LITERATURA
BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Poemas e canções, de Vicente de Carvalho
Edição de referência:
CARVALHO, Vicente de. Poemas e canções, São Paulo: Cardoso, Filho & Cia., 1908.
ÍNDICE
ANTES DOS VERSOS
Aos que se surpreenderem de ver a prosa do engenheiro antes dos versos do poeta, direi que nem tudo é golpeantemente decisivo nesta profissão de números e diagramas. É ilusório o rigorismo matemático imposto pelo critério vulgar às formas irredutíveis da verdade. Baste atender-se em que o objetivo das nossas vistas teóricas está no descobrir uma simplicidade que não existe na natureza; e que desta nos abeiramos, sempre indecisos, já tateantes, por meio de aproximações sucessivas, já precipitadamente, fascinados pela miragem das hipóteses. A própria unidade das nossas mais abstratas construções é enganadora. Nos últimos trinta anos — nesta matemática tão, ao parecer, definitiva — idearam-se não sei quantas álgebras, através de complicados simbolismos; e o número de geometrias elementares, como no-lo mostra H. Poincaré, é hoje, logicamente, incalculável. Ainda mais: na mesma geometria clássica sabe-se como se definem pontos, retas e planos, que não existem, ou se reduzem a conceitos preestabelecidos sobre que se formulam postulados arbitrários. Continuando: vemos a mecânica basear-se, paradoxalmente, no princípio da inércia universal, e instituir a noção idealista do espaço absoluto, em contradição com tudo quanto vemos e sentimos.
Destarte se constrói uma natureza ideal sobre a natureza tangível. Ilude-se a nossa incompetência para abranger a simultaneidade do que aparece, por meio de processos vários nos nomes pretensiosos, mas na essência perfeitamente artísticos, porque consistem em exagerar os caracteres dominantes dos fatos, de modo a facultar-nos uma síntese, mostrando-no-los menos como eles são do que como deveram ser. Assim nós vamos — idealizando, conjecturando, devaneando. Na astronomia resumem-se as leis conhecidas menos imperfeitas; no entanto à medida que ela encadeia os mundos, vai libertando-nos a imaginação. Os mais duros experimentadores sonham neste momento aos clarões indecisos das nebulosas, vendo abrir-se em cada estrela incandescente um vasto laboratório onde trabalham os químicos da terra descobrindo surpreendentes aspectos da matéria... Prosseguimos, idealizando flagrantemente a Física, com a estrutura subjetiva de sólidos e fluidos perfeitos, e sistemas isolados, e até singularíssimos fios inextensíveis, de todo em todo inexistentes; e romanceando a Química, definida pelo simbolismo imaginoso da arquitetura atômica de seus corpos simples, irreais.
Até que na Físico-química, recém instituída e já intensamente iluminada pela percepção transubstancial dos raios X, admitíamos todas as utopias do misticismo transcendental dos alquimistas, e não nos maravilhemos de que os pensadores mais robustos estonteiem e delirem como faquires esmaniados, vendo, improvisamente, resplandecer no radium a alma misteriosa da matéria...
Assim nos andamos nós — do realismo para o sonho, e deste para aquele, na oscilação perpétua das dúvidas, sem que se possa diferençar na obscura zona neutral alongada à beira do desconhecido, o poeta que espiritualiza a realidade, do naturalista que tateia o mistério.
Apeamo-nos então, acobardados, dessas presuntuosas cogitações. Encouchamo-nos, tímidos, no esconderijo de uma especialidade. Constringimos a alma. Moralizamos rasamente a vida, evitando a grande embriaguez dionisíaca da Vida. Renuímos as fantasias perigosas: utilitarizamo-nos... E ao cabo de tamanho esforço, para descermos até ao fastígio do maciço senso comum conservador e timorato — vemos com espanto, que mesmo no terra-a-terra da atividade profissional, todas as asperezas das nossas fórmulas empíricas e os traços rigorosos dos tira-linhas ainda se nos sobredoiram de um recalcitrante idealismo.
No pedaço de carvão de pedra, que acendemos na fornalha de uma locomotiva, reacendemos muitos raios de sol extintos há milênios. A locomotiva parte, e não concretiza apenas o mito poético de Faetonte. O que mais nos encanta é a imagem fulgurante da Força, renascendo e restaurando ao mesmo passo os esplendores de trintas auroras apagadas...
Pelas vigas metálicas de nossas pontes, friamente calculadas, estiram-se as “curvas dos momentos”, que nos embridam as fragilidades traiçoeiras do ferro. E ninguém as vê, porque são ideais. Calculamo-las; medimo-las; desenhamo-las — e não existem...
E assim por diante — indefinidamente, em tudo o que fazemos e em tudo o que pensamos, ainda quando lançados na trilha heroica da profissão vamos pulsear no deserto as dificuldades e os perigos... Porque quando nos vamos pelos sertões em fora, num reconhecimento penoso, verificamos, encantados, que só podemos caminhar na terra como os sonhadores e os iluminados; olhos postos nos céus, contrafazendo a lira, que eles já não usam, com o sextante, que nos transmite a harmonia silenciosa das esferas, e seguindo no deserto, como os poetas seguem na existência,
... a ouvir estrelas!
Vede quanto é falso o prejuízo da esterilidade das cousas positivas. Em pleno critério determinista somos talvez mais sonhadores do que nos tempos em que ao ingênuo finalismo teológico bastavam duas sílabas para descrever as maravilhas da Criação. Numa intimidade mais profunda com o mundo exterior, a nossa idealização aumenta de um modo quase mecânico. Estira-se-nos na visão deslumbrada. Alarga-se-nos nos novos quadros reveladores das imagens infinitas da natureza. E à medida que se nos torna mais claro o sentimento das energias criadoras que nos circulam, e vai eliminando-se do nosso espírito o velho espantalho da discórdia dos elementos, de que tanto se apraziam os deuses vagabundos, e nos sentimos mais equilibrados, mais fortes, mais solidários com a harmonia natural — maior se torna a fonte inspiradora do nosso idealismo fortalecido por impressões mais dignas da majestade da vida.
Se tivéssemos dúvidas a este respeito, no-las dissiparia o próprio espetáculo da última fase revolucionária da poesia contemporânea, caracterizada pelo contraste entre a decadência dos que a falseiam e a expansão crescente do sentimento estético da humanidade. Realmente, o que se afigura a tantos profetas agourentos a morte próxima da poesia, é a demonstração ad absurdum da sua vitalidade mais ampla. Troca-se o efeito pela causa. Nas várias escolas esporádicas — que vão do Parnasianismo, com a idiotice de seu culto fetichista da forma, ao Simbolismo, com a loucura de suas ideias exageradamente subjetivas — o que parece a decadência da poesia é apenas o desequilíbrio e as emoções falsificadas dos que não podem mais compreendê-la na altitude a que chegou o nosso pensamento. Considerando-se, de relance, apenas um dos extremos dessa longa cadeia de agitados — não seria difícil mostrar no desvio ideativo de Mallarmé, ou Verlaine, como outrora no satanismo de Baudelaire, os gritos desfalecidos de todos os fracos irritáveis, reconhecendo-se inaptos para entenderem a vida numa quadra em que o progresso das ciências naturais, interpretadas pelo Evolucionismo, reage sobre tudo e tudo transfigura, desde a ordem política, onde se instaura o predomínio econômico dos povos mais ativos, glorificados na inspiração prodigiosa de Rudyard Kipling, até à filosofia moral, onde se alevanta a aristocracia definitiva do homem forte, lobrigado pela visão estonteadora do gênio de Frederico Nietzsche. Então veríamos, malgrado as blasfêmias de tanto verso convulsivo, como um falso ceticismo pode significar a última tentativa da retrógrada explicação deísta do universo. Os “poetas malditos”, que nos fazem rir com o truanesco de suas visagens, são apenas ignorantes. A descrença nasce-lhes da inviabilidade da crença. São almas velhas onde se acumulam as influências ancestrais mantidas pela hereditariedade; e ainda quando se fingem de demônios agitam-nos aos olhos o espectro da antiga fé agonizante. E falam-nos naturalmente numa língua morta, de retardatários, em estrofes onde os traços de degenerescência resultam sobretudo da incompatibilidade com os novos ideais.
Baudelaire, entre os desconchavos de seu bárbaro misticismo, teve, certa vez, um lance genial, ao definir-se
...un cimetière,
Où, comme des remords, se traînent des longs vers...
Símbolo perfeito dessas organizações retrogradas, de revenants, a ressuscitarem num período avantajado da existência humana e para logo invadidos do desespero de já não sentirem o amparo das antigas verdades absolutas, que os alentavam outrora, nos remotos tempos de onde saltam por atavismo — claudicantes no ritmo dos versos — para nos entristecerem com as suas queixas de almas doentes da nostalgia do sobrenatural. Porque o quadro que defrontam é outro. Encontram os céus mais azuis, depois das induções de Tyndall; a terra mais vivaz, depois das generalizações de Lyell, evolvendo e transfigurando-se como um maravilhoso organismo. Para abarcar a vida, ou realizar a síntese de seus aspectos, já não basta o êxtase, ou a genuflexão admirativa, senão a solidariedade de suas leis com a nossa harmonia moral, de modo que, submetidos à unidade do universo, sejamos cada vez mais a própria miniatura dele, e possamos traduzi-lo sem falsificá-lo, embora o envolvamos nos véus simbólicos da mais ardente fantasia. “Nesta altura todas as perspectivas particulares se fundem. O homem não é — isoladamente — artista, poeta, sábio ou filósofo. Deve ser de algum modo tudo isto a um tempo, porque a natureza é integra”[1].
A frase é de um naturalista. Mas vê-se que ela reproduz, hoje, transcorrido um século de atividade intelectual, quase literalmente, o idealismo filosófico de Fichte. É compreensível. E dela se deduz que nessa aproximação crescente entre a realidade tangível e a fantasia criadora, o poeta, continuadamente mais próximo do pensador, vai cada vez mais refletindo no ritmo de seus versos a vibração da vida universal, cada vez mais fortalecido por um largo sentimento da natureza.
* *
Ora, o que para logo se destaca nos Poemas e canções, alentando o subjetivismo equilibrado de um verdadeiro poeta, é um grande sentimento da natureza. O amor, considera-o Vicente de Carvalho como ele é, positivamente: um caso particular da simpatia universal. E tal como no-lo apresenta
... risonho e sem cuidados,
Muito de altivo, um tanto de insolente
diz-nos bem que na sua forma comum, fisiológica e rudimentar, de um egoísmo a dois, ele não lhe traduz uma condição primaria do sentimento, escravo de uma preocupação mórbida e humilhante, senão um belo pretexto para resumir num objeto, em harmonioso sincretismo, os atributos encantadores da vida. O poeta diviniza a mulher, como o estatuário diviniza um pedaço de mármore: pela necessidade ansiosíssima de uma síntese do maior número possível de belezas infinitas que lhe tumultuam em torno. Neste lance poderíamos aplicar-lhe a frase pinturesca de Stanchwith: “Não podendo apertar a mão desse gigante que se chama Universo, nem dar um beijo apaixonado na Natureza, resume-os num exemplar da humanidade.”
Por isto mesmo não se apouca limitando-se a essa redução graciosa. Para aformosear o seu símbolo, dá largas à expansão centrifuga da individualidade transbordante. E em tanta maneira se lhe impõem as escapadas para a amplitude do mundo objetivo, onde se lhe deparam as melhores imagens e as mais radiosas alegorias, que nos diz em alexandrinos correntios o que hoje lemos em páginas austeras de gravíssimos psicofisiologistas, quando atribui todo o seu culto
À doce Religião da Natureza amiga,
a uma alma remota que as energias profundas do atavismo lhe despertam, predispondo-o ao nomadismo aventureiro de algum avô selvagem
Algum bugre feroz, cujo corpo bronzeado
Mantinha a liberdade inata da nudez.
Ao contrário, eu penso que alma antiga não sentiria esta atração da grande natureza, que domina a poesia moderna. Entre a concepção estreitamente clássica da vida rústica, das Geórgicas, e o nosso esplêndido lirismo naturalista há diferenças tão flagrantes que fora inútil indicá-las. O movimento atual para os grandes quadros objetivos, à parte outras causas mais profundas, desponta-nos como uma reação do nosso sentimento, a crescer, paralelamente, com o próprio rigorismo prático da vida. Esse fugir ao racionalismo seco das cidades, que até geometricamente se nos desenha nas ruas retangulares, nos quadrados das praças, nos ângulos diedros das esquinas, nas pirâmides dos tetos, nos poliedros das casas, nos paralelepípedos dos calçamentos e nas elipses dos canteiros, onde é tudo claro, matemático, compreensível, e as inteligências se nivelam na evidencia de tudo, e as vistas se fatigam na repetição das formas e das cores, e os ouvidos se fatigam no martelar monótono dos sons, e a alma se fatiga na invariabilidade das impressões e dos motivos — vai se tornando a mais e mais imperioso, à medida que a civilização progride. O povo mais prático e mais lúcido do mundo, é o que por ele mais irradia à caça do pinturesco. Não há neste momento em Chamonix ou num rincão qualquer da África Central, nenhuma página vigorosa da natureza onde se não veja, rijamente empertigado, um ponto de admiração: o inglês!
Além disto, só o pensamento atual pode animar a alma misteriosa das cousas, num consorcio, que é a definição da verdadeira arte. O nosso selvagem
Que dormia tranquilo um sono descuidado,
Passivo, indiferente, enfarado talvez
Sob o mistério azul do céu todo estrelado,
passaria mil anos sobre a Serra do Mar
Negra, imensa, disforme,
Enegrecendo a noite...
indiferente e inútil.
Para no-la definir, e no-la agitar sem abandonar a realidade, mostrando-no-la vivamente monstruosa, a arrepiar-se, a torcer-se nas anticlinais, encolhendo-se nos vales, tombando nos grotões, ou escalando as alturas nos arrancos dos píncaros arremessados, requer-se a intuição superior de um poeta capaz de ampliar, sem a deformar, uma verdade rijamente geológica, refletindo num minuto a marcha milenária das causas geotectônicas que a explicam. Vemo-la na escultura destes versos:
Na sombra em confusão do mato farfalhante
Tumultuando, o chão corre às soltas, sem rumo.
Trepa agora alcantis por escarpas a prumo,
Erriça-se em calhaus, bruscos como arrepios;
Mais repousado, além, levemente se enruga
Na crespa ondulação de cômoros macios;
Resvala num declive; e logo, como em fuga
Precípite, através da escuridão noturna,
Despenha-se de chofre ao vácuo de uma furna.
Do fundo dos grotões outra vez se subleva,
Surge, recai, ressurge... E, assim, como em torrente,
Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva
Despedaçadamente e indefinidamente.
É a realidade maior — vibrando numa emoção. Este chão que tumultua, e corre, e foge, e se crispa, e cai, e se alevanta, é o mesmo chão que o geólogo denomina “solo perturbado” e inspira a rasa, a modesta, a chaníssima topografia, a metáfora garbosa dos “movimentos do terreno.”
A mesma harmonia de sua visão interior com o mundo externo rebrilha, quando o poeta observa que o mar
... brutal e impuro,
Branco de espuma, ébrio de amor,
Tenta despir o seio duro
E virginal da terra em flor.
