LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Fanfarras, de Teófilo Dias
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Edição de referência:
DIAS, Teófilo. Fanfarras. São Paulo: Dolivaes Nunes, 1882.
ÍNDICE
No espaço, em cada ser, que um centro atraia e prenda,
Há sempre o despontar de uma asa, que o suspenda.
Ascender! ascender! — dizem todas as cousas,
As estrelas nos céus, os vermes sob as lousas.
É o hino, que tudo, em sôfregos suspiros,
Canta: — férvida a fonte, em sinuosos giros,
Sobre pedras quebrando o trépido carinho,
A ave, inquieta e meiga, em volta do seu ninho,
O ninho sob o ramo, o ramo sob as flores,
As flores no perfume, — e a gruta nos vapores
Que em frouxas espirais as amplidões alteia.
A vida não se esgota, e vai perpetuamente
Do esboço às perfeições, harmônica, ascendente.
O imóvel não existe. A floresta pompeia
O luxo exuberante, a gala festival,
A verdura febril, do mundo vegetal.
Fixo? Não. Ei-lo em flor; — e em êxtases secretos
Dispersa-se em aroma, e voa nos insetos.
Enfim, por toda a parte há íntimos palpites,
Ímpetos de romper barreiras e limites.
Fatal gravitação tolha-me embora os pés
Hei de também subir dos mundos através,
Hei de também transpor os tempos e os espaços,
Na esperança de além colher-te nos meus braços,
A ti, que és para mim a força ascensional.
Oh Glória! — a aspiração! o porvir! o ideal!
Pendente a língua rubra, os sentidos atentos,
Inquieta, rastejando os vestígios sangrentos,
A matilha feroz persegue enfurecida,
Alucinadamente, a presa mal ferida.
Um, afitando o olhar, sonda a escura folhagem;
Outro consulta o vento; outro sorve a bafagem,
O fresco, vivo odor, cálido e penetrante,
Que, na rápida fuga, a vítima arquejante
Vai deixando no ar, pérfido e traiçoeiro;
Todos, num turbilhão fantástico, ligeiro,
Ora, em vórtice, aqui se agrupam, rodam, giram,
E, cheios de furor frenético, respiram,
Ora, cegos de raiva, afastados, dispersos,
Arrojam-se a correr. Vão por trilhos diversos,
Esbraseando o olhar, dilatando as narinas.
Transpõem num momento os vales e as colinas,
Sobem aos alcantis, descem pelas encostas,
Recruzam-se febris em direções opostas,
‘Té que da presa, enfim, nos músculos cansados,
Cravam com avidez os dentes afiados.
Não de outro modo, assim meus sôfregos desejos,
Em mantilha voraz de alucinados beijos,
Percorrem-te o primor às langorosas linhas,
As curvas juvenis, onde a volúpia aninhas,
Frescas ondulações de formas florescentes
Que o teu contorno imprime às roupas eloquentes:
O dorso aveludado, elétrico, felino,
Que poreja um vapor aromático e fino;
O cabelo revolto em anéis perfumados,
Em fofos turbilhões, elásticos, pesados;
As fibrilas sutis dos lindos braços brancos,
Feitos para apertar em nervosos arrancos;
A exata correção das azuladas veias,
Que palpitam, de fogo entumecidas, cheias,
— Tudo a matilha audaz perlustra, corre, aspira,
Sonda, esquadrinha, explora, e anelante respira,
Até que, finalmente, embriagada, louca,
Vai encontrar a presa, — o gozo — em tua boca.
Ontem pela manhã, do jardim através,
Eu te escutava o passo, o hino de teus pés,
Que, perfumando a relva, e inebriando os trilhos,
Como únicos sinais, deixavam os rastilhos
De uma essência sutil, de uma fragrância rara,
Que jamais perfumista em vidros encerrara;
Cheia de uma atração inefável, discreta,
Mais grata do que o fino extrato da violeta;
Um incenso, a que a arte, apurando os seus meios,
Aos vegetais sondando os misteriosos veios,
Abrindo, interpretando as almas rescendentes
Que enchem os corações das flores eloquentes,
Jamais descobrirá. — E que magia acaso
Pode surpreender, encarcerar num vaso,
Esse fluído fugaz, fátuo, vivo, ideal,
Da nuvem que te envolve o corpo sem rival?
Ao sentir-te passar, fundia-se a alvorada,
Derretida em clarões radiosos, — despenhada
Em avalanches de ouro, em rios de carmim
Sobre leitos azuis; — e através do cetim
Do nevoeiro mole, adelgaçado, escasso,
Multiplicando a forma, a luz, ferindo o espaço,
Rota em fitas de fogo, em largas refrações,
Brilhava, semelhando um bando de pavões
Que abrisse em vasto plano as rodas cambiantes
Dos leques festivais das caudas deslumbrantes.
Vacilavam, ao longe, as florestas em flor,
Ébrias de luz e sombra e confuso rumor.
Gorjeavam, ao ver-te, os múrmuros caminhos,
Das folhas no bulir, na voz dos passarinhos.
A natureza arfava, em frêmitos suaves.
Sussurrava, brilhando, o azul, florido de aves.
Tudo, em torno de nós, num êxtase suspenso,
Parecia sorver, num hausto longo, o incenso
Que exalavas, passando, em cálidos vapores.
Num espasmo de gosto, o espírito das flores,
Fremente, mal retinha o hálito incendido.
E, então, julguei ouvir, bem distinto no ouvido,
Uma, que a todas mais sobre-excedia em graça,
Murmurejar: “Silêncio! é nossa irmã que passa!”
Sulcas o ar de um rastro perfumoso
Que os nervos me alvoroça e tantaliza,
Quando o teu corpo musical desliza
Ao hino de teu passo harmonioso.
A pressão do teu lábio saboroso
Verte-me na alma um vinho que eletriza,
Que os músculos me embebe, e os nectariza,
E afrouxa-os, num delíquio langoroso.
