Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sonetos e poemas, Alberto de Oliveira


Texto-fonte:

Alberto de Oliveira: Poesias Completas (Org. Marco Aurélio Mello Reis),

Núcleo Editorial UERJ, 1978.

ÍNDICE

PRIMEIRA PARTE

A GALERA DE CLEÓPATRA

A ESTÁTUA

VOX RERUM

NOX

MORTOS PARA SEMPRE

À ENTRADA DA PRIMAVERA

VASO GREGO

AO LUAR DE VERONA

GALATEIA

MANTO REAL

MAZEPPA

A PONTE VERMELHA

...

POBRE MÃE

VASO CHINÊS

SYRINX

A JANELA E O SOL

LENDO OS ANTIGOS

TITÂNIA

DE VOLTA DO CIRCO

ENFIM

EMENTÁRIO

ÚLTIMA DEUSA

FIM DE UM CONTO

ÚNICA

SEGUNDA PARTE

A ÁRVORE

O ANACORETA

BORBOLETA AZUL

MÁRMORE

AS TRÊS FORMIGAS

VERTUMNO

PER TENEBRAS

A LAGARTA

A ENCHENTE

A CRUZ DA MONTANHA

A minha mãe

 

PRIMEIRA PARTE

 

A GALERA DE CLEÓPATRA

Rio abaixo lá vai, de proa ao sol do Egito,

A galera real. Cinquenta remos lestos

Impelem-na. O verão faz rutilar, ao estos

Da luz, de um céu de cobre o horizonte infinito.

Pesa, abafado e quente, o ar circunstante. Uns restos

De templo ora se veem, lembrando extinto rito;

E inda um pilono erguido, e a esfinge de granito,

De empoeirado cariz e taciturnos gestos.

De quando em quando à flor do Nilo se destaca,

D’água morna emergindo, a escama de um facaca;

O íbis branco revoa entre os juncais. Entanto,

Numa sorte de ãos, Cleópatra procura

Su’alma distrair, prestando ouvido ao canto

Que a escrava Carmion tristemente murmura.

 

A ESTÁTUA

Às mãos o escopro, olhando o mármor: “Quero

— O estatuário disse — uma por uma

As perfeições que têm as formas de Hero

Talhar em pedra, que o ideal resuma.”

E rasga o Paros. Graça toda e esmero,

A fronte se arredonda em nívea espuma;

Eis ressalta o nariz de talho austero;

Alça-se o colo, o seio de avoluma;

Alargam-se as espáduas; veia a veia

Mostram-se os braços... Cede a pedra ainda

A um golpe: e o ventre nítido se arqueia.

A curva, enfim, das pernas se acentua...

E ei-la acabada a estátua, heroica e linda,

Cópia divina da beleza nua.

 

VOX RERUM

Por toda a noite, inquietas despertando

Ao reflexo da lua — beijo alado,

No alto páramo azul, de lado a lado,

Andaram as estrelas perguntando:

— Que há na terra, lá embaixo?... Um som magoado

Vem as esferas místicas entrando...

Trina que voz? que deus de enamorado

Vai da harpa curva os ecos derramando?

Ingênuos astros! digam de uma em uma

As ondas do oceano, a face calma

Diga dos lagos, diga a flor, a espuma,

Diga o rochedo, a folha, a ventania,

E as palmeiras, abrindo palma a palma,

De onde e por quem aquela voz se ouvia!

 

NOX

Chove, embrusca-se o tempo, e quando ao frio

Fuzil, trovão, nos côncavos ribombas

Do céu, vejo passar, como num rio

Nadantes monstros, nuvens de éreas trombas.

Só, desta alcova, cárcere sombrio,

Onde entre morte e amor, minh’alma, tombas,

Meu ser, meu coração, meus ais lhe envio,

Por céu de bronze solitárias pombas.

Não vê-la, e o tempo ver, que mais redobra

Sombra que envolve em crepe a natureza,

Plena d’água, de horror, de medo e espanto!

Abro a janela: e a escuridão que sobra

Das cousas, me enche o peito de tristeza,

E em fina chuva os olhos meus de pranto.

 

MORTOS PARA SEMPRE

Só meu amor quisera permitido.

De Souza de Macedo. — Ulissipo.

I

‘Stava a pensar há pouco que ela vinha,

Como dissera: e, entrando em casa, ao braço

Do marido, — na escada, entre embaraço,

Estendia-me a trêmula mãozinha.

Com as mais pessoas conversando, a linha

Ora vê do horizonte, ora o terraço...

E eu suponho, a lhe ouvir o som do passo,

Tornar ao tempo em que a julgava minha.

No quarto, onde medito e leio e estudo,

Apraz-lhe entrar; depois, à despedida,

Mal disfarça uma lágrima no adeus!

Vai-se. Abro o cofre da passada vida:

O mesmo é o seu retrato, e vejo em tudo

Seu nome escrito e os juramentos seus!

II

Tal supus e ela quis que se cumprisse,

Mas com a emenda de um mal que não tem cura...

Sim, no olhar o notei, talvez que o ouvisse

No riso mesmo e em sua voz tão pura.

Chegou... Longe daquela criatura

Que a maltrata, a passada meninice

Avivara-lhe o rosto, e a formosura

Mais esplendia de seu todo. E disse...

Disse com os olhos úmidos, da fala

Com a tremura, com o gesto doloroso,

Disse tudo... E ao notar que estremecia

Todo o meu corpo em trêmito nervoso,

Prudente e honesta, um dedo ao lábio: — “Cala!

Cala!” — também a estremecer, dizia.

III

Como uma sombra amiga que a piedade

Afigure, em meu quarto a imagem dela

Ficou, dos zelos a infernal procela

Domando com a divina majestade.

Avulta, cresce e me domina aquela

Sombra, e ao meu peito ouvindo a tempestade,

Com um olhar de ternura e de bondade

Serena-a, como uma serena estrela.

É razão que eu me curve, e sonho a sonho

Desça do azul, em que fundei no vento

Belo templo ideal que ora desaba...

Ouve, minh’alma, o estrépido medonho...

Ouve, e treme de ouvi-lo, pensamento!

É teu mundo de amor que cedo acaba.

IV

Que me quer esta lágrima?... Chorei-as

Todas... Mas tu, ó lágrima querida,

Tu só ficaste, e vais rolar sem vida,

Longe de suas mãos de finas veias!

Ela também, ó lágrima sentida!

Teve de pranto as pálpebras tão cheias,

Como de um lírio, em meio das areias,

A urna de orvalhos, de manhã perdida.

Mortos para sempre!... Lágrima, secaram

Tuas irmãs! com elas desparece,

E apaga-te, como elas se apagaram!

Olha: à face que amei se eu te levasse

Num beijo extremo e te espalhado houvesse,

Tu gelaras... tão fria é sua face!

V

Mortos para sempre!... Cala-te, e padece,

Coração! ela o quis: padece e cala...

Ela que honesta e pura te aparece,

E, um dedo ao lábio, te aconselha e fala!

Como inda em vida arremessado à vala,

A dor no esquecimento te arremesse;

E seja a tua derradeira prece

Teu respeito em servi-la e venerá-la.

Ela também, que a dor que te amortalha

A ambos colhe no golpe, cai ferida

E o rosto a quentes lágrimas orvalha...

Mortos para sempre!... Ó sombra! escuridade!

Só, de teu seio, escutarei sem vida

O rouxinol da última saudad

VI

Mortos para sempre!... Branca, inanimada,

Tu cosida à mortalha escura e fria,

Inda no alvor de teu primeiro dia!

Eu — com ver-te tão cedo amortalhada!

Mortos para sempre! Um’hora de alvorada,

Um minuto de céu quem nos diria

Foi nosso amor nessa manhã sombria,

De receosas lágrimas banhadas!

Mortos, mortos pra sempre!... E hás de em teu leito

Tremer, cuidando que da noite, fora,

Chega um fantasma que te aperta ao peito...

E ao peito, ao peito eu, só, no meu jazigo,

Tu’alma pura apertarei — se um’hora

Posso na morte adormecer contigo.

 

À ENTRADA DA PRIMAVERA

Vem de onde estás! Coroaram-se as colinas,

Como noivas do sol, do sol com os lumes;

Ah! com as chuvas de há pouco nem presumes

Que verdes que se alisam as campinas!

Revestem-se os outeiros de boninas,

Como outrora de acanto o altar dos numes;

Flóreas caçoulas partem-se em perfumes;

Já vão fugindo as últimas neblinas.

É um toro verde o chão do vale. Ao brando

Mover da aragem tremem as palmeiras,

Como ancilas, os leques agitando.

Vem de onde estás, que em tudo vejo aqui

Teu nome escrito, e as aves que primeiras

Voaram, já estão a perguntar por ti.

 

VASO GREGO

Esta de áureos relevos, trabalhada

De divas mãos, brilhante copa, um dia,

Já de aos deuses servir como cansada,

Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.

Era o poeta de Teos que a suspendia

Então, e, ora repleta ora esvazada,

A taça amiga aos dedos seus tinia,

Toda de roxas pétalas colmada.

Depois... Mas o lavor da taça admira,

Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas

Finas hás de lhe ouvir, canora e doce.

Ignota voz, qual se da antiga lira

Fosse a encantada música das cordas,

Qual se essa voz de Anacreonte fosse.

 

AO LUAR DE VERONA

I

Desceu da escada o mármore polido,

Porque, enfim, minha voz ouviu, a medo

Chamando-a, como pássaro perdido

Chama a outro da sombra do arvoredo.

Da lua o claro disco umedecido

Empinava no céu. Calado e quedo

‘Stava todo o jardim; somente ouvido

Se fazia das auras o segredo.

Veio. Assustada, pálida, distante,

Olhou-me e estremeceu, talvez no instante

Em que eu também, de longe, estremecia.

Ah! se um canto entre as ramas que oscilaram

Então se ouviu, não foi a cotovia...

