Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Inspirações do Claustro, de Junqueira Freire


Edição de base:
Posias Completas de Junqueira Freire, vol. I, org. de Roberto Alvim Corrêa.

Rio de Janeiro: Livraria Zelio Valverde, 1944.

INSPIRAÇÕES DO

CLAUSTRO

POR

José Joaquim Junqueira Freire

SEGUNDA EDIÇÃO

CORRECTA E ACCRESCENTADA COM UM

JUÍZO CRÍTICO

POR

J. M. Pereira da Silva

COIMBRA

Imprensa da Universidade

1867


ÍNDICE

Prólogo do autor

Juízo crítico

           

Por que canto?

O remorso da inocente

Pedido

Meditação

O Apóstolo entre as gentes

O Jesuíta

A flor murcha do altar

O incenso do altar

O misantropo

A órfã na costura

Meu filho no claustro

Milton

Pobre e soberbo

Os claustros

Sóror-Ângela

A freira

A devota

Frei Bastos

O renegado

O monge

O apóstata

O converso

Ela

Saudação

Deixas-me

À profissão

Canto

Saudade

Aos túmulos

A morte no claustro

Canto fúnebre

Poema fúnebre

Nênia

Os dois cadáveres

Ai!

Mais um túmulo

 

INSPIRAÇÕES DO CLAUSTRO


O que entenderdes que é útil, po­deis sem receio publicá-lo.

COURIER;

A natureza desta publicação exige de si algumas pala­vras de explicação. Este prólogo é filho da necessidade tão-somente. Longe de mim a vaidade dos discursos ociosos.

As poesias presentes agradarão a bem poucos: agradarão apenas a algumas almas fortes, que não puderam ainda ser eivadas nem do cancro do cepticismo, nem da mania do misticismo: agradarão apenas a alguns homens completamente livres, que não sujeitaram-se ainda, senão às luzes da ra­zão. Ora, estes homens são bem raros na sociedade atual, porque a hipérbole dos sistemas e das crenças traz em si não sei que talismã, que arrasta todos os espíritos, por bem formados que sejam. O ecletismo nas opiniões, que não são essencialmente filosóficas, repugna ainda aos ânimos, e é crismado de absurdo.

Eu tenho, por tanto, a maioria dos homens por meus inimigos.

Pela mão invisível da Providencia fui arrojado há três anos para o coração do claustro. Por essa inclassificável ação, de que hoje me espanto, tive as bênçãos de uns e os escárnios de outros. Eram ainda os homens místicos e os cépticos que louvavam-me ou vituperavam-me. Pela mão invisível da Providencia fui arrojado outra vez para o tor­velinho da sociedade. Por isso tive a maldição de quase todos. Eram ainda os místicos, que não pejavam-se de cantar a palinódia dos louvores, que me haviam magnificamente dis­pensado, — eram os cépticos, que compunham deste acontecimento um marciálico epigrama.

Hoje, entre tanto, venho oferecer ao publico o comple­mento de meus pensamentos durante meu triênio claustral.

Serei recebido pelos mesmos homens: — por tanto, muito mal.

Não importa.

Nos países eminentemente ilustrados não aguarda-se mais pelo juízo da posteridade. Vivendo-se, goza-se já do nome, que antigamente depositava-se nas aras misteriosas do por­vir. No Brasil, porém, não é ainda assim. Eu tenho — gra­ças a Deus, — o consolo de poder esperar pelo futuro em minha pátria!

Neste sonho sedativo da consciência, — seja uma ilusão embora, — adormecerei tranqüilo.

Entre tanto, — fervam os pensamentos da paixão. Os es­critos poéticos, que apresento, não foram formados em de­lírio. Entusiasmada raiva! que tenho eu contigo?

A hora da inspiração é um mistério de luz que passa inapercebível. Com tudo, eu tenho consciência de que, por mais etéreo que seja aquele momento, cantei tão-somente o que o imperativo da razão inspirava-me como justo. Não exclui, na verdade, o sentimento nestas composições a que presidia a solidão, porque ninguém o pode, — mas também não sou cabalmente um poeta. Há em mim alguma coisa de menos para completar o anjo das harmonias terrestre. Há, por ventura, a reflexão gelada de Montaigne, que apaga os ímpetos, que mata às vezes a mesma sublimidade. Klo­pstok, eu não posso acompanhar teus vôos!

Pelo lado da arte, meus versos, segundo me parece, as­piram a casar-se com a prosa medida dos antigos.

Sabe-se que os latinos modulavam os períodos do dis­curso. Sabe-se que os italianos, em seu século clássico, imi­taram miudamente aqueles, de quem tinham herdado a literatura. Sabe-se que os primeiros escritores portugueses cadenciavam igualmente suas construções. Sabe-se que, atingindo a música prosaica a uma perfeição absur­da, desterrou-se completamente do discurso todo o artifício. A versificação triunfou sobre as ruínas da prosa. Bocage deixa de ser poeta, para ser musico. A prosa tinha expi­rado.

Começa-se então a procurar um acordo. O modulo dos latinos, estudado e seguido pelos italianos, quase aperfeiçoado pelos portugueses, tinha algum tanto de justo e de belo. A prosa recobrou os seus direitos.

Tudo isto traz com sigo algumas perguntas necessárias:

Até onde irá a melodia da prosa? Será a prosa um dia tão acabada de melodia, de ritmo, de harmonia mesma, que venha a ser inútil a música da forma poética? Chegará um dia a literatura a um tal grau, que distinga a prosa e a poesia tão-somente pelo nuance dos pensamentos? Nas­cerá um dia destas duas expressões mais ou menos belas uma forma intermediária, que espose tanto da singeleza da prosa, quanto do artifício da versificação? Será o futuro o mesmo que o passado, — e a prosa, em um circulo cons­tantemente vicioso, voltará para a poesia, e a poesia de novo para a prosa? O Telêmaco de Fenelon, os Mártires de Cha­teaubriand, os Dramas modernos, os Romances mesmos de agora, que são porventura arremedos de epopéias, não se levantam, como brados majestosos, contra esta ultima hipótese? Teremos de viver continuamente no giro deses­perador que descreveu o Eclesiastes? O que foi será o mesmo que há de ser em toda a sua amplitude, — ou aquele axioma sagrado admite restrições? Meu Deus! o vosso Cristo, descendo de vosso eterno e fecundo seio, não trouxe à humanidade alguma idéia nova, algum fato que inda não tivesse sido?

Presentemente, — cuido eu, — nem uma resposta pode dar-se a estas questões, se não uma dúvida. Pois bem: — meus versos representam esta hesitação, segundo penso. Procuram, a pesar meu, a naturalidade da prosa, e receiam desprezar completamente a cadência bocagiana.

Alem disto, a quem canta pela razão, e pouco talvez pelo sentimento, esta forma singela, quase não trabalhada, por ventura mais severa, é que melhor lhe pode convir.

O aspecto social, que parecem ter estas composições, obri­gam-me ainda a não finalizar de súbito este prólogo.

O que cantas? — perguntar-me-ão.

O que podia eu cantar, encerrado nas muralhas solitárias de um claustro, ouvindo a cada hora os toques continuados de um sino que chama à oração, vendo uma turma de homens com vestidos talares negros, que levavam-me â recordação dos costumes dos tempos antigos, passeando sempre sobre um chão povoado de sepulcros, conversando com o silencio do dia e a solidão da noite?

Cantei o monge e a morte.

Cantei o monge, porque ele sofre, — sofre muito.

Cantei o monge, por que o mundo o despreza. Cantei o monge, porque ele é hoje uma coisa inútil e ociosa, em conseqüência de suas instituições anacrônicas. Cantei o monge, por que ele não tem culpa de ser mau, nem pôde por si só ser bom. Cantei o monge, por que ele poderia ser uma personagem quase necessária, dando­-se-lhe as leis comuns da humanidade.

Cantei o monge, por que ele é infeliz. Cantei o monge, por que ele é escravo, não da cruz, mas do arbítrio estúpido de outro homem. Cantei o monge, por que não há ninguém, que se ocupe de cantá-lo.

E por isso que cantei o monge, cantei também a morte. É ela o epílogo mais belo de sua vida: é seu único triunfo. Na verdade, ao homem sincero amante de sua pátria, doe-lhe dentro da alma ver tanta gente estacionada, sem nada fazer, podendo produzir tanto bem. Não! a caridade que o Cristo ensinou, não é egoísta: — imagem real do pelicano, que arranca o coração para dá-lo aos filhos!

Muitos, a quem tomam o cuidado de chamar — ímpios, — censuram o monge no monge. Eu deploro-o somente, por que ele não é criminoso. A instituição, a instituição é que, depois de lhe tirar o trabalho, hoje em dia já não preciso, de rotear montanhas, não lhe forneceu outro qualquer em ordem às necessidades da época, mas antes convidou-o a uma espécie de ócio, no qual ele não pode ser mais, que | mau e desgraçado.

Eu falo com o coração entre as mãos acerca de todas essas causas, — de todos esses padecimentos.

Quorum pars magna fui.

Como esse Enéias, desenhado pela imaginação de Virgilio, saindo do boqueirão das chamas, que ainda lavram, posso, — graças a Deus! — falar de Tróia, sem correr seus riscos.

Oh monges, — feitos assim como estais, constituídos deste modo, — que sois mais que estas árvores infrutíferas, de que fala o evangelho, que não servem, se não para o fogo? Se o homem Deus passasse por vós, como passou pela figueira estéril, não vos destruiria pela raiz, como o raio fulminante da maldição eterna?

Sede jesuítas, como sois, sede-o: mas sede-o também, como os Anchietas, os Nóbregas, os Vieiras. Por que não?

Olhai: — aí estão nossos sertões, nossas florestas se­culares, sombreando imenso gentio, acobertando um culto infame, defendendo bárbaros costumes, balouçando de ter­ror e de esperança. Ide, apóstolos do Unigênito do Eterno, atirai-vos a essas matas, pregai o evangelho, civilizai! Não é esta a vossa missão?

A civilização do mundo ainda carece de vós. Os Tomés ainda são necessários.

Ide, atletas da caridade, marchai para a conquista do pensamento cristão. Que vos falta? Vosso mestre vos enviava às nações — munidos tão-somente da palavra.

Os Nóbregas não tinham mais do que vós, — e nós, — não nos envergonhemos, — fomos civilizados por eles.

Eis-aqui porque a memória dos filhos de Loyola me é cara, eis-aqui por que eu os canto também a eles, pelo que fizeram, — como vos canto a vós, pelo que podíeis fazer.

Cometeram erros, eles: mas não é um dos axiomas da historia — que os que empreendem grandes coisas, cometam igualmente grandes erros?

Por essas convicções, — não escureço, —achar-me-ão sem dúvida em contradição nos meus cantares.

Meditai porém, examinai o fundo, e lá encontrareis a unidade, o foco, o centro, o principio da luz, embora o prisma represente raios de diversas cores.

O século passado para mim é sempre um século magnânimo de crimes: mas nem um século escoou-se debalde no percorrer dos tempos: o século passado é também um sé­culo inteligente e progressista. Remontando-me algumas vezes ao seio dele, eu, com a alma fundida na educação do século dezenove, arrepio-me de horror, e canto a caridade cristã, que lá encontro menoscabada. Procuro então revestir-me com os ademanes dos homens católicos daquela época, esqueço-me exteriormente de mim, de­testo-lhe a moda absurda de impiedade, e maldigo aquele circulo de ferro, em que circunscreveu-se aquele período de torpeza. Os meus — Claustros— e algumas composições mais assumiram esta cor. Quando, porém, limito-me ao meio-século, em que tenho aparecido, e deparo com tudo o que me cerca, digo: — Respeitemos nossos pais. — Se eles olharam para a caridade cristão, para a fé evangélica, como para estátuas de irrisão, — colocaram todavia em um altar a liberdade. A liberdade também é filha do Cristo. O meu poemeto — O monge — representa princi­palmente este estado.

Eis aí, pois, a definição de meu trabalho. Julgai-o por essa maneira, — e sede rigorosos, sim, — porém justos.

A despeito de toda esta minha confissão, eu sinto, como por instinto, que muitos, lendo este livro segundo seus próprios gostos, e não segundo o espírito que por todo ele domina, dirão que é uma coleção de orações e blasfêmias. Não! eu não direi isto. Lembrarei somente que esta é a obra de um jovem educado no seio de uma corporação religiosa. É esta toda a minha apologia.

Não posso concluir este prólogo sem cumprir com o dever sagrado do agradecimento para com o Rvm. Sr. cônego José Joaquim da Fonseca Lima, e padre mestre Domingos José de Britto, pelas lisonjeiras expressões de animação e benevolência, que me dirigiram por vezes nas colunas do Noticiador Católico. O ilustrado publicista Sr. José Pedro Xavier Pinheiro é também para comigo credor de muita estima e gratidão, pelo modo distinto e acoroçoador, com que tratou-me em sua Revista no periódico Justiça. O Sr. Dr. Ricardo Gumbleton Daunt penhorou-me igualmente com as palavras de alento, que dispensou largamente comigo, na Aurora Paulistana. Julgo preencher um compromisso bem difícil, estampando nesta página a abundancia de mi­nha gratidão, muito mais ainda quando os liames da ami­zade não me estreitam a nem um deles.

 

JOSÉ JOAQUIM JUNQUEIRA FREIRE

Era jovem, e bem jovem, o baiano Junqueira Freire! Nas­cido no dia 31 de Dezembro de 1832, entrou para o con­vento dos Beneditinos na idade de 19 anos, e nele passou o tempo precioso da juventude. Conseguiu porém secula­rizar-se em 1854, trocando então a solidão pela sociedade, e deixando a célula do monge para se atirar na existência contrariada do mundo.

A parca cruel arrebatou-lhe a vida imediatamente; cei­fou-a assim em flor, sem nenhuma piedade e no momento em que, ao desabrochar, já espargia tanto aroma, e prometia à terra da pátria um gênio admirável!

Desapareceu do claustro; não era porém o mundo des­tinado para ele; desapareceu logo do mundo; deixou to­davia para memória um livro, pouco volumoso, mas rico de inspirações elevadas, de pequeno numero de páginas, e resplandecente de poesia, e poesia verdadeira!

São tão raros os poetas! Não faltam versificadores, prin­cipalmente nas línguas do meio-dia da Europa, cujas pala­vras se prestam excelentemente à rima, e é a frase já por si harmoniosa e cadente; os poetas que todavia nascem inspirados, e que a natureza enriquece com imaginação es­pantosa; os poetas verdadeiros, raros são, porque a Provi­dencia tem prediletos, e não podem ser estes numerosos.

Era Junqueira Freire poeta! O pequeno livro das INS­PIRAÇÕES DO CLAUSTRO o demonstra; ardia-lhe no cérebro a chama divina; ainda quente deve estar o seu corpo, se bem que já sepultado na terra, e já dele falamos como de uma coisa que foi, de uma nuvem que passou, e de um som que se sumiu no espaço.

Parece que teve um pressentimento de morte precoce: sabido do claustro, publicou o bebo livro das inspirações, e logo que o entregou ao mundo, como para deixar-lhe a dor e a saudade, fechou os olhos, e desceu à sepultura!

Não é novo este acontecimento na historia literária: Chat­terton morreu antes de 18 anos de idade, Gilbert chegou apenas aos 29.

Como Chatterton e Gilbert, sentia o poeta Junqueira Freire intensa necessidade de olhar para o céu e para a eternidade; no meio de suas dores do claustro, como aqueles seus irmãos, no meio das angustias da fome, apelava o vate para Deus, e no seio imenso do Criador do mundo encontrava abrigo e consolações:

Porque se me extasia a mente às vezes,

E vaga, e vaga, alígera e perdida

Pelas soidões do Armamento etéreo,

Bem como o serafim, que esguarda os mundos,

Livre os celestes paramos percorre?

Porque penetra, às vezes arrojada,

Nos mistérios recônditos do eterno,

E toda entorna-se a seus pés, - bem como

O alabastro de nardo aos pés do Cristo?

Porque se abraça em incorpóreo amplexo

Co'os angélicos seres de além-astros,

E, como as chaves das eternas portas,

Abre os tesouros do poder do Altíssimo,

E neles bebe inexauríveis gozos?

Extasia-se assim Junqueira Freire, o poeta que a Bahia e o Brasil acabam de perder, quando à mente lhe fulgu­rava a imagem solene da imensidade; sonhava, delirava, adivinhava, como sonham, deliram e adivinham os grandes gênios que nascem feitos e não se formam no mundo.

Poeta, que vida fora a tua? tu o dizes quando pintas as dores do claustro. Ali se quebrou a tua juventude como o aço ao roçar da pedra; perderam-se os teus gemidos pelos longos corredores e sombrias celas: ajoelhado ao pé do altar, e em cima de sepulturas, é que te vinha o alívio, a espe­rança, e a voz. do anjo, que te chamava para outro mundo, que devia ser o teu, pois que é o mundo que te merecia.

Gosto de meditar, de noite, às vezes,

Como um infante,

Espasmado no olhar, fitando o corpo

Que tem diante.

Entre tantos cânticos e pela máxima parte cânticos de dor, que lhe arranca a solidão, parece que não há escolha; contêm quase todos belezas que denunciam um gênio poético da primeira plana: imaginação, sentimento, idéias, paixões, inspiração sublime, tudo se alia perfeitamente com a seleção da palavra, o apropriado da frase, a maviosi­dade do verso e a justeza da rima.

Junqueira Freire, se pela imaginação pertencia à escola de Sousa Caldas, Francisco Manuel, Almeida Garrett e Diniz, pela forma, vestes exteriores, e metrificação, recebeu de certo lições de Gonzaga, Camões, Garção, Bocage e José Basílio da Gama.

Como é lindo e melancólico o cântico intitulado — Um pedido!

Com este cântico rivalizam em doçura e tristeza o da profissão de frei João das Mercês Ramos, a canção intitu­lada— Ela, —os versos aos jesuítas, cheios duma cor local brasileira, que muito agradam, e as elegias — Flor murcha do altar, Freira, e Devota; derrama-se a poesia por todas as estrofes, versos, frases, e palavras; sente-se com a sua leitura, e sente-se profundamente, a perda dum gênio que começava os seus vôos, que já se podem chamar — vôos de águia!

Ah! se a dura morte se não apressasse a riscá-lo do numero dos viventes; se este jovem de 22 anos tivesse tempo de amadurar o seu engenho, moderar e regularizar a sua inspiração, colher no estudo mais profundeza de pen­samentos, que grande poeta que fora, e quanta glória der­ramaria sobre o seu país natal!

O cântico à profissão de frei João das Mercês denota o sentimento, mágoa e dor, que já haviam começado a apo­derar-se do seu espírito, e desbotar-lhe as cores mais suaves; o isolamento do claustro não poderá vencer as paixões do jovem, e quebrar-lhes os brios naturais; afigurava-se-lhe o claustro um inferno medonho, aonde lhe haviam enterrado a existência para lha amargurar e emurchecer; no meio das suas angustias exalava suspiros desesperados como os Claustros, Apóstata, Converso, e Misantropo; às vezes fe­lizmente o salvava o sopro divino, arrebatando-lhe o espírito e vôos para as idéias melancólicas, religiosas e morais, que brilham e resplandecem primorosamente na Meditação, Incenso do altar, Irmãs de caridade, e Pobre soberbo.

Quereis ouvir como se perdia aquele espírito poético, quando balançando entre a desesperação do isolamento e as crenças religiosas, entre as saudades da vida humana e a prisão da célula, fazia soar a lira com arrebatamentos do­lorosos? Lede o Cântico à profissão de frei João das Mercês.

Versos expressivos tem também o cântico da Meditação; há um doer constante, e penar contemplativo, que se ob­serva nesta existência juvenil e ardente, que fere e rasga o peito, e chama as lágrimas aos olhos.

Oh! morra o coração — gérmen fecundo

De mil tormentos;

Desfaleçam-lhe as fibras — espedacem-se

Os filamentos.

Isenta de paixões — de amor, ou ódio,

Surja a razão;

Não obedeça escrava aos sentimentos

Do coração.

Torne-se o coração lâmpada extinta,

Cinza no lar;

E deixe que a razão veleje livre

Em largo mar.

Creia num Deus — e dos dulçores goze

De almo ascetismo;

Não mais lhe roa as vísceras o cancro

Do cepticismo.

A dívida infernal, batendo as azas,

Perdendo as cores,

Precipite-se súbito nas chamas

Exteriores.

E Deus, que vivifica o alvar pinheiro,

E a tenra planta;

Que os soberbos calcina, e que os humildes

Do pó levanta;

De minha vil baixeza, como os homens,

Ah! — não se peja;

Que ele mão cheia de mil dons em todos

Largo despeja.

Mas se ‘té 'qui parece deslembrado,

Triste de mim!

Se não manda a guardar minh'alma dúbia

Um querubim!

Se nunca se lembrar que um ente existe

Nessa amargura!

Melhor não fora me gelasse o sangue

A morte dura?

Bastam estes extractos para conhecer-se o gênio poético que se escondia sob as vestes do monge; servem eles para deplorar-se o passamento prematuro de uma existência tão cheia de futuro, de um engenho tão ricamente mimoseado pela Providencia divina. Como era jovem não podia escapar à sorte humana e aos defeitos da mocidade; há nos seus cânticos alguma exageração de sentimentos, alguma extravagância de idéias: é defeito da idade. É também influxo da escola de Lord Byron, cuja leitura se tem espalhado por todo o mundo, e produz nos cérebros juvenis tendências desordenadas, que só a idade, e a razão amadurecida sabem evitar.

O talento e o gênio poético nascem espontaneamente, re­cebem porém da educação, do tempo, do estudo, e do mundo, o aperfeiçoamento necessário que lhe troca as vestes brilhantes e sedutoras do fogo ardente pelos vôos acertados e sublimes do entusiasmo refletido.

Tem canções que revelam qualidades de Juvenal: a can­tata a Frei Bastos, que parece que ajuntava os dotes da poesia e oratória a vícios imundos que lhe estragavam o corpo e dessecavam-lhe o espírito, é interessantíssima, alem de pitoresca: denuncia a força do poeta, e a elevação do espírito que o animava.

Não foi infelizmente Junqueira Freire o único poeta dos nossos dias e da nossa terra que a morte ceifou na juven­tude, roubando à literatura brasileira escritos, que prometia gloriosos o gênio das florestas americanas. Dutra e Mello, Álvares de Azevedo, Francisco Bernardino, Pinheiro Guimarães, e Casimiro dAbreu já também desceram ao sepulcro, legando poesias inacabadas, que provam todavia que sobre este solo não espargiu somente o Criador da na­tureza favores divinos para o bem estar, crescimento, e ri­queza do povo, que o habita. Pretendeu também, em sua infinita bondade, que o espírito se elevasse, e a imaginação dos homens subisse à compreensão dos seus mistérios, podendo satisfazer as precisões morais da sociedade, que se necessita de marchar fisicamente, não consegue fortalecer-se, e medrar sem o alimento para a alma, e a instrução para o pensamento imaterial, que dirige o homem.

Durante os tempos coloniais enriqueceu-se a literatura portuguesa com os produtos dos gênios, que criou a sua conquista dos Trópicos. Era de razão, porque formávamos todos o mesmo país, e um só reino. Basílio da Gama, Sousa Caldas, Durão, Alexandre de Gusmão, Antonio José, Rocha Pitta, os dois Alvarengas, Gregório de Mattos, Benevides, os bispos de Coimbra e Elvas, Moraes, Bartolomeu Gus­mão, Cláudio Manuel, Mello Franco, São Carlos, Antonio de Sá, Vidal de Negreiros, Câmaras, Conceição Velloso, e tantos engenhos mais, nascidos no Brasil, enriqueceram as páginas da historia portuguesa nas artes, ciências, letras, e política; nos campos sanguinolentos da guerra, e nas agradáveis planícies da paz. Ergue-se com a sua emancipação política uma nação nova, à qual D. Pedro I e José Bonifácio ensinam os primeiros passos, e ilustra o visconde de Cairu com a sua instrução variada.

Brilham já a tribuna sagrada e parlamentar com uma glória própria. Uma historia nacional se ergue à parte, e caminha o país para os seus destinos particulares. Animam associações literárias o desenvolvimento espiritual.

São Leopoldo pratica o ramo histórico, acompanhado por J. F. Lisboa, Varnhagem, Januário, e Pedro Branca entoam cânticos agradáveis. Abre Magalhães espaços novos para a poesia. Seguem-no Gonçalves Dias, Porto-Alegre, Firmino, Norberto, Macedo, e tantos jovens talentos que fulguram no horizonte da pátria. Reúne e publica o Insti­tuto materiais os mais importantes para a historia e geografia. Já mesmo no teatro aparecem engenhos originais, que traçam cenas copiadas do povo com quem vivem.

Brilham ainda hoje mais as letras, na verdade, no seio da antiga metrópole; não estão porém nela mais adiantadas as ciências práticas e abstratas: e os progressos materiais no Brasil tomaram sem dúvida a dianteira; a liberdade política ganhou mais profundas raízes; e a amor às insti­tuições tornou-se mais universal, e seguro.

Corra o tempo. Desapareçam todas as rivalidades, filhas de prejuízos antigos e hoje sem a menor base. A língua é a mesma; e ajudando-se ambas as literaturas, honrar-se-á cada uma das duas nações com o que é seu próprio, e lutarão, sem o mesquinho espírito da inveja e despeito, no vasto e brilhante teatro da inteligência humana, elogiando-se e estimando-se mutuamente.

Assim o praticam os Estados-Unidos da América do Norte, e não deram eles à Inglaterra, durante os tempos coloniais, vultos notáveis, que honrassem a mãe pátria, como o fez o Brasil para com Portugal. A independência das colônias britânicas forneceu-lhes ocasião então de tornar conhecidos Franklin e Washington à nacionalidade que criaram, devem o impulso e movimento que recebem os espíritos atualmente. Irving, Cooper, Story, Longfellow, Webster, Pres­cott, Banckroft, Wheaton e Maury, são vivas demonstrações de que a terra americana produz também talentos que honram a língua inglesa, e em todos os ramos dos conhecimentos humanos. Distingue-se porém a literatura propriamente da América; forma já uma espécie de nacionalidade; guarda como que uma autonomia. Há no colorido, na expressão, e no próprio desenho a especialidade do compatriota de Washington; diferem as sociedades em pontos sensíveis, como pode a literatura deixar de acompanhá-las, quando não é ela mais do que a imagem intelectual das socieda­des?

Possui a Grã-Bretanha os seus clãs e montanheses, as suas lutas civis, e torneios do cavalheirismo, para que um Walter Scott os pinte, e poetize um Shakespeare, historia­dores nacionais mais profundos do que Hume e Robertson. Apresenta a América do Norte os seus índios bravios, com os pitorescos costumes, e hábitos originais, guerreando constantemente os invasores europeus, que vinham roubar-­lhes a terra, a caça, os lagos e os rios, aonde viviam e vi­veram os seus avós: é esta a primeira diferença, histórica inteiramente. Nasce a segunda do estado atual do governo, instituições, leis, usos e tendências: que separação imensa entre os dois povos! Aparece ainda uma terceira, e notavelmente grave. O americano de hoje não é mais o descendente do inglês, é tão inglês como é este normando; procede o povo inglês de hoje de uma única raça, saxônica, normanda, ou da primitiva, que encontraram os romanos, quando, no seu tempo de domínio universal, se apodera­ram das ilhas dalem da Mancha? De certo, não. Formou-se uma nação original da aglomeração de todos os povos, que para ali se dirigiram, e que, inimigos ao principio, se foram, depois das sucessivas conquistas, aproximando e aluando, reunindo elementos heterogêneos, e fundindo as raças. É assim hoje o povo americano. A origem foi, em geral, britânica; mas a torrente de colonização, e as tendências da democracia, a tem metamorfoseado já, de modo a nem reconhecer-se talvez mais a tintura primitiva. Amálgama de Alemão, Inglês, Francês. Espanhol, Ita­liano, e até de gente do Norte, tornou-se uma raça nova e distinta, cujos traços se manifestam à primeira vista, apesar da homogeneidade da língua. Não pode portanto escapar a sua literatura às divergências sensíveis e graves, que se­param a sua sociedade da sociedade da antiga metrópole.

