Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Fanfarras, de Teófilo Dias

 

Edição de referência:

DIAS, Teófilo. FanfarrasSão Paulo: Dolivaes Nunes, 1882.

 

ÍNDICE

I - FLORES FUNESTAS

ASPIRAÇÃO

A MATILHA

PASSEIO MATINAL

A NUVEM

ESFINGE

O ELIXIR

OS SEIOS

A VOZ

O LEITO

SULAMITA

LATET ANGUIS

MISTICISMO

MINIATURA

SONETO DE UMA MOÇA POBRE

CARTA

A ESTÁTUA

SAUDADE

FRÊMITOS

O VENENO

O SINO

O ESPECTRO

A MÚSICA

A FONTE DE SANGUE

MANHÃ DE INVERNO

D. JUAN NOS INFERNOS

NÃO PARTAS

SPLEEN

II - REVOLTA

A CRUZ

O SÉCULO CAMINHA

A SOMBRA DO CETRO

A TRISTEZA DO PRÍNCIPE

PROFECIA

À MORTE DE UM BRAVO

UMA BATALHA

INTERROGAÇÕES

O DILÚVIO

O RIO E O VENTO

 

I

FLORES FUNESTAS

 

ASPIRAÇÃO

No espaço, em cada ser, que um centro atraia e prenda,

Há sempre o despontar de uma asa, que o suspenda.

Ascender! ascender! — dizem todas as cousas,

As estrelas nos céus, os vermes sob as lousas.

É o hino, que tudo, em sôfregos suspiros,

Canta: — férvida a fonte, em sinuosos giros,

Sobre pedras quebrando o trépido carinho,

A ave, inquieta e meiga, em volta do seu ninho,

O ninho sob o ramo, o ramo sob as flores,

As flores no perfume, — e a gruta nos vapores

Que em frouxas espirais as amplidões alteia.

A vida não se esgota, e vai perpetuamente

Do esboço às perfeições, harmônica, ascendente.

O imóvel não existe. A floresta pompeia

O luxo exuberante, a gala festival,

A verdura febril, do mundo vegetal.

Fixo? Não. Ei-lo em flor; — e em êxtases secretos

Dispersa-se em aroma, e voa nos insetos.

Enfim, por toda a parte há íntimos palpites,

Ímpetos de romper barreiras e limites.

Fatal gravitação tolha-me embora os pés

Hei de também subir dos mundos através,

Hei de também transpor os tempos e os espaços,

Na esperança de além colher-te nos meus braços,

A ti, que és para mim a força ascensional.

Oh Glória! — a aspiração! o porvir! o ideal!

 

A MATILHA

Pendente a língua rubra, os sentidos atentos,

Inquieta, rastejando os vestígios sangrentos,

A matilha feroz persegue enfurecida,

Alucinadamente, a presa mal ferida.

Um, afitando o olhar, sonda a escura folhagem;

Outro consulta o vento; outro sorve a bafagem,

O fresco, vivo odor, cálido e penetrante,

Que, na rápida fuga, a vítima arquejante

Vai deixando no ar, pérfido e traiçoeiro;

Todos, num turbilhão fantástico, ligeiro,

Ora, em vórtice, aqui se agrupam, rodam, giram,

E, cheios de furor frenético, respiram,

Ora, cegos de raiva, afastados, dispersos,

Arrojam-se a correr. Vão por trilhos diversos,

Esbraseando o olhar, dilatando as narinas.

Transpõem num momento os vales e as colinas,

Sobem aos alcantis, descem pelas encostas,

Recruzam-se febris em direções opostas,

‘Té que da presa, enfim, nos músculos cansados,

Cravam com avidez os dentes afiados.

Não de outro modo, assim meus sôfregos desejos,

Em mantilha voraz de alucinados beijos,

Percorrem-te o primor às langorosas linhas,

As curvas juvenis, onde a volúpia aninhas,

Frescas ondulações de formas florescentes

Que o teu contorno imprime às roupas eloquentes:

O dorso aveludado, elétrico, felino,

Que poreja um vapor aromático e fino;

O cabelo revolto em anéis perfumados,

Em fofos turbilhões, elásticos, pesados;

As fibrilas sutis dos lindos braços brancos,

Feitos para apertar em nervosos arrancos;

A exata correção das azuladas veias,

Que palpitam, de fogo entumecidas, cheias,

— Tudo a matilha audaz perlustra, corre, aspira,

Sonda, esquadrinha, explora, e anelante respira,

Até que, finalmente, embriagada, louca,

Vai encontrar a presa, — o gozo — em tua boca.

 

PASSEIO MATINAL

Ontem pela manhã, do jardim através,

Eu te escutava o passo, o hino de teus pés,

Que, perfumando a relva, e inebriando os trilhos,

Como únicos sinais, deixavam os rastilhos

De uma essência sutil, de uma fragrância rara,

Que jamais perfumista em vidros encerrara;

Cheia de uma atração inefável, discreta,

Mais grata do que o fino extrato da violeta;

Um incenso, a que a arte, apurando os seus meios,

Aos vegetais sondando os misteriosos veios,

Abrindo, interpretando as almas rescendentes

Que enchem os corações das flores eloquentes,

Jamais descobrirá. — E que magia acaso

Pode surpreender, encarcerar num vaso,

Esse fluído fugaz, fátuo, vivo, ideal,

Da nuvem que te envolve o corpo sem rival?

Ao sentir-te passar, fundia-se a alvorada,

Derretida em clarões radiosos, — despenhada

Em avalanches de ouro, em rios de carmim

Sobre leitos azuis; — e através do cetim

Do nevoeiro mole, adelgaçado, escasso,

Multiplicando a forma, a luz, ferindo o espaço,

Rota em fitas de fogo, em largas refrações,

Brilhava, semelhando um bando de pavões

Que abrisse em vasto plano as rodas cambiantes

Dos leques festivais das caudas deslumbrantes.

Vacilavam, ao longe, as florestas em flor,

Ébrias de luz e sombra e confuso rumor.

Gorjeavam, ao ver-te, os múrmuros caminhos,

Das folhas no bulir, na voz dos passarinhos.

A natureza arfava, em frêmitos suaves.

Sussurrava, brilhando, o azul, florido de aves.