E quando junto a mim passas, criança,
Revolta a crespa, luxuosa trança,
Na espadua arfando em túrbidos negrumes,
Naufraga-me a razão em sombra densa,
Como se houvera sobre mim suspensa
Uma nuvem de cálidos perfumes!
Tuas pupilas alaga
Não sei que acerba ternura,
Cuja luz cruel me afaga,
Cujo afago me tortura.
Unge-te o seio moreno
Um perfume sufocante,
Suave como um calmante,
Pérfido como um veneno.
Freme-te a alma fatal
No frágil corpo nervoso,
Como um filtro perigoso
Numa prisão de cristal.
Para estancar os desejos,
Que teu sangue tantalizam,
Teus lábios prodigalizam
Dentadas por entre beijos.
Com sarcasmos me apunhalas;
Depois, as feridas cruas
Ameigas com a luz que exalas
Dos teus olhos, — negras luas.
Tua palavra me é dura,
Às vezes, pelo sentido,
E doce pela brandura
Com que me trina no ouvido.
Há uma alma que suspira
Em cada ponto do espaço
Quando caminhas: teu passo
Murmura como uma lira.
No movimento discreto
Revelas, por entre as gazes,
Todo um poema correto
Escrito em versos sem frases.
Os teus lençóis apaixonas
Com a gentileza, que apuras
Nas langorosas posturas
Em que o teu corpo abandonas.
Dos primores, de que és feita,
A nenhum dou primazia:
É do conjunto a harmonia
Que os meus sentidos sujeita.
E eu te amo, beleza fátua,
Minha perpétua loucura,
Como o verme a flor mais pura,
E o musgo a mais bela estatua’
Enlanguesce-te a voz, sonora e rica,
Um simpático timbre insidioso,
Que em meu ouvido, em frêmito nervoso,
O vário acorde grava e multiplica.
No sopro mole, tépido, me fica
Suspensa a alma, em pasmo deleitoso,
Como a ave do ninho harmonioso
Que a tua voz no hálito edifica.
Quando lhe escuto a música enervante
Abate-me um torpor mórbido, quente,
Que me entumece o sangue palpitante.
É que ela exala o fluído dissolvente
Do funesto elixir inebriante
Que te ameiga e embalsama o lábio ardente.
Como serpente arquejante
Se enrosca em fervida areia,
Meu ávido olhar se enleia
No teu colo deslumbrante.
Quando o descobres, no ar
Morno calor se dissolve
Do aroma, em que ele se envolve
Como em neblina o luar.
Se ao corpo te enrosco os braços,
A terra e os céus estremecem,
E os mundos febris parecem
Derreter-se nos espaços!
E tu nem sequer presumes
Que então, querida, até creio,
Sorver, desfeito em perfumes,
Todo o sangue do teu seio.
Depois que aspiro, ansiado,
Do teu nível colo o incenso,
Minh’alma semelha um lenço
De viva essência molhado.
Deixa que a louca se deite
Nesse torpor, que extasia
E que o vinho do deleite
Me espume na fantasia;
Pois não há ópio, ou hashis
Que me abrilhante as ideias
Como as fragrâncias sutis
Que fervem nas tuas veias!
Vibra na tua voz, de um pérfido atrativo,
Um ritmo fatal, dissolvente, impressivo,
Que me acelera o impulso ao sangue impetuoso,
E dócil ao seu timbre elétrico, expressivo,
Meu ouvido o reflete, um frêmito nervoso.
No som dominador, na imperiosa ternura,
Exala sensações funestas; — a loucura,
A vertigem, a febre; e — estranha fantasia!
A embriaguez cruel, que afaga, e que tortura,
Um filtro musical, um vinho de harmonia.
Exerce sobre mim um brando despotismo
Que me orgulha, e me abate; — e há nesse magnetismo
Uma força tamanha, uma eletricidade,
Que me fascina e prende às bordas de um abismo,
Sem que eu tente fugir, — inerte, sem vontade.
Assim como o pendor, fácil, acidentado,
De rocha de cristal, que a linfa tem cavado,
Presta a onda, que o mina, o voluptuoso dorso.
Por onde ela espreguiça o corpo perfumado,
Indolente, a rolar, sem o mínimo esforço,
Não de outro modo, assim, ao som de tua fala,
Há um declive doce, extático, que embala,
No fundo de minha alma, a tua voz tremente,
Que em meandros sutis, invisíveis, resvala
E penetra-lhe o abismo harmoniosamente.
Mares, de espúmeo albor de rendas revestidos!
Vagas, cheias de aroma, e de torpor fecundas!
Para a febre lenir, que esvaíra-me os sentidos,
Quero nestes lençóis mergulha-los, vencidos,
Num mar de sensações letárgicas, profundas!
Aqui, de regiões apostas, climas vários
Vieram se encontrar, por diversos caminhos,
Para depor, fiéis, submissos tributários,
Os prodígios do gosto, árduos, imaginários,
Em perfume, em cetins, em sedas, em arminhos.
Despenhada do teto, em turbilhão se entorna,
Muda, imóvel cascata, a cortina nitente,
Derramando no ar uma preguiça morna,
Que os músculos distende e os nervos amadorna,
Em íntima volúpia, estranha, inconsciente.
Repassa, embebe a alcova, em toda a plenitude,
A emanação sutil, que enleva, que extasia,
De um corpo virginal e cheio de saúde,
Grato eflúvio do sangue, em plena juventude,
Que do olfato a avidez satura, e não sacia.
Perfumados lençóis! vós sois as brancas tendas,
Onde, árabes do amor, meus vagos pensamentos
Nas solidões da noite ouvem estranhas lendas,
Enquanto sob um céu enublado de rendas
Enerva-me o luar de uns olhos sonolentos!
Teu lábio é fonte, onde em beijos
Mata a sede devorante
A caravana arquejante
Dos meus cansados desejos.
Que aroma tépido e fino
Tua voz no timbre assume!
Se o teu hálito é um hino,
É tua voz um perfume.
