Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Flor de Lis, de Arthur Azevedo e Aluísio Azevedo

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Obra de Referência

Biblioteca Virtual de Literatura

ADVERTÊNCIA

Havendo o Conservatório Dramático Brasileiro proibido as representações de Le droit du seigneur, ópera cômica representada em 1878, em Paris e convindo aproveitar, para o repertório da excelente companhia Heller, a interessante partitura de Vassenr, escrevemos o libreto que se vai ler, calcando-o sobre o de Paulo Burani e Máximo Bouoheron.

A flor de lis, como se poderá verificar, aproveitou algumas situações da peça original, substituindo aquelas que promoveram, o rigor do Conservatório, capazes, na realidade, de ofender uma plateia escrupulosa.

A & A. AZEVEDO.

PERSONAGENS

O CAPITÃO-GENERAL

O ALCAIDE-MOR

O FÍSICO-MOR

BEIJA-FLOR

O SARGENTO-MOR

CATHARINA

A CONDESSA

THEREZA

MARIA

JOANNA

JOSEFA

1º SOLDADO

2º SOLDADO

3º SOLDADO

Homero e mulheres do povo, soldados, caçadores, paisanos.

A cena passa-se no Brasil, no século XVII.

Ensaiador, Sr Jacintho Heller

Cenógrafos, Sr. Rossi e Cabouigue

Regente da orquestra, Sr Henrique de Mesquita.

ATO PRIMEIRO

Praça de filia. A esquerda, a modesta habitação de Catharina. Ao fundo, arvoredo, e um portão, que conduz ao palácio do Alcaide-mor. Vê-se, em perspectiva, no pano do fundo, a parte culminante do palácio.

CENA PRIMEIRA

THEREZA, MARIA JOANNA, JOSEFA, O FÍSICO-MOR, HOMENS E MULHERES DO POVO.

INTRODUÇÃO

CORO.

Isto é demais! Que maroteira!

O senhor conde maluco estará?

Não pôde haver maior bandalheira!

O senhor conde perfeito não está!

O FISICO-MOR.

O nosso alcaide-mor é da mais nobre raça;

Receia vê-la extinta e tem razão, talvez.

Quer encontrar mulher que conhecer lhe faça

O que é ser pai de um filho ao menos uma vez.

CORO.

Isto é demais!

O FISICO-MOR.

Gritam mais que o galo!

Temerários são!

CORO.

Que negra ação!

O FISICO-MOR.

Tenham cuidado: podem zangá-lo!

Ai de quem se lhe for queixar!

Na pele não lhe quero estar!

CORO.

Isto é demais!

THEREZA.

Excessos tais

E tais extremos

Devemos suportar?

Injuria tal ouvir devemos

Sem murmurar?

(As raparigas que a cercam.)

Escutem cá, minhas amigas,

Um juramento é já preciso;

O alcaide-mor nem um sorriso

Alcançará das raparigas.

AS MULHERES.

Assim juramos

E protestamos.

OS HOMENS

Bravo! bravo, raparigas!

O FÍSlCO-MOR.

Oh, meu Deus, que raparigas!

JOANNA.

Coplas

I

A nós bem pouco se nos dá

Do que pretende o potentado;

Ha de ficar desesperado,

Nada de nós conseguirá.

O amor não pode ser imposto,

Não se sujeita a imposição;

Não sendo amor do nosso gosto,

Não nos penetra o coração.

Devemos todas ser esquivas,

Fazê-lo todas rabiar!

Sejamos altivas,

Espertas e vivas!

E o tal senhor—podem contar—

Não mais em nós há de pensar.

E não lhe responder senão;

Não!

II

Se o nome quer perpetuar,

Do lar doméstico não fuja;

Ou lave em casa a roupa suja,

Ou deixe a roupa por lavar...

Se o santarrão, por ser de casa,

Milagre é coisa que não faz,

Procure alguém que lhe encha a vasa,

E por favor nos deixe em paz.

Devemos todas ser esquivas, etc.

O FÍSICO-MOR.

Não é tanto assim, minhas filhas! Não é tanto assim! O que sua mercê resolveu fazer ó de toda a justiça! Vocês não entendem disto... Trata-se de interesses de nobiliarquia.... Trata-se de dar seiva a uma ilustre árvore genealógica, para não deixá-la morrer para ai como um jenipapeiro qualquer. É uma questão de hereditariedade.

MARIA.

De quê?

O FÍSICO-MOR.

De hereditariedade ou sucessão. Repito: sua mercê o senhor alcaide-mor precisa perpetuar o nome glorioso de seus antepassados. Quer ter descendentes. Descendentes, que serão os herdeiros de seus títulos e de seus bens.

THEREZA.

Pois se quer descendentes— ou com dentes que

Se entenda com a família! É boa! (Todas riem )

O FÍSICO-MOR.

Hoc opus hic labor est. Infelizmente a senhora condessa é infecunda, e sua mercê não pode, como os monarcas, anular o seu casamento.

MARIA.

Pois que não anule!

O FÍSICO-MOR.

O que não impede, porém, que empregue todos os meios de perpetuar o nome ilustre de seus avós. Vocês, minhas filhas, nada perdem com as exigências do senhor alcaide-mor. Devem até desejar que ele seja o pai de todos os filhos, que porventura venham a ter. Estarão garantidas, e os pequenos terão pai alcaide.

THEREZA.

Obrigadas pela boa intenção! Pensará o senhor físico que não entendemos disto? O que lucrava um filho nosso em ter pai alcaide, uma vez que não fosse filho legitimo?

O FÍSICO-MOR.

Sua mercê está disposta a tudo. Desenganado de que nunca terá um filho de matrimonio, resolveu não só reconhecer por escritura o bastardo que tiver, como igualmente conferir-lhe todas as regalias do seu nome e da sua fazenda.

JOANNA.

Nós é que não engolimos essa!

O FÍSICO-MOR.

Pois engulam, que é a pura verdade. Se assim não fosse, sua mercê não me faria vir expressamente do reino, acomodando-se, e gastando um rol de cruzados, que lhe não faziam falta.

THEREZA.

Isso tudo é o que se diz agora! Depois...

JOSEFA.

Sim, além de que, cada uma de nós tem o seu competente noivo!

THEREZA.

E seria muito feio se...

MARIA.

Cá por mim, podem prometer-me mundos e fundos!

O FÍSICO-MOR.

Não exagerem as circunstâncias, minhas filhas. O noivo facilmente se consolaria, vendo entrar-lhe a fortuna pela porta

THEREZA.

Mas, afinal de contas, nada disto nos diz para que? o senhor FÍSICO-mor nos reuniu aqui.

JOANNA.

E avie-se, que temos mais que fazer!

O FÍSICO-MOR.

Primo. Preveni-las do desejo de sua mercê.

TODAS.

Secundo...

O FÍSICO-MOR.

Secundo, examiná-las.

AS MULHERES.

Examinar-nos!...

O FÍSICO-MOR.

Certamente.

THEREZA.

Ora outro ofício! Onde já se viu isto?! Examinar-nos!

O FÍSICO-MOR.

Cumpro ordens.

MARIA.

E foi para isso que veio do

(Risadas. O físico-mor é apontado no meio de geral zombaria)

O FÍSICO-MOR, de mau humor.

O caso não é para galhofas! Vim do reino, sim, senhoras, vim ! E tenho nisso muita honra. Sou o famigerado cirurgião Salsaparrilha, licenciado na universidade de Coimbra e físico-mor da casa real. Mais de um príncipe já me morreu nas mãos, com honra e em boa hora o diga!

THEREZA, interrompendo-o.

Pois bem, consentimos no exame, sob a condição de que nos há de agarrar!

TODAS.

Isso! Isso! (Correm em volta do físico-mor.)

JOSEFA.

Pegue! (Dá-lhe uma pancada no chapéu.)

MARIA.

Examine, se é capaz! (Faz o mesmo.)

JOANNA.

Cá estou, cá estou! Examine-me! (As mulheres continuam a acorrer em torno do físico-mor, que as persegue. Os homens, à parte, riem ás gargalhadas.)

CENA II

Os MESMOS, o ALCAIDE-MOR, a CONDESSA.

O ALCAIDE-MOR, fora.

Cale-se! Você é uma víbora!

A CONDESSA, fora.

E você um velho libertino!

O FÍSICO-MOR, parando com respeito.

Aí vem sua mercê.

TODOS, intimidados.

O alcaide-mor!

THEREZA.

Chega a proposito. Vamos perguntar-lhe o que deseja de nós.

O FÍSICO-MOR.

Endoideceste? Pois não vês que vem em companhia da senhora condessa Falem-lhe quando estiver só. (Entra o alcaide-mor ao lado da condessa.) Pscio...

O ALCAIDE-MOR, a condessa

Não me desespere, criatura!

A CONDESSA.

Não me puxe pela língua!

O ALCAIDE-MOR.

Irra! Deixe-me em paz!

A CONDESSA.

Vá pentear monos!

O ALCAIDE-MOR, vendo os circunstantes.

Olhe que está gente! Contenha-se, dona Leonarda!

A CONDESSA, baixo.

Modere-se, Pascácio!

TODOS, incitados pelo físico-mor.

Viva o nosso alcaide-mor!

O ALCAIDE-MOR.

Obrigado, meu povo! (A mulher, com afetada ternura.) Minha querida condessa, digne-se dizer alguma coisa agradável a esta boa gente. (Baixo.) Ainda temos contas que ajustar.

A CONDESSA.

Oh! Que entusiasmo sente por ti o povo! Parece-me que te ama tanto como eu, meu adorado esposo. (Baixo, beliscando-o.) Pedaço de tratante!

TODOS.

Viva o nosso alcaide-mor!

O ALCAIDE-MOR.

Obrigado, meu povo, obrigado. Nós e a condessa estamos deveras penhoradas por essas vivas... ou por outra, por essas vivas demonstrações de afeto. (Aparte.) Este diabo não me deixa pôr pé em rama verde! (Alto.) Creiam que a nossa única preocupação é a prosperidade e o bem, estar desta vila

TODOS, sempre incitados pelo físico-mor.

Viva o nosso alcaide-mor!

A CONDESSA.

Sim, meus amigos, nosso marido só pensa em proporcionar ao povo agradáveis e generosas surpresas. Agora mesmo acabou ele de me comunicar que resolve tomar, de vez em quando, a expensas Vias uma criança do povo, que se formará em humanidades na universidade do reino.

TODOS.

Viva o nosso alcaide-mor! (A condessa toma a esquerda, para conversar com as mulheres, e o alcaide-mor vai ter com o físico-mor à direita.)

O ALCAIDE-MOR, baixo ao alcaide.

Então O que tens feito?

O FÍSICO-MOR.

Tenho lutado com mil dificuldades. As pequenas estão se fazendo de manto de seda!

O ALCAIDE-MOR.

Pois não receberam a notícia de braços abertos?

O FÍSICO-MOR.

Qual! Ao contrário...torceram o nariz... enfim, vossa mercê julgará por si...

A CONDESSA, que se mete inesperadamente entre os dois

Que fazes tu, meu queridinho? (Baixo.) Tramas alguma nova maroteira, pedaço de velhaco?

O FÍSICO-MOR, disfarçando.

O senhor conde pedia-me uma receita para os calos.

O ALCAIDE-MOR.

E eu pedia-lhe uma receita para os calos. (Aparte.) Tartaruga!

A CONDESSA.

(Oh! Fico tão sobressaltada quando sofres qualquer coisa! (Aparte.) Aqui anda história... oh! Mas hei de saber!

O ALCAIDE-MOR, ao povo.

Adeus, meus filhos, nós continuamos o nosso passeio, em companhia da condessa. (A mulher.) "Vem, coração!

A CONDESSA, indo tomar-lhe pressurosa o braço.

Aqui estou, meu amor. (Aparte.) Não me engano...

TODOS.

Viva o nosso alcaide-mor!

O ALCAIDE-MOR, a sair, de braço dado a condessa.

Obrigado, meu povo, obrigado! (Baixo a mulher.) Carrapato!

A CONDESSA, baixo ao marido.

Libertino!

O ALCAIDE-MOR.

Apare, que você é insuportável!

A CONDESSA.

E então você, seu desavergonhado? (Não se ouve o resto.)

O FÍSICO-MOR, abismado.

Que ditoso casal! Que ternura!

THEREZA.

E é este ratão que...

CENA III

OS MESMOS, menos o ALCAIDE-MOR e a CONDESSA, —BEIJA FLOR.

BEIJA-FLOR, entrando da esquerda.

Ainda bem que os encontro aqui! Façam favor de me explicar um boato, que corre por aí a respeito...

THEREZA, apontando para o físico-mor.

Olha, aí tens quem te pode pôr tudo em trocos miúdos.

O FÍSICO-MOR.

Descansa, meu rapaz, que a seu tempo tudo saberás. É uma questão política.

BEIJA-FLOR.

Ah! Estou mais tranquilo. Tinham-me dito coisas... mas vejo que nada tenho com isso. (Dando uma palmada no físico-mor.) Não é assim, senhor licenciado?

O FÍSICO-MOR.

E, é, mas não batas no púlpito!

A VOZ DE CATHARINA.

Ai! ai!

BEIJA-FLOR.

Valha-me Deus! É a voz de Catharina! (Correm todos para o fundo.)

CENA IV

OS MESMOS, CATHARINA.

CATHARINA.

Ai! ai! Escondam-me!

THEREZA.

Mas donde vens tu assim?

CATHARINA.

Venho do rio, não veem?

TODOS.

Do rio?!

CATHARINA.

Sim, estava a banhar-me., como de costume. Mas hoje saí d’agua mais depressa do que nos outros dias.

Coplas

I

Eu banhava-me no rio,

No rio que corre ali;

De repente um calafrio subir-me o corpo senti.

Um cavalheiro indiscreto A beira d’agua parou;

Não sei qual fosse o objeto

Que a atenção lhe provocou.

