de pranto.
XXIII
A. C. Coelho
Olhos fitos na altura, — enquanto morre
A tarde, enquanto à flor do firmamento
Correm as nuvens, — como as nuvens, corre
Até junto de Deus teu pensamento.
Ao filho enfermo, nesse atroz momento,
Pedes que ele socorra; e enquanto escorre
Teu pranto, da oração no exaltamento,
Mãe sublime, supões que ele o socorre.
Mas um grito de súbito no centro
Ouves do coração pressago. Ansiando,
Entras em casa. O filho está lá dentro
Morto, e ao beijá-lo ouves-lhe ainda, ó louca!
De teu nome saudoso o rumor brando
Das derradeiras sílabas à boca.
XXIV
Tal como douda garça, aos mares! Uma vela!
Uma vela! e é partir. Afronta o horror das vagas
Negras se a noite as monta e as incha o vento, às pragas
E ao clarão e estridor do raio e da procela.
Nem todo o equóreo abismo, entre as equóreas fragas
Ruindo, errante e estouraz, com a espuma à fauce e aquela
Luz dos ruivos fuzis como serpentes nela,
Pode o inferno igualar que em teu silêncio esmagas.
Rompe, atira-te ao pego, a escuridão profaça
De a venceres no horror que no teu peito engrossas;
Talha os ventos, o oceano, as ondas sulca, e passa...
Talvez longe, entre o sol de estranho, ao fundo
Do horizonte, há um deserto em que dormir tu possas,
Sem o incômodo olhar dos homens e do mundo.
XXV
À Exma. Sra. D. Clarinda P. de Lima
Esta de áureos relevos, trabalhada
De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de servir aos deuses como agastada,
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.
Era o poeta de Teos que a suspendia
Então, e ora repleta ora esvazada,
A taça amiga aos dedos seus tinia,
Toda de roxas pétalas colmada.
Depois... Mas o lavor da taça admira,
Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas
Finas hás de lhe ouvir, suave e doce.
Ignota voz, qual se da antiga lira
Fosse a encantada música das cordas,
Qual se essa voz de Anacreonte fosse.
XXVI
À Exma. Sra. D. Aglae P. de Lima
Estranho mimo aquele vaso! Vi-o,
Casualmente, uma vez, de um perfumado
Contador sobre o mármor luzidio,
Entre um leque e o começo de um bordado.
Fino artista chinês, enamorado,
Nele pusera o coração doentio
Em rubras flores de um sutil lavrado,
Na tinta ardente de um calor sombrio.
Mas, talvez por contraste à desventura,
Lá se achava de um velho mandarim
Posta em relevo, a singular figura;
Que arte em pintá-la! a gente acaso vendo-a,
Sentia um bem estar com aquele chim
De olhos cortados à feição de amêndoa.
XXVII
A João Ribeiro
I
Pã não era por certo deus tão lindo
Que merecesse ninfa como aquela;
Fez mal em persegui-la, e bem fez ela
Pedir a um colmo encantamento infindo.
Só de vê-lo as oréadas, sorrindo,
—E destas uma só não foi tão bela
Como Sirinx, — armadas de cautela,
Pronto aos mirtais botavam-se, fugindo.
E, pois, por tal cornípede devia
Gastar as áscuas de amoroso incêndio?
Não! — E a influxo das Náiades, um dia,
Perseguida do deus, o movediço
Ládon procura, estende o corpo, estende-o...
E ei-la mudada em trêmulo caniço.
II
Que se imagine como o deus ficara
Quando, crendo estreitar a Ninfa esperta
Que lhe fugia, apenas uma vara
Delgada e frágil contra o peito aperta.
Vendo-o em tal ilusão, que assim lhe armara
Amor, da oposta margem descoberta,
Um risinho de escárnio, que o desperta,
Tiniu do rio na corrente clara.
Então, da planta virginal, no assomo
Da raiva, o caule fino o deus vergando,
Parte-o em várias porções, de gomo em gomo.
Tais partes junta; e em música linguagem,
Com os pastores no canto concertando,
Põe-se a soprar no cálamo selvagem.
III
Da agreste cana à módula toada,
Da Arcádia pelos íngremes outeiros
Vinham descendo, em lépida manada,
Lestos, saltões, os Sátiros ligeiros.
E a flébil voz da flauta, soluçada
De ternuras, soava entre os olmeiros;
Já nas grutas as Náiades em cada
Sopro os ecos lhe escutam derradeiros.
Hamadríadas louras palpitando
Estão no líber das árvores; danosas
Napeias saltam do olivedo, em bando.
E presa à flauta a Ninfa que a origina,
Sirinx pura, as notas suspirosas
Derrama d’alma à vibração divina.
XXVIII
A A . MENDES
Quando ela entrou, com um gesto de rainha,
Pálida e bela, altiva e desdenhosa,
Quedou-se em torno a sala rumorosa,
Tão nobre aspecto a divindade tinha.
Quem era essa mulher esplendorosa
Que a luz do raio e a luz do sol continha?
Falia, interroga a multidão ansiosa...
Ninguém soube jamais de onde ela vinha.
E inda depois que a aparição divina
Sumiu-se, no clarão que atrás deixara
Queimam-se as almas em que amor domina;
E em vago sonho inquieto e prolongado
Reveem todos a forma aérea e clara
E a imensa luz d’aquele vulto amado.
XXIX
A SOARES DE SOUZA JÚNIOR
Ébrio, cambaleando, à monótona giga
D’água que vê saltar na praia aos ventos, anda,
Contam — desde que o sol o extremo céu demanda,
Um louco enviando ao mar uma rude cantiga.
Pisa a areia, resvala, aos tombos vai, desanda,
Cai, pragueja... afinal descansa, de fadiga
Dorme. A boca no vácuo um termo vão mastiga.
Sobre ele a noite o orvalho, à tênue luz, ciranda.
Então, bufando o mar em côncavos recolhos,
Dos buídos pés lamber-lhe as plantas vem, no entono
Da vaga. Enquanto a lua ao longe aponta e, em molhos
De prata, abrindo a luz, desce do ebúrneo trono,
E, pousando na praia, os avinhados olhos
Beija ao ébrio, e, de pé, vê-lo a roncar no sono.