Tudo, em torno de nós, num êxtase suspenso,

Parecia sorver, num hausto longo, o incenso

Que exalavas, passando, em cálidos vapores.

Num espasmo de gosto, o espírito das flores,

Fremente, mal retinha o hálito incendido.

E, então, julguei ouvir, bem distinto no ouvido,

Uma, que a todas mais sobre-excedia em graça,

Murmurejar: “Silêncio! é nossa irmã que passa!”

 

A NUVEM

Sulcas o ar de um rastro perfumoso

Que os nervos me alvoroça e tantaliza,

Quando o teu corpo musical desliza

Ao hino de teu passo harmonioso.

A pressão do teu lábio saboroso

Verte-me na alma um vinho que eletriza,

Que os músculos me embebe, e os nectariza,

E afrouxa-os, num delíquio langoroso.

E quando junto a mim passas, criança,

Revolta a crespa, luxuosa trança,

Na espadua arfando em túrbidos negrumes,

Naufraga-me a razão em sombra densa,

Como se houvera sobre mim suspensa

Uma nuvem de cálidos perfumes!

 

ESFINGE

Tuas pupilas alaga

Não sei que acerba ternura,

Cuja luz cruel me afaga,

Cujo afago me tortura.

Unge-te o seio moreno

Um perfume sufocante,

Suave como um calmante,

Pérfido como um veneno.

Freme-te a alma fatal

No frágil corpo nervoso,

Como um filtro perigoso

Numa prisão de cristal.

Para estancar os desejos,

Que teu sangue tantalizam,

Teus lábios prodigalizam

Dentadas por entre beijos.

Com sarcasmos me apunhalas;

Depois, as feridas cruas

Ameigas com a luz que exalas

Dos teus olhos, — negras luas.

Tua palavra me é dura,

Às vezes, pelo sentido,

E doce pela brandura

Com que me trina no ouvido.

Há uma alma que suspira

Em cada ponto do espaço

Quando caminhas: teu passo

Murmura como uma lira.

No movimento discreto

Revelas, por entre as gazes,

Todo um poema correto

Escrito em versos sem frases.

Os teus lençóis apaixonas

Com a gentileza, que apuras

Nas langorosas posturas

Em que o teu corpo abandonas.

Dos primores, de que és feita,

A nenhum dou primazia:

É do conjunto a harmonia

Que os meus sentidos sujeita.

E eu te amo, beleza fátua,

Minha perpétua loucura,

Como o verme a flor mais pura,

E o musgo a mais bela estatua’

 

O ELIXIR

Enlanguesce-te a voz, sonora e rica,

Um simpático timbre insidioso,

Que em meu ouvido, em frêmito nervoso,

O vário acorde grava e multiplica.

No sopro mole, tépido, me fica

Suspensa a alma, em pasmo deleitoso,

Como a ave do ninho harmonioso

Que a tua voz no hálito edifica.

Quando lhe escuto a música enervante

Abate-me um torpor mórbido, quente,

Que me entumece o sangue palpitante.

É que ela exala o fluído dissolvente

Do funesto elixir inebriante

Que te ameiga e embalsama o lábio ardente.

 

OS SEIOS

Como serpente arquejante

Se enrosca em fervida areia,

Meu ávido olhar se enleia

No teu colo deslumbrante.

Quando o descobres, no ar

Morno calor se dissolve

Do aroma, em que ele se envolve

Como em neblina o luar.

Se ao corpo te enrosco os braços,

A terra e os céus estremecem,

E os mundos febris parecem

Derreter-se nos espaços!

E tu nem sequer presumes

Que então, querida, até creio,

Sorver, desfeito em perfumes,

Todo o sangue do teu seio.

Depois que aspiro, ansiado,

Do teu nível colo o incenso,

Minh’alma semelha um lenço

De viva essência molhado.

Deixa que a louca se deite

Nesse torpor, que extasia

E que o vinho do deleite

Me espume na fantasia;

Pois não há ópio, ou hashis

Que me abrilhante as ideias

Como as fragrâncias sutis

Que fervem nas tuas veias!

 

A VOZ

Vibra na tua voz, de um pérfido atrativo,

Um ritmo fatal, dissolvente, impressivo,

Que me acelera o impulso ao sangue impetuoso,

E dócil ao seu timbre elétrico, expressivo,

Meu ouvido o reflete, um frêmito nervoso.

No som dominador, na imperiosa ternura,

Exala sensações funestas; — a loucura,

A vertigem, a febre; e — estranha fantasia!

A embriaguez cruel, que afaga, e que tortura,

Um filtro musical, um vinho de harmonia.

Exerce sobre mim um brando despotismo

Que me orgulha, e me abate; — e há nesse magnetismo

Uma força tamanha, uma eletricidade,

Que me fascina e prende às bordas de um abismo,

Sem que eu tente fugir, — inerte, sem vontade.

Assim como o pendor, fácil, acidentado,

De rocha de cristal, que a linfa tem cavado,

Presta a onda, que o mina, o voluptuoso dorso.

Por onde ela espreguiça o corpo perfumado,

Indolente, a rolar, sem o mínimo esforço,

Não de outro modo, assim, ao som de tua fala,

Há um declive doce, extático, que embala,

No fundo de minha alma, a tua voz tremente,

Que em meandros sutis, invisíveis, resvala

E penetra-lhe o abismo harmoniosamente.

 

O LEITO

Mares, de espúmeo albor de rendas revestidos!

Vagas, cheias de aroma, e de torpor fecundas!

Para a febre lenir, que esvaíra-me os sentidos,

Quero nestes lençóis mergulha-los, vencidos,

Num mar de sensações letárgicas, profundas!

Aqui, de regiões apostas, climas vários

Vieram se encontrar, por diversos caminhos,

Para depor, fiéis, submissos tributários,

Os prodígios do gosto, árduos, imaginários,

Em perfume, em cetins, em sedas, em arminhos.

Despenhada do teto, em turbilhão se entorna,

Muda, imóvel cascata, a cortina nitente,

Derramando no ar uma preguiça morna,

Que os músculos distende e os nervos amadorna,

Em íntima volúpia, estranha, inconsciente.

Repassa, embebe a alcova, em toda a plenitude,

A emanação sutil, que enleva, que extasia,

De um corpo virginal e cheio de saúde,

Grato eflúvio do sangue, em plena juventude,

Que do olfato a avidez satura, e não sacia.