Surgia a aurora no horizonte,

Tinha esplendores o arrebol;

Talvez que o tipo ali defronte

Apenas estivesse a contemplar o sol...

II

A margem da correnteza

Ele ficou sem mugir,

Esperando—com certeza—

Do banho ver-me sair.

Esquivei-me como pude E vim correndo até cá;

A lição foi muito rude...

Nunca mais voltarei lã.

Surgia a aurora no horizonte, etc.

THEREZA.

Também que mania esta de banhar-se de instante a instante!

BEIJA-FLOR.

Bem feito. De hoje em diante terá mais cuidado quando se meter no rio.

CATHARINA.

Eu não tive a culpa.

BEIJA-FLOR.

Sei cá se teve! Eu é que não estou disposto a casar com uma mulher que já foi vista no banho!

CATHARINA.

Apenas, como já disse, por um sujeito. E um sujeito que não é de cá. Um estrangeiro, um viajante...

BEIJA-FLOR.

Já sei, algum pelintra do reino. Pois vou ensiná-lo! (Sae vivamente por onde entrou Catharina.)

CATHARINA.

Onde vais tu, Beija-flor? Olha cá! (As outras.) E foi-se!

THEREZA.

Eu -com franqueza- no seu caso faria o mesmo.

O FÍSICO-MOR, que tem estado a examinar Catharina com a luneta.

Soberbo! Magnifico!...

MARIA.

Olha que Beija-flor é muito ciumento!

JOANNA.

Se não abrires os olhos...

O FÍSICO-MOR, apalpando os braços de Catharina.

Soberbo! Soberbo!... O alcaide-mor deve ficar satisfeitíssimo!

CATHARINA.

Largue-me! Ora esta! Largue-me!...

O FÍSICO-MOR.

Desculpa, minha filha, desculpa; mas cumpro o meu dever.

CATHARINA.

Pois o seu dever é apertar-me os braços? (Riem-se todos.)

O FÍSICO-MOR, entusiasmado.

És a mulher mais feliz de todo o Brasil! Estás rica!

CATHARINA.

O FÍSICO-MOR.

Podre de rica!...

CATHARINA.

Não percebo.

O FÍSICO-MOR.

Já vais perceber. Preciso falar-te em particular.

CATHARINA.

Mas solte-me! (Sai-lhe das mãos.)

JOSEFA, baixo, a Catharina.

Cautela!

MARIA, idem.

Cuidado!

JOANNA, idem.

Sentido!

THEREZA, idem.

Olho vivo!

CATHARINA, atônita.

Hein? O que? (Ao físico-mor.) O que deseja de mim o senhor licenciado?

O FÍSICO-MOR.

Desejo fazer a tua felicidade. (Segura-a de novo.)

CATHARINA, fugindo-lhe das mãos.

Obrigada! Deixe-me ?!... (Sai, correndo, pela porta da cabana.)

O FÍSICO-MOR.

Vocês é que são as culpadas! Sucia de tagarelas! (Fazem-lhe troça.) Demais a mais, zombam de mim! Ora esperem lá, suas atrevidas! (Persegue-as com o bastão. As raparigas correm a volta da cena, a fazer surriada.)

THEREZA.

Olha o doutor! (Dá-lhe uma pancada.)

MARIA.

Cuidado não lhe rebentem as presilhas!...

JOSEFA.

Olhe a peruca que não caia! (Puxa-lhe pelo cabelo.)

JOANNA.

Anda a roda, macaco! (Saem pelo fundo, fazendo grande algazarra.)

CENA V

O FÍSICO-MOR, só.

Vadias! Melhor seria que fossem cuidar de suas obrigações. Insolentes! Faltarem-me ao respeito! A mim, que fui sempre bem visto pelos maiores fidalgos da Corte, e. pelo meu augusto rei e senhor! Tira o chapéu.) O meu gosto era ensiná-las a todas com este bastão l Desavergonhadas! Mas deixem estar, que lhes farei a cama. (Dirige-se a porta da cabana.) Vejamos, todavia, se consigo persuadir a pequena. (Bate à porta.) Catharina! O Catharina! Está sempre teve melhor modo que as outras. (Bate de novo.) O Catharina! Vem cá, preciso dar-te duas palavras que te interessam.

CATHARINA, mostrando a cabeça por entre a porta.

O que deseja de mim?

O FÍSICO-MOR.

Preciso falar-te. É negócio sério.

CATHARINA.

Mais deixe-se daquelas brincadeiras de ainda há pouco.

O FÍSICO -MOR.

Que brincadeiras! Aquilo não são brincadeiras! Eu exercia as minhas atribuições de físico-mor. Homem, creio que na minha idade estou a coberto de qualquer suspeita...

CATHARINA, descendo ao proscênio.

Lá isso é verdade. O senhor licenciado já merece confiança.

O FÍSICO-MOR.

E sempre mereci. Nunca fui espirra-canivetes! Muito novo ainda... eu já lecionava latim as donzelas do paço. Nunca tiveram que se queixar de mim. Pois olha, havia muito com que pecar... (Centro tom.) Mas vamos ao que importa. O senhor alcaide-mor encarregou-me de escolher, dentre as raparigas mais reforçadas da vila, aquela que fosse de melhor conformação física, que tivesse o sangue mais esperto e a inteligência mais pronta...

CATHARINA, ingenuamente.

Para que?

O FÍSICO-MOR.

Pois não adivinhaste?

CATHARINA.

Não, senhor.

O FÍSICO-MOR.

Valha-me a paciência! (Já amassado e como quem repete uma lição.) Trata-se de perpetuar o nome ilustre de tão conspícuo varão.

CATHARINA.

Não entendo.

O FÍSICO-MOR.

Creio. Estas questões de alta política são por demais transcendentes para uma rapariga de tua idade. Mas eu te explico. (Podes te chegar sem receio, que não te quero fazer mal.) O senhor alcaide é casado...

CATHARINA, prestando-lhe muita atenção.

Isso já sei. Adiante.

O FÍSICO-MOR.

Mas não tem filhos,

CATHARINA.

Também já sei.

O FÍSICO-MOR.

E precisa de um descendente como do pão para a boca. E deseja que tu sejas a mãe desse filho!

CATHARINA.

Ah! Agora entendo. (Aparte.) Quer tomar-me para ama seca.

O FÍSICO-MOR.

Se consentires, ele te arranjará, pelo menos, um alvará de nobreza.

CATHARINA.

Deveras? Mas eu não sei ser nobre...

O FÍSICO-MOR.

Ora não sabes! Tudo se aprende.

CATHARINA.

Mas seria preciso separar-me do meu Beija-flor! Nada, não quero!

O FÍSICO-MOR.

Quem te falou em separação? Casarias com ele da mesma forma.

CATHARINA.

Ah! Isso agora muda de figura! Aceito.

O FÍSICO-MOR.

De simples barbeiro, teu noivo passará a ser... mordomo, por exemplo, ou coisa ainda melhor!

CATHARINA.

Que bom! Beija-flor deixará de fazer a barba aos outros...

O FÍSICO-MOR.

Para que os outros lhe façam a ele.

CATHARINA.

Vou já daqui comunicar-lhe tudo. Ha de ficar muito contente.

O FÍSICO-MOR.

Mas espera, minha filha; vê lá o que vais fazer! Convém que Beija-flor...

CATHARINA.

Ah! Pode ficar descansado. Eu saberei convencê-lo. Se for preciso, ameaçá-lo hei com uma recusa.

O FÍSICO-MOR.

Bravo! Bravo! Parece que te estou vendo fidalga! (Tira um cartão do bolso e escreve a lápis.)

CATHARINA.

Fidalga! Oh, meu Deus! Como serei feliz!

O FÍSICO-MOR.

Olha, dá um pulo ao palácio, e entrega este bilhetinho ao senhor alcaide-mor. Só a ele.

CATHARINA.

Sim, senhor licenciado. Até logo!

O FÍSlCO-MOR.

Espera aí. (Tomando-lhe a mão com muita galanteria, fazendo-lhe uma mesura a corte.) Baronesa...

CATHARINA, idem.

Cavalheiro... (Saindo a rir.) Ah! Ah! Ah!

O FÍSICO-MOR, só.

E não é que ela tem jeito? Ah, que se realizam os planos do alcaide-mor, sempre são trezentos cruzados de renda e a patente de alferes, que me caem no papo. Ele, sem dúvida, ficará satisfeito com a portadora do bilhete, e pasmará da facilidade com que encontrei rapariga pintar da faneca!

CENA VI

O FÍSICO-MOR, O CAPITÃO-GENERAL.

O CAPITÃO-GENERAL, embuçado.

Não há dúvida: a pequena embarafustou por aqui. (Procurando.) Onde diabo se teria ela metido? (Vendo o físico-mor.) Oh!

O FÍSICO-MOR, aparte.

Quem será?

O CAPITÃO-GENERAL, reconhecendo-o.

Mas não me engano! É o Salsaparrilha! (Descobre o rosto.)

O FÍSICO-MOR.

Oh! O senhor capitão-general!! (Cumprimentando-o humildemente.) Um servo de vossa excelência...

O CAPITÃO-GENERAL.

Caio-me a sopa no mel. Estimei muito encontrado, porque desejo confiar-lhe uma comissão melindrosa, melindrosíssima.

O FÍSICO-MOR.

Vossa excelência ordena...

O CAPITÃO-GENERAL.

Trata-se de fazer a sua fortuna. Terá uma renda de quinhentos cruzados e a patente de sargento-mor.

O FÍSICO-MOR, aparte.

Cobriu o lance do alcaide-mor. Agarro! (Alto.) Sempre ás ordens de vossa excelência.

O CAPITÃO-GENERAL.

Quero perpetuar o nome ilustre e glorioso dos meus antepassados.

O FÍSICO-MOR, aparte.

É uma epidemia!

O CAPITÃO-GENERAL.

Nunca mais terei filhos. Tenho minhas razões para acreditá-lo. Desejo, portanto, descobrir um, que me nasceu há dezoito anos, em Pernambuco, e deve existir nestas paragens. Nunca fiz caso dele; hoje, porém, quero encontrá-lo, custe o que custar.

O FÍSICO-MOR.

Mas... sem um indício?

O CAPITÃO-GENERAL.

Há, há um indício, mandei abrir nas costas, da criança uma flor de lis,

O FÍSICO-MOR.

Uma flor de Lis?

O CAPITÃO-GENERAL.

Hoje, passeando por aquele lado, descobri uma flor, gravada, pelo mesmo processo, na espadua de uma rapariga que se banhava no rio.

O FÍSICO-MOR.

Catharina?

O CAPITÃO-GENEEAL.

Conhece-a? Tanto melhor. Apodere-se dessa rapariga e conduza-a para uma cabana que mandei construir ali, para aqueles lados. Para auxiliá-lo nesse rapto, ficam à sua disposição quatro homens do meu serviço.

O FÍSICO-MOR, aparte.

E eu que a mandei ao alcaide?

O CAPITÃO-GENERAL.

Veja lá ! Quinhentos cruzados e a patente de sargento-mor.

O FÍSICO-MOR.

Convém entender-me com Catharina, antes que ela fale ao noivo.

O CAPITÃO-GENERAL.

Ah! Tem noivo?

O FÍSICO-MOR.

(Um pobre rapaz. Bárbaro.)

O CAPITÃO-GENERAL.

Bem. Estamos entendidos. Nem palavra sobre o que falamos. (Embuça-se e sai.)

O FÍSICO-MOR, só.

Quinhentos cruzados e a patente de... agarro! O diabo é o bilhete que mandei ao alcaide! Se eu alcançasse ainda Catharina... vejamos... (Sai apressadamente.)

CENA VII

BEIJA-FLOR, CATHARINA.

BEIJA-FLOR, seguido por Catharina.

Deixa-me! Não quero ouvir!

CATHARINA.

Ciumento! Mau! Feio! Ha meia hora que me faz trotar atrás de si!

BEIJA-FLOR.

Nada! A história do banho não me passa d’aqui!

CATHARINA.

Ingrato! Enquanto fugias de mim, eu tratava de fazer de ti um fidalgo, um grande homem!

BEIJA-FLOR.

Hein? O que é lá isso? (Aparte, assustado.) Aquele boato... isto que ela agora diz... eu estouro!

CATHARÍNA.

O alcaide-mor quer que eu seja ama seca de um filho que ele há de ter.

BEIJA-FLOR.

Ama seca? Quem te meteu semelhante coisa em cabeça?! Proíbo-te que me toques nesse assumpto. És uma toleirona!

CATHARÍNA.

Mas...

BEIJA-FLOR.

Nem mais palavra! Tu sabes lá o que desejam fazer de ti, minha simplória? —Que ingenuidade!

CATHARINA, chegando-se meigamente para ele

Eu....

DUETO

CATHARINA.

Porque ficaste zangado

Ao saber que um potentado

Ditosos nos quer fazer?

BEIJA-FLOR.

Oh, não! Não te posso dizer!

CATHARINA.

Meu Beija-flor, és tão pobre:

Tens a proteção de um nobre

E zangado estás; porque?

BEIJA-FLOR.

Eu te amo e a ti só quero, crê.

CATHARINA.

Contra Deus acaso peca

Quem se mete de ama seca

Do filho do alcaide-mor?

BEIJA-FLOR.

Não me perguntes por favor!

CATHARINA.

Tu vês nisto algum perigo?

Esse emprego

Bom achego

É para nós, meu amigo.

BEIJA-FLOR.

Viver ditoso a teu lado

É quanto quero, ó meu amor!

CATHARINA.

Porque ficaste zangado

Ao saber que um potentado

Quer ser nosso bem feitor?

BEIJA-FLOR.

Oh, não! Eu não te digo

Não deve haver porosa

Explicações entre nós dois.

Eu vou casar contigo;

Tudo te direi depois.

CATHARINA.

Depois... Sabe Deus quando!

Porque és teimoso assim?

Tem compaixão de mim!

Que raiva me estás dandoI

Fique o segredo entre nós dois...