Foram dois corações que se apertaram.

II

Entrou. Inda suponho a portinhola

Ouvir nos quícios rápida impelida

Fechar-se. E nada mais! Da umedecida

Noite o perfume tropical se evola.

Da casa o mudo aspecto me consola:

Muda como eu, parede a prumo erguida,

Como eu, sem conta estrelas, dolorida,

Estás a olhar de um céu que as desenrola.

Largas janelas, peitoris altivos,

Colunas da açoteia alevantada,

Como eu, quedais lá em cima, pensativos.

Porta que ir a deixaste e ma encobriste,

Também tu, qual me vês, estás fechada,

E imota, e muda, e solitária, e triste!

 

GALATEIA

Foi, rompendo o mirtal de verde manto,

— Morria a tarde, além tonitruosa,

Bóreas soprava — que ela ouviu, maviosa

Soar uma voz, em prolongado encanto.

Dizia a voz: — “Ó deusa, ó cobiçosa

Alva espádua do mármore mais santo,

Não seres minha!...” E era mais doce o canto,

Quando de pronto a ninfa, de amorosa,

Surge. E com os beiços grossos aplicados

À flauta, um monstro vê cantando. Espreita...

Foge... E ao fugir com os passos apressados:

“Ah! que tão doce música que escuto,

Não coubesse a uma boca mais bem feita

Que a boca de um gigante horrendo e bruto!”

 

MANTO REAL

Da flava Ceres falta-te ao cabelo

A cor, que o dela havia e os trigos doura;

Tens negra a trança e, deverei dizê-lo?

Melhor te fica que se fosse loura.

Crespa, enredada em serpes, tentadora,

Cheiro-a, louco, febril, e ardendo em zelo;

E ela em meus lábios, qual se a noite fora,

De volúpia infernal me imprime o selo.

Toco-a, aperto-a, desato-a fio a fio,

Estendo-a nos meus ombros, velo ondeante;

Tomo-lhe as pontas, o teu rosto espio:

E entre os claros da trama escura e bela,

Creio, vendo-te a luz do olhar radiante,

Ver a réstia de fogo de uma estrela.

 

MAZEPPA

À anca brutal do tártaro cavalo,

Vede-o: lá vai na rápida corrida,

Em brutal solavanco e rude abalo,

Pelos campos da Ucrânia, a toda brida.

Corre, voa o corcel! não há domá-lo!

A campina, a floresta enegrecida,

Cheia de lobos, e a corrente, e o valo

Tudo transpõe na marcha enfurecida.

Quantos, assim também, arrebatados

Leva o ginete audaz do pensamento

À garupa suarenta pendurados!

E arrasta-os rábido a engolir espaços,

Misturando em galope com o do vento

O eco vertiginoso dos seus passos!

 

A PONTE VERMELHA

Um passo além daquele campo, há um velho

Bosque, e ao pé dele a ponte. Entre as cantigas

Da água, o rio profundo as grossas vigas

Traz refletidas no sombrio espelho.

Arcos iguais de sólido aparelho,

Curvos, como do tempo com as fadigas,

Com a larga oval e as resistentes ligas

Olhais formam pintados de vermelho.

E a água, à tarde, espumando em bolhas, toda

De luz tinta e da cor que tem por cima,

A correr, a correr, fulgura e roda.

E a muda ponte espia ao longe, espia

Quem vem, que cavaleiro se aproxima

Para transpô-la no final do dia.

 

...

Que venha o inverno desflorindo a entrada

Destes campos, e a neve aos cerros monte;

Já me não dói que em breve abandonada

Seja a planície próxima, defronte.

Erme-se o vale, esfolhe-se a ramada,

Volúveis nimbos pairem no horizonte;

E dentre a opaca cerração reponte

Dúbia e pálida a luz da madrugada.

Chegaste, és minha, abraço-te... Lá fora

Que importa o inverno?... esqueço-o, e vou cantando,

Que a primavera nos teus olhos mora;

E ver-te é vê-la que me vem trazida

Por Amor, das mãos leves derramando

A cornucópia de Aqueloo florida.

 

POBRE MÃE

Olhos fitos na altura, — enquanto morre

A tarde, enquanto à flor do firmamento

Correm as nuvens, — como as nuvens, corre

Até junto de Deus teu pensamento.

Ao filho enfermo, nesse atroz momento,

Pedes que ele socorra; e enquanto escorre

Teu pranto, da oração no exaltamento,

Mãe sublime, supões que ele o socorre.

Mas um grito de súbito no centro

Ouves do coração pressago. Ansiando,

Entras na casa. O filho está lá dentro

Morto, e ao beijá-lo ouves-lhe ainda, ó louca!

De teu nome saudoso o rumor brando

Das derradeiras sílabas à boca.

 

VASO CHINÊS

Estranho mimo aquele vaso! Vi-o,

Casualmente, uma vez, de um perfumado

Contador sobre o mármor luzidio,

Entre um leque e o começo de um bordado.

Fino artista chinês, enamorado,

Nele pusera o coração doentio

Em rubras flores de um sutil lavrado,

Na tinta ardente, de um calor sombrio.

Mas, talvez por contraste à desventura,

Quem o sabe?... de um velho mandarim

Também lá estava a singular figura;

Que arte em pintá-la! a gente acaso vendo-a,

Sentia um não sei quê com aquele chim

De olhos cortados à feição de amêndoa.

 

SYRINX

I

Pã não era por certo deus tão lindo

Que merecesse ninfa como aquela;

Fez mal em persegui-la, e bem fez ela

Pedir a um colmo encantamento infindo.

Só de vê-lo as oréades, sorrindo,

—E destas uma só não foi tão bela

Como Syrinx, — armadas de cautela,

Pronto aos mirtais botavam-se, fugindo.

E, pois, por tal cornípede devia

Gastar as áscuas de amoroso incêndio?

Não! — E a influxo das náiades, um dia,

Perseguida do deus, o movediço

Ládon, procura, estende o corpo, estende-o...

E ei-la mudada em trêmulo caniço.

II

Imagine-se como o deus ficara

Quando, crendo estreitar a ninfa esperta

Que lhe fugia, apenas uma vara

Delgada e frágil contra o peito aperta.

Vendo-o cego no engano que lhe armara

Amor, da oposta margem descoberta

Um risinho de escárnio, que o desperta,

Tiniu do rio na corrente clara.

Então, da planta virginal, no assomo

Da raiva, a hástea alongada o deus vergando,

Parte-a em várias porções, de gomo em gomo.

Tais partes junta; e em música linguagem,

Dos pastores com as vozes concertando,

Põe-se a soprar no cálamo selvagem.

III

Da agreste cana à módula toada,

Da Arcádia pelos íngremes outeiros

Vinham descendo, em lépida manada,

Lestos, brincões, os sátiros ligeiros.

E a flébil voz da flauta, soluçada

De ternuras, soava entre os olmeiros;

Já nas grutas as náiades em cada

Sopro lhe ouvem os ecos derradeiros.

Hamadríades louras palpitando

‘Stão no líber das árvores; danosas

Napeias saltam do olivedo, em bando.

E presa à flauta a ninfa que a origina,

Syrinx pura, as notas suspirosas

Derrama d’alma, à vibração divina.

 

A JANELA E O SOL

— “Deixa-me entrar, — dizia o sol — suspende

A cortina, soabre-te! Preciso

O íris trêmulo ver que o sonho acende

Em seu sereno virginal sorriso.

Dá-me uma fresta só do paraíso

Vedado, se o ser nele inteiro ofende...

E eu, como o eunuco, estúpido, indeciso,

Ver-lhe-ei o rosto que na sombra esplende.”

E, fechando-se mais, zelosa e firme,

Respondia a janela: “Tem-te, ousado!

Não te deixo passar! Eu, néscia, abrir-me!

E esta que dorme, sol, que não diria

Ao ver-te o olhar por trás do cortinado,

E ao ver-se a um tempo desnudada e fria?! — “

 

LENDO OS ANTIGOS

Vamos reler Teócrito, senhora,

Ou, se lhe apraz, de Teos o citaredo;

Olhe a verdura aqui deste arvoredo

À beira d’água... E o sol que desce agora.

Lécio, o pastor, nesta colina mora,

Onde as cabras ordenha. Este silvedo

Guarda de Umbrano à flauta a voz canora,

Como este arbusto a Títiro o segredo.

Esta água... Olhe, porém, como é tão pura

Está água! O chão de nítidas areias,

Plano, igualado, límpido fulgura;

E tão claro é o cristal que, abrindo o louro

Cabelo, em grupo trêmulas sereias

Se veem lá embaixo neste fundo de ouro.

 

TITÂNIA

Titânia, ao lado o rei que os elfos manda, assoma

Na floresta encantada, à luz da lua. — “Abri-vos,

Ramos verdes! de flor de penetrante aroma,

Móveis, arcuais festões, vendo-a passar, cobri-vos!

Em alas, troncos mil de viridente coma,

Onde em fofo aranhol de abrocadados crivos

Brilha o orvalho que a luz das finas pedras toma...

Eis Titânia! de pé, meus válidos cativos!”

Tal a voz de Oberon vai proclamando, e em cheio

Da trompa, que da cinta ele suspende e emboca,

Esfuzia e desperta o grande bosque, em meio

Da noite; enquanto a lua enorme esplende, e a gruta

Longe as letras do canto apaixonado avoca,

Abre o ouvido de pedra, e atentamente escuta.

 

Tal como douda garça, aos mares! Uma vela!

Uma vela! e é partir. Afronta o horror das vagas

Negras se a noite as cobre e as incha o vento, às pragas

E ao clarão e estridor do raio e da procela.

Nem todo o equóreo abismo, entre as equóreas fragas

Ruindo, errante e estouraz, com a espuma à fauce e aquela

Luz dos ruivos fuzis como serpentes nela,

Pode o inferno igualar que em teu silêncio esmagas.

