Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

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ALFREDO CAMPOS


O INFANTE NAVEGADOR

POEMETO

COM UM PREFACIO

DE

JOÃO PENHA

PORTO

Livraria Internacional de Ernesto Chardron

Casa editora

M. LUGAN, Successor

1894

Todos os direitos reservados

 
 

AO ILL.MO E EXC.MO SNR.

Conselheiro Luis Augusto Pimentel Pinto

RESPEITOSAMENTE OFFERECE

O AUCTOR.

Ill.mo e Exc.mo Sr.

Tomo a liberdade de offerecer a V. Exc.ª este modestíssimo trabalho, não porque o tenha como valioso, mas, sim, para significar a V. Exc.ª, por esta maneira, a consideração, estima e gratidão, que tributo a V. Exc.ª, aquellas por sympathia, esta pelas provas de deferencia, benevolencia e bondade que de V. Exc.ª hei recebido, civil e militarmente.

Sei que V. Exc.ª me concederá a mercê, de o acceitar, e penhorado agradeço a graça.

Considere-me V. Exc.ª como quem muito se honra, subscrevendo-se

De V. Exc.ª

subordinado, attento venerador, obrigado e admirador

Alfredo Campos

Major d'Infantaria.

Ovar, 1 de Janeiro de 1894.

PREFÁCIO

Em 1865, alguns poetas que se achavam reunidos no cubículo interior da modesta livraria de um editor de Paris, resolveram, depois de animada discussão, inter pocula, publicar um periódico de versos.

Esses poetas eram: François Coppée, André Lemoyne, Paul Verlaine, Léon Dierx, e José Maria de Heredia; o editor era Lemerre.

Há um proverbio francês que diz que não há ninguém que, uma vez na vida, não encontre a ocasião de se enriquecer: tudo depende de não a deixar escapar.

Para Lemerre o momento psicológico, de que misteriosamente dependia a sua fortuna, foi aquele.

Viu a ocasião, agarrou-a pelos cabelos, e no mês de janeiro do ano seguinte dava à luz o 1.º número do periódico, que fora intitulado: Parnasse Contemporain. Era mensal, e dele há publicadas três séries; a primeira abrange o ano de 1866, a segunda, principiada em 1869, e interrompida pela guerra franco-prussiana, concluiu em 1871; a terceira e última saiu em 1876.

O êxito desta publicação foi enorme: a edição esgotou-se, e Lemerre, que a encetara pobre, em dia de bons auspícios, ganhou alentos e é atualmente um dos mais faustosos editores da grande cidade.

Do título do periódico adveio para os seus numerosos colaboradores a denominação de poetas parnasianos.

Catulle Mendès dá-lhe outra origem, mas a real é a que deixamos indicada: estas coisas veem-se melhor de longe do que de perto.

Já há muito publicávamos em Coimbra a Folha, quando Eça de Queiroz, entusiasmado, nos assinalou o novo periódico, incitando-nos a implantar entre nós a que ele chamava poesia do futuro.

Acostumados à leitura exclusiva dos cinco ou seis poetas que, por aquela época, se liam e discutiam em Coimbra, surpreendeu-nos a nova publicação, não tanto pela novidade que poderia notar-se no seu elemento poético propriamente dito, mas sim, principalmente, pela correção quase científica da forma.

Pode afirmar-se que foi aí que, em França, teve princípio a moderna evolução do verso, evolução que nós, que absolutamente desconhecíamos aquele movimento, também tínhamos iniciado na Folha.

Este fenômeno poderia explicar-se por uma das leis de Vico.

Dissemos que no Parnaso não havia inovações no elemento poético, e realmente, a não ser a exclusão de alguns dos velhos assumptos convencionais, o que se observava era que os novos poetas (não nos referimos à sua idade segundo os repertórios) continuavam como até ali a poetar, de harmonia com os seus temperamentos, segundo a sua própria originalidade. Via-se que os não unia nem comunhão de ideias ou de sentimentos e tradições, nem até um mesmo sistema ou método de execução: não formavam uma escola: unia-os apenas um princípio, que manifestamente haviam adoptado por influência de Th. Gautier e de Banville, o de que poesia sem arte não é poesia; não tem outro valor senão o dos pensamentos que contém: é prosa.

