Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Noturnas, de Fagundes Varela


Edição de referência:

Poesias Completas de Fagundes Varela, São Paulo: Edição Saraiva, 1956.

ÍNDICE

Aviso

À minha mãe

Névoas

Vida de flor

Arquétipo

O foragido

Fragmentos

A mulher

Sobre um túmulo

Tristeza

A enchente

À estátua equestre

AVISO

A dificuldade e demora das publicações em S. Paulo, não permitiam que tão cedo aparecesse a coleção completa de meus versos, entretanto as instâncias e pedidos cresciam de dia em dia, e fazia-se mister aceder aos benévolos desejos do público. Tomei por isso a deliberação de publicar em — séries — o meu livro, das quais apresento hoje a primeira, empenhando-me a continuar com pequenos intervalos de tempo. Peço desculpas por isso aos Srs. subscritores desta minha grande porém involuntária falta.

S. Paulo, 1.° de outubro de 1861.

L. N. F. VARELA.

À MINHA MÃE

Nas férteis regiões da Ásia a árvore da mirra e do incenso inundam de perfumes a gleba onde vicejam; —  o cisne do Eurotas desfaz-se em harmonias ante a natureza que o cerca; — o Jordão desenrola cadente suas lâminas de cristal sobre as areias de oiro da terra abençoada. Eu não tenho porém cantos, — nem perfumes — nem harmonias para vos dar, oferto-vos apenas este pálido ramalhete das fanadas flores de minha mocidade; — aceitai-o porque são saudades que vos envio através dos mares e das montanhas, — são lágrimas cristalizadas na febre das insônias, — são os primeiros lampejos de minh'alma doentia que se volvem para vós.

Aceitai-o.

NÉVOAS

Nas horas tardias que a noite desmaia,

Que rolam na praia mil vagas azuis,

E a lua cercada de pálida chama

Nos mares derrama seu pranto de luz,

Eu vi entre os flocos de névoas imensas

Que em grutas extensas se elevam no ar,

— Um corpo de fada, — serena dormindo,

Tranquila sorrindo num brando sonhar.

Na forma de neve — puríssima e nua —

Um raio da lua de manso batia,

Assim reclinada no túrbido leito

Seu pálido peito de amores tremia.

Oh! filha das névoas! das veigas viçosas,

Das verdes, — cheirosas roseiras do céu,

Acaso rolaste tão bela dormindo,

E dormes sorrindo, das nuvens no véu?

O orvalho das noites congela-te a fronte,

As orlas do monte se escondem nas brumas,

E queda repousas num mar de neblina,

Qual pérola fina no leito de espumas!

Nas nuas espáduas, dos astros dormentes,

— Tão frio — não sentes o pranto filtrar?

E as asas de prata do gênio das noites,

Em tíbios açoites a trança agitar?

Ai! vem que nas nuvens te mata o desejo

De um férvido beijo gozares em vão!...

Os — astros sem alma — se cansam de olhar-te,

Não podem amar-te, nem dizem paixão!

E as auras passavam, — e as névoas tremiam, —

— E os gênios corriam — no espaço a cantar,

Mas ela dormia tão pura e divina

Qual pálida ondina nas águas do mar!

Imagem formosa das nuvens da Ilíria,

— Brilhante Valquíria — das brumas do norte,

Não ouves ao menos do bardo os clamores,

Envolta em vapores, — mais fria que a morte!

Oh! vem! vem, minh'alma! teu rosto gelado,

Teu seio molhado de orvalho brilhante,

Eu quero aquecê-los no peito incendido,

— Contar-te ao ouvido paixão delirante!...

Assim eu clamava tristonho e pendido,

Ouvindo o gemido da onda na praia,

Na hora em que fogem as névoas sombrias,

— Nas horas tardias que a noite desmaia. —

E as brisas d'aurora ligeiras corriam,

No leito batiam da fada divina;

Sumiram-se as brumas do vento à bafagem

E a pálida imagem desfez-se em — neblina!

Santos — 1861.