Rompe, atira-te ao pego, as sombras lhe devassa

Menores que as do mal que no teu peito engrossas;

Talha os ventos, o oceano, as ondas sulca, e passa...

Ah! talvez longe, longe, em clima estranho, ao fundo

Do horizonte, há um deserto em que dormir tu possas,

Sem o incômodo olhar dos homens e do mundo.

 

DE VOLTA AO CIRCO

Cisma ao triclínio a bela que da Acaia

Veio à luta assistir de homens e feras,

E como traz do olhar no céu, que esmaia,

Outro céu, outro sol, outras esferas.

Que há por que triste seja a loura Aglaia?

Corados vinhos golfam das crateras,

E ao quente ditirambo, a mesa espraia

Rubro mar de licor, e festões de heras.

Aglaia é triste. Em vão se entrechocando,

Tinintes copas cruzam-se festivas...

Pensa a moça em Leucipo: a arena entrando,

Como era belo! os braços nus, pendente

A espada, o pique posto às mãos ogivas...

Era o sol dos atletas do Oriente!

 

ENFIM

Enfim... Nas verdes pêndulas ramadas

Cantai, pássaros! vinde ouvi-lo! rosas,

Abri-vos! lírios, recendei! medrosas

Miosótis e acácias perfumadas,

Prestai-me ouvido! Saibam-no as cheirosas

Balças e as leiras úmidas plantadas;

Aves e flores, flores e alvoradas,

Alvoradas e estrelas luminosas

Saibam-no, saiba o céu com a esfera toda

Que, enfim, sua mão, enfim, sua mão de leve...

Borboletas, que pressa! andais-me em roda!

Auras, silêncio! Enfim, sua mãozinha,

Sua mão de jaspe, sua mão de neve,

Sua alva mão pude apertar na minha!

 

EMENTÁRIO

fragmentos

Perdut’ho quel, che ritrovar non spero

Dal Borea all’Austro, o dal mar Indo al Mauro.

Petrarca

I

Austero e frio, entrar no aposento

O médico: — “É preciso o seu cabelo

Cortem.” — Dissera. E eu vi, — nem sei dizê-lo!

Cair-lhe as tranças nesse atroz momento.

Agora mais faminto, mais violento

Crescia o mal. Da morte o escuro selo

Já sobre a fronte lhe notava, e ao vê-lo,

Dor a dor me estalava o pensamento.

O olhar preso no meu, no etéreo fundo

De seu olhar um anjo me acenava,

Como a dizer: — “Já basta deste mundo!”

Com um sorriso no lábio, ela morria...

E o anjo lá estava: em seu olhar, me olhava,

Em sua boca, em seu sorrir, sorria.

II

Ó minha Laura, quem do livro aberto

Em que líamos ambos, os amados

Olhos teus afastou, para fechados

Serem no sono de uma noite, incerto!?

Quem dentre os níveos dedos delicados

Em que o trazias, lendo-o, de mim perto,

O poema arrancou que eu vi coberto

De tantos sóis que tinha, imaginados?!

Doce leitura! negra pausa infinda...

Como que por encanto ainda hoje eu creio

Ver aberto esse livro e lê-lo ainda;

E em cada folha em que meus olhos ponho,

Palpita o nosso amor com o mesmo anseio,

E as nossas ilusões com o mesmo sonho.

III

Disse ao poeta a Saudade: “Ao mundo ascende

Dos sóis, por lá, das asas minhas, vê-la...”

E o poeta subiu de estrela a estrela,

Subiu. Chamou debalde. Alonga, estende

Os olhos... O ar somente avista. Empreende

Maior passo. Mais sobe. Em luz mais bela

Arde o espaço. Mais sobe. E em toda aquela

Altura apenas o silêncio o entende.

Como a infinita serra, — a grito e grito,

Olhando acima e atrás, trepa o infinito...

Estende a mão, procura... estende a mão,

Procura... estende a mão, procura... e luta

Debalde, e fala, mas somente escuta

O rolar das estrelas na amplidão.

IV

Porventura algum dia acaso ouviste,

À noite, a voz das velhas cartas, quando,

Papéis antigos remexendo e olhando,

No recesso dos íntimos buliste?

Eu conheço essa voz, sei que ela existe.

De antigas letras descorado bando

Tenho ouvido falar, se vou pensando,

Vendo-as à luz, apaixonado e triste.

Daqui sai de um irmão que se desvela

O conselho; entre mostras de piedade

Nesta linha há uma lágrima; naquela

De amigo ausente inda a expressão conforta;

Nesta — arrasam-se os olhos de saudade —

Vejo as letras finais da amante morta.

V

Vês com as arcadas negras suspendida

No ar esta ponte imensa, — o céu de um lado,

A terra do outro, e tudo ilimitado?

Seu nome queres tu? chama-lhe — Vida.

Vê como horrenda é toda, e alta e comprida!

Faz medo... — E onde termina? — Onde acabado

É tudo e novamente começado:

No mistério, na treva indefinida...

— E esses vultos que a estão, mudos, subindo?

— Sombras. — E esse atro uivar medonho, e grito?

— Dores. — E acima é o céu que está fulgindo?

— É o céu — E para em salvo atravessar

Esta ponte e ir lá ter, que necessito?

— Amar, amar, eternamente amar.

 

ÚLTIMA DEUSA

Foram-se os deuses, foram-se, em verdade;

Mas das deusas algumas existe, alguma

Que tem teu ar, a tua majestade,

Teu porte e teu aspecto, que és tu mesma, em suma.

Ao ver-te com esse andar de divindade,

Como cercada de invisível bruma,

A gente à crença antiga se acostuma,

E do Olimpo se lembra com saudade.

De lá trouxeste o olhar sereno e garço,

O alvo colo onde, em quedas de ouro tinto,

Rútilo rola o teu cabelo esparso...

Pisas alheia terra... Essa tristeza

Que possuis é de estátua que ora extinto

Sente o culto da forma e da beleza.

 

FIM DE UM CONTO

... E por ali nos fomos... — prosseguia

O ancião — Lúcia, mais pálida do medo

Da noite, as mãos tomando-me — em segredo

Baixo, uma prece, pávida dizia.

Alta era a serra e íngreme; sombria

A cena a tais desoras. O arvoredo

Crescido e espesso, estava mudo e quedo...

Nem uma aragem derredor se ouvia.

De repente, meu Deus! ouço naquela

Noite o ouvido ferir-me um som medonho...

Rola um corpo na escarpa: o vulto é dela!

Acompanha-me ainda esta saudade...

Dorme no abismo o meu primeiro sonho...

Dos outros não me lembro nesta idade.

 

ÚNICA

Estás a ler meu livro, e é bem que exprimas

Certo pesar. Nem uma vez, nem uma

O teu nome estas páginas perfuma!

E outros há aí por títulos e rimas.

“Quem são essas que vêm de estranhos climas,

De idades mortas, da salgada espuma

Do mar, da Grécia, de teu sonho, em suma,

Que mais que a mim tens celebrado e estimas?”

Dirás. E o livro, se meu ser traslada,

Se o fiz de modo tal que me traduza,

Contas dará de quanto em si contém;

Saberá responder que és sempre amada,

Que nele estás, pois foste a sua musa,

E essas mulheres só de ti provêm.

 

SEGUNDA PARTE

 

A ÁRVORE

I

Entre verdes festões e entrelaçadas fitas

De mil vários cipós de espiras infinitas,

Mil orquídeas em flor, mil flores, — sobranceira,

Forte, ereta, na altura a basta fronde abrindo,

C’roada do ouro do sol, aos ventos sacudindo

        A gloriosa cimeira;

A árvore, abrigo e pouso à águia real, sorria.

Dez léguas em redor o bosque inteiro via,

E os campos longe, e o vale e os montes longe, tudo:

Nuvens cortando o ar, e pássaros cortando

As nuvens, e alto o sol, na alta esfera radiando,

        Como fulgente escudo.

Ampliondeante a rainha o manto seu na altura

Abria. Coube ao tempo a rígida armadura

Vestir-lhe. A intacta fronte, era um cocar guerreiro

Que a cingia, e o tufão que o diga se era forte,

Quando o intentou dobrar; que o diga o irado note

        Com o seu tropel inteiro.

Passaram sem feri-la, esbravejando às soltas,

Ventos e temporais; e das nuvens revoltas

Alumiou-a, à luz do raio, a tempestade;

Mas, chegando a manhã, lá estava, altiva e bela,

Incólume, a cantar, zombando da procela,

        A ária da liberdade.

Vinham então grasnar em seu negro fastígio

Os bravos corvos do alto e ouviam-se em remígio

Grandes águias a luz cruzando, tenebrosas;

Enquanto, de eco em eco, um berro imenso atroava

A selva, e o touro a ouvi-lo, híspido o pelo, arruava

        Nas planícies umbrosas.

E que ubérrimo seio a toda vida aberto

Era o seu! Quanto amor à sombra do deserto,

Quanto! quando, o raizame ao solo preso, as cimas

Dava esta árvore à luz, e o orvalho brando, ao vento,

Via-se gotejar, de momento em momento,

        Das ramagens opimas!

Giganta e mãe, alteando os ombros, quanta vida

No ar não fez florescer dos flancos seus nascida!

Quando a verçuda copa às virações estranhas

Entregava, aspirando o puro ambiente, a quanto

Ser não nutriu, fecunda, agarrado ao seu manto

        Ou às suas entranhas!

Ia-lhe caule acima, em longos cirros, toda

A hera da floresta, os vegetais em roda

Deixando, a ver mais alto o céu, mais livre agora;

E o líquen verde, o musgo, o feto, as capilárias,

As ginândrias gentis, epífitas, e as várias

        Bromélias cor da aurora.