Debalde a terra em flor, com o fito
De lhe escapar, se esconde, e anseia
Atrás de cômoros de areia
E de penhascos de granito.
No encalço dessa esquiva amante
Que se lhe furta, segue o mar;
Segue, e as maretas solta adiante
Como matilha, a farejar
E, achado o rastro, vai com as suas
Ondas e a sua espumarada
Lamber, na terra devastada.
Barrancos nus e rochas nuas...
Idealização... Mas, evidentemente quem quer que se alarme ante este mar perseguidor e esta terra prófuga, riscará os melhores capítulos da geologia dinâmica. E os que fecharem as vistas à esplêndida imagem daquela matilha de maretas, certo, não poderão contemplar a “artilharia” de seixos e graieiros, do ilustre Playfair, a bombardear arribas, desmontando-as, disjungindo-as, solapando-as, derruindo-as, e esfarelando-as — seguida logo da “cavalaria das vagas” de Granville Cole, a curvetear nos rolos das ondulações banzeiras, a empinar-se nas ondas desbridadas, a entrechocar-se nas arrebentações, a torvelinhar no entrevero dos redemoinhos; e de súbito disparando — longos penachos brancos dos elmos rebrilhantes distendidos na diluição das espumas — numa carga, em linha, violentíssima, sobre os litorais desmantelados ; de modo que o litoral desmantelado se nos apresente,
like a regiment overwhelmed by cavalry.[2]
Considerai: esta frase, que se desentranha da árida prosa de um livro didático, ressoa, refulge, canta. É um verso. Prende o sonhador e o cientista diante da idealização tangível de um expressivo gesto da natureza.
Mais longe, quando o poeta escuta a grande voz do mar, “quebrada de onda em onda”, fazendo à Lua uma declaração de amor, que seria apenas um ridículo exagero panteísta, se não fosse um pouco desse infinito amor que se chama gravitação universal; quando o mar exclama:
“Lua! Eu sou a paixão, eu sou a vida, eu te amo!
Paira, longe, no céu, desdenhosa rainha,..
Que importa? O tempo é vasto, e tu, bem que eu reclamo,
Um dia serás minha...
Há mil anos que vivo a terra suprimindo.
Hei de romper-lhe a crosta e cavar-lhe as entranhas
Dentro de vagalhões penhascos submergindo,
Submergindo montanhas...
esta voz monstruosamente romântica, do mar, é a mesma voz de Geike, ou de Lapparent, e diz uma alta verdade de ciência, diante do agente físico cujo destino lógico, pelo curso indefinido dos tempos, é o nivelamento da terra.
Também ao descrever-nos um recanto labiríntico de nossas matas,
Cem espécies formando a trama de uma sebe,
Atulhando o desvão de dois troncos; a plebe
Da floresta, oprimida e em perpétuo levante,
e mostrando-nos que
Acesa num furor de seiva transbordante
Toda essa multidão desgrenhada — fundida
Como a conflagração de cem tribos selvagens
Em batalha — a agitar cem formas de folhagens
Disputa-se o ar, o chão, o orvalho, o espaço, a vida,
e atentando-se no quanto à pletora tropical, ou uma sorte de congestão da seiva, alenta e ao mesmo passo sacrifica em nossa terra o desenvolvimento vegetativo, criando-se o tremendo paradoxo da floresta que mata a árvore, ou redu-la ao arbúsculo que foge à compressão dos troncos escapando-se na distensão esquiva do cipó, a desfibrar-se e a estirar-se, angustiosamente, na procura ansiosíssima da luz — avalia-se bem o brilho daquela síntese comovente, embora seja ela rigorosamente positiva em todos os elementos de sua estrutura artística.
Digamos, porém, desde logo, que em todo este lucido panteísmo não é a floresta e a montanha que mais atraem o poeta. É o mar. A Vicente de Carvalho não lhe basta o pintar-nos
...O mar criado à s soltas
Na solidão, e cuja vida
Corre, agitada e desabrida,
Em turbilhões de ondas revoltas...
ou quando ele, tempesteando,
A uivar, a uivar dentro da sombra
Nas fundas, noites da procela
braceja com os ventos desabalados, e, recebendo de instante em instante a
cutilada de um corisco,
rebela-se, e
impando de ousadia
Pragueja, insulta, desafia
O céu, cuspindo-lhe a salsugem...
Apraz-se antes de no-lo mostrar, nas “Sugestões do Crepúsculo”, com a melancolia soberana que por vezes o invade e lhe torna mais compreensível a grandeza, no vasto nivelamento das grandes águas tranquilas, onde se nos dilata de algum modo a impressão visual da impressão interior e vaga do Infinito...
Porque
Ao pôr do sol, pela tristeza
Da meia luz crepuscular,
Tem a toada de uma reza
A voz do mar.
Aumenta, alastra e desce pelas
Rampas dos morros, pouco a pouco,
O ermo de sombra, vago e oco,
Do céu sem sol e sem estrelas.
Tudo amortece, e a tudo invade
Uma fadiga, um desconforto,
Como a infeliz serenidade
Do embaciado olhar de um morto.
Domado então por um instante
Da singular melancolia
De entorno, apenas balbucia
A voz piedosa do gigante.
Toda se abranda a vaga hirsuta,
Toda se humilha, a murmurar...
Que pede ao céu que não a escuta
A voz do mar?
Escutem bem...Quando entardece,
Na meia luz crepuscular,
Tem a toada de uma prece
A voz tristíssima do mar...
Fora impossível citar tudo prolongando a tortura do contraste entre estas frases duras e a flexibilidade desses versos, nos quais o metro parece nascer ao compasso da sístole e da diástole do coração de quem os recita.
Além disto, alguns deles, mercê da unidade perfeita, não se podem mutilar em extratos. Nas “Palavras ao Mar”, aquela identidade” anteriormente aludida, da nossa harmonia moral com a do Universo refulge num dos mais breves e maiores poemas que ainda se escreveram na língua portuguesa, para se definir o perpetuo anseio do ideal diante das magias crescentes da existência.
Em “Fugindo ao Cativeiro” — epopeia que se lê num quarto d’hora — a mesma estrutura inteiriça torna inviolável a concepção artística
Digamos, entretanto, de passagem, que aquela miniatura shakespeareana da última fase da escravidão em nosso país, absolverá completamente, diante da posteridade, a nossa geração, das culpas ou pecados que acaso lhe adviriam de uma dolorosa fatalidade social. Ver-se-á, pelo menos, que as emoções estéticas, tão essenciais a todas as transformações verdadeiramente políticas, não as fomos buscar somente, já elaboradas, na alma da geração anterior, decorando, e recitando, exaustivamente, as estrofes eternas das “Vozes d’África e do “Navio Negreiro.” Sentimo-las, bem nossas, a irromperem dos quadros envolventes, à imensa desventura do africano abatido pelo traficante, contrapusemos a rebentina do crioulo revoltado. Vicente de Carvalho agarrou, num lance magnífico, a única situação heroica e fugaz — durando o que durou o relâmpago da foice coruscante brandida por um hércules negro — de uma raça humilhada e sucumbida.
E ainda nesse trecho, com a amplitude e o desafogo da sua visão admirável, associou ao dramático itinerário do êxodo da turba miseranda e divinizada pelo sonho da liberdade, a natureza inteira — do oceano longínquo, apenas adivinhado dos píncaros da serra, à montanha abrupta abrolhando em estrepes e calhaus, às colinas que se idealizam azulando-se com as distancias, e à floresta, referta de rumores e gorjeios, onde
Os velhos troncos, plácidos ermitas,
Os próprios troncos velhos, remoçados,
Riem no riso em flor dos parasitas.
... imagem, encantadora na sua belíssima simplicidade, que se emparelha com as mais radiosas engenhadas por toda a poesia humana.
* * *
Quero cerrar com ela todos os conceitos vacilantemente expostos. Que outros definam o lírico gentilíssimo da “Rosa, rosa de Amor”, a inspiração piedosa e casta do “Pequenino Morto”, ou os sonetos, onde, tão antigos temas se remoçam.
De mim, satisfaço-me com haver tentado definir o grande poeta naturalista, que nobilita o meu tempo e a minha terra.
Euclides da Cunha
Rio — 30 de Setembro de 1908.
VELHO TEMA
Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.
O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.
Essa felicidade que supomos,
Arvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
Existe, sim: mas nós não n’a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
Eu cantarei de amor tão fortemente
Com tal celeuma e com tamanhos brados
Que afinal teus ouvidos, dominados,
Hão de à força escutar quanto eu sustente.
Quero que meu amor se te apresente
— Não andrajoso e mendigando agrados,
Mas tal como é: risonho e sem cuidados,
Muito de altivo, um tanto de insolente.
Nem ele mais a desejar se atreve
Do que merece: eu te amo, e o meu desejo
Apenas cobra um bem que se me deve.
Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;
E vou de olhos enxutos e alma leve
À galharda conquista do teu beijo.
Belas, airosas, pálidas, altivas,
Como tu mesma, outras mulheres vejo:
São rainhas, e segue-as num cortejo
Extensa multidão de almas cativas.
Tem a alvura do mármore: lascivas
Formas; os lábios feitos para o beijo;
E indiferente e desdenhoso as vejo
Belas, airosas, pálidas, altivas...
Por quê? Porque lhes falta a todas elas,
Mesmo às que são mais puras e mais belas,
Um detalhe sutil, um quase nada:
Falta-lhes a paixão que em mim te exalta
E entre os encantos de que brilham, falta
O vago encanto da mulher amada.
Eu não espero o bem que mais desejo:
Sou condenado, e disso convencido;
Vossas palavras, com que sou punido,
São penas e verdades de sobejo.
O que dizeis é mal muito sabido,
Pois nem se esconde nem procura ensejo,
E anda à vista naquilo que mais vejo:
Em vosso olhar, severo ou distraído.
Tudo quanto afirmais eu mesmo alego:
Ao meu amor desamparado e triste
Toda a esperança de alcançar-vos nego.
Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste;
Conto-lhe o mal que vejo, e ele que é cego
Põe-se a sonhar o bem que não existe.
“Alma serena e casta, que eu persigo
Com o meu sonho de amor e de pecado,
Abençoado seja, abençoado
O rigor que te salva e é meu castigo.
Assim desvies sempre do meu lado
Os teus olhos; nem ouças o que eu digo;
E assim possa morrer, morrer comigo,
Este amor criminoso e condenado.
Sê sempre pura! Eu com denodo enjeito
Uma ventura obtida com teu dano,
Bem meu que de teus males fosse feito.”
Assim penso, assim quero, assim me engano.
Como se não sentisse que em meu peito
Pulsa o covarde coração humano.
“Lembra”! diz-me o passado: “Eu sou a aurora
E a primavera, o olhar que se enamora
De quanto vê pelo caminho em flor;
Para o teu coração cansado e triste
É recordar-me — o único bem que existe...
Eu sou a mocidade, eu sou o amor.”
“Vive!” diz-me o presente. “Alma suicida,
Louca, não peças à árvore da vida
Mais que os amargos frutos que ela tem;
Deixa a saudade e foge da esperança,
Faze do pouco que teu braço alcança
O teu mesquinho, o teu único bem.”
“Sonha!” diz-me o futuro: “o sonho é tudo,
Eu sobre as tuas pálpebras sacudo
A poeira da ilusão!... sonha, e bendiz!
Eu sou o único bem por que te engano,
E o desgraçado coração humano
Só com o que não possui é que é feliz.”
Eu ouço os três, e calo-me: desisto
De quanto me prometem, porque nisto
Todos se enganam, todos, menos eu:
Beijo dos lábios da mulher amada,
O único bem és tu! Nem há mais nada...
E tu és de outro, e nunca serás meu!
FANTASIAS DO LUAR
Entre nuvens esgarçadas
No céu pedrento flutua
A triste, a pálida Lua
Das baladas.
Frouxo luar sugestivo
Contagia a natureza
Como de um ar de tristeza
Sem motivo
Tem vagos tons de miragem,
De um desenho sem sentido,
O conjunto descosido
Da paisagem.
A apagada fantasia
Do colorido — parece
De um pintor que padecesse
De miopia.
Tudo, tudo quanto existe
Extravaga, e se afigura
Tomado de uma loucura
Mansa e triste.
O longo perfil do Monte —
Como um rio de água verde —
Corre ondulando, e se perde
No horizonte.
E sobre essa imaginária
Turva corrente, projeta
A alva igreja a sua seta
Solitária.
Assim, de um ermo barranco
A garça alonga no rio
O seu vulto, muito branco,
Muito esguio.
Sonha, imóvel... E acredito
Que de súbito desperte
Aquele fantasma inerte
De granito.
Dorme talvez... Qualquer cousa
No seu sono se disfarça
De asa encolhida de garça
Que repousa;
E eu cuido vê-la, a cada hora,
Animar-se; e de repente
Subir sossegadamente
Céu afora...
*
Há um lirismo disperso
Nos ares... O próprio vento
Esse bronco, esse praguento,
Fala em verso;
Voz forte, bruscas maneiras,
Pela boca pondo os bofes,
O vento improvisa estrofes
Condoreiras.
Beijam-se as frondes, arrulam,
Trocam afagos, promessas...
E as árvores secas, essas
Gesticulam.
Gesticulam, como espectros,
No vácuo, tentando abraços
Com seus descarnados braços
De dez metros.
Algum trovador de esquina
Canta a paixão que o devora;
E a sua voz geme, chora,
Desafina.
Ao longe um eco repete
O canto, frase por frase,
Em tom abrandado, quase
Sem falsete.
Tem o aspecto apalaçado
Da pedra cara e maciça
O muro, em simples caliça,
De um sobrado.
Nem castelã falta a esse
Castelo: na luz da Lua,
Branca, airosa, seminua,
Resplandece,
Numa pose pitoresca
De romance ou de aquarela,
A burguesa que à janela
Goza a fresca.
*
O olhar, o ouvido, a alma inteira
Vê, ouve, acredita, sente
Quanto sonhe, quanto invente,
Quanto queira,
Quando, oh lua das baladas,
Forjas visões indistintas
Com esse aguado das tintas
Estragadas.
A INVENÇÃO DO DIABO
Deus entregando ao Diabo a metade do mundo,
Deu-lhe a parte pior, como era de razão;
E, para arrecadar seu patrimônio, o Imundo
Foi forçado a varrer todo o cisco do chão.
Tomando para si todo o imenso tesouro
Da Bondade e da Luz, do Amor e da Harmonia,
Pôde o Senhor fazer esbanjamentos de ouro
Nas estrelas da noite e no esplendor do dia.
Pôde esparzir na areia as pérolas do orvalho,
Marchetar de rubis a asa de um beija-flor,
Fazer a primavera — e pôr em cada galho
O gorjeio de uma ave e o riso de uma flor...
A Satanás, porém, coube em partilha a treva,
O ódio como prazer, como covil um poço;
E ele lá no seu reino escuro a vida leva
De um cão magro a que dão muita pancada e um osso.
E: enquanto a mão de Deus, abrindo-se, semeia
Astros de ouro no céu, messes de ouro no pó,
Satanás, furioso, a mão sacode, cheia
De lepra e maldição como o punho de Job.