VIDA DE FLOR

Porque vergas-me a fronte sobre a terra?

— Diz a flor da colina ao manso vento —

Se apenas das manhãs o doce orvalho

Hei gozado um momento!

Tímida ainda, nas folhagens verdes

Abro a corola à quietação das noites,

Ergo-me bela, me rebaixas triste

Com teus feros açoites!

Oh! deixa-me crescer, lançar perfumes,

Vicejar das estrelas à magia,

Que minha vida pálida se encerra

No espaço de um só dia!

Mas o vento agitava sem piedade

A fronte virgem da cheirosa flor,

Que pouco a pouco se tingia, triste,

De mórbido palor.

Não vês, oh brisa? lacerada, — murcha

Tão cedo ainda vou pendendo ao chão,

E em breve tempo esfolharei já morta

— Sem chegar ao verão?

Oh tem pena de mim! deixa-me ao menos

Desfrutar um momento de prazer,

Pois que é meu fado despontar n'aurora

E ao crepúsc'lo morrer!...

Brutal amante não lhe ouviu as queixas,

Nem às suas dores atenção prestou,

E a flor mimosa retraindo as pétalas

Na tige se inclinou.

Surgiu n'aurora, não chegou à tarde,

Teve um momento de existência só;

A noite veio, — procurou por ela,

Mas a encontrou no pó.

Ouviste, oh virgem, a legenda triste

Da flor do outeiro e seu funesto fim,

— Irmã das flores, à mulher às vezes —

Também sucede assim.

S. Paulo — 1861.

ARQUÉTIPO

Ele era belo; na espaçosa fronte

O dedo do Senhor gravado havia

O sigilo do gênio; em seu caminho

O hino da manhã soava ainda,

E os pássaros da selva gorjeando

Saudavam-lhe a passagem neste mundo.

Sim, era uma criança, e no entanto

Friez de morte lhe coava n'alma!

O seu riso era triste como o inverno,

E dos olhos cansados, nem um raio

Nem um clarão, nem pálido lampejo

Da mocidade o fogo revelavam!

Era-lhe a vida uma comédia insípida,

Estúpida e sem graça, — ele a passava

Com a fria indiferença do marujo

Que fuma o seu cachimbo reclinado

Na proa do navio olhando as vagas,

— Vivia por viver.... porque vivia.

Em nada acreditava; há muito tempo

Que a ideia de Deus soprara d'alma

Como das botas a poeira incômoda.

O Evangelho era um livro de anedotas, 

Beethoven torturava-lhe os ouvidos,

A Poesia provocava o sono.

Muita donzela suspirou por ele,

Muita beleza lhe dormiu nos braços,

Mas frio como o gênio da descrença,

Após um'hora de gozar maldito,

Saciado as deixou, como o conviva,

A mesa do festim, — farto e cansado. —

Era mais caprichoso, — mais bizarro

Do que um filho de Álbion, mais volúvel

Que um profundo político; uma tarde

Após haver jantado, recordou-se

Que ainda era solteiro; pelo Papa!

— É preciso tentar, disse consigo.

Quatro dias depois tinha casado.

Escolhera uma noiva descuidoso,

Como um brinco chinês — um livro in-fólio,

Ao altar conduziu-a, distraído,

E as juras divinais do casamento

Repetiu bocejando ao sacerdote.

Como tudo na vida, o matrimônio

Bem cedo o aborreceu; após três meses

Disse Adeus à mulher que pranteava,

E acendendo um cigarro, a passos lentos

Dirigiu-se ao teatro onde assistiu

Um drama de Feuillet, — quase dormindo. —

Por fim de contas, uma noite bela,

Depois de ter ceado entre dous padres,

Em casa de morena Cidalisa,

Pegou numa pistola e entre as fumaças

De saboroso — Havana — à eternidade

Foi ver si divertia-se um momento.

São Paulo — 1861.

O FORAGIDO

(CANÇÃO)

Minha casa é deserta; na frente

Brotam plantas bravias do chão,

Nas paredes limosas — o cardo —

Ergue a fronte silente ao tufão.