Perfumados lençóis! vós sois as brancas tendas,

Onde, árabes do amor, meus vagos pensamentos

Nas solidões da noite ouvem estranhas lendas,

Enquanto sob um céu enublado de rendas

Enerva-me o luar de uns olhos sonolentos!

 

SULAMITA

Teu lábio é fonte, onde em beijos

Mata a sede devorante

A caravana arquejante

Dos meus cansados desejos.

Que aroma tépido e fino

Tua voz no timbre assume!

Se o teu hálito é um hino,

É tua voz um perfume.

Tua pele, doce ao tato,

É feita de arminho e seda,

Cuja textura embebeda

De um gozo fundo, insensato.

Mórbida febre fermenta,

Deliciosa e mortal,

Da tua coma opulenta

Na moleza sensual.

E o teu hálito fragrante,

É, como a brisa do outono,

Cheio de um sopro enervante,

Que os membros convida ao sono.

 

LATET ANGUIS

O som, que tua voz límpida exala,

Grato feitiço mágico resume:

A frase mais vulgar, na tua fala,

Colorido, matiz, brilhando, assume.

Afaga como a luz; como um perfume

Pela alma filtra, e se insinua, e cala,

E, só de ouvi-la, o espírito presume

Que um éter, feito de torpor, o embala.

Quando a paixão altera-lhe a frescura,

Quando o frio desdém lhe tolda o acorde

À viva polidez, vibrante e pura,

Não se lhe nota um frêmito discorde:

— Apenas do primor, com que fulgura,

Às vezes a ironia salta — e morde.

 

MISTICISMO

Inspiras-me o sentimento

Que se lê nas catedrais

Que as idades medievais

Ergueram ao firmamento.

Fundas raízes no chão

Estende; floresce em pedra;

Sobe, cresce, avulta, medra,

Enche, domina a amplidão.

E do pensamento escrito

Na abobada colossal,

Arqueja o esforço ideal

Que tende para o infinito.

Depois... a agulha sutil

Se perde no céu distante,

Como um grito suplicante...

— Como um desejo febril!

 

MINIATURA

           Na placidez sombria

           Da penumbra discreta,

Por uma tênue fenda, estreita, esguia,

           Dardeja uma áurea seta

O fulgido esplendor do meio-dia.

           Um silêncio calmoso

Enche da alcova o tépido ambiente,

           Pérfido e carinhoso.

           Cai preguiçosamente

           O imóvel cortinado,

Emoldurando um leito sedutor,

Atraente, fatal, como um pecado,

Entornando do branco magnetismo

           Um cálido vapor,

Imperioso como um silogismo.

Ali é que ela ao som se abandona,

Velada pelo albor do cortinado,

           Doce, como a madona,

No seu marmóreo nicho rendilhado.

Nas transparências vagas do tecido

           Das rendas da cortina

           Imóvel se vislumbra,

Prostrado, frouxo, lânguido, abatido

Pelo calor, um corpo que deslumbra,

           Um corpo que fascina.

           O torpor sonolento

Na aromática pele cetinosa

           Dilui-lhe uns tons de rosa

E espasma-o num profundo abatimento.

Aljôfar perfumado e cristalino,

Transunto de enervante embriaguez,

Cheio de eflúvio insinuante e fino,

Aflora-lhe do rosto alabastrino

           A tenra, nívea tez,

Tão úmida e macia, que parece

           Um fruto do Equador,

Que deixa ressumar, se o sol o aquece,

Na polpa externa o rórido calor.

           Um frêmito, ao de leve,

Lhe faz arfar o seio delicado,

           E as linhas lhe descreve

Num vago movimento compassado.

Do leito a borda alveja-lhe o contorno

De mármore rosado dos pés nus,

E enquanto fora o murmúrio morno

Mórbido o vento abafa nos bambus,

           Na placidez sombria

           Da penumbra discreta,

Por uma tênue fenda, estreita, esguia,

           Dardeja uma áurea seta

O fulgido esplendor do meio-dia.

 

SONETO DE UMA MOÇA POBRE

Eu bem sei que tu és o altivo bardo

Por quem bate meu seio comovido,

O nobre cavalheiro, por quem ardo,

Rico de amor, mas de ouro desprovido.

Eu, cautelosa e tímida, se guardo

Um recato composto e recolhido,

Se com aspecto frio te acobardo

O amor afouto, em chamas convertido,

Não é porque não pulse-me apressado

O sangue à minha mão, presa na tua,

Quando me sinto trêmula a teu lado;

É que me lembro que, a esperar da lua

O manto para roupa do noivado,

Morrerei de pudor, casando... nua.

 

CARTA

Não sei que afã de ver-te me tortura

Desde que longe estás de mim, criança!

Só me alimenta a febre da esperança.

Tenho no olhar o espasmo da loucura.

De fundo abismo na espiral escura,

Que só de imaginá-lo a ideia cansa,

Mergulha-me o desgosto, a dor me lança

Dor, que só em te ver tivera cura.

Por isso é que ao mandar-te, angustiado,

Este soneto, de minha alma cheio,

Comprimo o coração despedaçado

Com a mão palpitante, com receio

Que em ímpetos de amor arrebatado

Me fuja para ti, pelo — correio.

 

A ESTÁTUA

Fosse-me dado, em mármor de Carrara,

Num arranco de gênio e de ardimento,

As linhas do teu corpo o movimento

Suprimindo, fixar-te a forma rara,

Cheio de força, vida e sentimento,

Surgira-me o ideal da pedra clara,

E em fundo, eterno arroubo, se prostrara,

Ante a estátua imortal, meu pensamento.

Do albor de brandas formas eu vestira

Teus contornos gentis; eu te cobrira

Com marmóreo cendal os moles flancos

E a sôfrega avidez dos meus desejos

Em mudo turbilhão de imóveis beijos

As curvas te enrolara em flocos brancos.

 

SAUDADE

A saudade da amada criatura

Nutre-nos na alma dolorido gozo,

Uma inefável, íntima tortura,

Um sentimento acerbo e voluptuoso.

Aquele amor cruel e carinho

Na memória indelével nos perdura,

Como acre aroma absorto na textura

De um cofre oriental, fino e poroso.