Se bem que entre o povo do Brasil e o de Portugal não apareça uma tão grande diferença, porque nem as insti­tuições, e governo das duas nações se distinguem em tão larga escala, e nem tem o Brasil modificado a raça con­quistadora com a infusão de sangue de outras raças diversas, como sucedeu no Norte da América; há todavia no céu, na terra, nos mares, nos rios, na atmosfera, na distancia, nas produções da natureza, enfim, uma separação tão palpável, que já, durante os tempos coloniais, distinguiram se alguns poetas nascidos no Brasil, pelas vestes, colorido, e tendências de seus escritos, dos vates da Lusitânia, se bem que a maior parte, educando-se, e vivendo na Europa, adotaram inteiramente os hábitos portugueses, e seguiram as inspirações de Ferreira, Quita, e Sá de Miranda.

Souberam todavia tomar diferente direção, Cláudio Ma­nuel, Basílio da Gama, e Durão, que se podem apelidar os chefes da literatura brasileira, que hoje, com a emancipação política, e a vida própria da sociedade, desenvolve a sua autonomia, e segue os vôos da águia, que paira sobre as alcantiladas cordilheiras, que se perdem no espaço, e espantam e embelezam os olhos dos viajantes.

Erga-se pois a mocidade brasileira! Tenha fé nos seus destinos, e inspire-se com a pátria admirável, que lhe coube na partilha que fez da terra a Providencia divina! Desen­volva-se a sua literatura no meio do seu clima esplendido e soberbo, e encontre ela no seu povo o apoio e proteção, a que tem indisputável direito!

 

POR QUE CANTO?

Vai e clama.

(Palavra do Senhor a Jeremias).

Porque se me extasia a mente às vezes,

E vaga e vaga, alígera e perdida,

Pelas soidões do Armamento etéreo,

Bem como o serafim que esguarda os mundos,

Livre os celestes páramos percorre?

Porque penetra, às vezes arrojada,

Nos mistérios recônditos do Eterno,

E toda intorna-se a seus pés, — bem como

O alabastro de nardo aos pés do Cristo?

Porque se abraça em incorpóreo amplexo

Co'os angélicos seres de além-astros,

E, como a chave das eternas portas,

Abre os tesouros do poder do Altíssimo,

E neles bebe inexauríveis gozos?

Porque Deus — substância eterna —

Donde minh’alma baixou,

Quer às vezes que ela suba

Ás delicias, que deixou.

Porque se me extasia a mente às vezes,

E por entre delíquios exaltados.

Desce às fatais, exteriores trevas,

Aos in sondáveis boqueirões do inferno,

Bem como o anjo da soberba outrora

Pela invisível destra fulminado?

Porque prova um prazer terrível, forte,

Em ver a imagem Desse horror tremendo,

Em ver a face Desse caos torvado,

Em ver o orgulho do pecado infindo?

Porque no fundo da geena ardente

Sentir procura as emoções mais bárbaras,

Gostar deseja sensações de fogo,

Como procura a fátua mariposa

Chamas de luz, que há de, talvez, queimá-la?

Porque Deus também às vezes

Para os abismos nos lança,

Para vermos seus castigos,

Seus tesouros de vingança!

Porque se me extasia a mente às vezes,

E sente em si um vácuo desmedido,

Uma infinita inanição ignota,

Como talvez o espaço, o qual se estende,

Se derrama e se perde a nossos olhos?

Porque procura — sequiosa, arfando —

Encher esse vazio indefinível,

Qual para lábios tórridos, queimados,

Enche-se um calix de cristal suave?

Porque procura, um coração estranho,

Qualquer embora, — mas que o seu não seja,

Para nele fundir-se inteiro, inteiro,

Como vários metais de varias sortes

Ao mesmo fogo idênticos se ligam?

Porque Deus — saber eterno —

Tais a nós nos quis formar:

Quis a hera unida ao tronco,

Quis a terra unida ao mar.

Porque se me extasia a mente às vezes,

E vaga pelo mundo, e julga os homens,

Qual severo juiz, e os escarnece,

E compondo um sarcasmo às frases suas

Co'o riso de Demócrito os insulta?

Porque descrê das afeições, que mostram,

Francos, singelos, como o rir do infante?

Porque despreza um coração de amigo,

Que o foi por tempos, na aparência ao menos,

E falsário, traidor, demônio o chama,

Por um assomo de suspeita ou cólera?

Porque da criação blasfema às vezes,

E tem por maus os sentimentos de homem,

E a natureza dos mortais exprobra

Ante o Senhor, que no-la deu tão justa?

Porque Deus também às vezes

O braço de nós retira,

Para vermos os perigos,

Em que noss'alma se atira!

Porque se me extasia a mente às vezes,

E num enlevo mentiroso sonha,

E dá no seio de um prazer sem termos,

Esbarrando no amor, como na imagem

Da ventura maior que o mundo oferta?

Porque se abraça neste amor terrestre,

E as emoções mais físicas apura,

E as quer, e as busca, e tresloucado as ama

Co'a mesma devoção, que aos céus dedica?

Porque em tal modo o espírito embrutece,

E vai sua alma estúpida tornando,

Que às plantas da mulher, que dele zomba,

Chega a prostrar-se, e jura-lhe perverso

Paixão eterna, além da campa; — e o corpo

Dar ao martírio por amor promete?

Porque Deus deixa a matéria

Ter também sua vitória,

Para que, — quando a alma vença, —

Brilhe maior sua glória!

Porque se me extasia a mente às vezes,

— E quanto fui beber no céu, no inferno.

No mundo, em tudo, que medito ou vejo,

Por meus lábios de vate se derrama

Em torrentes de harmônica linguagem?

Porque Deus pôs em meu peito

Um tesouro de harmonia:

Deu-me a sina de seus anjos,

Deu-me o dom da poesia.

Cantarei o céu, o inferno,

O mundo, — o que me aprouver

Cantarei a Deus, o homem,

Os amores da mulher:

Cantarei, em quanto vivo,

Porque Deus assim o quer!

 

O REMORSO DA INOCENTE

À minha irmã Maria Augusta

Alma de serafim, prenda do Eterno,

Ai! quem te despenhou do céu à terra?

I

Pelo sinete do crime

Não é que está desbotada.

Não chora. Suspira apenas,

Por seus ais entrecortada.

Tristezinha corre os claustros,

Tristezinha a suspirar,

Vai junto à lousa das freiras

Ajoelhar-se a rezar.

Reza orações de finados,

Reza a seu anjo da guarda:

E da flor dos lábios dele

Perdão aos erros aguarda.

Não sabe o nome dos crimes,

Ás paixões não dobra o dorso;

Mas naquele peito ingênuo

Mora inquieto um remorso!

Como relíquias sagradas.

Conserva os primores seus;

Mas doe-lhe não ser ainda

Toda, toda — só de Deus.

II

Ei-lo, o remorso da virgem,

O remorso da inocência,

Que, como a idéia do Eterno,

Ameiga na consciência.

Rezou, rezou fervorosa,

Beijando seu relicário;

Arfou, — qual luz matutina

Tremendo no alampadário.

E um sorriso descorado

Descerrou-lhe lábio e lábio,

Como o palor que desenha

A fronte vasta do sábio.

Beijou a laje da campa,

— Da campa, que há de ser dela,

E vai cismar merencória

Na gelosia da cela.

— Por simpleza arreceando

Que algum fantasma não venha,

A correr, aos ares dava

Suas vestes de estamenha.

Que as trevas do claustro e as tumbas

Bafejam tremor sagrado;

E as virgens sempre imaginam

Erguer-se um morto a seu lado.

III

Cisma a virgem mansamente

Em pensa mentos do céu,

Mais cândida que as rolinhas,

Mais cândida que seu véu.

E cismava: — Ai! que eu não seja

Já para Deus menos bela,

Como a bonina que murcha

Que eu arranco da capela! —

E cismava: — Ai! que eu não tenha

Um crime, sem eu saber!

Qual será? — Ontem de noite

Eu não pude adormecer! —

E cismava: — Ai! que eu não seja

Menos linda ao meu Senhor!

Já hoje eu corri do claustro:

Dos mortos tive temor...—

E cismava: — Ai! que eu não seja

Ré de um crime que eu não sei,

Bem como o inseto escondido

Na rosa que ontem cortei! —

Ei-la, a cisma da donzela,

Da filha da solidão;

Ei-lo, o remorso que esconde

Nas dobras do coração.

IV

O remorso do malvado

É desespero e loucura,

E a reminiscência dele

O coração lhe tortura.

Mas o remorso da virgem

Lhe cala na consciência,

Como a placidez do justo,

Como a visão da inocência.

 

PEDIDO

Não é verdade que possa-se bem escrever, quando se sofre.

CHATEAUBRIAND.

Belo jovem, tu vagueias

Por campinas de esmeralda.

Adormentas sobre as flores

O doce amor que te escalda.

Ainda o céu te aparece

Vasta abobada de anil.

A teus olhos não há nuvem,

Nem furacão, nem fuzil.

Inda levantas os olhos

Á tua estrela feliz,

Lês cada noite em seus raios

Mil esperanças gentis.

Depois das visões ditosas

De teu dourado dormir,

Acordas falando amores

Com prazenteiro sorrir.

Ao ardor meridiano

Ouvem-te ainda cantar.

Não vês a mágoa estampada

Na face crepuscular.

Pela escada da ventura

Sobes cad'hora um degrau,

Tua existência mimosa

É um contínuo sarau.

Belo jovem, — no teu peito

Não tocou a mão da dor.

Teu espírito inocente

Pode bem pensar de amor.

Belo jovem, — só tu podes

Co'os sentimentos na mão,

Falar palavras ardentes,

Labaredas de paixão.

Eu que tenho lutado contra a vida,

Bebido noutro cálice de dores,

Jovem! — não posso meditar doçuras,

Cantar ternos amores.

Eu que nunca senti nos olhos dalma

O traspassar dos olhos da donzela,

Jovem! — não posso te pintar ardores

Que não senti por ela.

E se eu quisera, disfarçando angustias,

Cantar suave a tua bela Armia,

Jovem! — de todos eu teria em paga

Um riso de ironia.

 

MEDITAÇÃO

Isto pensava, isto escrevo, isto tinha n'alma, isto vai no papel: que doutro modo não sei escrever.

GARRETT.

I

 

Gosto de meditar de noite, às vezes,

Como um infante,

Espasmado no olhar, fitando o corpo,

Que tem diante.

Gosto de meditar de dia, às vezes,

Como o ancião,

A quem idéias se erguem do passado

Em borbulhão.

O infante, o ancião!—os dois extremos

Da existência;

Um à vida, outro à morte, iguais amostram

Igual tendência.

Este é planta mimosa, delicada,

Esperançosa:

Aquel'outro hasteada e quase murcha,

Colhida rosa.

Este promete e cheiro e viço e ramas.

Flores ao cento;

Aquel’outro esgalhar espera as folhas

A certo vento.

E muitas vezes o sol cresta a plantinha,

Denuda e mata:

E vinga a planta antiga, — e quase morta

Revive intacta.

O velho então é como o infante estúpido,

Que nasce agora:

Magina mil visões: sem causa ri-se,

Sem causa chora.

Se fui infante estúpido e pasmado,

Adulto louco:

Se hei de ser velho, sem sentir, sem alma,

Daqui a pouco.

Antes quisera ser infante, — quase

Sem sensações:

Não tora ao menos cônscio de remorsos,

Nem decepções.

Fosse por toda a vida infante néscio,

Sem consciência:

Morresse alfim apenas circunscrito

Em minha essência.

II

Por que e para que rompeu meu corpo

Do embrião?

Que melhor que não fora me abafasse

A compressão?

Fora melhor. E o olho vil do hipócrita

Não me veria:

Franzindo-me o nariz atrás das costas,

Não se riria.

Fora melhor. E a seiva de amargores

Não me coara,

E a precoce da estação das dores inda

Não me chegara.

Fora melhor. E o estigma da tristeza

Não me selara.

Melancólica ronha os rins sensíveis

Não mos gastara.

O coração não fora um grosso livro

De negras laudas.

Não me açoitara a hidra dos remorsos

Co'as férreas caudas.

Não me fora sem flores a existência

Contínuo inverno.

Não me fora este mundo um campo estéril,

Páramo eterno.

Onde só nascem, crescem e vicejam

Males sem conto.

Donde se ceifa antecipado pranto,

Enojo pronto.

Porque e para que rompeu meu corpo

Do embrião?

Pela miséria, e para a morte interna

Do coração!

E o Deus, que tem por escabelo nuvens

De ouro e marfim,

De ofendido, parece deslembrado,

— Triste! — de mim!

Deus! para que tiraste-me do imo

Do embrião?

P'ra vida de minha alma, — ou para a morte

Do coração?

III

Oh! morra o coração, — gérmen fecundo

De mil tormentos.

Desfaleçam-lhe as fibras, — espedacem-se

Os filamentos.

Isenta de paixões, — de amor, ou ódio,

Surja a razão.

Não obedeça escrava aos sentimentos

Do coração.

Torne-se o coração lâmpada extinta,

Cinza no lar.

E deixe que a razão veleje livre

Em largo mar.

Creia num Deus, — e dos dulçores goze

De almo ascetismo.

Não mais lhe roa as vísceras o cancro

Do cepticismo.

A dúvida infernal, batendo as azas,

Perdendo as cores,

Precipite-se súbito nas chamas

Exteriores.

Sepulte-se a descrença em negras trevas

De negro inferno.

Creia a razão convicta nas justiças

Do Deus eterno.

Sim: o viburno pequenino, humilde

No prado agreste,

Vegeta ao pé da realeza enfática

De alto cipreste.

E Deus, que vivifica o alvar pinheiro

E a tenra planta:

Que os soberbos calcina, e que os humildes

Do pó levanta:

De minha vil baixeza, como os homens,

Ah! — não se peja;

Que ele mão cheia de mil dons em todos

Largo despeja.

Mas se ‘té 'qui parece deslembrado,

Triste! — de mim:

Se não manda aguardar minh'alma dúbia

Um querubim:

Se nunca se lembrar que um ente existe

Nessa amargura,

Melhor não fora me gelasse o sangue

A morte dura?

Em sala, onde mil luzes por mil lâmpadas

Reparte o gás,

Delas a mais pequena que se apague

Que mal que faz?

IV

Qual rápido relâmpago no espaço

Sói discorrer,

Tal, sem deixar pegadas de seu vôo,

Foge o prazer.

Foge o prazer como a andorinha leve

Os ares corta:

Como o primeiro feto — esperanças suas —

A esposa aborta.

Foge o prazer, qual seta que dispara

Índio sagaz:

Qual no deserto a voz, que um eco apenas

Nos vales faz.

Ali—bem vejo — ali pompéia esplendida

A cena aberta.

E da platéia os vácuos atacados

O povo aperta.

Jubilosas menções, palmas soantes

Rompem, murmuram.

Melíflua orquestra, tímpanos sonoros

A dor lhes curam.

Os vates das paixões enamorados,

Como possessos,

Trovam, filtrando em todos o requinte

De seus acessos.

Fugazes fadas no ademã fantástico

Cisnes gorjeiam.

Depois, prendendo-se a audição aos cantos,

Todos pranteiam.

Arrebatam-se as almas, — magnetizam-se

Os sentimentos.

Mudam de sua ação inda os mais frigidos

Temperamentos.

Letargia fatal! — ao outro dia

Calmos acordam.

E, sonâmbulos quase, — aéreas formas

Só lhes recordam.

A miséria da vida se lhes mostra

Então real.

Catam novos prazeres: nem um deles

De mais lhes val'.

Qual rápido relâmpago no espaço

Sói discorrer,

Tal, sem deixar pegadas de seu vôo,

Foge o prazer.

V

Hora da noite, — hora solene e sacra

Á reflexão:

Quando do mesmo sono o pobre e o rico

Dormindo estão.

Gosto de vós, sombras da noite queda,

Morte do dia,

Que me amparais dos cálidos esgares

Da hipocrisia.

Posso então retrair-me em minha essência,

Viver comigo.

Não me rodeia do traidor a mascara

Com cor de amigo.

Profundo o olhar do hipócrita, —profundo

Como o oceano.

Na retina lhe luz das trevas cegas

O anjo insano.

Sorri também.—Este sorriso estrídulo,

Oh ente vil,

Por dá-lo mesmo assim fazes, empregas

Esforços mil!

Sorri também: e seu sorriso — escárnio —

Da natureza.

Seu sorriso — um prelúdio concebido

De malvadeza.

Quanta vez viração tépida e fresca

Serena os ares,

E procela depois revolta horrenda

Terras e mares!

Quanta vez mil delícias lá desmancha

Vaivém da sorte!

Quanta vez o prazer da vida incauta

Precede à morte!

Assim sorri o hipócrita um sorriso

De fúria má.

Mentiras, manhas ímpias seu demônio

Grato lhe dá.

Hipócrita, que pisas o palácio

E a palhoça e a cela,

Deixa de teus furores esquecida

Uma parcela.

Não me toques na orla dos vestidos

Co'a férrea mão:

Deixa-me entregue na soidão da noite

Á reflexão.

17 de novembro de 1831.

 

O APÓSTOLO ENTRE AS GENTES

A Antonio Gonçalves Dias

— Foste ao principio

Sacerdote e profeta:

Eram nos céus teus cantos uma prece,

Na terra um vaticínio.

Gonçalves Dias

I

Como o brado do anátema gravado

Sobre a fronte do réprobo, — nas terras

Pejado de baldões, envilecido

Pelos filhos dos homens, que o repelem,

Que não concebem a grandeza dalma,

Que não escutam o pulsar dos peitos,

Que não atingem ao sublime e ao Santo,

— O ministro de Deus, — entregue ao mundo,

A senda do viver percorre breve,

Como o rocio, que no albor do dia

Salpica as flores, e ao calor se estanca.

E dorme o eterno sono em campa escura,

Plácido, — como o espírito do justo:

E ainda no olvido dessa mesma campa

Penetra o riso mofador dos homens,

E o molejo do cálido filósofo,

Presumido de si, — como a ignorância,

Que lhe preside aos erros e aos sofismas.

— Nem se queixa: — que é findo o seu martírio,

Única herança, que ao nascer lhe coube!

II

O varão do Senhor, — Moisés, o justo,

Pulsou primeiro os nervos do saltério.

E o estro virgem ressumbrou-lhe aos lábios,

Como a torrente, — impetuoso e santo.

Subiu aos céus, nas azas dos arcanjos,

Um hino a Deus, que lhe acendera a mente.

E o tipo então de sua onipotência

Ao ser finito transmitiu-se.— O povo

Ouviu na terra a incógnita linguagem,

— A linguagem do Eterno. Ouviu-a extático

O mundo inteiro, no estupor do espanto,

Como a explosão vulcânica primeira.

Estreme que era o fogo do profeta,

E a voz e os olhos e o acento e o cenho!

Justiça do Senhor! — Após os tergos

Sepultado o cavalo e o cavaleiro

Nas águas do mar-rubro: — e dante os olhos

Esses vergéis da intacta Palestina,

Prometendo delicias suavíssimas,

Como os olhos da noiva espreguiçados

Nas expansivas, rutilas pupilas

Do paraninfo, que lhe assiste às bodas

Ao mando do Senhor, e à noite e ao toro

Lhe profetiza trêfegos amores.

Esses sublimes alcantis e cerros,

Donde desciam por quebradas trêmulas,

Lambendo os troncos de copudos cedros,

Beijando as hástias de mimosas flores,

Entre os convulsos sílices de gemas,

De mel e leite os trépidos arroios.

Oh Palestina, oh virgem dos mistérios!

Quem assentado em teus alpestres píncaros,

Sentindo o vendaval soprar-lhe a grenha,

E o cedro secular rompendo as nuvens,

Como um gigante, — e ao sopé dos montes

O rio a murmurar, como a donzela

Junto do amante a desfazer-se em queixas,

E ao longe a voz dos vagalhões bramindo

Horrenda mais que a confusão do inferno,

— Quem poderá deixar de ser poeta

Ao menos uma vez, — oh pátria de anjos,

Oh Palestina, oh virgem dos mistérios!

III

Ali foi educado, entre as palmeiras

E o cedro e o murmurar do regato e as penhas

E o rugido dos mares e as procelas,

— O gênio entusiástico do apostolo.

Ele entre as tribos assomou severo

Ás portas de Sion, co'a voz constante,

Como o rugido do leão das selvas.

Vinha vestido de sinistro saco,

E predizia a vinda do Homem-santo,

Do máximo dos vates: — mas as tribos,

As ímpias tribos, e os rabis fanáticos

Escarneceram do pregão do apostolo,

Escarneceram do poder do Eterno.

IV

Ele descreu dos homens e da terra,

E para alçar mais livre aos céus os olhos,

Subiu também aos coruchéus altivos

Das colunas do Egito, que campeiam

Aqui, ali, a recontar às eras

Em seus gastos lavores hieroglíficos

A vaidade dos reis e a falsa crença.

Em derredor o viajor parava,

Fixava nele os curiosos olhos,

E tremia de ouvir-lhe a voz profética.

E em torno à fronte lhe brilhava um disco

De fogo mais que santo, — como alquando

Moisés descendo do Sinai co'as taboas.

Mas os homens alfim o escarneceram,

Escarneceram do pregão do apostolo,

Escarneceram do poder do Eterno.

V

Ele escondeu-se na soidão das lapas,

Nas desertas montanhas de Cassino,

Fugindo Roma, — a dona dos triunfos,

Roma, — a senhora das nações da terra,

E os bailes dela e as cívicas delicias

E os áulicos salões, onde reinavam

A mentira, a traição, o vicio, e o crime,

Disfarçados nos risos dos hipócritas,

Nos ademães dos cortesãos imundos.

Ele escondeu-se.— E os homens o seguiram,

E o viram co'a cabeça reclinada

Em pedra rígida, — e deitado em tálamo

De urtigas.— Mas alfim o escarneceram,

Escarneceram do pregão do apostolo,

Escarneceram do poder do Eterno.

VI

Hoje, porém, ele não mais assoma

Severo e forte às portas da cidade,

Como o bramido do leão das selvas.

Não mais remonta aos coruchéus altivos

Das colunas do Egito hieroglífico,

Co'o disco em torno do semblante aceso.

Não mais asila-se ao deserto e às lapas,

Não foge Roma, — a dona dos triunfos,

Roma, — a senhora das nações da terra.

Mas os filhos dos homens o escarnecem,

Inda escarnecem do pregão do apostolo,

Inda escarnecem do poder do Eterno.

VII

Oh destinos do céu! — porque não somos

Ainda agora os índios das florestas?

Porque degenerado em nossas veias

Gira tão raro o sangue do tamoio?

Porque esse fogo irrequieto e vivido,

Como o corisco a recortar o éter,

— Porque esse fogo, que acendia os olhos,

E o peito imenso do tupi guerreiro,

Nos olhos e no peito de seus filhos

Estanque e frio e gélido volveu-se?

Bárbaros eram.— Mas em ranchos longos,

Nos tejupás pendido das imbiras

Desamparando o vibrador tacape,

E meneando os colos enlaçados

Das correntes das perolas do rio,

E assoberbando as pequeninas testas

Co'o variegado canitar nutante,

E cingindo ao redor do esbelto corpo

As multicores lindas arasoias,

Das araras à púrpura roubadas,

— Demandavam as ocas tenebrosas

Dos severos e ascéticos piagas.

E os consultavam nas empresas árduas,

E decoravam seus oráculos santos,

E decantavam seus poemas místicos,

Como o primeiro beijo da donzela

Dado furtivo entre o amor e o pejo

Nos lábios caldos do donzel, que a vida

Expandir-se-lhe sente em moles pulsos.

— Oh! que não somos os briosos tapes,

Filhos da virgem da guerreira América!

Era o supremo Deus onipotente

Tupá — o sábio autor da linda lua,

Do sol vermelho e das montanhas de ouro

E dos búzios marinhos, e dos cardos

Que o viajor nos areais saciam,

E do azulado beija-flor das veigas

Que trebelha brincão entre os arbustos,

Como os desejos sôfregos do amante.

Que tinha? — Deus é Deus! — vozes não mudam

O ser do Eterno — idêntico, — imutável,

Nos planetas do céu — se mundos forem —

Ou só na terra, se ela é só no imenso.

Jeová, que expedia o arcanjo etéreo

Em vante dos exércitos hebraicos

Co'o facho aceso em fogo inextinguível:

Brahma, que transmitiu a luz celeste,

E o puro espírito e a energia e a forma,

De que é principio, — aos fabulosos índios:

Teos, que deu aos gregos mitológicos

Um vasto olimpo arcado de miríadas

De lindos deuses, — símbolos dos gostos:

Tupá, que engendra no infinito espaço

O trovão co'os bulcões vertiginosos

E os chuveiros de pedra e o raio e a morte:

— Tudo é Deus, tudo é Deus! — o mais sem nomes.

VIII

Nos áditos do místico pagode

O ministro de Brahma aspira incensos.

O áugure de Teos, assentado

Na trípode tremente, auspícios canta.

O piaga de Tupá, severo e casto,

Nas ocas tece os versos dos oráculos.

E o sacerdote do Senhor, — sozinho, —

Coberto de baldões a par do réprobo,

Ante o mundo ao martírio o colo curva,

E aos céus cantando um hino sacrossanto,

Como as notas finais do órgão do templo,

Confessa a Deus; e — confessando — morre.

 

O JESUÍTA

(século XVIII)

Deus é que dirige estas coisas: ele permite que existam imperadores e al­gozes para que haja santos e mártires: ele eleva os impérios para que haja lágrimas, castiga para regenerar.

LACORDAIRE.

Era longe — bem longe: e eu vim primeiro

Cindindo as ondas desse mar profundo.

E por amor da Cruz vaguei sozinho

Nas ínvias matas desse novo mundo.

O tamoio gentil hervava as setas,

Quando pelos vergéis, tão seus, me via:

E co'os olhos fosfóricos ardendo

A taquara fatal a mim tendia.

E tendia a taquara, —mas ao ver-me

Quão sem temor e quão inerme estava,

Trocando em doce o seu olhar fogoso,

O arco e a seta pelo chão rojava.

De mim as tribos bárbaras, indômitas,

De mim o verbo do evangelho ouviram.

E ergui a cruz nos píncaros dos montes,

E após o verbo os povos me seguiram!

Eu disse às tribos: — Todas vós sois ricas, —

Que o ouro e a prata o solo vosso esmalta.

Sois ricas tribos, — mas não sois felizes,

Porque uma crença de um só Deus vos falta.

E eu dei às tribos uma crença doce,

Qual uma chuva de maná celeste:

E as tribos foram desde então felizes,

Qual flor pomposa que os jardins reveste.

E quando os reis da terra se esqueceram

Das tribos dadas a seu cetro forte,

Eu levantei-me, e disse aos reis da terra,

— O povo geme: transmudai-lhe a sorte.—

Eternos templos eu ergui sozinho,

Eternos como a duração da terra.

E sozinho sagrei altares tantos

Ao Deus que aos ímpios c'o trovão aterra.

Eu dei às tribos uma crença doce,

Eu levantei alcáceres eternos.

Deram-me os homens prescrição e morte,

Deram-me em premio as fezes dos infernos.

 

A FLOR MURCHA DO ALTAR

A pedido de Fr. Francisco da Natividade Carneiro da Cunha

Quem não sabe ser Erasmo é que deve pensar em ser Bispo.

LA BRUYÈRE.

I

Está murcha: — assim nos foge

A brisa que corre agora.

Está murcha: — assim o fumo

Cresce, cresce, — e se evapora.

Está murcha: — assim o dia

Em raios afoga a aurora.

Está murcha: — assim a morte

Do mundo as glórias desfaz:

Assim um'hora de gosto

Mil horas de dores traz:

Assim o dia desmancha

Os sonhos que a noite faz.

Está murcha.... Ainda agora

— Eu a vi — não era assim.

Era linda, era viçosa,

Acesa como o rubim.

Reinava, como a rainha,

Sobre as flores do jardim.