Minha casa é deserta. O que é feito

Desses templos benditos d'outrora,

Quando em torno cresciam roseiras,

Onde as auras brincavam n'aurora?

Hoje a tribo das aves errantes

Dos telhados se acampa no vão,

A lagarta percorre as muralhas,

Canta o grilo pousado ao fogão.

Das janelas no canto, as aranhas

Leves tremem nos fios dourados,

As avencas pululam viçosas

Na umidade dos muros gretados.

Tudo é tredo, meus Deus! o que é feito

Dessas eras de paz que lá vão,

Quando junto do fogo eu ouvia

As legendas sem fim do serão?

No curral esbanjado, entre espinhos,

Já não bala ansioso o cordeiro,

— Nem desperta-se ao toque do sino —

— Nem ao canto do galo ao poleiro. —

Junto à cruz que se eleva na estrada

Seco e triste se embala o chorão,

Não há mais o esfumar das acácias,

Nem do crente a — sentida oração.

Não há mais uma voz nestes ermos,

Um gorjeio das aves no val,

Só a fúria do vento retroa

Alta noite agitando o ervaçal!

Ruge, oh vento gelado do norte,

Torce as plantas que brotam do chão,

Nunca mais eu terei as venturas

Desses tempos de paz que lá vão!

Nunca mais desses dias passados

Uma luz surgirá dentre as brumas!

As montanhas se embuçam nas trevas,

As torrentes se vendam de espumas!

Corre pois vendaval das tormentas,

Hoje é tua esta morna soidão!

Nada tenho, que um céu lutulento

E uma cama de espinhos no chão!

Ruge, voa, que importa! sacode

Em lufadas as crinas da serra,

Alma nua de crença e esperanças

Nada tenho a perder sobre a terra!

Vem, meu pobre e fiel companheiro,

Vamos, vamos depressa, meu cão,

Quero ao longo perder-me das selvas

Onde passa rugindo o tufão!

Cantareira — 1861.

FRAGMENTOS

........................................................

Por ela me despi dos áureos sonhos

Que a flor da mocidade abrilhantavam;

Por ela reneguei meu Deus e crenças,

Por ela abandonei meus pátrios lares,

E nas fráguas do amor e da saudade

Vi minha vida desfazer-se em fumo!

Como o perfume que transpira à noite

Da margem da lagoa — a flor mimosa —

Vai deleitar o viajor que a névoa

Desorienta da campina extensa,

Vinham amenizar — lembranças dela

A sombria tristeza de minh'alma!

De plaga em plaga como o hebreu maldito

Refugiei-me em vão, buscando d'alma

Expulsar o pesar que me roía!

Mendiguei um alívio ao céu de Itália;

Aos cantos do barqueiro errei à noite

— Nas ondas perfumadas de Sorrento; —

Adormeci na encosta do Vesúvio,

E visitei as lúcidas paragens

Onde Laura e Petrarca suspiraram.

Mas era embalde!... nem o céu brilhante,

Nem o meigo sorriso, — o olhar de fogo

Da bela Italiana, nem os cantos,

Nem os festins ruidosos de Veneza,

Sanar puderam de meu seio a mágoa,

E a dor pungente que ia fundo n'alma!

A loira Grécia dirigi meus passos,

Adormeci à sombra dessas ruínas

Onde envolto em seu manto de descrença

Lorde Byron vagou. Abri meu peito

Às vozes divinais de antigas eras,

E no sopro das brisas que passavam

Ouvi o coro de — milhões de deuses —

Que das balsas floridas levantavam-se

À minha invocação; de Tempe ao vale

Fui aos ecos pedir — os doces cantos —

Que ali ditosa repetira Safo

Nos braços de Faon; e no entanto

Em vão minh'alma se engolfar buscava

No livro do passado, — em vão meus lábios

Murmuravam canções de seus poetas!

O pesar me seguia — mudo, — frio —

Horrível como um plúmbeo pesadelo!