Se uma pergunta me fizesses,

A explicação que tu quisesses

Não ficaria para depois.

Explica-me tudo

Por miúdo;

Diz porque torces o nariz!

Sem carantonhas,

Quero que ponhas

Que ponhas os pontos nos is.

BEIJA-FLOR.

Ora porque torço o nariz!

Nada, de pontos nos is!

Podes comigo zangar-te,

Porém eu não devo dar-te

Uma resposta; não vê!

CATHARINA

Porque?

BEIJA-FLOR.

Doe-me ver-te despeitada,

Mas não tenho, ó doce amada,

Explicação que te dê.

CATHARINA.

Porque?

BEIJA-FLOR.

Vinham-te rosas a face,

Se eu acaso te explicasse

O desejado porque.

CATHARINA.

Porque?

Meu Beija-flor, dize porquê!

BEIJA-FLOR.

Não te posso dizer porquê.

Oh, não! Eu não te digo!

Não deve haver por ora

Explicações entre nós dois.

Eu vou casar contigo;

Tudo te direi depois

CATHARINA.

Depois... E eu fico ás cegas!

A explicação, já sei,

Só a conseguirei

Lá pra calendas gregas!

Se o noivo meu, entre nós dois,

Alguma coisa me pedisse,

Embora fosse uma tolice,

Não lhe diria que depois.

Explica-me tudo, etc.

BEIJA-FLOR, fugindo-lhe,

Nada! Nada! Só depois do nosso casamento poderei explicar-te tudo. O que te afianço é que desisto, se aceitas o que te propõe o alcaide! (Sai vivamente.)

CENA VIII

CATHARINA, depois o CAPITÃO-GENERAL

CATHARINA, procurando deter Beija-flor.

Beija-flor! Beija-flor! Espera um instante!

O CAPITÃO-GENERAL, saindo ao seu encontro

Espera tu!

CATHARINA

Oh! O cavalheiro do rio!

O CAPITÃO-GENERAL.

Até que te pilhei, minha sereia! Há uma hora que te procuro!

CATHARINA.

Que diz, senhor? Se Beija-flor o ouvisse!

O CAPITÃO-GENERAL.

Beija-flor é o teu namorado?

CATHARINA

O meu noivo.

O CAPITÃO-GENERAL, tomando-lhe um braço.

Como és bonita!

CATHARINA.

Mau, mau! Solte-me, que ele é muito ciumento.

O CAPITÃO-GENERAL.

Não julgues mal de minhas intenções, trata-se de uma questão de alta política.

CATHARINA.

Ah! Já sei, uma história de um filho, uma história de levar-me para o palácio e fazer-me fidalga.

O CAPITÃO-GENERAL.

Como?! Já sabes?

CATHARINA.

O senhor licenciado já me falou.

O CAPITÃO-GENERAL.

Ah!

CATHARINA.

Mas Beija-flor não está pelos autos, e eu, para lhe dizer a verdade, não sei em que consistirá o meu emprego no palácio. Se o senhor me pudesse dizer... estou em branco e doidinha por saber.

O CAPITÃO-GENERAL, aparte.

Adorável! (Alto.) Primeiramente, conta-me a história desse sinal que tens na espádua.

CATHARINA, com pudor.

Ah! Viu?

O CAPITÃO-GENERAL.

De relance. Interesso-me pela história dessa flor.

CATHARINA.

É um girassol.

O CAPITÃO-GENERAL.

Um girassol? Tão pequenino!

CATHARINA.

Ah, sim, é um girassol em ponto pequeno.

Coplas

I

No campo, uma tarde, cansada.

Minha mãe no chão se deitou;

Ali, na graminha aveludada,

O melhor leito improvisou.

Quando meu pai, preocupado,

Foi ter com ela ao pôr do sol,

Ela acordou; vi-o a seu lado,

E os olhos pôs num girassol.

Meu pai ã minha mãe dizia,

E minha mãe me repetia:

Que linda flor é o girassol,

Que gira, gira como o sol!

II

E quando e mãe voltou para casa,

A sorrir disse-lhe a vovó:

A face, filha, tens em brasa,

Da lida vens, que metes dó.

Durante um ano a mãe lembrou-se

Daquela flor, ao pôr do sol,

—Aí está porque na espadua trouxe

Quando nasci, um girassol.

Meu pai a minha mãe dizia, etc.

O CAPITÃO-GENERAL.

Se quiseres, dentro em poucos dias, serás a rainha do meu palácio!

CATHARINA.

Rainha?

O CAPITÃO-GENERAL.

Sim, nada te faltará. Terás sedas, veludos, carruagens, criados e joias, muitas joias! Serás minha filha! (Despindo a capa.) Eu sou o capitão-general!

CATHARINA. Retraindo-se.

O capitão-general?!

CAPITÃO-GENERAL

.

Que só deseja fazer de ti uma filha, e isto mesmo porque não pode fazer de ti um filho.

CATHARINA.

Que trapalhada! Um quer que eu seja mãe e o outro filha!

O CAPITÃO-GENERAL.

Ouve agora tu...

Coplas

I

No meu palácio irás morar,

E nada ali te ha de faltar!

Só pisarás ricos tapetes

E sumptuosos tamboretes!

Num grande leito dormirás,

Que ao próprio Deus inveja faz!

Terás vestidos elegantes

E alguns adereces de brilhantes;

Muitos lacaios de libré

Que te hão de até beijar o pé!

Ora aqui tens o que te dou:

Vê lá se de teu gosto sou.

II

Serás a dama mais feliz

De quantas há nestes Brasil!

Mal os teus dotes aproveites,

Mal te arrebiques e te enfeites,

Virás o poder de que dispões,

Pois és mais linda que supões!

Provocarão teus atavios

Os mais pomposos elogios;

Vassalos mil te beijarão

Esta mãozinha de algodão.

Ora aqui tens o que te dou;

Vê lá se de teu gosto sou...

CATHARINA.

Nada disso me explica o que eu desejo saber.

O CAPITÃO-GENERAL, indo ao fundo, aparte.

Diabo! É Leonarda que se aproxima. Se me encontra aqui, está o caldo entornado. (Embuça-se de novo na capa. Alto.) Minha filha, logo mais tudo te explicarei melhor. Voltarei ao cair da noite. Só te peço uma coisa: não digas quem eu sou. (sai.)

CENA IX

CATHARINA, depois a CONDESSA., o FÍSICO-MOR.

CATHARINA, só.

Macacos me mordam só percebo pitada de tudo isto! —A condessa! (Encosta-se á cabana. A condessa e o físico-mor entram, conversando.)

O FÍSICO-MOR, aparte.

Eu conto-lhe os planos do marido. É o único meio de me desembaraçar do meu compromisso.

CONDESSA

Mas, como ia dizendo o senhor licenciado, meu marido o encarregou de...

O FÍSICO-MOR.

De arranjar uma...

A CONDESSA.

Não deite mais na carta! Ah, senhor conde, senhor conde! Não sabe em que se meteu!

O FÍSICO-MOR.

Oh, minha senhora! Se soubesse que a impressionaria tanto a minha revelação, não a faria.

A CONDESSA.

Fez muito bem. Quero cortar os planos daquele velhaco!

O FÍSICO-MOR.

Todavia, as intenções do senhor conde são muito boas. O seu desejo é continuar o nome ilustre de seus...

A CONDESSA.

Oh! Não o conhece! Ninguém há como ele para arranjar uma desculpa.

O FÍSICO-MOR, mostrando Catharina.

Olhe, senhora condessa: é aquela a rapariga escolhida.

A CONDESSA.

Tão nova, e presta-se a isso?! Em que tempo estamos nós, meu Deus!...

O FÍSICO-MOR.

Ela, coitadinha! É inocente como um pássaro. Sabe lá do que se trata!

A CONDESSA, aparte.

Ah! Mas é a pequena que conversava há pouco com Viriato. Ter-me-ia eu enganado? (Alto, a Catharina.). Minha filha, vem cá.

CATHARINA, aproximando-se e cumprimentando.

Minha senhora... (O físico-mor afasta-se.)

A CONDESSA.

Dize-me francamente: com quem conversavas tu quando eu cheguei?

CATHARINA.

Eu... eu falava com um estrangeiro.

A CONDESSA.

Um estrangeiro! Vamos lá! Tu não sabes quem é aquele homem?

CATHARINA, intimidada.

Sei, sei, mas pelo amor de Deus não diga que fui eu quem...

A CONDESSA.

Não direi, se me confessares o que conversavam com tanta intimidade...

CATHARINA, e baixando os olhos.

Ele explicava-me ao certo o que o senhor alcaide-mor deseja de mim.

A CONDESSA.

Como? Pois era isso o que ele te explicava?

CATHARINA.

Era, mas não cheguei a saber, porque a senhora condessa apareceu e...

A CONDESSA.

Pois agradece-me o ter aparecido. (Aparte.) Aquele Viriato! Não sei quando terá juízo!

CATHARINA.

Se a senhora condessa quizes.se explicar o que é...

A CONDESSA. Aparte.

É tão inocente!? (Alto.) Nada te posso explicar. Vai-te embora.

CATHARINA, aparte.

Ainda não foi desta vez... (Faz uma grande mesura e sai correndo.)

CENA X

O FÍSICO-MOR, a CONDESSA.

A CONDESSA.

Ouviu, senhor licenciado?

O FÍSICO-MOR.

A senhora condessa não me ordenou que ouvisse...

A CONDESSA.

E preciso, a todo transe, destruir os projetos de meu marido.

O FÍSICO-MOR.

A senhora condessa é a única que o pode fazer.

A CONDESSA.

Mas de que modo?

O FÍSICO-MOR, com mil reservas.

Com uma gota deste líquido.

A CONDESSA, recuando.

O FÍSICO-MOR.

Qual veneno! Em elixir de minha invenção, extraído desta opulenta flora brasileira. Pode dar-lhe a beber sem receio. (Dá-lhe o fresquinho)?

A CONDESSA

Afiança então que...

O FÍSICO-MOR.

Que depois de haver tomado essa droga, o senhor alcaide-mor não a poderá atraiçoar.

A CONDESSA.

Pois bem, muito agradecida, senhor licenciado. Hei de recompensar a sua dedicação. Até logo, e lembre-se de que toda a discrição é pouca.

O FÍSICO-MOR.

É ociosa a recomendação. (Curva-se com respeito; a condessa sai.)

CENA XI

O FÍSICO-MOR., depois o ALCAIDE-MOR.

O FÍSICO-MOR, só.

Muito bem! Desta forma fico livre do alcaide-mor, e posso agarrar com as mãos ambas o oferecimento do capitão-general: quinhentos cruzados e o título de sargento-mor... Capite!

O ALCAIDE-MOR. entrando apressadamente.

Até que te encontro! Recebi a tua comunicação. Fiquei encantadíssimo com a pequena, mas o diabrete não me deu tempo...

O FÍSICO-MOR.

Sabe, senhor alcaide-mor? Começam a aparecer suas dificuldades...

O ALCAIDE-MOR.

Dificuldades?! Dou-te mil cruzados de renda faço-te secretário geral da capital!...

O FÍSICO-MOR., aparte.

Cobri o lance do capitão-general! Eu agarro! (Alto.) Sim, mas, apesar de todas as dificuldades, pode vossa mercê contar como triunfo. (Aparte.) Substituirei ó frasquinho que dei a condessa. (Alto.) Não, há tempo a perder. Vou dar providencias. Com sua licença, senhor conde...

O ALCAIDE-MOR.

Vê-la o que fazes! É preciso que a ilustre raça dos Pascácio não acabe como a de qualquer Manoel de Sousa—Vai. (O físico-mor cumprimenta e sai.) Dois coelhos de uma cacheirada: perpetuo a minha estirpe e gosto dos afagos dessa Linda Catharina, cuja presença me acendeu no peito uma nova mocidade! Oh! Sinto-me outro!

CENA XII

(ALCAIDE-MOR, THEREZA, JOSEFA, JOANNA,

Que entram do fundo, de mãos dadas e cabisbaixas.

O ALCAIDE-MOR, vendo-as, consigo.

Oh! Que enxame de rolas! Ah, já sei! Cumprem a ordem, que lhes enviei pelo licenciado, de virem à minha presença. Como me obedecem! Aposto que cada uma delas morre por ser a preferida! Mas tarde piaram: Catharina apanhou o logar. (Alto, ás raparigas.) Aproximem-se. (Obedecem.) Antes de mais nada: conhecem a lenda da ilustre casa dos Pascácio? —Respondam!

TODAS.

Não, senhor.

O ALCAIDE-MOR.

Nesse caso, ouçam e meditem. E a história dos meus avós.

   Coplas

I

Se contra os povos da Mourama

Tiveram rasgos de valor,

Lograram inda maior fama

A ferir batalhas de amor.

Tremer faziam sarracenos,

Amedrontavam espanhóis;

Mas tanto a Marte como a Vênus

Sacrificavam teus heróis

Um Deus no céu, um rei na terra

Eis a divisa que ficou.

Bofé! Nem no amor, nem na guerra,

Bandeira nenhum deles arredou!

II

Nos tempos da cavalaria

—Bom par de séculos lá vai—,

De um tal do povo a voz dizia

Que fora oitenta vezes pai.

Um outro, dos mais atrevidos,

Cercado o seu castelo vi-o

Por uma nuvem de maridos

Que ele fizera..., porém, pscio...

Um Deus no céu, um rei na terra etc.

Bem; agora que já conhecera a lenda dos meus avós, digam-me cá: examinou-as o licenciado?

TODAS.

Examinou-nos: mas disse que não servimos.

O ALCAIDE-MOR.

Pior! Fale cada uma por sua vez! (Depois de um silencio.) Então? Agora todas se calam?

MARIA.

O senhor licenciado achou que todas nós somos defeituosas.

O ALCAIDE-MOR.

Sinto muito dizer-lhes, minhas filhas: não servem. Resignem-se. (A Josefa.) Mas qual é o teu defeito?

JOSEFA.