Para esses parnasianos, portanto, que são os que atualmente constituem a mais gloriosa constelação de poetas do século XIX, isto é, para Baudelaire, F. Coppée, Sully-Prudhomme, Soulary, Leconte de Lisle, André Lemoyne, Glatigny, Catulle Mendès, Armand Silvestre, Th. de Banville, Léon Valade, Paul Verlaine, Léon Dierx, José Maria de Heredia, Em. des Essarts, e para muitos outros, não há arte aonde o verso não é absolutamente correto.

Mas, a evolução da forma consistirá só nisso, parará aí?

Com certeza que não.

Aquele principio adoptado pelos parnasianos, não é realmente novo; os grandes poetas latinos sempre o seguiram, e foi na Epistola ad Pisones, que o Tasso, Camões, Ariosto, e outros, o encontraram, adotando-o.

O conhecimento amplíssimo da língua, tão necessário para quem faz um poema, como o da combinação das cores para quem pinta um quadro, e a ciência da revelação do pensamento pela forma mais nítida, mais perfeita e mais adequada a esse pensamento, são as duas bases em que assenta aquele princípio.

O primeiro destes elementos de construção e de composição técnica estuda-se nos clássicos; o segundo nas obras dos grandes escritores. Este, porém, deve-o sobretudo estudar o poeta consigo mesmo; porque um mesmo pensamento não só pode ser apresentado, sem alteração alguma, por palavras diversas, mas também pelas mesmas palavras combinadas de maneiras diferentes.

Já o Mestre de Filosofia o indicava, na comédia de Molière, ao Burguês Gentilhomem:

Mr. Jourdain sentira-se enamorado de uma dama da sociedade elegante, e queria escrever-lhe qualquer coisa num bilhetinho, que lhe deixaria cair aos pés.

A este respeito abriu-se com o seu Mestre de Filosofia.

 — «É em verso que quer escrever-lhe? — perguntou-lhe este.

 — Não; nada de verso.

 — Então quer tudo em prosa?

 — Não; não quero nem prosa nem verso.

 — Há de ser uma ou outra coisa.

 — Por quê?

 — Por uma razão muito simples; porque para nos exprimirmos não há senão a prosa ou os versos.

 — Não há senão a prosa ou os versos?

 — Não. Tudo que não é prosa e verso, e tudo que não é verso e prosa.

 — E, quando eu falo, isso que é?

 — É prosa.

 — Como! quando eu digo: ó José, traz-me os meus sapatos, e dá-me o meu barrete de dormir, isto é prosa?

 — Sim, senhor.

 — É boa! Há quarenta anos que falo em prosa sem o saber! Muito obrigado pelas suas instruções. O que eu queria pôr no bilhete era: — Bela marquesa, seus belos olhos fazem-me morrer de amor; mas queria que isto fosse posto de uma maneira galante, torneado com elegância.

 — Pôr: que o fogo dos seus olhos lhe reduz o coração a cinzas, que sofre dia e noite as violências dum...

 — Não, não, não. Não quero nada disso. Não quero senão o que lhe disse: — Bela marquesa, seus belos olhos fazem-me morrer de amor.

 — Contudo, sempre é necessário estender isso um pouco mais.

 — Não, repito. Não quero senão essas únicas palavras no bilhete, mas torneadas à moda, arranjadas como o devem ser. Obsequeia-me, dizendo-me, para eu ver, as diversas maneiras de as pôr.

 — Primeiramente podem pôr-se da maneira que me disse: Bela marquesa, seus belos olhos fazem-me morrer de amor. Ou então: — De amor morrer me fazem, bela marquesa, seus belos olhos. Ou então: — Seus olhos belos, de amor me fazem, bela marquesa, morrer. Ou então: — Morrer seus belos olhos, bela marquesa, de amor me fazem. Ou então: — Me fazem, seus olhos belos morrer, bela marquesa, de amor.

 — Mas de todas essas maneiras qual é a melhor?

 — A sua: Bela marquesa, seus belos olhos fazem-me morrer de amor!

 — E contudo não tive estudos, fiz isso logo à primeira! Muitíssimo obrigado».

A resposta final do Mestre de Filosofia, se o caso não fosse de puro gracejo, não poderia ser aplicada, sem restrições, ao verso, não só porque das diversas formulas de qualquer pensamento deve ser escolhida a que for melhor segundo as circunstâncias, mas também porque, como diz um poeta obscuro:

«Prosa e verso têm balizas».