II

Foi a donzela mimosa,

Foi passear entre as flores.

Foi conversar co'as roseiras,

Foi-lhes contar seus amores,

Julgando que sobre as rosas

Não se reclinam traidores.

Ela foi co'os pés formosos

Deixando mimoso rastro,

Qual no céu passou de noite,

Correndo, fulgindo, um astro.

E esta rosa foi cortada

Com seus dedos de alabastro.

A rosa ficou mais bela

Naquela virgínia mão.

Encheu de perfume os ares,

Talvez com mais expansão.

Mas a virgem teve à pena

De pô-la em seu coração.

Entrou no templo a donzela

Coberta co'o véu de renda.

— Teme que aos olhos dos homens

Sua modéstia se ofenda:

Como a cortina das aras,

Que aos ímpios se não desvenda.

Leva a modéstia na fronte,

Leva no peito a oração,

Leva seu livro dourado,

Leva pura devoção:

Leva a rosa, — a linda rosa

Nos dedos da breve mão.

Rezou: — e depois ergueu-se,

Dirigiu-se ao santuário,

Modesta, — qual sua prece,

Qual a luz do alampadário:

E depôs a linda rosa

Ao pé do santo calvário.

III

Os anjos depois vieram,

Respiraram sobre a flor.

A flor cobrou mais beleza,

Mais gala e mais esplendor.

Ali ao pé do calvário

Deu mais expansivo odor.

Ali parecia aos olhos

Crescer, crescer... Mas agora?

Agora murcha — tão murcha —

Não tem a gala de outrora.

— Assim o fumo do teto

Cresce, cresce, — e se evapora.

Assim as horas do tempo

Correndo, correndo vão.

Assim passou inda há pouco

O matutino clarão.

Assim ontem foste infante,

Assim hoje és ancião.

Murcha, murcha! — não expande

Jamais seu odor intenso.

Há de secar — feliz dela —

Junto à Cruz do Deus imenso.

Há de aspirar sobre as aras

O cheiro do grato incenso.

Feliz! — seu leito de morte,

Sobre as aras, ela tem.

A prece que vai ao céu,

Sobre ela primeiro vem.

A mirra que a Deus incensa,

Incensa a ela também.

(1853).

 

O INCENSO DO ALTAR

I

Os sons do fácil órgão:

A voz dos corifeus

As orações dos crentes:

O susto dos ateus:

Tudo apregoa e prova:

— Aqui domina Deus!—

Silencioso esteve,

Há pouco, — o santuário:

Qual a mudez, que guarda

Jazigo mortuário:

Qual o terror do nauta

Em mar tumultuário.

As almas dos finados

Erguiam-se do pó:

Chocando-se torvadas,

Cruzando as naves só:

Contando às colunatas

As ânsias de seu dó.

Fugiram já, — fugiram

Dos sacros penetrais:

Qual foge de repente,

Da mente dos mortais,

Do mal a triste idéia

Com a dos bens reais.

Purificou-se o éter:

Espectros mais não há.

Sobre eles cai a campa,

E um oco baque dá.

Sumiram-se no abismo:

Deus não nos ouve já.

II

Agora entoa o coro

Hinos de compunção.

Levanta a voz dos crentes

Altívola oração.

Ateu! — medita: é tempo

De ainda haver perdão.

Não te comovem alma

Os cantos dos cristãos?

As notas, que produzem

Do organista as mãos?

As notas, que percorrem

Do templo pelos vãos?

Nem das nuvens de incenso

O quente recender?

Que vão nas mãos das auras,

No teto esvaecer? —

Ímpio! tu não tens alma,

Ou não na queres ter?

Vê como sobe o incenso,

Quais globos de um bulcão.

Vê como cresce a reza,

Quais lavas de um vulcão.

Vê como encanta a orquestra,

Qual voz de um furacão.

Vê tanto entusiasmo

Na face desses crentes.

Vê tanta confiança

Em almas tão tementes.

Vê tanta fé em Deus,

— No Deus que não consentes!

Se não te mente, oh ímpio,

Esse sistema teu:

Se não é como o riso

De ambíguo fariseu:

Como o falar do hipócrita,

Que também é ateu:

Que inferno de torturas

A mente não te côa!

Ao doce som do órgão,

Que pelos vãos reboa!

Aos cânticos sagrados,

Que o povo e o coro entoa!

Ás preces do ministro,

Que ao Cristo, por ti, ora!

Á face desse templo,

Que os lábios te descora!

Que ao Deus, — que negas, ímpio, —

E louva e reza e adora!

Compunge-te — e conhece

De Deus a justa mão.

Vem comungar do cálix

Dos gozos do cristão;

Que sentirás arroubos,

Que terás alma então!

Vê como sobe o incenso,

Quais globos de um bulcão!

E pelo teto rompe,

Quais lavas de um vulcão!

E aos céus leva a fragrância,

— Veloz, qual um pegão!

Vê como sobe o incenso,

Que aromatiza o altar:

Suave, — qual a brisa

Entre o fervor do mar:

Suave, —qual dos anjos

O doce respirar.

III

Ai! — praza a Deus que breve,

Tão breve como a flor,

Ardendo o incenso, — ardendo,

Qual virginal rubor,

Transponha aos céus a alma

Do triste trovador!

 

O MISANTROPO

AO MEU AMIGO LUPÉRCIO GAHAGEM CHAMPLONl

I

Debalde procuro

O campo, as florestas:

Imagens funestas

Me seguem te lá.

Nas lapas, nas rochas,

Debaixo da terra,

Um busto me aterra,

Um homem está.

Co'os olhos brilhantes,

Co'as faces formosas,

Co'os lábios de rosas,

Sorri-se p'ra mim.

Debalde lhe amostro

Medonho o semblante:

C'um gesto galante

Responde que sim.

Na areia da fonte,

Nas urnas do rio,

Meu rosto sombrio

Se encontra co'o seu.

Ajunta seus lábios,

Bebendo comigo, —

Fatal inimigo

Que o fado me deu.

Correndo assombrado

Do vulto gravoso,

Veloz, pressuroso,

Demando a soidão.

Mas, inda correndo,

Se volto co'os olhos,

Encontro os sobrolhos,

Da eterna visão.

E sempre a sorrir-se.

Qual moça inocente,

C'um modo contente

Dizendo-me adeus.

Renego-te, oh anjo

Fatal, sempiterno,

Ou venhas do inferno,

Ou venhas de Deus!

II

Nos raios da aurora,

Nos trinos das aves,

Nas brisas suaves,

Na voz da manhã,

Em pé, sobre os montes,

Coum brado que aterra,

Maldigo essa terra

Tão ampla, tão vã.

Os homens odeio,

Com ódio profundo,

Com ódio, que o mundo

Não pôde entender.

Então, quanto quero,

Derramo do peito

O fel, que, desfeito,

Não posso conter.

E clamo em discursos,

Em odes atrozes,

E os brutos ferozes

Me temem de ouvir,

Dos raios que atiro,

Feridas as selvas,

De folhas, de relvas

Se fazem despir.

Maldigo as estreitas,

As nuvens, a aurora,

A queixa sonora

Das aves do céu.

Maldigo esse encanto

Que abismos encobre,

— Mulher que se cobre

Co'as dobras de um véu.

Maldigo a ciência

Que os homens tortura,

— Formosa loucura

De face louçã;

Procela da insânia,

Pegão de sofismas,

Montanha de prismas,

Figura de Pã.

Maldigo a virtude

Instável cada hora,

Demócrito agora,

Agora Catão:

Fantasma versátil,

Estranho, não visto,

Que ri-se no Cristo,

Que chora em João.

Sedento da raiva

Que nunca me finda,

Mais válido ainda,

Maldigo meus pais.

Depois, elevando

A vista ao superno,

Maldigo do Eterno,

Por ser dos mortais.

III

E sempre esse busto

De homem que odeio,

Me vem, sem receio,

Constante, escutar.

E a cada discurso,

Que franco improviso,

Responde c'um riso,

E põe-se a calar.

No seio das rochas

Debalde me amparo,

Que sempre o deparo

C'um riso dos seus.

Castigo infinito,

Tantálico, eterno.

Que veio do inferno

Por ordem de Deus!

Em cima da rocha

Me assento ferino

Com gesto assassino

Buindo um punhal.

Mas ele desata,

Deixando-me em pasmo,

Com rude sarcasmo,

Risada brutal.

E corro demente

Por ínvias devesas,

Co'as faces acesas,

Co'o ferro na mão.

E o busto sinistro

Recua voando,

De frente me olhando

C'um riso brincão.

E sempre a sorrir-se,

Qual moça inocente,

C'um modo contente

Dizendo-me adeus!

Castigo infinito,

Tantálico, eterno,

Que veio do inferno

Por ordem de Deus!

 

A ÓRFÃ NA COSTURA

Ela lhe ensinou a levantar suas mãos puras e inocentes para o céu, a dirigir seus primeiros olhares a seu Criador.

FLECHIER.

Minha mãe era bonita,

Era toda a minha dita,

Era todo o meu amor.

Seu cabelo era tão louro,

Que nem uma fita de ouro]

Tinha tamanho esplendor.

Suas madeixas luzidas

Lhe caíam tão cumpridas,

Que vinham-lhe os pés beijar.

Quando ouvia as minhas queixas,

Em suas áureas madeixas

Ela vinha me embrulhar.

Também quando toda fria

A minha alma estremecia,

Quando ausente estava o sol,

Os seus cabelos cumpridos,

Como fios aquecidos,

Serviam-me de lençol.

Minha mãe era bonita,

Era toda a minha dita,

Era todo o meu amor.

Seus olhos eram suaves,

Como o gorjeio das aves

Sobre a choça do pastor.

Minha mãe era mui bela,

—Eu me lembro tanto dela,

De tudo quanto era seu!

Tenho em meu peito guardadas

Suas palavras sagradas

Co'os risos que ela me deu.

Os meus passos vacilantes

Foram por largos instantes,

Ensinados pelos seus.

Os meus lábios mudos, quedos

Abertos pelos seus dedos,

Pronunciaram-me: — Deus!

Mais tarde — quando acordava

Quando a aurora despontava,

Erguia-me sua mão.

Falando pela voz dela,

Eu repetia singela

Uma formosa oração.

Minha mãe era mui bela,

— Eu me lembro tanto dela,

De tudo quanto era seu!

Minha mãe era bonita,

Era toda a minha dita,

Era tudo e tudo meu.

Estes pontos que eu imprimo,

Estas quadrinhas que eu rimo,

Foi ela que me ensinou,

As vozes que eu pronuncio.

Os cantos que eu balbucio,

Foi ela que mos formou.

Minha mãe! — diz-me esta vida,

Diz-me também esta lida,

Esta retrós, esta lã:

Minha mãe! — diz-me este canto,

Minha mãe! —diz-me este pranto,

— Tudo me diz: — Minha mãe! —

Minha mãe era mui bela,

— Eu me lembro tanto dela.

De tudo quanto era seu!

Minha mãe era bonita,

Era toda a minha dita,

Era tudo e tudo meu.

 

MEU FILHO NO CLAUSTRO

CANÇÃO MATERNA

Eu não sou tua mãe que te preza?

Tu não vês meus cuidados maternos?

E me escondes as dores que sentes?

Não sei eu teus desgostos internos?

Eu te disse, meu filho, eu te disse

Que jamais te apartasses de mim.

Tu quiseste, meu filho, tu foste,

Tu agora padeces assim.

Tu deixaste meu seio materno,

Tu deixaste teu pai tão doente!

Vê teu pai, como, gasto de angustias,

Chora e geme — perdido e demente.

Tu deixaste os lugares da infância,

Mais as flores do nosso jardim.

Já não brotam, não cheiram as flores,

Já não deitam perfumes assim.

Já não deitam botões as roseiras,

Já não deitam se quer uma flor.

Elias sentem, percebem — coitadas —

Que perderam também seu cultor.

Eu beijei teu fantil jasmineiro,

E pedi-lhe em teu nome um jasmim,

Veio a brisa, moveu-lhe a folhagem;

Percebi que negava-mo assim.

Tuas plantas bem sabem — coitadas —

Que perderam seu lindo cultor.

Elias sabem também que tu vives

Sepultado no abismo da dor.

Teu presente, meu filho, é tão triste!

Que será teu futuro e teu fim?

E quem pode esperar mais horrores

Quem começa com tantos assim!

Tu quiseste ser monge, tu foste,

Tu saíste da casa paterna.

Insultaste os maternos pedidos,

Mais a queixa infantil e fraterna.

Teus irmãos levantaram mil vozes

Com seus lábios de ardente rubim.

E clamaram, — coitados — chorando,

Que não há, como o teu, gênio assim!

Tu cortaste os anéis dos cabelos,

— Teus cabelos, que eu tanto estimava.

Eu por eles chorei... tu sorriste,

Tu mais fero que a fera mais brava!

Eu por eles chorei: — que eles eram

Lindos fios de preto cetim.

Para seus tua irmã os queria,

Que os não tinha tão belos assim.

As mãozinhas da irmã que te chora

Teus cabelos, brincando, alisavam.

Quantas vezes meus lábios sedentos

Teus cabelos, meu filho, beijavam!

Hoje — que é de teus lindos cabelos,

Tão corridos, qual preto cetim?

Hoje tens desnuada a cabeça, —

E que frio não sentes assim?

Mas eu tive coragem p'ra ver-te

Adornado de crepe feral.

E te vi revestido a cadáver,

Como a face do gênio do mal.

Eu a Deus perguntei: — Pois ao mundo

Para as dores somente é que eu vim?

Para ver e sentir que meu filho

Dá-me tantos martírios assim?

Nos degraus dos altares ao longo

Te prostraste co'a face no chão.

E juraste ao Eterno ante os homens

Que meu filho não eras mais não.

Blasfemei nesse instante do Cristo

Nos assomos do meu frenesim.

— Os amores de pai não são nada,

Os extremos de mãe são assim!

Blasfemei desse Deus que arrancava

De meus braços meu filho querido:

Que despia-lhe os trajos de seda,

Para dar-lhe um funéreo vestido.

Blasfemei desse Deus que lhe impunha

Férreos votos, eternos, sem fim:

Que seus filhos por vítimas conta:

Que quer tantos martírios assim!

É mentira. Essa lei violenta

Não foi feita por Nosso Senhor.

Nosso Deus não nos prende com ferros,

Mas com laços de dócil amor.

Não inveja da mãe os prazeres,

Como rosas ornando o festim.

Não lhe dá inocentes filhinhos,

Para em vida arrancar-lhos assim.

Blasfemei! — e no reino das chamas

Dos demônios ouviu-me a coorte:

E rompeu numa horrível orquestra,

Digna festa dos filhos da morte!

A minh'alma riscou-a em seu livro

De meu Deus o cruel querubim.

Não faz mal: foi por ti que perdi-a.

Oxalá que eu ganhasse-te assim!

Mas tormentos oprimem teu peito

Mais terríveis talvez que este inferno.

Sim: tu sofres, — eu sei, — mais angustias

Do que sofre meu peito materno.

Já não brinca o prazer em teus olhos

Mais travessos, que vivo delfim,

As tristezas, que afeiam teu rosto,

Não há delas nos homens assim.

Não me escondas, meu filho, estas penas,

De pesares comuns não me prives.

Eu bem sei que sem mim — entre estranhos —

É difícil a vida que vives.

Vem, descerra, meu filho, estes lábios,

Onde vi transpirar-te o carmim.

Foste ingrato, é verdade: mas sabe

Que eu te estimo, meu filho, inda assim.

Entre a febre teu pai se revolve

Nesse leito que outrora foi teu.

Grita, clama, tateia, procura

Só por ti — primogênito seu.

Foste ingrato! — deixaste teus lares,

Teus irmãos, mais teu pai, mais a mim.

Tu quiseste ser monge, — meu filho,

Tu agora padeces assim!

 

MILTON

Ao jovem poeta Odorico Octávio Odilon

Fora devida ao gênio outra homenagem:

Mas a oferenda do pobre agrada ao sábio.

Lá vai Milton, lá vai. Fátuos ingleses,

Dobrai a curva ante o moderno Homero.

Nos campos de Albion, tremente e cego,

Inda tateia inspirações e carmes.

Vede-o: — cansado lá se arrima à esposa,

Que num abraço lhe sustenta o corpo.

Lá vai Milton, lá vai. Fátuos ingleses,

Dobrai a curva ante o moderno Homero.

Co'a pupila sem luz procura embalde

Fitar o sol, onde um arcanjo habita.

Vate divino, — ele enxergara outrora

Nos raios deste sol descendo os anjos.

Num de seus raios ele ainda espera

Que um anjo venha, e lhe esclareça a vista.

Lá vai Milton, lá vai. Fátuos ingleses,

Dobrai a curva ante o moderno Homero.

Em vão a filha que escreveu-lhe os cantos

Dirige os olhos do cantor do Empíreo.

Em vão a incerta e tremula retina

Crava-se imóvel no luzente raio.

Não mais o anjo, que ele vira outrora,

Desliza lá do sol, baixando à terra.

Lá vai Milton, lá vai. Fátuos ingleses,

Dobrai a curva ante o moderno Homero.

Não mais o Éden, como dantes, flore,

Não mais o cedro vai topar co'as nuvens.

Não mais o homem, pelos prados livre,

Medita Deus, medita amor, — e dorme.

Não mais essa mulher perfeita e nua

Sonha inocências, e inocências fala.

Lá vai Milton, lá vai. Fátuos ingleses,

Dobrai a curva ante o moderno Homero.

Milton, Milton não vê o céu que canta,

Não vê a terra cujas cores pinta.

A esposa, a esposa é-lhe invisível mesma;

Só pelo espinho reconhece a rosa.

Chora entre os cantos, rouxinol celeste:

Só pelos prantos reconhece os olhos.

Lá vai Milton, lá vai. Fátuos ingleses,

Dobrai a curva ante o moderno Homero.

Mesmo entre prantos mavioso canta

O céu e a terra e o lôbrego do inferno.

Abrem-lhe Homero as alvas mãos da esposa.

Vai-lhe a filhinha transcrevendo os carmes.

Em meio do labor correm-lhe as lágrimas,

Que a esposa e a filha enxugam-lhe com ósculos.

Lá vai Milton, lá vai. Fátuos ingleses,

Dobrai a curva ante o moderno Homero.

Dorme depois, — e no dormir ressonha

Co'os lindos anjos, que pensou de dia.

Antes do sol acorda, — e vai co'a esposa

Ao som de cantos despertar a aurora.

E sempre espera que num raio acaso

Desça algum anjo e lhe ilumine a vista.

Lá vai Milton, lá vai. Fátuos ingleses,

Dobrai a curva ante o moderno Homero.

Cromwel no sólio venerou tal homem.

Depois um déspota acatou-lhe o orgulho.

Pobre inda é livre, — como cego e velho

Inda tateia inspirações e carmes.

Limpa-lhe a filha as lágrimas com ósculos.

Sustém-lhe o corpo c'um abraço a esposa.

Lá vai Milton, lá vai. Fátuos ingleses,

Dobrai a curva ante o moderno Homero

 

POBRE E SOBERBO

— A pobreza orgulhosa explica o cinismo do muita gente.

MARQUEZ DE MARICÁ.

I

Ali naquele alvergue derrocado

Pela sanha do norte

Um velho existe, — que libara um dia

Os ósculos da sorte.

Ás portas lhe bateram os prazeres

Dourados de ventura.

Sorriram-lhe os amores encantados

Sorriso de doçura.

Infindo pelotão de amigos nobres

Subia-lhe as escadas.

Co'esgares de paixão lhe olhavam ternas

As damas afetadas.

Tocou-lhe um dia na intonada fronte

O dedo da desgraça.

E, qual fumo disperso pelos ares,

Seu fastígio esvoaça.

Desapareceu, — qual vento, a chusma enumera

De tanto e tanto amigo.

E os filhinhos ao peito, a esposa ao lado,

— Chorava sem abrigo.

Dominando a montanha, — ontem viçava

Pinheiro alevantado.

Rugiu de madrugada o sul teimoso:

Ei-lo no chão prostrado!

Talvez da providência a mão piedosa

Mostrou-lhe esta choupana.

Pelo aceno de Deus talvez a alçaram

O colmo e a agreste cana.

II

Vegeta o velho ali. Se dorme, — acorda-o

Dos filhos o lamento.

Se acorda, — escuta a esposa repassada

De dor, fome e tormento.

Muito cedo a cabeça encaneceu-lhe

Miséria e dissabor.

Não sabe trabalhar: — estava feito

Á paz, ao sono e amor.

Problema incrível lhe parece ao menos

Tão veloz decadência.

E não sabe suster o azar da sorte

Com constância e prudência.

E não sabe buscar, — de tonto e fátuo,

Em Deus consolação.

E não sabe incensar os pés do Eterno

Co'os fumos da oração.

III

Ontem de tarde ergueu-se.— A esposa e os filhos

Em torno se ajuntaram;

E, como ecoa um frêmito de espectros,

Fome, fome! — gritaram.

E pegou do bordão: — qual temulento,

Foi caminho da aldeia.

Pedinchando, — era um grande que imperava

Com voz ingente e cheia.

O passageiro olhou-lhe os vis andrajos

E o sobrecenho horrível.

Meneou-lhe a cabeça, — e escarneceu-lhe

A nobreza risível.

Avezado a mandar — um potentado

Não deve pedir nunca;

Embora os rins sensíveis lhe comprima

A mão da fome adunca.

Chamam-lhe a isso nesse mundo os homens

— Constância e pundonor.—

E, dos nomes co'a cor, cuidam que apagam

Da soberbia a cor.

IV

O velhinho voltou: — injusto e testo

Maldiz o céu e a terra.

E torrentes de afrontas e blasfêmias

Do peito desencerra.

Assim como um tirano, que aguardava

Da turba a sujeição;

Mal sofrido se assanha, quando escuta

Ao seu ditame um «não.»

E grave entrou no alvergue: — os olhos torvos,

A catadura má.

Aí vai falar, — e a voz, que a raiva engasga,

Rouco mugido dá.

Nos olhos lhe adivinham os filhinhos

O bem, ou mal, que traz.

Fisionomistas por preciso instinto

A natureza os faz.

E a mãe co'os filhos um funéreo pranto

Então do peito arrancam.

Só não chorava o velho, — que co'a raiva

As lágrimas se estancam.

Pranto e pranto de morte alevantaram

Os filhos, — recordando

Que sustento mal-são, — erva dos campos

Ainda irão catando.

V

Ai! — que entrasse do pobre na guarida

Benfeitor generoso,

Que na tripeça lhe deixasse adrede

Montão de ouro abundoso!

Vê-lo-ias — o velho, remoçado,

Desamparar a choça;

Na ventura olvidar essa tristeza,

Que o coração lhe roça.

Tal em lindo jardim roseira débil,

Que o inverno desnudara,

Na primavera já pimpolha ovante,

Como se não murchara.

Porém talvez ao benfeitor nas costas

Embebera um punhal:

Ou em dourada taça propinara-lhe

Um tóxico fatal.

Sobre soberbo, — ingrato! Ei-la do velho

Inteira a apologia.

Hão de sê-lo também os inocentes

Filhinhos que ele cria.

Os leõezinhos dos leões aprendem

Sanha e sede de sangue:

Vão gostando de ver os pais sedentos

Tragar a preia exangue.

E — raríssimo caso, — que entre os trances

E os sofrimentos seus,

Uma só vez os lábios do velhinho

Não invocaram Deus!

O nome do que só, — de seu espírito

Deu alma aos céus e à terra.

Quem sabe se no peito o velho, tímido,

— Como um tesouro, o encerra?

Ou nado em ouro e per'las, — e educado

Em luzido salão,

Por ventura seus pães não lhe ensinaram

Sequer uma oração!

Ai! — que vida o velhinho irá vivendo, —

Que vida de miséria,

‘Té que se lhe desprenda o lasso espírito

Das peias da matéria!

VI

Mancebos, que passais, — deixai o velho

Viver na paz da morte:

Que um dia ele já foi, —como vós outros.

Rico dos dons da sorte.

Mancebos, que passais, —deixai o velho

Chorar ao pé da porta.

Não no insulteis, — já que a desgraça dele

Tão pouco vos importa.

Sede, oh jovens brincões, — mais generosos,

— E não no escarneçais.

Mais antes venerai nas cãs do velho,

As cãs de vossos pais.

Bem vêde-lo transido.— A magra fome

As vísceras lhe esfola.

Não lhe olheis a arrogância, — oh bons mancebos,

Mas dai, — dai-lhe uma esmola.

1851

 

OS CLAUSTROS

(SÉCULO XVIII)

A Frei Arsênio da Natividade Moura

Tu, que sabes chorar a crença exangue,

— Crente! — desamarás os ais de um crente?

I

Dorme, dorme teu sono, oh vã cidade,

Dorme teu sono sensual e podre:

Que as estrelas e a lua, — de ofendidas,

O inútil brilho em negro véu trocaram.

Carranca enorme de chumbadas nuvens

A cor dos céus trocou na cor do abismo.

É noite: e noite de pavor é ela,

Sacra aos mistérios de esquecidos túmulos.

Sozinho o bardo aqui, —co'a noite e as trevas!

Só ele aqui: — que o mundo é morto agora

Nos braços do letargo, — irmão do nada.

Só ele aqui co'as campas dos finados

Na latidão dos claustros solitários,

Que apontando co'o índice da morte

Aos carcomidos dísticos das lapidas,

Sorrindo-se, lhe solvem o problema,

—Árduo problema, — do que monta o mundo

E a vida e os homens e a vaidade deles.

Que aí não haja uma alma, qual a sua,

Que ria-se da guerra e paz do mundo,

— Ai! que difere a paz da guerra dele? —

E, — qual vigia no arraial do exército,

A noite vele entre o dormir das armas,

E a sós co'o trovador, co'os seus enlevos —

Venha, arroubada, comungar dos saibos

Do absinto amaro, — que chamaram — vida?

Não: sozinho — é melhor. Sozinho o cisne

No vazio dos céus mais livre adeja.

Aqui não há mister de alma bastarda,

Impura, — como os vermes do sepulcro, —

Que lhe imole a inocência dos pensares,

Quando na mente se fermentam inda

Tumultuosos, — qual do ninho escasso

O bando das alcíones garridas

Desprega o vôo pelo vão dos ares.

Aqui não há mister de alma bastarda,

Que as emoções mais intimas lhe insulte,

Antes que saltem as idéias fora

Do cérebro, que apenas as continha,

De pequenino, — e pelos lábios francos

Em simples fôrma rápidas ressumbrem:

Tal ao sereno exposta, — inteira a noite,

Ânfora cheia do licor mais puro,

Lá por antemanhã, fervendo ao frio,

— Aventou com fragor, — e a linfa clara

Se expandiu pelo chão, que a foi sorvendo.

Essa abstração de espírito quimérica,

Esse suposta coração de amigo,

Existe algures? — Morará no peito

Da pombinha, que afaga entre os arrulhos

A coleira do esposo, — e abandonada,

Deixando-o no pombal beijando os filhos,

Deita a correr traz os casais visinhos?

— Ou morará, talvez, no adunco bico

Do pelicano, que estrangula as vísceras

Para dar a beber seu sangue aos filhos,

E sendo adultos, desconhece-os todos?

— Este ser ideal, tipo dos anjos —

Quem concebeu-o, escarneceu dos homens.

Ou foi um parto de traição dos íncubos

Para mais tratear a mente aos vivos,

Desesperar, — ganhar a si mais almas.

Mas se é certo que existe um tal fantasma,

— Ou vive lá com Deus, além dos mundos,

Ou foi tolhido ao bardo igual tesouro.—

Antes sozinho ser. Se num despenho,

De ignorante, cair, — nele pereça

De vez p'ra sempre. Assim lascado o seixo

Das penedias da fragosa costa

Com ruído sonoro ao mar descendo

Do gravitar nas azas necessárias,

As vagas perfurando, — achou no pego

E paz e olvido e sepultura eterna:

— Não no arranques de lá, braço de ferro,

Para dar-lhe depois em troco a morte,

— E que morte? — o morrer do renegado!—

No amargo travo da traição primeiro,

Depois no ecúleo dá calúnia torpe,

No vasquejar, alfim, do desespero.