Só uma vez Satã respirou satisfeito,
E arregaçou-lhe o beiço um pérfido sorriso,
Quando um dia, ao sair do seu covil estreito,
De repente se achou dentro do paraíso.
A primeira impressão que teve foi de inveja:
Daquele estranho quadro o imprevisto esplendor
Só lhe pôde arrancar à boca malfazeja
Uivos de cão ferido, imprecações de dor.
Mas de repente, como o corisco clareia
O tenebroso céu nas borrascas de agosto,
Uma ideia triunfante, uma sinistra ideia
Fuzilou-lhe no olhar e iluminou-lhe o rosto.
Sobre um macio chão todo em musgos e rosas,
Eva, formosa e nua, adormecera ao luar.
E sobre a alva nudez dessas formas graciosas
Satã deixou cair um desdenhoso olhar...
Mas num sonho talvez de cousas ignoradas,
Num desejo sem alvo, imperfeito e indeciso,
Eva os lábios abriu, — e abriram-se, orvalhadas
De um suspiro de amor, as rosas de um sorriso.
Espantado, Satã viu que esse mármore era
Animado e gentil, ardente e encantador;
Como um resumo viu de toda a primavera
Na frescura sem par daquela boca em flor.
E foi somente então que o Príncipe da Treva
Imaginou o Amor furioso e desgrenhado,
E resolveu fazer dos róseos lábios de Eva
O cálix consagrado às missas do Pecado.
Lábios feitos de mel, de rosas ao sereno,
De céu do amanhecer franjado em rosicler...
Entreabriu-os Satã; e enchendo-os de veneno,
Sorriu. Tinha inventado o beijo da mulher.
FUGINDO AO CATIVEIRO
I
Horas mortas. Inverno. Em plena mata. Em plena
Serra do Mar.
Em cima, ao longe, alta e serena,
A ampla curva do céu das noites de geada:
Como a palpitação vagamente azulada
De uma poeira de estrelas...
Negra, imensa, disforme,
Enegrecendo a noite, a desdobrar-se pelas
Amplidões do horizonte, a cordilheira dorme.
Como um sonho febril no seu sono ofegante,
Na sombra em confusão do mato farfalhante,
Tumultuando, o chão corre às soltas, sem rumo:
Trepa agora alcantis por escarpas a prumo,
Erriça-se em calhaus, bruscos como arrepios;
Mais repousado, além levemente se enruga
Na crespa ondulação de cômoros macios;
Resvala num declive; e logo, como em fuga
Precípite, através da escuridão noturna,
Despenha-se de chofre ao vácuo de uma furna.
Do fundo dos grotões outra vez se subleva,
Surge, recai, ressurge... E, assim, como em torrente
Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva
Despedaçadamente e indefinidamente.
Muge na sombra a voz rouca das cachoeiras.
Rajadas sorrateiras
De um vento preguiçoso arfam de quando em quando
Como um vasto motim que passa sussurrando:
E em cada árvore altiva, e em cada humilde arbusto,
Há contorções de raiva ou frêmitos de susto.
A mata é tropical: basta, quase maciça
De tão cerrada. Ao pé do tronco dominante,
Que, imperturbavelmente imóvel, inteiriça
Sob a rija galhada o torso de gigante,
— Uma vegetação turbulenta e bravia
Rasteja, alastra, fura, enrosca-se, porfia:
Moitas de craguatás agressivos; rasteiras
Trapoerabas tramando o chão todo; touceiras
De brejaúva, em riste as flechas ouriçadas
De espinhos; e por tudo, e em tudo emaranhadas,
As trepadeiras, em redouças balouçando
Hastes vergadas, galho a galho acorrentando
Arvores, afogando arbustos, brutalmente
Enlaçando à jiçara o talhe adolescente.
Cem espécies formando a trama de uma sebe,
Atulhando o desvão de dois troncos; a plebe
Da floresta, oprimida e em perpétuo levante...
Acesa num furor de seiva transbordante,
Toda essa multidão desgrenhada — fundida
Como a conflagração de cem tribos selvagens
Em batalha — a agitar cem formas de folhagens
Disputa-se o ar, o chão, o orvalho, o espaço, a vida.
Na confusão da noite, a confusão do mato
Gera alucinações de um pavor insensato,
Aguça o ouvido ansioso e a visão quase extinta:
Lembra — e talvez abafe — urros de onça faminta
A mal ouvida voz da trêmula cascata
Que salta e foge e vai rolando águas de prata.
Rugem sinistramente as moitas sussurrantes.
Acoutam-se traições de abismo numa alfombra.
Penedos traçam no ar figuras de gigantes.
Cada ruído ameaça, e cada vulto assombra.
Uns tardos caminhantes
Sinistros, meio nus, esboçados na sombra,
Passam, como visões vagas de um pesadelo.
São cativos fugindo ao cativeiro. O bando
É numeroso. Vêm de longe, no atropelo
Da fuga perseguida e cansada. Hesitando,
Em recuos de susto e avançadas afoitas,
Rompendo o mato e a noite, investindo as ladeiras,
Improvisam o rumo ao acaso das moitas.
Vão arrastando os pés chagados de frieiras...
De furna em furna a Serra, imensa, se desdobra;
De sombra em sombra a noite, infinda, se prolonga;
E flexuosa, em vaivéns, como de dobra em dobra,
A longa fila ondula e serpenteia, e a longa
Marcha através da noite e das furnas avança...
Vão andrajosos, vão famintos, vão morrendo.
Incita-os o terror, alenta-os a esperança:
Fica-lhes para trás, para longe, o tremendo
Cativeiro... E através desses grotões por onde
Se arrastam, do sertão que os esmaga e os esconde,
Da vasta escuridão que os cega e que os ampara,
Do mato que obsta e apaga os seus passos furtivos,
Seguem, almas de hebreus, rumo do Jabaquara
— A Canaã dos cativos.
Vão calados, poupando o fôlego. De quando
Em quando — fio d’água humilde murmurando
As tristezas de um lago imenso — algum gemido,
Um grito de mulher, um choro de criança,
Conta uma nova dor em corpo já dorido,
Um bruxuleio mais mortiço da esperança,
A rajada mais fria arrepiando a floresta
E a pele nua; o espinho entrando à carne; a aresta
De um seixo apunhalando o pé já todo em sangue;
Uma exacerbação nova da fome velha,
A tortura da marcha imposta ao corpo exangue,
O joelho exausto que, contra a vontade, ajoelha...
E a longa fila segue: a passo, vagarosa,
Galga, de fraga em fraga, a montanha fragosa,
Bem mais fragosa, bem mais alta que o Calvário...
Um, tropeçando, arrima o pai octogenário;
Os mais valentes dão apoio aos mais franzinos;
E mães, a agonizar de fome e de cansaço,
Levam com o coração mais do que com o braço
Os filhos pequeninos.
II
Ei-lo, por fim, o termo desejado
Da subida: a montanha avulta e cresce
De um vale escuro ao céu todo estrelado;
E o seu cume de súbito aparece
De um resplendor de estrelas aureolado.
Mas ai! Tão longe ainda!... E de permeio
A vastidão da sombra sem caminhos,
Um fundo vale, tenebroso e feio,
E o mato, o mato das barrocas, cheio
De fantasmas, de estrépitos, de espinhos.
Tão longe ainda!... E os peitos arquejantes,
E as forças e a coragem sucumbindo...
Estacando, aterrados, por instantes
Pensam que a morte hão de encontrar bem antes
Do termo desse itinerário infindo...
Tiritando, a chorar, uma criança
Diz com voz débil: “Mãe, faz tanto frio!...”
E a mãe os olhos desvairados lança
Em torno, e vê apenas o sombrio
Manto de folhas que o tufão balança...
“Mãe, tenho fome!” a criancinha geme;
E ela, dos trapos arrancando o seio,
Põe-lho na boca ansiosa, aperta e espreme...
Árido e seco!... E do caminho em meio,
Ela, aterrada e muda, estaca e treme.
Vai-lhe morrer, morrer nos próprios braços,
Morrer de fome, o filho bem querido;
E ela, arrastando para longe os passos,
O amado corpo deixará, perdido
Para os seus beijos, para os seus abraços...
Esse cadáver pequenino, e o riso
Murcho no lábio, e os olhos apagados,
Toda essa vida morta de improviso,
Hão de ficar no chão, abandonados
À inclemência dos sóis e do granizo;
Esse entezinho débil e medroso,
Que ao mais leve rumor se assusta e busca
O asilo de seu seio carinhoso,
Há de ficar sozinho; e, em torno, a brusca
Voz do vento ululante e cavernoso.
E, em torno, a vasta noite solitária,
Cheia de sombras, cheia de pavores,
Onde passa a visão errante e vária
Dos lobisomens ameaçadores
Em desfilada solta e tumultuária...
Desde a cabeça aos pés, toda estremece;
Falta-lhe a força, a vista se lhe turva,
Toda a coragem na alma lhe esmorece.
E, afastando-se, ao longe, numa curva
O bando esgueira-se, e desaparece...
Ficam sós, ela e o filho, agonizando,
Ele a morrer de fome, ela de medo.
Ulula o furacão de quando em quando,
E sacudindo os ramos e o folhedo
Movem-se as árvores gesticulando.
Ela ergue os olhos para o céu distante
E pede ao céu que descortine a aurora:
Dorme embuçado em sombras o levante,
Mal bruxuleia pela noite fora
Das estrelas o brilho palpitante.
Tenta erguer-se, e recai; soluça e brada,
E apenas o eco lhe responde ao grito;
Os olhos fecha para não ver nada,
E tudo vê com o coração aflito,
E tudo vê com a alma alucinada.
Dentro se lhe revolta a carne; explode
O instinto bruto, e quebra-lhe a vontade:
Mães, vosso grande amor, que tanto pode,
Pôde menos que a indômita ansiedade
Em que o terror os músculos sacode!
Ela, apertando o filho estreitamente,
Beija-lhe os olhos úmidos, a boca.
E desvairada, em pranto, ébria e tremente,
Arrancando-o do seio, de repente
Larga-o no chão e foge como louca.
III
Aponta a madrugada:
Da turva noite esgarça o úmido véu,
E espraia-se risonha, alvoroçada,
Rosando os morros e dourando o céu.
A caravana trôpega e ansiosa
Chega ao tope da Serra...
O olhar dos fugitivos
Descansa enfim na terra milagrosa
Na abençoada terra
Onde não há cativos.
Em baixo da montanha, logo adiante,
Quase a seus pés, uma planície imensa,
Clara, risonha, aberta, verdejante:
E ao fundo do horizonte, ao fim da extensa
Macia várzea que se lhes depara
Ali, próxima, em frente,
Esfumadas na luz do sol nascente
As colinas azuis do Jabaquara...
O dia de ser livre, tão sonhado
Lá do fundo do escuro cativeiro,
Amanhece por fim, leve e dourado.
Enchendo o céu inteiro.
Uma explosão de jubilo rebenta
Desses peitos que arquejam, dessas bocas
Famintas, dessa turba macilenta:
Um burburinho de palavras loucas,
De frases soltas que ninguém escuta
Na vasta solidão se ergue e se espalha,
E em pleno seio da floresta bruta
Canta vitória a meio da batalha.
Seguindo a turba gárrula e travessa
Que se alvoroça e canta e salta e ri-se,
Um coitado, com a trêmula cabeça
Toda a alvejar das neves da velhice,
Tardo, trôpego, só, desamparado,
Chega afinal, exsurge à superfície
Do alto cimo; repousa, consolado,
Longamente, nos longes da planície
O olhar quase apagado;
Distingue-a mal; duvida; resmungando,
Fita-a... Compreende-a pouco a pouco: vê-a
Anunciando próxima, esboçando
— No chão que brilha de um fulgor de areia,
Num verde claro de ervaçal que ondeia —
A aparição da Terra Prometida...
Todo trêmulo, ajoelha; e ajoelhado,
De mãos postas, nos olhos a alma e a vida,
Ele, o mesquinho e o bem-aventurado,
Adora o Céu nessa visão terrena...
E de mãos postas sempre, extasiado,
Murmura, reza esta oração serena
Como um tosco resumo do Evangelho:
“Foi Deus Nosso Senhor que teve pena
De um pobre negro velho...”
Seguem. Começa a íngreme descida.
Descem. E recomeça
A peregrinação entontecida
No labirinto da floresta espessa.
Sob o orvalho das folhas gotejantes,
Entre as moitas cerradas de espinheiros,
Andrajosos, famintos, triunfantes,
Descem barrancos e despenhadeiros.
Descem rindo, a cantar. Seguem felizes
Sem reparar que os pés lhes vão sangrando
Pelos espinhos e pelas raízes;
Sem reparar que atrás, pelo caminho
Por onde fogem como alegre bando
De passarinhos da gaiola escapo
— Fica um pouco de trapo em cada espinho
E uma gota de sangue em cada trapo.
Descem rindo e cantando, em vozeria
E em confusão. Toda a floresta, cheia
Do murmúrio das fontes, da alegria
Deles, da voz dos pássaros, gorjeia.
Tudo é festa. Severos e calados,
Os velhos troncos, plácidos ermitas,
Os próprios troncos velhos, remoçados,
Riem no riso em flor das parasitas.
Varando acaso às árvores a sombra
Da folhagem que à brisa arfa e revoa,
Na verde ondulação da úmida alfombra
O ouro leve do sol bubuia à toa;
A água das cachoeiras, clara e pura,
Salta de pedra em pedra, aos solavancos;
E a flor de S. João se dependura
Festivamente à beira dos barrancos.
Vão alegres, ruidosos. Mas no meio
Dessa alegria palpitante e louca,
Que transborda do seio
E transbordada canta e ri na boca,
Uma mulher, absorta, acabrunhada,
Segue parando a cada passo, e a cada
Instante os olhos para traz volvendo:
De além, do fundo dessas selvas brutas,
Chama-a, seu nome em lágrimas gemendo,
Uma vozinha ansiosa e suplicante...
Mãe, onde geme que tão bem o escutas
Teu filho agonizante?
IV
De repente, como um agouro e uma ameaça,
Um alarido de vozes estranhas passa
Na rajada do vento...
Estacam.
Como um bando
De ariscos caititus farejando a matilha,
Imóveis, alongado o pescoço, arquejando,
Presa a respiração, o olhar em fogo, em rilha
Os dentes, dilatada a narina, cheirando
A aragem, escutando o silêncio, espreitando
A solidão; assim, num alarma instintivo,
Estaca e põe-se alerta o bando fugitivo.
Nova rajada vem, novo alarido passa...
Como, topando o rastro inda fresco da caça,
Uiva a matilha enquanto inquire o chão agreste,
E de repente, em fúria, alvoroçada investe
E vai correndo e vai latindo de mistura;
Rosna ao dar-lhes na pista a escolta que os procura,
E morro abaixo vem ladrando-lhes no encalço.
Grita e avança em triunfo a soldadesca ufana.
E os frangalhos ao vento, em sangue o pé descalço,
Alcateia usurpando a forma e a face humana,
Almas em desespero arfando em corpos gastos,
Mães aflitas levando os filhinhos de rastos,
Homens com o duro rosto em lágrimas, velhinhos
Esfarrapando as mãos a tatear nos espinhos;
Toda essa aluvião de caça perseguida
Por um clamor de fúria e um tropel de batida,
Foge... Rompendo o mato e rolando a montanha,
Foge... E, moitas a dentro e barrocais afora,
Arrasta-se, tropeça, esbarra, se emaranha,
Arqueja, hesita, afrouxa, e desanima, e chora...