Deixei a Grécia. Às regiões ardentes

Onde nuvens de areia o ar percorrem

— No sólio do zenite — o sol nublando,

Onde lenta caminha a caravana

Abrasada de sede e de cansaço,

— Fugindo o tédio de uma vida eivada,

Como — Harold ou René — lancei-me triste

Cercada a fronte de trevosas nuvens.

Descansei sob as tendas do deserto,

Matei a sede de meu peito em fogo

— Nas águas lamacentas das cisternas,

E após deixando os areais sem termos

Embrenhei-me nas selvas seculares

Lá onde à sombra de soberbos cedros

Dormia a solidão seu sono imenso!

— Mas as canções dos árabes errantes, —

Os urros do simoun, — o murmúrio

Da folhagem da selva, — o mundo todo —

Desse vasto poema do deserto —

Falavam-me de dor e de amarguras,

Negra saudade me acordavam n'alma!

Vaguei nos mares à tormenta exposto,

Vi diante de meus pés — o oceano e a morte, —

E meu frágil baixel arrebatado

— Ora no dorso de espumosas vagas —

Ir doudejando topetar nas nuvens,

— Ora no abismo se afundar gemendo! —

Abrindo as asas negras sobre os mares

Corria o furacão rugindo em fúrias

Como o anjo da morte! No infinito

— A orquestra da tormenta — ribombava

Horrível e sublime! O céu rugia,

As serpentes de fogo se enroscavam

No espaço abraseado, — as ardentias

Referviam no abismo escancarado

Como os lumes que em breve me esperavam

Na tumba imensa de revoltas águas!

E enquanto os mastros a estalar caíam

Ao roçar da tormenta, enquanto os nautas

Prostrados no convés — a Deus clamavam

Ante a agonia — a tempestade — e a morte,

Pedindo às vagas, olvidando tudo,

O nome dela eu murmurava em prantos.

Dos abismos à flor, como Manfredo,

Os gênios invoquei — vertiginoso —

P'ra que lançassem de minh'alma aos ermos

— De mim mesmo, um profundo esquecimento.

Pedi a Deus — um existir de bruto, —

Matéria impura sem pensar nem dores.

Mas nem um gozo iluminou-me a vida,

Nem uma fonte límpida e serena

Rebentou — pelo Saara — de minh'alma!

Errei nessas paragens encantadas

Onde à sombra de um bosque de palmeiras

Regatos correm de serenas águas:

Ouvi ave sonora se embalando,

A morredoura luz de amenas tardes

Lançar gorjeios de saudade infinda;

céu de azul me iluminava a fronte

Com torrentes de luz, as flores todas

Me incensavam de aromas suavíssimos.

Mas — o riso da flor — o som das brisas —

A criação pejada de perfumes

Contando aos astros em linguagem doce

Suas legendas de amores e sorrisos,

Não podiam sequer matar-me n'alma

O negro viso de uma dor sem termos!

De deserto em deserto se acampando

Os pastores da Arábia a vida passam;

Como eles vagabundo, — eivado o seio,

De dor em dor com vagarosos passos

Atravesso os desertos da existência!

Cansado de lutar sobre esta vida,

Senti um dia esmorecer no crânio

A centelha da crença e da esperança.

Por altas noites, na mansão dos mortos

Quando a terra dormia, mergulhado

Em negro pesadelo, errei sombrio

Os mistérios da campa interrogando.

Haverá outra vida?... Após a morte

Irei eu habitar um novo mundo

Onde não sinta os desprazeres deste?

Eu filho da matéria e escravo dela

Serei em breve reduzido a lodo,

Após haver tragado em brônzea taça

Tanto fel e absinto?.. assim clamava

Colando sobre a terra dos sepulcros

Minha fronte incendida pela febre.

Mas lá de longe, — lá do céu quem sabe,

Vinha urna voz ungida de saudades,

A harmonia da fé lançar-me n'alma,

E a flor das esperanças — moribunda —

Alimentar com tímidas promessas!