— Entranha-se; invetera-se; — de jeito

Que do tempo ao volver, lento e nocivo,

Resiste; — e ainda mil pedaços feito

O lígneo cárcer, que o retém cativo,

Cada parcela reproduz perfeito

O mesmo aroma, inalterável, vivo.

 

FRÊMITOS

Se falas, meu olhar te escuta e fita,

E meu ouvido as frases te devora,

E freme, como o lago que palpita,

A frescura da brisa, que o desflora.

O carinho de tua mão me agita

Fibra por fibra: as veias me afervora,

E os meus sentidos na orvalhada rora

De uma volúpia extática, infinita.

A tua pele fresca e cetinosa,

Toda feita de sândalo e de rosa,

Provoca os lábios, desafia os beijos,

E brilha-me, através de um prisma ardente,

Teu vulto aéreo, artístico, fremente

Nas vestes ideias dos meus desejos.

 

O VENENO

(BAUDELAIRE)

O vinho veste e enfeita a cabana mais nua

           Com pompa milagrosa,

E faz surgir mais de uma Alhambra fabulosa

           Que em seu vapor flutua

Como o sol no poente, em tarde nebulosa.

O ópio faz crescer o ilimitado; o imenso

           Aumenta; e tem poder

De eliminar o tempo; e, cavando o prazer,

           De fundo gozo intenso

Inunda a alma além do que pode conter.

Mas nada disto vale o veneno, que mana

           Teu olhar, que seduz,

O lago, aonde a febre os meus sonhos conduz,

           Fremente caravana

Que a sede vai matar nesse abismo de luz.

Nada ao teu beijo iguala a pressão indizível

           Que morde, em que me estorço,

Que afoga-me no olvido a alma, sem remorso,

           E em delíquio terrível

Do morno mar da morte a embala sobre o dorso.

 

O SINO

É doce, e ao mesmo tempo amargo, noite afora,

Pelo inverno, escutar junto ao fogo, que fuma,

O lento desfilar das lembranças de outrora,

Dos sinos ao tanger, que sonoriza a bruma.

Bem haja o sino, pois, de sonorosa goela,

Que, apesar da velhice, alerta, vigoroso,

Alteia fielmente o grito religioso

Qual velho militar, que sob a tenda vela.

Minh’alma é um sino velho e fendido. Sombrio,

Se tenta encher com o dobre o ar das noites frio,

Muita vez lhe agoniza a fraca, surda voz,

Como o extremo estertor do soldado esquecido

Sob um lago de sangue, entre mortos, ferido,

E que, imóvel, expira, em rude esforço atroz!

 

 

O ESPECTRO

(BAUDELAIRE)

Como espectro agoureiro, hei de, escondido,

Entrar na tua alcova silenciosa,

Deslizando sinistro, sem ruído,

Com as sombras da noite pavorosa.

E a tua branca espádua hei de afagar,

Como a serpente a pedra de um sepulcro,

E hei de imprimir-te ao corpo esbelto e pulcro

Os meus beijos, mais frios que o luar.

Ao repontar a lívida alvorada,

Encontrarás o meu lugar vazio,

E hás de senti-lo abandonado e frio,

Até surgir a noite, oh minha amada.

Sobre a tua atraente formosura,

E a tua bela mocidade em flor,

Como os outros, mulher, pela ternura,

Eu quero dominar pelo terror!

 

A MÚSICA

(BAUDELAIRE)

Sonoro mar, — a música me envolve,

E em éter vasto, sob um teto amargo

De brumas, a minha alma, feita ao largo,

Para o meu astro pálido se volve.

Rompe-se a vaga; meus pulmões sussurram,

Como as velas, do vento ao rijo açoite;

Escalo o dorso às ondas que se empurram,

Lactando na atra cerração da noite.

E sinto as comoções, o paroxismo

De um navio batido da tormenta;

O tufão me sacode sobre o abismo

Que ruge imenso, e louco se lamenta.

Num silêncio cruel, surdo, sombrio,

Já repousa feroz o mar sanhudo;

Profunda reina a calma: — espelho frio

Do desespero atroz que rói-me agudo.

 

 A FONTE DE SANGUE

 (BAUDELAIRE)

Sinto o sangue escapar-me à veia enfebrecida,

Como fonte fugar; — harmônico e purpúreo,

Escuto-o soluçar com lírico murmúrio,

Porém me apalpo em vão, não encontro a ferida.

É-lhe leio a cidade, e nela se despenha;

Referve, e cada pedra em ilha transfigura;

E vai matando a sede a cada criatura,

Colorindo de rubro as cousas que desenha.

O vinho aguça a vista e apura mais o ouvido:

Talvez, por isso, em vão, que adormeça, hei pedido

O meu roaz terror um momento sequer;

Em vão também no amor procuro o esquecimento;

Mas o amor, quanto a mim, não é mais que um invento

Com que nos suga o sangue a sede da mulher.

 

MANHÃ DE INVERNO

(BAUDELAIRE)

O inverno é para mim a mais doce estação.

Como sinto-me bem! — Amortalhando o lago,

A névoa, que me envolve a fronte e o coração,

Se fecha sobre mim, como um túmulo vago.

Nos planos, que me percorre o bulcão frio e torvo,

E aonde a longa noite os mochos enrouquecem,

Melhor do que no tempo em que os bosques florescem,

Minha alma largamente abre as asas de corvo!

 

D. JUAN NOS INFERNOS

 (BAUDELAIRE)

Quando D. Juan desceu ao subterrâneo rio,

E pagou a Caronte o óbolo supremo,

Antístenes soberbo, um mendigo sombrio

Um braço vingador lançou a cada remo.

Como um grande tropel de vítimas expostas

Mulheres mil e mil, ao atro firmamento,

Erguiam, seios nus, as roupas descompostas,

Enquanto o herói passava, um lúgubre lamento.

Sganarello, a rir, lhe reclamava as pagas,

Enquanto D. Luiz, com o dedo, que tremia,

Mostrava a cada morto errante sobre as plagas —

O filho, que das cãs do velho escarnecia.

A casta e magra Elvira, um último tributo

Em que do amor primeiro inda provasse o mel,

Parecia implorar, fremente sob o luto,

Ao que lhe fora amante e marido infiel.