De seus braços em volta — enroscadas serpentes,

Leves, a suspender as maranhas virentes,

As baunilhas em flor alastravam; abriam

Os ciclantos, e ao lado, acompanhando os liames

Das bignônias, ao sol, em trêmulos enxames,

        As abelhas zumbiam.

Filiforme, oscilando, ao píncaro suspensa,

A trama dos cipós se desatava imensa;

Em seu colo, não raro, a cobra a fulva escama,

Com os estos do verão, fez esmaiar, — enquanto

Tardo pássaro estivo, em suspiroso canto,

        Voava de rama em rama.

Não raro, em bando inquieto, as variegadas plumas

Viram aves, talvez, ali crescer. E algumas,

Talvez, entre a expansão tricótoma e sadia

Destes ramos, à sombra, o ninho penduraram,

E, primeiras da selva, as asas levantaram

        Para saudar o dia.

Mais que abrigo de paz, um seio de piedade

Foi est’árvore. Ao vento, à chuva, à tempestade

Fugindo, brenha a brenha, e de terror transido,

Não raro o tigre em pouso aqui teve seguro,

Enquanto atroava o raio o firmamento escuro,

        O espaço enoitecido.

Não raro o sol soturno a corça e o leão transpondo,

Quando o incêndio estouraz ao longe em rouco estrondo,

De raiva inflado, a um sopro aliava as fúrias, vieram;

E, afuzilando o olhar, o pelo hirsuto, a míngua

D’água, o orvalho estival caído aqui, com a língua

        Nestas folhas beberam.

Não raro! E quanta vez de extinta raça, à aragem

Matinal, não se ouviu do rito a voz selvagem

Saudando o sol aqui, sob esta arcada! E, à lua,

À noite, quanta vez, na aura vernal trazido,

Não se veio perder de estranha dança o ruído

        Nesta folhagem nua!

E era grande! e era bela est’árvore assombrosa!

Tudo a amava, e ela, altiva, ela, entre a luz, gloriosa,

Lançava aos céus robusta a sua fronte, em festa;

E um longo canto ecoava aos pés da soberana...

Mas... Como a palpitar do cacto agreste à liana,

        Não tremeu a floresta!

II

...Entrara a selva um dia um homem. Sopesava

Tersa afiada segure. Em torno a vista crava,

A árvore vê. Levanta o truculento olhar.

Toma-lhe a altura enorme aos ramos, a espessura

Ao tronco. E o ferro, audaz, de sólida armadura,

        Faz sinistro vibrar.

Mas nem sequer um ramo estremeceu. Violento

De novo no ar volteia o tétrico instrumento,

E soa o golpe. Ainda um ramo nem sequer

Estremeceu. Resiste a casca espessa, o escudo

Da corcha. P’ra fendê-la, ao braço heroico e rudo

        Mais esforço é mister.

Pois novo esforço. Gira a arma assassina ao pulso

E lá vai, lá bateu, que é força entrar. Convulso

O homem de novo às mãos sacode-a. Inda outra vez

Sacode-a. O aço lampeja, e do cortante gume

A fúria estona o tronco. E há, talvez, um queixume

        No madeiro, talvez...

Mais outro esforço. No ar, como mandrão guerreiro,

Zune o ferro, e feriu o precípite, certeiro:

A casca espicaçou-se em lâminas sutis...

Correu longo tremor o caule informe, erguido,

E, sobretudo, ouviu-se o eco de um gemido

        Na alastrada raiz.

Outro golpe, outro abalo. Em finas lascas voa

Picada a lasca, e da arma ao rudo embate ecoa

A solidão. Pergunta espavorida a flor

À ave: — Que voz é esta? — E o tigre, a furna entrando:

— De onde parte este grito? E os rufos leões, parando:

        — Quem faz este rumor?

E é da ruína estupenda o lúgubre alarido

De montanha em montanha e bosque em bosque ouvido.

Tudo, da grimpa excelsa ou da planura, o Val

E o rio, o cedro e a rocha, o enho e a palmeira, pondo

O olhar nos céus, escuta aquele excídio hediondo

        E crime sem igual!

A grande árvore cai! A ramaria forte

Treme em cima, dançando uma dança de morte.

Rompeu-lhe o alburno agora e vai-lhe ao coração

O atro golpe. Uma a uma as fibras rangem; fala,

Ringe, arqueja o madeiro, e pouco a pouco estala,

        À mortal vibração.

A grande árvore cai! Já se lhe inclina e verga

A fronte, e aos pés, a gruta, — o seu sepulcro, enxerga!

Astros, sol, amplidão, esferas de ouro, céus,

Nuvens, sopros do mar, e pássaros da aurora:

A grande árvore cai! mandai-lhe em prato agora

         O vosso último adeus!

A grande árvore cai! Como entre o firmamento

E o mar alto, o viajar, um grande mastro ao vento

Oscila: oscila assim seu corpo imenso no ar.

Elos, cirros, cipós, que o segurais, deixai-o!

Rompeu-se-lhe a medula, e já rechina o raio...

        Não o ouvis estalar?!

A grande árvore cai! Com os ramos seus robustos

Ide envoltos na queda, ó vós que a amais, arbustos;

Segui-a ao sono extremo, ó corvos, vós que a amais!

Ouvi! cede-lhe o cerne ao ferro que o retalha...

Cosei-lhe em flor e em luz esplêndida mortalha,

        Florestas tropicais!

E caiu! rudemente e com ela rodaram

Ruindo os cedros na gruta, e os montes estrondearam...

Rasgou-se ao bosque o teto, a túnica se abriu;

E a ave, e o réptil, e o inseto, e o próprio homem, transido

De horror, tudo fugiu de pronto, espavorido,

        Quando a árvore caiu!

E da ruína estupenda o lúgubre alarido

Foi de ermo em ermo e foi de bosque em bosque ouvido;

Tudo, da grimpa excelsa ou da planura, o val

E o rio, o cedro e a rocha, o enho e a palmeira, pondo

O olhar nos céus, tremeu àquele excídio hediondo

        E crime sem igual!

 

O ANACORETA

Foi com surpresa e espanto, em erma e atra espessura,

Que Rudra, o sábio, o grande, o anacoreta indiano,

Rudra que tem no olhar o brilho sobre-humano

Do incansável labor da penitência obscura;

Foi, com surpresa e espanto e num delírio vago,

Que uma vez do lugar que límpido nascia,

Estas cousas ouviu, na floresta sombria,

Ditas distintamente ao loto azul de um lago:

“Vem! — segredava o luar — descerra uma por uma

        As pétalas azuis!

        Dou-te um lago de espuma,

        Onde melhor flutues!

Vem! como a Apsara é minha, a tu’alma desata,

        E sobe entre desmaios!

        Dou-te alvíssima prata,

        A prata de meus raios!

Dou-te o leque de luz com que me vês no Oriente,

        Dou-te o cofre de opalas

        Que entorno em meu crescente

        Pelas eternas salas!

Dou-te nuvem, estrela, espíritos, quimeras,

        A luz, o orvalho dou-te,

        E o canto das esferas,

        E os perfumes da noite!

Vem, adorado ser, tu das alturas digno!

        Rompe a brutal matéria,

        E deste àquele signo

        Eleva-te, alma etérea!”

Tal, com surpresa e espanto, em erma e atra espessura,

Certa noite ouviu Rudra, o anacoreta indiano,

Rudra que tem no olhar o brilho sobre-humano

Do incansável labor da penitência obscura.

 

BORBOLETA AZUL

I

        Suponho que era Abril

O mês, mas pouco importa, talvez Maio

        Ou mesmo Junho fosse...

        Nunca por céu de anil

O sol na fulva lágrima de um raio

        Vi desmaiar mais doce.

        Só, como a pena vai

No ar, ou só como a nuvem no horizonte,

        Eu caminhava. Tudo,

        Uma folha que cai,

Uma ave que esvoaça, a água do monte,

        O monte, o grande e mudo

        Deserto, tudo a mim

Me assusta. E eu caminhava. Agreste e feio

        Era o sítio. E, avançando,

        Por distrair-me, enfim,

Ia uma a uma, como a tudo alheio,

        As árvores contando.

        Tomava-me o pavor

Daquel’hora, ali, só, acompanhado

        Só de meus pensamentos...

        Ao mínimo rumor

Cria ouvir um fantasma, e o bosque, ao lado,

        Povoar-se de lamentos,

        Rédea solta, ao vagar

Do cavalo, assim posto, em quanto havia

        Árvore ali em roda

        Atentava. E ao passar

Por tudo, a tudo triste em roda via

        Pela planície toda.

        E creio que era Abril

O mês! mas pouco importa, talvez Maio

        Ou mesmo Junho fosse...

        Nunca por céu de anil

O sol na fulva lágrima de um raio

        Vi desmaiar mais doce!

II

Quando da serra, além, sobre a campina

Era a sombra maior, e além da serra

Mais abrasado o céu, — volto o cavalo;

Faço-o pisar do rio a areia fina,

E assim vou através do longo valo,

Mal sentindo aos meus pés falar a terra.

Corre direito ao bosque o rio. Inclina

Sobre ele os verdes calejados braços

Uma árvore, de pé nas rotas fráguas;

A espaços uma rama peregrina

Oscila ao vento, vai com o vento; a espaços

Vem à face tristíssima das águas.

E eu, derramando os olhos sobre aquilo,

Seguindo o incerto brando movimento

Daquela rama na corrente, inquieta,

Cismava. Quando pelo azul tranquilo,

Pelo cálido azul do firmamento,

Vejo vir uma grande borboleta.

Nos caniços, ao pé, de pluma em pluma,

Pairou. Susteve as asas leves. Logo

Em direção ao sol partiu. Morria

A tarde. Em fogo as nuvens, uma a uma,

Avançavam do Ocaso; e o céu em fogo

Vales, montes de púrpura cobria.

III

A borboleta azul que segue fora

        Por esse ar, não sei bem...

Dela talvez me fala, onde ela mora

        Talvez mora também.