Tua pele, doce ao tato,
É feita de arminho e seda,
Cuja textura embebeda
De um gozo fundo, insensato.
Mórbida febre fermenta,
Deliciosa e mortal,
Da tua coma opulenta
Na moleza sensual.
E o teu hálito fragrante,
É, como a brisa do outono,
Cheio de um sopro enervante,
Que os membros convida ao sono.
O som, que tua voz límpida exala,
Grato feitiço mágico resume:
A frase mais vulgar, na tua fala,
Colorido, matiz, brilhando, assume.
Afaga como a luz; como um perfume
Pela alma filtra, e se insinua, e cala,
E, só de ouvi-la, o espírito presume
Que um éter, feito de torpor, o embala.
Quando a paixão altera-lhe a frescura,
Quando o frio desdém lhe tolda o acorde
À viva polidez, vibrante e pura,
Não se lhe nota um frêmito discorde:
— Apenas do primor, com que fulgura,
Às vezes a ironia salta — e morde.
Inspiras-me o sentimento
Que se lê nas catedrais
Que as idades medievais
Ergueram ao firmamento.
Fundas raízes no chão
Estende; floresce em pedra;
Sobe, cresce, avulta, medra,
Enche, domina a amplidão.
E do pensamento escrito
Na abobada colossal,
Arqueja o esforço ideal
Que tende para o infinito.
Depois... a agulha sutil
Se perde no céu distante,
Como um grito suplicante...
— Como um desejo febril!
Na placidez sombria
Da penumbra discreta,
Por uma tênue fenda, estreita, esguia,
Dardeja uma áurea seta
O fulgido esplendor do meio-dia.
Um silêncio calmoso
Enche da alcova o tépido ambiente,
Pérfido e carinhoso.
Cai preguiçosamente
O imóvel cortinado,
Emoldurando um leito sedutor,
Atraente, fatal, como um pecado,
Entornando do branco magnetismo
Um cálido vapor,
Imperioso como um silogismo.
Ali é que ela ao som se abandona,
Velada pelo albor do cortinado,
Doce, como a madona,
No seu marmóreo nicho rendilhado.
Nas transparências vagas do tecido
Das rendas da cortina
Imóvel se vislumbra,
Prostrado, frouxo, lânguido, abatido
Pelo calor, um corpo que deslumbra,
Um corpo que fascina.
O torpor sonolento
Na aromática pele cetinosa
Dilui-lhe uns tons de rosa
E espasma-o num profundo abatimento.
Aljôfar perfumado e cristalino,
Transunto de enervante embriaguez,
Cheio de eflúvio insinuante e fino,
Aflora-lhe do rosto alabastrino
A tenra, nívea tez,
Tão úmida e macia, que parece
Um fruto do Equador,
Que deixa ressumar, se o sol o aquece,
Na polpa externa o rórido calor.
Um frêmito, ao de leve,
Lhe faz arfar o seio delicado,
E as linhas lhe descreve
Num vago movimento compassado.
Do leito a borda alveja-lhe o contorno
De mármore rosado dos pés nus,
E enquanto fora o murmúrio morno
Mórbido o vento abafa nos bambus,
Na placidez sombria
Da penumbra discreta,
Por uma tênue fenda, estreita, esguia,
Dardeja uma áurea seta
O fulgido esplendor do meio-dia.
Eu bem sei que tu és o altivo bardo
Por quem bate meu seio comovido,
O nobre cavalheiro, por quem ardo,
Rico de amor, mas de ouro desprovido.
Eu, cautelosa e tímida, se guardo
Um recato composto e recolhido,
Se com aspecto frio te acobardo
O amor afouto, em chamas convertido,
Não é porque não pulse-me apressado
O sangue à minha mão, presa na tua,
Quando me sinto trêmula a teu lado;
É que me lembro que, a esperar da lua
O manto para roupa do noivado,
Morrerei de pudor, casando... nua.
Não sei que afã de ver-te me tortura
Desde que longe estás de mim, criança!
Só me alimenta a febre da esperança.
Tenho no olhar o espasmo da loucura.
De fundo abismo na espiral escura,
Que só de imaginá-lo a ideia cansa,
Mergulha-me o desgosto, a dor me lança
Dor, que só em te ver tivera cura.
Por isso é que ao mandar-te, angustiado,
Este soneto, de minha alma cheio,
Comprimo o coração despedaçado
Com a mão palpitante, com receio
Que em ímpetos de amor arrebatado
Me fuja para ti, pelo — correio.
Fosse-me dado, em mármor de Carrara,
Num arranco de gênio e de ardimento,
As linhas do teu corpo o movimento
Suprimindo, fixar-te a forma rara,
Cheio de força, vida e sentimento,
Surgira-me o ideal da pedra clara,
E em fundo, eterno arroubo, se prostrara,
Ante a estátua imortal, meu pensamento.
Do albor de brandas formas eu vestira
Teus contornos gentis; eu te cobrira
Com marmóreo cendal os moles flancos
E a sôfrega avidez dos meus desejos
Em mudo turbilhão de imóveis beijos
As curvas te enrolara em flocos brancos.
A saudade da amada criatura
Nutre-nos na alma dolorido gozo,
Uma inefável, íntima tortura,
Um sentimento acerbo e voluptuoso.
Aquele amor cruel e carinho
Na memória indelével nos perdura,
Como acre aroma absorto na textura
De um cofre oriental, fino e poroso.
— Entranha-se; invetera-se; — de jeito
Que do tempo ao volver, lento e nocivo,
Resiste; — e ainda mil pedaços feito
O lígneo cárcer, que o retém cativo,
Cada parcela reproduz perfeito
O mesmo aroma, inalterável, vivo.
Se falas, meu olhar te escuta e fita,
E meu ouvido as frases te devora,
E freme, como o lago que palpita,
A frescura da brisa, que o desflora.
O carinho de tua mão me agita
Fibra por fibra: as veias me afervora,
E os meus sentidos na orvalhada rora
De uma volúpia extática, infinita.