Sob as armas ereto, abrindo o torvo rio,

Um alto homem de pedra estava ao leme posto;

— Mas, curvado, fitando a espuma, calmo e frio,

Não se dignava o herói sequer voltar o rosto!

 

NÃO PARTAS

(V. HUGO)

Eu vivo do ar, que respiras;

E como, dize-me agora,

Ficar, se tu te retiras,

Viver, se te vais embora?

Que me serve ser a sombra

De um anjo, que surge e passa?

Ou de um céu, que o luto assombra,

A noite pesada e baça?

Eu sou a flor das muralhas,

De que abril é o só viver;

Basta que tu me não valhas,

Que partas, para eu morrer.

Em ver-te, pus meu cuidado;

Toda a luz de ti me vem;

Se ficas, fico a teu lado;

Se partes, parto também.

Se partes, rói-me a tristeza;

E aos céus, — ao ninho, medrosa,

Voa minha alma — ave presa

Nos teus dedos cor de rosa.

No tédio negro da ausência,

Triste de mim! que serei?

— É tua ou minha a existência

Que se desfaz? — Não no sei.

Quando me falta a coragem,

Eu bebo-a no teu afago,

Bem como a pomba selvagem,

Nas águas puras de um lago.

O amor às almas ensina

Como o universo é bendito,

E esta chama pequenina

Inunda todo o infinito.

Sem ti, a vida é a morte;

O mundo cárcer fechado,

Onde vago à lei da sorte

Sem amar, sem ser amado.

Morna tristeza funesta

Tudo desfolha; meu cílio

Se enche de sombra; uma festa

É uma campa; a pátria exílio.

Eu te imploro e te reclamo,

Oh pomba, que de minha alma

Entoas de ramo em ramo

Hino que as dores me acalma!

Que desejo me convida,

Que posso temer? — enfim,

Que farei da própria vida,

Se já não estás junto a mim?

És tu que levas no voo,

Aos céus e aos campos em flor,

Numa asa as preces que entoo,

Noutra meus hinos de amor.

Aos tristes campos, que vela

O luto de íntima dor,

Que hei de contar? que da estrela

Farei? — que farei da flor?

Que direi à selva umbrosa?

— E à triste flor que amanhã

Interrogar-me chorosa:

— Onde se foi minha irmã?

Morrerei; parte, se o ousas!

Dias volvidos, porque

Olhar todas estas cousas,

Que o seu olhar já não vê?

E que me importam destino,

Virtude, e lira sonora?

E sem teu riso divino,

Que me importa o rir da aurora?

Que farei, sem mais desejos,

Sem ti, sem luz, e sem cantos,

Sem teus lábios, — de meus beijos,

Sem teus olhos, — de meus prantos?

 

SPLEEN

Minha alma é um velho arsenal

Cheio de armas assassinas;

Tem a mudez sepulcral

Que paira sobre as ruinas.

Das paredes denegridas,

Da mão do tempo gretadas,

Pendem fúnebres espadas

Pela ferrugem comidas.

Há punhais de gumes tredos,

Cuja lâmina sinistra

Rápida morte ministra

A quem lhe perpassa os dedos.

Sobre os ladrilhos sombrios

Rolam farrapos poentos,

Que pelas malhas dos fios

Mostram vestígios sangrentos.

Neste recinto funéreo

Não entra o rumor diurno:

O seu aspecto soturno

Lembra a paz de um cemitério.

Mas, como um monge piedoso,

Lento, grave, a passo incerto,

Cheio do horror religioso

Percorre um claustro deserto,

Também eu, mudo, contemplo,

Concentrado e recolhido,

As solidões do meu templo

Todo em ruínas caído.

E de as ver, — de um vago imenso

Desola-me o peso atroz,

Como um mar profundo, extenso,

Que, num silencio feroz,

Cerca-me surdo e sombrio,

E após, refluindo ao largo,

Só me deixa ao lábio frio

Vestígios do lodo amargo.

 

II

REVOLTA

 

 

A CRUZ

(A JÚLIO DE CASTILHOS)

Tu, que prendeste um dia os braços de Jesus,

Quando neles quis ter a humanidade erguida,

Hás de cair prostrada, examine, abatida.

— Já lambe-te o pedal a devorante luz.

A força, que ao porvir o Grande-Ser conduz,

A implacável ciência, a eterna deicida,

Vertendo nova seiva à arvore da vida,

Arrancou-lhe a raiz de onde surgiste, oh cruz!

O pensamento audaz, esquadrinhando os mundos,

Calcinou, sulco a sulco, os germens infecundos

Da divina semente, estéril e vazia.

Podes deixar cair, desanimada, os braços!

— Já não existe um Deus, que veja os espaços

Teu gesto de terror, de súplica sombria!

 

O SÉCULO CAMINHA

(A ASSIS BRAZIL)

 

O século é pujante, heroico, inexorável.

— Navio, que enristou a quilha incontrastável

Ás praias do porvir, lá vai talhando o mar.

Espadana-lhe em vão as bavas hediondas

O inútil preconceito; em balde em crespas ondas

Forceja por tolher-lhe o impávido marchar.

Quebrando à vaga rude a cólera, que espuma,

A — Ideia, o nauta audaz, atira-lhe, uma a uma,

As tradições do cetro a da tiara as leis;

Rota — cai do passado a trágica bandeira;

E de envolta com ela a triunfal esteira

Submerge avidamente as púrpuras dos reis.

Rasga afoito ao futuro as fundas névoas densas

O alento vingador, viril, das novas crenças,

Que ruge solto, livre, indômito e fatal.

Oh déspotas cruéis! oh Césares! é tarde!

Dobrai o régio manto orgíaco e covarde!

É tempo! Adormecei no olvido sepulcral!

Consolai-vos! — Não mais os vossos membros rotos

Filtrarão sangue vil da história nos esgotos

Aos gritos infernais das ébrias multidões!

— No polo social a estrela do direito

Ergueu-se, há muito já. No mortuário leito

Repousai. Já não há coroas, nem brasões!

O século caminha. Os cadafalsos velhos

Ruíram. Das nações os vários evangelhos

Rasga-os, folha por folha, a garra de Satã;

E os livros feitos pó, virá uma só crença,

E unidos se verão numa harmonia imensa

Os crentes de Jesus, de Buda e do Corã.