Talvez de seu cabelo em leve adejo

        Voasse, como uma flor,

Como o laço de fita com que a vejo,

        Azul, da mesma cor.

Ela, formosa e tímida violeta

        Mal desbrochada à luz,

Ela o céu ama e ama a borboleta...

        Ambos são tão azuis!

IV

Vejo a casa, afinal, onde ela mora,

        Ela que o amor apenas

Mal conhece da flor, da luz, da aurora,

        Das aves e das falenas;

Ela que à minha dor se abriu acaso,

        Como um bom firmamento,

E cuja mão, se o beijo, é como um vaso

        Em que me dessedento.

Certo esperava todo aquele dia...

        Achei-a ansiosa, e ao vê-la,

E ao ver-me, eu vi: róscio de pranto havia

        Em seu olhar de estrela.

Lançou-me do pescoço em volta os braços,

        Deu-me a boquinha breve,

Sorriu, depois, tornando atrás dois passos,

        Rápida, em giro leve,

Fugiu. Tornou. Trazia à trança loura

        Um laço azul, o amado

Laço da cor do céu, que a sobredoura

        De um reflexo sagrado.

— “Fico melhor assim, não acha, com esta

        Fita azul?” E sorria...

Morrera o sol, calara-se a floresta,

        Apagara-se o dia.

V

Sobremanhã parti. Molhava a neve

Os flancos da montanha. No arvoredo

Próximo, as penas a ensaiar de leve,

        Um pássaro em segredo

Trinava. O som das águas derivadas

Da serra o chão da gruta, lento e lento,

Ia acordando. As folhas orvalhadas

        Cochichavam com o vento.

Uma faixa de fogo no Levante

        Subia, e úmida e bela,

Da alva brilhava no alto a clara estrela,

        Como um grande diamante.

VI

Com a buzina de caça pendurada

À cinta, quanta vez do excelso tope

De um monte, enquanto ao longe o pó da estrada

        Um cavalo a galope

Batia, quanta vez não vi distante

O fumo de seu tecto, embaixo erguido,

Como um lenço a acenar-me! E a vista errante

        Quanta vez, comovido,

Não fiz pousar na copa verde-escura

Do seu telhado, enquanto ao sol de estio

Voava um pombo nos ares, à procura

        De outro pombo erradio!

VII

Leva à casa gentil, e era tão perto!

        Um plano desigual:

Sinuoso trilho na colina aberto.

        Aqui do cipoal

A laçaria: a flórida latada

        Ora vai, ora vem,

Baila com o vento em trepidante escada.

        Torsos troncos além;

Uma flor escarlate ao pé de um ninho...

        Do sassafrás o olor

Recende, e borda as margens do caminho

        A madressilva em flor.

Filipêndulas mil de cima a baixo

        Serpenteiam sutis;

Canta e alardeia um pássaro o penacho

        De abrasado matiz.

Resplende o sol. Abre-se um cacto. A aragem

        Vem mais fresca do Sul...

Em em tudo, aérea, lépida, selvagem,

Paira uma grande borboleta azul.

VIII

A borboleta azul do mato, que ora

        Voa aqui, ora além,

Dela talvez me fala, onde ela mora

        Talvez mora também.

Talvez de seu cavalo, em leve adejo,

        Voasse, como uma flor,

Como o laço de fita com que a vejo,

        Azul, da mesma cor.

Ela, formosa e tímida violeta,

        Mal desbrochada à luz,

Ela ao céu ama e ama a borboleta...

        Ambos são tão azuis!

IX

        Viera Outubro. Que mágoa

Em tudo! A água não corre; em vão procura

A árvore triste com a ramada escura

        Os rios, faltos d’água.

        Secaram-se as correntes;

        Aos pés do caminhante

        A areia range, iriante,

        Em reflexos ardentes.

        Viera Outubro, viera.

        O sol jamais tão forte

        Iluminara a esfera.

        Desfloriam-se os vales,

        Já golpeados de morte.

        Do baixo, humilde cálix

        Às alteadas umbelas

Passava o estrago. E à luz do meio-dia,

O vento os campos áridos enchia

        De folhas amarelas.

X

Consta que ela, uma tarde, em que radiante

Das nuvens de ouro a abóboda se erguia,

Os braços nus para a amplidão distante,

Em falta de asas, trêmulos abria.

É que, aos raios do sol bailando inquietas,

Suspensas no ar, em dança vaporosa,

Um vago bando azul de borboletas

Vira passar na tarde luminosa.

XI

Desde esse dia nunca mais puderam

Meus olhos vê-la. É bem provável voasse!

Dela não soube e as flores não souberam.

A casa aí está, porém, qual se a habitasse

Ainda. E, abrindo à viração do sul

        A livre ponta da asa,

        Em torno à velha casa

Paira uma grande borboleta azul.

 

MÁRMORE

Deixa-me extravagar, serena estátua.

És minha.

O escultor te depôs nos braços meus, rainha

De mármor; quando um dia o Paros trabalhava,

Eu no lavor da pedra o seu cinzel guiava,

Eu era o sonho, eu era a ideia, ele esculpia

O que eu d’alma arrancava, o muito que eu sentia

De amor, de luta e febre e de estos de loucura

E paixão. Fez-se a estátua. Em finíssima alvura

O seio ergueu-se, o colo, a fronte, o rosto. E eu, mudo

E extático, osculei-lhe a fronte, o colo, tudo!

A estátua é minha! a estátua entre os meus braços prendo!

Beijo-a, com o bafo a aqueço, as pálpebras lhe acendo

Com o meu olhar; ao peito as veias rasgo, e cheias

Torno-as de sangue meu, tomado às minhas veias;

E ela vive, ela anseia e treme! ela palpita!

Move os olhos de pedra! a mão levanta e agita,

E acorda! acorda e vê-me... E ao ver-me, oh! desventura!

Ei-la pedra outra vez, insensível e dura!

Ei-la estátua outra vez, silenciosa e fria!

Insano extravagar! Insana fantasia!

 

AS TRÊS FORMIGAS

Movendo os pés cor de brasa,

Foram as três, com cautela,

Subindo o muro da casa

        De dona Estela.

— Arriba! diz a primeira.

— Mais devagar... diz com isso

Segunda. Diz a terceira:

        — Sei onde piso.

Noite fechada, propícia

À ideia, ao plano que as leva...

Nem de uma brisa a carícia!

        Silencia e treva!

De pronto um grilo de um canto:

— Onde ides, minhas amigas?

E um calafrio de espanto

        Nas três formigas.

Ah! mas um rosto aparece

Em cima, numa janela...

— É ela? — O rosto parece

        De dona Estela!

Tri... tri... entre as asas geme

O grilo. E pernalta aranha

Na trama de ouro em que treme

        Quase o apanha.

E agora se atemorizam

As três. É tudo embaraços!

E a cal somente que pisam

        Lhes ouve os passos.

Em uma após outra se encaram

Tremendo; ora hesitam, ora

Conversam baixinho, param

        Por mais de uma hora.

Súbito como fracassa

O mura a um trovão, que as gela...

Arriara-se a vidraça

        De dona Estela.

— Melhor é voltarmos, logo

Uma aconselha, em segredo;

Outra abre os olhos de fogo,

        E é toda medo.

Terceira chora, encolhido:

— Tão alto! já estou cansada!

Meu Deus, certamente a vida

        Não vale nada.

Mas sobem, que é necessário

Subir. Jesus, o benquisto,

Subiu também seu calvário,

        E ele era o Cristo!

— Janela, enfim! num alento

Exclama a que mais anela

Primeira ser no aposento

        De dona Estela.

— Por esta frincha... — Por esta...

— Melhor... — Entremos. — Avante!

E uma olha, analisa a fresta,

        E rompe adiante.

Seguem-na as duas. Estreito

É o trilho. Vão. Tal num berro

Vai por um túnel direito

        Um trem de ferro.

Ei-las estão da outra banda,

Na alcova. Espreitam em roda

À luz da lâmpada, branda,

        A alcova toda.

E veem, por entre os adornos

De um leito vistoso, a bela

Fronte, o perfil, os contornos

        De dona Estela.

Azul-celeste à parede

Sobre o papel que a reveste...

É toda a câmara, vede:

        Azul-celeste!

Tenda de neve! — a cortina;

Dois bustos, um ramilhete

Além; descalça botina

        Sobre o tapete.

Num quadro de luzidio

Ébano, um vulto guerreiro:

Perfil severo e sombrio

        De cavaleiro

De Espanha; olhar atrevido,

Espada à cinta, e escarcela...

— É com certeza o marido

        De dona Estela.

E o espelho... como cintila!

Parece de um lago a nua

Face, que leve se anila

        Com a luz da lua.

No toucador como esparso

Há tanta cousa! um diadema,

Alvas penugens de garça...

        Todo um poema!

E um vaso com a mais festiva

Das rosas! — Meu Deus, acaso

Há rosa também que viva

        Dentro de um vaso?!

E à flor o assalto preparam

As três formigas... Ai! dela,

A flor, que os lábios beijaram

        De dona Estela!

Descem o muro. Profundo

Silêncio. Tudo parece

A miniatura de um mundo

        Que se amortece.

Sobem aos móveis. No tecto

Nem sombra de asa perdida

Do mais pequenino inseto...

        Tudo sem vida!

Chegam à rosa. Que altivo

Seio encarnado! Que encanto

Nesse encarnado lascivo

        Que tem no manto!

E uma se adiante animosa,

Mais esta após, mais aquela...

Ai! rosa, querida rosa

        De dona Estela!

Correm-lhe as pétalas. Uma

Desce-lhe ao pólen, que toma;

De boca aos pés se perfuma

        Com seu aroma.

Enchem-se de ouro, que é de ouro

Su’alma. Sedas desatam

Que a prendem. Vida, tesouro,

        Tudo arrebatam.