Param.
Perto, bramindo, a escolta o passo estuga.
Os fugitivos, nesse aproximar da escolta
Sentem que vai chegando o epílogo da fuga:
A gargalheira, a algema, as angústias da volta...
Além, fulge na luz da manhã leve e clara,
O contorno ondulante e azul do Jabaquara.
Adeus, terra bendita! Adeus, sonho apagado
De ser livre! É preciso acordar, e acordado
Ver-te ainda, e dizer-te um adeus derradeiro,
E voltar, para longe e para o cativeiro.
Sobre eles, novamente, uma funérea noite
Cai, para sempre...
Como a trôpega boiada,
Que, abrasada de sede e tangida do açoite,
Se arrasta pela areia adusta de uma estrada;
Volverão a arrastar-se, humildes e tristonhos,
Tangidos do azorrague e abrasados de sonhos,
Pelo deserto areal desse caminho estreito;
A vida partilhada entre a senzala e o eito...
Agrupam-se, vencidos,
A tremer, escutando o tropel e os rugidos
Da escolta cada vez mais em fúria e mais perto.
Nesse magote vil de negros maltrapilhos
Mais de um olhar, fitando o vasto céu deserto,
Ingenuamente exprobra o Pai que enjeita os filhos...
Destaca-se do grupo um fugitivo. Lança
Em torno um longo olhar tranquilo, de esperança,
E diz aos companheiros:
“Fugi, correi, saltai pelos despenhadeiros;
A várzea está lá embaixo, o Jabaquara é perto...
Deixai-me aqui sozinho.
Eu vou morrer, decerto...
Vou morrer combatendo e trancando o caminho.
A morte assim me agrada:
Eu tinha de voltar p’ra conservar-me vivo...
E é melhor acabar na ponta de uma espada
Do que viver cativo.”
E enquanto a caravana
Desanda pelo morro atropeladamente,
Ele, torvo, figura humilde e soberana,
Fica, e a pé firme espera o inimigo iminente.
Hercules negro! Corre, abrasa-lhe nas veias
Sangue de algum heroico africano selvagem,
Acostumado à guerra, a devastar aldeias,
A cantar e a sorrir no meio da carnagem,
A desprezar a morte espalhando-a às mãos cheias...
Não pôde a escravidão domar-lhe a índole forte,
E vergar-lhe a altivez, e ajoelhá-lo diante
Do carrasco e da algema:
Sorri para o suplício e a fito encara a morte
Sem que lhe o braço trema,
Sem que lhe ensombre o olhar o medo suplicante.
Erguendo o braço, ele ergue a foice: a foice volta,
E rola sobre a terra uma cabeça solta.
Sobre ele vem cruzar-se o gume das espadas...
“Ah, prendê-lo, jamais!” respondem as foiçadas
Turbilhonando no ar, e ferindo, e matando.
De lado a lado o sangue espirra a jorros...
Ele, ágil, possante, ousado, heroico, formidando,
Faz frente: um contra dez, defende-se e repele.
E não se entrega, e não recua, e não fraqueja.
Tudo nele, alma e corpo ajustados, peleja:
O braço luta, o olhar ameaça e desafia,
A coragem resiste, a agilidade vence.
E, coriscando no ar, a foice rodopia.
Afinal um soldado, ébrio de covardia,
Recua; vai fugir... Recua mais; detém-se:
Fora da luta, sente o gosto da chacina;
E vagarosamente alçando a carabina,
Visa, desfecha.
O negro abrira um passo à frente,
Erguera a foice, armava um golpe...
De repente
Estremece-lhe todo o corpo fulminado.
Cai-lhe das mãos a foice, inerte, para um lado,
Pende-lhe, inerte, o braço. Impotente, indefeso,
Ilumina-lhe ainda a face decomposta
Um derradeiro olhar de afronta e de desprezo.
Como enxame em furor de vespas assanhadas,
Assanham-se-lhe em cima os golpes sem resposta,
E retalham-no à solta os gumes das espadas...
E retalhado, exausto, o lutador vencido
Todo flameja em sangue e expira num rugido.
CANTIGAS PRAIANAS
É tão pouco o que desejo,
Mas é tudo o que me falta,
Só porque a flor do teu beijo
Pende de rama tão alta.
Ninguém sabe o que suporta
O mar que chora na areia
Por essa tristeza morta
Das noites de Lua cheia.
Em baixo, o pranto das águas,
Em cima, a Lua serena.
E eu, pensando em minhas mágoas,
Ouço o mar, e tenho pena.
Meu amor é todo feito
De neblina tão cerrada,
Que por mais que em roda espreito
Só te vejo a ti, mais nada.
Ai, minha sina está lida,
Meu destino está traçado:
Amar, amar toda a vida,
Morrer de não ser amado.
Vai, branca e fugidia,
A nuvem pelo ar:
Roça de leve a Lua,
Embebe-se em luar.
E toda resplandece
No brilho do luar,
Mas pouco a pouco passa
E perde-se no ar.
Minha alma na tua alma
— Nuvem que trouxe o vento —
Passou por um instante,
Roçou por um momento.
E toda luminosa
Brilhou. Foi um momento:
Passou como uma nuvem
Levada pelo vento.
Eu refleti apenas
Um brilho que era teu;
Passei, e tu ficaste,
Ficou contigo o céu.
Sonhei. Que belo sonho
Vivido em pleno céu!
Mas, ai! sonhei apenas
Um sonho todo teu.
A vida era uma aurora,
E a tua voz suave
Cantava em meu ouvido
Com um gorjeio de ave.
Mentias. E a mentira
Era um gorjeio de ave.
Morresse eu enganado
De engano tão suave!
Que angústias na lembrança
De tudo que perdi!
Ai, beijos desse lábio
Que hoje nem me sorri!
Vestígio derradeiro
Que me ficou de ti,
Bendita esta saudade
De tudo que perdi!
Sim, eu bendigo em pranto
O amor abandonado
Que foi um dia o sonho
De amar e ser amado.
Quem ama sempre, um dia
Deixa de ser amado:
Somente o amor que foge
Não é abandonado.
Que resta em nós agora
Da primavera em flor?
Em ti, o esquecimento,
Em mim, o meu amor.
Amor desfeito em mágoa
Mas abençoado amor,
Que foi, um dia ao menos,
A primavera em flor.
Maria!. Nome tão doce,
Nome de santa. Parece
Que o digo como se fosse
O resumo de uma prece.
Tem tão mística doçura.
Abre asas à fantasia:
“Maria!” — o lábio murmura,
E a alma ecoa: “Ave, Maria!”
Mal sabes tu que desprezas
Os olhos com que te sigo
Que meus olhares são rezas
Ditas baixinho, comigo.
Mal sabes, santa Maria,
Que em tudo que sonho e penso
Teu nome paira e irradia
Como entre nuvens de incenso.
Maria, nome tão doce.
É o teu nome. Parece
Que o digo como se fosse
O resumo de uma prece.
Murmuro-o devotamente:
E a essa oração, se levanta
No meu êxtase de crente
A tua imagem de santa.
E então, alma e olhar submersos
Num clarão de alampadário,
Vou desfiando estes versos
Como as contas de um rosário.
Nem só o olhar dos olhos de quem ama
Revela o amor que se supõe discreto,
E o mais oculto, o mais medroso afeto
Ingenuamente à luz do sol proclama.
Também a voz, indiscrição bendita,
Trai o amor sob a frase indiferente,
E debalde a palavra finge e mente:
Na voz que treme o coração palpita.
Desvias dos meus olhos infelizes
O teu olhar; dizes que não. Loucura!
Em tua voz que trêmula murmura
Ouço tudo que sentes e não dizes.
Do que sofro sem queixar-me
Sois causa sem o supor:
Matais-me, e sois inocente,
Que eu expio unicamente
O crime do meu amor.
Crime, sim, e grave crime,
Crime, e crime sem perdão:
Ai, eu sou como um suicida
Que em sonhos esbanja a vida
Sabendo que sonha em vão.
PEQUENINO MORTO
Tange o sino, tange, numa vez de choro,
Numa voz de choro, tão desconsolado.
No caixão dourado, como em berço de ouro,
Pequenino, levam-te dormindo. Acorda!
Olha que te levam para o mesmo lado
De onde o sino tange numa voz de choro.
Pequenino, acorda!
Como o sono apaga o teu olhar inerte
Sob a luz da tarde tão macia e grata!
Pequenino, é pena que não possas ver-te.
Como vais bonito, de vestido novo
Todo azul celeste com debruns de prata!
Pequenino, acorda! E gostarás de ver-te
De vestido novo.
Como aquela imagem de Jesus, tão lindo
Que até vai levado em cima dos andores,
Sobre a fronte loura um resplendor fulgindo,
— Com a grinalda feita de botões de rosas
Trazes na cabeça um resplendor de flores.
Pequenino, acorda! E te acharás tão lindo
Florescido em rosas!
Tange o sino, tange, numa voz de choro,
Numa voz de choro, tão desconsolado.
No caixão dourado, como em berço de ouro,
Pequenino levam-te dormindo. Acorda!
Olha que te levam para o mesmo lado
De onde o sino tange numa voz de choro.
Pequenino, acorda!
Que caminho triste, e que viagem! Alas
De ciprestes negros a gemer no vento;
Tanta boca aberta de famintas valas
A pedir que as fartem, a esperar que as encham.
Pequenino, acorda! Recupera o alento,
Foge da cobiça dessas fundas valas
A pedir que as encham.
Vai chegando a hora, vai chegando a hora
Em que a mãe ao seio chama o filho... A espaços,
Badalando, o sino diz adeus, e chora
Na melancolia do cair da noite;
Por aqui, só cruzes com seus magros braços
Que jamais se fecham, hirtos sempre... É a hora
Do cair da noite.
Pela Ave Maria, como procuravas
Tua mãe! Num eco de sua voz piedosa,
Que suaves cousas que tu murmuravas,
De mãozinhas postas, a rezar com ela.
Pequenino, em casa, tua mãe saudosa
Reza a sós. É a hora quando a procuravas.
Vai rezar com ela!
E depois. Teu quarto era tão lindo! Havia
Na janela jarras onde abriam rosas;
E no meio a cama, toda alvor, macia,
De lençóis de linho no colchão de penas.
Que acordar alegre nas manhãs cheirosas!
Que dormir suave, pela noite fria,
No colchão de penas.
Tange o sino, tange, numa voz de choro,
Numa voz de choro, tão desconsolado.
No caixão dourado, como em berço de ouro,
Pequenino, levam-te dormindo. Acorda!
Olha que te levam para o mesmo lado
De onde o sino tange numa voz de choro.
Pequenino, acorda!
Porque estacam todos dessa cova à beira?
Que é que diz o padre numa língua estranha?
Porque assim te entregam a essa mão grosseira
Que te agarra e leva para a cova funda?
Porque assim cada homem um punhado apanha
De caliça e espalha-a, debruçado à beira
Dessa cova funda?
Vais ficar sozinho no caixão fechado.
Não será bastante para que te guarde?
Para que essa terra que jazia ao lado
Pouco a pouco rola, vai desmoronando?
Pequenino, acorda! — Pequenino! É tarde!
Sobre ti cai todo esse montão que ao lado
Vai desmoronando.
Eis fechada a cova. Lá ficaste. A enorme
Noite sem aurora todo amortalhou-te.
Nem caminho deixam para quem lá dorme,
Para quem lá fica e que não volta nunca.
Tão sozinho sempre por tamanha noite!
Pequenino, dorme! Pequenino, dorme.
Nem acordes nunca!
PALAVRAS AO MAR
Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo erriça o pelo!
Junto da espuma com que as praias bordas,
Pelo marulho acalentada, à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam
Na beirada das ondas — a minha alma
Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio.
Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras:
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro;
E as leves garças, como folhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o voo à tona das espumas.
É o tempo em que adormeces
Ao sol que abrasa: a cólera espumante,
Que estoura e brame sacudindo os ares,
Não os sacode mais, nem brame e estoura;
Apenas se ouve, tímido e plangente,
O teu murmúrio; e pelo alvor das praias,
Langue, numa carícia de amoroso,
As largas ondas marulhando estendes.
Ah! vem daí por certo
A voz que escuto em mim, trêmula e triste,
Este marulho que me canta na alma,
E que a alma jorra desmaiado em versos;
De ti, de ti unicamente, aquela
Canção de amor sentida e murmurante
Que eu vim cantando, sem saber se a ouviam,
Pela manhã de sol dos meus vinte anos.
Oh velho condenado
Ao cárcere das rochas que te cingem!
Em vão levantas para o céu distante
Os borrifos das ondas desgrenhadas.
Debalde! O céu, cheio de sol se é dia,
Palpitante de estrelas quando é noite,
Paira, longínquo e indiferente, acima
Da tua solidão, dos teus clamores.
Condenado e insubmisso
Como tu mesmo, eu sou como tu mesmo
Uma alma sobre a qual o céu resplende
— Longínquo céu — de um esplendor distante.
Debalde, oh mar que em ondas te arrepelas,
Meu tumultuoso coração revolto
Levanta para o céu, como borrifos,
Toda a poeira de ouro dos meus sonhos.
Sei que a ventura existe,
Sonho-a; sonhando a vejo, luminosa,
Como dentro da noite amortalhado
Vês longe o claro bando das estrelas;
Em vão tento alcançá-la, e as curtas asas
Da alma entreabrindo, subo por instantes.
Oh mar! A minha vida é como as praias,
E o sonho morre como as ondas voltam!
*
Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo erriça o pelo!
Ouço-te às vezes revoltado e brusco,
Escondido, fantástico, atirando
Pela sombra das noites sem estrelas
A blasfêmia colérica das ondas...
Também eu ergo às vezes
Imprecações, clamores e blasfêmias
Contra essa mão desconhecida e vaga
Que traçou meu destino. Crime absurdo
O crime de nascer! Foi o meu crime.
E eu expio-o vivendo, devorado
Por essa angústia do meu sonho inútil.
Maldita a vida que promete e falta,
Que mostra o céu prendendo-nos à terra,
E, dando as asas, não permite o voo!
*
Ah! cavassem-te embora
O túmulo em que vives — entre as mesmas
Rochas nuas que os flancos te espedaçam,
Entre as nuas areias que te cingem.
Mas fosses morto, morto para o sonho,
Morto para o desejo de ar e espaço,
E não pairasse, corno um bem ausente,
Todo o infinito em cima de teu túmulo!
Fosses tu como um lago,
Como um lago perdido entre montanhas:
Por só paisagem — áridas escarpas,
Uma nesga de céu como horizonte.
E nada mais! Nem visses nem sentisses
Aberto sobre ti de lado a lado
Todo o universo deslumbrante — perto
Do teu desejo e além do teu alcance!
Nem visses nem sentisses
A tua solidão, sentindo e vendo
A larga terra engalanada em pompas
Que te provocam para repelir-te;
Nem buscando a ventura que arfa em roda,
A onda elevasses para a ver tombando,
— Beijo que se desfaz sem ter vivido,
Triste flor que já brota desfolhada.
*
Mar, belo mar selvagem!