A tua pele fresca e cetinosa,
Toda feita de sândalo e de rosa,
Provoca os lábios, desafia os beijos,
E brilha-me, através de um prisma ardente,
Teu vulto aéreo, artístico, fremente
Nas vestes ideias dos meus desejos.
(BAUDELAIRE)
O vinho veste e enfeita a cabana mais nua
Com pompa milagrosa,
E faz surgir mais de uma Alhambra fabulosa
Que em seu vapor flutua
Como o sol no poente, em tarde nebulosa.
O ópio faz crescer o ilimitado; o imenso
Aumenta; e tem poder
De eliminar o tempo; e, cavando o prazer,
De fundo gozo intenso
Inunda a alma além do que pode conter.
Mas nada disto vale o veneno, que mana
Teu olhar, que seduz,
O lago, aonde a febre os meus sonhos conduz,
Fremente caravana
Que a sede vai matar nesse abismo de luz.
Nada ao teu beijo iguala a pressão indizível
Que morde, em que me estorço,
Que afoga-me no olvido a alma, sem remorso,
E em delíquio terrível
Do morno mar da morte a embala sobre o dorso.
É doce, e ao mesmo tempo amargo, noite afora,
Pelo inverno, escutar junto ao fogo, que fuma,
O lento desfilar das lembranças de outrora,
Dos sinos ao tanger, que sonoriza a bruma.
Bem haja o sino, pois, de sonorosa goela,
Que, apesar da velhice, alerta, vigoroso,
Alteia fielmente o grito religioso
Qual velho militar, que sob a tenda vela.
Minh’alma é um sino velho e fendido. Sombrio,
Se tenta encher com o dobre o ar das noites frio,
Muita vez lhe agoniza a fraca, surda voz,
Como o extremo estertor do soldado esquecido
Sob um lago de sangue, entre mortos, ferido,
E que, imóvel, expira, em rude esforço atroz!
(BAUDELAIRE)
Como espectro agoureiro, hei de, escondido,
Entrar na tua alcova silenciosa,
Deslizando sinistro, sem ruído,
Com as sombras da noite pavorosa.
E a tua branca espádua hei de afagar,
Como a serpente a pedra de um sepulcro,
E hei de imprimir-te ao corpo esbelto e pulcro
Os meus beijos, mais frios que o luar.
Ao repontar a lívida alvorada,
Encontrarás o meu lugar vazio,
E hás de senti-lo abandonado e frio,
Até surgir a noite, oh minha amada.
Sobre a tua atraente formosura,
E a tua bela mocidade em flor,
Como os outros, mulher, pela ternura,
Eu quero dominar pelo terror!
(BAUDELAIRE)
Sonoro mar, — a música me envolve,
E em éter vasto, sob um teto amargo
De brumas, a minha alma, feita ao largo,
Para o meu astro pálido se volve.
Rompe-se a vaga; meus pulmões sussurram,
Como as velas, do vento ao rijo açoite;
Escalo o dorso às ondas que se empurram,
Lactando na atra cerração da noite.
E sinto as comoções, o paroxismo
De um navio batido da tormenta;
O tufão me sacode sobre o abismo
Que ruge imenso, e louco se lamenta.
Num silêncio cruel, surdo, sombrio,
Já repousa feroz o mar sanhudo;
Profunda reina a calma: — espelho frio
Do desespero atroz que rói-me agudo.
(BAUDELAIRE)
Sinto o sangue escapar-me à veia enfebrecida,
Como fonte fugar; — harmônico e purpúreo,
Escuto-o soluçar com lírico murmúrio,
Porém me apalpo em vão, não encontro a ferida.
É-lhe leio a cidade, e nela se despenha;
Referve, e cada pedra em ilha transfigura;
E vai matando a sede a cada criatura,
Colorindo de rubro as cousas que desenha.
O vinho aguça a vista e apura mais o ouvido:
Talvez, por isso, em vão, que adormeça, hei pedido
O meu roaz terror um momento sequer;
Em vão também no amor procuro o esquecimento;
Mas o amor, quanto a mim, não é mais que um invento
Com que nos suga o sangue a sede da mulher.
(BAUDELAIRE)
O inverno é para mim a mais doce estação.
Como sinto-me bem! — Amortalhando o lago,
A névoa, que me envolve a fronte e o coração,
Se fecha sobre mim, como um túmulo vago.
Nos planos, que me percorre o bulcão frio e torvo,
E aonde a longa noite os mochos enrouquecem,
Melhor do que no tempo em que os bosques florescem,
Minha alma largamente abre as asas de corvo!
(BAUDELAIRE)
Quando D. Juan desceu ao subterrâneo rio,
E pagou a Caronte o óbolo supremo,
Antístenes soberbo, um mendigo sombrio
Um braço vingador lançou a cada remo.
Como um grande tropel de vítimas expostas
Mulheres mil e mil, ao atro firmamento,
Erguiam, seios nus, as roupas descompostas,
Enquanto o herói passava, um lúgubre lamento.
Sganarello, a rir, lhe reclamava as pagas,
Enquanto D. Luiz, com o dedo, que tremia,
Mostrava a cada morto errante sobre as plagas —
O filho, que das cãs do velho escarnecia.
A casta e magra Elvira, um último tributo
Em que do amor primeiro inda provasse o mel,
Parecia implorar, fremente sob o luto,
Ao que lhe fora amante e marido infiel.
Sob as armas ereto, abrindo o torvo rio,
Um alto homem de pedra estava ao leme posto;
— Mas, curvado, fitando a espuma, calmo e frio,
Não se dignava o herói sequer voltar o rosto!
(V. HUGO)
Eu vivo do ar, que respiras;
E como, dize-me agora,
Ficar, se tu te retiras,
Viver, se te vais embora?
Que me serve ser a sombra
De um anjo, que surge e passa?
Ou de um céu, que o luto assombra,
A noite pesada e baça?
Eu sou a flor das muralhas,
De que abril é o só viver;
Basta que tu me não valhas,
Que partas, para eu morrer.