Tudo isto, porém: conhecimento cabal da língua, e ciência técnica da construção, não passa do que é estritamente rudimentar na composição poética.

A moderna evolução do verso, iniciada, como dissemos, pelos parnasianos, tende, no seu movimento ascensional para a perfeição artística, a pôr de acordo o pensamento e a forma, a ideia e o som, a melodia e a harmonia.

A este respeito, transcreveremos aqui as ideias que já noutra parte expusemos.

«Em toda a composição poética é indispensável o elemento musical; sem este elemento, essa composição, embora ritmada e rimada, não transpõe os limites da prosa. Tanto o prosador, como o poeta, trabalham a mesma matéria prima: o pensamento; o primeiro, porém, é apenas uma espécie de artífice mecânico: extrai da pedreira cerebral e transporta para o papel as ideias que aí se lhe formam: executa.

O trabalho do segundo é mais elevado e complexo: o poeta cria.

Assim como nem toda a pedra é adequada e serve para a estátua que um Buonarotti se proponha fazer, assim nem todo o pensamento pode ser objeto de um poema.

O artista, sem o procurar, escolhe, entre os que espontaneamente lhe germinam no intelecto, aquele que o seu espirito de seleção prefere; expurga-o das impurezas da vulgaridade, que lhe empanem a originalidade nativa, e depois reveste-o, por meio de processos extremamente complicados, da forma que o torna visível no mundo exterior.

Esses processos não consistem unicamente na escolha de palavras e locuções, e na regularidade do ritmo e da consonância; consistem sobretudo na escolha dos sons que essas palavras devem produzir, combinadas umas com as outras, de modo que a composição musical, que daí resulte, deve estar de harmonia com o pensamento que as mesmas palavras contêm, isto é, a taciturna e a notação melódica dos vocábulos, abstraindo-se das ideias que neles estão incluídas, devem revelar, embora vagamente, o conjunto dessas mesmas ideias.

Os três grandes poetas romanos, e sobretudo Horácio, atingiram esta perfeição do verso.

Leia-se uma ode daquele poeta a um indivíduo que ignore completamente a língua latina, a um professor dessa língua, por exemplo, e ele, só pela harmonia misteriosa das estrofes, indicará o assumpto de que o poeta se ocupou: Meyerbeer, Beethoven e Mozart colaboraram nas obras de Hugo, Musset e Lamartine».

Os fundamentos desta nossa teoria, que talvez pareça a uns imaginaria, e a outros inexequível, assentam em factos absolutamente experimentais.

Observe-se uma jovem doente. As palavras que instintivamente emprega para exprimir a tristeza da sua alma, e os sofrimentos de que se queixa, são adequadas ao seu estado, não só pelo tom lúgubre e pelos pensamentos que encerram, mas também pela inflexão lamuriante e chorosa que lhes imprime. Observe-se, pelo contrário, um homem feliz e contente: se fala, se conta as suas aventuras, há na sua voz a vibração das notas claras, estridentes e sonorosamente agudas: entre os seus pensamentos, e a parte musical que os reveste, há uma harmonia completa, embora inconsciente.

É, pois, na conjunção destes dois elementos que deverá consistir o árduo e dificultoso trabalho do poeta moderno: se o realizar, a sua obra ocupará um lugar perdurável entre os monumentos artísticos da sua época; se o não conseguir, ver-se-á colocado, quando muito, entre a efêmera coorte dos operários da prosa, e por mais que diga, por mais que se contorça, por mais que recheie a sua obra de assombros de pensamento, de bonitos de frase, e de floripôndios de estilo, como diria sua excelência o bispo de Bethesaida, ainda em vida a verá sepultada nos abismos insondáveis dum eterno esquecimento.

É no sentido que deixamos esboçado que em França os antigos parnasianos, e uma enorme falange de poetas mais novos, trabalham os seus poemas, sobressaindo entre eles pela sua mais perfeita compreensão do elemento musical, no La Nature, Maurice Rollinat, o compositor das Nevroses.

As suas poesias são tão musicais que podem cantar-se, e ele mesmo, ainda há pouco, com uma entoação estridente e angustiosa, que produziu uma sensação inexprimível nos que o ouviam, cantou uma delas, o rondó: Les yeux morts:

«De ses grands yeux, chastes et fous,

Il ne reste pas un vestige.