XXX
Enfim... Nas verdes pêndulas ramadas
Cantai, pássaros! vinde ouvi-lo! rosas,
Abri-vos! lírios, recendei! medrosas
Miosótis e acácias perfumadas,
Prestai-me ouvido! Saibam-no as cheirosas
Balsas e as leiras úmidas plantadas;
Aves e flores, flores e alvoradas,
Alvoradas e estrelas luminosas
Saibam-no, saiba o céu com a esfera toda
Que, enfim, sua mão, enfim, sua mão de leve...
Borboletas, que pressa! andais-me em roda!
Auras, silêncio! Enfim, sua mãozinha,
Sua mão de jaspe, sua mão de neve,
Sua alva mão pude apertar na minha!
XXXI
Só meu amor quisera permitido.
A.de Souza de Macedo. — Ulissipo.
I
Stava a pensar há pouco que ela vinha,
Como dissera: e, entrando em casa, ao braço
Do marido, — na escada, entre embaraço,
Estendia-me a trêmula mãozinha.
Com as mais pessoas conversando, a linha
Ora vê do horizonte, ora o terraço...
E eu suponho, a lhe ouvir o som do passo,
Tornar ao tempo em que a julgava minha.
No quarto, onde medito e leio e estudo,
Apraz-lhe entrar; depois, à despedida,
Mal disfarça uma lágrima no adeus!
Vai-se. Abro o cofre da passada vida:
O mesmo é o seu retrato, e vejo em tudo
Seu nome escrito e os juramentos seus!
II
Tal supus e ela quis que se cumprisse,
Mas com a emenda de um mal que não tem cura...
Sim, no olhar o notei, talvez que o ouvisse
No riso mesmo e em sua voz tão pura.
Chegou... Longe daquela criatura
Que a maltrata, a passada meninice
Avivara-lhe o rosto, e a formosura
Mais esplendia de seu todo. E disse...
Disse com os olhos úmidos, da fala
Com a tremura, com o gesto doloroso,
Disse tudo... E ao notar que estremecia
Todo o meu corpo em frêmito nervoso,
Prudente e honesta, um dedo ao lábio: — “Cala!
Cala!” — também a estremecer, dizia.
III
Como uma sombra amiga que a piedade
Afigure, em meu quarto a imagem dela
Ficou, dos zelos a infernal procela
Domando com a divina majestade.
Avulta, cresce e me domina aquela
Sombra, e ao meu peito ouvindo a tempestade,
Com um olhar de ternura e de bondade
Serena-a, como uma serena estrela.
É razão que eu me curve, e sonho a sonho
Desça do azul, em que fundei no vento
Belo templo ideal que ora desaba...
Ouve, minh’alma, o estrépido medonho...
Ouve, e treme de ouvi-lo, pensamento!
É teu mundo de amor que cedo acaba.
IV
Que me quer esta lágrima?... Chorei-as
Todas... Mas tu, ó lágrima querida,
Tu só ficaste, e vais rolar sem vida,
Longe de suas mãos de finas veias!
Ela também, ó lágrima sentida!
Teve de pranto as pálpebras tão cheias,
Como de um lírio, em meio das areias,
A urna de orvalhos, de manhã perdida.
Mortos para sempre!... Lágrima, secaram
Tuas irmãs! com elas des’parece,
E apaga-te, como elas se apagaram!
Olha: à face que amei se eu te levasse
Num beijo extremo e te espalhado houvesse,
Tu gelaras... tão fria é sua face!
V
Mortos para sempre!... Cala-te, e padece,
Coração! ela o quis: padece e cala...
Ela que honesta e pura te aparece,
E, um dedo ao lábio, te aconselha e fala!
Como inda em vida arremessado à vala,
A dor no esquecimento te arremesse;
E seja a tua derradeira prece
Teu respeito em servi-la e venerá-la.
Ela também, que a dor que te amortalha
A ambos colhe no golpe, cai ferida
E o rosto a quentes lágrimas orvalha...
Mortos para sempre!... Ó sombra! escuridade!
Só, de teu seio, escutarei sem vida
O rouxinol da última saudade.
VI
Mortos para sempre!... Branca, inanimada,
Tu cosida à mortalha escura e fria,
Inda no alvor de teu primeiro dia!
Eu — com ver-te tão cedo amortalhada!
Mortos para sempre! Um’hora de alvorada,
Um minuto de céu quem nos diria
Foi nosso amor nessa manhã sombria,
De receosas lágrimas banhadas!
Mortos, mortos pra sempre!... E hás de em teu leito
Tremer, cuidando que da noite, fora,
Chega um fantasma que te aperta ao peito...
E ao peito, ao peito eu, só, no meu jazigo,
Tu’alma pura apertarei — se um’hora
Posso na morte adormecer contigo.
XXXII
A LEANDRO MALTHUS
Entre dous montes — o do Ocaso, tinto
Da cor viva do murice, brilhante,
E de rosas cingido o do Levante —
O Éden ficava, o nosso vale extinto.
Nele, às mãos uma Flora deslumbrante
Verde enredava estranho labirinto;
E o val sorria ao sol, torcendo o cinto
De águas de prata pelo corpo, ondeante.
Ali voavam os pássaros mais raros,
Catasolados, púrpuros... abriam
Alvas de nácar sob os céus mais claros;
E as horas breves da ventura, quando
Ali estavas, mais longas me sorriam,
O ouro das asas pelo chão deixando.
XXXIII
Naquela boca melindrosa e pura,
— Taça antiga finíssima, lavrada,
Sorvo a ambrosia aos deuses consagrada,
Do soma indiano os estos da ventura.
Em cada beijo que lhe tomo, em cada
Sopro há a lasciva cálida loucura
Que, ébria, douda, convulsa, alucinada,
Nos lautos bródios báquicos murmura.
De amplos côncavos cântaros divinos
Cuido ver o falerno que espadana...