O olhar que te olha só te vê rolando
A esmeralda das ondas, debruada
Da leve fímbria de irisada espuma.
Eu adivinho mais: eu sinto, ou sonho
Um coração chagado de desejos
Latejando, batendo, restrugindo
Pelos fundos abismos do teu peito.
Ah, se o olhar descobrisse
Quanto esse lençol de águas e de espumas
Cobre, oculta, amortalha! A alma dos homens
Apiedada entendera os teus rugidos,
Os teus gritos de cólera insubmissa,
Os bramidos de angústia e de revolta
De tanto brilho condenado à sombra,
De tanta vida condenada à morte!
*
Ninguém entenda, embora,
Esse vago clamor, marulho ou versos,
Que sai da tua solidão nas praias,
Que sai da minha solidão na vida.
Que importa? Vibre no ar, acorde os ecos
E embale-nos a nós que o murmuramos.
Versos, marulho! amargos confidentes
Do mesmo sonho que sonhamos ambos!
SONHO PÓSTUMO
I
Poupem-me, quando morto, à sepultura: odeio
A cova, escura e fria.
Ah! deixem-me acabar alegremente, em meio
Da luz, em pleno dia.
O meu último sono eu quero assim dormi-lo:
— Num largo descampado,
Tendo em cima o esplendor do vasto céu tranquilo.
E a primavera ao lado.
Bailem sobre o meu corpo asas trêmulas, asas
Palpitando de leve,
De insetos de ouro e azul, ou rubros como brasas,
Ou claros como neve.
De entre moitas em flor, oscilantes na aragem,
Úmidas e cheirosas,
Espalhando em redor frescuras de folhagem,
E perfume de rosas,
Subam, jovializando o ar, canções suaves
— A música sonora
Em que parece rir a alegria das aves,
Encantadas da aurora.
E cada flor que um galho acaso dependura
À beira dos caminhos
Entreabra o seio ao sol, às brisas, à doçura
De todos os carinhos.
Passe em redor de mim um frêmito de gozo
E um calor de desejo,
E soe o farfalhar das árvores, moroso
Como o rumor de um beijo.
Palpite a natureza inteira, bela e amante,
Voluptuosa e festiva,
E tudo vibre e esplenda, e tudo fulja e cante,
E tudo sonhe e viva.
A sepultura é noite onde rasteja o verme.
Oh luz que eu tanto adoro,
Amortalha-me tu! E possa eu desfazer-me
No ar claro e sonoro!
II
A lousa tumular o corpo fecha e cobre
De sombra e de abandono,
E paira, horrível como um pesadelo, sobre
O derradeiro sono.
É, decerto, pior que a morte; desconforto
É, por certo, mais triste:
A morte mata só — e não separa o morto
De tudo mais que existe.
Que é a morte, afinal, que tanto horror merece?
— Mais um degrau da escada
Por onde eternamente a vida sobe e desce
Do nada para o nada.
Pelo agitado mar sem praias do universo
O homem surge e deriva
Ao acaso, como um floco de espuma, emerso
De uma onda fugitiva.
Quando a morte o devolve ao seio que o gerara,
Sem que o extinga e consuma,
Funde-o na onda que vai rolando, e que não para
De erguer flocos de espuma.
O morto volve ao chão da terra benfeitora
Desfeito em mil destroços,
E restitui-lhe assim tudo que em vida fora:
— Carne vestindo uns ossos.
Só perde um sonho: o sonho apenas esboçado
No rápido transporte
Que o trouxe bruscamente impelido, empurrado
Do berço para a morte.
Sonho belo talvez, confuso com certeza,
Feito de riso e pranto,
Feito de sombra e luz, de alegria e tristeza,
De encanto e desencanto.
Sonho que surge como um turbilhão, e passa
E acaba num momento
Como um rumor sem eco, um pouco de fumaça
Espalhada no vento.
Tudo mais volta ao seio infinito desse horto
Que gera eternamente
A vida, e espera só que a morte, em cada morto
Lhe atire uma semente.
III
Porque se arroja, pois, ao túmulo, fechado
— Como um cárcere escuro —
A tudo quanto é belo e esplende ao sol dourado
Sob o céu claro e puro,
Porque se larga à sombra, e se condena à lama,
E se abandona ao verme,
Porque assim se castiga, e se repele, e infama
Um pobre corpo inerme?
Corpo que veio de uma explosão de desejo,
Encantado produto
De uma noite de amor — e que saiu de um beijo
Como, da flor, o fruto;
Corpo onde o olhar viveu para tudo que brilha,
Para as cousas mais belas:
— A terra em flor, o mar ao sol, a maravilha
Do céu cheio de estrelas;
Onde cada rumor em que a noite transborda
Sob o luar tristonho
Foi despertar um eco e vibrar uma corda,
E acalentar um sonho;
Corpo que tanta vez o aroma — essa carícia
Em que a flor se consome —
Encantou de um prazer sutil, de uma delícia
Sem igual e sem nome;
Onde o lábio se abriu, úmido como as rosas
Quando amanhece o dia,
Para o sorriso, o beijo, e as cousas deliciosas
Que o amor pronuncia.
Condenado por fim à dispersão da morte,
O universo o reclama.
Entre tudo quanto há, porque lhe dar por sorte
O desfazer-se em lama?
IV
Oh! Deixai que o disperse o vento, asa ligeira
Em que sobe do chão,
Em que se eleva no ar tudo quanto é poeira
E decomposição.
Sim, deixai que o fecunde o sol, esse batismo,
Essa ablução de luz
De que surgem sorrindo em flor — bordas de abismo
E lamas de pauis.
Sim, deixai que o redima o orvalho, em que, de rastros,
No chão dos areais,
A argila, recebendo a comunhão dos astros
Estrela-se em rosais.
Da matéria imortal que ao acaso reunida
Pairou nesse apogeu:
A vida humana; e após, de tão alto abatida,
Caiu e apodreceu,
Possa cada fragmento, e cada átomo possa
Obter o jubileu
Em que, para o que é vil, se arrepende e se adoça
O mau humor do céu;
Mau humor de que surge o verme, esse enjeitado,
Esse erro, o caracol;
Que condena, que humilha o pó que é pó, ao lado
Do pó que é luz do sol;
E que afinal se abranda e se penitencia
Naquela redenção
De que a noite ressurge e se desmancha em dia,
E o castigo em perdão.
A poeira se dispersa; o charco se evapora;
Perde-se o fumo no ar:
São feitos desse nada ouros fulvos de aurora.
Brancuras de luar.
V
Implacável rancor do espírito à matéria,
Da ilusão à verdade,
Do que sonha ao que vive. Oh miséria, miséria!
Oh vaidade, vaidade!
A alma insubmissa e vã supõe-se encarcerada
No corpo, essa prisão,
— Ilha de um rude mar, princesa desterrada,
Flor caída no chão;
Considera-se como a fina essência, presa
Num vaso desprezado;
Vê no corpo um montão de infâmia e de torpeza,
De vício e de pecado.
A morte — como um fim de cativeiro encara
— Um romper de manhã,
A hora da partida ansiosa e livre para
As terras de Canaã.
Alma, é louco o desejo altivo, em que te abrasas,
De céus nunca atingidos;
Ai, que serias tu, pássaro, sem as asas,
Alma, sem os sentidos?
Nos olhos se esvazie o olhar, que te revela,
Que descobre, ou que faz
Tanta extensão de azul, tanto fulgor de estrela.
Alma, que sonharás?
Alma, que sonharás, na silenciosa ausência
Do som — emudecida
Para o teu devaneio a vaga confidência
Dos subsolos da vida?
Em vão levantas no ar as tuas fantasias
E as tuas ambições;
Arquitetas em vão tantas filosofias,
Tantas religiões.
Para mais desterrar na morte a carne, morta
Por fim, enfim vencida,
Inventaste o pavor de um cárcere sem porta,
De um antro sem saída.
Inventaste-o debalde. O túmulo condena
O corpo à podridão,
Mas não te exime a ti da mesma escura pena
De apodrecer no chão:
Sangue que o coração alvoroça e amotina,
Vibração provocada
Dos nervos, e depois, um sonho da retina.
És tudo isso, e mais nada.
VI
O derradeiro sono, eu quero assim dormi-lo:
Num largo descampado,
Tendo em cima o esplendor do vasto céu tranquilo
E a primavera ao lado.
Amortalhe-me a noite estrelada; arda o dia
Depois, claro e risonho;
E seja a dispersão na luz e na alegria
O meu último sonho.
CARTA A V. S.
Artista, amigo, irmão, sê generoso e pio,
Perdoa a um pescador seus pecados mortais!
Eu, alma em turbilhão, corpo em cacos, expio
Com remorsos cruéis e cólicas, fatais
— Faltas em que reincido, erros em que porfio.
Ai, no fundo, não sou mais do que um bugre, eis tudo.
Corre abundante em mim sangue de guaianás.
Veste-me a pele branca o espírito desnudo,
Simples, rudimentar, insubmisso, incapaz,
Que porventura herdei de algum avô beiçudo.
Imagina que sou neto de algum cacique
Cuja vida feliz de nômade sem lar
Tinha a alegre feição de um grande piquenique;
E em cuja fronte altiva as plumas de um cocar
Eram como a expressão ritual do último chic.
Algum bugre feroz, cujo corpo bronzeado
Mantinha a liberdade inata da nudez;
Que dormia tranquilo um sono descuidado
— Passivo, indiferente, enfarado talvez —
Sob o mistério azul do céu todo estrelado.
Ignorando o pavor da vida extraterrena,
Tinha para o Futuro um olhar de imbecil;
E, passando na Terra, inútil, em pequena
Viagem através da natureza hostil,
Vivia sem cuidado e morria sem pena.
Vegetava feliz, sem lei, sem rei nem roque.
Sua única ambição era a fome vivaz,
Sua única riqueza, uma flecha e um bodoque;
E abria-se num riso eterno e contumaz
O seu lábio — fendido ao peso do batoque.
Imagina tu, pois, a alma do avô selvagem
Comprimida, esmagada, atônita, infeliz,
Metida numa vasta e complexa engrenagem
De deveres morais e tramoias subtis,
De apuros de dinheiro e apuros de linguagem;
Imagina esse filho inculto da floresta,
Que ama o céu porque é belo, e ama o sol porque luz,
— Perdido na Cidade ignóbil e funesta,
Cheia de sombra e pó, caiada e desonesta,
Velha Aspásia, garrida, e a desfazer-se em pus;
Vê se esse humilde e tosco espírito imaginas,
Ao sabor de uma turba em grita e em confusão,
Pela prédica e o livro, os jornais e as mofinas,
Arrastado em tropel — disputado em leilão
Em nome de três mil Sistemas e Doutrinas;
Imagina cativa, entregue, submetida
Aos caprichos da Moda e à exigência das Leis,
Entre o encanto do Mal e a ideia da Outra Vida,
Entre o culto de Deus e o culto do Mil-réis,
Entre o padre e o vendeiro, entre o Verso e a Comida;
Ai, imagina assim a alma do bugre bravo,
Meu avô — que, no mato, era o dono feliz
Do seu tempo vazio e do seu gosto ignavo,
Que era, em suma, o senhor do seu próprio nariz.
— Alma livre que em mim reviveu num escravo!
Alma apenas capaz de adejar, fugidiça,
Em voos leves de uma asa de beija-flor;
E obrigada a pairar nas regiões da Justiça
Como um corvo que sobe ao céu todo esplendor
Para, do alto, melhor lobrigar a carniça.
Ai, a alma do tupi, bem mal domesticada
À macaqueação cabocla do europeu,
Conserva, forte e viva, a angústia de exilada,
A saudade fiel de tudo que perdeu,
Da floresta nativa, ausente e devastada.
Assim, de quando em quando assalta-me a cachola
Um furioso desejo — ou do mato, ou do mar,
Das vastas solidões onde ninguém me amola.
E, pássaro cativo, eu fujo, a me escapar
Da Civilização — como de uma gaiola.
Fujo, escapo, disparo através das vielas
Plenas de agitação, de atritos e de pó;
Salvo-me, aos esbarrões, dando sebo às canelas,
A ouvir a voz de algum descendente de Job
Que apregoa Moral — coberto de mazelas.
Liberto, a salvo enfim, penetro na floresta
Como num templo augusto habitado por Deus;
E ante o vasto esplendor da natureza em festa,
Sob a auréola em que a cinge a abóbada dos céus
— Rendo-lhe a adoração que o meu olhar lhe presta.
Nem padres, nem altar, nem liturgia. Um coro
De aves canta a alegria ingênua de viver;
De longe em longe reza e resmunga um besouro,
E sobe, como incenso, o perfume, a se erguer
Da sombra em flor do chão que o sol polvilha de ouro.
E, por um dia ou dois, eis-me entregue, alma antiga
De bugre ressurreto, o olhar vago, os pés nus,
À doce Religião da Natureza amiga.
Erro à toa; o primeiro atalho me conduz,
Ver o céu me contenta; uma árvore me abriga.
Estendo-me na relva; e, na delícia absorto
De sentir a alma leve, oca, vazia, assim
Gozo a beatitude inteira do conforto
De me deixar levar pelo tempo sem fim
Como um toco sem vida a boiar num mar morto.
Não pensar, não querer. A ambição e a saudade
Adormecidas; morta essa ilusão pueril
De fazer intervir no Destino a Vontade.
Ignorar o Minuto, inseto odioso e vil
Que rói a vida e vai tecendo a eternidade.
Na solidão do mato, esqueço, ignoro, em suma:
Sou feliz. Dou sueto a esta alma de aluguel
Que vive, de auto em auto, a desfazer-se em espuma;
E, livre do canudo atroz de bacharel,
Passo orgulhosamente a ser cousa nenhuma.
E o mar então. O mar, o velho confidente
De sonhos que a mim mesmo hesito em confessar,
Atrai-me; a sua voz chama-me docemente,
Dá-me uma embriaguez como feita de luar.
O mar é para mim como o Céu para um crente.
Vê tu lá, Valdomiro, o bugre apenas manso
Que eu sou. Sob o verniz que me disfarça, está
O tapuia boçal, bravio como um ganso,
Devoto da Preguiça, amigo do descanso,
— Um neto do remoto avô Tibiriçá.
Ímpetos de voltar, fugido, para o mato,
De me fazer ao mar numa casca de noz:
Eis o vício do bugre, eis o meu vício inato,
Eis o que eu em remorso e em cólicas resgato,
Eis o crime de ser neto de meus avós.
E agora, conhecendo a verdade inteiriça,
Perdoa a um pescador seus pecados mortais,
Perdoa a um preguiçoso os crimes da Preguiça,
E a um bugre como eu sou, não ter na alma insubmissa
O culto da Visita e dos Cartões Postais!
Falando agora a sério — e envergonhado o digo:
Não, desculpa não há que ouse em prosa valer
Às mil faltas em que eu estou para contigo.
O verso diz o que não há para dizer:
Pague, pois, o poeta as dívidas do amigo.
Paga-as; paga-as à vista, em rima numerosa;
Paga-as de rosto alegre e coração feliz,
Porque, na mesma estrofe exata e afetuosa,
Pode, na mesma voz que o mesmo verso diz,
Saudar a um tempo o amigo e o príncipe da prosa.