Sou surda.

O ALCAIDE-MOR.

Mas ouves sempre alguma coisa?

JOSEFA.

Não, senhor. Saiba vossa mercê que não ouço absolutamente nada.

JOANNA.

Eu cá fui mordida por um cão danado.

O ALCAIDE-MOR, recuando.

Oh, diabo! (Tomando Thereza pela mão.) Ah, mas? Esta não tem o que se lhe diga...

THEREZA.

Engana-se, meu fidalgo, sou muda.

O ALCAIDE-MOR.

Muda?

THEREZA

Da nascença.

O ALCAIDE-MOR.

Pobre rapariga! Bem! Podem ir, tenham paciência...

THEREZA, aparte

Livres!

TODAS.

Senhor alcaide-mor... (Cumprimentam e saem.)

CENA XIII

O ALCAIDE-MOR, depois CATHARINA

O FÍSICO-MOR, só.

Catharina, essa não tem defeito algum! É ideal!

CATHARINA, entrando, consigo.

E Beija-flor não aparece! Vendo o alcaide-mor.) Ah!

O ALCAIDE-MOR.

Ela!

CATHARINA, querendo sair.

Perdão, ando a procura de meu noivo.

O ALCAIDE-MOR.

Espera, preciso falar-te. Porque ainda há pouco fugiste daquele modo?

CATHARINA.

É que vossa mercê me deitava uns olhos...

O ALCAIDE-MOR.

Tiveste medo de mim?

CATHARINA.

Confesso que tive.

O ALCAIDE-MOR.

Pois olha que, se te quis deter, foi para o teu bem.

CATHARINA.

Bem sei, o senhor licenciado já me havia dito, mas...

O ALCAIDE-MOR.

Mas...?

CATHARINA.

Mas meu noivo não consente...

O ALCAIDE-MOR.

E tu?

CATHARINA.

Eu, por mim, consentia; sempre gostei de crianças...

O ALCAIDE-MOR.

E então?

CATHARINA

Mas por coisa alguma sacrifico o meu noivo.

O ALCAIDE-MOR, aparte.

É adorável!

CATHARINA.

Se vossa mercê fizesse o favor de me explicar em que consiste o meu emprego em sua casa.

FINAL

CATHARINA.

Eu cá por mim aceito tudo,

E pronta estou para o servir;

 Mas Beija-flor, que é cabeçudo,

De modo algum quer consentir;

 Põe-se a chorar, põe-se a carpir...

Ou doido está, ou me eu iludo!

O ALCAIDE-MOR.

Hei de obrigá-lo a consentir!

CATHARINA.

E depois, um desconhecido,

Um fidalgo aqui me encontrou;

 Mundos e fundos me ofertou

E a aceitar estou resolvida.

O ALCAIDE-MOR.

Hei de enforcar esse atrevido!

Alcaide-mor mostrar que sou!

CATHARINA.

Saber desejo sem demora

Em que consiste o meu emprego.

O ALCAIDE-MOR.

Eu de explicar-te me encarrego.

CATHARINA.

Pois me penhora;       

Sim, porque estou em branco,

Pois Beija-flor não quis ser franco;

Pôs-se a chorar, pôs-se a carpir,

E por mais... por mais que eu pedisse,

O teimoso nada me disse:

Pôs-se a chorar, pôs-se a carpir,

De modo algum quis consentir!

O ALCAIDE-MOR.

Hei de obrigá-lo a consentir!

CATHARINA

.

Meu bom senhor, saber, desejo

Em que consiste emprego tal.

Inda o não sei: segundo vejo,

É coisa, muito especial.

O ALCAIDE-MOR.

Meu doce amor, dizer desejo

Em que consiste, emprego tal.

Curiosa estás, pelo que vejo...

Acho isso muito natural,

(Aproximando-se dela.)

Olha. Eu te aperto esta mãozinha...

CATHARINA.

Está bem. Depois?

O ALCAIDE-MOR.

E esta cintura;

CATHARINA

Está bem. Depois?

O ALCAIDE-MOR.

Oh, que inocente criatura!

CENA XIV

ALCAIDE-MOR, CATHARINA, BEIJA-FLOR, depois os COROS, em cujo número THEREZA, etc. e a CONDESSA.

BEIJA-FLOR, espavorido.

Catharina

Em companhia de um senhor!, Reconhecendo-o.

 É o senhor conde! Oh, que tortura!

O ALCAIDE-MOR, aparte.

Eu nunca vi tanto candor.

CATHARINA.

Está bem. Depois?

O ALCAIDE-MOR, aparte,

(Alto.) Quanto ela é pura! Chega-te a mim, não tenhas medo... tranquila está, que não me excedo.

CATHARINA.

Se assim for preciso...?

O ALCAIDE-MOR.

É, pois não!

CATHARINA.

Sou todos ouvidos.

O ALCAIDE-MOR.

Coração!

BEIJA-FLOR, desesperado, ao fundo.

Assombra tanta falsidade!

Que negro monstro de maldade!

O ALCAIDE-MOR.

Chega-te a mim. Sem receio, presta-me toda a atenção.

CATHARINA.

Mas por que tanto rodeio,

Porfie tanta hesitação?

Eu inda estou em branco, etc.

BEIJA-FLOR

Oh, que tormento a me pungir!

Eu não lhe posso resistir!

(Reanimando-se.)

Como sair desta dança?

Oh, que lembrança!

(Vai ao fundo, faz sinais para fora, Gritando:

 Viva o nosso alcaide-mor!

Os coros entram precipitadamente.)

CORO.

Viva o nosso alcaide-mor!

Que bela autoridade!

Que arcanjo de bondade!

Não há, não há melhor!...

(Gritando.) Viva o nosso alcaide-mor!...

O ALCAIDE-MOR} à parte

.

Tal canalha não se atura!

Deitam-me agua na fervura!

(Alto.) Eu, conde dom Pascácio,

Alcaide-mor deste logar.,

Amanhã dou no meu palácio

Uma festança popular.

CORO.

De certo vae nos convidar!

O ALCAIDE-MOR.

Nenhum de vós ha de faltar, terá pular, folgar, dançar!

CATHARENA.

Pôr mais na carta não precisa;

Pode contar com todos nós.

O ALCAIDE-MOR.

E não se esqueçam da divisa.

Herdada um dia aos meus avós...

Um Deus no céu, rei na terra

Eis a divisa que ficou!

CORO GERAL.

Bofé! Nem no amor, nem na guerra, Bandeira nenhum deles arrepiou.

ATO SEGUNDO

Sala, no palácio do alcaide-mor, preparada para uma festa. Ao fundo, parque, com iluminação. Portas laterais, uma das quais com um postigo disfarçado. As paredes são todas ornadas de velhos retratos a óleo, representando os avós do alcaide-mor. Quadro alegre e festivo.

CENA PRIMEIRA

O SARGENTO-MOR, THEREZA, MARIA, JOANNA, JOSEFA, GUARDAS, PAGENS, depois BEIJA-FLOR, CATHARINA.

CORO GERAL:

Oh, que festa

Do bom tom!

Tudo presta,

Tudo é bom!

Bambinelas

E festões,

Arandelas

E balões!

BEIJA-FLOR e CATHARINA, aparecendo, receosos.

Deve-se entrar?

Receio muito uma cilada.

O senhor conde não me agrada...

Eis-me a tremer, eis-me a hesitar!

BEIJA-FLOR.

Adeus! Saberei defender-te

Do tal senhor alcaide-mor!

Não se há de rir à minha custa,

Porque esta mão forte e robusta

Defenderá o meu amor.

AMBOS.

Vamos entrar

Sem hesitar.

CORO.

Oh, que festa

Do bom tom!

Tudo presta,

Tudo é bom!

(No fim do canto, Beija-flor e Catharina acham-se no proscênio.)

CATHARINA.

Elias tinham razão. Princípio a desconfiar que tudo isto não terá bom fim.

BEIJA-FLOR.

Sabe Deus o que nos espera neste palácio infernal!

CATHARINA.

E si deitássemos a fugir?

BEIJA-FLOR.

Seriamos agarrados e rigorosamente punidos.

CATHARINA.

Lançar-nos-íamos aos pós do alcaide-mor.

BEIJA-FLOR.

Então vá lá! Fujamos! (Sobem ao fundo.)

O SARGENTO-MOR, gritando, do fundo.

A postos! Ali vem sua mercê, o senhor conde dom Pascácio, alcaide-mor, etc. e, tal!

BEIJA-FLOR, a Catharina

É tarde!

CATHARINA, a Beija-flor.

Vê como tremo...

A VOZ DO ALCAIDE-MOR.

Veja o que faz, condessa!

A VOZ DA CONDESSA.

Faço isto! (Ouve-se estalar uma bofetada, acompanhada de um grito do alcaide-mor)

O SARGENTO-MOR.

Como se amam!

CENA II

Os MESMOS, o ALCAIDE-MOR, a CONDESSA.

O ALCAIDE-MOR, a condessa.

Contenha-se, dona Leonarda!

A CONDESSA.

Você faz-me perder as estribeiras!

O SARGENTO-MOR, aos guardas.

Apresentar armas! (Os guardas obedecem.)

TODOS.

Viva o nosso alcaide-mor!

O ALCAIDE-MOR, baixo, a condessa.

Olhe que não estamos sós.

A CONDESSA, baixo, ao marido.

Veja como se porta!

TODOS

Viva o nosso alcaide-mor!

O ALCAIDE-MOR.

Obrigado, meu povo. Como tudo isto me com- move! O respeito, a disciplina, o amor... sinto-me perfeitamente feliz! (Aparte, indicando a condessa.) O diabo é este carrapato... (Alto, a condessa, com muita amabilidade.) Está satisfeita, minha queridinha?

A CONDESSA.

Oh, muito satisfeita! E vossa mercê, meu queridinho?

O ALCAIDE-MOR.

Eu estou sempre bem no meio dos meus fieis e dedicados amigos, e ao lado da minha terna e submissa mulherzinha. (Com mais amabilidade.) Entretanto, se a condessa prefere tomar um pouco de ar lá fora... está tanto calor aqui!

A CONDESSA, baixo.

Queres ver-me pelas costas, pedaço de tratante! (Alto, amabilíssima.) Tanto incomodo, meu amigo... estou perfeitamente bem.

O ALCAIDE-MOR.

Quanta amabilidade! (à parte.) Não me deixa pôr pé em ramo verde!

A CONDESSA.

As vontades do conde são ordens para mim. (Baixo,) sapo velho!

O ALCAIDE-MOR.

Perereca! (Tomando a atitude solene de um pregador.) Meus filhos, o nosso fim, reunindo-os hoje nesta pequena e modestíssima festa popular, foi proporcionar-lhes alguns instantes de alegria. É de antiga usança entre os varões da nossa ilustre raça facultar diversões honestas e pacatas aos seus fâmulos e vassalos. Esse costume remonta aos godos e visigodos. Pois bem, nós e a nossa muito nobre e carinhosa esposa...

O SARGENTO-MOR, gritando.

Viva a senhora alcaide!

(TODOS)

Viva!

A CONDESSA.

Alto lá! Eu não sou alcaide!

O ALCAIDE-MOR.

Silêncio! (Ao sargento-mor.) És um pedaço d’asno, sargento-mor.! Cortaste-me o fio do discurso! (Continuando.) Sim, nós e a nossa muito nobre e carinhosa esposa, resolvemos... resolvemos...

BEIJA-FLOR, baixo a Catharina,

Aproveitemos e... (Monção de quem foge.)

CATHARINA, baixo

Valeu! (Vão saindo disfarçadamente.)

O ALCAIDE-MOR.

Sim, resolvemos... (Reparando em Beija-flor e Catharina.) Mas onde vão aqueles dois?

CATHARINA e BEIJA-FLOR, voltando.

É tarde!

O ALCAIDE-MOR.

Aproximem-se! Ah! Coloquem-se defronte de mim. Vocês representam o povo e eu represento, o nosso rei e senhor absoluto. (Tirar o chapéu,) A senhora condessa essa representa a dedicação, a doçura e a virtude conjugal.

A CONDESSA

Obrigada. (Baixo.) Hipócrita!

O ALCAIDE-MOR, baixo.

Cega-rega! (Continuando). Pois, meus servos fieis, meus dedicados fâmulos e famulas, brinquem! Foi quem! dancem! Comam e bebam a fartar! A nossa dispensa e a nossa adega são duas tendas árabes: fartem-se!

TODOS.

Viva o vosso alcaide-mor!

O ALCAIDE-MOR.

Obrigado! Obrigado!

BEIJA-FLOR, dirigindo-se respeitosamente ao alcaide, com Catharina pela mão.

Senhor alcaide, estamos muito agradecidos a vossa mercê, mas preferimos ir-nos embora. Temos muito que fazer.

O ALCAIDE-MOR.

Nada. Ficam em nossa casa. Tomamo-los ao nosso serviço. Levamos a nossa magnanimidade ao ponto de consentir que se casem para o mês que vem.

CATHARINA.

Mas é que...

BEIJA-FLOR.

Não quero aqui ficar!

O ALCAIDE-MOR.

Pois bem, vai, podes ir. Ela fica.

CATHARINA.

Isso nunca!

BEIJA-FLOR.

Catharina dispensa semelhante honrai

O ALCAIDE-MOR, impacientando-se.

Malcriado! Atrever-se a contrariar-me! (Aos guardas.) Não deixem sair este maroto!

BEIJA-FLOR.

Mas Catharina é minha noiva!

O ALCAIDE-MOR.

Se resistir, apliquem-lhe cinquenta vergastadas!

BEIJA-FLOR.

É de mais! Eu perco-me, mas faço uma bernarda!...

0 ALCAIDE-MOR. avançando.

Atrevido! Insolente!... Prendam-no!

CONDESSA, interpondo-se.

Domine-se, Pascácio!

O ALCAIDE-MOR.

Deixe-me, senhora!

CATHARINA, segurando-se ao alcaide-mor.