E de assombrosa riqueza

Vendo-se alfim carregadas,

E mais do que da árdua empresa

        Recompensadas,

Lá vão a fugir, com o jeito

Do que em roubar se desvela...

Mas nisto estremece o leito

        De dona Estela.

É dia. A dona da alcova

Já está de pé: e, ansiosa,

Por que mau sonho remova,

        Vai ver a rosa.

Toma-a do vaso às mãozinhas;

Mas ao beijá-la, a senhora

Descobre as três formiguinhas,

        e... sopra-as fora.

— Ah! que tufão repentino!

As três, no ar, na ansiedade

Da queda, exclamam sem tino...

        — Que tempestade!

Longe, bem longe, erradias,

Caíram. Nem se mexeram

De espanto quase dois dias...

        Depois morreram.

Eis das formigas o caso.

A rosa... fale por ela

Outra que é nova no vaso

        De dona Estela.

 

VERTUMNO

I

................................................................................................

E crendo achá-la, a sombra fugidia

O intricado rompeu da mata escura,

Quase ao momento do expirar do dia.

— “Dize, dize onde estás!” — Pela espessura

Chama, e ao tecto do bosque o olhar levanta,

Atentando nos arcos da verdura,

Mas verdura sem flor, que a toda planta

O botão tenro, a desatar-se a medo,

Com os seus ardores o verão quebranta.

Os desfloridos braços do arvoredo,

Que encruzados lá em cima o vento agita,

Falam de um dia que morreu bem cedo.

Ora em nastros não mais a parasita

Verde às colunas vegetais se enrola,

E o corpo elando, os píncaros enfita.

O estragoso calor que tudo assola,

Nem do cacto silvestre abrir consente

À cárdea flor a tímida corola.

De eiva tocado, a balançar pendente,

Todo fruto arregoa, e assim responde

De um ar que é todo fogo ao peso ardente.

— “Dize, dize onde estás!” — E as grutas — onde,

Onde estás! — com os seus ecos repetiram;

Ignora tudo que lugar a esconde.

E, indo ao acaso o peregrino, viram

De repente seus olhos que acabava

A selva, à luz que súbito sentiram.

Uma larga planície o sol dourava,

Mas tão triste que n’alma ao caminhante

Com vê-la a sua dor se acrescentava.

— “Dize, dize onde estás! A cada instante

Chamo-te, e ao menos nem sinal descubro

Que haja impresso no chão teus passo errante.

Na ausência tua tudo morre! Outubro,

— Quente mês que aborreço — às mãos volteia

Em cresta às folhas o seu facho rubro.

E eu, que a teu braço a cornucópia cheia

Te vi vazando o flórido tesouro,

Com que dor vejo a terra ardente e feia.

Órfã da luz de tuas horas de ouro!”

II

Disse, e olhou derredor. Distante, às vivas

Luzes da tarde, interrogando o vento,

Balançam-se as palmeiras pensativas.

Todo o céu, todo o azul do firmamento

Está cheio da mágoa e da tristeza

Que a alma lhe traça nesse atroz momento.

No ar, no monte, no vale e na devesa

Como que um’harpa estranha e dolorosa

Chora e se parte às mãos da natureza.

E ele a vista, de lágrima saudosa

Meio turbada, em frente ao sol que expira,

Sumiu nos ermos da amplidão radiosa.

— “Dize, dize onde estás!” Fala e suspira,

Às nuvens longe vendo as soltas alas

Que ao céu varrem a nítida safira;

Umas de ouro e carmim, outras de opalas

E prata... E a alma ansiosa e entristecida

Cá do exílio da terra a interrogá-las!

— “Dize, dize onde estás! Que despedida

Foi a tua, que assim que te partiste

Vi que estes campos desertara a vida!?

Cai morta a flor que com um sorriso abriste,

Murcha-se o ramo, seca-se a corrente,

Onde molha o arvoredo a sombra triste.

Té do campo a verdura, — e isto consente

Teu amor! — onde meiga adormecias,

Torra e cresta o verão com o raio ardente.

Se tornassem contigo aqueles dias!

Se volvesses!... Mas vejo que interrogo

Um vão fantasma nestas nuvens frias!”

E das nuvens, magoada, a vista logo

Desceu, já com o crepúsculo que vinha,

Como um peplo, velando o céu de fogo.

Era a hora em que ao vale se encaminha

A noite, pelo píncaro do monte;

Voa à face dos lagos a andorinha...

Uma faixa de luz da serra à fronte

— Sol das almas lhe chamam — aparece,

Mas logo esmaia, e é trevas o horizonte.

E a alma das cousas, o sussurro, a prece

De tudo à estrela que nasceu primeira,

Como que ascende e se evolar parece.

E n’água morta, do regato à beira,

As desfolhadas árvores se encaram...

E à voz, que há pouco à natureza inteira

Falava, as nuvens trêmulas quedaram;

E longe, como um rancho de cativas

Que em árdua vela sem dormir ficaram,

Balançam-se as palmeiras pensativas.

 

PER TENEBRAS

I

        Era um caminho estreito

        E escuro, nessa escura

Noite, à beira do mar. O vulto, e aspeito

        Do mar bem se não via,

        Que era todo espessura...

Rumor d’águas somente o espaço enchia.

        Eu, não sei como, andava

        Nesse lugar medonho

A tais horas. A fronte me alagava

        Suor frio, o cabelo

        Tinha-o, como num sonho,

Eriçado de negro pesadelo.

        Ali, voejando às tontas,

        Como estrige agoureira,

Passa o medo, o terror. Com as altas pontas

        Os penedos, dispostos

        Junto à podre albufeira,

N’água se veem com os achumbados rostos.

        Coalhado do negrume

        Da noite, anseia o espaço;

Ali não cala incerto escasso lume

        De estrela. A infectos miasmas,

        Porém, sente-se o passo,

Como o passo indeciso dos fantasmas.

        Rofas moles de troncos

        Gigantescos se alteiam

Deste lado; daquele, hartos e broncos

        Penhascais; em sortunas

        Ressonâncias vozeiam

Cavos grotões, escancaradas furnas.

        E a tremer nesse estreito

        Caminho, pelo escura

Noite, escura e agitada, eu ia. O aspeito

        Do mar bem se não via,

        Que era todo espessura...

Rumor d’águas somente o espaço enchia.

        Soavam surdos na treva

        Os meus passos e, incerto,

Como quem sente que um fantasma leva

        Trás si, olhava, o ouvido

        Aguçando, e mais perto

Cria escutar um sepulcral gemido.

        Certo me acompanhavam

        Outras sombras, e em lento

Giro, à laia de espectros, se arrastavam!

        Sim, com um rouco e profundo

        E sinistro lamento

Surdem das trevas em que a vista afundo.

        E todas vieram, vieram,

        Vieram! todas em ronda

Lúgubre e extensa me cercaram, e eram

        Tão de horrores, que eu ante

        Aquela turba hedionda,

Não fui mais que uma estátua nesse instante.

        Quedei-me, em pedra imota

        Vi-me; têmporas, pulsos

Sem vida, olhar sem luz, mente idiota...

        E a legião sombria

        Dos espectros convulsos,

Diante de mim, da escuridão rompia.

        Todas as minhas dores

        Vieram; todas em grita

— Antes de Erínias infernais clamores,

        Ao meu lado passaram,

        E da noite maldita

Com os soluços as trevas abalaram.

        Vós também, sonhos torvos,

        Também vós me seguistes,

E, quais rodam do céu num ponto os corvos,

        Vós, revoltos, em bando,

        Íeis, negros e tristes,

Flocos de fumo — em torno a mim rodando.

        Viestes, males contidos

        No coração, sepultos

No coração, no coração sofridos!

        E, arremedando as fúrias

        No sanhudo dos vultos,

Viestes, raivas, e cóleras, e injúrias!

        Também ali te achavas,

        Olhas de ódios gratuitos,

Boca de inveja sórdida, que bavas

        Tudo e estragas, e danas:

        Zombaria, que a muitos

Com o teu disfarce calculado enganas!

        Nem tu mesma faltaste,

        Traição fria e engenhosa,

Que na sombra teus golpes adestraste;

        E uma vez, muda e calma,

        Insperada e enganosa,

Ervado ferro me embebeste n’alma!

        Todos viestes. E o medo

        Num frio intenso e agudo

Corre-me as carnes. E, impassível, quedo,

        Semi-ânime, exangue,

        Petrificado, mudo,

Represa a voz, pasmado o olhar, o sangue

        Gelado, hirtos na testa

        Os cabelos, — em roda

Eu via erguer-se da espectral floresta

        As mil formas, ao vento

        Que passava; e ela toda

Gemia agora um sepulcral lamento.

II

        Pouco a pouco, porém

Como quem sai de um fojo infecto e os ares

        Livremente respira;

        Como o que à tona vem

De um rio, alteia o corpo, erra os olhares,

Move dos braços, se desprende e tira

        Das águas: pouco a pouco

Acordo, torno em mim, com a vista, inquieto,

        O ermo, as sombras inquiro...

        O mar violento e rouco

Geme ainda; na noite há o mesmo aspecto,

E um suspiro se escuto, é meu suspiro.

        Corava a escuridão

Não sei que luz nesse momento: um fraco

        Ponto de ouro em começo,

        Depois quase um clarão;

Depois o céu, todo o horizonte espesso,

Toda a névoa das formas, todo o opaco

        Das cousas se alongava,

Se dispartia, dava entrada àquela

        Luz indecisa; o espaço,

        Turvo que era, ali estava

Claro agora a se abrir, em largo traço,

Sulcado à viva refulgência dela.

III

Era o dia! era o sol! Ascende a luz, palpita,

Com as asas a roçar a abóbada infinita.