Era ela! ela sempre! à noite, — ao dia —

No sono — ou na vigília!... amiga sombra,

Incessante visão da felicidade,

Presente sempre a meus cansados olhos

Na penosa jornada deste mundo!

Anjo de meu amor! — filha de Deus!

Porque me infliges o cruel suplício

De ver-te sempre, — de abraçar-te nunca!

Ligeiras nebulosas que habitais

Sobre os mares de éter, — róseas nuvens, —

Fúlgida estrela que à manhã nascendo,

Desperta o viandante nas estradas,

Astros gigantes, — espantosos mundos

Que girais no infinito!.... oh em vós todos

Eu parecia vê-la! — ora divina

Num oceano de névoas flutuando,

— Ora adejando na região das luzes, —

Ora no espaço que a razão apenas

Só pode conceber!... em meu caminho

Ela se erguia sempre; nos meus sonhos

Ela passava pensativa, — meiga

Como um gênio de Ossian; nos meus versos

Seu doce nome ressoava sempre!

Debalde procurei riscar da mente

Essa imagem divina, — parecia

Que o destino a ligava à minha vida!

Todas as taças de um viver sem gozo

Traguei descrido. De minh'alma as flores

No lodo mergulhei, e inda tão cedo

Me perdi em profundos desvarios!

Fui no recinto em que circula o vício,

Ao clarão da candeia fumarenta,

Pender à negra mesa — empalecido —

Gastando as noites no fervor do jogo!

Tonto de vinho, — desvairado em febre, —

Elevei minha taça transbordando

Entre blasfêmias e obscenos cantos!

E nos gritos da orgia, — e no delírio —

Uma voz sonorosa me acordava

Do longo pesadelo de minh'alma,

— E eu soluçava me lembrando dela!

Coberto de tristeza e de saudades,

Quebrei a ausência, atravessei os mares,

Vim a vida buscar ante seus olhos.

Após tão longo exílio, ardendo em gozo,

O coração pulsando de alegria,

Aos lares dela dirigi meus passos.

Mas silêncio!... um véu negro, impenetrável,

Cubra esse quadro que meus olhos viram;

Durma na sombra de um olvido eterno

Esse mistério fúnebre, banhado

De lágrimas de sangue! E tu, minh'alma,

E tu, pobre infeliz, manchada — fria —

Abafa no teu seio essas lembranças,

Nem um sonho sequer desse passado

Venha turbar teu pesadelo imenso!

Rio Claro — 1861.

A MULHER

(A C.....)

A mulher sem amor é como o inverno,

Como a luz das antélias no deserto,

Como o espinheiro de isoladas fragas,

Como das ondas o caminho incerto.

A mulher sem amor é — Mancenilha —

Das Armas plagas sobre o chão crescida,

Basta-lhe à sombra repousar um'hora,

Que seu veneno nos corrompe a vida.

De eivado seio no profundo abismo,

Paixões repousam num sudário eterno;

Não há canto nem flor, — não há perfumes,

A mulher sem amor como o inverno.

Su'alma é um alaúde desmontado

Onde embalde o cantor procura um hino;

— Flor sem aromas, — sensitiva morta, —

— Batel nas ondas a vagar sem tino.

Mas se um raio do sol tremendo deixa 

Do céu nublado a condensada treva,

A mulher amorosa é mais que um anjo,

— É um sopro de Deus que tudo eleva!

Como o árabe ardente e sequioso

Que a tenda deixa pela noite escura,

E vai no seio de orvalhado lírio

Lamber a medo a divinal frescura:

O poeta a venera no silêncio,

Bebe o pranto celeste que ela chora,

Ouve-lhe os cantos, — lhe perfuma a vida,....

— A mulher amorosa é como a aurora!

São Paulo — 1861.

SOBRE UM TÚMULO

Torce-te aí na sepultura fria

Onde passa rugindo o furacão,

Seja-te o orvalho das manhãs negado,

Soe em teu leito a voz da maldição!