 

A SOMBRA DO CETRO

 (A ALCIDES LIMA)

O rei dorme tranquilo. A engrenagem do fisco

Funciona muito bem, sem perda de um momento,

E o suor popular, sem o mínimo risco,

Escorre-lhe através, caindo no orçamento.

Devoram-no com ânsia os ávidos tentáculos

Do polvo colossal do áulico cortejo,

E não faltam, de certo, orgias, espetáculos,

Que saciem-lhe o cancro ao roedor desejo.

A lei é pelo rei: e, pois, cavar aos pobres

A fome na barriga, é justo, não é crime.

Não podem-no inquietar as espinhas dos nobres,

Pois sempre as encontrou flexíveis como o vime.

E, pois, pode dormir. Mas eis que a língua muda

Lhe contrai um torpor pesado, inerte, atroz,

Assim como a quem sente alguma dor aguda:

— Quando a agonia é funda o lábio não tem voz.

Aflito o coração precipite lhe pula;

Poreja-lhe o suor à raiz do cabelo;

Um gélido terror esfria lhe a medula;

— Ele fica na sombra um negro pesadelo.

A pino as cãs, batendo os dentes, ansioso,

Lívido, salta o rei do leito. Sobre o chão

Treme a sombra do cetro. Estridulo, nervoso,

Rebenta-lhe na boca um riso de poltrão.

Oh rei, não deves rir! Deves temer o espectro

Que perturba-te a paz a tua omnipotência:

— Avulta mais e mais a sombra do teu cetro,

Á medida que aumenta a luz na Consciência.

 

A TRISTEZA DO PRÍNCIPE

(A AUGUSTO DE LIMA)

Nos coxins de um divã, fofo, macio,

Imersa a fronte pensativa e larga,

Jaz o príncipe, pálido, sombrio,

Presa infeliz de uma tristeza amarga.

Rouco soluço o respirar lhe embarga...

— Ousara o mar sorver o seu navio

Que dos produtos do seu pátrio rio

Vinha — trazer-lhe a preciosa carga?

Morreu-lhe a amante? o amigo? algum parente?

Perdera a sua ilha do Oriente,

Onde abunda o coral, brota a safira?

Nada disto se deu. Nada! — Somente

O príncipe, coitado! descobrira

Que o seu galgo gentil quebrara um dente.

 

 

PROFECIA

(A RAIMUNDO CORREIA)

Eu não sou dos que vão, com a fronte envilecida,

Dos palácios reais açoitar os tapetes,

Onde, em vinho, o suor do povo nos banquetes

Provoca a embriaguez frenética alarida;

Onde as flores gentis das estufas dos paços

Mostram no colo infame os prantos da indigência

Rorejando em rubins, que os sátiros devassos

Devoram com olhar de lubrica insolência;

Onde os vis cortesões, renegados do povo,

Tecem de baixa intriga o difícil manejo,

Buscando saciar cada apetite novo

A pantera feroz do imperial desejo;

E ao favor espalmando as largas mãos rapaces,

Procuram resolver na rígida cabeça

O problema sagaz de apresentar as faces

Para que a mão do rei lhes chegue mais depressa.

Eu sou da multidão: por isso, quando cismo,

Ao vê-la deslizar, tranquila, indiferente,

Que a supõe arrastar na onda o despotismo

Como um tronco sem vida à tona da corrente,

Um sorriso de mofa o lábio me ilumina,

Pois sei que a indignação no peito lhe borbulha,

Pois que pressinto já que as velas crenças mina

O escarnio popular como íntima fagulha.

Pressinto que a Revolta, aziago meteoro,

Com um núcleo sangrento, há de brilhar, de jeito

Que o rodar dos canhões no macadam sonoro

Ateie em cada pedra a lava do direito.

Mil relâmpagos de aço hão de inflamar a rua;

Cada mão brandirá, como um raio, uma lança;

E há de se erguer valente a populaça nua,

Rugindo em cada boca um grito de vingança.

E, monstro enorme, há de ir sobre mil pés marchando

Por santo entusiasmo erriçado o cabelo,

Retinindo os clarins, os tambores rufando,

Abalroar com o peito o imperial castelo.

E o tufão popular, num vórtice de brasas,

Bramindo com fragor, com tétrica aspereza,

Como um incêndio enorme, há de varrer nas asas

Do solo americano o trono e a realeza.

E então vereis, Senhor, se a mente bem me alcança,

Que estes filhos do povo, heroicos e clementes,

Para não desonrar com o sangue de Bragança

A terra que bebeu o sangue a Tiradentes,

Nem aviltar a forca, o pedestal ovante,

Onde brilha melhor dos mártires a glória,

Para não imprimir uma nódoa infamante,

Como fazem os reis, às páginas da história,

Vereis que vos darão um exemplo sublime!

— A vós, que lhes cingis ao livre pulso o ferro,

Hão de vos apontar, vos perdoando o crime,

Em vez do cadafalso, a senda do desterro.

 

À MORTE DE UM BRAVO

Não perturbem-lhe o sono: o herói descansa!

— Dos louros do triunfo coroada,
Pende-lhe ao punho inerte a invicta lança,

Dos combates ainda embriagada!

Tinham uma só alma o ferro e o braço,

Que em prol da liberdade pelejavam!

Era de encontro àquela ponta de aço

Que barbaras falanges atrevidas,

Rugindo horrendamente se quebravam

           Desfeitas e vencidas.

Sinistro meteoro, ao campo inteiro

Vertia a lança trêmulo, agoureiro,

Rubro clarão na túrbida batalha!

Roncava assídua a rábida metralha;

Roucos rufavam trépidos tambores;

Da Morte o espectro pálido guiava

Um cortejo de lívidos terrores;

Subia o fumo em vórtices ardentes;

E em córregos cruéis espadanava

           O sangue dos valentes.

Todo o solo erriçava-se de espadas;

Voavam pelos ares mil bandeiras,

Como famintas águias carniceiras;

E o herói corria à frente das brigadas.

Seu fervido corcel, com fúria insana,

Prostrava às patas a muralha humana,

Que se lhe opunha ao passo da vitória.

Todo um povo, em mudez, colhia o alento,

Para escutar nos ímpetos do vento,

           Mais um hino de glória.