Em ver-te, pus meu cuidado;
Toda a luz de ti me vem;
Se ficas, fico a teu lado;
Se partes, parto também.
Se partes, rói-me a tristeza;
E aos céus, — ao ninho, medrosa,
Voa minha alma — ave presa
Nos teus dedos cor de rosa.
No tédio negro da ausência,
Triste de mim! que serei?
— É tua ou minha a existência
Que se desfaz? — Não no sei.
Quando me falta a coragem,
Eu bebo-a no teu afago,
Bem como a pomba selvagem,
Nas águas puras de um lago.
O amor às almas ensina
Como o universo é bendito,
E esta chama pequenina
Inunda todo o infinito.
Sem ti, a vida é a morte;
O mundo cárcer fechado,
Onde vago à lei da sorte
Sem amar, sem ser amado.
Morna tristeza funesta
Tudo desfolha; meu cílio
Se enche de sombra; uma festa
É uma campa; a pátria exílio.
Eu te imploro e te reclamo,
Oh pomba, que de minha alma
Entoas de ramo em ramo
Hino que as dores me acalma!
Que desejo me convida,
Que posso temer? — enfim,
Que farei da própria vida,
Se já não estás junto a mim?
És tu que levas no voo,
Aos céus e aos campos em flor,
Numa asa as preces que entoo,
Noutra meus hinos de amor.
Aos tristes campos, que vela
O luto de íntima dor,
Que hei de contar? que da estrela
Farei? — que farei da flor?
— E à triste flor que amanhã
Interrogar-me chorosa:
— Onde se foi minha irmã?
Morrerei; parte, se o ousas!
Dias volvidos, porque
Olhar todas estas cousas,
Que o seu olhar já não vê?
E que me importam destino,
Virtude, e lira sonora?
E sem teu riso divino,
Que me importa o rir da aurora?
Que farei, sem mais desejos,
Sem ti, sem luz, e sem cantos,
Sem teus lábios, — de meus beijos,
Sem teus olhos, — de meus prantos?
Minha alma é um velho arsenal
Cheio de armas assassinas;
Tem a mudez sepulcral
Que paira sobre as ruinas.
Das paredes denegridas,
Da mão do tempo gretadas,
Pendem fúnebres espadas
Pela ferrugem comidas.
Há punhais de gumes tredos,
Cuja lâmina sinistra
Rápida morte ministra
A quem lhe perpassa os dedos.
Sobre os ladrilhos sombrios
Rolam farrapos poentos,
Que pelas malhas dos fios
Mostram vestígios sangrentos.
Neste recinto funéreo
Não entra o rumor diurno:
O seu aspecto soturno
Lembra a paz de um cemitério.
Mas, como um monge piedoso,
Lento, grave, a passo incerto,
Cheio do horror religioso
Percorre um claustro deserto,
Também eu, mudo, contemplo,
Concentrado e recolhido,
As solidões do meu templo
Todo em ruínas caído.
E de as ver, — de um vago imenso
Desola-me o peso atroz,
Como um mar profundo, extenso,
Que, num silencio feroz,
Cerca-me surdo e sombrio,
E após, refluindo ao largo,
Só me deixa ao lábio frio
Vestígios do lodo amargo.
(A JÚLIO DE CASTILHOS)
Tu, que prendeste um dia os braços de Jesus,
Quando neles quis ter a humanidade erguida,
Hás de cair prostrada, examine, abatida.
— Já lambe-te o pedal a devorante luz.
A força, que ao porvir o Grande-Ser conduz,
A implacável ciência, a eterna deicida,
Vertendo nova seiva à arvore da vida,
Arrancou-lhe a raiz de onde surgiste, oh cruz!
O pensamento audaz, esquadrinhando os mundos,
Calcinou, sulco a sulco, os germens infecundos
Da divina semente, estéril e vazia.
Podes deixar cair, desanimada, os braços!
— Já não existe um Deus, que veja os espaços
Teu gesto de terror, de súplica sombria!
(A ASSIS BRAZIL)
O século é pujante, heroico, inexorável.
— Navio, que enristou a quilha incontrastável
Ás praias do porvir, lá vai talhando o mar.
Espadana-lhe em vão as bavas hediondas
O inútil preconceito; em balde em crespas ondas
Forceja por tolher-lhe o impávido marchar.
Quebrando à vaga rude a cólera, que espuma,
A — Ideia, o nauta audaz, atira-lhe, uma a uma,
As tradições do cetro a da tiara as leis;
Rota — cai do passado a trágica bandeira;
E de envolta com ela a triunfal esteira
Submerge avidamente as púrpuras dos reis.
Rasga afoito ao futuro as fundas névoas densas
O alento vingador, viril, das novas crenças,
Que ruge solto, livre, indômito e fatal.
Oh déspotas cruéis! oh Césares! é tarde!
Dobrai o régio manto orgíaco e covarde!
É tempo! Adormecei no olvido sepulcral!
Consolai-vos! — Não mais os vossos membros rotos
Filtrarão sangue vil da história nos esgotos
Aos gritos infernais das ébrias multidões!
— No polo social a estrela do direito
Ergueu-se, há muito já. No mortuário leito
Repousai. Já não há coroas, nem brasões!
O século caminha. Os cadafalsos velhos
Ruíram. Das nações os vários evangelhos
Rasga-os, folha por folha, a garra de Satã;
E os livros feitos pó, virá uma só crença,
E unidos se verão numa harmonia imensa
Os crentes de Jesus, de Buda e do Corã.
(A ALCIDES LIMA)
O rei dorme tranquilo. A engrenagem do fisco
Funciona muito bem, sem perda de um momento,
E o suor popular, sem o mínimo risco,
Escorre-lhe através, caindo no orçamento.
Devoram-no com ânsia os ávidos tentáculos
Do polvo colossal do áulico cortejo,
E não faltam, de certo, orgias, espetáculos,
Que saciem-lhe o cancro ao roedor desejo.
A lei é pelo rei: e, pois, cavar aos pobres
A fome na barriga, é justo, não é crime.