II

Também agora o céu está despido

Dos astros seus.— Nuvens de cinza o toldam,

E os amigos da noite o desamparam.

Também agora os claustros estão mudos,

E parecem dormir um sono eterno,

Quais solitários paramos infindos,

Onde não há ouvir humano acento.

É tudo morte: — e só de quando em quando

Quebra um tufão das naves a calada,

E vem dizer que a natureza vive.

Oh quanta e quanta vez nestas desoras

Não viram elas levantar-se os monges,

A transitar nos vácuos corredores,

— Como de meigas turturinas aves

Compacto bando a revoar nos ares, —

Recatados e tímidos e graves,

Murmurando baixinho um salmo lindo.

A cantar do Senhor as maravilhas!

Quanta vez em silencio respeitoso

Não ouviram toada e grave e doce,

— Grave como o pensar de ancião idoso,

Doce como o falar de virgem pura, —

De hinos e salmos e canções proféticas,

Perdendo os ecos na expansão dos ares,

Subindo em fumos à mansão do Eterno?

Hoje em dia — esqueleto do deserto, —

Que mais há aí? — o túmulo do nada!

Agora só na negridão das rochas,

Um talismã risível meneando,

Algum aluno, que sobeja ainda,

Do fanatismo do caduco Egito,

Evocando os espíritos do inferno

Nas extorsões do lívido semblante,

Murmurará ensalmos de demônios.

Quem se erguerá do marroquino leito,

Abroquelado de oração piedosa,

— Bem como invicto campeão da pátria

Que a pátria vinga ao embraçar do escudo, —

Para aplicar um valioso antídoto

Ás sinistras tenções do anjo das trevas,

E debelar-lhe os cálculos de sangue?

— Nem um se quer! — os claustros estão quedos,

Como os sepulcros negros, que os povoam,

Como as colunas alvas, que os sustentam,

— E nem um estalar de órgão saudoso

Na terra um hnno a Jeová desfere.

Eles, depois — os cenobitas pios —

Também nas azas de orações devotas

Baixavam à rudeza destas claustras,

E um responso feral e difundido,

Qual expansivo recender de rosas,

Caía sobre a campa dos finados,

E do pecado lhes roubava a pena.

Então — óleo de unção — a reza santa,

Em lábios puros, — quais candentes brasas, —

Fervendo, — deslizava enternecida.

Hoje, que resta ao fervor antigo?

— Pálidas preces, a desleixo, e mornas,

Bem como a voz do indiferente hipócrita,

Calam na laje, e ficam sepultadas.

III

Modesto velho de mais longes eras,

— Modesto como os olhos da donzela, —

Assentado ao luar a sós comigo

Nos degraus do vestíbulo da igreja,

Fazendo prantos, me contou que houvera

Arvorado acolá junto do alpendre

O dorido suplício do Deus-Homem.

Os monges co'os devotos, — co'as velhinhas,

E as trementes velhinhas conduzindo

Pela mão os netinhos inocentes,

— Vinham beijar-lhe o pé, todos os dias,

Recitar-lhe uma antífona eloqüente,

A qual, a humanas ouças passageira,

Vistosa aos anjos e formosa ao Eterno,

Lá no tope da cruz resplandecia,

— Como cheiroso e lindo ramalhete

De mil corimbos de distintas flores

Tecido pelas mãos alfeninadas

Das meninas donosas da campina.

Hoje — que é dela — a cruz? — era um escândalo,

Era, — inda mais, — um fanatismo estúpido,

Era vergonha aos sábios deste século,

— E foi calcada aos pés, lançada ao fogo!

O velho viu ainda a cruz do alpendre,

— Teve esse gozo: —inda abraçou-lhe as travas,

E quando os maus e os ímpios, quais possessos,

Entre sanha e blasfêmia a espedaçavam,

— Ele os olhou choroso e compassivo.

E alçando aos montes os quebrados olhos

Pediu a Deus inspiração, — incerto

No que faria então. E após um breve

Fitar nos céus e meditar consigo,

Perdão balbuciou sobre os sacrílegos,

E quedo foi dormir na crença sua.

Ele escutou também, uns dias antes,

— Qual voz do Eterno ensurdecendo as vagas,

O salmear dos monges alta noite,

Que lhe acordou do sono, que dormia,

— Desceu do leito e foi rezar nas contas.

Cuidoso alevantou-se ao romper d’alva,

No solitário templo entrou, — benzendo-se, —

Encostou-se ao festão de uma coluna

Co'os olhos no portão da sacristia.

Esperava que a mão e a voz do preste,

— Bem como unção divina derramada

Na cabeça do rei pelo profeta, —

Por entre o incenso da oblação mais santa

Lhe abençoasse a encanecida fronte.

Esperou, esperou. Não mais os monges

Ouviu descer a lisa escadaria,

Nem subir os degraus das aras santas.

Qual vaporosa nuvem no horizonte

Pela sanha dos nortes impelida,

— Desapareceram num relance.— É morto

Nos claustros o pudor, no templo o canto.

E o bom do velho soçobrado e tímido,

— Como se a vista e o siso lhe torvasse

O súbito clarão, de um raio ao perto,

Tornou aos lares, — foi narrá-lo à esposa,

E pelos olhos deslizando o pranto

As faces lhe encheu, — como o oceano!

E os monges — onde iriam? — Os que unidos,

Como nos céus os anjos entre os anjos,

Na paz das celas, na soidão dos claustros,

Não sabiam viver, se não consigo,

— Ódio dos povos em países bárbaros,

Escárnio das nações, — hoje divagam

A vastidão do mundo — e seus errores.

E vós que do solar benquisto deles

Os expelistes, — lhes tolhendo a pátria,

E nela o resguardar a muda crença,

E o sossego da vida e os pães e amigos,

— Vencestes. — Triunfai, entes descridos!

Esse monstro do inferno — esse homicida

Ri-se co'o sangue da imolada vítima.

Vossa vitória é tal: — folgai com ela.

Folgai em quanto é tempo, — em quanto a morte

Os vermes seus não ceva à custa vossa:

Em quanto os anjos de Lusbel treitentos

Não vos arrojam de uma vez p'ra sempre

Ás eternais, exteriores chamas;

Onde não há mais luz que o caos das trevas,

Onde não há mais paz que o desespero,

Onde não há mais couto que a geena,

Onde não há mais redenção que o inferno!

IV

Feliz e vezes mil feliz aquele,

Que nos braços de irmãos, nos osc'los deles

Deu aqui seu arranco derradeiro!

Que em mortuária procissão solene

Desceu de lá da pequenina cela,

E veio aqui jazer entre os finados

Sob a campa deserta há tanto século!

E, ao romper — d’alva uma oração formosa

Caía, — como o gotejar do orvalho, —

Na laje, — e vinha lhe ameigar as penas.

E os filhos dos altares, deserdados,

Hoje depararão um só no mundo,

Que a seca pedra do sepulcro ignoto

Vá borrifar co'a lágrima da prece?

Meu Deus! — não há se quer uma alma pia! —

Filosóficos — cristãos, se o bem fizeram,

Não antolhavam recompensa dele.

O premio e a c'roa e a glória a seus martírios

Deus lhos guarda nos céus, entre os arcanjos.

Já lá passaram as virtudes deles,

Como chuveiro de ouro em dia breve.

Porém as vastas colunatas góticas

Desse edifício gigantesco e excelso

Sobejarão para atestar às eras,

Com brado eterno, — os benefícios deles.

Nossos pios avós chamando os netos

Ao adro do casal, — e os reclinando

Por sobre a grama, no luar de prata,

E em torno as netas dedilhando os bilros

Nas almofadas, — ou girando o fuso,

Entre longo serão, — lhes vão contando

As lendas, que da boca autorizada

Dos pais beberam: — recitando a historia

Desses heróicos mártires da crença,

Que os velhos guardam a-la-par da vida,

— Como na mente casta a virgem ama

O fagueiro sonhar do amor primeiro.

— Assim dos justos a memória vive

No recordar das gerações passadas,

Como o nauta conserva o ensejo augusto

Da salvação nas vascas do naufrágio.

V

Quando este sec'lo de egoísmo e vícios,

Entre o rugido e o horror do passamento

Derradeiro, ansiar, — bem como o dia

Cede, morrendo, ao tremulo crepúsculo,

E o crepúsculo à noite, — então que herança

Que legará nas vésperas da morte

Aos filhos seus, — aos séculos por vir?

E qual será seu testamento? Oh! esse,

— Obra de sangue e parto dos infernos, —

Há de selá-lo o anjo dos terrores!

E só três nomes conterá: — três nomes

Que hão de no mundo reboar malditos,

Como o trovão arrebentando os pólos.

Em férreas letras hão de ler-lhe os filhos:

FATUIDADE E SACRILÉGIO E SANGUE!

Os netos do futuro, —os nossos netos

Hão de amaldiçoar com mão de fogo

Aos livres do presente, — e ao patrimônio

De infâmia, que os avós lhes assinamos.

VI

Eu, entretanto, —o bardo, que não vivo,

Mas duro apenas nessa férrea idade,

A qual minha não é, — como do nauta

Não são as vagas, que singrando trilha, —

Nessa idade vilã, — pela qual passo,

Como a fumaça que o galerno extingue,

Eu me consolo.—Do cantor mesquinho,

Que aos homens não, — a Deus ergue seus hinos,

— Na bastecida turma dos poetas,

Que os tronos, os saraus, o amor celebram,

Qual o pranto se esquece entre delicias,

— Assim dele também, — vate dos lutos,

Há de memória se perder.— Ao menos

Que ninguém saiba a envilecida pátria,

Que o abortou, para que visse, acinte,

Sua miséria e dó: — torrão estéril,

Onde emurchece o inocente e o justo,

Como a roseira em tremedal plantada,

E o mau e o ímpio a florescer nas hástias,

Como o cedro alteando o cimo às nuvens.

Que ninguém saiba o século maldito,

Que o viu — nas urzes, pulular da túnica,

Que o viu — nas urzes, vegetar do tronco,

Que o viu — nas urzes, definhar das ramas.

Ei-lo final tesouro de ventura,

Que a par da salvação — anciã o bardo,

— Misérrimo! — que já não mais amima

Na terra um sonho de bonança e glória:

A quem os lábios rubros da esperança

Não mais sorriem seu sorrir de graças.

Não: — que lhe sobra uma esperança: — o tumulo!

— Semelhante à bonina das campinas,

Que, abrindo o cálix, entre nova e murcha,

Saúda a tarde e profetiza a noite,

E a morte sua ao avançar do dia.

Ei-la a flor derradeira de ventura,

Que produz, moribunda, a débil árvore

Dos enlevos do bardo, —melancólica,

Como o silencio e a negridão dos claustros.

VII

Ai — claustros, claustros! — se falar pudésseis

Aos séculos por vir — que testemunho,

Que não daríeis, das virtudes altas

Desses heróis, que um dia vos alçaram!

Materiais de pedernal, — sois mudos!

Não podeis levantar um brado ingente

Para fazer ouvir ao mundo inteiro

A defensa de vossos fundadores

Caluniados, pobres e proscritos!

Sim: foram maus: — muito de mais amaram,

Com puro amor, — religião e pátria.

Sim: foram maus: — obedeceram, livres,

No mundo a Deus, — na pátria a seu monarca,

Sem rojarem-se às plantas enlodadas

De usurpadores, nem vilões tiranos.

Sim: foram maus: — compreenderam, sábios,

O espírito sublime do evangelho,

— Da majestade dessa crença nova,

A qual, — na voz e nas ações do Verbo —

Co'a regeneração, — nos deu profusa

— Dons não gostados pelo velho mundo, —

— A liberdade co'o saber gozá-la,

E a caridade e o igualar os homens.

VIII

Oh perseguidos mártires da crença

De nossos pais! — eu, pequenino bardo,

Sentei-me ao pés do túmulos dos vossos,

Arredio dos vivos, e cortado

Vos mando meu saudar por entre angustias!

IX

E vós outros, oh sábios deste século,

Talvez agora, — entre o dormir torvado, —

Sonhais na perdição dos servos crentes,

Dos servos do Senhor, que restam inda.

Adejando co'as asas estanhadas

Por sobre o leito cômodo e felpudo

Os enviados de Lusbel vos pintam,

— Como num quadro enérgico e falante

Da ceifadora guerra e seus horrores, —

Vários desenhos de maldade varia

Contra a mal firme fé da Cruz divina.

X

Sim: — quereis reformar, oh filantropos,

A natureza e a índole dos homens,

E o sentimento inato e a fé co'a crença, —

Que em vosso vago e túmido vasconço

Nomeais — ignorância e prejuízo.—

Reformai, reformai: — mas os fenômenos

Das mãos do Eterno penderão, quais dantes.

No aceno dele as leis da natureza

Se librarão, — como nos dedos destros

Do menestrel as notas do saltério.

E surdo a vosso mando presunçoso

O trovão rugirá — tremendo os ímpios,

O raio baixará queimando o éter,

Por sobre o ovante vértice do hipócrita,

Ao prasme do que rege os céus e a terra.

E como Deus os quis na mente excelsa,

Tais os homens serão, — até que um dia

Na voz dos querubins disser — não quero! —

Para levar ao cabo a vossa empresa,

Torná-la digna do pensar de um sábio,

É preciso sustar as leis constantes,

Que o mundo em seu volver resguarda inteiras,

Como o pobre cristão na mente adora

Do benfeitor, que o arrancou do abismo,

A voz e o riso e o apertar da destra,

Quando, modesto, lhe fugiu dos olhos

— Anjo de luz entre o terror das trevas.

Mau grado vosso, — a onipotência dele

Será provada na impotência vossa,

Como entre os dedos de afanoso artífice

No crisol, que não mente, o ouro impuro.

Mudai, — se podeis tanto, — a natureza,

Arrematai perfeita a obra vossa,

Arrebatai das mãos de Deus o cetro,

— E cantareis vitória, — oh filantropos!

XI

Talvez eu tenha de sobrar ainda

Para ver o remate iníquo e torpe

Dos planos sestros que máquina o ímpio.

Vê-lo-ei arrojar-se, blasfemando,

Como as hostes na sanha da matança,

Ás clausuras da paz do eremitério,

— Selo da contrição dos meus e minha:

Entrar, fulo de raiva, o sacro templo,

Qual soberbo invasor de alheios muros, —

Combalir, derribar a cruz das aras,

— Penhor, que herdamos de mais longes eras,

Da fé de nossos símplices maiores,

— Testamento da crença assinalado

Co'o sangue deles, em cachões jorrado,

Como precipitosa catadupa,

Cristais golfando, — vastas chãs alaga!

       

XII

Oh! — se rolar por terra a cruz do claustro,

Expire o bardo seu nos braços dela!

Mas ai de vós, — varões da nova idade,

Mais sábios do que Deus, mais fortes que ele!

Tramai, tramai co'a fúria dos demônios,

Tramai contra o Senhor e os crentes nele ;

Balda loucura; — a cruz espezinhada

Há de erguer-se maior noutro calvário!

1851.

 

SÓROR-ÂNGELA

(ERA DE 1823)

Canção dedicada às virgens da Soledade

Com fervor os guerreiros vitoriosos

As de primor subido, ufanos colhem,

Capelas imurcháveis, em que noites

Lidaste, e inteiro um dia, Ângela igreja.

PARAGUASSU.

Foi Deus — e não outrem — que os braços dos nossos

Regeu no conflito, — regeu na vitória.

Foi Deus — e não outrem! bendito o seu nome,

Que aos nossos deu honra, deu fama, deu glória!

Capelas formemos das vestes das aves,

Das penas das lindas araras rubentes.

Capelas formemos p'ra as frentes sublimes

Dos nossos guerreiros, dos nossos valentes.

E os nossos valentes por Deus, — pela pátria

Façanhas obraram de eterna memória.

Foi Deus que inspirou-as: — bendito o seu nome,

Que aos nossos deu honra, deu fama deu glória!

Capelas formemos das folhas da pátria,

Das folhas virentes do quente café...

— Que cachos tão rubros, que flores tão alvas,

Que as virgens colheram-lhe agora de pé!

Irmãs, trabalhemos, concordes e sempre

Durante esta vida fictícia, — ilusória.

Deus ama, Deus manda, Deus benze o trabalho,

Deus paga o trabalho co'os prêmios da glória.

Os jovens guerreiros entrando em triunfo

As testas adornem co'as nossas capelas.

As nossas capelas são verdes, bem verdes,

São feitas por dedos de castas donzelas.

Os jovens guerreiros que venham tingidos

Das folhas da pátria, — da pátria vanglória.

— Que venham ao templo do Deus infinito,

Que deu-lhes triunfos e cantos de glória.

Ao templo, oh guerreiros! — ao templo do Eterno,

Que aos povos opressos liberta num dia!

Joelhos em terra! — que vão nossas vozes

Unir-se co'as vossas em doce harmonia!

Louvores àquele que humilha os senhores,

Que os servos humildes levanta da escoria:

Que os cetros arranca de altivos monarcas,

Que ao povo escolhido deu honra, deu glória!

O Deus das batalhas nos dias antigos

Viu servos seus filhos, — e servos de estranhos:

Viu servos seus filhos, — olhou seu opróbrio,

Olhou-os carpindo seus males tamanhos.

E o Deus das batalhas fechou seus imigos

Em urna insondável, marítima, equórea!

— Louvores, guerreiros! ao Deus das batalhas,

Que deu-vos triunfos e cantos de glória!

— Assim nós diremos aos nossos guerreiros,

Quando eles entrarem nos templos sagrados.

Hosana, oh donzelas! — o Cristo remiu-nos:

Não mais nossos templos serão profanados!

A face medonha dos bárbaros crimes

Não mais será vista na brásila historia.

Os crimes fugiram co'os homens da guerra,

Na pátria ficou-nos o cetro da glória.

Por arcos de folhas e flores da pátria

Os nossos guerreiros terão de passar.

E nós, das janelas mais altas do coro,

Mais flores havemos sobre eles jogar.

Não somos romanos: — troféus não erguemos,

Nem louros, nem pompas de fútil vanglória:

Só folhas da pátria—cafés e pitangas —

Tais são nossos arcos, — tal é nossa glória!

A pátria saudemos! — e o nome de pátria

Juntemos, guerreiros, ao nome de Deus.

Não sentem, não sabem, não dizem tal nome

Os ímpios somente, — somente os ateus!

Irmãs, trabalhemos: — formemos capelas

P'ra as testas dos filhos da nobre vitória.

— Também seus triunfos, seus cantos são nossos,

Também nos pertence metade da glória!

 

A FREIRA

Crescei e multiplicai-vos.

PALAVRA DE DEUS.

Eu jovem freira, bem triste choro

Aqui cozida co'a cruz de Deus.

Aqui sozinha, ninguém não sabe

Dos meus desejos, dos males meus.

Qual no deserto se praz a rola,

Cuidam que a freira seja feliz.

E a pobre freira, dentro da cela,

Ninguém não sabe que se maldiz.

Enquanto a vida não se desdobra,

E apenas rompe, róseo botão,

A freira insonte prateia de astros,

Povoa de anjos sua soidão.

Uma palavra que ela profere

É sempre um ente que ela criou.

Uma florzinha que colhe acaso

É uma amiga que ela encontrou.

Conversa à noite co'a estrela vésper,

Ama o opaco de seu clarão.

E sente chamas que julga dores,

E o peito aperta co'a nívea mão.

Ela não sabe que a estrela vésper

Influi nas almas lascivo ardor:

Que, não sem causa, no tempo antigo,

A estrela vésper chamou-se — Amor.

A estrela vésper produz nas virgens

Estranho incêndio, vulcão fatal:

Quer seja freira — do Cristo filha,

Quer seja antiga pagã vestal.

A estrela vésper... Fugi, meninas,

Fugi dos raios do seu candor.

A estrella vésper influe volúpia,

A estrela vésper chama-se — Amor.

E a casta freira, co'a mão na face,

Por longas horas demora ali.

E os tredos raios da estrela vésper

Ela inocente recebe em si.

E quando o sino tocou matinas,

Ela tremeu de seu fragor.

E a pobre moça — da vez primeira —

Das rezas quase sentia horror.

E os olhos dela ficaram meigos,

Como quem sofre doce pesar.

Não mais pulavam, delfins nas ondas,

E mal podiam brando oscilar.

E os lábios dela — cravina há pouco —

Não mais vestiam carmínea cor.

E só nas faces lhe assomam rosas,

Mas não são rosas de almo pudor.

Então a freira em vão se abraça,

Em vão se coze co'a cruz de Deus.

Então a freira procura em tudo

A causa, o alívio dos males seus.

Mas ela o sabe. Não é o Cristo

De que ela espera algum sinal.

O Cristo deu-nos remido o mundo:

E o bem que há nele supera o mal.

O mundo, o mundo... eu freira aflita

Eu vejo o mundo... como é gentil!

Ah! eu preciso dessa palavra

Que arrasta os homens aos mil e aos mil!

Palavra imensa, divina e santa,

Que inspira aos homens tanto labor!

Palavra fértil, fecunda e grande,

Mistério, influxo, talvez, de amor!

Porém as velhas, que me aconselham,

E que se dizem cheias de Deus,

Clamam — não cessam — clamam que o mundo

É todo feito de vãos ateus.

Mas ah! quem sente chamas no peito

Por uma bela palavra só:

Quem à porfia corre por ela,

Rompendo globos de grosso pó:

Quem verte prantos na mão do pobre,

Que a Deus e à sorte reproches dá:

Quem trava o braço de outrem, que passa,

Temendo o abismo, que vê mais lá:

Quem toma ao seio mulher, que firme

No seio dele deixa o pudor:

Quem entre beijos lhe ensina aos lábios

Caudais palavras de áureo licor:

Ah! não, não pode — como elas dizem —

Ser insensível, ser vão ateu.

O ateu não sente, não verte prantos.

O amor não entra no peito seu.

O mundo, o mundo... eu freira aflita,

Eu vejo o mundo... como é gentil!

Não, não lhe enxergo aberto o abismo.

Tu mentes, mentes, alma senil!

Sim: velhas santas, velhas ufanas,

Que vos dizeis cheias de Deus,

Não! — este mundo que Deus remiu

Não é composto de vãos ateus.

O mundo, o mundo... eu freira aflita,

Eu vejo o mundo... como é gentil!

Mas eu fechada na estéril cela

Existo preza num ócio vil!

Aos mornos raios da estrela vésper

Minha inocência toda perdi.

Inteiras noites de acerba cisma

Eu, néscia amante, passei ali.

A estrela vésper tem certos raios

Que traiçoeiros voltam p'ra lá.

Fugi, meninas, da estrela vésper,

Temei dos gostos que ela vos dá.

Há certos raios da estrela vésper

Que são vampiros de argêntea cor:

De nossos lábios — com vítreos beijos —

Extraem, sugam todo o rubor.

Aos mornos raios da estrela vésper

Minha inocência toda perdi.

Mas a inocência, que sai da infância,

Ai! não se perde somente alli!

A estrella vésper, amphora solta,

Bóia de prata em mar de anil,

Clama incansável — Amai, donzelas, —

E as fibras lavra flama subtil.

Então lá dentro da aflita virgem

Salta um desejo, ferve um pesar.

Tenta um alívio, acha uma angustia,

Linfa em brasido, vulcão no mar.

Mas a inocência que a moça imola

No altar sagrado de um peito igual,

Malta o desejo, forma o remanso,

Oferta um gozo sempre real.

Quando a virgínea cor se esvaece,

Murcho o carmíneo, róseo botão,

A estrela vésper que fez o estrago,

A estrela vésper não basta não.

O mundo, o mundo... eu freira aflita,

Eu vejo o mundo... como é gentil!

Não, não lhe enxergo aberto o abismo,

Não lhe deparo vulcões aos mil.

O mundo, o mundo... só nele eu posso

Achar a parte a quem faltei.

Eu devo, eu devo pagar ao homem

Esse pedaço que lhe arranquei.

Seu coração — nobre fragmento —

Sente um vazio, que há de doer.

Mesmo sua alma geme incompleta.

Quase roubei-lhe todo o seu ser.

O paraninfo — anjo o mais belo, —

Anjo das núpcias, feito por Deus,

Por Deus guiado, conduz as virgens

Para os pedaços que são mais seus.

Leva-me oh anjo, — que é tempo: — eu quero

Achar a parte â quem faltei.

Eu devo, eu elevo pagar ao homem

Esse pedaço que lhe arranquei.

Ao mundo, ao mundo... Leva-me, oh anjo.

Abre estas azas: vou sobre ti.

Interno impulso me diz, meu anjo,

Que não vás longe, — que basta ali.

Minha sanguínea cor se esvaece,

Perdi as rosas de almo pudor.

A estrela vésper — com vítreos beijos —

Sugou-me aos lábios todo o rubor.

Leva-me, oh anjo. Tenho no peito

Que me trasborda — vasta porção.

A estrela vésper que fez-me o estrago,

Nem cruz, nem claustros, não bastam não.

 

A DEVOTA

A suma perfeição consiste em vagar o espírito para Deus.

S. THOMAZ.

Que rezas, que rezas, — tremendo co'os lábios,

Co'a baça pupila nas córneas imota?

Batendo nos peitos co'as mãos descarnadas,

Co'as mãos no rosário, — velhinha devota?

Coitada da velha, — que ou sinta pesares,

Ou sinta dulçores, não sabe chorar!

Que o sorvo da vida, de acéticos travos,

O pranto nos olhos lho pôde estancar!

Agora só reza nas contas benditas,

Só reza contrita, — que pode mais al?

Que o tempo, que as rugas, que os anos que foram,

Contínuo lhe faliam da lousa final.

Que a vida, que vivem os homens na terra,

É sonho, que a infância sonhou, a cismar.

Feliz quem mais soube dormir este sono,

Quem soube este sonho mais longo sonhar!

Ai — quem me poderá sondar os arcanos

Do peito da velha! — Que rica seara,

Que messe tão vasta de tanta verdade,

Que o jovem não sega, não rega, não ara!

Qual vôo do tempo nas asas das eras,

Tal é da ciência do velho o condão:

Que quantos mais dias de vida lhe escorrem,

Mais largas verdades crescendo lhe vão.

Velhinha, — é tão noite! —no chão do cruzeiro

Que rezas, — sustendo dos nortes o açoite?

Oh — não te arreceias das ruas desertas,

Oh — não te amedrontam as larvas da noite?

Não sentes, devota, — pressões nem arfagens,

Quais vagas dos mares, — no peito torpente?

O mau sobrecenho da morta velhice

Torrou-te os sentidos desta alma fervente?

Oh — sim: — como a estrada que os séc'los trilharam,

Está calejado teu bom coração:

E das penedias na sílice alpestre

Tornou-se-te a tua senil sensação.

Que braço tão forte de ferro abismou-te

Das penas no fogo, — dos males no fundo?

Quem nesta tristura, — vulcão que devora, —

Quem nesta tristura lançou-te? — este mundo!

Por isso ao cruzeiro levantas os olhos,

Co'a baça pupila nas córneas imota:

Por isso acarinhas um só pensamento,

— A imagem do Eterno, — velhinha devota!

A imagem do Eterno, — qual canto brasido,

Qual tocha das aras, — te brilha no aspeito.

A imagem do Eterno, — que o mundo repele,

Adoras, — qual mimo de amores, no peito.

E o chão do cruzeiro co'os nortes, que zunem,

Soprando os cabelos da velha tremente:

E a noite co'as larvas medonhas, — tão feias,

E o éter cerrado de nevoa somente:

E as aves noturnas co'os cantos de agouro,

Nos vãos do cruzeiro, — nos seus coruchéus:

Lhe faliam de um Ente, — que os homens esquecem,

Lhe faliam na terra de um Deus que há nos céus!

Oh — beija fervente mil vezes, velhinha,

Sim, — beija os emblemas de teu relicário.

Recita, — tremendo, recita essas rezas,

Correndo nos dedos o grosso rosário.

E vós — oh donzelas gabadas de lindas,

Que tanto vos rides da velha — coitada?

Deixai-a que suas camáldulas gire,

No frio ladrilho da cruz assentada.