Loiram cerames rútilos mitinos;
Rebrama a orgia, — e ao lúbrico alarido,
Heroínas e heróis, em grita insana,
Brindam ao deus de Sêmele nascido.
XXXIV
A A. C. de Oliveira Vianna
Vê como a Natureza é grande e bela!
Olha aquele apinhado de colinas,
E o sol que desce, e está do céu na tela
Como um borrão de tintas purpurinas.
Olha estes ares límpidos! aquela
Planície ondeante, liquidas campinas;
E já no Oriente esta primeira estrela...
E estas furando o espaço repentinas!
Olha aquelas aquátiles gaivotas
Que d’asa arrancam na marinha bruma;
Arquipélagos longe... ilhas remotas...
E a Noite agora, enchendo os horizontes,
Olha — as nuvens lá desce de uma em uma,
Tropeçando no píncaro dos montes.
XXXV
Fragmentos
Perdut’hò quel, che ritrovar non spero
Dal Borea all’Austro, o dal mar Indo al Mauro.
Petrarca
I
Austero e frio, entrar no aposento
O médico: — “É preciso o seu cabelo
Cortem.” — Dissera. E eu vi, — nem sei dizê-lo!
Cair-lhe as tranças nesse atroz momento.
Agora mais faminto, mais violento
Crescia o mal. Da morte o escuro selo
Já sobre a fronte lhe notava, e ao vê-lo,
Dor a dor me estalava o pensamento.
O olhar preso no meu, no etéreo fundo
De seu olhar um anjo me acenava,
Como a dizer: — “Já basta deste mundo!”
Com um sorriso no lábio, ela morria...
E o anjo lá estava: em seu olhar, me olhava,
Em sua boca, em seu sorrir, sorria.
II
Ó minha Laura, quem do livro aberto
Em que líamos ambos, os amados
Olhos teus afastou, para fechados
Serem no sono de uma noite, incerto!?
Quem dentre os níveos dedos delicados
Em que o trazias, lendo-o, de mim perto,
O poema arrancou que eu vi coberto
De tantos sóis que tinha, imaginados?!
Doce leitura! negra pausa infinda...
Como que por encanto ainda hoje eu creio
Ver aberto esse livro e lê-lo ainda;
E em cada folha em que meus olhos ponho,
Palpita o nosso amor com o mesmo anseio,
E as nossas ilusões com o mesmo sonho.
III
Disse ao poeta a Saudade: “Ao mundo ascende
Dos sóis, por lá, das asas minhas, vê-la...”
E o poeta subiu de estrela a estrela,
Subiu. Chamou debalde. Alonga, estende
Os olhos... O ar somente avista. Empreende
Maior passo. Mais sobe. Em luz mais bela
Arde o espaço. Mais sobe. E em toda aquela
Altura apenas o silêncio o entende.
Como a infinita serra, — a grito e grito,
Olhando acima e atrás, trepa o infinito...
Estende a mão, procura... estende a mão,
Procura... estende a mão, procura... e luta
Debalde, e fala, mas somente escuta
O rolar das estrelas na amplidão.
IV
Porventura algum dia acaso ouviste,
À noite, a voz das velhas cartas, quando,
Papéis antigos remexendo e olhando,
No recesso dos íntimos buliste?
Eu conheço essa voz, sei que ela existe.
De antigas letras descorado bando
Tenho ouvido falar, se vou pensando,
Vendo-as à luz, apaixonado e triste.
Daqui sai de um irmão que se desvela
O conselho; entre mostras de piedade
Nesta linha há uma lágrima; naquela
De amigo ausente inda a expressão conforta;
Nesta — arrasam-se os olhos de saudade —
Vejo as letras finais da amante morta.
V
Vês com as arcadas negras suspendida
No ar esta ponte imensa, — o céu de um lado,
A terra do outro, e tudo ilimitado?
Seu nome queres tu? chama-lhe — Vida.
Vê como horrenda é toda, e alta e comprida!
Faz medo... — E onde termina? — Onde acabado
É tudo e novamente começado:
No mistério, na treva indefinida...
— E esses vultos que a estão, mudos, subindo?
— Sombras. — E esse atro uivar medonho, e grito?
— Dores. — E acima é o céu que está fulgindo?
— É o céu — E para em salvo atravessar
Esta ponte e ir lá ter, que necessito?
— Amar, amar, eternamente amar.
VI
Teus olhos, flor, vêm-me lembrar o encanto
De outros olhos, porém de luz mais bela,
E tanto que cegava, e tanto, tanto
Que eu mais julgava-a a luz de alguma estrela.
Tudo neles havia e estava quanto
No lume etéreo e vivo se revela,
Tão fundos que do céu se via o manto
Cem léguas através dos olhos dela.
Anjos por eles doidejantes iam
N’uma acesa espiral, e sons frequentes
De asas rufiadas rápidas se ouviam...
Nuvens brancas, estrelas de oiro fino,
Luares de prata, raios transparentes
Tudo boiava n’esse olhar divino.
XXXVI
Estás a ler meu livro, e é bem que exprimas
Certo pesar. Nem uma vez, nem uma
O teu nome estas páginas perfuma!
E outros há aí por títulos e rimas.
“Quem são essas que vêm de estranhos climas,
De idades mortas, da salgada espuma
Do mar, da Grécia, de teu sonho, em suma,
Que mais que a mim tens celebrado e estimas?”
Dirás. E o livro, se meu ser traslada,
Se o fiz de modo tal que me traduza,
Contas dará de quanto em si contém;
Saberá responder que és sempre amada,
Que nele estás, pois foste a sua musa,
E essas mulheres só de ti provêm.
I
A Afonso Celso Júnior
Ces yeux ! ces larges, ces brillantes,
ces divines prunelles !...
Edgar Poe. — Ligeia.
Os versos que ora trabalho,
Trabalho-os por teu olhar:
És o sol de que me valho
P’ra os doirar.
Susténs o helicônio cetro
Mais com os olhos que com a mão;
N’eles, pois, se inspire o metro
Da canção.