Não podem-no inquietar as espinhas dos nobres,
Pois sempre as encontrou flexíveis como o vime.
E, pois, pode dormir. Mas eis que a língua muda
Lhe contrai um torpor pesado, inerte, atroz,
Assim como a quem sente alguma dor aguda:
— Quando a agonia é funda o lábio não tem voz.
Aflito o coração precipite lhe pula;
Poreja-lhe o suor à raiz do cabelo;
Um gélido terror esfria lhe a medula;
— Ele fica na sombra um negro pesadelo.
A pino as cãs, batendo os dentes, ansioso,
Lívido, salta o rei do leito. Sobre o chão
Treme a sombra do cetro. Estridulo, nervoso,
Rebenta-lhe na boca um riso de poltrão.
Oh rei, não deves rir! Deves temer o espectro
Que perturba-te a paz a tua omnipotência:
— Avulta mais e mais a sombra do teu cetro,
Á medida que aumenta a luz na Consciência.
(A AUGUSTO DE LIMA)
Nos coxins de um divã, fofo, macio,
Imersa a fronte pensativa e larga,
Jaz o príncipe, pálido, sombrio,
Presa infeliz de uma tristeza amarga.
Rouco soluço o respirar lhe embarga...
— Ousara o mar sorver o seu navio
Que dos produtos do seu pátrio rio
Vinha — trazer-lhe a preciosa carga?
Morreu-lhe a amante? o amigo? algum parente?
Perdera a sua ilha do Oriente,
Onde abunda o coral, brota a safira?
Nada disto se deu. Nada! — Somente
O príncipe, coitado! descobrira
Que o seu galgo gentil quebrara um dente.
(A RAIMUNDO CORREIA)
Eu não sou dos que vão, com a fronte envilecida,
Dos palácios reais açoitar os tapetes,
Onde, em vinho, o suor do povo nos banquetes
Provoca a embriaguez frenética alarida;
Onde as flores gentis das estufas dos paços
Mostram no colo infame os prantos da indigência
Rorejando em rubins, que os sátiros devassos
Devoram com olhar de lubrica insolência;
Onde os vis cortesões, renegados do povo,
Tecem de baixa intriga o difícil manejo,
Buscando saciar cada apetite novo
A pantera feroz do imperial desejo;
E ao favor espalmando as largas mãos rapaces,
Procuram resolver na rígida cabeça
O problema sagaz de apresentar as faces
Para que a mão do rei lhes chegue mais depressa.
Eu sou da multidão: por isso, quando cismo,
Ao vê-la deslizar, tranquila, indiferente,
Que a supõe arrastar na onda o despotismo
Como um tronco sem vida à tona da corrente,
Um sorriso de mofa o lábio me ilumina,
Pois sei que a indignação no peito lhe borbulha,
Pois que pressinto já que as velas crenças mina
O escarnio popular como íntima fagulha.
Pressinto que a Revolta, aziago meteoro,
Com um núcleo sangrento, há de brilhar, de jeito
Que o rodar dos canhões no macadam sonoro
Ateie em cada pedra a lava do direito.
Mil relâmpagos de aço hão de inflamar a rua;
Cada mão brandirá, como um raio, uma lança;
E há de se erguer valente a populaça nua,
Rugindo em cada boca um grito de vingança.
E, monstro enorme, há de ir sobre mil pés marchando
Por santo entusiasmo erriçado o cabelo,
Retinindo os clarins, os tambores rufando,
Abalroar com o peito o imperial castelo.
E o tufão popular, num vórtice de brasas,
Bramindo com fragor, com tétrica aspereza,
Como um incêndio enorme, há de varrer nas asas
Do solo americano o trono e a realeza.
E então vereis, Senhor, se a mente bem me alcança,
Que estes filhos do povo, heroicos e clementes,
Para não desonrar com o sangue de Bragança
A terra que bebeu o sangue a Tiradentes,
Nem aviltar a forca, o pedestal ovante,
Onde brilha melhor dos mártires a glória,
Para não imprimir uma nódoa infamante,
Como fazem os reis, às páginas da história,
Vereis que vos darão um exemplo sublime!
— A vós, que lhes cingis ao livre pulso o ferro,
Hão de vos apontar, vos perdoando o crime,
Em vez do cadafalso, a senda do desterro.
Não perturbem-lhe o sono: o herói descansa!
—
Dos louros do triunfo coroada,
Pende-lhe ao punho inerte a invicta lança,
Dos combates ainda embriagada!
Tinham uma só alma o ferro e o braço,
Que em prol da liberdade pelejavam!
Era de encontro àquela ponta de aço
Que barbaras falanges atrevidas,
Rugindo horrendamente se quebravam
Desfeitas e vencidas.
Sinistro meteoro, ao campo inteiro
Vertia a lança trêmulo, agoureiro,
Rubro clarão na túrbida batalha!
Roncava assídua a rábida metralha;
Roucos rufavam trépidos tambores;
Da Morte o espectro pálido guiava
Um cortejo de lívidos terrores;
Subia o fumo em vórtices ardentes;
E em córregos cruéis espadanava
O sangue dos valentes.
Todo o solo erriçava-se de espadas;
Voavam pelos ares mil bandeiras,
Como famintas águias carniceiras;
E o herói corria à frente das brigadas.
Seu fervido corcel, com fúria insana,
Prostrava às patas a muralha humana,
Que se lhe opunha ao passo da vitória.
Todo um povo, em mudez, colhia o alento,
Para escutar nos ímpetos do vento,
Mais um hino de glória.
Não mais o acordareis, clarins de guerra!
Hoje, esse mesmo povo se debruça
Por sobre um morto, e pálido soluça:
O forte lutador tombou por terra!
Bem como um tronco valido, orgulhoso,
Ruindo, a selva em torno abala, agita,
Ele deixou, no baquear ruidoso,
O império vacilante, a pátria aflita:
— É que lhes falta o apoio generoso
De sua lança invicta.