Por quem é, perdoe! Tenha dó de nós!...

Sexteto e coro

BEIJA-FLOR.

Eu não desejo aqui ficar! Pequeno sou, mas decidido!

CATHARINA

Meu bom senhor, eis-me a chorar;

- Não façais mal ao meu querido!

CORO.

Oh, que audacioso

De marca maior!

Deve furioso

Estar o alcaide-mor!

O ALÇAIDE-MOR.

Ousam voltar-se contra mim!

O SARGENTO-MOR.

Ele as manguinhas põem de fora!

BEIJA-FLOR.

Ninguém aqui rirá de mim!

A CONDESSA.

Razão lhe dou.

O ALCAIDE-MOR.

Bico, senhora!

(Aos guardas.) Segurem-me este vilão!

BEIJA-FL0R, ameaçando os guardas, que se movem.

Ai do primeiro que se atreva!

O SARGENTO-MOR.

Um gênio tal à forca o leva!

CORO.

Nós vamos ter complicação!

CATHARINA, ao alcaide-mor.

Vossa mercê não faça caso,

Desculpe o pobre Beija-flor.

O ALCAIDE-MOR.

Zangado estou! Vai tudo raso!

Fez jus à força o tal senhor!

(Empurrando Beija-flor.)

Anda, que em breve serás posto

Em liberdade.

BEIJA-FLOR.

Oh, que desgosto!

Quero morrer!

CATHARINA.

Meu bom senhor, tenha piedade!

Para que o manda assim prender?

A CONDESSA.

Já nada mais me falta ver!

O ALCAIDE-MOR.

Recalcitrou preso há de ser.

(Declamando.) Silêncio! Não quero ouvir mais lamúrias! Submetam-se ás muitas ordens, ou mando-os passar todos a fio de espada!

TODOS.

Viva o nosso alcaide-mor!...

CORO.

Oh, que festa

Do bom tom, etc.

(No fim do coro, os guardas têm prendido Beija-flor em um dos quartos do lado. Catharina, a interceder perto do alcaide-mor, não vê onde o prendem. Os coros formam, durante este tempo, uma espécie de cortejo e retiram-se. Só ficam em cena o alcaide-mor e a condessa.)

CENA III

O ALCAIDE-MOR. a CONDESSA.

A CONDESSA, puxando-o.

Agora nós, meu grande finório! Quero já, já, já a explicação de tudo isto! Já!

O ALCAIDE-MOR.

Prudência! Senhora, prudência! (Aparte.) Aí está o que eu receava!

A CONDESSA

Confesse até que ponto queria levar você o seu cinismo!

O ALCAIDE-MOR.

Eu, dona Leonarda? Isso é uma injustiça clamorosa!

A CONDESSA.

Ingrato!

O ALCAIDE-MOR.

Eu lhe expliquei, minha amiga. Ha em tudo isto um fundo político...

A CONDESSA.

Não percebo.

O ALCAIDE-MOR.

É que... sim...

A CONDESSA.

Vamos!

O ALCAIDE-MOR, aparte.

Diabo! Si lhe digo a verdade, estou perdido. (Alto. Sim, tudo isto é.… é táctica. O meu intuito é fazer. Sentir a esses brutos o meu alto poder senhorial; percebe!

A CONDESSA, aparte.

Supõe que me engana... (Alto, com ternura afetada.) Jura que é verdade o que acabas de dizer.

O ALCAIDE-MOR.

Juro. (A um sorriso da condessa.) Criança! Não sei quando deixarás de ser ciumento!

A CONDESSA, fazendo-lhe festinhas.

Se tu és tão sedutor, maganão...

O ALCAIDE-MOR, beijando-a, apressa.

Bem, bem, pias repara que pode vir alguém. Até logo. (à parte.) Corramos a Catharina!

A CONDESSA.

Olha lá, meu querido, não sejas mauzinho para a tua mulherzinha, sim?

O ALCAIDE-MOR.

Sim, sim. Adeus, minha rola!

A CONDESSA.

Adeus, meu rolo!

O ALCAIDE-MOR, saindo, aparte.

Rolo será ela. (Sai.)

CENA IV

A CONDESSA, depois o FÍSICO-MOR.

A CONDESSA, só.

Vai, vai, meu paspalhão. Eu cá te arranjarei. Ah! Pensas que sou aqui um dois de paus?! Vais ver!

O FÍSICO-MOR, entrando, aparte.

Teria ela dado pela troca dos frasquinhos?

A CONDESSA.

Chegou a propósito, senhor licenciado: preciso falar-lhe.

O FÍSICO-MOR.

O que temos, senhora condessa?

A CONDESSA.

Meu marido insiste nos seus planos inconfessáveis. O tal elixir produzi efeito contrário. Só vendo como ele está!

O FÍSICO-MOR, aparte.

Isso sei eu! (Alto.) É a reação; os verdadeiros efeitos virão na ocasião oportuna. Fique descansada a senhora condessa,

 Todavia, se quiser, podemos aplicar-lhe uma nova doze.

A CONDESSA.

Não vá o remédio exercer uma ação eterna.

O FÍSICO-MOR.

Tranquilize-se; os efeitos são transitórios,

A CONDESSA.

Nesse caso, vá buscar uma nova dose

O FÍSICO-MOR.

Imediatamente. (Cumprimenta, saindo, à parte. )

 Apanho os mil cruzados; são favas contadas! (Sai)

CENA V

A CONDESSA, só.

Ah, senhor dom Pascácio, não sabe o que é uma mulher ultrajada! Não sabe que existe na porta da prisão do pobre Beija-flor um postiço, misterioso, do qual só eu e o capitão-general temos o segredo. Quando me lembro que foi justamente esse postiço discreto (Aponta), que deu passagem ao capitão-general poucos dias depois do meu casamento... meu marido partira para o reino, encarregado não sei de que comissão... tremo sempre que me lembro disso! Como uma falta influi em toda a existência de uma mulher!... Oh! Mas Viriato era tão sedutor... tão meigo... tão irresistível...

Coplas

I

Lamento as minhas travessuras;

Arrependida há muito estou,

Por isso que— dessas loucuras

Remorso eterno me ficou;

Eu, quando ás vezes saio à rua,

Sofro o castigo mais atroz;

Toda a verdade nua e crua

Ouço dizer a meia voz ...

É ela! Lã vai a tal!

Aquela famosa condessa

Que é capitão-general!

Não faço mais

Asneiras tais!

II

Se adivinhasse que aqui sente (No peito)

Quem tal delito cometeu,

Nenhuma esposa certamente enganaria o esposo seu.

Todos os dias nova afronta!

Suplicio eterno, atroz, sem fim!

Com o dedo a filha a mãe me aponta,

E diz, olhando para mim:

É ela, etc.

Aí vem meu marido. -Quero evitá-lo. (Sai)

CENA VI

O ALCAIDE-MOR, depois CATHARINA.

O ALCAIDE-MOR, entrando.

Onde se terá metido esta rapariga? O noivo lá está em lugar seguro. Nada, que se não fossem estas prerrogativas, não valeria a pena abalar um magistrado para as Américas... bem sei que todos andamos cá fora da lei, e que isto é terra sem rei nem roque, onde um alcaide-mor é senhor, de baraço e cutelo; mas, ora adeus! Por menos não vale o degredo. (Vendo Catharina que entra preocupada e se retrate ao vê-lo) Olé!...

CATHARINA

Ah!

O ALCAIDE-MOR.

Vem cá, pequena, não tenhas medo.

CATHARINA.

Beija-flor? Onde está Beija-flor, senhor alcaide? Restitua-o pelo amor de Deus!

O ALCAIDE-MOR.

Isso depende de ti. O teu noivo está perfeitamente alojado naquele quarto, (indica.)

CATHARINA.

Ali?

O ALCAIDE-MOR.

Nada lhe faltará. Será tratado como um príncipe. Deve ali estar muito a gosto. Ninguém lá o irá incomodar.

CATHARINA.

Pois sim, mas eu queria-o antes ao meu lado.

O ALCAIDE-MOR.

Depende de ti, repito. Só tu lhe podes abrir a porta da prisão.

CATHARINA.

Mas o vai é preciso que eu faça?

O ALCAIDE-MOR.

Dá-me... uma recompensa...

CATHARINA.

Mas o que há de ser? Eu nada tenho de valor!

O ALCAIDE-MOR.

Ora, procura hem que hás de achar!

CATHARINA.

Triolets

I

Eu nada, tenho que lhe dó,

Não sendo um ar de minha graça.

Eu não sei como o satisfaça...

Eu nada tenho que lhe dê.

Não sei, portanto, o que lhe faça...

O que me diz vossa-mercê?  -

Eu nada tenho que lhe dê,

Não sendo um ar de minha graça!

 O ALCAIDE-MOR.

Ora! Isso é modéstia... vê bem, vê bem!

CATHARINA.

II

Eu nada tenho que lhe dê;

Sou mesmo muito pobrezinha...

Veja que posição a minha:

Eu nada tenho que lhe dê!

Não hei de pedir a vizinha

Um mimo para vossa mercê...

Eu nada tenho que lhe dê;

Sou mesmo muito pobrezinha...

O ALCAIDE-MOR, à parte

É um anjo de candura! É a inocência personificada! (Aproximando-se dela, com meiguice.) Eu quero que me dês....

 CATHARINA.

O que?

O ALCAICE-MOR

Que me dês... (Oure-se grande bulha de tambores e cornetas. O alcaide-mor deixa imediatamente' Catharina.) O que é isto?! O que quer isto dizer?!

CENA VII

OS MESMOS, o SARGENTO-MOR.

O SARGENTO-MOR, apressado.

Senhor alcaide-mor, senhor alcaide-mor! Acaba de chegar sua excelência!

O ALCAIDE-MOR.

Que excelência?

O SARGENTO-MOR.

O senhor capitão-general!

O ALCAIDE-MOR.

O capitão-general! (Aparte). Diabos o carreguem! (Alto.). Folgo muito com a sua chegada

CATHARINA, aparte.

E eu ainda mais.

O SARGENTO-MOR.

O que ordena vossa mercê?

O ALCAIDE-MOR, atrapalhado.

Reúna as guardas e mande-me os meus escudeiros.

O SARGENTO-MOR, com uma continência.

As ordens de vossa, mercê.

O ALCAIDE-MOR.

E eu que já devia lá estar! (Sobe aflito à cena. A Catharina, apressado.) Um instante! Eu já volto! (Sai loucamente.)

CENA VIII

CATHARINA, depois a CONDESSA, BEIJA-FLOR.

CATHARINA, só, aflita.

Oh, meu Deus! e eu sem ter quem me proteja! O que será de mim e de Beija-flor?!

A CONDESSA, entrando.

Beija-flor está ali. (Indica.)

CATHARINA.

A senhora condessa!

A CONDESSA.

Sim, sou eu, a quem tu e teu noivo vão dever a felicidade.

CATHARINA.

A senhora condessa vai nos fazer sair?

A CONDESSA.

Não, isso é impossível. Seriam apanhados. Vou fazer coisa muito melhor.

CATHARINA

O que é?

A CONDESSA.

Mais tarde o saberás; mas convém que fiques no palácio com teu noivo.

CATHARINA.

Ora!

A CONDESSA.

Descansa. Ficarão juntos.

CATHARINA, beijando-lhe a mão.

Juntos, oh, muito obrigada!

A CONDESSA.

Os agradecimentos depois. Por ora tratemos do mais urgente. (Toca um botão na porta da prisão de Beija- flor. Abre-se um postigo.) Sai!

BEIJA-FLOR, aparecendo.

Estou livre? (Corre a abraçar Catharina.)

A CONDESSA.

Ainda não; mas Catharina far-te-á companhia.

BEIJA-FLOR.

O que lhe teria sucedido, coitadinha?... Eu sou tão infeliz...

Sou desde o berço um desgraçado;

Infeliz flor que ao vento cai;

N’um lar de pobres enjeitado,

Não conheci nem mãe nem pai.

Catharina, a fatalidade

Dos braços meus te arrebatou!

Oh, céus! A minha liberdade Sabe Deus quanto te custou

Terceto

BEIJA-FLOR

A CONDESSA.

Coisas aqui do arco da velha ,

Vão suceder; mas, inda assim.

Se a pulga tens a traz da orelha,

Tranquilo está, fia-te em mim.

Deixa o receio que te agita,

Estanca a fonte dos teus ais,

Porque, apesar de tanta grita,

Não se passou nada demais.

BEIJA-FLOR, declamando.

Seria melhor que nos raspássemos?

A CONDESSA.

De forma alguma. —Convém que se escondam no palácio

CATHARINA.

Vamos sem tugir

Nem mugir

Vamos sem demora,

Vamos procurar

Um lugar,

Tenebroso embora, —Um lugar em que

Ninguém dê

Com a presença nossa,

Onde o alcaide-mor,

Sem pudor,

Nos achar não, possa.

A CONDESSA.

De vingança atroz

Todos nós

Teremos o gosto;

Gosto de juízo a arder—Hão de ver! Fica o meu esposo.

OS TRÊS.

Vamos sem tugir, etc.

BEIJA-FLOR.

O palácio está todo cercado! Onde nós devemos esconder?!

CATHARINA

Veja como tremo, senhora condessa!

A CONDESSA.

Fiem-se em mim, e deixem correr as coisas; A Catharina.) Dá-me o teu manto e a tua touca. (Catharina obedece. A condessa embrulha-se no manto e deita a touca.) Pronta! Agora, para a prisão! (Condu-los ao postigo, fali-os entrar e fecha-os, carregando no botão.)

CENA IX

A CONDESSA, depois o ALCAIDE-MOR, depois o CAPITÃO-GENERAL, o FÍSICO-MOR.

A CONDESSA, só

Muito bem! Vejamos agora qual de nós é o mais esperto, senhor meu marido! (Apaga as velas e dirige-se: para p lado oposto ao do postigo.) É este o quarto que o velhaco destinará a pobre Catharina. Felizmente há uma porta no fundo, por onde se pôde fugir, (Vem entrando o alcaide-mor., trazendo na mão uma lanterna furta-fogo. —Consigo.) Ei-lo que chega.