Ses yeux, qui donnaient le vertige

Sont allés ou nous irons tous.

En vain ils étaient frais et doux

Comme deux bluets sur leur tige:

De ses yeux, chastes et fous,

Il ne reste plus un vestige.

Quelquefois, par les minuits roux,

Pleins de mystères et de prestige

La morte autour de moi voltige...

Mais je ne vois plus que les trous

De ses grands yeux chastes et fous!»

Entre nós, o movimento evolutivo, a que nos temos referido, fora, como dissemos, iniciado espontaneamente em Coimbra por uma geração de poetas que, com os seus adeptos, formam atualmente uma plêiade de artistas que só tem por igual a plêiade dos poetas franceses.

Eram e são os que o professor do Curso Superior de Letras, Teófilo Braga, o Lineu da nossa literatura, classifica, na sua última obra, com o desdém olímpico de um metrificador de ciclos, da maneira seguinte: poetas que tratam unicamente da forma.

No entanto, em que pese ao ilustre catedrático, para eles, excluído um, já há muito fulgura, no Templo da Arte, o antigo fas vobis limina divuum.

Alfredo Campos não é um desses poetas, mas se não é rigorosamente um parnasiano, mostra nas suas poesias, que, como João de Deus, tem música na alma, e essa música interior muitas vezes supre, o que a arte, para os mesmos efeitos, laboriosamente obtém. Muitos dos seus sonetos poderiam ser assignados por Diogo Bernardes, e as belas estrofes, que vão ler-se, revelam que o seu talento maleável não se afrontaria diante de uma obra mais completa, se com ela se propusesse enriquecer a nossa literatura.

11-2-94.

João Penha.

O INFANTE NAVEGADOR

I

.... se a natureza lhe negara a Coroa, as virtudes lhe deram justiça para a merecer.

CÂNDIDO LUSITANO — Vida do Infante D. Henrique.

1

Espírito sublime e alevantado,

Cheio de crenças, coração formoso,

Olhar de águia, profundo e dilatado,

Fitando o sol ardente, corajoso,

Sondando o mar, que adora apaixonado,

E em que sonha o seu poema grandioso,

Deixou seu nome vinculado à Glória,

Escrito em bronze, pela mão da História.

2

 — Navegador! — Assim o batizara

A fama das conquistas mais brilhantes;

Já, dominando o mar, na audácia rara,

Para o cortar de estradas rutilantes,

Já, implantando a Fé na gente ignara,

Em paragens ignotas e distantes,

Não, porque da ambição fosse vil presa,

Mas para dar à Fé maior grandeza!

3

Varão de largo estudo e são talento,

Em vez de braço inerte na indolência,

Nos prazeres da corte, e luzimento

Duma banal e inútil existência;

Em vez dos galanteios de momento,

Que passam, como as nuvens duma essência,

Votou a vida, desde a flórea idade,

Ao trabalho, com honra e lealdade.

4

Foi de Sagres, nos sonhos radiosos,

Embalados, do mar, nas harmonias,

Quando o mar, nos anseios carinhosos,

Ia, meigo, beijar-lhe as penedias,

Como para atraí-lo aos gloriosos,

Altos projetos de futuros dias,

Que concebeu os planos de conquista,

Lançando, ao longe, a penetrante vista.

5

Ninguém, como ele, ousara ainda tanto,

Abrir caminho certo a essas paragens,

Onde a noite é mortal, o sol quebranto,

Os habitantes negros e selvagens;

Porque ninguém sentira o doce encanto

De lograr tão esplendidas miragens;

Porque ninguém, como ele, decifrava

Os enigmas, que o mar apresentava.

6

Rodeado de espíritos valentes,

Prontos à voz, que vinha dum desejo,

Calando, sempre, em corações ardentes,

Cheios de brio, aspiração e pejo,

Mal dardejava às ondas reluzentes,

Os olhos, no clarão d’algum lampejo,

Ao vento desfraldavam, logo, as velas,

Arrojadas, veleiras caravelas!

7

Não eram ambições de vil riqueza,

De conquistas, que aumentam poderio,

Ou paixão de cobiça, de torpeza,

Para satisfazer um desvario,

Ou um capricho vão de vã fraqueza,

O que o levava à busca do gentio:

 — Era mais alto e nobre o pensamento,

Que o punha firme nesse ousado intento.