Loiras imagens, — pequenas
Abelhas da ideia, voai!
Com os vítreos pés das Camenas
Me rodeai!
Quero uma c’roa das flores
Mais lindas, — real, porém;
São dous os imperadores,
Vede bem!
Têm pleno domínio em tudo,
E, assim como um Faraó,
Vestem-se de ostro e veludo
E ouro só.
Eia, canção, o diadema
Desses monarcas gentis!
Merecem mais do que a estema
Das Huris!
Merecem o Paraíso
Radiante dos muçulmãos,
E o ramo de heliocriso
Dos pagãos!
Para cantá-los é força
Que do estro a boca febril,
Aleando a ideia, se torça
N’um anafil.
Que eu tenha à mão, porque a fira,
Fórminx ou cítara. A mim
Do aedo helênico a lira
De marfim!
Que os mais os trombões insuflem
Do poema. Não quero tal,
Mas lestas rimas que ruflem
A asa ideal.
— Exíguos clarins do verso,
Que n’elas, aliveloz,
Em metro escandido e terso
Cante a voz.
Sobre a canção que componho,
Loiras imagens, pousai!
E, como os anjos de um sonho,
Me rodeai!
As rimas se cubram do ouro
Dos olhos teus, porque, enfim,
Há n’eles mais que o tesouro
De Aladim.
Sim, que riqueza! que raro
Escrínio contém, mulher!
Ai! D’eles se os visse o Avaro
De Molière!
Entrai por tanta opulência,
Meus versos! n'esse esplendor
Louvai, não a Providência,
Mas o Amor!
Vamos, saudemos a dona
Dos olhos de ouro. Canção,
Voa, e depois te abandona
Em sua mão.
Direi a luz que semeias
Em minha noite, farol!
E as joias de que te arreias,
Como um sol!
Dos olhos teus os queixumes
Direi, a ternura e o bem,
E mesmo os vagos perfumes
Que eles têm.
Que cada estrofe traduza
Tudo o que encerram à flux
E interno. Esvoace a Musa
Em sua luz.
Que os versos que ora trabalho,
Trabalho-os por teu olhar:
És o sol de que me valho
P’ra os doirar.
II
A Machado de Assis
Movendo os pés cor de brasa,
Foram as três, com cautela,
Subindo o muro da casa
De dona Estela.
— Arriba! diz a primeira.
— Mais devagar... diz com isso
Segunda. Diz a terceira:
— Sei onde piso.
Noite fechada, propícia
À ideia, ao plano que as leva...
Nem de uma brisa a carícia!
Silêncio e treva!
De pronto um grilo de um canto:
— Onde ides, minhas amigas?
E um calafrio de espanto
Nas três formigas.
Ah! mas um rosto aparece
Em cima, numa janela...
— É ela? — O rosto parece
De dona Estela!
Tri... tri... entre as asas geme
O grilo. E pernalta aranha
Na trama de ouro em que treme
Quase o apanha.
E agora se atemorizam
As três. É tudo embaraços!
E a cal somente que pisam
Lhes ouve os passos.
Em uma após outra se encaram
Tremendo; ora hesitam, ora
Conversam baixinho, param
Por mais de uma hora.
Súbito como fracassa
O mura a um trovão, que as gela...
Arriara-se a vidraça
De dona Estela.
— Melhor é voltarmos, logo
Uma aconselha, em segredo;
Outra abre os olhos de fogo,
E é toda medo.
Terceira chora, encolhido:
— Tão alto! já estou cansada!
Meu Deus, certamente a vida
Não vale nada.
Mas sobem, que é necessário
Subir. Jesus, o benquisto,
Subiu também seu calvário,
E ele era o Cristo!
— Janela, enfim! num alento
Exclama a que mais anela
Primeira ser no aposento
De dona Estela.
— Por esta frincha... — Por esta...
— Melhor... — Entremos. — Avante!
E uma olha, analisa a fresta,
E rompe adiante.
Seguem-na as duas. Estreito
É o trilho. Vão. Tal num berro
Vai por um túnel direito
Um trem de ferro.
Ei-las estão da outra banda,
Na alcova. Espreitam em roda
À luz da lâmpada, branda,
A alcova toda.
E veem, por entre os adornos
De um leito vistoso, a bela
Fronte, o perfil, os contornos
De dona Estela.
Azul-celeste à parede
Sobre o papel que a reveste...
É toda a câmara, vede:
Azul-celeste!
Tenda de neve! — a cortina;
Dous bustos, um ramilhete
Além; descalça botina
Sobre o tapete.
Num quadro de luzidio
Ébano, um vulto guerreiro:
Perfil severo e sombrio
De cavaleiro
De Espanha; olhar atrevido,
Espada à cinta, e escarcela...
— É com certeza o marido
De dona Estela.
E o espelho... como cintila!
Parece de um lago a nua
Face, que leve se anila
Com a luz da lua.
No toucador como esparso
Há tanta cousa! um diadema,
Alvas penugens de garça...
Todo um poema!
E um vaso com a mais festiva
Das rosas! — Meu Deus, acaso
Há rosa também que viva
Dentro de um vaso?!
E à flor o assalto preparam
As três formigas... Ai! dela,
A flor, que os lábios beijaram
De dona Estela!
Descem o muro. Profundo
Silêncio. Tudo parece
A miniatura de um mundo
Que se amortece.
Sobem aos móveis. No teto
Nem sombra de asa perdida
Do mais pequenino inseto...
Tudo sem vida!
Chegam à rosa. Que altivo
Seio encarnado! Que encanto
Nesse encarnado lascivo
Que tem no manto!
E uma se adiante animosa,
Mais esta após, mais aquela...
Ai! rosa, querida rosa
De dona Estela!
Correm-lhe as pétalas. Uma
Desce-lhe ao pólen, que toma;
De boca aos pés se perfuma
Com seu aroma.
Enchem-se de ouro, que é de ouro
Su’alma. Sedas desatam
Que a prendem. Vida, tesouro,
Tudo arrebatam.