O ALCAIDE-MOR.

É ela! (Aproxima-se. A condessa dá uma volta rápida e apega-lhe a lanterna. Ficam quais ás escuras. A cena é apenas iluminada por um ou outro balão no fundo, que se conserva com luz.) Para reconhecê-la, bastava este movimento, natural e brusco do pudor! Ó, esta escuridão incendeia-me! Pscio... pscio... Catharina! Sou eu! Escuta, meu amor. —O sargento-mor cumpriu exatamente as minhas ordens; uma sentinela a cada passo. Tive de dar oitenta vezes o santo do dia para chegar até aqui...—Pscio, Catharina... (Conseguindo tomar-lhe uma das mãos.) Ah! Cá estás, hein?... Vem cá, não fujas de mim, eu não te faço mal. —Que mãozinha! Que diferença da mão de minha mulher! É um veludo! (Beijá-la A condessa escapasse-lhe das mãos e etnia no quão destinado a Catharina.) Foi mesmo por seu pé meter-se na gaiola. (Percorrendo a cena em passos largos, declama num tom dramático.) Sombra respeitável dos meus avó?, manes dos meus antepassados, (Dirigindo-se aos retratos.). Podeis afinal contemplar-me com orgulho! (Vae entrar, mas detém-se a espiar pela fechadura. O capitão-general e o físico-mor aparecem silenciosamente ao fundo.)

O CAPITÃO-GENERAL, ao físico-mor.

Dize-me onde ela está, e terás dois mil cruzados; de renda e o posto de capitão-mor.

O FÍSICO-MOR, aparte.

Cobri-o o lance do alcaide... agarro! (Indica-lhe o quarto em que se acha a condessa.)

O CAPITÃO-GENERAL.

Os homens que te confiei onde estão? (O físico-mor aponta para fora.) Pois vai esperar-me com eles à poça à do fundilha daquele quarto. Logo que eu está entregue fui—a conduzir para o lugar que já sabes. (Físico-mor inclinado e sai.)

O CAPITÃO-GENERAL, consigo.

Este físico não é moral.

O ALCAIDE-MOR, deixando de espreitar.

Ela apagou a luz. -Oh, pudor! Como me sinto feliz

Este momento! Minha mulher dorme, o capitão-general ressona, e eu... (Com resolução). Entremos!

O CAPITÃO-GENERAL, que se tem aproximado, batendo-lhe no ombro justamente quando ele vai a entrar.

Olá!

O ALCAIDE-MOR, voltando-se rapidamente.

Hein? Quem se atreve...?

O CAPITÃO-GENERAL, iluminando o rosto com uma lanterna

Furta-fogo que traz na mão.

Eu!

O ALÇAIDE-MOR.

O capitão-general I (Aparte.) Bonito!

O CAPITÃO-GENERAL

O que fazia, senhor alcaide-mor?

O ALCAIDE-MOR.

Eu? Eu nada, excelentíssimo... tomava fresco.

O CAPITÃO-GENERAL.

Mente!

O ALCAIDE-MOR.

Esse vocábulo, senhor...!

O CAPITÃO-GENERAL.

Mente, repito! Vossa mercê ensaiava um atentado. Naquele quarto está encerrada uma rapariga por quem me interesso, não julgue que esse interesse seja a chapa de um desejo perverso, não! Esses instintos deixo-os aos indivíduos da estofa de vossa mercê. Dê-me a chave daquele quarto...

O ALCAIDE-MOR, contundido.

Está aberto.

O CAPITÃO-GENERAL.

Bem, nada tem que fazer cá dentro. Enquanto se dirige para o quarto, (à parte.) Minha pobre filha! Daqui a um quarto de hora estará em lugar seguro. (Sai.)

CENA X

O ALCAIDE-MOR, depois CATHARINA, BEIJA-FLOR.

O ACAIDE-MOR, só.

E esta, hein? Isto só a mim sucede! E! Demais! A minha vontade era meter os pés àquela porta e trazê-lo lá de dentro pelas orelhas! (Ameaçando a porta.) Devasso! —Oh! Uma ideia! O marido! Pode bem ser que ele... (Para o fundo.) Luzes! Tragam luzes! (Entra- um pajem com um candelabro. —Ao pajem.) Retira-te! (Vai- se dirigindo à porta da prisão de Beija-flor, olha para os retratos, * cara e abreus braços.) Oh, meus avós, que tanto vos ilustrastes desde o cerco de Astorga até o desastre de Alcácer-Quibir; desde a Palestina, como conde dom Henrique, até os sertões de Angola, com dom Felipe, hein vides: a culpa não é minha! Eu fiz quanto puder por honrar o vosso nome glorioso; mas contra a força não há resistência. - (Ajoelha-se.) perdoai, perdoai, Pascácios de tantos séculos! (Levanta-se.) vamos soltar o marido. (Abre a porta. —Admiradíssimo.) O que quer isto dizer?!

CENA XI

O MESMO, CATHARINA, BEIJA-FLOR.

CATHARINA e BEIJA-FLOR, entrando e lançando-se aos pés do alcaide-mor.

Perdão! Perdão, senhor!....

O ALCAIDE-MOR.

Levantem-se, e expliquem-me tudo!

Terceto

OS DOIS, ajoelhados.

Senhor, mereço compaixão!

O ALCAIDE-MOR.

Juntos os dois! Estou pasmado!

OS DOIS.

Perdão! Perdão!

O ALCAIDE-MOR.

E ali sozinho despeitado,

O capitão-general!

OS DOIS.

Meu senhor, oh! Não nos puna!

O ALCAIDE-MOR.

Oh, que prazer, que fortuna!

Eu folgo e folga a moral! (Ergue-os.)

BEIJA-FLOR.

Vossa mercê tem bastante,

De muito pode dispor;

E eu só tenho a minha amante,

E eu só tenho o meu amor.

O ALCAIDE-MOR,

Contente estou, que até não caibo em mim! Eu nunca estive satisfeito assim!

OS DOIS.

É bom sinal estar assim contente!

Em santa paz nos deixa finalmente!

O ALCAIDE-MOR.

Tenho razão ia estar assim contente!

Um caso tal de certo alegra a gente!

Ali! Ah! Ah! Ah!

Não há que ver:

De riso vou morrer!

OS DOIS.

Não há que ver:

Ditosos vários seres!

O ALCAIDE-MOR, a Catharina.

Agora sim, estás livre meu amor.

BEIJA-FLOR.

Bênçãos dos céus sobre vós desçam.

O ALCAIDE-MOR.

Está bem, está bem, não me agradeçam

BEIJA-FLOR.

Ah, meu senhor,

Quanto lhe deve o nosso amor!

CATHARINA.

I

Nós vamos ser muito felizes,

As mágoas vamos esquecer;

Não mais dois grandes chafarizes

Os nossos olhos hão de ser.

Tudo aventura nos impele,

E nos promete amor sem fim,

Eu, a viver pertinho dele,

Ele, a viver juntinho a mim

Mulheres há sem pundonor;

O mundo está perdido;

Mas eu te juro, ó Beija-flor,

Mas eu te juro: o meu amor

Só há de ser de meu marido.

BEIJA-FLOR.

II

Esconderei os meus afetos

N’alguma alegre solidão;

Longe de olhares indiscretos

Está mais a gosto o coração.

Quando voltarmos lá da igreja

—Marido eu e ela mulher—,

Há de a todos causar inveja

O nosso modo de viver.

CATHARINA

Mulheres há sem pundonor, etc.

O ALCAIDE-MOR, a Catharina.

Tu, minha pombinha inocente,

És bem feliz?

CATHARINA.

Inteiramente.

O ALCAIDE-MOR, aparte.

Deve estar fulo o general!

Que bela lição de moral!

Contente estou que até não caibo em mim! etc.

OS DOIS.

É bom sinal estar assim contente assim etc.

O ALCAIDE-MOR.

Mas agora me lembro!

Com quem diabo estará aí metido o capitão-general! Ele, se não sai, é porque...

CATHARINA

Eu sei quem lá está dentro.

O ALCAIDE-MOR.

Quem é?

CATHARINA

Vossa mercê promete deixar-nos sair imediatamente?

O ALCAIDE-MOR.

Vão ver. (Chamando.) Olá! Afonso! Martinho! João Fernandes!

O SARGENTO-MOR, aparecendo.

Vossa mercê ordena alguma coisa?

O ALCAIDE-MOR.

Espere aí fora: tem que conduzir estes dois pombinhos fora de portas do palácio. Dou-lhes a liberdade. (O sargento-mor faz continência e sai.)

OS DOIS, abraçando o alcaide-mor

Obrigado! Obrigada!...

O ALCAIDE-MOR.

Mas hão de primeiramente dizer-me quem ali está com o capitão-general.

CATHARINA.

Vossa mercê promete não se zangar conosco?

O ALCAIDE-MOR.

Prometo, diz.

BEIJA-FLOR.

Pois bem, lá vai... É...

O ALCAIDE-MOR.

Então?

OS DOIS, rapidamente.

É a senhora condessa! (Saem a correr.)

CENA XII

O ALCAIDE-MOR.

Hein?! O que?! Minha mulher?! Ah, com- pretendo tudo! Num assomo de ciúmes, deu a liberdade a Catharina e colocou-se em seu lugar... Ah! Aqui d’el-rei! As armas! Socorro! As armas! As armas! As armas!... (Ouve-se grande espalhafato de tambores e cornetas.)

CENA XIII

O ALCAIDE-MOR, os COROS, O SARGENTO-MOR, depois o CAPITÃO-GENERAL, THEREZA, JOANNA, MARIA, JOSEFA, depois UM PAJEM.

Trazem luzes.

FINAL

CORO

Para que tanta gritaria?

Que quer dizer este motim?

Eu cá julguei que a casa ardia!

Porque... porque gritar assim?

O ALCAIDE-MOR, desvairado

Está ali dentro a condessa!

(Ao capitão-general; que entra.)

Fez muito mal,

Senhor capitão-general

O CAPITÃO-GENERAL.

Quem lhe meteu isso em cabeça?

Era Catharina,

Que já longe vai.

O ALCAIDE-MOR.

Catharina? Qual!

Não creio em tal,

Senhor capitão-general!

O CAPITÃO-GENERAL.

Por Catharina interessado, temendo vela fugir,

Para um lugar reservado? Ia agora conduzir

CORO.

Por Catharina interessado, temendo vê-la fugir,

Para um lugar reservado fê-la agora conduzir.

O ALCAIDE-MOR.

Catharina? Não há tal! Ha pouco

Ela aqui estava ao lado meu!

O CAPITÃO-GENERAL.

Está louco!

Endoideceu!

Para longe mandei-a levar eu!

Descobrir aonde

Ela se esconde

Não procure, —quando não, exijo satisfação,

E vai desta para melhor

O senhor alcaide-mor!

CORO.

Vai desta para melhor,

Senhor, alcaide-mor!

Por Catharina interessado, etc.

O ALCAIDE-MOR.

Não! Não! Não era Catharina Que estava ali naquele quarto!

O CAPITÃO-GENERAL.

Essa insistência já me afina

De teima tal me sinto farto!

O ALCAIDE-MOR.

Toda a certeza tenho de tê-la visto aqui!

Minha palavra empenho!

O CAPITÃO-GENERAL.

Insistir tanto eu nunca vi!

CORO.

Insistir tanto eu nunca vi!

O PAGEM, entrando, ao alcaide-mor, venho trazer uma notícia.

CORO

Vamos lá ver esta notícia!

O PAGEM.

Catharina, meu senhor,

Fugi com Beija-flor!

O ALCAIDE-MOR.

Então? Eu bem dizia

O CAPITÃO-GENERAL

Oh, eu me vingarei?

O ALCAIDE-MOR.

Quantos sucessos num só dia!

O CAPITÃO-GENERAL.

Eu apanho-os-hei!

(Aos guardas.)

Vamos montar a cavalo

E galopar sem parar,

Mesmo antes que cante o galo! É partir sem mais tardar!

É partir sem demorar!

UNS.

Vamos montara cavalo, etc.

OUTROS

Oh, que festa

Do bom tom!

Tudo presta,

Tudo é bom '

ACTO TERCEIRO

Floresta. À direita, cabana; à esquerda, gruta meio escondida na folhagem. No fundo, montes as quais se perde o caninho em zig-zag.

CENA PRIMEIRA.

O FÍSICO-MOR, SOLDADOS DO CAPITÃO-GENERAL.

Fazem sentinela à cabana. Só o físico-mor está de pé e acordado, envolvido numa grossa capa é de espingarda ao ombro.

O FÍSICO-MOR, espreguiçando-se.

Estou inteiramente fora de minhas atribuições! Eu, a fazer sentinela aquele demônio da Catharina. Oh! Mas a recompensa é de encher o olho, não há dúvida! Dois mil cruzados e a patente de capitão-mor. Capite! (Depois de uma pausa.) E dom Pascácio? Ora! Posso lá recear o alcaide-mor, estando, como estou, sob a proteção do capitão-general? (Os soldados vão pouco a pouco despertando.) Camaradas! Está aí o dia. Nossa missão acha-se cumprida. Sua excelência não pode tardar.

UM SOLDADO, levantando-se.

Ele deve estar satisfeito conosco.

OUTRO.

A rapariga opôs-se formalmente a seguir, mas nós amordaçamo-la e trouxemo-la a força.

OUTRO.

Rapariga! Ela não me pareceu tão nova como isso! Achei-a um tanto pesada.

O PRIMEIRO SOLDADO.

Toda a mulher é pesada quando a gente a carrega ás costas.

O FÍSICO-MOR.

Bem, rapazes: pesada ou leve, cumprimos o nosso dever. Sua excelência ordenou que Catharina fosse agarrada e conduzida para esta cabana. Foi o que fizemos.

O SEGUNDO SOLDADO.