Treme a noite, e é assim como um grande reposteiro

Que ondula de alto a baixo e se desdobra inteiro;

Mar de fogo e rubins, levanta-se a alvorada,

Entra pela amplidão, alaga-a, e despenhada

De cima, em rios cobre a terra inteira. Agora

Nem uma sombra mais, um pesadelo! A aurora

Dissolveu-os! O mar a música sombra

Adoça, ouvindo ao longe as cítaras do dia.

No ar a est’hora, talvez, um anjo passa, aberto

A asa, e anunciando a manhã que desperta.

Sus, minh’alma! E eu revia o sitia em que tamanho

Horror me salteara: o trilho estreito e estranho,

O ermo, os pedrouços mil do sítio, informes, tudo,

Oceano, água, albufeira, abismo imenso e rudo;

E ora, atento, no chão buscava ver se um traço

Espectral descobria ou sinal de algum passo.

Tudo a luz dissipou, varreu, levou radiosa!

Nem um vestígio mais dessa noite assombrosa!

E quando a fronte ergui, todo o Oriente, em fogo

Vivo a arder, se mostrava. O sol nascente logo

Surgiu e ao seu clarão suavíssimo, indeciso,

Espraiou-se em meu rosto o primeiro sorriso.

 

A LAGARTA

I

        Ser lagarta, em verdade,

        É uma cousa bem triste!

O asco provoca, enoja... Ah! só por crueldade,

Ou brinco, ou raiva ultriz de alguma divindade

        Este animal existe.

        Zeus, que no Olimpo excele,

        Toma de touro, em dia,

A forma, e arrasta Europa, e a longe praia a impele:

Mas fosse Europa flor, e da lagarta a pele

        Zeus acaso enfiaria?

        Não! de escrúpulos presa,

        Ao vê-lo assim, fugira

Ao seu lesmoso lábio o agenória princesa;

E, alvo lírio real, a estremecer, surpresa,

        Toda se retraíra.

        E quem há que se agrade

        De um entre assim? resiste

Quem ao vê-lo? e se o viu, quem é que um piedade

De animal tão ruim? Ser lagarta, em verdade,

        É uma cousa bem triste.

II

        De uma eu sei, entretanto,

        Que cheguei a estimar

        Por ser tão desgraçada!

        Tive-a hospedada a um canto

        Do pequeno jardim;

        Era toda riscada

        De um traço cor de mar

        E um traço carmesim.

III

Dava-lhe a custo a sombra escassa e pequenina

De galhinho sem vida um pé de casuarina.

Batia-lhe de chapa o sol no dorso, forte,

Vergastava-a de rijo o vendaval do norte;

Subia acima o ramo, abaixo vinha, à vasca

Do vento. E o pobre ser, segura sempre à casca,

Lesmava-a toda. Enfim, mais forte a aragem brinca

À noite, assopra, zune, e o débil galho estrinca,

Estala, e entre os mais, andando à roda, o aparta.

Veio com ele ao chão a mísera lagarta.

IV

E afirmo-o, podeis crê-lo, eu vi-o! em toda aquela

Selvazinha gentil de arbustos pequeninos,

Onde a abelha sussurra e o grilo tagarela,

E azoinam da cigarra os tiples argentinos;

Não houve um seio só de acanto ou margarida

Que se quisesse abrir piedoso ao sonolento

Animal, que à procura entre eles foi de vida,

E entre eles foi cair, impelido do vento.

Torceu-se então na sombra ao ser objeto a imunda

Boca, e enquanto ao redor é tudo em paz dormido

E um prenetrante aroma a noite incensa e inunda,

Estas vozes lhe ouvi, à feição de um gemido;

V

“Cansei-me, em vão, pedindo! Às rosas do ostro embalde

Falei e aos girassóis de grande c’roa jalde:

Deixaram-me de ouvir girassóis e rosais.

Beijei suplicemente os pés dos vegetais;

Ninguém me quis, ninguém! Passei, como mendiga,

Implorando a chorar um pouco e estância amiga...

Tudo em vão, porque a tudo inspiro nojo e horror!

Treme a folha ao sentir-me e treme ao ver-me a flor.

E aqui estou, fria, exposta ao vento enorme,

Sozinha, sem dormir, e vendo o céu que dorme!

Noite, oh! sê testemunha, eterno e mudo espião,

De minha dor sem nome e desta ingratidão.

VI

Disse e pensou na morte. E com o mortal excídio

Pensou tudo acabar... E pensou no suicídio.

Ia-se a pouco e pouco adelgaçando o véu

Da noite. A estrela d’alva iluminava o céu.

Fez o túmulo em vida e sepultou-se nele.

Ides ver que a magoava a sua própria pele.

VII

Claro assomava o sol no céu do Oriente. À grande

Natureza, que em tudo a sua força expande,

Doeu-lhe que, sendo Abril na terra alegre e farta,

Jazesse ali dormindo a mísera lagarta;

E, então, porque, talvez, entre emplumado bando,

Visse uma borboleta isolada pairando,

Toma o leve casulo, arranca à morte a vida;

Sopra a negra matéria informe, envilecida,

Anima-a! Uma asa faz de cintilante gaza,

Úmida, pérvia à luz, e faz depois outra asa,

Corta-as, justa-as, sorrindo, e nelas pondo a vista,

Como em rapto genial trabalha a mão do artista,

Rabisca-lhes por cima um desenho chinês...

A crisálida, então, abriu-se desta vez,

E da lagarta que era eis surge a borboleta.

Pasmada, olhou em torno; e, assim como uma seta,

Rompeu livre o azul...

VIII

O azul rompeu do espaço.

Pôs-se a voar, a voar, sem trégua, sem cansaço,

Té que descendo os pés, que eram dois áureos fios

De aranha, em frente a um lago, entre ramos sombrios

Pousou. Reviu-se n’água. A alegria nas asas

Cintilava-lhe assim como os rubins em brasas

Numa coroa. A luz cantava en torno, ao vê-la

No lago a se mirar como uma linda estrela.

Do pólen seu na cor, que embalde o Ticiano

Sonhara, o adito escuro, o impenetrado arcano

‘Stava da tinta ideal que, em sol delida, a imensa

‘Sfera tinge de azul, das mãos de Deus, suspensa.

Os perfumes que então das urnas de ouro, em vago

Bando, a aurora deixara esparsos sobre o lago,

Vieram, marchando no ar, invisíveis, saudá-la.

Já se ouvia no bosque aos pássaros a fala,

A manhã na amplidão voava, desenrolando

O seu cesto de fogo.

E ela, as asas vibrando,

Voou também na amplidão.

IX

O meu jardim agora.

Podeis florir, cecéns e cravos cor da aurora!

Fugiu com a noite, foi com a noite e o vento aquele

Incubo hediondo e vil de ascosa e imunda pele.

Cravos da cor do sol, cecéns, flori, radiosas!

Enxambre a luz do Oriente a túnica das rosas.

Sus, camélias! Mas eis, trêfega, alvoroçada,

A nossa borboleta. Inquieta e desejada,

Vai por tudo vibrando as suas asas loucas;

E foi lagarta! e andou cuspida de mil bocas!

E foi monstro! e rojou de ventre como as feras!

E irritava o gramado, e nauseava as heras!

Ei-la, que garbo agora! Ei-la, a ostentar as cores

Das asas com que passa entre as rociadas flores.

Tudo a festeja e quer e é um longo anseio mudo.

E, vede-a, a vingativa! um beijo cede a tudo!

Mas quem pode exclamar, ao vê-la assim tão bela:

— Ela é minha! se este ar, se todo o espaço é dela!

Ama, voa, revoa, agora beija, agora

Foge, volta de novo, e beija, e vai-se embora.

E é em vão que a roseira esparze o fino aroma,

Em vão a flor do sol aos raios de ouro agoma,

A açucena na alvura em vão su’alma ostenta,

Em vão para atraí-la o cravo se ensanguenta,

A papoula flameja. Ela é a Mimi leviana:

Ama, e treme, e delira, e voa, e foge, e engana.

Sabei, lírios, sabei, dálias, sabei, vós, quantas

A amais, sabei, jasmins, sabei, cheirosas plantas,

— Miosótis cor do céu, pasmai com o caso incrível!

Sabei todas que vós combateis o impossível,

Querendo possuí-la! Ó macias alfombras!

Ó tufos de verdura! ó verdura das sombras!

Ó camélias sem cor! ó lírios cor de opalas!

Ó cristais das manhãs! manhãs de eternas galas!

Ninhos! sons! harmonia! e sol! e firmamento!

Ela não será vossa! em vão é o nosso intento!

Pois um único amor, uma paixão estranha

Domina-a:

        a trama de ouro e o fulvo olhar da aranha.

 

A ENCHENTE

Foi sobre o pôr-do-sol que a água, espumando, às roncas,

Começou de crescer: pelas fragosas voltas

Das vertentes a uivar; pelo pendor, às soltas,

Das pedras a mugir; pelos algares, broncas

Socavas, barrocais, fojos, cavernas, o ermo

Zoando com o propagar dos ecos seus sem termo,

Descia. Em plúmbeo céu, enoveladas no alto,

As nuvens que arrastara o temporal, se arquevam,

E inda, de quando em quando ao raio, que de assalto

As rompe, em fundo de ouro o seio etéreo cavam,

Onde, ferindo a vista, os súbitos coriscos

Se encruzilham febris, serpentejando em riscos.

Doce raio de sol, dentre o bulcão sombrio,

Como que a medo escapo, ia aquecendo o monte,

E era pela amplidão como luzente fio

De ouro à terra estendido através do horizonte;

Doce raio de luz depois da chuva! o dia

Espreitava por ele a enchente que subia.