E de assombrosa riqueza
Vendo-se alfim carregadas,
E mais do que da árdua empresa
Recompensadas,
Lá vão a fugir, com o jeito
Do que em roubar se desvela...
Mas nisto estremece o leito
De dona Estela.
É dia. A dona da alcova
Já está de pé: e, ansiosa,
Por que mau sonho remova,
Vai ver a rosa.
Toma-a do vaso às mãozinhas;
Mas ao beijá-la, a senhora
Descobre as três formiguinhas,
e... sopra-as fora.
— Ah! que tufão repentino!
As três, no ar, na ansiedade
Da queda, exclamam sem tino...
— Que tempestade!
Longe, bem longe, erradias,
Caíram. Nem se mexeram
De espanto quase dous dias...
Depois morreram.
Eis das formigas o caso.
A rosa... fale por ela
Outra que é nova no vaso
De dona Estela.
III
Deixa-me extravagar, serena estátua.
És minha.
O escultor te depôs nos braços meus, rainha
De mármor; quando um dia o Paros trabalhava,
Eu no lavor da pedra o seu cinzel guiava,
Eu era o sonho, eu era a ideia, ele esculpia
O que eu d’alma arrancava, o muito que eu sentia
De amor, de luta e febre e de estos de loucura
E paixão. Fez-se a estátua. Em finíssima alvura
O seio ergueu-se, o colo, a fronte, o rosto. E eu, mudo
E extático, osculei-lhe a fronte, o colo, tudo!
A estátua é minha! a estátua entre os meus braços prendo!
Beijo-a, com o bafo a aqueço, as pálpebras lhe acendo
Com o meu olhar; ao peito as veias rasgo, e cheias
Torno-as de sangue meu, tomado às minhas veias;
E ela vive, ela anseia e treme! ela palpita!
Move os olhos de pedra! a mão levanta e agita,
E acorda! acorda e vê-me... E ao ver-me, oh! desventura!
Ei-la pedra outra vez, insensível e dura!
Ei-la estátua outra vez, silenciosa e fria!
Insano extravagar! Insana fantasia!
IV
Oh! pasmo! oh! portento! oh! nunca visto caso!
A. Diniz
Conta um Hino pagão que certa vez o errante
Poliônimo deus, o efebo louro, o amado
Das Évias, — Baco, à estrema
Estando de um promontório, o manto desdobrado
Ao ombro, o tirso à mão, e à testa a parra ondeante
Posta a modo de estema;
Foi do Tirreno mar por uns piratas pronto
Arrebatado. O mar a embarcação ligeira
Corta. Bojada a vela
Vai com o vento. E atrás fica a luminosa esteira,
A agua fica a espumar; e, entre os raios sem conto,
O sol faiscando n’ela.
E aos d’aquela companha, olhando-os, um pirata
Diz: “É um filho de rei, por certo, este menino;
Eia, ao largo rememos!
Da Ásia aos haréns vendido, é força, é seu destino,
Será, e o ouro que der e as pérolas e a prata
Juntos repartiremos.”
Mas de súbito o deus, que os ouve, encantamento
Lança em tudo, e os perturba. O grande mastro a prumo
É um tronco; anda enlaçada
A hera n’ele. Um dragão lá voa em cima. O rumo
Perde a nau. Se emaranha a douda vela ao vento,
E é vinha empampanada.
São bacelos que em flor das mãos dos remadores
Rebentam, como ao sol, os remos. Cintilantes
Rácimos já palpitam . . .
Zumbem, como no Himeto, as abelhas. Brilhantes,
Tintos bagos no ar de pavonaças cores
Apinhados se agitam.
E da quilha da nau, como em convívio estranho,
Jorra o vinho no mar. São vinho as águas. Toda
Face é purpura. As vagas
Têm do licor de Chipre os róseos tons; em roda
Vinho fervem em flor, e vão de banho em banho,
Corar longe outras plagas.
E um leão aparece e ruge horrendamente
À popa; e, aberta a fauce imane, imensa e ruda,
Um urso. E a cordoalha
Ringe e torce-se toda e silva e se transmuda
Em hidras; e, derredor à boquiaberta gente
Do alto roja e se espalha.
Depois vegeta o mar, é todo verde. Extensa
Nava, campos sem fim distendem-se ondulando...
E de árvores frondosas
À sombra vêm-se agora as ovelhas pastando...
E a espuma, que era vinho, erra ao vento, suspensa,
Em pétalas de rosas.
Poeta, és como esse herói, cujo prodígio narra
O Hino Homérico. À voz de tua musa um mundo
Novo surge, amanhece
Outro sol; e da vida o imenso mar profundo,
Como aos olhos do deus que o mirto cinge e a parra,
Verde e ameno aparece.
Anjos, sombras, visões, que em tua mente ideias
D’ali rompem: d’ali, como às antigas aras,
Aos antigos altares,
A báquica falange avança e canta, e as claras
Formas nuas mostrando, ao passo das coreias,
Louros dão-te aos milhares.
V
A André Rangel
Como o excesso de um rio,
Que se espraia e derrama:
Amor, em quem confio,
Do coração que nunca está vazio
Fora em água sobeja e em fogo, em chama.
Sou como o campo em hora
De enchente: Amor me alaga,
E teu nome, Senhora,
Senhora minha, Amor que te namora
Está dizendo, a brincar de vaga em vaga.
Olha-me os olhos, fita
A agua d’eles, que escorre;
Amor os move e agita,
Uma lágrima cai, outra palpita,
Esta grita, esta canta, aquela morre.
Amor todas criado
Tem-m’as n’alma, Senhora;
Estila-as meu cuidado,
E do lago de lágrimas formado
Algumas sopra pelos olhos fora.
Escrevi que me havia
Como o campo na enchente:
A enchente, todavia,
Se se entorna no campo é sempre fria,
E a de Amor que me lava é fria e ardente.
Ardente, — é que encarcero
Desejo que me mata;
E sendo quanto quero
Impossível, me aumenta o desespero
De querê-lo com o ardor que me arrebata.
