Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

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POEMAS

MODERNOS

Laboremus

Santos

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M DCCC LXXVII

Ninguém poderá reimprimir estes versos

TIPOGRAFIA A VAPOR DO DIÁRIO DE SANTOS, 1887

34 — RUA DE SANTO ANTÔNIO — 34

OS LÁZAROS

A meu pai PAI e meu primeiro AMIGO

OS LÁZAROS

Eles vinham de além, batidos pela fome.

Era a miséria imunda, a miséria sem nomo,

Que floresce no lodo, e, à luz meridional,

Passeia a podridão, sifilítica e imoral,

Escandalosamente ao longo das estradas,

Como as fezes no esgoto e as grossas enxurradas.

Talvez que fossem dez ou vinte ou trinta ou mais!

Contá-los dava pena: a conta pouco faz;

Mas vinham quase nus, hediondos e chagados,

Uns a pé, coxeando, e outros escanchados

Em torpes animais que, ao vê-los, por sinal,

Disséreis sem temor tocados pelo mal.

De tudo havia ali — homem, mulher, criança.

 — Era o inferno de Dante em miniatura; a aliança

De tudo quanto é grande e tudo quanto é ruim:

O sangue corrompido e o amor de serafim;

O delta social, segundo a lei, completo:

O pai, a mãe e o filho — um todo fraco e abjeto.

Eles vinham de além — trazendo em cada olhar

O sofrimento e a dor; no entanto um riso alvar,

Nevrálgico, insolente, a errar de espaço a espaço,

Tinia pelo ar, como se fora d'aço.

Quando o riso cessava, enorme imprecação,

Um grito obsceno, um ai, vibrava n'amplidão.

E assim foram entrando às portas da cidade,

Como quem vai tomar de assalto a caridade.

Era no mês de maio, o dia em que o Senhor

Mandara à sua Igreja o deus consolador,

O espírito divino, em línguas azuladas

De fogo, a fim de instruir as gentes bem amadas,

Confirmando-as na fé. Costuma sempre dar

A igreja nesse dia ao pobre o que jantar

Cumprindo uma só vez o que ela — sempre — havia

Ensinado a pedir: — o pão de cada dia.

E uso aqui então, e em todo o interior,

Eleger-se entre os fiéis um rico “Imperador”,

O qual, de c’roa e cetro e em meio da “folia”,

Leva o “Império” onde o chama a imensa freguesia,

Cedendo a cada um, por graça especial,

De carne e de farinha uma ração igual.

 — O “Império”, já se vê, é feito à custa alheia:

O povo faz a festa e o Imperador... passeia!

Nisto, como no mais, o ilustre “Imperador

Do divino” é igual a El-rei-nosso-senhor.

Como súditos fiéis a partilhar do “Império”,

Eles vinham também; mas tendo o ministério

Achado ao “deus dará” o erário popular,

Desta vez foi o rei... mandou-os passear,

Como quem manda à missa ou a plantar batatas:

 — Remédio para a fome e para as cataratas.

Foram eles então, e em falta de melhor,

 — Como sob a pressão do pus rompe o tumor —

Puseram-se a vagar nas ruas da cidade

Infeccionando o ambiente e armando à caridade,

 — A mais bela expressão do social dever,

Do altruísmo em ação, que é a lei do Grande Ser,

Com voz fenomenal, com voz roufenha, um misto

D'aguardente e escorbuto a murmurar: “Sum Cristo!”

“Sum Cristo! Uma esmolinha! amor de Deus, senhor!”

E parava e estendia a mão gafada... horror!

“Sum Cristo!” E a tilintar no prato ou na sacola,

De quando em vez, caía a azinhavrada esmola.

A esmola nunca falta aqui pelo sertão

A quem n'a pede: e mais quem dá é o coração.

Ora, nesse domingo, havia a cada canto

Um caipira que andava em honra ao espírito-Santo,

Daqui para acolá, toda a devoção,

 — Da farinha ao arroz e do milho ao feijão,

Mercando pela feira o escasso mantimento,

Que trouxera da roça em cima de um jumento.