Teu castigo será gemer debalde

Buscando o sono que o sudário deixa,

Ouvir nas trevas de uma noite horrenda

De errantes larvas a funérea queixa!

Pese-te a terra qual um fardo imenso,

Infecta podridão cubra teus olhos,

Seque o salgueiro que sombreia a lousa

E em seu lugar estendam-se os abrolhos!

Roam-te o Ódio, — a maldição, — o olvido,

E quando as turbas levantar-se um dia,

— Aparências de Deus, — para afundar-se

No seio d'Ele, ardentes de alegria,

Surdo sejas aos ecos da trombeta

Em teu leito de pedra enregelada;

Findem-se os mundos, e a existência tua

Fria se apague na soidão do nada!

São Paulo — 1861.

TRISTEZA

Minh'alma é como o deserto

De dúbia areia coberto,

Batido pelo tufão;

como a rocha isolada

Pelas espumas banhada,

— Dos mares na solidão. —

Nem uma luz de esperança,

Nem um sopro de bonança

Na fronte sinto passar!

Os invernos me despiram,

E as ilusões que fugiram

Nunca mais hão de voltar!

Roem-me atrozes ideias,

A febre me queima as veias,

A vertigem me tortura!...

Oh! por Deus! quero dormir,

Deixem-me os braços abrir

Ao sono da sepultura!

Despem-se as matas frondosas,

Caem as flores mimosas

Da morte na palidez:

Tudo, tudo vai passando,

Mas eu pergunto chorando

— Quando virá minha vez?

Vem, oh virgem descorada, 

Com a fronte pálida ornada

De cipreste funerário,

Vem! oh quero nos meus braços

Cerrar-te em meigos abraços

Sobre o leito mortuário!

Vem oh morte! a turba imunda,

Em sua miséria profunda,

Te odeia, te calunia,

— Pobre noiva tão formosa

Que nos espera amorosa

No termo da romaria.

Quero morrer, que este mundo

Com seu sarcasmo profundo

Manchou-me de lodo e fel;

Porque meu seio gastou-se,

Meu talento evaporou-se

Dos martírios ao tropel!

Quero morrer: não é crime

O fardo que me comprime

Dos ombros lançar ao chão,

Do pó desprender-me rindo

E as asas brancas abrindo

Lançar-me pela amplidão!

Oh! quantas loiras crianças

Coroadas de esperanças

Descem da campa à friez!...

Os vivos vão repousando

Mas eu pergunto chorando:

— Quando virá minha vez? —

Minh'alma é triste, pendida,

Como a palmeira batida

Pela fúria do tufão;

É como a praia que alveja;

Como a planta que viceja

Nos muros de uma prisão!

São Paulo — 1861.

A ENCHENTE

Era alta noite. Caudaloso e tredo

Entre barrancos espumava o rio,

Densos negrumes pelo céu rolavam,

Rugia o vento no palmar sombrio.

Triste, batido pelas águas torvas

Girava o barco na caudal corrente,

Lutava o remador — e ao lado dele

Uma virgem dizia tristemente:

Como ao rijo soprar das ventanias

Os mortos boiam sobre as águas frias!

E são jovens, bem jovens! na cabana

Dormiam calmos sem pensar na sorte;

A enchente veio, e no agitar infrene

De um sono meigo os conduziu à morte!

A f'licidade é um sonho nebuloso,...

A vida neste mundo é sempre assim,

Do gozo em meio a veladora eterna

Nos arranca da mesa do festim!

Como ao rijo soprar das ventanias

Os mortos boiam sobre as águas frias!

— Rema, rema, barqueiro; olha — lá em baixo

À luz vermelha do fuzil que passa,

Não vês o vulto de um rochedo escuro

Que a correnteza estrepitando abraça?

— Oh se o vejo, senhora; eu bem o vejo!

Diz o barqueiro com sinistra voz;

Pedi à Virgem que os perigos vela

Que tenha ao menos compaixão de nós!

Como ao rijo soprar das ventanias

Os mortos boiam sobre as águas frias!