Toda a inculta extensão dos campos, pouco a pouco,

A água enchia e alagava. O que era um rio, ecoa,

E é mar, engrossa, e alteia, e ferve, e espuma, e rouco,

Morde as margens, empola, empina-se, acochoa,

Bolha, brama, e à feição de indômito cavalo,

Roto o freio, lá vai, — salta de valo em valo;

Voa, impelindo em fúria o peso d’água às matas,

Que ora o vendo a raivar, tão fero e desabrido,

Falam: “De onde é que vens que o manto, a uivar, desatas

E ruges, tu que outrora em chão flóreo estendido,

Com as colinas em roda, — escravas tuas — leve

As beijavas, do leito entre os lençóis de neve?!”

E a água desce: e ora as chãs, as fértiles planuras

Incha, faz apaular-se; entre o raizame adunco

Dos grossos vegetais se infiltra, nas escuras

Charnecas e marnéis os lírios sorve, o junco

Dobra, arrasta, ao covil surpreende a fera, ao ninho

Baixo arranca os frouxéis e assusta o passarinho.

Embalado lá vai na correnteza agora

Um tronco: em vão lutou, rijo madeiro opondo

À enxurrada brutal que, na evulsão sonora,

Come ao rochedo os pés e, a miná-lo em redondo,

Fá-lo pender, até que a um movimento de ira

Mais forte o desimplanta e monte abaixo o atira.

Soa o vale. Da enchente a boca informe avança;

Rói aqui já do campo os altos; o arvoredo

Ameaça, abarca, aperta; esta ramada, a frança

Deste arbusto alcançou, subindo-se a um penedo,

E esfolhou-a, e bramiu; mais alto sobe, e inunda,

Torce-se toda, e bofa, e espadana e redunda.

Velha humilde choupana, onde estancara a sede

Viajor que um dia inteiro o sol queimara, — o seio

Despovoado apresenta, ermo e soturno; e vede:

Linfa escassa que aos pés lhe andou serpeando, em meio

Da várzea, eis que se entona agora e a forte vaga

À porta lhe arrebenta, e pouca a pouco a esmaga.

De seu tecto de colmo aburacado a pomba

A asa abriu, demandando um céu melhor. Vacila,

Mal sustida, a parede, e balouça-se, e tomba,

E esbroa-se na queda a avermelhada argila.

Fica o esqueleto só, de pé, sinsitramente,

Combatido ainda assim da aluvião crescente.

E a água desce: hora a hora, ei-la a brotar a serra;

Brota-a o charco, o sapal, a estrada, a penedia,

A campina, a devesa, os borraçais, a terra

Toda; e avoluma a enchente, e temerosa amplia

O corpo, e imensa espraia em tudo, e se derrama,

E tudo atroa, e espuma, e ferve, e ronca, e brama.

Da assomada do monte olha-o o coqueiro, ao vento

Dando os leques; o corvo altívolo, surpreso,

Olha-a de cima, do ar, revoando; o firmamento

Olha-se nela; o sol, por breve instante, o peso

Das nuvens afastando, olha-a também e a umbela

De ouro lá embaixo vê a refletir-se nela.

Veio a noite depois e, calma, debruçada,

Olhou-a do alto; olhou-a, entre o espesso negrume,

A estrela, a apontar no transparente lume;

Enquanto do Levante à vaporosa entrada,

Nua e clara assomando, a lua enorme e estranha

Espiava, erguendo o rosto acima da montanha.

 

A CRUZ DA MONTANHA

I

No alto da serra inculta, onde a virente copa

Torce o vento à araucária, e o temporal galopa.

Despertando, ao troar das músicas noturnas

Que arrasta, a escuridão das covas e das furnas:

A desoras quem cruza o vale extenso embaixo,

Vê, se acaso ergue a vista, o como arder de um facho.

É uma estrela? Não sabe. Um foto fátuo? um duende?

Um fantasma? E aturada e misteriosa esplende

A luz, em meio ao espanto e negridão da noite.

II

Mas a chuva nem sempre, o temporal, o açoite

Do vento na alta serra as árvores abala;

Muita vez rompe a lua, entre névoas resvala

Claro o globo lá em cima, ao longo das vertentes

Coando em tênue chover as lágrimas luzentes.

Então brando rumor, — a voz da natureza

Em secreta volúpia, — uma quase tristeza

E gozo, em tudo acorda. O pinheiral suspira,

E ouve-se em cada gruta a voz de ignota lira.

III

Outras vezes é o céu só com as estrelas, cheio

Delas de pólo a pólo, e precintado ao meio

Da alva faixa que estende a Via-Láctea enorme.

Tudo sonha e repousa. E a serrania dorme

Sob esse escuro azul de céu que tem por cima.

IV

A tais horas não sei que maior brilho anima

A luz, causa de medo a quem passou distante

Na planície. Lá está, por noite assim, radiante

Como a estrela da tarde. Esta, entretanto, a porta

Do Poente entrou de há muito, e é desmaiada, é morta.

V

Não, — das cimas da serra, ó árvores, contai-o!

Não é de um astro a luz, não é da estrela o raio

Esse ignoto clarão. Ele alumia um’alma.

Lá se agita uma sombra. a movediça palma

Não é do coqueiral, quando a baloiça o vento

E dela extrai com o sopro um músico lamento.

E essa harmonia? ... Acaso o bruto vento acorda

Som tão doce?! ... Silêncio! ... É de alguma harpa a corda.

Alguém canta. Abre a noite o ouvido atento. A escarpa

Escuta. A humanas mãos se despedaça essa harpa

Lá em cima, e o estranho acorde, a melodia estranha

Flui num rio de prata ao longo da montanha.

VI

Mas que acerbo sofrer, que súbita agonia,

— Intérprete da dor, traduz essa harmonia?!

Vamos, galguemos o alto à serra alpestre e informe!

Na solidão sem termo há um desespero enorme,

Sofre alguém, pena alguém... Humana voz me fala...

Um grito de paixão naquela altura estala!

VII

Dorme seu grande sono a natureza inteira.

Tardo o passo, anelando, a íngreme ladeira

Subo. Que escuridão, que mar de espessa treva

Rola embaixo aos meus pés, sob os meus pés se eleva!

Ondas negras que vêm de amplo dilúvio escuro!

A uma parte e outra parte a sombra alteia um muro

E me oprime. Entretanto a escarpa vingo, o rosto

Volto ao despenhadeiro, ao abismo transposto...

Inda um passo, e descubro a luz que me há chamado.

VIII

Entre o implexo palmar há um tecto levantado.

É um palácio. Porém somente uma janela

Aberta empresta à noite um resplendor de estrela,

Luz sonora, — que vem nela arrastado um hino

Triste e vasto... É o gemer, é o grito de um destino

Doloroso. Lá dentro uma mulher ao piano

Canta, ensinando à noite o que é o lamento humano;

E o sonoro instrumento onde os seus dedos correm,

Onde dos olhos seus as lágrimas escorrem,

Geme, como se um cisne, em mágico transporte,

Dentro dele soltasse o seu canto de morte.

IX

Tem vinte anos. É bela. O canto entristecido

Soa mais alto agora, é mais alto o gemido.

O arquejante instrumento à dor mais viva acorda,

E da aberta janela a música transborda

Dentro da noite. À luz, dir-se-ia que o hino imenso

Em ligeira espiral, como a espiral do incenso,

Subia, e em cada volta em que se enovela

No ar, sentada uma prece e uma lágrima estava.

Mas plangeu subitâneo o piano gemebundo

Outra queixa. É a saudade ardente que, este mundo

Deixando, a alma consigo ao túmulo transporta:

“Adeus, tudo o que amei!” E o canto a face morta,

As mãos postas, o tronco inerte, inteiriçado,

Lembra do extremo instante... Um novo tom magoado:

É a canção dos que à terra a superfície fria

Correm, buscando sempre a sombra fugidia

Da ilusão: “Onde estás!?” — E em cada acento o piano

Grita, chama, interroga, e se espedaça insano.

E o sonoro instrumento onde os seus dedos correm,

Onde dos olhos seus as lágrimas escorrem,

Geme, como se um cisne, em mágico transporte,

Dentro dele soltasse o seu canto de morte.

X

Sob a janela, só, por entre o movediço

Palmeiral, há uma cruz de mármore maciço.

Guarda um túmulo, em chão de saudades coberto.

E a que furtiva a luz em seu brilhar incerto

Vem beijar e trazer a alma queixosa e os prantos

Dessa que dentro rompe em lágrimas e cantos.

XI

E ela cantava sempre. Os pássaros dormidos

Estremecem no bosque. E o bosque é todo ouvidos.

A água os pés de alabastro apressa na corrente

Para ouvi-la, e desliza, e corre mansamente.

Mudo, em êxtase, o espesso e trêmulo arvoredo

Inclina a fronte, escuta, e é pensativo e quedo.

Vem dos covis saindo a procissão tardia

Das sombras, e a bailar trepidamente, espia

De longe, o ventre escuro a rastos. As inquietas

Asas colhe o lampiro; o sono as borboletas

Interrompem, vergando ao pequenino galho

A flor que o cálix volta, e deixa escoar-se o orvalho.

Folha a folha, asa a asa, espuma a espuma, o fio

D’água, o inseto, o palmar, em silêncio sombrio,

Suspendem-se, e mais livre a música desata

Sobre tal quietação as estrofes de prata...

E o sonoro instrumento, onde os seus dedos correm,

Onde dos olhos seus as lágrimas escorrem

Geme, como se um cisne, em mágico transporte,

Dentro dele soltasse o seu canto de morte.

XII

Traduz o piano agora um desespero imenso.

Como que em cada nota há um coração suspenso

Que exulcerado vai sangrando. Ao rude brado

Da dor, violento grito, estremece o teclado,

Tine e vai estalar. É que a loucura, — gêmea

Do amor incontentado, — irrompeu em blasfêmia.

Mas num surdo — perdão — o ímpeto amortece,

E a alma arrependida e súplice aparece...

XIII

Pela janela aberta, em jorros a harmonia

Golfava, enchendo a noite. Enquanto ao abandono,

Qual se o morto folgasse em seu último sono,

A cruz, braços ao ar, na sombra estremecia.