Lida a defesa, que é tão extensa e tão crua,
Outorga ao réu confesso um perdão liberal.
Pai do céu! ainda aqui fiz uma falcatrua:
Sendo a defesa assim tão comprida — afinal
Os pecados são meus — e a penitencia é tua.
SUGESTÕES DO CREPÚSCULO
Ao pôr do sol, pela tristeza
Da meia luz crepuscular,
Tem a toada de uma reza
A voz do mar.
Aumenta, alastra e desce pelas
Rampas dos morros, pouco a pouco,
O ermo de sombra, vago e oco,
Do céu sem sol e sem estrelas
Tudo amortece, e a tudo invade
Uma fadiga, um desconforto.
Como a infeliz serenidade
Do embaciado olhar de um morto.
Domada então por um instante
Da singular melancolia
De entorno — apenas balbucia
A voz piedosa do gigante.
Toda se abranda a vaga hirsuta,
Toda se humilha, a murmurar,
Que pede ao céu que não a escuta
A voz do mar?
II
Estranha voz, estranha prece
Aquela prece e aquela voz,
Cuja humildade nem parece
Provir do mar bruto e feroz.
Do mar, pagão criado às soltas
Na solidão, e cuja vida
Corre, agitada e desabrida,
Em turbilhões de ondas revoltas;
Cuja ternura assustadora
Agride a tudo que ama e quer,
E vai, nas praias onde estoura
Tanto beijar como morder.
Torvo gigante repelido
Numa paixão lasciva e louca,
É toda fúria: em sua boca
Blasfema a dor, mora o rugido.
Sonha a nudez; brutal e impuro
Branco de espuma, ébrio de amor,
Tenta despir o seio duro
E virginal da terra em flor.
Debalde a terra em flor, com o fito
De lhe escapar, se esconde, — e anseia
Atrás de Cômoros de areia
E de penhascos de granito:
No encalço dessa esquiva amante
Que se lhe furta, segue o mar;
Segue, e as maretas solta adiante
Como matilha, a farejar.
E, achado o rastro, vai com as suas
Ondas e a sua espumarada
Lamber, na terra devastada,
Barrancos nus e rochas nuas.
III
Mais formidável se revela,
E mais ameaça e mais assombra
A uivar, a uivar dentro da sombra
Nas fundas noites de procela.
Tremendo e próximo se escuta,
Varrendo a noite, enchendo o ar,
Como o fragor de uma disputa
Entre o tufão, o céu e o mar.
Em cada ríspida rajada
O vento agride o mar sanhudo:
Roça-lhe a face, com o agudo
Sibilo de uma chicotada.
De entre a celeuma, um estampido
Avulta e estoura, alto e maior,
Quando, tirano enfurecido,
Troveja o céu ameaçador.
De quando em quando, um tênue risco
De chama vem, da sombra em meio.
E o mar recebe em pleno seio
A cutilada de um corisco.
Mas a batalha é sua, vence-a:
Cansa-se o vento, afrouxa, e assim
Como uma vaga sonolência
O luar invade o céu sem fim.
Donas do campo, as ondas rugem;
E o monstro impando de ousadia,
Pragueja, insulta, desafia
O céu, cuspindo-lhe a salsugem.
IV
A alma raivosa e libertina
Desse tenaz batalhador
Que faz do escombro e da ruína
Como os troféus do seu amor;
A alma rebelde e mal composta
Desse pagão e desse ateu
Que retalia e dá resposta
À mesma cólera do céu;
A alma arrogante, a alma bravia
Do mar, que vive a combater,
Comove-se à melancolia
Conventual do entardecer
No seu clamor esmorecido
Vibra, indistinta e espiritual,
Alguma cousa do gemido
De um órgão numa catedral.
E pelas praias aonde descem
Do firmamento — a sombra e a paz;
E pelas várzeas que emudecem
Com os derradeiros sabiás;
Ouvem os ermos espantados
Do mar contrito no clamor
A confidência dos pecados
Daquele eterno pecador.
V
Escutem bem. Quando entardece,
Na meia luz crepuscular
Tem a toada de uma prece
A voz tristíssima do mar
FOLHA SOLTA
Não me culpeis a mim de amar-vos tanto,
Mas a vós mesma e à vossa formosura,
Pois se vos aborrece, me tortura
Ver-me cativo assim do vosso encanto.
Enfadais-vos; parece-vos que, enquanto
Meu amor se lastima, vos censura;
Mas sendo vós comigo áspera e dura,
Que eu por mim brade aos céus não causa espanto.
Se me quereis diverso do que agora
Eu sou, mudai; mudai vós mesma, pois
Ido o rigor que em vosso peito mora,
A mudança será para nós dois:
E então podereis ver, minha senhora,
Que eu sou quem sou por serdes vós quem sois.
A PARTIDA DA MONÇÃO
I
Ei-las, as toscas naus de borda rastejante
À flor das águas, naus de estreitos rios quietos;
Ei-las, prestes a abrir para o sertão distante
O seu voo, arrastado e sem glória, de insetos.
Nem o porte arrogante, o sobranceiro aprumo
— Altivo no descanso e ousado nos tufões —
Dessas águias que vão bordejando sem rumo
Pelo acaso do mar, feito de turbilhões;
Nem a airosa altivez de velas desfraldadas
Fulgindo ao sol, ao vento abroquelando o bojo;
Nem proas a romper ondas e espumaradas,
Pelos parcéis em fúria arroteando o rebojo;
Nada disso que faz o petulante orgulho
De afoitos bergantins e galeras reais:
Calcar a onda, rompê-la, ouvindo no marulho
A comemoração de seus passos triunfais;
Nem adiante, acirrando o desejo atrevido
De aventura e perigo, ânsias de glória, em suma,
— A infinita extensão do mar ermo, perdido
Nos confins do horizonte amortalhado em bruma;
Nem o arroubo, a poesia, a esperança fogosa
De ir ao longe, através das ondas, conquistar
A nudeza pagã e a virgindade ociosa
De ermas ilhas em flor nas solidões do mar
II
Humildes, toscas naus de borda rastejante
À tona d’água, naus de estreitos rios quietos,
Vão apenas abrir para o sertão distante
O seu voo, arrastado e sem glória, de insetos.
Levadas no pendor macio da corrente,
Irão seguindo, irão seguindo sem rumor
E sem vontade, mole e resignadamente,
Por um rumo servil, forçado e encantador.
A raiva dos tufões (como a grita afastada
De eco em eco se adoça em suspiro de mágoas)
Esvaída, a morrer de quebrada em quebrada,
Mal roçará de leve a face azul das águas.
Em todo o curso, a terra ao lado, seio amigo,
Companheira constante e proteção fiel,
Pondo o socorro à mão nas ânsias do perigo,
Dando ao gozo do olhar delícias de um vergel.
E o rio, manso, manso, a ondular, murmurando
O seu murmúrio igual, monótono estribilho,
Morosa cantilena, em voz baixa e em tom brando,
De mãe que embala o berço onde repousa o filho.
E o rio, manso, manso, a embalá-las, descendo,
No balanço sutil da mole ondulação,
E a arrastá-las, de leve, assim, para o tremendo,
Para o longínquo, vago, infinito sertão.
III
Hão de em breve surgir, pelas margens sinuosas
Florestas virgens de onde um confuso rumor
Sobe de solidões profundas, misteriosas,
Como um uivo agourento, um uivo ameaçador.
Voz sem eco, a não ser na alma de quem a escuta,
Surdo resfolegar de monstro provocado
Que de repente acorda e, prestes para a luta,
Abre a goela de sombra, e espera, sossegado.
Sossegado, seguro, apercebido, espera,
Os que lhe vêm trazer, fanática oblação,
Corações para a flecha e sangue para a fera,
Carniça para o abutre e ossadas para o chão.
A oculta sucuri, das ervas no disfarce,
Ergue a cabeça, afirma o olhar esconso e fusco,
E vagarosamente, e como a espreguiçar-se,
Desenrodilha o corpo e apresta o salto brusco.
Na sombra eternamente apagada, noturna,
De fundos socavões virgens da luz solar,
Em cada gruta, em cada escuro, em cada furna,
Relampejam fuzis nos olhos de um jaguar
IV
Depois da mata escura, o campo undoso e verde,
Banhado em sol, fechado em céu ao longe; e assim
Tão vasto e nu, que o olhar se fatiga e se perde
Num esplendor sem sombra e num ermo sem fim.
Paira, grassa em redor, toda a melancolia
De uma paisagem morta, igual, deserta e imensa,
Pondo nos olhos e nas almas que enfastia
Um peso ainda maior que a dor, a indiferença.
Desanimado, absorto, ante essa indefinida
Solidão que se espraia além, além, o olhar
Tem a impressão que faz a tristeza da vida:
De ir seguindo, seguindo, e nunca mais voltar.
Sobre os dias irão caindo as noites. Vastas
Noites de um céu que é todo azul de lado a lado,
Quando, oh triste luar das planícies, afastas
Ainda mais, ainda mais, o horizonte afastado.
V
De repente, uma flecha alígera sibila.
De onde veio? Da sombra. E a sombra, de repente,
— Traição da cascavel numa alfombra tranquila —
Principia a silvar com silvos de serpente.
Por toda parte a larga escuridão se anima
Desse leve rumor que espalha a morte, e sai
Do chão e voa, ou vem rastejante, ou, de cima,
Salpicado, vivaz, como um granizo, cai.
Bruscamente borbulha em fantasmas a margem
Agitada do rio. O clarão da metralha
Responde à sombra. E de eco em eco a imensa vargem
Reboa de um fragor de guerra e de batalha.
Eis o caminho aberto ao triunfo e à conquista.
— Como a corça ferida escapa e foge em vão,
Deixando atrás, deixando, úmida e fresca, a pista
De seu flanco rasgado e sangrando no chão;
Fugitiva e dispersa, a turba dos vencidos
Atrai, guia, conduz para a tribo distante,
Para a perdida paz de seus lares traídos,
A guerra, o cativeiro, a morte: o bandeirante.
Ferve a luta. De serra a serra voa o rouco
Som da inúbia, acordando ecos e legiões;
Ouriço monstruoso, o sertão, pouco a pouco
Todo se erriça das flechas de cem nações.
VI
Ei-las, as toscas naus de borda rastejante,
À flor das águas, naus de estreitos rios quietos;
Ei-las, prestes a abrir para o sertão distante,
Para assombros de glória, o seu voo de insetos.
Apinhem-se na praia os velhos, derramando
De encarquilhadas mãos inúteis para mais
A bênção dos que já se sentem bruxuleando
Aos que lhes vão tornar os nomes imortais.
Mães, deixai que, sonhando, a vista embevecida
De vossos filhos pouse, e se ilumine, e aprenda
Nessa formosa folha em que o livro da vida
Tem estrofes de poema e proporções de lenda.
Noivas, com os corações envoltos na penumbra
Indecisa do amor que se orgulha e se doe,
Vinde trazer-lhes vosso olhar de que ressumbra
Saudade pelo amante e enlevo pelo herói.
Ao largo, enfim! Clarins e buzinas atroam.
E as canoas, na luz da manhã cor de rosa,
Pairam por um momento em pleno rio; aproam
Para o sertão. E rompe a marcha vagarosa.
Nos barrancos, até rente d’água investidos
De filhos a sorrir e de mães a chorar,
Lancem as frouxas mãos e os olhos comovidos
O derradeiro adeus e o derradeiro olhar
VII
Longe, na solidão do campo undoso e verde,
O rio serpenteia. Em cada contorção
Mais se afasta. E a fugir, pouco a pouco se perde
No majestoso, vago, infinito sertão.
UMA IMPRESSÃO DE D. JUAN
Gastei no amor vinte anos, os melhores
Da minha vida pródiga: esbanjei-os
Sem remorso nem pena, em galanteios,
Colhendo beijos, desfolhando flores.
Quentes olhares de olhos tentadores,
Suspiros de paixão, arfar de seios,
Conheci-os, buscaram-me, gozei-os.
Li folha a folha o livro dos amores.
Quanta lembrança de mulher amada,
Quanta ternura de alma carinhosa,
Sim, quanto amor que me passou na vida!
E nada sei do amor. Não, não sei nada,
E cada rosto de mulher formosa
Dá-me a impressão de folha inda não lida.
A TERNURA DO MAR
No firmamento azul, cheio de estrelas de ouro
Ia boiando a Lua indiferente e fria.
De penhasco em penhasco e de estouro em estouro,
Em baixo, o mar dizia:
“Lua, só meu amor é fiel tempo em fora.
Muda o céu, que se alegra à madrugada, e pelas
Sombras do entardecer todo entristece, e chora
Marejado de estrelas;
Ora em pompas, a terra, ora desfeita e nua
— Como a folha que vai arrastada na brisa —
Aos caprichos do tempo inconstante flutua
Indecisa, indecisa.
Desfolha-se, encanece em musgos, aos rigores
Do céu mostra a nudez dos seus galhos mesquinhos,
A árvore que viçou toda folhas e flores,
Toda aromas e ninhos;
Cóleras de tufão, pompas de primavera,
Céu que em sombras se esvai, terra que se desnuda,
A tudo o tempo alcança, e a tudo o tempo altera...
— Só meu amor não muda!
Há mil anos que eu vivo a terra suprimindo:
Hei de romper-lhe a crosta e cavar-lhe as entranhas,
Dentro de vagalhões penhascos submergindo.
Submergindo montanhas.
Hei de alcançar-te um dia... Embalde nos separa
A largura da terra e o fraguedo dos montes.
Hei de chegar aí de onde vens nua e clara
Subindo os horizontes.
Um passo para ti cada dia entesouro,
Há de ter fim o espaço, e o meu amor caminha...
Dona do céu azul e das estrelas de ouro,
Um dia serás minha!
E serei teu escravo, à noite, pela calma
Rendilharei de espuma o teu berço de areias,
E há de embalar teu sono e acalentar tua alma
O canto das sereias.
Quando a aurora romper no céu despovoado,
Tesouros a teus pés estenderei, de rastros.
Ser amante do mar vale mais, sonho amado,
Que ser dona dos astros.
Deliciando-te o olhar, afagando-te a vista,
Todo me tingirei de mil cores cambiantes,
E abrir-se-á de meu seio a brancura imprevista
Das ondas arquejantes.
Levar-te-ei de onda em onda a vagar de ilha em ilha,
Tranquilas solidões, ermas como atalaias,
Onde o marulho canta e a salsugem polvilha
A alva nudez das praias.
Ao longe, de repente assomando e fugindo,
Alguma vela, ao sol, verás, alva de neve:
Teus olhos sonharão enlevados, seguindo
Seu voo claro e leve;
Sonharão, na delícia indefinida e vaga
De sentir-se levar sem destino, um momento,
Para além, para além, nos balanços da vaga,
Nos acasos do vento.
Far-te-ei ver o país, nunca visto, da sombra,
Onde cascos de naus arrombadas, a espaços
Dormem o último sono estendidos na alfombra
De algas e de sargaços.
Opulentos galeões, pelas junturas rotas,
Vertem ouro, troféus inúteis, vis monturos,
Que foram conquistar às praias mais remotas,
Pelos parcéis mais duros.