Do tua paz no abismo, herói, descansa,
Apertando na mão inerte a lança,
Em que o fado da pátria está seguro!
Se o destino turbar-nos o futuro,
Teu espectro no túmulo se anime!
Da tua espádua hercúlea, vigorosa,
Resvale o duro peso que te oprime!
— E aos longos gritos de aflição do povo
Ressurja a tua lança, ébria de glórias,
Como um farol, para o guiar de novo,
No trilho das vitórias!
(LECONTE DE LISLE)
Com selvagem clamor, erguido por mil bocas,
Os ébrios esquadrões, rotos pela metralha,
Ruíram, arquejando, à hórrida batalha,
Como sanhudo o mar de encontro as penhas roucas
Ao largo sol, da aurora à noite, infatigáveis,
O chão profundo aos pés cavaram, revolveram;
Muros de homens, lançando as linhas formidáveis,
Sobre o solo, aos montões tombando, se estenderam
Peito a peito, vibrante o olhar, que o ódio atiça,
Estreitaram-se após, em ímpetos ferozes;
O ferro se fartou de sangue e de carniça;
O cérebro espirrou sob as maças atrozes.
Cavaleiros, peões, vencedores, vencidos,
Ei-los, lívidos já, terríveis e calados;
Torvo, medonho o olhar; dentes, punhos cerrados;
Na furiosa morte, aos centos, estendidos.
Lavando-lhes da face o palor, o chuveiro
Nos sulcos do terreno em córregos murmura,
E pelo mesto plano um bando carniceiro
De aves cruéis, no ar, destaca a massa escura.
Nem mais um grito. O ai derradeiro se extingue.
Sobre os campos, de carne e ruína juncados,
Do dia ao raio extremo apenas se distingue
A vaga contorção dos corpos enlaçados.
Longe, em meio ao pavor desse quadro cruento,
O roto colo, a custo, um corcel equilibra,
E através da mudez noturna corre e vibra
O rouco e triste adeus que ele relincha ao vento.
Oh glória de matar, cruel, brutal, ferina!
De sangue, oh sede atroz que não há lei que dome!
Sede malditas vós, das vítimas em nome,
Ante o estúpido horror desta carnificina!
Mas, se ao sol, ou na hora em que a treva flutua,
Com o peito abalroando a boca do canhão,
Sucumbiram por ti, oh Liberdade! — então,
Fume bendito e puro o sangue em glória tua!
(HEINE)
Junto ao deserto mar noturno, que murmura,
Um moço está do pé; e cheio de amargura,
Com lágrimas na voz, e a dúvida no peito,
Brada, fitando o mar em vagalhões desfeito:
“Explicai-me, explicai-me o mistério da vida!
O antigo enigma atroz, que atormenta e trucida,
Há tanto tempo já, tantas cabeças alvas,
Cabeças juvenis, velhas cabeças calvas,
Umas trazendo a mitra e outras a coroa?
A dúvida cruel, que funda me fragoa,
Nada a pode apagar na criação imensa?
Nada palpita além da abobada suspensa,
Onde fulge polido o páramo estrelado?”
E enquanto o longo mar, monótono e pausado,
Sobre a pálida areia, em roucos murmúrios,
Quebra na ruiva praia a espuma em rolos frios,
E o vento surdo arrasta a névoa indiferente,
E a estrela muda verte o inquieto brilho ardente,
— O louco, contemplando a desdenhosa onda,
Espera alguma voz, que o ouça e lhe responda.
(Episódio do Asvhero de Quinet)
O PADRE ETERNO ao oceano
Como frase incorreta
No meu soberbo livro mal escrita,
Vai apagar a terra, a nodoa abjeta
Que ultraja a criação bela, infinita.
O OCEANO
Corro a cumprir teu mando irrevogável.
— No vértice do mundo já não resta
Mais que a torre de um rei, que se inebria
Numa ruidosa festa.
Meu dilúvio fatal, inexorável,
Em menos de uma hora,
Há de colhe-lo, no fervor da orgia,
Sob a onda invasora.
O REI, à mesa, rodeado de seus príncipes
Como um lago, o dilúvio abrange, alaga,
A humilhada planura;
Mas ponha embora vaga sobre vaga,
Não roçará jamais a excelsa altura
Dos meus passos altivos.
Cubra, esboroe o teto dos cativos;
Embora ruja o oceano furioso;
Os meus guardas fiéis hão de impedi-lo
De devassar-me ao paço poderoso
O vedado sigilo.
PRIMEIRO SÁTRAPA
Se ele viesse, rei dos reis, seria
Para lamber-te os pés.
SEGUNDO SÁTRAPA
Ou trazer-te, talvez,
Um diadema das pérolas, que cria.
O REI
À minha mesa sentados,
Mil reis estão reunidos,
De ouro e púrpura vestidos,
De luxo e luz fascinados.
E para o gozo profundo
Destas frontes coroadas,
Todas as pompas do mundo
Subiram minhas escadas.
Cem dromedários forçosos
Trouxeram sobre o seu dorso,
Curvados a tanto esforço,
Os vinhos mais generosos.
Por cem camelos possantes
Foram de longe trazidos
Manjares apetecidos
De aromas sobre-excitantes.
Tudo é esplêndido e belo
Neste festim de alegrias!
O vinho, havemos bebe-lo,
E comer as iguarias.
Antes que a aurora dourado
Tenha os vastos céus azuis,
Os astros terão findado
O sou banquete de luz.
E o mar, na amplidão sombria
Imerso num sono vago,
Terá da taça vazia
Sorvido o último trago.
Só para nós, os monarcas,
Vencendo os tempos fatais,
As vidas de patriarcas
Não se acabarão jamais.
Silêncio! que ruído
Escuto, como a onda
Que, num penedo erguido
Abalroando, estronda?
PRIMEIRO SÁTRAPA
É o gemer funéreo,
Oh rei! da plebe vil, que se lamenta.
O REI
O ruído avulta, aumenta...