Assim, de meu desejo
O imperecível fogo,
Nas lágrimas sobejo,
D’entre as lágrimas sai quando te vejo;
E eis água e chama n’um contínuo jogo.
E tão contínuo e em tanto
Movimento, Senhora,
Que a vista minha, em quanto
Dura o jogo, se acende de meu pranto,
Qual de raios e lágrimas a aurora.
Tal Amor por castigo
Aos olhos me tem posto;
E o mais que usa comigo,
Se o não diz de olhos meus, não sei se o digo
Se contigo me vejo rosto a rosto.
Águas, chamas, tu queiras
Senhora, é tudo extinto:
Seca um beijo as primeiras,
Um sorriso me apaga as derradeiras,
Me apagando o calor que com elas sinto.
Amor nem mais te pede...
Urge! que dor mais alta:
Morrer de frio e sede
Quando fogo se tem que a vista impede,
E água tanta que fora aos olhos salta! ...
VI
A Capistrano de Abreu
Fragmento do
Sábio inglês
Magoada, Musa, o olhar desconsolado,
Vens d’esse canto estéril de poesia,
Por mim forçosamente perpetrado.
N’ele a fímbria do céu não viste; a fria
Ciência, o frio estudo, o amado aspecto
D’alva acendendo as púrpuras do dia,
Roubou-te! E enquanto em peregrino afeto,
A ave cantava, o mar, o espaço, a terra,
Tu forjavas científico terceto.
Magoada Musa, as pálpebras descerra
Um pouco e a luz do sol sedenta bebe,
Longe do Sábio, longe da Inglaterra.
Meiga, em teu colo agora me recebe,
E, da áurea lira as cordas afinando,
Trava-a e suspende-a nos teus braços de Hebe:
Pois que o leitor, piedoso, descansando
Aqui, de já prostrado, te consente
Diversa cantes, e, a cantar, o bando
Ora das aves sigas, molemente,
Ora das soltas borboletas, ora
Das flechas de ouro do carcás do Oriente.
E enquanto, Musa, a vista se demora
N’esta manhã e em feria estás, enquanto
Punge os frisões, no etéreo carro, a Aurora,
Conta, o metro escandindo à voz do canto,
Como a estrela de prata, a imaculada
Estrela d’alva, a perola do manto
Celeste, à rósea luz da madrugada,
Na imensa altura estremeceu nervosa,
Como cândida noiva despertada.
Já, sob o palio azul, a tenebrosa
Noite as estrelas nítidas e belas
Prendera ao seio, como mãe piedosa.
De umas as brancas lúcidas capelas,
De outras o manto, as clâmides de linho,
Viam-se à luz da lua. Estas e aquelas,
Todas no lácteo sideral caminho
Dormiam, como um bando alvinitente
De aves, à sombra, entre os frouxeis de um ninho.
Vésper, porém, chorava: ela somente
De pé, cismando, o níveo olhar, mais níveo
Que a prata, abria na amplidão dormente.
Mirava todo o célico declívio,
Como buscando alguém que desejava,
Qual se deseja alguém que é doce alívio.
Só, no espaço desperta, como a escrava
Romana, ao pé do leito da senhora
Velando à noite, a mísera velava.
Um deus de formas válidas adora:
São seus cabelos ouro puro, o peito
Veste a armadura de cristal da aurora.
Quando ele sai das púrpuras do leito,
O arco na mão, parece de diamantes
E rosados rubins seu rosto feito.
Dera por vê-lo agora as cintilantes
Lágrimas todas, límpido tesouro,
Que tem nas longas pálpebras brilhantes...
Mas soa de repente um grande coro
Pelas cavas abobadas. . . e logo
Assoma ao longe um capacete de ouro.
O deus ouviu-lhe o suplicante rogo,
Ei-lo que vem! seu plaustro os ares corta...
Ouve o relincho aos seus corcéis de fogo...
Já do roxo Levante abriu-se a porta...
E ao ver-lhe o vulto e as chamas da armadura,
Fria, trêmula, muda, e quase morta,
Vésper desmaia na infinita altura.
VII
A J. de Moraes Silva
Coração humano, enfim...
A. VIEIRA — Sermões
I
Dizendo irei de um coração que errara
O caminho na extensa e aborrecida
Viagem desta vida.
E foi que o rumo das Paixões tomara,
Cego de si, sem ver outro caminho,
O mísero e mesquinho.
Meio mundo correu como um faminto,
Sem contento. Dos Vícios como um cego
Alargou-se no pego.
Em vez do néctar puro, o amargo absinto
A ilusão muita vez, que o tem por presa,
Lhe escanceia na mesa.
Como uma grande aranha de ouro, o Engano
Lhe urde a teia e prepara. A cada passo
Topa um novo embaraço.
Cruza a estrada do Mal de dano em dano;
Treme, tropeça, cai... não chora, entanto,
Não chora: não tem pranto.
Endurou-se com as pedras; é insensível
Assim. Do amor a derradeira flama
Já não tem. Já não ama.
Já não sente. E lá vai na senda horrível,
Não com a vida, mas cuida a cada instante
Ir achá-la adiante.
II
E adiante segue. A vida, entanto, passa
Por ele, e a desconhece. Ora é uma aldeia,
Ora é a cidade; e a Natureza e os rios
Largos, e o mar, cujo horizonte abraça
Embalde a vista, e o sol que sobre a areia
Darda, ou penetra os palmeirais sombrios;
E a ave, e a sombra das flóridas ramagens,
E o bosque, e os ventos, e o bufido, o berro
Da fera, atroando as solidões selvagens...
Tudo por ele passa em vão, não vibra!
Não sente! É como lâmina de ferro:
Traz o óxido negro em cada fibra.
III
Gasto assim, houve um dia
Em que esse pobre coração, viajando,
Foi ter à estranha região sombria.
Não sabia dês quando,
Nem donde aquele sítio conhecia,
E foi-l’o indiferente interrogando.
Qualquer cousa lhe dava
Contudo ideia do lugar tristonho
Em que ora em passo mal seguro entrava;
Sim desse ermo medonho
Bem ao íntimo acaso lhe falava
Dúbia notícia ou desmanchando sonho...