Flâmula ao vento, proa em rumo ao largo, velas
Desfraldadas, varando ermos desconhecidos,
Rudes ondas, tufões brutais, turvas procelas,
Sombra, fuzis, bramidos,
Todo o estranho pavor das águas afrontando,
Altivos como reis e leves como plumas,
Iam de golfo em golfo, em triunfo arrastando
Uma esteira de espumas.
Ei-los, carcaças vis d’onde o ouro em vão supura,
Esqueletos de heróis, dei-os em pasto à fome
Silenciosa e sutil da multidão obscura,
Dos moluscos sem nome.
Essa estranha região nunca vista, hás de vê-la,
Onde, numa bizarra exuberância, a flora
Rebenta pelo chão pérolas cor de estrela
E conchas cor de aurora;
Onde o humilde infusório aspira às maravilhas
Da glória, sonha o sol, e, dos grotões mais fundos
De meu seio, levanta a pouco e pouco as ilhas,
Arquipélagos, mundos.
Lua, eu sou a paixão, eu sou a vida. Eu te amo,
Paira, longe, no céu, desdenhosa rainha!
Que importa? O tempo é vasto, e tu, bem que reclamo!
Um dia serás minha!
Embalde nos afastai, embalde nos separa
A largura da terra e o fraguedo dos montes:
Hei de chegar aí de onde vens, nua e clara
Subindo os horizontes.”
Na quietação da noite apenas tumultua
Quebrada de onda em onda a voz brusca do mar
Corta o silêncio, agita o sossego, flutua,
E espalha-se no luar.
ROSA, ROSA DE AMOR...
Rosa, rosa de amor purpúrea e bela,
Quem entre os goivos te esfolhou da campa?
GARRET. OLHOS VERDES
I
OLHOS VERDES
Olhos encantados, olhos cor do mar
Olhos pensativos que fazeis solhar!
Que formosas cousas, quantas maravilhas
Em vos vendo sonho, em vos fitando vejo
Cortes pitorescos de afastadas ilhas
Abanando no ar seus coqueirais em flor,
Solidões tranquilas feitas para o beijo,
Ninhos verdejantes feitos para o amor.
Olhos pensativos que falais de amor!
Vem caindo a noite, vai subindo a Lua.
O horizonte, como para recebê-las,
De uma fimbria de ouro todo se debrua;
Afla a brisa, cheia de ternura ousada,
Esfrolando as ondas, provocando nelas
Bruscos arrepios de mulher beijada.
Olhos tentadores da mulher amada!
Uma vela branca, toda alvor, se afasta
Balançando na onda, palpitando ao vento
Ei-la que mergulha pela noite vasta,
Pela vasta noite feita de luar;
Ei-la que mergulha pelo firmamento
Desdobrada ao longe nos confins do mar.
Olhos cismadores que fazeis cismar!
Branca vela errante, branca vela errante,
Como a noite é clara! como o céu é lindo!
Leva-me contigo pelo mar. Adiante!
Leva-me contigo até mais longe, a essa
Fimbria do horizonte onde te vais sumindo
E onde acaba o mar e de onde o céu começa.
Olhos abençoados, cheios de promessa!
Olhos pensativos que fazeis sonhar,
Olhos cor do mar!
II
MANHÃ DE SOL
Na sombra do murtal, cujas flores a leve
Aragem desgrinalda em turbilhões de neve,
Ela vagueia a sós. E como vai formosa!
Tem como uma frescura orvalhada de rosa
Na face... Em seu sorriso amanhece.
É tão brando O seu pisar, que o chão o acolhe suspirando.
— Eis o sol! — canta uma ave ao fitar-lhe a retina...
E por onde ela passa a sombra se ilumina.
Descuidada e feliz, entre as árvores ela
Erra à toa. Sorrindo, as aves interpela.
Corre de flor em flor, salta de moita em moita.
Ora entre a ramaria o olhar travesso afoita
E tenta surpreender o segredo de um ninho;
Ora cisma, fitando o vago desalinho
Em que toda palpita, em que se entrega toda,
A folhagem que o vento acaricia. Em roda,
Em tudo, vê um ar festivo de noivado.
Cada flor abre ao sol o cálice orvalhado,
Úmido como um lábio em que pousasse um beijo...
E o seu passo é sutil, e erra como um adejo.
Surpreendo-a. Ela estaca, assustada, indecisa;
Mal com os pezinhos nus o chão musgoso pisa
Num ar de juriti prestes a abrir o voo.
Tomo-lhe as mãos; baixinho, ao seu ouvido, entoo
A atrevida canção do amor que tudo pede,
Do amor que não é mais do que um furor de sede,
Que é o amor afinal.
Toda a sua alma escuta,
Todo o seu corpo treme. Amante e irresoluta,
Quer ceder, e resiste; abrasa, e não se atreve.
E de súbito, como a corça arisca e leve
Que sente o caçador e ouve silvar a bala,
Ela das minhas mãos bruscamente resvala,
Salta, foge-me.
Em vão. Salto-lhe empós; não tomba
Mais faminto um abutre em cima de uma pomba.
Ela, sem rumo, vai e erra ao acaso, numa
Vaga trepidação, como ao vento uma pluma.
E o seu passo recorta o chão, que abaixa e alteia
Aqui um charco, adiante um cômoro de areia.
Aos poucos, a carreira afrouxa. Em cada passo
Mais e mais ela mostra a angústia do cansaço,
Arfa-lhe o seio; perde o folego; tropeça;
Para.
Alcança-a meu beijo. O noivado começa.
III
HORAS DE AMOR
Só vivo as horas que passo
Junto de ti, meu amor,
Tua cintura em meu braço,
Meu beijo em tua boca em flor.
Só assim vivo, querida,
Pois tudo mais não é vida.
———
Ventura que mal goteja,
Triste do amor que se esconde,
E só acha de onde em onde
Um acaso que o proteja;
Só alcanço o teu carinho
Nesta sombra de folhagem,
Onde, como ave selvagem,
Nosso amor tem o seu ninho.
Por entre as moitas vagueio,
Caminho, paro, indeciso.
Virás ou não? E agonizo
Entre a esperança e o receio.
Por toda a floresta, cheia
De um rumor vago e perdido,
Cuido escutar o ruído
Dos teus pezinhos na areia.
Volto-me sobressaltado
Só porque uma ave deteve
O voo, e um ramo, de leve,
Estremeceu ao meu lado.
E enquanto na sombra curto
Essa impaciência hesitante
Por ternuras de um instante,
Por beijos dados a furto,
Cheio de inveja reparo
Nas borboletas que em bando
Passam felizes, amando
Na plena luz do sol claro.
Ventura que mal goteja,
Triste do amor que se esconde,
E só acha de onde em onde
Um acaso que o proteja.
Amor que a sombra encarcera,
E foge ao sol e às estradas
Fossemos nós de mãos dadas
Pela vida e a primavera!
De súbito, ouço teus passos:
De entre folhagens de arbusto
Olhas, trêmula de susto,
Cais palpitante em meus braços.
E como a cansada abelha
Que suga a flor, e adormece,
Meu beijo pousa, e se esquece
Em tua boca vermelha.
Logro só de espaço a espaço
Algum momento de amor,
Tua cintura em meu braço,
Meu beijo em tua boca em flor.
— Ai, eu só vivo querida,
Pedaços da minha vida.
IV
PRIMEIRA SOMBRA
— Mal me quer bem me quer.
— Será preciso
Que uma flor assegure o que digo e tu vês?
O meu olhar, pousando em teu sorriso,
Mostra-te que és amada e adivinha que o crês.
— Mal me quer bem me quer.
— E, comovida,
Tremes, como esperando uma sentença atroz.
— Supões que espalhe a noite em nossa vida
A sombra de uma flor perpassando entre nós?
Mal me quer... Mal me quer... Desde ontem, quando
Faltaste, adivinhei tudo que a flor me diz.
Tenho-te junto a mim e fito-te chorando;
Beijas-me ainda, e já não sou feliz.
Dize que estou sonhando, que estou louca!
Jura que sou feliz, que os teus dias são meus,
E que o beijo que ainda orvalha minha boca
Não é tua alma que me diz adeus.
A amorosa doçura do teu verso
Ecoou em minha alma; em teu verso aprendi
A soletrar o amor, o Amor — esse universo
Radioso, imenso, e resumido em ti.
A tua voz chamou-me; eu escutei-a
E segui-a, ditosa, a sorrir e a sonhar
Fala-me ainda de amor! Não te cales, sereia
Que me atraíste para o azul do mar!
Minha alma, envolta em trapos de mendiga,
Vai seguindo, no chão, do teu passo o rumor.
Não me deixes! Serei a sombra que te siga,
Sem indagar onde me leva o amor.
Não me abandones! Ama-me! A risonha
Aurora inunda o céu todo afogado em luz.
Sou formosa, sou moça, amo-te... Ama-me! Sonha,
Pousada a fronte nos meus seios nus!
Que alegre madrugada cor de rosa,
Ser amada por ti, claro sol que tu és!
Eu dei-te a minha vida. É tua. Esbanja-a, goza
Toda esta primavera estendida a teus pés.
Bem amado que, como um pássaro num ramo,
Vieste acaso pousar o voo no meu seio,
Não me deixes! Eu quero ouvir ainda o gorjeio
Em que teu beijo é que dizia: “Eu te amo!”
V
CAIR DAS FOLHAS
“Deixa-me, fonte!” Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Cantava, levando a flor.
“Deixa-me, deixa-me, fonte!”
Dizia a flor a chorar:
“Eu fui nascida no monte.
“Não me leves para o mar.”
E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.
“Ai, balanços do meu galho,
“Balanços do berço meu;
“Ai, claras gotas de orvalho
“Caídas do azul do céu!”
Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror,
E a fonte sonora e fria,
Rolava, levando a flor.
“Adeus, sombra das ramadas,
“Cantigas do rouxinol;
“Ai, festa das madrugadas,
“Doçuras do pôr do sol;
“Carícia das brisas leves
“Que abrem rasgões de luar
“Fonte, fonte, não me leves,
“Não me leves para o mar!”
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor.
VI
DESILUDIDA
Sou como a corça ferida
Que vai, sedenta e arquejante,
Gastando uns restos de vida
Em busca da água distante.
Bem sei que já me não ama,
E sigo, amorosa e aflita,
Essa voz que não me chama,
Esse olhar que não me fita.
Bem reconheço a loucura
Deste amor abandonado
Que se abre em flor, e procura
Viver de um sonho acabado;
E é como a corça ferida
Que vai, sedenta e arquejante,
Gastando uns restos de vida
Em busca da água distante:
Só, perdido no deserto,
Segue empós do seu carinho;
Vai-se arrastando e vai certo
Que morre pelo caminho.
VII
SAUDADE
Belos amores perdidos,
Muito fiz eu com perder-vos;
Deixar-vos, sim: esquecer-vos
Fora de mais, não o fiz.
Tudo se arranca do seio,
— Amor, desejo, esperança.
Só não se arranca a lembrança
De quando se foi feliz.
Roseira cheia de rosas,
Roseira cheia de espinhos,
Que eu deixei pelos caminhos,
Aberta em flor, e parti:
Por me não perder, perdi-te;
Mas mal posso assegurar-me
Com te perder e ganhar-me
Se ganhei, ou se perdi.
VIII
SERENATA
Pela vasta noite indolente
Voga um perfume estranho.
Eu sonho. E aspiro o vago aroma ausente
Do teu cabelo castanho.
Pela vasta noite tranquila
Pairam, longe, as estrelas.
Eu sonho. O teu olhar também cintila
Assim, tão longe como elas.
Pela vasta noite povoada
De rumores e arquejos
Eu sonho. É tua voz, entrecortada
De suspiros e de beijos.
Pela vasta noite sem termo,
Que deserto sombrio!
Eu sonho. Inda é mais triste, inda é mais ermo
O nosso leito vazio.
Pela vasta noite que finda
Sobe o dia risonho.
E eu cerro os olhos para ver-te ainda,
Ainda e sempre, em meu sonho.
IX
O DIA SEGUINTE DO AMOR
Aves fugidias que passais em bando
Pelo azul da tarde sobre o azul do mar,
Aves fugidias que passais cantando,
Que fazeis? Passar.
De repente surgis. No vasto céu
Um turbilhão de alvura de repente cresce;
Passa, afasta-se, e ao longe, e como apareceu
Desaparece.
Brancura macia de plumas, rumor leve
De asas que ruflam devagar,
Passais como flocos de neve
Que sussurram no vento e se desfazem no ar.
De tudo isso que resta? Um quase nada: apenas
Em meu olhar distraído
A vaga impressão de uma alvura de penas,
E o eco de um rumor cantando em meu ouvido.
———
Sonhos de amor, perfumados
Do aroma da flor da laranjeira,
Botões de rosa desabrochados
Em goivos, desfeitos na lama e na poeira;
Sonhos do olhar namorado
Ao descobrir, como um triunfador,
Todo enlevado, todo enlevado,
Que uns seios de mármore arquejam de amor;
Sonhos do ouvido, escutando
O ingênuo amor que se revela enfim
Involuntariamente, quando
Em frases que negam a voz diz que sim
Sabor do primeiro beijo
Que mal pousa, medroso, leve, leve,
Num rosto virgem onde o pejo
Semeia de rosas brancuras de neve;
Sonhos de amor, sois como a rosa
Que, nem bem colhida,
Perde a frescura que a tornou formosa,
Perde o perfume que a tornou querida.
———
Primavera vivida
De amar e ser amado aos vinte anos em flor,
Entrada triunfal do coração na vida,
Amor, amor, amor!
Rápida travessia
De um mar azul, rasgado entre rochedos nus
Nos quais se ignora o amor, ou a alma se enfastia...
Região lavada em luz
Entre esses dois extremos
Tão próximos — o olhar que ainda não sabe ver
E o que vê — triste fim dos encantos supremos! —
O que vale a mulher;
Miragens do desejo, enlevos da esperança,
Só é feliz o amor que espera e não alcança.
———
Infinita doçura, inigualável cousa,
Contato delicioso, inefável pressão
Da mão amada quando encontra a nossa mão
E, brandamente, e como achando um ninho, pousa;
Oh lábios da mulher palpitantes de amor,
Oh lábios que umedece o orvalho do desejo,
Doces lábios servis onde abotoa o beijo,
Prestes a se deixar colher como uma flor;
Oh seios brancos onde a paixão, a ofegar,
Chama a paixão, atrai a carne, acena ao gozo;
Oh seios brancos onde uns olhos de amoroso
Veem reflexos do céu na ondulação do mar;
Encantos da mulher amada; comovidos
Deslumbramentos; gosto indizível, sabor
Da única hora feliz de toda a vida; amor,
Sonho em que a alma é que sente o gozo dos sentidos;
No coração que de vós se alvoroça
Resplandeceis, miragens, enganos,
De uma luz que não é vossa.
Que é só dos nossos vinte anos.
———
Trêmulas maretas que passais boiando
Pela flor das ondas nos parcéis do mar;
Trêmulas maretas que alvejais cantando,
Que fazeis? Passar.
De repente surgis... No mar sem fim
Um turbilhão de alvura de repente cresce;
Passa; afasta-se; e como apareceu, assim
Desaparece.
Brancura brilhante de espumas, sons velados
Da água no açude de um pomar,
Passais, desfeitos, desmanchados
Na tristeza sonora das ondas do mar.