Era o caso que havia um movimento igual

Ao das santas missões, quaresma ou carnaval:

 — Tanto é certo que o bom do interesse humano

Põe sempre o que é sagrado ao pé do que é profano.

E em meio do confuso e alegre esvozear

D’atividade humana — a vida — a batalhar

Na luta colossal da troca e do trabalho,

Onde o operário canta, ao retinir do malho...

Como um grito de dor erguido para os céus,

A morte ao pé da vida a blasfemar de Deus

Interrogando-o audaz: “Senhor, por que é que existo?”

Se ouvia aquela voz a murmurar: “Sum Cristo!”

—   “Sum Cristo!» Essa ironia amarga que a Jesus

Parecia invejar o suplício da cruz!

“Sum Cristo!” E a cada qual no prato ou na sacola

Do lázaro infeliz ia depondo a esmola.

Eram eles que ali, por entre a multidão,

Qual no âmago a paina oculta a podridão,

Andavam a pedir o pão de cada dia,

Como o verme que pede à terra a entranha fria,

Onde há de transformar-se um dia numa flor,

Ou na fibra voraz d'algum imperador.

Eram eles ainda — os lázaros — que vinham

Dizer à consciência humana o que sentiam,

Bradando alto e bom som aos lázaros sociais:

“Dai-nos esmola, irmãos; nós somos bem iguais.

 — Um pouco de mercúrio ou então de estricnina —

À vontade! — que é essa a nossa triste sina,

A sina de um leproso, o destino de um cão,

Que nunca teve mãe, porém que é vosso irmão.

Quando a morte vier, dizei à Edilidade

Que nos mande varrer com o lixo da cidade.”

Sim! pois que ali mesmo, ao sol meridional,

Estavam eles dando a hediondez carnal

Em banquete nojento às torpes varejeiras,

Enquanto iam dizendo as frases costumeiras.

“Sum Cristo!” E já no prato ou na sacola então

Não caía sequer... um “favoreça, irmão”.

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Até que a multidão enfim foi dispersando

Pela cidade além, ligeira como um bando

D’aves de arribação que vão em pleno mar

De volta de outro clima em busca de outro lar.

Nada restava mais. — E como fosse boa

A coleta do dia, então foram-se à toa

Pelas ruas a andar, movendo a podridão

Nauseabunda e imoral, como um leproso cão

Que pede pontapé e ao qual dá-se uma bola:

 — O cão é mais feliz, porque não pede esmola!

Porque ao menos tem o olhar de seu senhor

E o lázaro infeliz a todos causa horror!

Talvez por isso mesmo aquela infame troça,

Em vez de ir-se dali direito para a roça

Sofrer dignamente as penas do seu mal...

Levada pelo ardor do instinto bestial,

Como tinha dinheiro, entrou numa taverna

E foi na embriaguez sonhar a vida eterna,

Implorar à aguardente o esquecimento à dor

E rir de quem lhe foge, olhando-a com terror.

Depois, só bem depois, saiu pelas estradas

Cambaleando e a rir, mas rindo às gargalhadas.

E eu via-a lentamente ao longe se afastar,

Partido o coração de dor e de pesar,

Pensando que a miséria é uma triste cousa

Que só pode estar bem debaixo de uma lousa,

 — Principalmente quando está ligada a um mal

Sem cura e que provoca uma aversão geral —

Até se sumiu na dobra de um caminho,

Deixando após somente um vago burburinho.

A feira era deserta. Havia pelo chão

Nódoas de sangue e lixo: — a acre exalação

De um campo de batalha, aonde, entre destroços,

A carne apodreceu, largando-se dos ossos.

Talvez que mesmo ali quem procurasse bem...

Achasse corações — talvez! — podres também!

Por parte dos edis os corvos carniceiros

Vinham fazer o enterro aos corpos dos guerreiros

Com toda a compunção, sem pompa e sem Latim,

Envolvendo-os com a asa... asa de corvo enfim.

Eu pus-me a refletir comigo: — que se o Estado

Tem para Deus o altar, quartel para o soldado

E para o criminoso o código penal...

Devia ter também p’ra o lázaro o hospital.

E um lázaro, ao passar por mim, ouvido isto,

Com lágrimas na voz, pôs-se a dizer: “Sum Cristo!”