E o sítio, escura pluma
Dada a pavores descrever pudera
Somente, — aquelas árvores na bruma
Chorando, aquela esfera
Turva de nuvens, em que vez nenhuma
Abre o quente esplendor da primavera.
IV
Foi por ali consigo extravagando
O coração; e, quando na espessura,
Viu que, os ramos sem folhas agitando,
Estava uma árvore anosa e pensativa
A olhá-lo em frente; a secular figura
Remexia-se toda horrenda e viva.
E logo ao longe a espuma, que em mortalha
Velava o rio, se espedaça e deste
A água represa há séculos se espalha.
E uma onda fala: — “Amigo, a que distância
Estavas, que hoje somente atrás volveste
Ao rio azul da sonorosa infância?”
Caminha, entanto, indiferente e frio
O coração, que o mundo e humano trato
Traz ouco e torpe e inanido e vazio.
Tudo que ouve em redor de acento a acento
Ecos são que o não ferem, tanto o ingrato
Pôs aldrabas no ouvido ao sentimento.
Contudo, estando ao cabo extremo dessa
Região, notou com certo pasmo que ela
Se ia fazendo mais tristonha e espessa.
Cala em tudo ar de morte, e com o sonoro
Vento, uns ciprestes dão por toda aquela
Parte um comprido e dilatado choro.
V
Deteve-se. O mistério
Inquire. É todo susto.
Em torno o cemitério
Olha, interroga, pasma...
Eis que de cada arbusto
Acena-lhe um fantasma.
— Olha! Esta amada estância
Pisa mais leve... Atende!
As cinzas sou da infância!
— Olha! na escuridade
Eu broto, flor que pende,
Eu, última saudade!
— Estás a pisar em cima
Daquela que deixaste
E que inda te ama e estima! ...
— Para, coração triste!
Porque me abandonaste
E a meu amor fugiste!
— Eu sou o amor piedoso,
A mãe eu sou divina;
Meu rosto doloroso
De lágrimas encheste.
Anda, ajoelha-te, inclina,
E abraça-me o cipreste.
VI
Aqui não pôde mais de dolorido
O coração; caiu por terra, ao passo
Que exclamava de lágrimas ungido:
“Morto ao mundo me vejo, mas que importa,
Se enfim vos acha e beijo e voz abraço,
Restos queridos de uma idade morta!”
VIII
A José de Sousa Monteiro
O astro veneno da frecha forçosamente devia matar Hércules, depois de haver atravessado a ferida mortal do Centauro. É o que penso.
SÓFOCLES
I
Jaz por terra o poder do rei de Ecália, Eurítus,
Celebra o vencedor na úmida Eubeia os ritos
Da vitória, e, exultando, em próspero retorno,
Volte à Traquina.
Longo, ebrifestivo, em torno
Do palácio, onde a sós a eneia moça meses
Doze curtiu da ausência as mágoas e os revezes,
Ruge o aplauso. Estafando os céleres, provados
Corcéis frígios que o chão percutem com os ferrados
Velocíssimos pés, nuvens de pó frechando,
Por entre aclamações, chegam de quando em quando
Os arautos. Sem conto, em curvas de que pende
Victriz louro e heliocriso, arcos, febril, suspende
A turba; às aras voa. Arde, fumega em pira
Sacra o incenso que Zeus na rude oblata aspira.
Doces tangeres, sons de frautas noite e dia
Se ouvem. Concita o povo às lutas, à alegria
Vinho estreme, ao tinir dos kilix cristalinos.
Evoé! Peian! de Heracle o nome altiva os hinos.
Tudo é festa, rumor...
Muda, entretanto, aflita,
Absorta, absorto o olhar, longe dos mais medita
Dejanira. A razão lhe assalta e cega e ensombra
Como improviso horror, atra improvisa sombra.
Interno, obscuro mal traça-a, castiga-a, ignoto;
Quis fugi-lo, não pôde. Ensaia a prece, o voto...
Mal balbutiu-lhe a boca o voto, a prece... Anseia
Ora, e soluça e treme, ora a inflamada teia
Sente o Ciúme brandir lhe afogueando a mente,
E olhos vira infernais cheios de um lume ardente.
O euge em vão, o eco em vão, em vão de fora a festa
Popular lhe feriu ruidosa o ouvido. Infesta
À alma que assim lhe jaz torva, abafada, oculta,
Livre, em ludos, em folga a alma do povo exulta.
Só, porque sofra só, portas a dentro no ermo
Aposento encerrou-se, e ao peito enfermo o enfermo
Coração praz-lhe ouvir precipite... — secreta
Mágoa se lhe embebeu, como acravada seta,
Na roxa carne; pulsa, e do íntimo, ferido,
Sai-lhe, envolto com o sangue, um súbito gemido...
— A causa aí está do mal, palpa-a, conhece-a: é ela,
Outra não, a formosa além das mais, a bela
Escrava, — recém-colhida, entre os de Ecália inglória
Rotos muros, flor pura e prêmio da vitória.
Vira a mísera entrar seus régios paços, — presa
Alta do hercúleo braço — Iola, gentil princesa,
Filha de Eubeia, irmã de Ífitos, apolínia
Prole, e a alma ínscia então nem visos de ignomínia
Crera da amada parte. Eis repentino arauto
Chega, e na incauta voz tudo revela incauto:
Iola é amante de Herói...
Surdo ao princípio, interno
Fere-a o Ciúme. Esforçou-se. Àquela parte o Inferno
Sopra, àquela remete, as unhas vibra; agita,
Rompe, lacera tudo, e uiva, e soluça, e grita.
Longe da noite o olhar de lágrimas, o seio
De gemidos, a sós, teve arquejante e cheio
A Rainha. Afinal, quando na estrada antiga
Do céu Febo surgiu com alípede quadriga,
E os cerros da Tessália eoa luz purpúrea
C’roava, estreceu-se em parte ao zelo infando a fúria.