É calvo o cruzeiro, — tão alto, tão alvo,

Qual de caramelos lucente alcantil:

É como um espectro: fugi oh donzelas,

Do espectro, que topa co'o arco de anil!

E todo este quadro de horrenda poesia,

De assombros, — não trava de seu coração.

Sua alma não teme fantásticos trasgos,

Sustida nas asas de linda oração.

É seu gozo todo: — prostrar-se nas lajes,

Nas lajes marmóreas daquele calvário:

Liberta das vistas vipérias do mundo

Rezar mais devota no bento rosário.

Um dia, — era jovem, mimosa dos homens, —

Os homens lhe deram um trono real.

Mas hoje, — velhinha, — co'os pés do cruzeiro

Se abraça contrita, — que pode mais al?

 

FREI BASTOS

Anjo de luz, porque te despenhaste no inferno? — A historia escrevia o teu nome na página das bênçãos: tu mesmo o riscaste, e o foste escrever na página das maldições.

ALEXANDRE HERCULANO.

Parque te afogas, Bossuet brasíleo,

No imundo pego da lascívia impura?

Porque teus louros triunfais nodoas

Co'as roxas fezes do azedado vinho?

Porque contínuo tua glória assopras

Nos leves bafos do charuto ardendo?

Porque te afogas, Bossuet brasíleo,

No imundo pego da lascívia impura?

Desces do altar à crápula homicida,

Sobes da crápula aos fulmíneos púlpitos,

Ali teu brado lisonjeia os vícios,

Aqui atroa, apavorando os crimes.

E os lábios rubros dos femíneos beijos

Disparam raios que as paixões aterram.

Porque te afogas, Bossuet brasíleo,

No imundo pego da lascívia impura?

No alcouce infame que assassina o gênio

As horas passas que a ciência chora.

No fofo leito que os instantes mancham

Os céus insultas co'o burel que estendes.

Nos torpes versos que o prazer te inspira

O inferno evocas, — e os demônios brincam.

Porque te afogas, Bossuet brasíleo,

No imundo pego da lascívia impura?

Para as canções que celebraram Milton

Deu-te o Senhor poética ardentia.

Para esses dons que Bossuet vestiram

Deu-te o Senhor o fúlmen da eloqüência.

Duas coroas te entrançava a glória:

Duas coroas desmanchou teu gênio.

Porque te afogas, Bossuet brasíleo,

No imundo pego da lascívia impura?

Lá sobre os astros Bossuet te amava,

Ao escutar-te os êxtases primeiros.

Tirava o resplendor da argêntea fronte,

Donde a Turene a convicção partira.

Ia c'roar a testa igual à dele,

Que o novo mundo produzia quase.

Porque te afogas, Bossuet brasíleo,

No imundo pego da lascívia impura?

O cego de Albion também te olhava

Co'os novos olhos que no céu lhe deram.

Ele esperava — e os serafins com ele —

Um Paraíso incógnito, mais belo.

Depois, te achando sepultado em lama,

A Lamartine reservou seus louros.

Porque te afogas, Bossuet brasíleo,

No imundo pego da lascívia impura?

Ah! Bossuet sobre as estrelas pára.

Quanto é difícil a subida aos montes!

Voltaire abriu um boqueirão na terra.

Oh! como é fácil o pendor do abismo!

Mas tu subiste a Bossuet a um tempo,

E ao mesmo tempo ‘té Voltaire descias.

Porque te afogas, Bossuet brasíleo,

No imundo pego da lascívia impura?

Salve, poeta, que teus vícios cantas,

Que a noite e a plebe e a crápula desejam!

Salve, orador, que os púlpitos respeitam,

Que anátema irônicos desferes!

Mescla atrevida de sublime e baixo,

Bossuet com Voltaire, três vezes salve!

Salve por mim, — oh malfadado gênio,

Onde as cidades nem os claustros cabem!

Tu, poeta, orador, — porque te afogas

No imundo pego da lascívia impura?

 

O RENEGADO

Canção do judeu

I

Vai, ímpio bastardo,

Vai, monstro sem crença!

É vasta, é imensa

A estrada que vês.

Pendida se inclina

Por lúbrica esteira,

Suave ladeira

P'ra as chamas, talvez.

Teu pai te renega

Na voz do profeta

Co'a boca repleta

De atroz maldição.

Coberto de cinza,

Co'o saco vestido,

Com pranto dorido

Se prostra no chão.

A mãe, que te amava

Com tanta ardentia,

Maldiz de teu dia

Co'os carmes de Jó.

Hebréia formosa,

De rosto engraçado,

Por ti, malfadado,

Se cobre de dó.

Com pena de ferro

Teu nome riscado

Do livro sagrado,

Da lei de Moisés!

Teu nome famoso,

Das tribos querido,

Agora exprimido

Debaixo dos pés!

Oh tu, desgraçado,

Mesquinho perjuro,

Que abraças impuro

Uns erros fatais!

Que ensino a teus filhos,

Que exemplo que legas!

Na lei que renegas,

Renegas teus pais!

II

Talvez mais que os nossos,

Irás vagabundo

De rastros no mundo

Sem termo, sem fim!

Nas selvas, nas cortes

Os homens com gosto

Lerão em teu rosto

Sinal de Caim.

Na jura que quebras,

No crime que atentas,

Excitas, aumentas

Dos nossos a dor.

Pisando nas tábuas,

Que foram-te entregues,

Afrontas, persegues

Ao mesmo Senhor.

III

Outrora no Egito

Nascemos escravos,

Valentes e bravos,

Sofrendo sem dó.

Contentes nos tratos,

Vivendo na penúria,

Cuspimos na fúria

Do mau Faraó.

Depois nos erguemos

No meio da praça,

Em rude ameaça

Batendo co'os pés.

E o rei por dez vezes

Tremeu contemplando

Um Deus pelejando

Na mão de Moisés.

Depois nossos crimes,

Qual chuva de setas,

Mau grado aos profetas,

Encheram o ar.

Castigo do Eterno,

Sentimos na frente

O alfanje furente

De Salmanazar.

E o campo três vezes

Vestiu-se de ossadas,

Ao longo espalhadas

Por Nabuzardan.

E, farto de crimes,

Tornou-se demônio

O rei babilônio,

Progênie de Cã.

Sofrendo, esperamos,

Dos tempos no giro,

O nome de Cyro,

Sorriso de Deus.

Previsto, ansiado

Na voz do vidente,

Chegou de repente,

Livrando os hebreus.

Ao jugo dos gregos

Curvando-nos quase,

Beijamos a base

Do ídolo Amon.

Depois adoramos

C'um medo mais feio

O monstro que veio

De lá de Ascalon.

Não basta, não faria

Ao céu irritado

O sangue espalhado

Dos bons Macabeus.

Não basta que Tito,

Que Roma viessem,

Que até desfizessem

O templo de Deus.

Errantes, dispersos,

— Castigo que pasma! —

Andamos fantasma

Por toda a nação.

Há mais de mil anos

Sofremos calados

Por crimes passados

De abominação.

E vamos correndo,

Correndo na terra

De encontro co'a guerra

Terrível, cruel.

E vamos correndo,

Nós povo escolhido,

Nós povo querido

Do Deus de Israel.

Ah! foram mui grandes

Os erros passados,

Os altos pecados

Do povo imortal!

A voz dos profetas

Perpetua se cala:

Não clama, não fala

Nem mesmo de mal.

Do vate dos trenos,

Do filho de Hélcia

A crua elegia

Faria-nos bem.

Choráramos juntos

Com santa saudade

A vídua cidade

De Jerusalém.

Mas sempre nas eras

Paternas que lemos,

Lutamos, vencemos

As perseguições.

Talvez que bem cedo

Tenhamos completas

Dos nossos profetas

As áureas visões.

E agora no mundo,

De há tanto previsto,

Assome esse Cristo,

Messias real.

E ajunte num ponto

Com frases de brasas

Debaixo das azas

O povo imortal.

E venha c'um cetro

Mais belo, mais novo

Tirar o seu povo

Do abismo de dó.

E cumpra-se à letra

O carme jucundo,

Que, já moribundo,

Nos disse Jacob.

IV

E agora meu filho,

Nas tábuas cuspindo,

Nos deixa, sorrindo,

— Meu filho! que dor!

E vai tresloucado

Seguindo, adorando

Um ídolo infando,

Um Cristo impostor.

Escuta, meu filho,

O brado materno,

E ao rosto paterno,

Vem, tira-lhe o dó.

Se o Cristo que abraças

Não fora loucura,

Seria impostura

A voz de Jacob.

O Cristo que abraças,

Os erros que arrogas,

Por mil sinagogas

Danados estão.

Há mais de mil anos

Que são reprovados

Por sábios sagrados

Da crença de Abram.

Têm sido julgados

Por santos doutores,

Profundos leitores

Da lei de Moisés.

E os nossos rabinos,

Co'a raiva do velho,

O falso evangelho

Pisaram aos pés.

Escuta, meu filho,

O brado materno,

E ao rosto paterno,

Vem, tira-lhe o dó.

O Cristo dos nossos

Não vem perseguir-nos,

Vem antes unir-nos

Num povo, num só.

Ah! volta, meu filho,

Á mãe que te chora,

Ao pai que te adora,

Que geme por ti.

Ah! entra de novo

No nosso conjunto,

E canta compunto

Os ais de David.

V

Mas ah! renegado,

Bastardo, descrente,

Mais ímpio que a mente

Do ímpio Caim!

Riscou-se, apagou-se

Teu nome execrado

Em pleno, sagrado,

Geral Sinedrim.

Ah! réprobo infame,

Nem mesmo compunto,

No nosso conjunto

Não podes entrar!

Já leio em teu rosto

O estigma candente,

Que te há de na frente

Perpetuo ficar.

Nem pátria conservas,

Nem nome paterno,

E o povo do Eterno

Teu povo não é.

Vai, ímpio! — e que, ao ires,

Era meio à viagem,

Te engula a voragem

Que abriu-se a Coré.

 

O MONGE

(SÉCULO XIX)

I

De embate aos sinos, pelos vãos da torre,

Noturnas aves correm. Surdo dobro

Era quase seu choque incerto e vago

Nos ocos bronzes. A soidão profunda

Aumentava o pavor, crescendo a noite.

Ali a mente, em êxtase prendida,

Prolongava estes sons, pensando neles.

Ninguém vivia: a profundez do sono

Tinha co'os mortos irmanado os vivos.

Eu te saúdo, viração da noite,

Frescor suave e triste! As tuas penas

São duras setas de gelado ferro,

Que, os cabelos riçando, entra por eles,

E nulifica o cérebro, passando,

E vai ao coração que pensa angustias.

Fácil não toca a neve aqui no peito.

Não toca? — Sim: mas não enrija as fibras,

Mas não extingue o sentimento nunca.

Vem recolher-se aqui, fugindo ao gelo,

Inteiro, inteiro o espírito, — de fraco.

Eu te saúdo, viração da noite!

Que som me trazes de pesados passos,

Quebrando esta soidão! Nestas desoras

Podem viver somente o louco e o vate.

Não! nem um deles. Viração da noite,

Transporta-me seu nome. O louco e o vate

Não amam sós as trevas e o silencio.

Também o desgraçado estima a noite.

II

Bela aragem da noite! uns lábios de anjos

Não é que te respiram? Teus anelos

Não são de um gênio bom que Deus nos manda?

O teu sereno arfar alembra aos homens

Quase um gozo do céu. Lá noutras eras

Algum sentiu-te assim, desfez-se, em lágrimas,

Pensou poeta e plácido em teu seio,

Sobre teu dorso esperdiçou seus males,

Consolou-se talvez, — e crente e altivo

Chamou-te quase um Deus.— Mentiu-te ao todo?

Donde o consolo que nas asas libras

Tácito e santo assim, descer-nos pode,

Se não de lá do céu? Dentro em minh'alma

Eu sinto, eu sinto o impulso de adorar-te.

Sê minha musa, oh viração da noite!

Leva-me, pois, extasiado e livre

Aos lares do infeliz. Se alguém se queixa,

Quero co'os dele compartir meus males.

III

Vejo uma cruz: entrelaçado nela

Férreo cilício com sangüíneas manchas.

O livro do cristão na tosca mesa

Os queixumes de Jó mostrava aos olhos.

Esplendidas de pranto as próprias letras

Estavam inda, — e a página molhada

Das torrentes de dor de alguém que leu-a

Quase por se imprecações falava,

Quase bramia, ao ver-se. A luz, tremendo,

De espaço a espaço a crepitar, gemia,

Como entendendo a voz que enchia outrora

De maldições, de lágrimas, de preces

Os campos de Hus.

Oh plaga que geraste

Uma alma pura de poeta e de anjo,

Salve por mim! Tu pelo Eterno foste

Abençoada um dia, antes que livre

A mão de Satanás te ardesse a terra.

Segunda vez abençoou-te o Eterno,

E deste a grama e o cipariso e as flores.

Por mim, solo imortal, três vezes salve!

Talvez pensava assim, cruzando a cela,

Extasiado um monge. Eu vi seu rosto,

E li seu coração, seu pensamento.

Eram-lhe as faces maceradas, lívidas

Co'os livores da dor. Forçados sulcos

Cavou-lhe fundo o percorrer do pranto.

Não foi o tempo que encolheu seus visos.

De enorme vastidão — dos gregos copia —

Parecia-lhe o cérebro um gravame,

Que apenas sustentava. Os cílios grossos

Dos olhos o fuzil lhe escureciam,

Mais do que a nuvem que não cobre o raio

E passeava em rápidas pegadas,

Falando às vezes, e parando a instantes.

IV

Cristo — exclamou — tu padeceste um dia

Quanto, milhões de séculos vivendo,

Não podia sofrer somente um homem:

Porém remiste a humanidade inteira.

Eu, parte dela, sou remido, — e sofro

Debaixo de teu nome. O meu martírio,

Férreo fantasma que pesado marcha

Co'o vagar do que vai degraus da forca

Que mãos de infames lá no céu prenderam,

É vão, é vão. O sangue, que destilo

Gota por gota das rasgadas veias,

Cai inútil no chão. Regada dele

A linda ervinha, horripilando, expira.

Eu mesmo, eu vejo arrepiar-se a terra,

Se uma golfada deste sangue a ensopa.

Tudo reprova o sacrifício estéril!

Deus! teu filho deixou teu seio eterno

Para salvar a humanidade, —e eu sofro

Debaixo de teu nome inúteis penas!

Déspotas d’alma, déspotas do peito

Sujeitaram à dor, à raiva, ao crime

Os símplices do Cristo. A natureza,

Norma por Deus nos corações plantada

Aquém e além da vida, em rudos tratos,

— Não, não morreu, — mas transformou-se ao todo.

Nas praças de Sião, montões de povo

De vário modo entre clamor seguiam

O herói da redenção. Falando aos homens

Co'esse estilo aos Demóstenes ignoto

Pronunciou uma palavra, — e as selvas,

As solidões, os leoninos antros

Pareceram gemer co'o peso de homens.

As cidades cristãs, co'a mão na face,

Com redomas de sangue em torno aos olhos,

O flébil grito de Raquel sem filhos

Levantaram de novo. Órfãs mesquinhas

Aos altos da montanha em ânsias sobem.

Clamam de lá pelo cantor dos trenos.

Cansam em breve, — e descansar procuram

Sobre o tronco do cedro. O espectro negro...

Seu nome — ASSOLAÇÃO — ... co'a imensa mole

Surgiu de um boqueirão que abriu o inferno.

Seu colo reclinou lá no oriente,

E co'a ponta de um pé bateu no ocaso,

Onde inclinado o sol tremeu três horas.

E as cidades cristãs, co'a mão na face,

Com redomas de sangue em torno aos olhos,

Espavoridas, por seus filhos clamam,

— Clamam, fugindo e lamentando embalde.

Voltai, voltai das solidões, das selvas,

Piedosos cristãos. Alguém mentiu-vos,

Alguém vos disse o que não disse o Cristo.

Deus não é misantropo: estima a todos,

Como outrora os formou nos campos de Ásia.

Por seus dedos miríficos formado

Foi a família o molde do universo.

Conselho aos anjos — não liame eterno —

Foi do Cristo a palavra. Ímpios devotos,

Piores que os ateus, mancharam tudo.

‘Té com seu Deus hipócritas sofismam.

Deus não é misantropo: estima os homens,

Como outrora os formou nos campos de Ásia.

— Não sofismamos, não. Essa palavra

Lede-a no livro eterno: intacta existe.

Ninguém, ninguém pôde aumentar-lhe um ápice.

São imutáveis sempre as letras dele.

Lede outra vez, e meditai mais serio,

E depois conclui.—

Sim! que eu conclua

O opróbrio a vós ou a blasfêmia ao Cristo!

Oh! que infames que sois! Co'a face em risos

Podeis guardar tão atro fel no peito!

Quereis a conclusão? — tomai-a, hipócritas,

Tomai-a em mim.

Não vedes nos meus olhos

Fervendo a insânia? e exasperado o monge

‘Té ao meio da fronte alçava os cílios.—

Não vedes manchas de livor de ferro

No côncavo das faces, onde outrora

Pintou-me a natureza ardentes rosas?

Não ouvis minha voz? profunda e rouca,

— Como encontrando espedaçados órgãos,

No peito forma-se e lá mesmo expira.

Quereis saber a causa? ouvi-me, hipócritas.

V

Em bagas de suor banhado o rosto

Estava o monge. Os encrespados cílios

Ora emendavam-se ao topete acima,

Ora desciam ocultando os olhos,

Como dois fachos moveis, suspendidos

Na vastidão da palidez da fronte

Por uma oculta linha. As mãos, o corpo

Tremiam... que abismei-me!

Estanque e mudo

Algum tempo ficou. Depois olhando

Em derredor de si, qual ante o povo

Lá na tribuna o orador prepara,

Para romper, os ademães co'a idéia,

Abriu de novo os ressequidos lábios

C'um gesto que punhal cortou-me as fibras.

Antes de abrir-se-me a paixão no peito,

Quando em botão as afecções me estavam,

Fui arrojado aos cárceres eternos.

Inda incerta a razão, tímida e néscia,

Balbuciava apenas. Tenra infante

Pronunciava, arremedando os homens,

Qualquer primeira voz que ouvia acaso:

Perdido viajor, no campo à noite

Ao longe divisando a luz que a terra

De seus hálitos pútridos acende,

Lá vai, lá corre em ânsias após ela,

E chega, e topa co'a ilusão, co'o nada.

Fantasia infantil era-me tudo.

Julgava o pirilampo estrela em terra,

Anjos do mar a rútila ardentia,

Palácio de ouro o sol, estofo as nuvens,

Mágica fada a virgem que eu amava,

Que eu temia depois, fugindo dela

Co'o peito aceso de paixões ignotas,

Que parecia-me aguçadas dores,

Tanto que eu cria na justiça humana,

Tanto que eu respeitava a Deus e aos velhos!

E um velho... um velho...— atroador remorso,

Se és um suplício, vinga-me daquele, —

Um velho me falou. Qual no deserto,

Querendo Satanás tentar ao Cristo,

Subindo ao alto, lhe amostrava o mundo,

Tal sequioso me agarrara o velho

Para apontar-me ao céu. Depois tremendo

— Ímpio! nem o porvir falta ao remorso, —

Mostrou-me o templo não — mostrou-me horrendo

Um edifício negro, erguido e vasto,

Manchando o azul do céu.

Que vês, infante?

Ele mo perguntou.

Que vejo? — aquela

Pasta de lama escurecendo os ares.

Amas o céu?

E porque não, bom velho

Não é tão belo o céu? O anil que o pinta

Não é melhor de perto? A estrela dalva,

Que vem correndo assim antes da aurora,

Não é, talvez, um pássaro de prata,

Que eu poderei prender, chegando a ele?

Não é um berço tão bonito a lua,

Que sempre, e sem que pare, embala a infantes?

Não posso um dia, de manhã, sozinho,

Sem acordar ninguém, chegar-lhe à beira,

Algumas gotas aparar de orvalho,

Lavar-lhe aquelas nódoas, — e mais bela

Torná-la depois disto? — Ah, velho, escuta:

Eu quero o céu: mas dizem que p'ra tê-lo

É preciso morrer?

Pobre inocente,

Não é preciso, não. Querê-lo basta.

Querer somente e entrar. Não vês, infante?

Vai-se p'ra lá por terra: — a porta dele

Ei-la visível acolá bem franca.

Tão feia, velho? — a porta dele — aquela

Pasta de lama escurecendo os ares?

Por fora, infante...

E, velho, é só por fora?

Mas ah! por fora eu vejo o céu tão lindo!

E toda a tarde me chamava o velho,

E me apontava ao céu, — qual no deserto,

Querendo Satanás tentar ao Cristo,

Subindo ao alto lhe amostrava o mundo.

E acostumou-me: — e eu já chamava aquela

Pasta de lama escurecendo os ares

Co'o nome, oh! sim, de céu. Infante ainda

Blasfemei, blasfemei co'os lábios do ímpio.

Tu foste criminoso, oh velho indigno,

De meus nefandos obrigados atos.

VI

És réu, és réu, — Atroador remorso,

Se és um suplício, vinga-me daquele.

Tu, anjo aterrador, que o sono travas

Do mau que apenas adormece, e acorda

Ânsio, torvado nas visões que inspiras,

Á minha justa voz das trevas surge,

Corre, vem com teu séquito de fúrias,

Tu, ministro das cóleras do Eterno.

Povoa o leito seu de horríveis serpes,

De visões, de tortor: — vinga-me dele.

Basta-lhe só na vida este castigo,

O mais tenha-o depois no inferno mesmo.

E vim depois, — e num furor sagrado,

Louco religioso, entrei num templo.

Com lágrimas de amor — devota insânia! —

Prostrei-me soluçando ao pé das aras,

No jaspe dos degraus. Ali co'o choque

Do corpo ardente em flamas de delírio

Sobre o frio do chão, senti... Quem pode

Verter esse mistério em língua de homem?

Não! ali, sem ação, caído ao longo,

Não, não morri. Minh'alma tão somente

Sem idéias parou: pensar não pôde.

Sumiu-se, aéreo pó, a inteligência.

Ficou-me o coração fervendo em sangue,

Vulcão represso, — e congelado o corpo

Unido ali co'a pedra. Estatua em terra,

Ídolo gêsseo que do altar caíra,

Não sei que mundo foi, não sei que abismo

Que confuso habitei. Súbito estrala

Funéreo canto que evocou-me à vida,

Dizendo — morto — em destroçadas vozes.

Depois alguma destra ergueu-me o corpo,

E vi... Não sei que vi... Cegou-me os olhos

O vítreo grosso das sanguíneas lágrimas.

Pulvérea sombra de subtil memória

Faz-me pensar que li. Prece ou contrato

Não sei que foi. Um juramento eterno

Fiz ao Senhor sobre os altares dele?

Não lembra-me, não sei. Somente o dizem

Estanhos homens, de negror vestidos,

— Homens? quem sabe se demônios eram?

Serafins infernais, do inferno falam,

E seu irmão, satânicos, me chamam!

Co'a voz tremenda, ameaçando as fúrias,

Dizem que fiz um imortal protesto,

Que há de seguir-me ao céu que ouviu-me as vozes,

Que há de seguir-me aos penetrais do abismo.

Clamam — infames! — que co'as próprias unhas

Rasguei, abri o coração ao Cristo,

E com seu sangue borrifei meus lábios,

E com seu sangue sigilei meu pacto.

Quando, esgotada essa visão terrível,

Visão que a dor me realiza e a raiva,

Olhei-me a mim, desconheci-me quase.

É bem real, Pitágoras, teu sonho!

O Démon que inspirava-te era um anjo.

Dos arcanos do céu alguns tiveste.

As almas dos mortais transmigram, passam

De corpo em corpo, ou duma essência em outra.

Corpo nem alma os mesmos me ficaram.

Homem que fui não sou. Meu ser, meu todo

Fugiu-me, esvaeceu-se, transformou-se,

Vivo; mas acabei meu ser primeiro.

Lábil reminiscência inda me antolha

Fugazes sombras da passada vida.

Para maior suplício, aqui num quadro

Esses dois tempos comparados vejo

Ante mim sempre, que os refuso embalde.

Eu te creio, Pitágoras, nos sonhos!

As almas dos mortais transmigram, passam

De corpo em corpo, ou duma essência em outra.

Se eu não morri, sou trânsfuga da vida.

Dista, dista de mim minh'alma antiga.

A toga férrea que estreitou-me os artos,

Como azinhavre devorou-me as carnes

Osso, esqueleto, pelas fibras prezo,

Vou caminhando, — e caminhando rinjo.

Folga, Loyola: — eu preenchi teu mando.

Até te entrego o teu supérfluo «quase.»

Eu sou cadáver, sou! — Olha-me e julga.

É pouco ainda este sofrer tão duro

Feito por vós, hipócritas sagrados?

Não basta aqui a conclusão das dores?

Vossos troféus, que em lágrimas se ensopam,

Enegrecidos, úmidos de sangue,

Cruor gotejam dos rasgados peitos,

Que lancinados dos seus topes pendem,

— E a glória vossa não se farta iníqua,

E não vos pode encher vítima tanta?

Polifemos cruéis, milformes hidras,

Monstros piores que os horríveis monstros

Que a mão de Homero bosquejava o medo,

Portentos de terror — quereis mais pasto?

Pois sim! —Abri as leoninas garras,

E destampai vosso infernal sarcasmo!

De vosso instinto a furiosa insânia

Vou talvez saciá-la. Ouvi-me ainda.

VII

Marmóreo cárcere apertou-me os ossos

Carcomidos, esquálidos, sem forma,

— E o dom que extrema os animais e os homens

Aqui perdi-o. Oh tu, filho do Eterno,

Ouve meu brado acrisolado e puro

No lar do coração — que aflito o amaste!

Uma palavra te pulou dos lábios,

Gládio de fogo, onipotente e santa,

— E nela voa a liberdade aos povos.

Uma palavra também salta em chamas,

Gládio de súlfur, peçonhenta e grande,

Desse rival que Tântalo te emula,

— E nela voa a escravidão dos povos.

Filho do Eterno que impossíveis podes

‘Té quando em burla deixarás teu reino?

Cai debaixo do inferno o mesmo Empíreo!

Deus! em teu nome Satanás impera!

Aqui nos claustros os demônios moram,

— E o monge verga ao desespero o colo,

E julga mão divina a mão que o toca,

E blasfema do Cristo, e as aras cospe,

E a cruz e a Bíblia entre delírios pisa.

A crença augusta que no peito aperta,

Que no leite materno haurira infante,

Que nos cristais da dor sair procura,

Disse — Sois livres — indistinta aos homens,

E diz ao monge — Escravo! — E o monge insano

Pisa mais uma vez a cruz e a Bíblia.

Tal o furor que a escravidão excita!

Tal sou, tal è o monge, — ente não-homem

A quem privou-se a liberdade, — e nela

Privada topa a consciência em nada.

O crime e a raiva no seu peito habitam.

Cobrem-lhe a face mascaras de louça,

Onde um sorriso angélico se imprime

Nos templos e nas praças. Em sua alma

Contínuo instigações malvadas fervem.

Que celerados espantosos planos

Não têm nascido aqui! Frontais anosos,

Tetos sombrios, seculares muros,

Respondei-me, falai. Em vosso espaço

Co'o dia emenda-se a mudez da noite?

Oh! quanto prova este silencio eterno!

Se eu fora ao mundo arremessado acaso,

Em qualquer pólo, no torrão, no gelo,

A estas horas meditara em crimes?

Blasfemara de Deus perante a lua,

Cujo orvalho. me queima? O leito, o sono

Ser-me-ia travado â meia-noite?

Mais aflitivo que o labor de escravo,

Ócio infamante, eu te renego em balde!

Geram-se os vícios em teu mole seio,

E te beijando, e te cingindo o colo,

Boceja, estira-se a lascívia, — e dorme.

Trucida as almas solidão forçada,

Barbariza, asselvaja. As pandas azas

Bate a virtude, e nas famílias pousa.

Tenra plantinha, nos desertos nasce

Um certo amor que abandonado expira,

Ou torrentes de tóxicos dimana.