8

Na descoberta de regiões ignotas,

Tinha apenas um alvo, que era a Glória,

De avançar na ciência das derrotas,

Para lograr, sobre outros, tal vitória,

Levando a Fé às tribos mais remotas,

Cuja religião era irrisória;

Não por prazer de ter mores domínios

Acalentava o Infante estes desígnios.

9

Tal como o mar, que um dia é bonançoso,

Beijando docemente a costa, a praia,

E no outro dia é já tempestuoso,

Em mortalha mudando a alva cambraia,

Da fina espuma do seu dorso airoso,

Para melhor colher o que desmaia,

Hoje, sereno, amante peregrino,

Mau, amanhã, terrível e tigrino.

10

Assim o espírito do Infante, às vezes,

Calmo sorria ao fim d’alguma empresa,

Triunfante de todos os revezes;

Mas enchia a sua alma de tristeza

Quando a sorte feria os portugueses,

Porque ante a sorte há força que é fraqueza,

E nem sempre volviam gloriosas,

Essas expedições audaciosas!

II

O mistério que desde a criação estava suspenso sobre o Atlântico, e ocultava ao conhecimento do homem metade da superfície do globo, tinha reservado para o Infante D. Henrique, o navegador, um campo de nobres cometimentos.

RICHARD HENRY MAJOR — Vida do Infante D. Henrique.

1

Como um extenso campo, pelo arado

Fendido em sulcos para a sementeira,

O Atlântico, por ele, foi sulcado,

Numa larga derrota lisonjeira,

Em que, sempre, um caminho era traçado,

De larga via e luminosa esteira,

Levando o Infante às terras procuradas,

As naus e as galés afortunadas.

2

Os Açores, Madeira e Porto Santo,

Pelo arrojo de Zarco e Tristão Vaz,

Surgem formosas, como por encanto,

Ao que, por descobri-las, tanto faz.

Leva a Ceuta os seus feitos e, no entanto,

Sempre no seu intento firme e audaz,

Segue lançando o penetrante olhar,

As ondas do atraente e vasto mar!

3

Diogo Gomes põe as lusas quinas,

Em Cabo Verde — essa africana porta

 — Como se as hasteasse nas campinas,

Onde não houve nunca esperança morta.

Rasgam-se as nuvens densas de neblinas,

Ante o fervor, que o heroísmo exorta,

E à baía de Arguim o acesso expande

A marítima audácia, e ao Rio Grande!

4

Desvenda-se esse Mar, que Tenebroso,

Toda a coragem transformava em medo,

Como rendido ao susto perigoso,

Quem quer sondar o abismo dum segredo;

E esse campo de vagas, misterioso,

Tão tido por feroz, insano e tredo,

Deixa de ser fantástica voragem,

Para prestar aos lusos vassalagem!

5

Levado na corrente caudalosa,

Que os ânimos inspira com ardor,

Dobra, numa derrota gloriosa,

Gil Eanes, o Cabo Bojador;

E essa tarefa rude e trabalhosa,

Que ao Infante traz mais um esplendor,

Novo florão engasta em seu diadema,

Nova estrofe nos cantos do seu poema!

6

Andavam cavaleiros, moços, pajens,

Entre si, disputando a primazia,

De derrotas incertas, de viagens,

Tidas por mais difíceis, dia a dia,

Buscando, cada qual, novas paragens,

Consoante as pintava a fantasia;

E foi assim, que, com fervor e fé,

Chegaram a Benim, Congo e Guiné!

7

Vencem os seus o Cabo das Tormentas,

Que foi, depois, Cabo da Boa Esperança,

Não sem lutas e lutas violentas,

Em que o trabalho mais renome alcança;

Não sem rudezas grandes e cruentas,

Dessas que a fama em seus laureis entrança,

E coube ao Duque de Vizeu a Glória,

Dessa arrojada empresa meritória.

8

Levanta em Sagres a grandiosa Escola,

Onde a navegação acha elemento,

Para as expedições, que desenrola,

Em busca de qualquer descobrimento,

Quando uma frota sua o mar assola,

Ou uma nau se expõe ao mar e ao vento,

Escola, que assombrava o mundo inteiro,

E em que, no estudo, o Infante era o primeiro!