De tudo isso que resta? Ai! Quase cousa alguma:
Em meu olhar distraído
A vaga impressão de alguns flocos de espuma
E o eco de um rumor cantando em meu ouvido...
X
ÚLTIMA CONFIDÊNCIA
E se acaso voltar? Que hei de dizer-lhe, quando
Me perguntar por ti?
Dize-lhe que me viste, uma tarde, chorando.
Nessa tarde parti.
Se arrependido e ansioso ele indagar: “Para onde?
Por onde a buscarei?”
Dize-lhe: “Para além... para longe...” Responde
Como eu mesma: “Não sei.”
Ai, é tão vasta a noite! A meia luz do ocaso
Desmaia. Anoiteceu.
Onde vou? Nem eu sei... Irei seguindo ao acaso
Até achar o céu.
Eu cheguei a supor que possível me fosse
Ser amada — e viver.
É tão fácil a morte. Ai, seria tão doce
Ser amada e morrer!
Ouve; conta-lhe tu que eu chorava, partindo,
As lágrimas que vês.
Só conheci do amor que imaginei tão lindo,
O mal que ele me fez.
Narra-lhe transe a transe a dor que me consome...
Nem houve nunca igual!
Conta-lhe que eu morri murmurando o seu nome
No soluço final!
Dizei-lhe que o seu nome ensanguentava a boca
Que o seu beijo não quis:
Golfa-me em sangue, vês? E eu, murmurando-o, louca
Sinto-me tão feliz!
Nada lhe contes, não... Poupa-o... Eu quase o odeio,
Oculta-lho! Senhor,
Eu morro!... Amava-o tanto... Amei-o sempre... Amei-o
Até morrer de amor.
NOTAS
(A)
Incluiu-se neste livro o poemeto Rosa, rosa de amor... de que a Livraria Laemmert deu em 1902 uma edição, hoje esgotada. O mais do presente volume compõe-se de poesias esparsas, escritas em diferentes épocas, às vezes com largos intervalos; nele enfeixou o autor o que, no ponto de vista puramente estético, lhe pareceu menos mal em sua resumida produção poética dos últimos vinte anos. Os Poemas e Canções não são, pois, um livro que o autor tivesse feito com intenção de o fazer, mas que, a bem dizer, se fez por si, de certo modo ao acaso. Na escolha das peças aqui reunidas, adotou o autor, como critério, preferir as que lhe pareceram exprimir menos mal, isto é, em frase simples e corredia, com imagens sóbrias e mais ou menos claras e fiéis, ideias concebidas com lógica, sentimentos sinceros, impressões recebidas. A poesia, como sempre ambicionou o autor deste livro realizá-la nos limites ao seu alcance, deve ser, antes de tudo, cousa que se entenda. Se neste livro há extravagâncias aparatosas, quer de ideias abstrusas, quer de sentimentos artificiais, ou de frases complicadas, ou de palavras meramente decorativas, a elas resvalou o autor sem o perceber e a contragosto; e disso se penitencia humildemente.
(B)
Adotaram-se neste livro, com relação à ortografia, algumas das regras formuladas em 1907 pela Academia Brasileira de Letras[1]. Algumas, não todas; porque, sendo sem dúvida oportuno encaminhar para uma inteligente simplificação a ortografia portuguesa, complicada de pretensões etnológicas sem grande nexo, pareceram, entretanto, prematuras ou incompletas algumas das inovações propostas pela Academia. Entre essas, repugnou ao autor a supressão sistemática das consoantes mudas: porque, não dispondo de fonte a que recorra com segurança para aprender quando uma consoante é realmente muda, ou não, segundo a boa pronúncia; suprimir cada um as consoantes que entenda sem valor — provavelmente redundaria em empregar cada um, para seu uso, uma ortografia pessoal, ou, quando muito, regional. É, por exemplo, sabido que nós brasileiros pronunciamos recê p ção, frisando levemente o p; e os portugueses dizem recessão. Como decidir-se, com tal divergência na pronúncia do mesmo vocábulo, por uma ortografia fonética desse vocábulo? Há, sem dúvida, inúmeras palavras em que o uso tem tornado mudas consoantes que na ortografia de tais palavras apenas figuram por tradição etimológica. Mas, a adotar o uso como árbitro, arriscava-se muitíssimo um autor provinciano, como é o deste livro, a empregar com relação a boa parte de tais palavras uma detestável ortografia provinciana. A referida regra só poderá ser aplicada com segurança depois de contemplada em dicionário da língua, cuja autoridade faça fé.
Também recalcitrou o autor em aceitar a substituição de ch, com o som duro de q, por qu, antes das vogais e e i, como em quelônio, por chelonio, e química, por chimica. Equivaleria isso a trocar uma complicação por outra, sem ganhar cousa que se veja, e perdendo assim sem vantagem o que o uso conquistou. No sentido de uma aproximação fonética, se à grafia chimica devia corresponder a pronúncia xímica, a grafia química deve corresponder à pronuncia q-u-ímica. Entre as duas complicações, não há razão de escolha; ou antes, é preferível ficarmos com o uso tradicional, que sempre é ficar com alguma cousa. Era sem dúvida preferível, como simplificação, adotar ke e ki por che ou chi com som duro. Depreende-se do que aí fica — que o autor não aceitou também a eliminação absoluta da letra k, condenada pela Academia; e que prefere continuar a escrever kilo, e seus derivados, a mudar para quilo, quilômetro etc.
Outra regra, que se não impõe como de fácil aceitação, é a que prescreve a substituição de g por j antes de e e i no meio das palavras; conservando-se, entretanto, o uso corrente, quando o g é inicial. De tal feitio, prescreve a Academia que se escreva, como até aqui, genealogia, e se passe a escrever ajir, legislativo, cojitar. O que parece curial é que, concedendo-se em certos casos ao g antes de e e i a representação do som je, ji, não se o desaproprie arbitrariamente, em outros casos, dessa representação que o uso lhe tem consagrado; e que, a tirar-lha, como não seria mal entendido, se lha cortasse cerce, simplesmente, para todos os efeitos. Nesse ponto, e com a devida vênia, a regra da Academia é apenas meia regra. E não é aplicável à hipótese o clássico La parfaite raison fuit toute extremité.
Nem sempre deixou o autor de empregar o s entre duas vogais, com som de z. Pensa ele que é a Academia quem aí tem inteira razão; e que o uso do s com som de z mantém na ortografia da nossa língua uma complicação bem grande e bem inútil. Mas o hábito é uma força a que dificilmente se resiste; e as palavras em que o s tem aquela função exorbitante, mas tradicional, são tão comuns, por numerosas e frequentes, que, no emprego de tais palavras, o autor sentiu quase sempre a sua vontade arrastada pelo instinto. Instinto da pena, ou instinto dos olhos, ou ambos ajustados. E não lhe pareceu tão importante o caso que merecesse uma atenção determinada. Nesse particular, sem impugnar a regra formulada pela Academia, regra que julga excelente, e que acredita acabará vingando com a colaboração do tempo, não a seguiu com fidelidade o autor deste livro; mas apenas em raras sortidas, aqui e ali, algum tanto ao acaso. É claro que isso não tem desculpa que valha; nem o autor se defende com outra que não seja a sua fraqueza confessa.
Quanto ao mais, foram em geral aplicadas na ortografia deste livro as prescrições da Academia. Brasileira — muitas das quais não se distinguem por inovações, mas eram já adotadas de escritores da língua e recomendadas de gramáticos dela, uns e outros de nota. No que sobretudo o autor se autorizou com a autoridade da Academia foi:
— em abolir o uso das consoantes geminadas, com exceção de ss e rr, e de cç quando, com relação a estas, a primeira soa com som próprio, como em sucção. Nesse ponto, o autor tomou a liberdade de ir um pouquinho além do que prescreve a Academia, a qual conservou os ll nas palavras ele, ela, aquele, aquela, aquilo; sem que a exceção feita a tais vocábulos se justifique por algum fundamento plausível;
— em eliminar o h no meio das palavras, escrevendo tesouro, e não thesouro, filosofia, e não philosophia, póstumo, e não posthumo, exceto; quando se trata dos grupos ch, lh, nh, nos quais o h exerce unia função; ou no caso de palavra composta de outra que tenha o h inicial, como deshonra, deshabitado.
— em suprimir de todo as letras y e w nas palavras da língua;
— em empregar sistematicamente a grafia ai e ãi, e seus plurais, para os finais de palavras nas quais geralmente se usa ae e ãe e seus plurais, como cai, pai, mãe, ideais, quais, normais, em vez de: cae, pae, mãe, ideaes, quaes, normais; bem assim em preferir sempre o i inicial para as palavras que é costume escrever indiferentemente com i ou e, como igreja, idade.
O que fora de tais regras for encontrado no presente livro deve ser levado à conta de erro de revisão. E de erros desses está o livro inçado, seja dito por demais.
(C)
Pag. 9 — Eu cantarei de amor tão fortemente...
Este primeiro verso de um dos sonetos do livro é quase repetição do primeiro verso no II soneto de Camões; mas nisso se resume a semelhança entre as duas composições, como se verificará relendo aqui a do grandíssimo poeta:
Eu cantarei de amor tão docemente
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que amor a todos avivente
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia, e pena, ausente.
Também, senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho, e arte.
D)
Pag. 35 — 57 — Fugindo ao cativeiro.
Por volta de 1887, às vésperas da Abolição, despenhavam-se, em bandos cerrados, verdadeiras avalanches de escravos fugitivos, das fazendas de café no planalto paulista para o quilombo do Jabaquara, à beira do porto de Santos. No Jabaquara estava concentrada e organizada a proteção que toda a cidade, entusiasticamente abolicionista, lhes dispensava. Ali chegadas, eram livres, e estavam em segurança: alguns estabeleciam-se cultivando a terra e vivendo em choças que improvisavam; outros irradiavam pela cidade a ganhar a vida; outros ainda, à custa de subscrições que corriam facilmente, repatriavam-se por mar para a terra natal, quase sempre em longínquas províncias do Norte, de onde tinham anteriormente vindo vendidos.
Mas era difícil chegar à Terra da Promissão do Jabaquara; inúmeras tentativas, as mais delas talvez, foram mal sucedidas, frustradas pela diligência dos senhores, a quem a força pública dava mão forte, e pelos embaraços naturais do caminho — através de sertões, da Serra do Mar, que era preciso vencer evitando as estradas, as habitações, todo o socorro humano. Os bandos, miseráveis e famintos, tinham de marchar à noite e esconder-se de dia. O que às vezes chegava afinal ao Jabaquara era uma procissão de espectros; e contaram-se por milhares os espectros que lá conseguiram chegar, homens, mulheres, crianças...
Num desses bandos que fugia perseguido, uma negra, exausta e desesperada, atirou ao rio Atibaia o filhinho que trazia nos braços. É a esse episódio, noticiado comovidamente pela imprensa do tempo, que a segunda parte da poesia se refere — mudando-lhe apenas o cenário e algumas minúcias. O outro episódio, com que termina a mesma poesia, é rigorosamente histórico. Passou-se na terra de Paranapiacaba também conhecida por Serra de Santos — trecho conhecidíssimo da Serra do Mar. Um magote de escravos fugitivos foi alcançado pela escolta que o perseguia. Era num desfiladeiro. Enquanto os companheiros se salvavam dispersando-se na floresta virgem, um do bando, moço e atlético, armado de foice, fez frente aos soldados vedando-lhes a passagem, matou um deles, feriu outros, e morreu combatendo. A autópsia revelou que ele não ingerira alimento algum havia três dias. Chamava-se Pio esse Leônidas maltrapilho e esquecido de uma obscura raça que não teve historiadores nem poetas.
(E)
Pag. 50. — O ouro leve do sol bubuia à toa...
No seu Dicionário de Vocábulos Brasileiros, o Visconde de Beaurepaire Rohan, citando Couto de Magalhães e José Veríssimo, dá o verbo bubuiar, de origem tupi-guarani, como significando — flutuar no sentido da corrente. Tem, como se vê, significação mais complexa do que o comum boiar; e ao autor pareceu mais expressivo do que seria este último para indicar o movimento das manchas do Sol mosqueando a ondulação da relva — pelas abertas da floresta sacudida da aragem.
(F)
Pag. 52. — Alcateia usurpando a forma e a face humana...
Apesar de ser de uso vulgaríssimo em clássicos da língua, e liberdade aceita de boa cara pelos mais carrancudos gramáticos, não ousaria talvez o autor fazer, como nesse verso fez, concordar com um só o adjetivo que qualifica dois substantivos, se não se sentisse apoiado nisso pelo exemplo de Camões no Cant. I estrofe LXXVII dos Lusíadas:
Onde vestindo a forma e gesto humano.
(G)
Pag. 91. — Sonho póstumo.
O autor não está bem certo de que a um poeta corra obrigação rigorosa de justificar as concepções da sua fantasia. Seja como for, apraz-lhe citar em abono da concepção geral da poesia Sonho Póstumo — que a alguns talvez pareça extravagante — palavras de um dos grandes mestres da ciência contemporânea. Na sua obra Lettres d’un voyageur dans l’Inde, (trad. francesa de Ch. Letourneau, 1883) tratando dos ritos funerários dos Pársis de Bombaim — que entregam os cadáveres dos seus à decomposição no ar livre, “sobre um dos pontos mais elevados e mais lindos da crista rochosa de Malabar-Hill, diante de um panorama esplêndido, num jardim coalhado de esbeltas palmeiras e luxuriantes plantas tropicais em flor” — escreve Ernesto Hackel, à pag. 68:
“Ce mode de sépulture semble révoltant à la plupart des Européens, et, dès l’antiquité classique, on considérait comme le plus grand des outrages de livrer un cadavre en pâture aux vautours. Mais, aux yeux du zoologiste, habitué à scruter les phénomènes, il semble plus poétique, plus conforme même à l‘esthétique, de voir un corps bien aimé dépecé en quelques instants par le bec puissant des oiseaux de proie que de le voir abandonné à ce lent phénomène de décomposition, à ces rebutantes morsures de vers, qui font du mode de sépulture de nos peuples civilisés quelque chose de si terrible, de si dégoûtant, et de si contraire aux lois de l’hygiène... Mais que ne peut faire adopter le doux effort de l’habitude, ce levier si puissant de l’adaptation !”
(H)
Pag. 112.
Alma apenas capaz de adejar fugidiça
Em voos leves de uma asa de beija-flor,
E obrigada a pairar nas regiões da Justiça,
Como um corvo que sobe ao céu todo esplendor
Para do alto melhor lobrigar a carniça...
Estes versos foram escritos em 1904 ou 1905, antes de o autor ser magistrado, que hoje é, e quando exercia a profissão de advogado. A observação convém talvez, ainda que menos necessariamente, à estrofe que na mesma poesia figura à pag. 114:
Na solidão do mato, esqueço, ignoro — em suma;
Sou feliz. Dou sueto a esta alma de aluguel
Que vive de auto em auto a desfazer-se em espuma;
E, livre do canudo atroz de bacharel,
Passo orgulhosamente a ser cousa nenhuma.
[1] P. Van Thiegen. Le sentiment de la nature.
[2] Granville Cole — Geology out-of-door.
[1] Adotou-se nesta edição digital a atual grafia do Português.