Aqui o coração se volve em raio,

Os ossos em punhais, a mente em fúria.

Aqui em fel a inspiração se embebe.

Aqui de opróbrio a candidez se mancha.

Aqui converte-se a virtude em crime.

Mas ah! lá chama às orações o sino!

Um sacrilégio mais! Senhor! perdoa!

Vou emendar imprecações com salmos.

Vai em teu templo reboar meu brado,

Que aos céus não sobe, cavernoso e rouco.

Minha voz, minha voz conspurca as aras,

Irônica e gelada. Em atro cofre

Ardem-me dentro renegados gritos.

Cada palpite maldições me clama.

Blasfêmia pulsam-me as artérias todas.

Senhor! eu não sou réu, — tu bem o sabes,

De sacrilégio tal! Perdoa ao ímpio,

— Ao ímpio feito por mais ímpios que ele.

Agora ride, hipócritas sagrados!

Eis-aqui vossa obra. Algozes, vede-a!

É cruel, como vós; mirai-vos nela.

Não mais clameis que edificou-a o Cristo.

Contumélia infernal! — Senhor! teu filho

Fora teu filho, se criasse os males?

VIII

Na torre havia-se calado o sino,

E o eco apenas ressoava ao longo.

Também o monge emudeceu com ele,

Fechou a cela, e caminhou soturno

Pelas naves afora. Um som compresso,

Quase carpido, na abafada cela,

Ficou ainda a refletir-lhe as vozes.

E eu ali, embevecido em ânsias,

Fiquei chorando, —e lamentei-lhe a sorte.

Aos montes do Senhor ergui meus olhos,

E disse uma oração. Rezando ainda,

Senti nas veias afluir-me a calma,

— E cri que o monge a conseguiu comigo.

Inda corria a viração da noite

Com fresca madidez. Pedi-lhe as azas,

E fui saudoso a meditar meus carmes.

 

O APÓSTATA

CANÇÃO DO CATÓLICO

Não sentes por sobre a face,

Como um raio inopinado,

Esse anátema sagrado,

Essa férrea excomunhão?

Não sentes a espada nua

De Roma no teu semblante,

De Roma, — eterno gigante,

Sustendo infernos na mão?

Ah! triste, perjuro infame,

Que esqueces esse legado,

Santa herança do passado,

Santa crença de Jesus!

Que a negras voragens desces,

E julgas que ao céu te elevas!

Que por turbilhões de trevas

Trocas um reino de luz!

Ah! triste, que te abismaste

Num precipício insondável

Com esse orgulho execrável

Que Lusbel inspira aos seus!

Que duas vezes perdeste

Esse domínio sagrado,

Paraíso resgatado

Co'o sangue puro de Deus!

Ah! triste, que espedaçaste,

Com sacrilégio altanado,

O juramento prestado

Junto à fonte batismal!

Co'o perjúrio que fizeste,

Tu, infante estremecido,

Cravaste um punhal buído

No coração paternal!

Ah! triste, que te desgarras,

De queda em queda passando,

Como do monte rolando

Costuma a pedrinha vir.

Ah! onde, cristão perjuro,

Parará teu baque infindo?

Ou irás sempre caindo

De um em outro nadir?

Ah! triste, que insano clamas,

Com teus sofismas cruentos,

Que de livres pensamentos

Precisa o espírito teu!

E com Lutero te abraças,

Tu, apóstata ignorante,

Na convicção protestante,

Prelúdio certo do ateu!

Vai, apóstata, perjuro,

Com esse raio gravado,

Esse anátema sagrado,

Essa férrea excomunhão!

Não sentes a espada nua

De Roma no teu semblante,

De Roma, — eterno gigante,

Sustendo infernos na mão?

 

O CONVERSO

CANÇÃO DO LIBERTINO

Templo, abismo de Deus, abre-me o seio.

Quero arrojar-me a dédalos de trevas,

A dedados de luz. Precisam homens

Desses mistérios que a razão fascinam.

Ainda que depois se cerre em noite,

A face de um crepúsculo me agrada.

Templo, abismo de Deus, abre-me o seio.

Salve, Religião, sublime idéia,

Que tanto encantas feiticeira as almas!

Sobre teu inventor mil bênçãos caiam!

Profeta do Senhor! seja o teu nome

Ainda além dos séculos bendito!

Deste numa ilusão um gozo aos homens.

Templo, abismo de Deus, abre-me o seio.

Em meu orgulho esmigalhei-te insano,

Pisei-te aos pés, encantadora crença!

Julguei achar na liberdade um muro.

Achei poeira, mais que a tua, etérea.

Tu, minha crença, tu somente és firme.

Espancas um remorso aos pés de um padre.

Templo, abismo de Deus, abre-me o seio.

Mil santos teus, co'os corações de fora,

Aos repulsos de Deus consolam mesmo.

Sempre seguro estou co'a crença minha.

Tenho, em falta de Deus, quem chame ainda.

Com áureos serafins, gentis arcanjos,

Tu, minha crença, os erros me rodeias.

Templo, abismo de Deus, abre-me o seio.

Levado em turbilhões de excelsos crimes,

‘Té gora estive em báratros de inferno.

Não me lembra o que vi: mas sei que errava

Por lagoas de asfalto, ares de enxofre.

Tu, de lá me arrancaste, oh crença minha.

Mais belos são teus insondáveis erros!

Templo, abismo de Deus, abre-­me o seio.

Sou cristão outra vez: sou teu: venceste.

Quero arrojar-me a dedados de trevas,

A dedados de luz. Precisam homens

Desses mistérios que a razão fascinam.

Ainda que depois se cerre em noite,

A face de um crepúsculo me agrada.

Templo, abismo de Deus, abre-me o seio.

 

ELA

Eu lhe queria tanto, quanto os des­graçados querem aos que os estimam.

EUGENIO SUE.

Eu sei, oh virgem, que em teu peito inócuo

Tenho palpites, lá. Sei que tua alma

Ficou pensando co'as idéias altas,

Que te inspirei profundo.

Inda em teus olhos reconheço ao longe

Todo o meu pensamento. Alto gravada

Em tua mente a minha mente existe.

Pertences-me p'ra sempre.

Rasguei-te, sim, do coração mais imo

Um véu cerrado de inocência fátua.

Mas não te nodoei: quis que ficasses

Casta assim mesma, — e sabia.

Tal na floresta a cândida pombinha

Penetra o ninho do amoroso pombo:

E como dantes, nos rosais florentes,

Vai arrulando ainda.

Não, não temo de ti. O amor que sentes

Não é da terra não, — nem segue o corpo.

O amor que sentes, nem contigo expira.

É mais que imorredouro.

Hás de amar-me na terra, — e alem dos astros,

Eu te ensinei um sentimento eterno.

Mau grado a mim, a ti, ao mundo, aos anjos,

Oh! hás de amar-me sempre!

Não te forcei, nem te prendi com ferros.

Tua vontade é, como dantes, livre.

Mas voluntária nem coacta podes

Amar a outro amante.

Um vate, um vate coligou-te aos seios,

Tu deste-lhe o perfume de teus lábios.

O nó do abraço te estreitou seu corpo.

O mais foi um poema.

Tu recebeste os hálitos de um vate.

Tu lhe bebeste a inspiração aos tragos.

O fogo que do céu lhe desce em línguas,

Mulher! também ardeu-te.

Para os homens de Deus foste sagrada.

Pudeste ser-lhes dos mistérios cônscia.

És, oh vestal, a cúmplice divina

Dos celestes oráculos.

Estás agora iniciada eterno.

Amaste-me: eu te quis. Julguei-te digna

De seres-me a Sibila de meus cantos,

O anjo de meus versos.

Hás de amar-me na terra, — e além dos astros.

Eu te ensinei um sentimento eterno.

Mau grado a mim, a ti, ao mundo, aos anjos,

Oh! hás de amar-me sempre!

Eu sei que um negro, espantador fantasma

Co'as asas brônzeas te aparece à noite,

E te deixando a palidez manchada,

Te grita — Monge! — e passa.

Eu sei que envolto na pancada aérea

Do meio-dia te revoa um silfo,

Que no côncavo d’alma se te enrola,

Também dizendo — Crime! —

Listras de sangue, de manhã, te cortam

O brando anil que nada-te nos olhos.

E assim mais bela, temerosa e pávida,

Pensas em mim, —e choras.

Em presença da aurora, aos raios dela,

Lá do tremulo seio em que me escondes,

Arrancas as canções que me inspiraste

Travado co'as delicias.

Meus versos cantas para o sol que nasce,

Para o gorjeio matinal dos pássaros,

E de minha harpa as harmonias casas

Co'o cicio das árvores.

Depois um riso te assombreia a face,

Limpa-te o sangue dos aníleos olhos,

E co'o nome de — Vate — assoletrado

Desfazem-se-te as nódoas.

Os alvos braços — êmulos do jaspe —

Cá para o sul onde eu habito estendes,

E nas asas da aurora um beijo ardente

Envias a meu cárcere.

Então — que passe o tétrico fantasma,

E grite embora — Monge! — e troe o sino

Que toca ao meio-dia, e nele envolto

Proclame o silfo — Crime! —

Que céu te pode anuviar um riso!

Que espectro pode sustentar-te o canto!

Que silfo não desmancha-se nos ares

Ao sopro de meus versos!

Guarda no seio o talismã que dei-te.

Diante das visões, meus carmes canta.

Insulta os gritos de sinistra inveja,

Que dizem — Monge, e Crime! —

Mau grado aos mundos, serás minha agora.

Eu te ensinei um sentimento eterno,

Hás de amar-me na terra, — e além dos astros.

Oh! hás de amar-me sempre!

 

SAUDAÇÃO

AO NATALÍCIO DO MEU AMIGO OLYMPIO MÁXIMO CHAVES

O mundo antigo está às garras com o moderno.

LACORDAIRE.

I

Quebrai a lousa impura que vos fecha,

Fantasmas do passado.

Surgi da cinza, oh séculos de outrora,

Ouvi, ouvi meu brado.

Deixai na campa esse sudário imundo,

Essa toga da morte.

Tomai da vida, do prazer, das galas

O sobranceiro porte.

Vinde saudar a obra que sonhara

Vosso espírito ardente.

Vinde baixar a frente respeitosa

Ao século presente.

Co'os olhos longos ao porvir que vemos

Nobre tortor sofrestes.

E os louros imortais que não cingistes,

Olhai aqui, — são estes.

Novos Batistas, na soidão clamastes,

Clamastes na cidade.

E a vosso brado os cárdines, rangindo,

Soaram — Liberdade!

Honrosa luta, sublimado anelo

Foi toda a vossa vida.

Mas não entrastes, ai! Moisés modernos,

Na terra prometida.

Assistiu-vos cruel o desespero

À ultima extorsão.

Destes ainda o derradeiro espiro

Nas mãos da escravidão.

Não pudestes pisar o brônzeo colo

De déspotas colossos.

Mas armas de outra tempera forjastes

Para os vindouros vossos.

Esse fantasma atroz — vestido a crimes,

Seu nome... Assolação, —

Caiu depois de vós, — e livre assoma

Do Cristo a redenção.

Ressuscitai: vosso ideal sublime

Venceu, triunfa agora.

E o semblante dos déspotas que restam

Aterra-se, descora...

II

Este século ditoso

Resume os bens do passado.

Bebe a seiva dos arbustos

Que mil campinas têm dado.

Tem a ciência dos tempos

Junta com outro ideal,

Como um tope variado

De um jardim universal.

Tem um futuro mimoso

Visão de felicidade.

Tem dois verbos encarnados

— O Progresso e a Liberdade.

III

E foi, Olympio, um século tão grande

Que te deu o Senhor.

Deu-te com ele um coração altivo,

Cheio de pátrio amor.

Deu-te a vida num século de vida,

De luz e de verdade.

Deu-te a missão de atleta denodado

Da santa Liberdade.

Encheu-te o coração de amor da pátria

No mais subido excesso.

Encheu-te o coração das simpatias

Dos crentes do Progresso

Assim teu peito inteiro apenas basta

Para tão grande Nume.

Ali não cabe mais. Tudo o que sobra

Extingue-se em seu lume.

Mas se acaso em seus íntimos refolhos

Um vácuo ainda existe,

Grava-lhe ali co'a pátria o pobre nome

Do trovador tão triste.

O trovador também ama o progresso,

Respeita o pátrio amor.

Se não queimasse-lhe esta chama o peito,

Não fora trovador.

 

DEIXAS-ME

AO MEU AMIGO E COLEGA FRANKLIM AMÉRICO DE MENEZES DÓRIA

Montserrate 29 de novembro de 1852.

Estas alpestres rochas, que se apartam,

Deixam vazia a insaciável vista:

A dura ausência do prazer de vê-las

A mente me contrista;

Este sussurro das travessas vagas

Causa saudades vividas e ternas:

Por toda a vida — e além da morte — deixam

Memórias quase eternas.

Estes sofás de acolchoada relva

Deixam no peito sensações de menos:

Deixam a falta do prazer mais puro,

Dos gostos mais amenos.

Estas serenas brisas salitradas

Frisando a face das cerúleas águas,

Adormecem um pouco a dor no peito,

Esquecem negras mágoas.

Mas nada disso em meu ardente peito

Tantos vulcões ateia de saudade,

Como esta ausência necessária e dura

Da dócil amizade.

E tu, bardo feliz do sentimento,

Gentil cantor das afecções suaves,

— Doce, bem como o gorjear sonoro

Das inocentes aves:

Tu, que sabes cantar tão santos hinos,

Como dos anjos as canções supernas,

Deixas-me n'alma férvidas saudades,

Saudades sempiternas.

Deixas-me em mar de ansiedade infinda,

Tímido nauta — duvidoso, incerto:

Deixas-me n’alma o vácuo da existência,

Deixas-me um vão deserto.

 

À PROFISSÃO

De Frei João das Mercês Ramos

Entretanto o céu se levanta sereno e pomposo como para um dia de festa.

CARLOS LACRETELLE

Eu também antevi dourados dias

Nesse dia fatal:

Eu também, como tu, sonhei contente

Uma ventura igual.

Eu também ideei a linda imagem

Da placidez da vida:

Eu também desejei o claustro estéril,

Gomo feliz guarida.

Eu também me prostrei ao pé das aras

Com júbilo indizível:

Eu também declarei com forte acento

O juramento horrível.

Eu também afirmei que era bem fácil

Esse voto imortal:

Eu também prometi cumprir as juras

Desse dia fatal.

Mas eu não tive os dias de ventura

Dos sonhos que sonhei:

Mas eu não tive o plácido sossego

Que tanto procurei.

Tive mais tarde a reação rebelde

Do sentimento interno.

Tive o tormento dos cruéis remorsos

Que me parece eterno.

Tive as paixões que a solidão formava

Crescendo-me no peito.

Tive, em lugar das rosas que esperava,

Espinhos no meu leito.

Tive a calúnia tétrica vestida

Por mãos a Deus sagradas.

Tive a calúnia — que mais livre abrange

Oh Deus! vossas moradas!

ludimo-nos todos! — Concebemos

Um paraíso eterno:

E quando nele sôfregos tocamos,

Achamos um inferno!

Virgem formosa entre visão fantástica

Que tão real parece!

Mas quando a mão chega a tocá-la quase,

Lá vai, lá se esvaece!

Sonho da infância que nos traz aos lábios

Um riso mais que doce:

Mas uma voz, um som...— some-se o sonho,

Como se nunca fosse.

Tu filho da esperança! — tu juraste

O que também juramos.

Tu acreditas, inocente! — ainda

O quanto acreditamos!

Oh! que não sofra as dores que nos ferem

Teu jovem coração!

Que o futuro que esperas não se torne

Terrível ilusão!

Que sobre nós — os filhos da desgraça —

Levantes um troféu:

E que não aches, — como nós achamos —

Inferno em vez de céu!

24 de outubro de 1852.

 

CANTO

Oferecidos aos jovens alunos do Colégio de S. Vicente de Paulo, por ocasião de festejarem o mesmo soneto, a 23 de julho de 1852

Louvai, meninos, ao Senhor.

SALMO.

Duas fileiras de brilhantes jovens

C'um doce rir nos lábios,

Abatendo co'os raios da eloqüência

Os presumidos sábios:

A voz modesta do cristão convicto,

Sem ódio, sem vaidade,

Despindo os erros do sofisma ornado,

Laureando a verdade:

Os olhos limpo do divino atleta,

Imóvel, inspirado,

Descortinando a negridão da infâmia

Do século passado:

A turba dos filósofos, submersa

Nas vagas mais impuras,

Abismando no inferno, onde bebeu-as,

As sóficas loucuras:

Parecendo tornado o mundo inteiro

Um plano infindo,

imenso: Só pelas duas alas dominado

De exército tão denso:

De um resplendor de arcanjos e de luzes

Num trono divinal

A cruz sublime, — como o sol que expande

A luz universal:

Curvados todos ao sagrado aspecto

Do símbolo cristão:

Todos, na fé do crente, murmurando

Um hino, uma oração:

Eis do futuro o prazenteiro quadro,

O quadro consumado,

Que pela mão segura destes jovens

Terá de ser pintado!

Eis o futuro enevoado e negro,

Que já tememos tanto,

Convertido em hosana de alegria,

Em jubiloso canto!

Se nossos pães fizessem no passado,

Quanto agora fazemos:

Se em nós, seus filhos, cressem, — como agora

Nesses filhinhos cremos:

Não seria o presente uma palavra

De luto, mágoa e dó:

Nem o futuro um cálculo provável,

Uma esperança só!

Não! — este longo exército de jovens

Atletas da ciência,

Malgrado a muitos nos imprime n’alma

O selo da evidência.

Os filhos do porvir, na mesma taça,

O mesmo leite bebem:

A mesma nutrição no mesmo prato

Seus corações recebem.

Este sustento igual, na flor dos anos,

Na infância da ciência,

Há de lhes dar às inocentes almas

Uma uniforme essência.

Essência — como aquela que se forma

Lá no seio materno:

Essência, — que já mais há de mudar-se,

Que há de existir eterno!

Assim a vida inteira destes jovens,

Atletas da ciência,

Será destes princípios, que recebem,

A certa conseqüência.

As luzes da ciência mais profunda

Serão seu elemento:

A crença pura do evangelho santo

Será seu complemento.

Não é, por tanto, uma esperança apenas

A visão do futuro:

É um verso profético e sagrado,

Um cálculo seguro!

Eia, pois, — guerreiros

Do saber brilhante,

Eia, pois, — atletas

Da cruz triunfante,

Levantai um brado,

— O brado de — avante! —

O brado de — avante —

Retumbe nos ares:

Transponha seguro

As terras, os mares:

Penetre nos bosques,

Nos ínvios lugares!

O brado de — avante —

Aterre os descrentes,

— Os homens, que a vossos

Desejos ardentes

Apenas têm risos,

Escárnios mordentes.

O brado de — avante —

Revele aos países

Os vossos trabalhos,

Fadigas e crises,

Os vossos triunfos

Sublimes, felizes!

O brado de — avante, —

Qual bálsamo santo,

Qual doce palavra,

Qual férvido canto,

Aos crentes console,

Enxugue seu pranto.

O brado de — avante —

Retumbe nos ares:

Transponha seguro

As terras, os mares:

Penetre nos bosques,

Nos ínvios lugares!

Avante, oh jovens! — que os esforços vossos

Deus os coroa. O herói da caridade,

Vicente, o santo, o amante da ciência,

Filósofo também, que soube outrora

Confundir a filósofos, — estende

Seus olhos para vós. Lindo futuro

Impetrou para vós do Onipotente.

Eu vejo-o mesmo sobre acesa nuvem

Baixar aqui, e abençoar-vos todos!

«Sede seguros do porvir, meus filhos,

Que eu vo-lo guardo cá.

O Senhor inclinou a vista imensa:

Compadeceu-se já.»

Foi ele, sim, que nos falou: ouvimos

O oráculo divino. Eia! o futuro

Vosso não pode ser visão que foge!

 

SAUDADE

Ao meu amigo Frei Bento da Trindade Cortez, atualmente no Mosteiro do Rio de Janeiro

... porque lágrimas também são amor.

DB. J. J. B. DE OLIVEIRA.

Em minhas horas de noturna insônia,

Co'os olhos fitos no porvir longínquo,

Eu penso em mim, — e na segunda idéia

Encontro-me contigo.

Eu te pranteio no arrebol da aurora,

Que em teu exílio meditando esperas.

Envolto num crepúsculo te enxergo

A deplorar teus fados.

Nas nuvens tintas de sangüíneas listras

Lagrimas verto que sobre elas mando.

Partem, — porém do caminhar cansadas

Descaem no oceano.

Desesperado então, maldigo o espaço,

Maldigo o céu e a terra, o vácuo e o pleno.

Em cada criação deparo um erro.

Nem acho Deus tão sábio.

E na minh'alma se desenha ao vivo

Melhor, mais belo, mais ditoso um mundo.

Tiro do nada,, sem ausência e males,

Um orbe todo novo.

O amor da pátria que os tiranos banem

Não choraria maldições e sangue.

Nem tu nem eu seriamos cortados

Por divisões de abismos.

Mas quando ainda não acabo o sonho,

Diviso armadas que vão mar em fora.

Desperto, e caio nos aéreos braços

Da quimera sublime.

E mais amargo te lamento a sorte,

Tu, mártir feito pelas mãos dos bonzos.

Invoco o céu que entornará sobre eles

Alabastros de anátema.

Ligando a mim teu coração dorido,

Que a teus amigos em penhor deixaste,

Tateio nele as emoções tão vivas,

Que em teu desterro sofres.

Conheço as aflições que te salteiam,

Nobre proscrito. O sol, a lua, os astros

Cruzam teu ponto, e trazem-me sinceros

Tuas ingênuas dores.

Sim! para os claustros não nasceu tua alma.

Teu coração não te palpita — Monge.

Nem tão baixo teus Ímpetos serpeiam,

Que um cárcere os contente.

Nesse vasto palor que te orna a fronte,

— Sinal dos homens de profundo gênio,

Eu leio a grande e destemida idéia,

Que não cabe nos claustros.

Deserta, oh gênio, do covil imundo,

Onde o leão dos vícios se alaparda.

Ah! esta cela, onde a indolência dorme,

Não pode, não, ser tua.

Coral guardado nas flumíneas urnas,

Quem há de te arrancar do equóreo fundo?

Não serias mais belo, em áureo engaste,

No colo de uma virgem?

Bahia 5 de agosto de 1854.

 

AOS TÚMULOS

Pobre, grosseiro, não numeroso, que importa isso? Para pregar as tábuas de um ataúde qualquer pe­quena força basta.

ALEXANDRE HERCULANO.

Aos túmulos, aos túmulos, minh'harpa!

Choremos sobre a lapida esquecida

Dos homens que já foram.

O céu aceita o pranto dos pequenos.

Não te acobardes, não. Vamos, minh'harpa,

Depor também na lousa dos finados,

Como a viúva, um óbolo mesquinho,

Mesquinho só na terra. Além das nuvens

Um tesouro se torna aos pés do Eterno.

Tua missão, minh'harpa, é grande, é grande:

— Sagremo-nos à morte.

Aos túmulos, aos túmulos, minh'harpa!

Da grimpa do mosteiro atroa o bronze,

E de fúnebres sons os ares pejam,

Como a tremenda voz da eternidade,

Que as nuvens baixa, e perde-se no imenso.

Bem!—este som diz—morte!—e apraz aos tristes,

Apraz a nós, minh'harpa!

Não te assuste, por tanto, a voz amiga,

Que há de chorar por nós, mau grado aos vivos,

Quando não formos mais!

Tua missão, minh'harpa, é grande, é grande:

— Sagremo-nos à morte.

Aos túmulos, aos túmulos, minh'harpa!

Pobre instrumento, — as tuas áureas cordas,

Onde pulsavas o prazer e a vida,

Estalaram por si! — Estas que sobram

Sejam sagradas à tristeza e ao luto.

Mágoas somente restam-te. Emudece,

Ou canta, soluçando, as mágoas mesmas.

Estás cansada de chorar tão jovem?

Já não são tua essência às grandes dores,

Teu alimento as lágrimas?

Tua missão, minh'harpa, é grande, é grande:

— Sagremo-nos à morte.

Aos túmulos, aos túmulos, minh'harpa!

Não vês aqui este sepulcro aberto,

Como se a terra se estivesse rindo,

Para abraçar seus filhos?

Vamo-nos juntos debruçar sobre ele.

Nossos primeiros pais, cheios de susto,

Templos aos manes levantaram quase.

Tinham razão, talvez. Cristãos mais sábios

Amemos com recato a tumba ao menos,

Tua missão, minh'harpa, é grande, é grande:

— Sagremo-nos à morte.

Aos túmulos, aos túmulos, minh'harpa!

Assim, minh'harpa, a nossa vida inteira

Devêramos passar, cantando em trenos

Esse jazigo, onde se esconde a ossada

Dos séculos que passam.

Aqui também na podridão, nos vermes

Há de o futuro em esqueleto imenso

Cair, esvaecer-se.

Aqui também inspirações se bebem

No hálito dos mortos.

Aqui se encontra inesgotável messe

De sólidas idéias.

Tua missão, minh'harpa, é grande, é grande:

— Sagremo-nos à morte.

Aos túmulos, aos túmulos, minh'harpa!

Sim: fiquemos aqui.— Aquele arbusto,

Que das frestas da lapida desponta,

Nasceu talvez do peito de um cadáver.

A seiva humana em suas hástias corre.

Aquela flor inda transpira sânie.

Lá para o meio da soidão noturna

Talvez fale do céu, talvez do inferno.

Sim: fiquemos aqui. Daquelas folhas

Talvez saia uma voz precisa ao mundo,

Talvez algum recato aos vivos traga,

Talvez de nós careçam.

Sim: fiquemos aqui soturnos ambos.

Esperando seu brado.

Tua missão, minh'harpa, é grande, é grande:

— Sagremo-nos à morte.

Aos túmulos, aos túmulos, minh'harpa!

Não te apavore o aspecto das tumbas.

Esta boca sarcófaga que a terra

Aqui a nossos pés abriu medonha

Não é para engolir-nos.

O nosso cálix de abundantes dores

Não transbordou ainda.

Tua missão, minh'harpa, é grande, é grande:

Sagremo-nos à morte.

Aos túmulos, aos túmulos, minh'harpa!

 

A MORTE NO CLAUSTRO

Por ocasião da morte do venerando ancião, Frei Manuel da Piedade Borba.

Eu não sou um historiador das coisas humanas.

BOSSUET.

I

Eu vi-o, eu vi-o, — e o coração transido

Retalhou-se-me então nas fibras intimas.

Eu vi-o, eu vi-o, — escancarando a boca,

Roncava na garganta engasgo horrendo.

Eu vi-o, eu vi-o, — em contorções, em ânsias,

Estrebuchando os membros impotentes.

Não lhe era aspecto nas feições mudadas,

E a voz apenas lhe restava rouca.

Ele pedia — o velho agonizante —

Pedia ainda do prelado a bênção.

Tu só, consolo certo dos aflitos,

Tu só religião, preciso culto,

Tu lhe ministras varonil conforto,

E os paroxismos agros lhe minoras.

Oh! por que vem tão tarde, irremissível,

Esse momento necessário e certo,

Em que teu brilho fascinante assoma,

Fatal verdade aterradora, — eterna!

Como fulmíneo meteoro súbito,

À fronte esmagas, quando leve a roças!

Tremer fazia os íntimos dos ossos

O grave som do compassado sino,

Que do dioso encanecido velho

A agonia fatal anunciava.

Ungido foi co'o óleo sacrossanto:

E em volta ao leito súplices murmuram

Preces ardentes, orações piedosas,

Que seus irmãos sinceros lhe repetem,

— Pedindo a Deus e à Virgem mais que pura,

Pedindo aos santos mártires celestes,

Pedindo agora aos divinais pontífices,

Aos confessores do afrontado Cristo,

Ás puras virgens, e às mulheres castas,

— Guardem-no pios da perpétua morte.