SEGUNDO SÁTRAPA
Senhor! é o soluçar do teu império.
O REI
Recomecemos, pois, em coro, o canto
Até a meia noite. A chuva densa
Em torrentes sussurra. Brilham raios.
Como um navio roto, que naufraga,
Vem o mundo, debaixo de meus olhos,
Despedaçar-se para dar-me gosto.
O universo, ao morrer, me não merece
Dos meus lábios de rei mais que um sorriso.
Oceano, mar longínquo! hás já contado
Os infindos degraus do meu palácio?
Há mais de cem, de mármore e de bronze.
Pobre criança, que o furor desvaira,
Não resvalem teus pés nos meus ladrilhos!
Cuidado! não os manches com a saliva!
Inda antes que insensata a meio os vingues,
Hás de esconder-te sob o véu de espumas,
E envergonhado, tímido, arquejante,
Fugirás, murmurando: — eis-me sem forças!
Os abutres do mar de ti recuam;
Sobem de rastos o rochedo agudo
Onde o ninho cavaram; — tentam, loucos,
Abrigar, proteger, com o peito arfado,
Dos teus ataques, — a ninhada implume.
O olhar em chama, as plumas erriçadas,
Metem, movendo o bico e as duras asas,
Terror às tuas vagas. Tu, persegue
Os abutres do mar, se tens o intento
De roubar-lhes ao ninho palpitante
A prole, em que a penugem mal desponta.
Aqui, na minha torre, ninho de águias,
Como hás de, sobrepondo vaga a vaga,
Sem vertigem, subir a tanta altura?
Deste festim esplêndido, soberbo,
Condescendo em lançar-te uma migalha:
— Desvia-te; prossegue o teu caminho.
PRIMEIRO SÁTRAPA
Batem à porta.
O REI
Acudi-me!
SEGUNDO SÁTRAPA
É o teu herdeiro. Já
Não te conheço.
O REI
Quem está?
O OCEANO
Não ouvis? Abri-me! abri-me!
O REI
Socorro! Oceano terrível,
De espumas cheio, invencível,
Porque me bates à porta?
O que buscas? a que vens?
Queres meu manto? Ai tens.
O OCEANO
O teu manto, que me importa?
Ele é pequeno de mais
Para os meus ombros reais.
O REI
Se tu queres beber em taça da ouro
Um vinho que embriaga,
Eis a minha; eu ta dou; vale um tesouro;
Lanço-a na tua vaga.
O OCEANO
Não pode a tua taça, rei, lenir-me
A sede; a tua oferta é para rir-me.
O REI
Queres minha coroa fulgurante?
Eu a deponho em tua fronte túmida.
O OCEANO
Eu prefiro da vaga a poeira úmida
Para cingir-me a fronte triunfante.
Mas quero ao teu festim, onde o luxo pompeia,
Sentar-me. Vai reinar sobre meus grãos de areia
Um passo mais, e estou no trono, no teu posto.
Eis-me sobre ele já. Como sinto-me a gosto!
Boia um floco de espuma onde existiu um mundo.
Quero também sentir, no coração profundo,
As comoções de um rei; sobrepor à tiara,
Ao cetro, aos vasos de ouro, a minha mão avara,
E com eles brincar, e lamber voluptuoso,
Esgotando uma a uma as sensações do gozo,
As taças do festim, que embriaguez destilam.
Este vinho alucina. As vagas, que vacilam,
São súditos fiéis, que em torno me cortejam,
Curvam-se até o chão, e a terra humildes beijam.
Vamos! dobrai a fronte em sinal de respeito!
Agora, quero ouvir romper do vosso peito
Um coro colossal de gritos e gemidos!
Silêncio agora! Vede! Os meus rios, sem raias,
Com as vagas esmagando os pâmpanos das praias,
São os meus escanções. — O gozo me inebria!
Tudo se há de dobrar à minha fantasia!
Mugidoras Babéis levanto: e uma por uma
Derribo, a bel-prazer, suas torres de espuma,
De meu peito feroz ao mínimo palpite.
O meu reino não tem nem praia, nem limite.
Meu coração não cede às flechas emplumadas.
Oxidam-se em meu seio as lúcidas espadas.
Se uma nodoa me ultraja, a minha própria vaga,
Revolta, murmurando, a mancha vil apaga.
Nada em mim deixa um rastro; — exceto que não seja
O meu manto em que o sol, mirando-se, flameja!
(A PEREIRA DA COSTA)
Muitas vezes se vê, sobre os rios do Norte,
Na quadra em que o calor abafa mais ardente,
Horríssono tufão rugir, sanhudo e forte,
Em direção contraria à indômita corrente.
Frenéticos pegões, com impávidos roncos,
Arrancados com fúria às válidas entranhas,
No impetuoso correr lascam os velhos troncos,
E fazem desabar as pedras das montanhas.
De encontro às aguas rui a túrbida descarga,
E em brusco assalto ferve, e remoinha e brama;
— Sem cólera, encrespando a superfície larga,
Através da floresta o rio se derrama.
Como um atleta o vento, em porfiado esforço,
Cava a úmida arena; — o rio, que se empola,
Sob a afronta erriçando o majestoso dorso,
Com lento passo igual a rude massa rola.
Apenas, nesse dorso hercúleo, que fumega,
Brincam da espuma errante os fervidos matizes,
E ele vai fecundando as regiões, que rega,
Nutrindo e avigorando as sôfregas raízes.
_______
Ideal! ideal! tu és como esse rio!
— Sem ouvir o clamor dos cetros, das tiaras,
Com grave placidez, imperturbável, frio,
Vais rolando em triunfo as tuas ondas claras.
Embalde sobro ti a bava dos insultos
O preconceito cospe, e golfeja a insolência:
— Vais nutrindo de amor os corações incultos,
Fecundando o dever em cada consciência.
Fatiando ao passado a resistência, a fúria,
Marchas para o futuro inalteravelmente;
Não te pode sustar a força, nem a injúria:
— O tufão não suspende aos rios a corrente!