9

Se pelo mar conquista tanta fama,

E o seu nome circunda glorioso,

Das joias das ações que lá derrama,

Como navegador audacioso,

Também como homem de armas se proclama

Disciplinado, firme e valoroso,

Como se fora feito para a luta,

Quem, pela Pátria, a Glória só disputa.

10

Nos mares, onde tantas caravelas,

Rasgaram horizontes dilatados,

Sem receio da fúria das procelas,

Nesses longínquos portos ignorados,

Onde as galés molharam suas velas,

Levando a Cruz e a Fé aos seus povoados,

Andam, inda, hoje, vivas, por memoria,

Do grande Herói, as tradições de Glória!

III

A fama, a glória, o nome, e a saudade.

.............................

Oh! ditoso morrer! Sorte ditosa!

CAMÕES — Sonetos.

1

Pode o tempo esquecer, por largos anos,

Os feitos dum Herói, ações dum povo,

Quando o tempo resolve em seus arcanos,

O consagrar algum Herói mais novo,

Ou comentar cruezas de tiranos,

Pois cada tronco tem o seu renovo;

Mas desse olvido há de surgir, um dia,

O tempo que esses feitos esquecia.

2

Revive, assim, a grandiosa Glória

Do compendio da vida desse Infante,

Que enche de brilho as páginas da História,

Numa lição famosa e fecundante;

E nesse consagrar tanta vitória,

Nesse avivar exemplo tão gigante,

Cumpre um dever o povo que pretende,

Que é pela História que se instrui e aprende.

3

Filho de Reis, podia, na grandeza,

Trazer a vida, e em ócios, regalada;

Preferiu, da Ciência, a realeza,

Porque era dela uma alma enamorada,

Levando, em protegê-la, a gentileza

De, em seus Paços, a ver bem hospedada,

Que eram de ilustres Sábios, grande grêmio,

Sábios, que honrava e a quem dava prêmio.

4

Pelo seu coração foi mui piedoso,

Varão de inteira Fé, de firme Crença,

Erguendo muito monumento honroso,

Que a tradição, agora, ainda incensa,

Como para atestar o caloroso,

Real valor dessa piedade imensa,

De quem tinha, por si, segura a regra,

Que sem religião a vida é negra.

5

Afável, terno, todo castidade,

Abria o seio às aflições dos pobres,

Que consolava ao sol da caridade,

Mudando em oiro a falta dos seus cobres,

Nos extremos do afeto e da bondade,

Tais como os dispensava aos ricos nobres,

Chegando, por impulsos desvelados

A ser chamado até — Pai dos Soldados!

6

Protetor dos estudos, contribuía,

Com larga renda e generosa oferta,

Para pôr a instrução em pleno dia,

Nos próprios Paços seus, fulgindo certa,

Como mãe do Progresso, que antevia,

E fonte de ventura, em jorro aberta;

Pois se do mar, das armas era amante,

Punha nas Letras um amor constante.

7

Talent de bien faire era o seu lema:

 — De fazer bem, vontade sempre ardente,

E nessa ânsia do bem, viva e suprema,

Exemplo sublimado a toda a gente,

Talhou o maior canto do seu poema;

É raro achar brasão mais resplendente,

Como igualmente o é, entre a nobreza,

Mais virtude, mais Glória, mais grandeza!

8

Foi-lhe a vida sublime uma epopeia!

Herói, que faz Heróis pelo traslado,

Dos dons com que seus dias encadeia,

Só pelo Pátrio amor, sempre inspirado!

Dá flor e fruto o exemplo que semeia,

Fértil foi sempre o campo que há lavrado,

E dessa enorme e estranha sementeira,

Inda, hoje, há grão ao sol da nossa eira!

9

Quando morreu, coberto foi de pranto,

Do povo, que o seu nome idolatrava;

Foi tecido de lágrimas o manto,

A mortalha, que ao tumulo levava!

Diziam todos que morrera um santo!

Dizia o próprio mar que... órfão ficava!

Chorava, assim, uma nação inteira,

Como que a sua esperança derradeira!

10

Um povo, que acalenta o seu presente,

Ao sol das tradições do seu passado,

Levanta, agora, um monumento ingente,

Ao seu Navegador afortunado,

Na aspiração da Glória resplendente,

Porque o que é grande é mister ser lembrado.

Aprenda bem o povo a ler na História,

E Deus o inspire para maior Glória.

FIM

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Porto — Tip. de A. J. da Silva Teixeira, Cancela Velha, 70