Não mais o acordareis, clarins de guerra!

Hoje, esse mesmo povo se debruça

Por sobre um morto, e pálido soluça:

O forte lutador tombou por terra!

Bem como um tronco valido, orgulhoso,

Ruindo, a selva em torno abala, agita,

Ele deixou, no baquear ruidoso,

O império vacilante, a pátria aflita:

— É que lhes falta o apoio generoso

           De sua lança invicta.

Do tua paz no abismo, herói, descansa,

Apertando na mão inerte a lança,

Em que o fado da pátria está seguro!

Se o destino turbar-nos o futuro,

Teu espectro no túmulo se anime!

Da tua espádua hercúlea, vigorosa,

Resvale o duro peso que te oprime!

— E aos longos gritos de aflição do povo

Ressurja a tua lança, ébria de glórias,

Como um farol, para o guiar de novo,

           No trilho das vitórias!

 

UMA BATALHA

 (LECONTE DE LISLE)

Com selvagem clamor, erguido por mil bocas,

Os ébrios esquadrões, rotos pela metralha,

Ruíram, arquejando, à hórrida batalha,

Como sanhudo o mar de encontro as penhas roucas

Ao largo sol, da aurora à noite, infatigáveis,

O chão profundo aos pés cavaram, revolveram;

Muros de homens, lançando as linhas formidáveis,

Sobre o solo, aos montões tombando, se estenderam

Peito a peito, vibrante o olhar, que o ódio atiça,

Estreitaram-se após, em ímpetos ferozes;

O ferro se fartou de sangue e de carniça;

O cérebro espirrou sob as maças atrozes.

Cavaleiros, peões, vencedores, vencidos,

Ei-los, lívidos já, terríveis e calados;

Torvo, medonho o olhar; dentes, punhos cerrados;

Na furiosa morte, aos centos, estendidos.

Lavando-lhes da face o palor, o chuveiro

Nos sulcos do terreno em córregos murmura,

E pelo mesto plano um bando carniceiro

De aves cruéis, no ar, destaca a massa escura.

Nem mais um grito. O ai derradeiro se extingue.

Sobre os campos, de carne e ruína juncados,

Do dia ao raio extremo apenas se distingue

A vaga contorção dos corpos enlaçados.

Longe, em meio ao pavor desse quadro cruento,

O roto colo, a custo, um corcel equilibra,

E através da mudez noturna corre e vibra

O rouco e triste adeus que ele relincha ao vento.

Oh glória de matar, cruel, brutal, ferina!

De sangue, oh sede atroz que não há lei que dome!

Sede malditas vós, das vítimas em nome,

Ante o estúpido horror desta carnificina!

Mas, se ao sol, ou na hora em que a treva flutua,

Com o peito abalroando a boca do canhão,

Sucumbiram por ti, oh Liberdade! — então,

Fume bendito e puro o sangue em glória tua!

 

 

INTERROGAÇÕES

 (HEINE)

Junto ao deserto mar noturno, que murmura,

Um moço está do pé; e cheio de amargura,

Com lágrimas na voz, e a dúvida no peito,

Brada, fitando o mar em vagalhões desfeito:

“Explicai-me, explicai-me o mistério da vida!

O antigo enigma atroz, que atormenta e trucida,

Há tanto tempo já, tantas cabeças alvas,

Cabeças juvenis, velhas cabeças calvas,

Umas trazendo a mitra e outras a coroa?

A dúvida cruel, que funda me fragoa,

Nada a pode apagar na criação imensa?

Nada palpita além da abobada suspensa,

Onde fulge polido o páramo estrelado?”

E enquanto o longo mar, monótono e pausado,

Sobre a pálida areia, em roucos murmúrios,

Quebra na ruiva praia a espuma em rolos frios,

E o vento surdo arrasta a névoa indiferente,

E a estrela muda verte o inquieto brilho ardente,

— O louco, contemplando a desdenhosa onda,

Espera alguma voz, que o ouça e lhe responda.

 

 

O DILÚVIO

(Episódio do Asvhero de Quinet)

O PADRE ETERNO ao oceano

Como frase incorreta

No meu soberbo livro mal escrita,

Vai apagar a terra, a nodoa abjeta

Que ultraja a criação bela, infinita.

O OCEANO

Corro a cumprir teu mando irrevogável.

— No vértice do mundo já não resta

Mais que a torre de um rei, que se inebria

           Numa ruidosa festa.

Meu dilúvio fatal, inexorável,

           Em menos de uma hora,

Há de colhe-lo, no fervor da orgia,

           Sob a onda invasora.

O REI, à mesa, rodeado de seus príncipes

Como um lago, o dilúvio abrange, alaga,

           A humilhada planura;

Mas ponha embora vaga sobre vaga,

Não roçará jamais a excelsa altura

           Dos meus passos altivos.

Cubra, esboroe o teto dos cativos;

Embora ruja o oceano furioso;

Os meus guardas fiéis hão de impedi-lo

De devassar-me ao paço poderoso

           O vedado sigilo.

PRIMEIRO SÁTRAPA

Se ele viesse, rei dos reis, seria

           Para lamber-te os pés.

SEGUNDO SÁTRAPA

           Ou trazer-te, talvez,

Um diadema das pérolas, que cria.

 O REI

À minha mesa sentados,

Mil reis estão reunidos,

De ouro e púrpura vestidos,

De luxo e luz fascinados.

E para o gozo profundo

Destas frontes coroadas,

Todas as pompas do mundo

Subiram minhas escadas.

Cem dromedários forçosos

Trouxeram sobre o seu dorso,

Curvados a tanto esforço,

Os vinhos mais generosos.

Por cem camelos possantes

Foram de longe trazidos

Manjares apetecidos

De aromas sobre-excitantes.

Tudo é esplêndido e belo

Neste festim de alegrias!

O vinho, havemos bebe-lo,

E comer as iguarias.

Antes que a aurora dourado

Tenha os vastos céus azuis,

Os astros terão findado

O sou banquete de luz.

E o mar, na amplidão sombria

Imerso num sono vago,

Terá da taça vazia

Sorvido o último trago.

Só para nós, os monarcas,

Vencendo os tempos fatais,

As vidas de patriarcas

Não se acabarão jamais.

Silêncio! que ruído

Escuto, como a onda

Que, num penedo erguido

Abalroando, estronda?