Eu vi-o, eu vi-o, — em convulsão serena,

— Quanto do justo o passamento é doce, —

Desprender seu espírito cansado

Da cadeia que o liga à vil matéria,

E voar, e voar, com leves asas,

Emanação de Deus, — de Deus ao seio.

A derradeira paz — fraternos ósculos

De seus irmãos já recebia o triste:

Oh! fantasma da vida! como passas

Rápido tanto! oh tempo mentiroso

De existência falaz e momentânea!

Homem há aí tão vão que inda confie

Nesses teus ouropéis de podre glória?

Há aí quem seja de razão tão fátua,

Que eterno julgue teu brilhar efêmero,

Que a tuas breves decepções se abrace?

Há aí quem seja em seu olhar tão cego,

Que pretenda esquivar-se à natureza?

Loucos mortais! —onde esconder-vos livres,

Que não vejais o querubim da morte,

Galopando em alígero ginete,

Co'a foice em riste, às fauces apontando?

II

Pelos claustros soturnos estrugia

O grave e compassado andar dos monges.

Eu te quisera ter presente agora

A ti, vaidoso ateu, nas horas mortas.

Eu quisera notar com línceos olhos

De rasgo a rasgo os visos de teu rosto.

Eu quisera apanhar, uma por uma,

As contorções doridas, — as angustias,

Que por tuas feições reverberassem.

Tomara a consciência acovardada

Sondar-ta sim, —porém prová-la, nunca!

Não vês, não vês? — silenciosos, quedos,

Em dois extensos renques se dividem:

Talvez disseras que estes homens eram

Negras estatuas, que emblemassem morte!

Sonora voz levanta-se dentre eles,

Convidando-se a virem contentíssimos

Prostrar-se aos pés de Jeová potente.

«Vinde, — cantavam, — vinde, e adoremo-lo.»

Caíram todos, debruçados, curvos,

Ante a face de Deus         Tu, ente infame,

Torpe ilusor dos próprios sentimentos,

Não te curvas, — susténs de Deus a vista?

Ah! perdoa-me o excesso, irmão em Cristo,

Ateu não és, — que não nos há no mundo!

Tu te prostras também — também caíste

De joelhos em terra involuntário!

Interna violência e força ignota

Obrigou-te a ser homem por momento,

Deixar de bruto a condição que ostentas!

Não achas não sei quê sonoro e místico

No recitar monótono dos salmos?

Não achas não sei quê triste e patético,

— Um merencório eflúvio de dor terna,

Do miserável Jó nas próprias pragas?

Segue esse não sei quê — por Deus soprado,

Que em teu intimo foro apenas sentes,

Mas que indizível definir não sabes.

Segue esse não sei quê da consciência,

Que é certo a voz ingênita do Eterno.

Aprende aqui, — oh ente depravado,

A ter fé no Senhor que te criara.

Serás então feliz, — se olhar quiseres,

Alem da vida efêmera da terra,

Outra vida nos céus, — que não se acaba.

Ouve-as agora — as derradeiras preces,

O salmo dos degraus, que um rei profeta,

Sonoro dedilhando o decacordo,

Insuflado por Deus, cantara um dia.

«Do imo de meu peito (ei-los que dizem)

A ti, Senhor, clamei no mesmo abismo;

Os meus prantos, Senhor, — meus rogos ouve!»

Pouco depois passasses por ventura

Pelo extenso salão e mudas crastas.

Em solene calada distinguiras

O pisar do pilão pesado e ouço

Por estóicos coveiros manejado.

Depois o baque da sonora lapida,

Que fecha — esmaga o pútrido cadáver.

Depois talvez uma oração ainda

Dos lábios do cristão baixou sobre ele.

Depois mais nada ali — fora o silencio.

III

N'estes claustros, aqui, talvez, — quem sabe?

Talvez neste sepulcro imundo mesmo,

Após alguns minutos mais escassos

Desse meu vegetar insulso e morno,

Me pilarão — triturarão meus ossos

Desumanos tumbeiros.— Eu contigo,

Podre cadáver, dormirei eterno,

Feito meu corpo em terra e cinza e nada.

1851.

 

CANTO FÚNEBRE

Recitado na ocasião de sepultar-se o cadáver do meu amigo Luiz da França Rebouças a 16 de Abril de 1853

A alma foi feita para viajar no céu.

YOUNG.

Oh! porque não? — porque não posso agora

Chorar-lhe a morte? — Que poder tão forte

Há aí que pare a um coração de amigo

No derramar as emoções que o partem?

Que mão há aí tão férrea que comprima

Tam dentro em mim meus sentimentos de homem?

Quem manda à idéia que não pense angustias,

Quem manda ao peito que não sofra mágoas,

Quem manda à voz que não se expanda em queixas,

Quem manda ao pranto que não corra em fios?

Oh! porque não? — porque este gosto extremo

Em lhe chorar a morte hão de tolher-me?

Oh! porque não! — Hei de chorar-lhe a morte,

Bem como outrora lhe cantava a vida.

Reminiscência atroz! que vário quadro

Vens a meus olhos destampar agora!

Como os anéis de uma cadeia extensa,

Presos, cozidos, encarnados, firmes,

Os meus dias estão co'os dias dele.

Um só minuto dessa vida instável

Que vivo ainda, não correu na terra

Sem um minuto dessa vida inócua

Que ele viveu, — e que findou tão cedo!

Entre ele e mim era partida a vida:

Meia vida perdi co'a morte dele.

Se adulto apenas, eu olhei ao mundo,

E achei-o infame, e escarneci-lhe as pompas,

E co'alma feita a um cepticismo inato

Descri do amor que os homens divinizam,

— Não descri da amizade! — Ele provou-ma

Ele foi meu amigo! — oh nome augusto,

Que sabe os homens remontar aos anjos!

Quem sabe ser amigo em si resume

As virtudes do céu e os bens divinos.

Ele foi meu amigo — único e último —

Que tinha uma alma conformada à minha.

Era-lhe brasa o coração fervente:

Assimilava a si minhas angustias,

E, como o fogo, as consumia lento,

E as minhas sensações purificava.

Ele sabia compreender profundo

O coração fosfórico do vate.

Ele era vate!—Em floridos poemas,

Em suaves canções, em ternas liras

Correu seu estro merencório ou lindo.

Corria agora sossegado e triste,

Como um regato em áridos desertos:

Corria agora mais travesso e alegre,

Como um barquinho velejando esbelto.

Nos áureos fastos da poesia pátria

Há de seu nome se inscrever eterno.

Desse-lhe Deus mais dias de existência,

— Fora seu nome o sol para os mais astros!

Reminiscência atroz! que vário quadro

Tu vieste pintar ante meus olhos?

Que vale uma lembrança, uma saudade?

Ele morreu!... a sua glória é morta!

Oh! que eu não possa lhe chorar a morte,

Bem como outrora lhe cantava a vida!

Ah! não devo chorar. Além dos mundos

Eu vejo o céu, vejo o infinito, o imenso:

É o trono sem fim do Deus Eterno:

E a Deus lá em cima vão juntar-se os justos.

É lá que a vida parará perpétua,

É lá que os tempos, sem correr, imóveis,

Não sucedem-se mais, — são sempre eternos.

Lá — ele, o justo, o virtuoso, o amigo

A vida que de Deus tomou, nascendo,

Foi a Deus entregá-la, e unir-se a ele.

Não chorarei: — que essa terrena vida

É um crisol que as sensações apura,

Para chegar a Deus mais casto o espírito.

Não chorarei: — que a ocasião da morte

É o degrau mais alto para o Eterno.

Antes devo pedir ao céu que apresse

Meu momento também.

Quero ir bem cedo

A Deus e a ele unificar-me eterno.

 

POEMA FÚNEBRE

Dedicado a meu irmão Frei Henrique de Santa Rosa Ribeiro, por ocasião da morte de seu irmão Raymundo Álvares Ribei­ro, sucedida a 23 de abril de 1853.

Choraram Germânico até os desconhecidos.

TÁCITO.

I

Choremos todos um amor de menos.

Se uma flor, que murchou, sentimos tanto,

É que faltou-nos seu odor suave,

Que nos dizia — amor — quando exalava.

Choremos todos um amor de menos.

Se lá se esconde no oceano a lua,

E se nos parte o coração saudoso,

É que sem luz os olhos nos ficaram,

Sem esse amor que ela inspirar-nos sabe.

Choremos todos um amor de menos.

Se algum farol não vemos na tormenta,

E se nos fogem da esperança os raios,

É que visamos o naufrágio urgente,

E a perda amarga da visão da pátria,

Que delicias de amor nos predizia.

Choremos todos um amor de menos.

Se a morte crua nos arranca o amigo,

Se damos prantos à memória dele,

É que de nós p'ra sempre separou-se

Um coração que concluía o nosso,

E o gozado prazer não mais gozamos,

E doutro amor o nosso amor falece.

Choremos todos um amor de menos!

Choremos todos o mancebo, o amigo,

Que a nossos braços nos arranca a morte.

Choremos todos uma flor crestada,

Que não dá mais odor: a linda lua,

Que se escondeu nas ondas do oceano,

Que mais não luz: esse farol brilhante,

Que se apagou nas vascas da tormenta,

E a pátria desviou-nos: esse amigo,

Que doutro amor o nosso amor enchia.

Choremos todos sua perda infausta,

Choremos todos o passado gozo,

Choremos todos um amor de menos!

II

Era um dia formoso. — O sol brilhante

Mais esplendidos raios difundia,

E mais ardentes júbilos mostrava.

Como do infante as faces que enrubescem

A mais e mais, quando a alegria aumenta.

Num vaporoso sonho de poeta

Três formosas visões eu vi — tão novas —

Que mais ao céu que à terra pertenciam.

Séria matrona erguia-se a primeira

Com majestoso porte e honesto riso.

Gentil donzela erguia-se a segunda

Co'o tímido pudor nos olhos ternos,

— Anjo inefável de modéstia altiva!

Estava ante elas um loução mancebo

Co'os vivos olhos alongados, fixos,

Respirando prazer, amor e pejo,

Como num templo a vista indefinida

Do crente que no peito as rezas volve.

Enternecido em amoroso arroubo,

Fita à donzela, que, em pudor e riso,

No chão a vista envergonhada crava.

Era um anjo de luz entre dois anjos,

Que dele a luz primeiro recebiam,

E seus raios depois comunicavam,

Como a destra do Eterno a graça infunde.

E onde era o centro fecundante e vivo,

E onde era a ação do móbile primeiro,

A humana vista distinguir não pôde.

E cada qual destas imagens vagas

Era foco de luz, fonte de brilhos:

Bem como o sol — vivificante fogo —

Seus próprios raios, circulando, espalha

Na vastidão do espaço, — e a luz que o cerca,

Vai refletir pelos etéreos corpos,

Pelos astros do céu — e o firmamento

Com estranho clarão pompeia à noite.

Eram assim minhas visões formosas,

As três imagens de meu vago sonho,

Que mais ao céu que à terra pertenciam!

III

O mancebo falou. O norte intenso,

Que ia cruzando enfurecido os ares,

Foi transformar-se em zéfiro saudável,

Quando o mancebo desprendeu seus lábios.

O terreno vapor, que ao éter sobe,

Do chão, dos mares, tórrido ou aquoso,

Que vai no espaço assimilar-se em nuvens,

Que o céu em crepe mortuário enlutam,

Parou também a aspiração que tinha,

Quando o mancebo desprendeu seus lábios.

As lindas flores dos jardins da terra,

Que pelo sol crestadas, estuavam,

Tentando em si desnatural esforço,

A seiva toda do âmago chamaram

Ao cálix globuloso — e cheiro e bálsamo.

Mais novo e ativo respiraram todas,

Quando o mancebo desprendeu seus lábios.

O sol também mais orgulhoso e altivo,

Subiu ao seu zenith — seu trono etéreo —

Para mirar na direção dos raios,

Na baixa terra a imagem da inocência,

A encarnação do espírito dos anjos,

Quando o mancebo desprendeu seus lábios.

— O vento forte e as nuvens se sumiram,

Não exalaram mais o mar e a terra,

Balsamo novo as flores respiraram,

O sol subiu ao seu zenith sublime;

Parada, estanque, a natureza atende,

E o mancebo loução desprende os lábios.


— Crê-me, oh donzela! a onipotente destra

Formou meu coração p'ra ser contido

Bem dentro do teu peito — qual se esconde

Tesouro imenso em urna pequenina.

Tua alma pura, cândida, inocente,

Como o gemer de solitária rola,

Também foi feita para unir-se à minha.

Somos dois corações fundidos ambos

Num coração que um sentimento iguala:

Duas felizes almas derramadas

Numa alma só que um pensamento ajunta.

Quando teus olhos — como ardentes fachos —

Chamas de puro amor, em mim se fitam,

Não encontras também meus olhos quentes

Fitos nos teus em fogo de ternura?

Quando, depois de instantes de silencio,

Depois de um lindo e passageiro arroubo,

A ponto os nossos lábios se desprendem,

Não temos dito tanja vez num brado

As mesmas expressões, as mesmas frases?

Não pensamos também na mesma idéia?

Quando um incerto e vago sentimento

De amor, de timidez, de zelo ou mágoa,

Ambos os nossos corações comprime,

Não temos arrancado ao mesmo tempo

Doridos ais ou tépidos suspiros?

Dois corações e duas almas somos,

Que um sentimento e um pensamento ajuntam.

Deus quer-nos juntos, porque assim formou-nos;

Seremos juntos, venturosos, lindos,

Como as aves do céu no espaço livre.

Deus quer-nos juntos — porque assim formou-nos,

Quer-nos ditosos, venturosos, lindos!

Não carecemos de riqueza imensa,

Para gozarmos nossa imensa dita.

Não carecemos de um solar vetusto,

De um castelo feudal, de um régio alcáçar,

Nem de um palácio de riqueza imensa,

Que nos devam conter a imensa dita.

Não carecemos do poder do mundo,

De um diadema excelso de rainha,

De um cetro forte de riqueza imensa,

Que nos venham ornar a imensa dita.

Não carecemos de renome ou fama,

Desses prestígios frívolos de glória,

Dessa vaidosa voz, geral, inútil,

Que nos venha espalhar a imensa dita.

Templo maior mais digno, mais sublime

É nosso coração: imenso alcáçar,

Onde pôde habitar o amor somente!

Chegamos nele: — que ele é amplo, extenso,

Capaz, bastante a concluir num foco

Duas vidas irmãs, iguais, fundidas.

É só no coração que a dita existe,

É nele só que ser feliz se pode.

Só do seu centro partem-se, despedem-se,

Brilhantes raios de imortal ventura.

E se meu coração co'o teu se iguala,

Se juntos somos pela mão do Eterno,

É que a ventura em nós também se dobra,

E duas vezes mais felizes somos.

Deus nos quer juntos — porque assim formou-nos,

— Quer-nos ditosos, venturosos, lindos! —

Assim falava o fervido mancebo:

Seu coração pulsava arrebatado,

Forte, ansioso, inquieto, ardente,

Como o oceano em vagalhões revolto,

— E parecia, entre os arfantes pulsos,

Querer pular no coração da virgem.

E as pupilas da virgem rutilavam

Saltantes, doidas, como incertos fogos

No mar à noite co'o ferver das ondas.

E do prazer a lágrima correu-lhe

Do lado esquerdo pela face quente,

E foi por ela tremula caindo,

Como um regato de cristal ao longe,

E muito tempo lhe pendeu da face,

Qual pende em flocos do penhasco o gelo,

— E a tez ardente resfriou-lhe um pouco,

E pelas veias circulou-lhe o sangue,

Que todo havia concorrido ao rosto.

E a seu estado natural volvida

Era a donzela uma visão celeste,

Que vê-se em sonho, e se dizer não pode.

E a matrona sorriu. E os fracos olhos

Lagrimas raras de prazer manaram,

Bem como gotas de ligeira chuva.

E levantando a vista ao céu sereno,

E erguendo a destra sobre a filha e o jovem,

E os abraçando em apertado amplexo,

— Sublime, excelsa, qual no templo assoma

Do sacerdote o divinal semblante, —

De Deus a bênção derramou por eles.

IV

E um disco enorme de ventura e glória

Cobriu minha visão. E as três imagens

Eram três centros de brilhantes raios,

De mistérios de luz. Então meus olhos

De tamanho clarão feridos, cegos,

Não viram mais esta visão distinta.

Perante a vista ainda restou por horas

Um turbilhão de luz no mesmo estado.

Depois de grau em grau foi-se apagando,

E se extinguiu. — Um vórtice de trevas,

Imolando no ar, veio envolvê-la.

V

Então a voz de uma verdade amarga

A meus ouvidos ressoou tremenda,

Como o ribombo do trovão rolante!

Um grito extenso, quereloso, trêmulo,

Nos ares se partiu. — Como um rangido

De ferro em ferro, o guincho desatou-se.

Depois subindo lamentosa escala,

Era de um doido a gargalhada bruta,

De vivo incêndio o crepitar nas matas,

O som de um raio no escachar o tronco.

Por fim descendo em gradação medonha,

Já muito ao longe terminou-se o guincho

Na querelosa voz que começara.

Ave sinistra! — incrédulos ou sábios

Teus mortuários cânticos não temam!

Eu não! que sei temer-te. — Instinto ou alma

Existe em ti que profetiza a morte.

Talvez o Eterno te formou de modo,

Que teu olfato peregrino ou próprio,

Do moribundo os hálitos perceba,

Assim como formou-te a voz horrível

Para dizeres lôbregos lamentos.

Então a voz de uma verdade amarga

A meus ouvidos ressoou tremenda

Como o ribombo do trovão rolante!

Então o lindo zéfiro saudável

Transformou-se outra vez em norte intenso.

O mar e a terra respirou vapores,

Que subiram ao ar formando nuvens,

Que o céu em crepe fúnebre enlutaram.

Então as flores dos jardins da terra

Esgotaram a seiva e a força e a vida,

E o cheiro ativo e o bálsamo perderam.

E o sol formoso, que eu sonhava há pouco,

Contra o nosso hemisférico a face tinha.

Então a voz de uma verdade amarga

A meus ouvidos ressoou tremenda,

Como o ribombo do trovão rolante!

VI

Torvos os olhos, trêmulos os lábios,

Pálida a face em lágrimas banhada,

Rugada a testa juvenil — tão linda,

Caída pelo colo a espessa coma,

Um lúgubre ululado ao ar desata

Uma triste mulher. Chamou-se esposa

Num instante somente, — e noutro instante

Da viuvez a sorte e as dores prova.

VII

— Ele, meu Deus! o esposo da minh'alma

Aqui no coração viveu ‘té agora,

Como num templo. —Ele morreu p'ra sempre,

— E resta o coração que ele habitava,

Qual fica o templo a que se tira o Santo.

E resta o coração... que é este agora?

Taça vazia do licor divino,

Que outrora a encheu e a perfumou tão doce!

Amplo jardim de arbustos decepado,

Sem flores mais que embelecê-lo possam!

Tais para mim os meus amores eram!

Doce licor que o peito me embebia,

Flores que a fronte ornavam-me em grinalda,

Santo que tinha na minha alma um templo!

Ah! meu amor se consumou tão cedo!...

A minha vida se acabou co'a dele,

Qual murcha a planta quando o pé lhe arrancam.

— Tirai-me aqui, levai-me longe, amigas,

Levai-me longe as vestes do noivado.

Esta capela, que cingiu-me a testa,

Que eu tenho aqui tão natural, tão nobre,

Foi ele que ma deu. Seus próprios dedos

Foram que em mim esta capela ataram.

Depois, de mim três passos afastou-se

Para mirar-me assim, — e achou-me bela

Como sua alma, e me chamou «Divina,

«Visão de Deus, ou serafim, ou fada.

«És bela, oh minha irmã, — então me disse,

«Como os anjos do céu, — quando te adorna

«A fronte esta capela. —Em nossas bodas

«Irás ovante, presunçosa, altiva,

«De teu brilhante resplendor cercada.»

Levai-me longe esta infeliz capela,

Levai-me longe este presente, amigas,

Levai-me longe as vestes do noivado.

Tirai-me as jóias que este colo enfeitam,

De que me ornei para agradar-lhe os olhos.

Não mais eu tenho o meu amor tão belo,

P'ra quem me enfeite de luzidas jóias.

Levai tais jóias para longe amigas,

Levai-me longe as vestes do noivado.

De meus dedos, aqui, vinde arrancar-me

Estes anéis de rutilos brilhantes,

Estes ornatos de alegria e luxo.

Mas este anel, que vedes mais pomposo,

Mais fulgurante aqui — bem como um astro —

Por compaixão! não mo tireis, amigas,

Que foi de meu amor sinal eterno,

Impresso pela mão do amante esposo.

Os mais enfeites me arrancai, amigas,

Levai-me longe as vestes do noivado.

Fatal doença, que poder tiveste

Que de meus braços o levaste à morte!

Tam jovem inda o meu esposo! Agora,

—Viver, agora, começava apenas,

Pois agora somente era que amava.

Quando lhe urgira o passamento extremo,

Lutando já entre mortais transidos,

Essas tocantes frases lhe escutamos:

«Morrer tão cedo! — e o serafim que eu tenho,

«Esta esposa infeliz, que amo extremoso,

«Único anelo à vida ao pé da morte,

«Esta esposa infeliz tão cedo a deixo!»

Fui eu, fui eu seu pensamento extremo!

E nessa convulsão que ultima a vida,

Quando a pálida boca abriu forçado,

Quando lançou seu derradeiro expiro,

Inda tentou articular meu nome,

Que entrepartido lhe ficou nos lábios,

E o fim, e o resto — transportou-o à campa!

Campa cruel, que o meu amor encerras,

Não lhe comprimas o mimoso corpo,

Que eu já cuidei para entregar-te agora.

Já que não podes reverter-lhe a vida,

Dá-lhe um sossego plácido na morte,

Campa cruel, que o meu amor encerras!

Ele não era para mim somente

Amor inútil, isolado, ou fátuo.

Co'o seu amor vivifico e fecundo

Queria a todos, como a si queria.

Choremos todos um amor de menos.

Choremos todos: que partiu tão breve

Da terra aos céus um coração de amigo.

Mas foi unir-se àquela Essência eterna,

Donde seu puro espírito partira.

Entre os anjos nos céus ele revoa;

Que um anjo ele era cândido e formoso.

Isto consola: — mas em quanto a vida

Na terra me durar, — contínuo e sempre

Chorarei pelo amor que dele tive,

E com meu pranto copioso e ardente

A lamentá-lo ensinarei a todos.

Choremos todos um amor de menos.

 

NÊNIA

A FILHA DE S. VICENTE DE PAULO, FALECIDA NA CIDADE DE MARIANA

Se ela fora mais afortunada, sua historia seria mais pomposa: mas suas obras seriam menos cheias, e com títulos soberbos teria talvez aparecido vazia diante de Deus.

BOSSUET

I

Olhai nos ares: lá sobem,

Brilhando de acesas listras,

Esferas áureas de nuvens

Formosas, porém sinistras.

Sinistras, sim: que na terra

Tal espetáculo existe,

Que é alegre para os anjos,

Que para os homens é triste.

É assim aquele aspecto

De nuvens de ouro e safira:

Tam prazenteiro que é ele!

Não sei que pesar inspira.

Olhai nos ares: lá sobem,

Brilhando de acesas listras,

Esferas áureas de nuvens

Formosas, porém sinistras.

E lavas de ardentes hinos

Rebentam dos bojos seus:

— São anjos lindos que entoam

Mistérios santos de Deus.

São musicas de outra pátria, —

São do céu, — são anjos, sim:

A voz das virgens da terra

Não tem harmonia assim.

Que beleza não refletem

Os ares, a terra, o mar!

— Mas que silencio que guardam

Tam próprio para chorar!

Olhai nos ares: lá sobem,

Brilhando de acesas listras,

Esferas áureas de nuvens

Formosas, porém sinistras.

Entes do céu! — quem inspira

Vossa linguagem canora?

Perdestes outrora um anjo,

Que vindes buscar agora?

Talvez que baixasse ao mundo

Algum de vossos irmãos:

Talvez que o céu nos mandasse

Algum de seus cidadãos.

E completasse entre os homens

Sua divina missão:

E suba, em nuvens douradas,

De novo a sua mansão.

Olhai nos ares: lá sobem,

Brilhando de acesas listras,

Esferas áureas de nuvens

Formosas, porém sinistras.

II

Quem és, virgem cristão? — qual é teu nome?

Por pátria tua — que nação te cabe?

Porque sobem-te ao céu esferas de ouro?

— Dentre os homens ninguém, — ninguém o sabe.

Foste — qual chuva argêntea que, passando,

Fecundação pelos vergéis acorda:

Mas à vista do sol ninguém na terra

Das cristalinas gotas se recorda.

Assim, cristão, passaste pela terra,

Estranha ao mundo, e plácida, e quieta:

Nem a laje que cobre o teu cadáver

Molhou-a co'o seu pranto algum poeta.

Nem caiu-te no féretro uma lágrima,

— Nem uma só de sentimento grato:

Lagrima a preço de ambição comprada

Não na tiveste desse povo ingrato.

Não te adornaram a virgínea frente.

Inúteis louros de Staël famosa.

Não manejaste as áulicas intrigas,

Que celebraram Maintenon vaidosa.

Não te coube o poder da grande

Aspásia pelos altivos sofos decantada.

De Catharina o formidável cetro

Não te pesou na destra delicada.

Foste — qual chuva argêntea que, passando,

Fecundação pelos vergéis acorda:

Mas à vista do sol ninguém na terra

Das cristalinas gotas se recorda.

Nem elegias ternas de saudade

Sobre o tumulo teu disse um poeta.

Do ministro de Deus a voz apenas

Pode-se ouvir monótona e quieta.

Mas Deus, que lê nas vísceras dos homens,

Fez abaixar do céu esferas de ouro.

Tua alma pura, circundada de anjos,

Foi levada ao Senhor, como um tesouro.

Os cantores seráficos te entoam

Nênias, que nunca os homens escutaram:

Saudosas nênias, inauditas, novas,

Que os poetas da terra te negaram.

Quem és, virgem cristão? — qual é teu nome?

Por pátria tua que nação te cabe?

Porque sobem-te ao céu esferas de ouro?

— Dentre os homens ninguém, ninguém o sabe.

III

Parai, ímpios, parai, — em quanto eu firo

As cordas do alaúde.

Mudos ouvi-me o cântico da morte,

A nênia da virtude.

Virgem cristão! — um trovador mesquinho

Na terra ainda existe,

Que entorna sobre a campa, que te encerra,

Uma palavra triste.

Não é um canto sobranceiro — como

Águia que os céus devassa:

É a quérula voz de homem afeito

Aos hinos da desgraça.

Virgem cristão! — tu que enxugaste em vida.

As lágrimas do pobre,

Aceita agora as lágrimas do bardo

Na laje que te cobre.

Tu hás de ouvir no céu, onde subiste,

Meu lutuoso canto.

A linguagem das lágrimas é tua:

Entenderás meu pranto.

Abaixa os olhos: — sobre o teu sepulcro

Curvado está um homem:

Lagrimas verte, — e dessas que, caindo,

Secando, se consomem.

Sou eu, — sou eu, — co'a lira nos joelhos,

Co'a voz tremente e preza:

Co'os vagos dedos afinando incerto

A corda da tristeza.

Dá-me, dá-me uma lágrima somente,

Oh virgem, — que eu preciso:

Uma lágrima, não! — lá não há delas       

Dá-me, dá-me um sorriso.

Parai, ímpios, parai, — em quanto eu firo

As cordas do alaúde.

Mudos ouvi-me o cântico da morte,

A nênia da virtude.

IV

Oh virgem! — na campa que tem teu cadáver

Estive inclinado, —joelhos no chão.

Co'o triste alaúde coberto de crepe

Tentei entoar-te funérea canção.

Minh'alma em sublime delírio voava,

Minh'alma voava, saía de mim.

Meu triste alaúde coberto de crepe

Ficou numa estatua de duro marfim.

Minh'alma voava suspensa no espaço,

Minh'alma voava.— por onde — não sei.

Aos lados e acima somente o infinito,

Por baixo somente sepulcros achei.