O pior é que Thereza prometeu trazer o café, e nada de aparecer! Ah! fala no mau...

CENA II

OS MESMOS, MÀRIA, JOSEFA, JOANNA, THEREZA, depois o CAPITÃO-GENERAL, a CONDESSA.

AS MULHERES, entrando, com cestas, debaixo do braço...

Aparelha o pau! -Bom dia, rapazes!

O SEGUNDO SOLDADO.

Mas a Thereza vem bem acompanhada!

THEREZA.

Estas amigas fizeram a fineza de me acompanhar.

Não suponham já que foi por sua causa, seus vaidosos.

MARIA

O que me traz é a curiosidade.

JOSEFA

E duas.

JOANNA.

E três.

THEREZA.

Que notícias me dão da pobre Catharina? Ando o físico-mor.) Olá! O cirurgião de espingarda ao ombro! É para despachar mais cedo os seus doentes?

AS MULHERES e OS SOLDADOS.

Ah! Ah! Ah! Ah!...

O FÍSICO-MOR.

Está bem, nada de graçolas! (Aparte.) Que figurafaço eu aqui!

THEREZA.

Não se zangue, doutor Salsaparrilha, e tome lá uma xícara de café. (Servem café ao físico-mor aos soldados.)

O FÍSICO-MOR.

Vá lá, vá lá!

THEREZA.

Mas, afinal, meus senhores, dão ou não notícias de Catharina?

O SEGUNDO SOLDADO.

Está ali. (Mostra a cabana.) Beija-flor ficou no castelo. (Tomando café.) Como está quentinho!

O TERCEIRO SOLDADO.

O que estranho é não ter sua excelência aparecido durante a noite.

MARIA

Ela então ficou só

O PRIMEIRO SOLDADO.

Nós fizemos-lhe companhia cá de fora. (Entra o capitão-general, embrulhado na sua capa do 1ª ato.)

TODOS.

O capitão-general! (Tratam de apresentar armas.)

O CAPITÃO-GENERAL.

Silencio! Não quero espalhafato! (Ao físico-mor.) A prisioneira?

O FÍSICO-MOR, entregando-lhe uma chave.

Está ali. (O capitão general vae abrir aporta. Aparece a condessa.)

A CONDESSA, correndo para o capitão-general.

Até que afinal! Faz favor de me explicar o que significa este rapto?

TODOS, menos capitão-general

A condessa!

O FÍSICO-MOR, aparte.

Como?! A condessa? Lá se vai tudo quanto martilha fiou!

O CAPITÃO-GENERAL

Fomos ambas vítimas de um engano.

A CONDESSA.

De um engano?

O CAPITÃO-GENERAL

É verdade, (os soldados.) Retirem-Se! (Ao físico-mor.) Volte daqui a pouco, que lhe preciso falar

O FÍSICO-MOR, aparte.

Estou enforcado... pelo menos. (Saem todos, menos capitão-general e a condessa.)

CENA III

O CAPITÃO-GENERAL, a CONDESSA

O CAPITÃO-GENERAL

Podemos falar à vontade.

A CONDESSA.

Este contratempo me pôs fora de mim! O que irá supor meu marido?

O CAPITÃO-GENERAL.

Tranquilize-se por esse lado. Eu fiquei no castelo e afastei toda a suspeita do espirito do conde.

A CONDESSA.

Quando ontem entrei no gabinete destinado a Catharina, contava que ele lá fosse ter comigo. Foi o capitão-general que apareceu, e, sem me dar tempo para nada, mandou-me carregar por quatro homens que se achavam a porta dos fundos, e trazer-me para esta cabana. (Outro tom.) Dar-se-á caso, Viriato, que você queira reatar, depois de tantos anos, o fio dos nossos amores?

O CAPITÃO-GENERAL, protelando

Oh!

A CONDESSA

Rondó-mazurka

Eu encontrei um paraíso

Nos braços seus;

Mas já devemos ter juízo...

Valha-nos Deus!

Voltar não quero ao tempo antigo:

Contrita estou;

Remorso eterno o tal postigo

Me deparou!

Esse passado é o meu tormento,

E, neste andar,

A cela escara de um convento

Vou procurar.

Se contra mim

Deus se enfurece,

Curvo a serviço;

Porém, contudo, me parece

Que meu marido bem merece

O que lhe fiz.

O CAPITÃO-GENERAL

Mas quem lhe falou, senhora, em reatar o fio dos nossos ignóbeis amores? Se a fiz conduzir para aqui, foi por que a tomei pela Catharina.

A CONDESSA

Como?! Pois tencionava...? Oh, Viriato, lembre- se de que o seu tempo já passou!

O CAPITÃO-GENERAL.

Por isso mesmo. Não foi a mocidade e a formosura de Catharina que tanto me interessaram; mas simplesmente um sinal... um pequenino girassol que tem no ombro direito...

A CONDESSA.

Não posso perceber.

O CAPITÃO-GENERAL

Vai perceber. A história diz-lhe respeito). (Aproximando-se mais e confidencialmente) Lembra-se, (guando, alguns meses depois de me haver hospedado uns dias em casa de seu marido que por minha ordem vagava pelo reino, a condessa me enviou um melindroso presente, vivo e palpitante, fruto querido dos nossos amores?

A CONDESSA.

Nosso filho! Se me lembro!

O CAPITÃO-GENERAL

.

Foi há vinte anos. Recebi essa criança na minha tenda, em Pernambuco, justamente quando éramos assaltados pelos holandeses. As balas choviam de todos os lados! O inimigo descarregava com fúria! E eu, no meio do fogo e da desordem, com o peito retalhado pelo ferro dos infiéis e sem esperanças de tornar a vida, entreguei a um cabo de minha confiança o pobre entezinho, sem mesmo ter tem-no de lhe -reconhecer o sexo. (Enxuga os olhos. Pausa.) Foi com a boca injetada de sangue que recomendei ao cabo que lhe abrisse no ombro direito uma flor, como esta que trago no meu brasão de armas.

A CONDESSA.

Mas isso é uma flor de lis e não um girassol.

O CAPITÃO-GENERAL

É que talvez o cabo não fosse forte em botânica.

A CONDESSA, aparte

Está iludido. (Alto.) E depois?

O CAPITÃO-GENERAL

O cabo veio para estes lugares, e aqui morreu.

A CONDESSA

E a criança?

O CAPITÃO-GENERAL

A criança, julgo havei-a conhecido em Catharina...

A CONDESSA, querendo protestar

Mas Catharina...

O CAPITÃO-GENERAL, vendo chegar o físico-mor e aproximando-se vivamente dele

Ah! Que notícias me dá de Catharina, de minha filha?

O FÍSICO-MOR, aparte

Sua filha?! (Alto, muito submissamente.) Vossa excelência deve estar furiosa concordo; mas creia, senhor capitão-general, creia que sou completamente estranho a essas trocas e baldrocas. Juro pelos meus alvarás do físico-mor que até a poucos instantes supunha ter Catharina em meu poder.

O CAPITAO-GENERAL

Exijo notícias suas! Fale! Diga o que sabe, ou trema!

Terceto

O CAPITÃO-GENERAL

De minha filha ter notícias quero!

O FÍSICO-MOR

É natural.

A CONDESSA

Bem natural.

O CAPITÃO-GENERAL

Nem mal um só minuto espero!

A CONDESSA

Está diante de um tribunal

O FÍSICO-MOR.

Não sei dizer o que foi feito dela!

O CAPITÃO-GENERAL

Mentindo está por quantas juntas tem

A CONDESSA

Porque, senhor, tão receoso vem?

O FÍSICO-MOR

Não sei dizer onde ela para...

A CONDESSA.

Essa mentira lhe sai erra!

O CAPITÃO-GENERAL

Se me descobre o seu covil,

Terá cruzados quatro mil!

O FÍSICO-MOR.

Valha-me Deus,

Fidalgos meus

Juro e protesto

E atesto

A fé do grau que recebi,

Que não sei dela e não a vi!

OS DOIS.

Adeus! Adeus!

Valha-me Deus!

Ele protesta

E atesta

A fé do grau que recebeu:

Não sabe onda ela se meteu!

O CAPITÃO-GENERAL

Os quatro mil devem lhe encher o olho!

A CONDESSA

Poderá não!

O FÍSICO-MOR

Poderá não

O CAPITÃO-GENERAL

Não são para aí nenhum trambolho.

A CONDESSA.

Podes ganhar um dinheirão!

O FÍSICO-MOR.

Não sei qual seja o seu esconderijo...

O CAPITÃO-GENERAL

Eu nunca vi um mentiroso assim!

A CONDESSA.

Físico-mor, toda a verdade exijo

O CAPITÃO-GENERAL. Conosco aqui não perde o seu latim...

O FÍSICO-MOR, tremendo

Estou metido em calça parda!

O CAPITÃO-GENERAL.

Ao nariz me sobe amostarda!

Se o seu covil me revelar,

Juro faze-lo titular!

O FÍSICO-MOR

Valha-me Deus,

Fidalgos meus! etc.

OS DOIS

Adeus! Adeus; etc.

O CAPITÃO-GENERAL

Talvez que a sua presença o constranja, condessa. Deixe-nos a sós.

A CONDESSA, baixo, ao capitão general

Mas eu devo confessar-lhe que...

O CAPITÃO-GENERAL, empurrando-a brandamente

Depois... depois... (A condessa sai.)

O FÍSICO-MOR, cantando com a música do terceto, sem acompanhamento.

Estou metido em calças par... (Vendo o capitão-general, que volta de levar a condessa até o bastidor, interrompe- se e inclina-se profundamente)

CENA IV

O CAPITÃO-GENERAL, O FÍSICO-MOR.

O CAPITÃO-GENERAL, cruzando os braços. Então, senhor licenciado?

O FÍSICO-MOR

Vossa excelência desculpe, mas é injusto... eu sei lá onde se meteu a rapariga... olhe, eu não fiquei com ela... para fazer o que?

O CAPITÃO-GENERAL

Dou-lhe um quarto de hora para trazei-a à minha presença. Se nesse prazo improrrogável o não tiver feito, livre-se de minha cólera! Vá!

O FÍSICO-MOR, aparte.

Ora, Senhor! Quem me mandou sair da bela Lisboa? (Ouve-se o som de uma trompa de caca.)

O CAPITÃO-GENERAL

Aproximam-se os meus caçadores, que durante a noite inteira andaram à procura da fugitiva. Desconfio que nada conseguiram. (Vendo entrar, os caçadores.) Vêm sós! Inferno!

O CAPITÃO-GENERAL, CAÇADORES

CORO

Na negra solidão da negra floresta

Fomos caçar

A moça gentil que o patrão requesta

Sem descansar.

Sem ser prudente,

Sem ser valente,

Não pôde a gente Saber caçar;

Toda a destreza,

Toda a certeza

Em tal empresa

Convém mostrar!

Onça raivosa rola mimosa,

Paca manhosa,

Tamanduá,

Podeis mostrar-vos,

Apresentar-vos,

Porque caçar-vos.

Ninguém irá.

De uma mulher à caça andamos,

Uma mulher aqui nos traz;

Por hoje, pois, em paz deixamos

Pacas, tatús, tamanduás,

Preás,

Gambás,

E sabiás.

Sem ser prudente, etc.

O CAPITÃO-GENERAL.

Eu perco a cabeça! Cada vez mais me convenço de que aquela rapariga é minha filha. (Aos caçadores, tomando uma resolução,) sigam-me! Havemos de encontrá-la, ainda que para isso tenhamos de revolver a terra! Vamos! Sigam-me! (Saem todos, acompanha, dos por alguns compassos de música.

CENA VI

CATHARINA, BEIJA-FLOR.

(Saem abraçados da gruta, à esquerda.)

CATHARINA, apontando para o horizonte

Olha, Beija-flor, é dia...

BEIJA-FLOR

Como o tempo passou depressa! (Catharina desprendesse-lhe dos braços.) Onde vais?

CATHARINA

Não sei o que sinto...

BEIJA-FLOR.

Tu coras? (Catharina abaixa os olhos.)

CATHARINA.

Para que saímos

A luz do sol me envergonha...

BEIJA-FLOR

Não sou por ventura o teu marido “? O padre Antônio, o excelente capelão tão nosso amigo, não nos uniu esta noite para sempre? (Dá-lhe um beijo.)

CATHARINA

Está quieto. Olha que já não estamos na gruta.

BEIJA-FLOR

Ninguém nos vê.

CATHARINA

Pois sim; e aqueles passarinhos que nos espiam de seus ninhos, por entre a folhagem das arvores? (Ouve-se um canto de pássaro. Catharina corre a esconder ó rosto no seio de Beija-flor.) Olha!

BEIJA-FLOR

Deixá-los! Os passarinhos também se beijam...

CATHARINA

Mas não me sinto à vontade... (Aplicando o ouvido.)

BEIJA-FLOR

O que?

CATHARINA

Os caçadores que nos perseguiram durante toda

A noite... saiamos d’aqui....

BEIJA-FLOR.

Pois bem, saiamos; mas, antes disso, deixa-me dizer adeus a estes lugares, que nos foram tão propícios.

Romança

I

Adeus, ó sombras venturosas)

Ninho feliz dos meus amores;

Adeus, florestas murmurosas,

Adeus, adeus, mimosas flores!      .

Ali, no nosso escuro asilo,

Dos lábios seus o mel sorvi...

Adeus, abrigo meu tranquilo!

Nunca me hei de esquecer de ti.

Adeus, ó berço dos meus sonhos,

Mansão abençoada por Deus;

Gruta gentil, bosque risonho,

Talvez para sempre adeus, adeus!

II

Eu parto, adeus, ditoso canto,

Onde lhe dei tantos abraços,

E o seu olhar vi brilhar tanto

Como uma estrela nos espaços.

Foi lá que Deus, compadecido,

O nosso afeto abençoou;

Foi que o anjo, meu querido -

Na terra o céu me deparou.

Adeus, ó berço dos meus sonhos, etc.