PRIMEIRO SÁTRAPA

É o gemer funéreo,

Oh rei! da plebe vil, que se lamenta.

 O REI

O ruído avulta, aumenta...

SEGUNDO SÁTRAPA

Senhor! é o soluçar do teu império.

 O REI

Recomecemos, pois, em coro, o canto

Até a meia noite. A chuva densa

Em torrentes sussurra. Brilham raios.

Como um navio roto, que naufraga,

Vem o mundo, debaixo de meus olhos,

Despedaçar-se para dar-me gosto.

O universo, ao morrer, me não merece

Dos meus lábios de rei mais que um sorriso.

Oceano, mar longínquo! hás já contado

Os infindos degraus do meu palácio?

Há mais de cem, de mármore e de bronze.

Pobre criança, que o furor desvaira,

Não resvalem teus pés nos meus ladrilhos!

Cuidado! não os manches com a saliva!

Inda antes que insensata a meio os vingues,

Hás de esconder-te sob o véu de espumas,

E envergonhado, tímido, arquejante,

Fugirás, murmurando: — eis-me sem forças!

Os abutres do mar de ti recuam;

Sobem de rastos o rochedo agudo

Onde o ninho cavaram; — tentam, loucos,

Abrigar, proteger, com o peito arfado,

Dos teus ataques, — a ninhada implume.

O olhar em chama, as plumas erriçadas,

Metem, movendo o bico e as duras asas,

Terror às tuas vagas. Tu, persegue

Os abutres do mar, se tens o intento

De roubar-lhes ao ninho palpitante

A prole, em que a penugem mal desponta.

Aqui, na minha torre, ninho de águias,

Como hás de, sobrepondo vaga a vaga,

Sem vertigem, subir a tanta altura?

Deste festim esplêndido, soberbo,

Condescendo em lançar-te uma migalha:

— Desvia-te; prossegue o teu caminho.

PRIMEIRO SÁTRAPA

Batem à porta.

O REI

                   Acudi-me!

 SEGUNDO SÁTRAPA

É o teu herdeiro. Já

Não te conheço.

O REI

                   Quem está?

 O OCEANO

Não ouvis? Abri-me! abri-me!

O REI

Socorro! Oceano terrível,

De espumas cheio, invencível,

Porque me bates à porta?

O que buscas? a que vens?

Queres meu manto? Ai tens.

 O OCEANO

O teu manto, que me importa?

Ele é pequeno de mais

Para os meus ombros reais.

 O REI

Se tu queres beber em taça da ouro

Um vinho que embriaga,

Eis a minha; eu ta dou; vale um tesouro;

Lanço-a na tua vaga.

O OCEANO

Não pode a tua taça, rei, lenir-me

A sede; a tua oferta é para rir-me.

O REI

Queres minha coroa fulgurante?

Eu a deponho em tua fronte túmida.

O OCEANO

Eu prefiro da vaga a poeira úmida

Para cingir-me a fronte triunfante.

Mas quero ao teu festim, onde o luxo pompeia,

Sentar-me. Vai reinar sobre meus grãos de areia

Um passo mais, e estou no trono, no teu posto.

Eis-me sobre ele já. Como sinto-me a gosto!

Boia um floco de espuma onde existiu um mundo.

Quero também sentir, no coração profundo,

As comoções de um rei; sobrepor à tiara,

Ao cetro, aos vasos de ouro, a minha mão avara,

E com eles brincar, e lamber voluptuoso,

Esgotando uma a uma as sensações do gozo,

As taças do festim, que embriaguez destilam.

Este vinho alucina. As vagas, que vacilam,

São súditos fiéis, que em torno me cortejam,

Curvam-se até o chão, e a terra humildes beijam.

Vamos! dobrai a fronte em sinal de respeito!

Agora, quero ouvir romper do vosso peito

Um coro colossal de gritos e gemidos!

Silêncio agora! Vede! Os meus rios, sem raias,

Com as vagas esmagando os pâmpanos das praias,

São os meus escanções. — O gozo me inebria!

Tudo se há de dobrar à minha fantasia!

Mugidoras Babéis levanto: e uma por uma

Derribo, a bel-prazer, suas torres de espuma,

De meu peito feroz ao mínimo palpite.

O meu reino não tem nem praia, nem limite.

Meu coração não cede às flechas emplumadas.

Oxidam-se em meu seio as lúcidas espadas.

Se uma nodoa me ultraja, a minha própria vaga,

Revolta, murmurando, a mancha vil apaga.

Nada em mim deixa um rastro; — exceto que não seja

O meu manto em que o sol, mirando-se, flameja!

 

O RIO E O VENTO

(A PEREIRA DA COSTA)

Muitas vezes se vê, sobre os rios do Norte,

Na quadra em que o calor abafa mais ardente,

Horríssono tufão rugir, sanhudo e forte,

Em direção contraria à indômita corrente.

Frenéticos pegões, com impávidos roncos,

Arrancados com fúria às válidas entranhas,

No impetuoso correr lascam os velhos troncos,

E fazem desabar as pedras das montanhas.

De encontro às aguas rui a túrbida descarga,

E em brusco assalto ferve, e remoinha e brama;

— Sem cólera, encrespando a superfície larga,

Através da floresta o rio se derrama.

Como um atleta o vento, em porfiado esforço,

Cava a úmida arena; — o rio, que se empola,

Sob a afronta erriçando o majestoso dorso,

Com lento passo igual a rude massa rola.

Apenas, nesse dorso hercúleo, que fumega,

Brincam da espuma errante os fervidos matizes,

E ele vai fecundando as regiões, que rega,

Nutrindo e avigorando as sôfregas raízes.

           _______

Ideal! ideal! tu és como esse rio!

— Sem ouvir o clamor dos cetros, das tiaras,

Com grave placidez, imperturbável, frio,

Vais rolando em triunfo as tuas ondas claras.

Embalde sobro ti a bava dos insultos

O preconceito cospe, e golfeja a insolência:

— Vais nutrindo de amor os corações incultos,

Fecundando o dever em cada consciência.

Fatiando ao passado a resistência, a fúria,

Marchas para o futuro inalteravelmente;

Não te pode sustar a força, nem a injúria:

— O tufão não suspende aos rios a corrente!