Filtro a curas de amor lembra que à derradeira
Hora Nesso lhe dera, um dia, da certeira
Frecha heráclea prostrado em meio ao largo Eveno.
Nem supôs que o dragão passara-lhe veneno
Nesse amavio que era um sangue negro, o sangue
Que da aberta ferida, estrebuchante, exangue,
Vertera o monstro, — sangue horrível, que em mistura,
Pois nele se embebera a frecha ervada e dura,
Tinha o tóxico vil da hidra de Lerna, imensa.
Guardara-o. Pronta vai buscá-lo. Sem detença,
O Amor, que vê fugir-lhe e outrem procura, ignara
Aplica-o. Brônzeo cofre abre; formosa e clara
Túnica dele às mãos toma, distende-a, e em cima
Deita-lhe o imundo cruor que de vermelho a anima.
Do coalho peçonhento abeberada a trama,
Trata a veste enviar. Lichas, o arauto, chama:
— “Lichas, num pronto, já, sem mais demora, a toda
Brida, ou já num frisão ou já sobre eneia roda
Rápido voa, e em mãos põe de Hércules valente
Este mimo...” — Partiu precipitadamente
O arauto.
Resserena o espírito da jovem
Rainha. Em brando fio as lágrimas que chovem
De seus olhos, estão, por sobre a face e o níveo
Seio, d’alma amarrando o desafogo e alívio...
Infeliz, desafogo e alívio passageiros!
Em breve, a todo o dar das rédeas, mensageiros
Rasgarão a planície, e hão de em crescente espanto
Contar-te o duro caso! Espedaçado o manto,
Hilo verás em breve, Hilo que se consome,
De ímpia mãe profaçar-te e renegar teu nome;
Enquanto em roucos sons, rouco ulular, ferozes
Roucos gritos sem fim coalham de estranhas vozes
O ar e abalado treme o Olimpo excelso, treme
A Terra, o eco se endouda, o Eta nas fragas geme:
E, hirto o cabelo, o olhar torvo expedindo assombros,
Erriçadas as mãos rasgando a carne aos ombros,
Roto, iracundo, atroz, rudo, medonho, horrível,
O alto, o ínclito Herói, o intrépido, o invencível,
A quem se humilha o Averno e Tanatos não doma,
Longe, rugindo ameaça e cóleras, assoma.
II
Lá vem Hércules! ouve: é a alma do Herói tebano
Que se queixa. Ouve mais: este gemente Oceano
Que se espraia no ar e a teus ouvidos chega,
Parte do homem melhor que houve na pátria grega,
Vem do exterminador de monstros, do inimigo
Dos maus, do protetor, do pronto amparo e abrigo
Dos fracos, — do amoroso espírito que um dia
Desce a buscar Teseu na região sombria
De Hades, — do compassivo, em quem do mar lançado
Morto à praia, uma vez, Ícaro abandonado
Achou mau que lhe erguesse um túmulo; do bravo
Que os Centauros estruí; do bom que odeia o pravo,
Do útil que a Peste, o Roubo e os Crimes extermina,
E a arte enfim de ser grande e de ser forte ensina.
Lá vem Hércules! Ouve: a Grécia inteira passa
Nestes gritos de dor, geme a um só tempo a raça
Dos valentes, o povo a que ele as ferropeias
Tanta vez sacudiu, quebrando-lhe as cadeias.
Do alto Olimpo às rechãs mais baixas, da montanha
Onde se deita o sol à água que inunda e banha
A planície, onde o corpo as Náiades a meio
Mostram, mal resguardando o alabastrino seio:
Tudo é pranto, e acompanha esse clamor dorido
Que do cabo cênio baixou de há muito e o ouvido
Rasga aos vales... Agora ei-lo mais perto soa!
Como em torno de Creta, enquanto aqui revoa
E aos pios foge e alcíon, longe com o vento a rastros
Quase que vão, sustendo o doudo linho, os mastros, -
Sobe o mar e, altivado, os céus tocando, de onda
Em onda, cai com um retumbo e horrendamente estronda;
Assim, bravo e ululante, o peito assoberbado
De ira, prorrompe o Herói num formidando brado.
— “Deuses! — minaz aspeito e horrível ameaço,
Deuses! — bramiu convulso e brande a clava, o braço
Hirto — Deuses, pagais-me assim por toda a parte
Servir-vos, levantando altares que dess’arte
Falem de vós!? ...” — E aferrada aos ombros convulsivos
A túnica infernal sentindo que lhe apua
A alma: “Enliço foi teu, perversidade é tua,
Não de outrem, Dejanira, este, o mais alto, o estremo
Dos suplícios! vê tu como me estorço e gemo! ...
Que ânsia, que interno horror, dentro no mais secreto
Da carne, em prol do Inferno este veneno abjeto
Pôs-me, que o sangue meu colérico o rebate
Dá do assalto a raivar, e às têmporas me bate! ...
Onde, em que dente vil de hidra do Érebo houveste
Em que serpe ou dragão de rotas fauces este
Vírus que assim me endouda e sorve e me devora
A alma?! ... Que Erínia averna em negro instante de hora
Negra mandaste às mãos tramar a veste odienta
Que me bebe a existência?! Ah! recrudesce, aumenta
O suplício! Ora é como um jorro de sulfúrea
Lava a ferver-me dentro, a enviperar-me a fúria...
Hilo...”
[...][1]
Súbito, àquela banda o ar se ilumina, estranha
Luz se abriu, cintilando, às cismas da montanha;
Fraca ao princípio, agora aumenta, sobe, ascende
Em línguas de ouro, e ao céu fúmea coluna prende...
É a fogueira. Crepita, arde, fulgura em torno
Rogal chama, esbraseia em fulvas àscuas o orno
Rijo, o rijo carvalho; e do votado aos Numes
Holocausto, ora à carne os ríspidos acumes
Domando, traz de si deixando a Terra e humana
Vida, à vida eternal dos deuses soberana
Voando na viva luz com que atravessa a treva,
Do Eta à glória do Olimpo a alma do Herói se eleva.
[1] . Página ilegível no exemplar consultado.