(Ouve-se de novo o canto do pássaro.)

AMBOS, ao pássaro.

Adeus! (Vão fugindo abraçados. Entra o físico-mor, que os aponta aos três soldados que os acompanham.)

CENA VII

OS MESMOS, o FÍSICO-MOR, os TRES SOLDADOS, depois o CAPITÃO-GENERAL, o SARGENTO- MOR.

FÍSICO-MOR

CATHARINA.

Jesus! (Corre para Beija-flor.)

Estamos perdidos. (Dois dos soldados se apoderam de Beija-flor; o terceiro de Catharina.)

O FÍSICO-MOR

Estão presos à ordem do senhor capitão-general.

CATHARINA, chorando.

Mas qual é o nosso crime

O FÍSICO-MOR

Isso é com ele. Vocês quiseram, agora é chorar na cama que é lugar quente. (A Catharina.) A Catharina nada sucederá de desagradável... pelo contrário... mal sabes tu o que te espera, e mal sabes tu quem és. (A Beija-flor.) Este mariola é que se meteu em camisa de onze varas...

CATHARINA, animada.

Sossega, Beija-flor: eu conseguirei que o senhor capitão-general nos deixe em paz...

O FÍSICO-MOR.

Vai por aí, vae; fia-te na virgem e não corras!

BEIJA-FLOR

Então porquê?

FÍSICO-MOR

Eu sempre quero ver como arranjas esse par de botas?

CATHARINA

Muito simplesmente...

Coplas

I

Hei de, com toda a habilidade,

Rogar, pedir ao tal senhor

Que enfim nos deixe, por piedade,

Gozarem paz o nosso amor.

Hei de pregar-lhe algumas petas,

E, se teimar, lhe direi que

Direi que grogotó galhetas...

Que nada tenho que lhe dê.

Deixem lá, deixem lá.

Que não me apanhará

II

Tem contra os peitos mais marmóreos

Sempre artifícios a mulher;

Por meios brandos e suasórios,

Alcança tudo quanto quer.

Que se não renda não presumo

O tal capitão-general;

Para o fazer mudar de rumo

Terei um jeito especial...

Deixem lá, deixem lá,

Que não me apanhará!

(Durante a última copla, aparece ao fundo o capitão-general,

Acompanhado pelo sargento-mor.)

O CAPITÃO-GENERAL

Até que afinal os alcanço!

O CAPITÃO-GENERAL, ao sargento-mor

Tome contai desse maroto e prenda-o em lugar seguro.

O SARGENTO-MOR, com uma continência

Sim, excelentíssimo. Vai colocar-se perto de Beija- flor.

BEIJA-FLOR.

Mas, meu senhor, isso é uma injustiça.

O CAPITÃO-GENERAL

Cala-te!

CATHARINA, com ternura

Tenha compaixão de nós.

O CAPITÃO-GENERAL, passando-lhe o braço na cintura

Como é bela! (Consigo.) É o pai por uma pena. (Ao alcaide-mor.) Senhor licenciado, se vir a condessa, diga-lhe que estou à sua espera. (O físico-mor. Cumprimenta e sai. Ao sargento-mor. e aos soldados.) Então levam-no ou não?

BEIJA-FLOR, conduzido pelos soldados

Isto é revoltante! Adeus Catharina, meu amor! (Saem todos, a exceção de Catharina e do capitão-general.

CENA VIII

CATHARINA, o CAPITÃO-GENERAL

O CAPITÃO-GENERAL, paternalmente.

Vamos, minha filha. Agora que estamos a sós, abraça-me!

CATHARINA, abaixando os olhos.

Excelentíssimo, eu sou mulher de Beija-flor.

O CAPITÃO-GENERAL

Mulher?!

CATHARINA

Sim, senhor; nós fomos à gruta com escala pela capei lá.

O CAPITÃO-GENERAL

Ora, adeus! Uma capela de aldeia... um altar obscuro e ignorado... esse casamento anula-se com um pouco de tinta derramada sobre o respectivo assentamento.

CATHARINA

Mas Beija-flor...

O CAPITÃO-GENERAL

Nem me fales desse mestre ensaboado ... livrar-me-ei dele... Mandar-lhe-ei pôr as tripas ao sol

CATHARINA

Mata-lo! (Chorando.) Mas eu o amo!

O CAPITÃO-GENERAL, à parte

É o meu retrato vivo. Ainda que eu quisesse, não o poderia negar.

CATHARINA

Meu pobre Beija-flor!

O CAPITÃO-GENERAL

Esse pedaço de asno é um estorvo à posição brilhante que te vou dar.

CATHARINA

Eu prefiro ser o que sou.

O CAPITÃO-GENERAL

É que não sabes o que te reservo.

CATHARINA

Não sei, mas desconfio.

O CAPITÃO-GENERAL

Quero fazer de ti uma senhora da corte, uma fidalga!

CATHARINA, à parte

Pretenderá casar comigo?

O CAPITÃO-GENERAL

Como serás formosa, engraçada, sedutora!

CATHARINA, à parte

Sedutora? Ora espera!

O CAPITÃO-GENERAL

Deves ficar irresistível, deixa-me ver o teu porte. Anda um pouco.

CATHARINA, à parte

Ah! Quer que eu ande? (Andando desajeitadamente.) Aqui tem como eu ando!

O CAPITÃO-GENERAL

És um pouco desajeitada no andar, mas o tempo tudo corrige.

CATHARINA, fazendo-se cada vez mais esquerda

Não admira! Eu fui criada entre cabras. Bé! Bé! Bé! (Imita a cabra.)

O CAPITÃO-GENERAL

Bé! Bé! Bé! É muito engraçadinha!

CATHARINA, à parte

Hein? Ainda não chega? Espera lá! (Começa a saltar, com exagero e a berrar.) Bé! Bé! Bé!

O CAPITÃO-GENERAL

Tudo se remediará. Irás morar no meu palácio. Serás festejada e invejada! Nadarás na opulência!

CATHARINA

Mas a questão é que eu não quero.

O CAPITÃO-GENERAL

Quererás, logo que te eu revele um grande segredo...

CATHARINA

Um grande segredo?

O CAPITÃO-GENERAL

Teu pai...

CATHARINA

Meu pai...

O CAPITÃO-GENERAL

Não é teu pai.

CATHARINA

O que é lá isso? Papai não é papai? Como assim?

O CAPITÃO-GENERAL

Quero dizer que aquele que passava por ser teu pai...

CATHARINA

Não? Meu pai? Ora obrigada, muito obrigada! Minha mãe era pobre, mas honesta;

O CAPITÃO-GENERAL.

Mas tua mãe não era também tua mãe.

CATHARINA.

Essa agora é que não passa! De papai ainda se poderia duvidar... mas de mamãe!?

O CAPITÃO-GENERAL

Eu te explico... é uma história muito complicada.

CATHARINA, com energia

Coisa alguma me tirará da cabeça que papai não seja papai, e mamãe não seja mamãe!

O CAPITÃO-GENERAL, aparte

Que energia! Logo se vê que naquelas veias corre sangue azul! (Alto, com transporte.) Teu pai, Catharina, teu pai sou eu!

CATHARINA

Vossa excelência?! (Aparte.) Está doido!

CENA IX

OS MESMOS, a CONDESSA.

O CAPITÃO-GENERAL

Venha, condessa venha abraçar sua filha!

A CONDESSA

Catharina...

CATHARINA

O que? Também está?!

O CAPITÃO-GENERAL

Sim, eis a criança que o meu cabo fiel há vinte anos confiou a uma pobre mulher que até hoje passou por sua mãe.

CATHARlNA

Perdão, é que...

A CONDESSA

Mas, Viriato, nosso filho não é uma filha; é um filho.

CATHARlNA

Além disso, eu tenho apenas dezesseis anos.

O CAPITÃO-GENERAL

Mas então como se explica isto?

A CONDESSA

Juro-te que é um filho. Só se mudou de sexo em Pernambuco!

O CAPITÃO-GENERAL

Nada... o clima não se presta a semelhante mudança..., mas o sinal?! O sinal que tens na espadua? O girassol?

CATHARlNA, com ímpeto

Ora esperem! Beija-flor tem justamente vinte anos, e foi deixado num poço...

O CAPITÃO-GENERAL, ansioso

Por quem?

CATHARlNA.

Por certo soldado pernambucano, que morreu de um ferimento que trouxera. Beija-flor tem também, no ombro direito, uma flor, não igual à minha, porém maior. É uma flor de cinco pétalas compridas, e tem a forma de uma estrela.

O CAPITÃO-GENERAL

A flor de lis!...

A CONDESSA

É ele!

O CAPITÃO-GENERAL

Meu filho! Ele é meu filho!...

CENA X

O CAPITÃO-GENERAL, CATHARINA; a CONDESSA, o SARGENTO-MOR

O CAPITÃO-GENERAL, correndo ao encontro do sargento-mor.

Chegou a proposito! Sabe onde ele está? Vá buscá-lo!

O SARGENTO-MOR.

A vem senhor?

O CAPITÃO-GENERAL

Meu filho!

O SARGENTO-MOR, à parte

Seu filho?... Endoideceu!

A CONDESSA

Beija-flor!

CATHARINA

Meu marido! (Empurram ambas o sargento-mor)

O SARGENTO-MOR

Mas é justamente por causa de Beija-flor que vim cá.

O CAPITÃO-GENERAL.

Diga!

O SARGENTO-MOR.

É que, na ocasião em que o conduzíamos para a prisão, encontrámos o senhor alcaide-mor que se dirigia para cá num terrível estado de cólera, e, ao ver-nos, ordenou...

A CONDESSA

O que? Termine!

O CAPITÃO-GENERAL

O que ordenou ele?

CATHARINA

O que ordenou? Fale!...

CENA XI

OS MESMOS, o ALCAIDE-MOR.

O ALCAIDE -MOR, chegando esbaforido

Fez-Se... (Não pode continuar, de cansado.)

O CAPITÃO-GENERAL

O que?

TODOS

O que?!

O ALCAIDE-MOR

Fez-se justiça.

TODOS

Justiça!

O ALCAIDE-MOR

Sumária.

TODOS

Céus

O ALCAIDE-MÓS

Beija-flor foi açoitado

CATHARINA

Ah! (Cai nos braços do sargento-mor.)

A CONDESSA, ao mesmo tempo.

Ah! (Cai nos braços do capitão-general.)

O ALCAÍDE-MOR

Mandei-lhe dar cento e cinquenta açoites! Espero que vossa excelência ficará satisfeito.

O CAPITÃO-GENERAL

Ah! Senhor conde dom Pascácio, vou fazê-lo em postas!

O ALCAIDE-MOR

Em postas?

O CAPITÃO-GENERAL

Torra-lo! (Atira-lhe a condessa nos braços.)

O ALCAIDE-MOR, recebendo a condessa

Torrar-me?!

O CAPITÃO-GENERAL, ao sargento-mor

Corramos!

O SARGENTO-MOR

Corramos! Entrega Catharina ao alcaide-mor.)

O ALCAIDE-MOR, com uma mulher em cada braço.

É tarde. A estas horas já está terminado o castigo.

O CAPITAL-GENERAL, parando

Tarde?

A CONDESSA E A CATHARINA, chorando

Tarde!

O CAPITÃO-GENERAL

Se for tarde, enforco-o!... Miserável! Assassino!

A CONDESSA

Pedaço d’asno!

CATHARINA.

Monstro!

O SARGENTO-MOR

Desalmado!

O ALCAIDE-MOR, estupefato.

Enforcado! Assassino! Pedaço d’asno! Monstro! Desalmado! Virgem Santíssima!

CENA XII

OS MESMOS, o FÍSICO-MOR, depois BEIJA-FLOR, THEREZA, MARIA, JOSEFA, JOANNA, os COROS.

O FÍSICO-MOR, esbaforido.

Senhor capitão-general! Senhor capitão-general! No momento em que se desabotoava a camisa de Beija-flor, para receber os centos e cinquenta açoites receitados pelo senhor alcaide-mor, descobri a flor de lis de que vossa excelência falou, e...

TODOS

E...

O FÍSICO-MOR.

Ei-lo são e salvo!

TODOS

Ah! (Beija-flor tem entrado, seguido dos demais personagens.)

O ALCAIDE-MOR.

Vossa excelência quer assistir pessoalmente ao castigo deste maroto?

O CAPITÃO-GENERAL

Maroto?! De quem falia vossa mercê?

O ALCAIDE-MOR, apontando para Beija-flor.

Deste patife!

O CAPITÃO-GENERAL

Veja que está faltando com o respeito a meu filho!

O ALCAIDE-MOR.

Hein?

BEIJA-FLOR.

Que diz ele?!

O CAPITÃO-GENERAL, tomando a mão de Beija-flor

Sim, meu filho!

O ALCAIDE-MOR.

Pois vossa excelência é pai do barbeiro?

O CAPITÃO-GENERAL

Foi barbeiro; será conde.

BEIJA-FLOR, tomando a mão de Catarina.

E minha mulher?

CATHARINA.

Sim; e eu?

O CAPITÃO-GENERAL.

Tu... (Depois de leve hesitação.) Tu serás uma adorável condessinha. Se percebo...

O FÍSICO-MOR.

Com certeza pilho os quatro mil bagarotes, e a patente... (Gritando.) Viva o senhor capitão-general!

TODOS.

Viva!...

Copla final

CATHARINA.

Eu passei por muitos perigos; mas este é deles o maior...

A CONDESSA.

Pois olha: eu cá só vejo amigos... acolá, aqui, em redor...

CATHERINA.

Se em cada um destes senhores

Um amigo podemos ver,

A CONDESSA.

É natural que os seus favores

Nos queiram hoje conceder.

AMBAS.

Pedimos, a vossa indulgência

Para esta pobre Flor de lis; Mas, se negas benevolência,

Curva a cabeça- a tal juiz!

CORO GERAL.

O Mas, se negas benevolência, Curvamos a cabeça a tal juiz!