E tudo deserto, — silencio de tumbas,

Vastíssimo aspecto de imensa soidão:

E tudo espirava belezas horríveis

De um mundo que de homens não pode ser, não.

Então repentina no vago do espaço

Não sei que harmonia que ouvi que rompeu;

Não sei se partia de vozes estranhas,

Não sei se partia do espírito meu.

V

O cadáver que jaz nesta campa

Esse mundo o não teve entendido.

Esse mundo não deu o seu pranto,

— Esse pranto comprado e vendido.

É dos céus o cadáver da virgem,

Que esvoaça do mundo mentido.

O cadáver que jaz nesta campa

Sentimentos dos anjos conteve.

Salamandra que vive nas chamas,

Neste mundo esta virgem esteve.

Neste mundo os preceitos do Cristo

Em sua alma ela sempre os reteve.

O cadáver que jaz nesta campa

Esse mundo o tratou com desprezo:

Que esse mundo escarnece as virtudes,

Quando delas se sente surpreso.

Lá nos antros escuros do peito

Da verdade o louvor fica prezo.

Perguntais sua pátria qual era?

— Perguntai-o aos dois pólos da terra:

— Flor eterna que em todo o universo

As raízes profundas aferra:

— Povo de homens cristãos que nos orbes

Nunca um déspota enorme os desterra.

O seu nome quereis? — Consultai-lhe

Que palpites seus peitos tiveram.

Sentireis, no cadáver gelado,

Que valentes, que sôfregos eram.

— Caridade! — seus peitos palpitam:

— Caridade! — seus lábios disseram.

Foi seu astro esse nome divino,

Esse nome que o Cristo ensinou.

Para os cárdines longes da terra

Essa virgem cristão se atirou.

Co'esse nome do Cristo nos lábios,

Mil ferozes nações arrostou.

Esses mártires loucos da guerra

Exumou do cruor da batalha.

Foi pensar a família do pobre

Na modesta casinha de palha.

Foi as chagas limpar do mendigo

Com fibrosa e macia toalha.

Pelos trívios desertos da estrada,

Pelos sórdidos cantos das ruas,

Recolheu os infantes expostos

Pelas mães desumanas e cruas;

Envolveu em felpudas mantilhas

Suas carnes geladas e nuas.

Porém nunca prostrou-se nos tronos

Nem rojou pelos pés do monarca.

Caridade! — este nome sagrado,

Como as tábuas da lei dentro da arca,

Caridade! — entre o mármore e o colmo

Acepções diferentes não marca.

Caridade! — evangelho em resumo —

Entre os homens não faz distinção.

Ama o pobre — que acima dos ricos

Desse amor têm maior precisão.

Vale menos um cetro p'ra ela:

Vale mais do mendigo o bordão.

Caridade! — evangelho em resumo —

Nem senhores nem servos conhece.

— Como o servo estremece, morrendo,

Deste modo o senhor estremece.

E a nobreza comprada no berço

Numa campa co'o pobre fenece.

Assim foi esta virgem.— Mil vezes

Os feridos colheu da batalha.

Os mendigos tomou pelas ruas,

 Consolou na casinha de palha.

Envolveu os infantes expostos

Em fibrosa e macia toalha.

Porém hoje o seu corpo é cadáver.

Tem sua alma a celeste mansão.

O Senhor a chamou por seus anjos,

Que completa viu sua missão.

E partiu dentre nós... E da virgem,

Ninguém dela se lembra mais não.

Nos semblantes de enfermos, de pobres

Da ventura já brilha o retrato.

O menino que a vida lhe deve,

Esse mundo ao depois fê-lo ingrato:

Por que o homem no leito de estofo

Julga infâmia o que lembra o grabato.

E partiu dentre nós... E não teve

A canção funeral do poeta,

— Do inspirado de Deus para o mundo,

Do escolhido — terrestre profeta.

Do profeta divino somente

Ela teve uma prece quieta.

E partiu dentre nós... E seus anjos,

Seus irmãos — uma nênia entoaram.

E no ar assombrado e tranqüilo

Harmonias do céu ressoaram.

E de nuvens esferas douradas

Para os altos de Deus a levaram.

E perante esse aspecto de glória

Toda a terra quedou-se serena:

Como o triste, ante os risos alheios,

Sente mais aumentar-se-lhe a pena:

Como a taça de néctar do rico

As artérias do pobre envenena.

Mas a terra reflete belezas,

Essa terra, esse vácuo, esse mar!

Porém tudo — mudez e silencio, —

— Atalaia que põe-se a espiar:

Porém tudo assombrado e tranqüilo,

Como quem preludia chorar.

E partiu dentre nós... E seus anjos,

— Seus irmãos — uma nênia entoaram.

E de nuvens esferas douradas

Para os altos de Deus a levaram.

E essa terra, esse vácuo, esses mares

Na mudez da tristeza ficaram.

Tu, oh céu, na escritura dos anjos,

Mais um anjo em teus choros registras.

Tu mandaste-o buscar por teus anjos

Sobre nuvens de fulgidas listras.

Mas a terra ficou merencória,

Qual gigante co'as faces sinistras.

VI

Tal foi repentina no vago do espaço

Aquela harmonia que ouvi que rompeu. Não

sei se partia de vozes estranhas,

Não sei se partia do espírito meu.

1 de fevereiro de 1854.

OS DOIS CADÁVERES

Aos manes do venerando ancião — o Dr. Fr. José de Santa Es­colástlca e Oliveira, falecido a 22 de março, e do meu jovem amigo Fr. Henrique de Santa Rosa Ribeiro, falecido a 22 do mesmo mês.

Felizes, — não só pela honradez da vida, como pela oportunidade da morte.

TÁCITO.

I

As lamentáveis orações que escuto

Dizem que é tempo de chorá-los inda.

Precisam certas dores longa ausência

Para tornar-se fortes. Nem no tempo

É que se enxugam lágrimas de amigos.

E as lamentáveis orações que escuto

Dizem que é tempo de chorá-los inda.

II

Em dois dias somente à terra demos

Dois cadáveres nossos. E essa terra

Duas fauces abriu para engoli-los,

— Duas fauces terríveis.

Parecia Por duas bocas horrorosa rir-se

Com sardônico aspecto.

III

Entre as preces de morte aqui trouxemos

Primeiro um ancião. Vivera um dia,

Mas um dia completo. A sua aurora

Fora risonha: o seu zenith mais belo:

Mais belo o seu ocaso.

De sua historia as páginas douradas

Todas num verbo apenas se resumem,

— No verbo da virtude.

E vós, filhos do mundo, — e vós, que tendes

Menoscabado, ironizado os claustros,

Vede aquele sepulcro. Ali na pedra

Lereis vossa loucura, alfim vencida

De pejo e confusão, — indo esconder-se

Por entre as nossas orgulhosas palmas

De fúnebre vitória.

E esse quadrado, povoado ao longo

De cadáveres mil, atesta aos ímpios

Que esta insânia da cruz não cai ainda.

Vinde estudar na lapida dos túmulos

A sorte do porvir. Aqui se enastram

Nas flores do martírio imensos nomes

Que figuram no céu. Aqui lançamos

Ao mundo inteiro uma solene prova

Do que ele chama — as ambições do monge.

Inclinai vossa fronte em nossas campas,

Oh ímpios, — e aprendei! Aqui se escondem

Do monge as ambições mortas com ele.

Perguntai, perguntai às mesmas campas

— Quais elas foram? — Uma prece humilde

Depois de sua morte.

Tais do monge ancião, que inda choramos,

As ambições na vida e além dos túmulos.

Foram cumpridas, elas. Seu cadáver

Entre as preces de morte aqui trouxemos.

IV

Tinha troado lutuoso o bronze

Gravosos sons de morte.

De dobres e orações os ares pejam.

Da dor o espectro, o gênio dos lamentos

Nos tetos pousa, em lágrimas folgando.

E o campanário emudeceu: nas auras

De todo em todo o lúgubre ruído,

Voando, esperdiçou-se em tênues ecos.

Somente as orações crebras sussurram

Pela extensão dos solitários claustros.

E tudo o mais era silencio e nada.

Quando outra vez o acostumado bronze

Mais outra morte clama:

V

Era um jovem que um passo apenas dera

No caminho da vida. Uma pegada

Marcou somente nos degraus do mundo:

Desceu, — e deu no tumulo a segunda.

Um momento parará ante os altares

Cantando o Eterno em maviosos hinos:

Foi toda a vida sua esse momento:

E remontou-se ao céu, findado o canto.

Quando de tarde enternecida e meiga

Fala entre as folhas dos rosais a brisa,

Um som — quase canção — se expande ao longo,

Melodioso, sim: porém mais belo

Era o seu hino harmonioso e brando.

Quando sobre a montanha aérea orquestra

De altivos rouxinóis em fortes trinos

De musica atrevida os ares enchem,

Para os ouvir o camponês deserta

O inocente tugúrio, — e as feras bravas

E as torrentes caudais e os nortes param:

Mas nada disso a sua voz copia.

Nem a harpa imortal tangida outrora

Pelo jovem David nos régios paços,

Do possesso Saul calmando as fúrias,

Traduz o seu cantar. Já para a terra

Era de mais ouvi-lo.

Tinha excedido há muito o ser de humano,

E já tocava à perfeição dos anjos.

Talvez que precisasse o etéreo trono

Mais de um cantor, qual ele.

Ou dentre os choros seus—Deus, por momentos,

Tirara um anjo que viesse ao mundo

Cantar canções do céu, — dizendo aos homens

Como se adora a Deus na pátria eterna.

VI

Cantor, cantor do céu! tu não morreste,

Nem mudaste de pátria.

Não pode, não, ser teu nem um dos orbes.

Se na terra passaste, oh sim, — viagem,

Missão de Deus foi isso em nossa esfera.

A pátria tua é tão somente o Eterno!

Tu gemias, eu sei, eu vi-te, eu mesmo, —

Gemias, circunscrito em teu segredo,

Com saudades de lá. Cuidando às vezes

A sós contigo e tua idéia estares,

Em quentes preces ao Senhor pedias

Sua mensagem concluir contigo.

Lá no Gólgota assim, na cruz suspenso,

Entre dores ao Pai rogava o Cristo

Que lhe passasse o cálix.

Deus enfim te atendeu, cantor sagrado.

Almas dignas de Deus — Deus sempre as ouve.

Não choremo-lo, não. Um pranto estéril

Sobre os manes de um anjo — insulto fora.

Gravemos só em sua campa um nome,

E o mais em nossos peitos.

22 de abril de 1854.

 

AI!

Pelo falecimento do venerando ancião — Frei Marcelino do Coração de Jesus, acontecido em junho de 1854 no mosteiro do Rio de Janeiro.

São velhos que batalharam,

E que jamais renegaram

A sua divisa e fé.

MUNIZ-BARRETO.

Por que deixaste o teu mosteiro, oh monge,

Deixaste a tua cela?

Para o báculo ainda um dia tinhas,

Um dia para a mitra!

Não tinhas mais que performar no mundo?

Esgotaste da vida o vário cálix,

Onde, a par do prazer que à tona sobe,

Assentam mágoa e fezes?

Saciaste-te bem de dor, de gozos!

Fartaste-te da vida?

Por que deixaste o teu mosteiro, oh monge,

Deixaste a tua cela?

Era cedo, talvez. Ainda as faces

Alardeavam mocidade e vida.

Na fronte ainda o ébano luzente

Entremeava a prata.

Rija, sonora, da tribuna eterna,

A voz ainda estremecia as turbas,

Apavorava os grandes.

Podias espalhar mais bem no mundo,

Se fosses mais um dia.

Porque deixaste o teu mosteiro, oh monge,

Deixaste a tua cela?

Foras um homem necessário agora.

Precisavam de ti vítimas tantas,

Ai! tantos desgraçados!

A mão iníqua de sagrados ódios

Sobre o colo inocente alçou de novo

A sécure de Herodes.

Co'a garganta infantil cozida ao cepo,

Do algoz romano pávidos ouviram:

— Obediência ou morte! —

Obedeceram.— A tortura, o açoite,

O ergástulo, o patíbulo, as panteras,

Dos ímpios Neros foram.

Hoje há Neros cristãos mais brutos que eles.

São de todas as épocas os tipos

De crime, de ferócia.

Não há, porém, anfiteatro e feras.

Conhecem mais o sofrimento, as dores,

O que mais dana os homens.

Dão-nos apenas cárcere e desterro!

Ah! o desterro!... prolongada estatua

De morte que do céu se prende ao inferno,

— De morte que não finda! Ai!

para tantos míseros agora

Que necessário foras!

Por que deixaste o teu mosteiro, oh monge,

Deixaste a tua cela?

Não viste as salas úmidas do pranto

Dos míseros proscritos.

Não viste o pano dos sagrados muros

Transudando de lágrimas.

Não viste o coruchéu do templo anoso

— Testemunha da dor, — curvar-se a ela,

Em respeito à desgraça.

Não viste à noite nos soturnos claustros,

De par em par fendendo-se os sepulcros,

Rangindo os ossos, levantar-se os mortos

Brandindo maldições em férreos carmes

Sobre os filhos sacrílegos.

Mui agra fora a teus provectos anos

Uma cena de sangue.

Ah! tanto horror te causaria infernos!

Foste feliz: — morreste.

Quando os pequenos, tão do Cristo amados,

Fossem vistos de ti, — pálidos, tristes

Co'as faces cavas do sofrer profundo,

Castigados sem crime, em hóstia à raiva

De fariseus hipócritas...

Uma lágrima tua, um gesto, um brado,

De bálsamo lhes fora.

Por que deixaste o teu mosteiro, oh monge,

Deixaste a tua cela?

Também foste proscrito. A dor do exílio

Não era-te ignota.

Ah! quantas vezes desejaste em anciãs

Voltar à pátria cara!

Na pedra tumular da avita glória,

Sobre o pó dos troféus, pobre, aviltado,

Seus maus destinos Portugal pranteia,

E pranteando dorme.

Ossada de nação co'os pés em terra,

Co'as mãos a custo sustentando o crânio,

A cada sopro do suão vacila.

Mas inda assim amavas-lhe os destroços!

Lá o teu berço estava.

Mas ah! os toques matinais não soam

Nas cúpulas da Arrábida.

Jazem seus claustros pavorosos ermos.

Murmura ainda nas extensas naves

O ruído do sangue.

Nas vácuas celas estampado impera

O crime de seus filhos.

Só esta idéia te rasgava as veias,

Te amargurava o peito.

Receaste, avistando-lhe as ruínas,

Desfalecer chorando.

Mas esses prantos que o sublime excita

Contêm suave gozo.

Por que deixaste o teu mosteiro, oh monge,

Deixaste a tua cela?

Hoje de lá do céu a vista inclina

Para a dor dos pequenos.

Uma prece de ti merecem, querem

Tão inocentes almas.

Roga por eles ao Senhor que os ama.

Prostra-te ainda dante o sólio eterno

Orando pelos ímpios.

Talvez o Cristo lhes perdoe o crime,

Dizendo ainda ao Pai, qual disse outrora:

— Não sabem o que fazem.

Talvez subiste ao céu por ímpios tantos.

Seria lá precisa a prece tua,

Para abrandar-se a cólera divina,

Que já baixava em laminas de fogo

Nas mãos do arcanjo que assolara o Egito,

Sobre a cabeça grávida de crimes

Dos fariseus modernos.

Por que, senão por isto, ao céu subiste?

Por que deixaste o teu mosteiro, oh monge,

Deixaste a tua cela?

 

MAIS UM TÚMULO

Pelo falecimento do venerando ancião — Frei José de S. Bento Damásio, a 10 de setembro de 1854.

I

Mais um tumulo aberto! Amada lira,

Tempera as cordas de tristeza e luto.

Ah! não te esqueça teu dever funéreo!

Nossa missão é esta.

Internemos na pedra um ai, um carme,

E alabastros de preces.

Cantemos sempre os males que se findam

No liminar da morte.

Merece cantos uma dor que expira.

Quem hoje desce à profundez do nada

Foi infeliz, — foi monge.

II

Mas ah! que imagem me arrebata estranha

A tétricos abismos!

Quem és? — arcanjo ou fada? — As longas vestes

Vítreas, tão de cristal, os ares quebram

E refrangentes choques!

Que cor, que face transparente, anílea,

Qual índigo de louça!

Que cor, que face, que platíneos olhos,

Quais pálidas estrelas!

Onde me arroubas, ai! que caos, que abismos

Que gelos glaciais, que moveis plagas,

Que campos flutuantes!

Quantas campas aqui quebram-se e correm!

Quantos crânios, —que horror! — de sânie sujos,

Surgem medonhos delas!

Eis! de um lado levantam-se, frangendo,

De negras togas adornados todos,

Altivos esqueletos!

Ah! estoutros, porém, forcejam, lutam,

Tremendos uivam, por querer debalde

Transpor-se do sepulcro,

Algum grilhão, talvez, lhes prende as plantas

Lá na raiz da rocha,

Anjo, demônio, deusa, encanto, ou fada,

Ah! dize-me o que vejo!

Que crânio imundo em desespero apontas,

Demônio, deusa, arcanjo!

Não reconheço-o não. A pátria minha

Não é aqui. A região dos mortos,

Zona do céu, do inferno, elísio, averno,

Gurgite infindo, tenebroso ou claro,

Pegos de luz ou turbilhões de trevas,

Não me pertencem inda.

Outra nação, aqui, de essência estranha,

Este lugar ocupa.

Deixa-me, pois, voltar demônio ou anjo.

Transporta-me outra vez ao ser que tinha.

Não tenho ainda o meu dever completo.

Minha missão me chama.

Concede-me um instante, um verso, um canto,

Uma improvisa nênia.

Quem hoje desce à profundez do nada

Foi infeliz, — foi monge...

III

«Não cantarás,» aterradora brada

A meu ouvido a fúria.

«Não cantarás» me repetiu, inchado,

E rebentou, tinindo.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

  Vid. pág. 11.

  Vid. pág. 14.

  Vid. pág. 159.

  Vid. pág. 108.

Eu conheço o ingênuo descarnado e comum desta peça poética, se seu nome é este. Tenho vergonha de chamar isto — meu. Não é por orgulho que o digo, nem por falsa modéstia: é pela verdade, que eu amo, pela verdade, a quem eu gosto de sacrificar toda a exterio­ridade ridícula, toda a convenção puramente social que a possa encobrir. Não posso me alargar muito nestas notas, — e me perdoarão alguma coisa pouco desenvolvida, porque a brevidade não traz sempre a clareza. Se me fosse licito deixar de fazê-las, seria melhor. Para quem leu somente o prólogo, são elas inúteis. Quem, porém, teve a paciência de ler sossegado, — o que eu acho difícil, — todas essas composições, a qual mais contraditória em aparência, esse preci­sará de alguma coisa mais. Eu não o saciarei entretanto, porque não posso. A peça presente foi impressa há dois anos ou mais no Noticia­dor Católico. As poucas pessoas que lêem este periódico, aplaudiram — as Páginas do coração, — nome que lhe dei, então, e que, por extravagantemente romântico, risquei agora. É por isso que estas poucas pessoas gostaram, que eu também o deixo ir aí.

Esta composição era bem indigna de ser oferecida ao Sr. Dr. Gonçalves Dias; Entretanto, há dois anos, tive o arrojo bastante im­prudente de lha dedicar! Hoje, sepultado conscienciosamente na convicção de meu nada literário, devo pedir-lhe o perdão de minha insolência. Quanto ao pensamento geral desse poemeto, dirão que há aí panteísmo. Não o sei. Confesso que não tinha essa intenção. Como coisas piores terão de assacar-me ainda, caio-me aqui.

O pensamento desta composição é bebido, quase inteiramente, no autor que canto. Eu a dedico ao meu amigo — Odorico — Octavio — Odilon. Tam pobre oferta! — Não lhe peço perdão, contudo. Sua alma de poeta está mais acostumada a amar, do que a perdoar. Conheço-a bastante.

Não faço mais, nesta composição, do que desempenhar como po­dia o papel do judeu. Pobre povo! orgulhosos da predileção de Jeová, que julgam que ainda lhes assiste, erram às porções por todo o mundo, mas não há fundirem-se em nem uma nação! Ah! uma lá­grima sequer sobre eles... O primeiro dever do cristão é chorar o desgraçado. Eu espero que muita gente se arrepie com um santo horror do que diz o pobre judeu aí. Mas era-me preciso pintar a verdade, ou renunciar à empresa.

É o caso de dizer com Beranger:

Mais il prêche en sot,

Moi, je ris en sage.

Eu não devia dizer nada acerca desse meu reverso dos Claustros. O exposto no prólogo vale para aqui. Devo, todavia, confessar que em uma e outra composição há por de mais. Dizem que Napoleão, no rochedo de Santa Helena, exclamara que — não era ateu quem o queria ser. — Há pouco tempo também o grande Kossuth em um célebre — meeting — disse que — se esti­vessem em seu lugar, veriam que tinha febre, quando era obrigado a repetir discursos. — Eu digo uma e outra coisa do poeta, talvez com mais verdade. A inspiração ou a razão, segundo o profundo Cou­sin, — profundo apesar dos padres, — a inspiração ou a razão não é voluntária. A Poesia, isto é, o pensamento inspirado não vem segundo o desejo. Espera-se mais, e dá menos: espera-se menos, e dá mais. Há por isso, duas linguagens para o poeta: uma da inspiração ou da razão: outra do raciocínio ou da inteligência. Há alguma coisa de máquina cartesiana na primeira: porém que máquina sublime!

Quem se horripilou pelo pobre — judeu — horripilar-se-á, com me­lhor razão acaso por este pobre — converso. — Minha intenção aqui é fazer o libertino, apesar de seu tom de sátira, apesar de si mesmo, dar claramente a preferência à religião cristão. Eu acho que o poeta lírico, — não só o épico, como queria Chateaubriand — deve encerrar o universo. É por essa convicção que, em minhas composições, faço-me, — não céptico, como dirão, não pirrônico sublimado, qual Montaigne, — mais apenas enciclopédico, tome que tem-se tornado tão escandaloso, que se tem hoje mo­dificado pelo de eclético. Eu confesso-me, pois, eclético: quero dizer que tenho a ambição de abarcar o mundo, não como Alexandre em seu todo, mas como os Apícios em seu melhor. Se diviso lá num ponto do céu um crepúsculo de poesia, tomo o pégaso de Homero, ou o anjo de Milton, e para lá me arrojo. Se sonho que numa caverna do abismo esconde-se uma figura poética, para lá me encaminho também pela mão de quem guiou Orfeu, ou pela mão de quem guiou o Dante. Eu sei que os hipocritamente devassos devotos, — segundo a bela frase do Sr. Lopes de Mendonça, — não gostam disso. Ficam todos com os cabelos eriçados, como se vissem o tal monstro de Virgilio. Esses mesmos, que não poderão ouvir sem horror alguma de minhas insignificantes e mortas canções, estariam preparados para assistir com toda a satisfação religiosa a um auto de fé, hoje, agora, mesmo. Ai! quantos deles não estarão me olhando de revés, sentindo santas saudades da boda Inquisição. E com efeito, meu livro, Jano de duas faces, figura versátil de Proteu, que vai-se metamorfoseando a cada página, estatua profética de Daniel forjada de não sei quantos metais, e finalmente de barro, — meu livro, pedra de escândalo, insânia de ímpio, ignorância de libertino, que entretanto faz mal, — meu pobre livro merece bem a fogueira, e com ele o renegado, ou o apóstata, que o fabricou. Eu o reconheço. Se fosse possível, porém, que os homens piedosos me ouvissem, eu lhes diria que meu primeiro tentamen poético, assim como apresento, não é de nem uma sorte um livro filosófico nem dogmático: eu lhes pediria que não se assanhassem a ponto de alevantar-me cada­falsos, como o enfurecido De-Maistre, que lhes serve de norma: que, com quanto eu receba com toda a paciência própria de meu espírito o epíteto de — ímpio — que eles me dão, lembrem-se todavia de que Helvécio, segundo eles mesmos, foi muito ímpio, e foi um bom­-homem, etc., etc., etc. Este meu livrinho não é, como disse já, senão um acanhado ensaio. É uma pequenina messe, tal qual é possível com a idade ainda em flor. Os frutos da mocidade são sempre temporãos; mas há de se perdê-los, quando o sol tem obstinadamente esperdiçado tanto raio para amadurecê-los à força? Transparece, portanto, aqui, um estudo rápido e passageiro, mais como uma ambição versátil, multicor, incerta, do que como um tra­balho metódico, sereno, profundo, — apanágio da idade madura. Há mais desejos, que pensamentos: mais crepúsculo, que luz: mais dúvidas, que proposições: mais pressentimento, que fé. Há uma vocação ardente, indeterminada, insaciável, quase infinita, para uma imagem, que não se define ainda, — para um incógnito, que, qualquer que seja, deve ser grande. Há uma contemplação do imenso, — um desespero talvez. Creio que o estado de solidão monástica, por espaço de três anos, me fez algum mal... Assim, este livrinho tornou-se um labirinto, onde eu mesmo custo a achar o fio. O que eu sei dizer, é que foi uma colheita do que, se­gundo meu gosto, achei de belo em tudo. A religião do Cristo, — este pensamento verdadeiramente digno de Deus, — abastava-me de inspirações. Não sei se as recolhi todas, mas sei que as copiei bem mal. Nem todos tudo podemos, segundo a bela expressão de Virgilio. Ao mesmo passo as outras religiões, mais ou menos teológicas, mais ou menos filosóficas, adereça,vão-se cada uma com seu belo, e desafiavam-­me com ele. Não me senti bastante forte para lhes resistir. Foi nesse período, quem sabe se de tentação? — que escrevi — A Religião do poeta, impressa no Noticiador Católico. Nessa espécie de bosquejo, que fiz então, das religiões, percebe-se bem o estado de meu espírito. Julgo que, ao dizer isso, sou verdadeiro e franco.

O jovem a quem é dedicada esta mesquinha composição, conta ape­nas dezessete a dezoito anos. Eu deposito sobre o talento deste moço as mais formosas esperanças. Nem uma de suas poesias viu ainda luz pública. Entretanto tem já em sua voluntária obscuridade pro­duzido algumas que lhe merecerão o salve de poeta, logo que aparecerem. Eu ardo por saudá-lo primeiro que todos. Ao menos, se nem um mérito tenho por mim, contentar-me-ei com o que resultar, para minha consciência, aclamando um gênio. Sou pontual aqui no dever sagrado, que Pope nos impõe, de favo­recer o mérito de pressa.

Dirão que sou cabeça de motim, e que, como precipitei-me no abismo, quero arrastar a todos em minha queda. Inda bem — que eu sei a linguagem dos devotos. Eu não me atreveria a dirigir esta poesia ao meu antigo compa­nheiro de claustro e de sofrimento, se não conhecesse que sua alma está muito acima da alma do frade. Com isto tenho respondido a todos. Talvez mais tarde eu tenha de provar com fatos o que acabo de di­zer, em uma obrita que tenho planejado.

Esta composição tinha outro título, com o qual foi impressa. Sub­stitui-o por este pela justa crítica de um amigo. Não obstante é uma dessas composições, de que me envergonho. Imprimo-a, porém, — porque pode agradar ainda a algum, como agra­dou já uma vez. Há algumas pessoas de um gosto tão esquisito... Eu assisti à morte deste monge, — e pela primeira vez à morte de um homem. Fui tão impressionado, que corri a escrever, com ânsia, esse espetáculo medonho. Saiu uma coisa comum, e entretanto, monstruosa. Aqui começam minhas composições fúnebres. Careciam elas de muitas notas, de muitos esclarecimentos, impossíveis neste livrinho. Eu me reservo para melhor menção. É-me preciso, todavia, dizer uma coisa. No canto fúnebre à morte do meu melhor amigo França-Rebouças, digo que tenho uma alma feita a um cepticismo inato. Há aí quase uma hipérbole poética. Meu cepticismo não é um pirronismo absoluto, mas essa dúvida que Descartes aconselhava, essa dúvida do Dante:

Che non men che saper, dubbiar m'aggrada.

Isto sou eu, e não mais. Que importa, porém, o que eu seja?