Eis dentre as vagas de caligem densa

Vem macilenta se mostrando a lua,

Como à luz dela a natureza é morta,

Como a planície é devastada e nua!

Perto, tão perto se levanta a margem

Onde fagueira a salvação sorri,

E nós rolamos, e rolamos sempre

E não podemos aportar ali!

Como ao rijo soprar das ventanias

Os mortos boiam sobre as águas frias!

Duro, insofrido o vendaval soergue

Da onda a face em convulsão febril;

— Barqueiro, alento! e chegando em terra,

Hei de cobrir-te de riquezas mil.

Porém no dorso do dragão das águas

Lutava o barco — mas lutava em vão,

E a pobre moça desvairada em prantos

Pedia à Virgem que lhe desse a mão!

Como ao rijo soprar das ventanias

Os mortos boiam sobre as águas frias!

— Ouve, barqueiro, que rugido é esse

Profundo e surdo que lá em baixo soa?

Parece o ronco de um trovão medonho

Que dos abismos pelo seio ecoa! —

Oh! 'stou perdido ! ... abandonando os remos

Clama o infeliz a delirar de medo,

Oh é a morte que nos chama, horrível,

No fundo escuro de feral rochedo!

Como ao rijo soprar das ventanias

Os mortos boiam sobre as águas frias!

Ia o batel. Ao sorvedouro imenso

Era impossível se esquivar então,

Dentro sentado — o remador chorava,

E a donzela dizia uma oração.

Já diante deles entre véus de espuma

Treda — a voragem com furor rugia,

E uma coluna de ligeiro fumo

Do centro escuro para o céu subia.

Como ao rijo soprar das ventanias

Os mortos boiam sobre as águas frias!

Súbito o barco volteou rangendo,

Tremeu em ânsia — se estorceu, recuou, —

Deu a virgem um grito — outro o barqueiro

E o lenho na voragem se afundou!

Tudo findou-se. O vendaval sibila

Correndo infrene na planície nua,

O rio espuma e nas revoltas ondas

Descem dois corpos ao clarão da lua.

Como ao rijo soprar das ventanias

Os mortos boiam sobre as águas frias!

Setembro — 1861.

À ESTÁTUA EQUESTRE

Ergue-te ousado sobre o chão da praça,

Homem de bronze, — imagem de monarca,

Simulacro fatal!

Pisa inda as turbas humilhadas, como

As duras patas do corcel que montas

O chão do pedestal.

Cansadas nunca de opressores ferros,

Livres de um jugo,— de outro jugo escravas,

As massas enervadas

Do pó resgatam seus tiranos mortos,

E à luz do sol inundam de louvores,

Por terra debruçadas!

Raça de Ilotas, que fizestes pois

Da férvida centelha que no seio

Vos pôs a Divindade?

Porque reledes o passado escuro,

Quando deveras derribar os tronos

Cantando a liberdade?

Vota-se à treva o busto dos Andradas,

Some-se a glória de ferventes mártires

Na lama do ervaçal!

Mas fria a estátua pisa a turba, como

As duras patas do corcel de bronze

O chão do pedestal!

Oh terra do Brasil; — diamante vívido

Da coroa soberba de Colombo,

— Bela estrela do sul, —

Porque tão cedo declinais a fronte

E a fímbria do vestido enegreceis

No limo do paul?

Porque tão cedo enregelais o seio

Nessas frias geadas que predizem

A morte das nações,

E os pulsos presos, e a vontade escrava,

Do mártir a memória e a voz dos bardos

Cobris de maldições?

Erguei-vos desse lívido marasmo,

Afrontai o negrume das tormentas,

O horror da tirania!

Se agora em bronze eternizais — senhores, —

Gravai nos bronzes o brasão dos livres,

Saudai um novo dia!

Embora o mundo me proclame louco,

Embora à fronte com furor me gravem

Estigma infernal!

Não posso calmo ver pisar-se as turbas,

Como o corcel de levantada estátua

O chão do pedestal!

S. Paulo — Outubro — 1861.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística