Dias e noites, de Tobias Barreto
Edição de Referência:
Dias e noites. Recife, PE: Imprensa Industrial, 1881.
DIAS E NOITES
POR
Tobias Barreto de Menezes
COM UM JUÍZO CRÍTICO DE
SÍLVIO ROMERO
__
(1854 - 1881)
RIO DE JANEIRO
IMPRENSA INDUSTRIAL — Editora
75 — Rua da Ajuda — 75
1881
TOBIAS BARRETO DE MENEZES COMO POETA
Parece-me ser.um fato notório a censura, que me fazem certos críticos da corte, pelo apreço em que tenho, como poeta e filósofo, o escritor, cujo nome serve de epígrafe a este juízo. Sou do número daqueles que reconhecem no público o direito de tomar contas de todos os atos de um escritor, e até de quem, como eu, não passa de um rabiscador chocho e inútil; e é esta a razão do mau vezo, que tenho adquirido, de não deixar encrespações sem resposta.
Creio, porém, não estar em erro, supondo que no ponto vertente, a censura carece de base e não passa de um abuso sem justificação. Não tenho repugnância em indicar os motivos públicos que me prendem ao escritor sergipano, e até as razões particulares que me levam a estimá-lo.
Aqueles são de ordem literária e já têm sido por vezes expostos, pertencendo à crítica averiguá-los.
As outras justificam-se por si mesmas: Tobias Barreto é meu patrício, foi professor de meus irmãos; sua família teve amizade à minha, e, sobretudo, tanto convivi e aprendi com ele, que o considero meu mestre nas letras.
Creio ainda que em tudo isto nada vai de censurável, e que a susceptibilidade dos chefes literários da corte não será tão delicada que se magoe com tão pouco. O que não posso tolerar ê que se propague um certo charlatanismo que nos leva a considerar qualquer figura mínima, que aparece, como uma estrela de primeira grandeza, que no céu do pensamento se fez e vive por si, não tendo relações com os mortais e só dependendo de seu próprio gênio!
Conheço muitos espíritos deste quilate, que do próprio escritor sergipano foram, em Pernambuco, imitadores, senão plagiários servis, e, em romarias literárias cá pela corte, apresentaram-se como grandes letrados e poetas, caídos do céu para maravilhar-nos, a nós outros, pobres diabos terrestres, humildes e obscuros.
Estou no meu direito em ter minhas predileções, e noto que elas mais se arraigam à medida que sofro os ataques dos invejosos e dos intolerantes. Tanto pior para mim... que mais irreconciliável me torno com meia dúzia de grandes sacerdotes literários cortesãos, dirão talvez!... Tanto pior para eles... que cada vez me parecem mais desfrutáveis e banais, digo por minha parte.
Mas vamos ao assunto. Apesar de todo meu entusiasmo tobiático, nunca tive ensejo de escrever sobre o grande sergipano na qualidade de poeta...[1]
Ainda bem que ele próprio ofereceu-me a ocasião, tendo a delicadeza de deixar que eu me encarregasse de preparar um prólogo para o primeiro volume de suas obras poéticas, que sai hoje dos prelos a esforços meus.
I
Foi na poesia justamente que eu tive repetidas vezes de pôr-me em desacordo com Tobias Barreto.
Não é que lhe negasse a grande espontaneidade, a força e a graça de seu lirismo. É que ele fechava um ciclo literário, era o último romântico de valor, e eu me deixava levar por outras ideias.
A escola por ele fundada no Recife, tive ocasião de a combater por vezes na pessoa de alguns ele seus sectários.[2]
Já se vê, pois, que o meu entusiasmo admite certas exceções e com o próprio poeta aprendi a ter o pensamento autonômico. Posso julgá-lo desassombradamente na poesia.
Tobias Barreto, mais conhecido como crítico e orador, foi e é, antes e acima de tudo, um poeta. Desde urna das mais velhas que conheço de suas produções, a CENA SERGIPANA de 1856, até ao AINDA E SEMPRE, deste ano, é o mesmo lírico, espontâneo e vivace, arroubado e natural. Releva ponderar que dos quinze aos trinta anos, durante um grande mortalis aevi spatium, só produziu poesias, fundou uma escola, e não se leva impunemente tanto tempo em comércio com as musas. Começou seus estudos superiores já um pouco tarde. No último decênio é que abandonou totalmente, ou quase, a poesia. Sua carreira poética divide-se em duas fases bem distintas: a sergipana (1854 — 1862) e a pernambucana ( 1862 — 1881)[3].
Na primeira muito produziu; mas quase tudo se perdeu devido isto ao seu gênio descuidoso, quase imprevidente.
Na segunda produziu ainda mais; grande parte de poesias perderam-se e as outras jazem ocultas nas páginas dos jornais. É o que acontece também à mor parte de seus trabalhos críticos e discursos, que andam esparsos, nunca os tendo senão limitadamente reunido em volumes[4]. É a razão por que só é bem conhecido, quero dizer, totalmente lido e apreciado em Pernambuco.
Da primeira fase restam-nos as poesias seguintes· CENA SERGIPANA, QUADRO HISTÓRICO, ANELOS, BEIJA-FLOR, MÃE E FILHO e fragmentos do JUÍZO FINAL. São as principais. Todas as outras pertencem à época seguinte. Não é inutilmente que assinalo estes fatos e lhes indico as datas.
É que pelo estudo dos trabalhos escritos por Tobias Barreto, quando ainda não tinha saído de Sergipe, quando nada mais sabia do que a fundo o Latim, conhece-se a natureza integral de talento poético, que ainda não tinha sido perturbado por leituras estrangeiras. Possuía já todos os méritos, sem alguns dos seus descuidos: um lirismo sadio, trescalando um perfeito amor à vida e à natureza, suave e límpido.
Cumpre estudar o poeta em relação ao seu país, sua raça, seu tempo e à natureza intrínseca de seu talento, e ver se ele foi um retardatário ou um espírito ávido de luz, se original e pátrio.
No tempo em que se desenvolveu, a poesia brasileira atravessava uma crise, estava em decadência. A primeira fase do romantismo religioso e caboclo, iniciada por Magalhães, Porto-Alegre e Gonçalves Dias, tinha passado; a segunda, sentimental e afetada, seguida por Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães e Junqueira Freire, já desgostava à nação. O sergipano, que era e é ainda, um homem robusto e sadio, não tinha sofrimentos túrgidos a contar, e foi naturalista, vívido e arroubado. Romântico na maneira de tratar a poesia na forma que se inclinava à de Victor Hugo, não o era no choro afetado e na descrença teatral. Também tem peças sentimentais, é certo; mas de um sentimento real, inspirado por sua má posição social: era e é paupérrimo e obscuro.
O autor dos DIAS E NOITES é um dos mais estrênuos e genuínos representantes do povo brasileiro. Nascido em Sergipe, na vila de Campos a 7 de Junho de 1839, teve uma dessas criações ao ar livre, ao contato direto com o povo. Campos é um ninho de lendas e tradições populares. Na poesia anônima da província ela ocupa lugar conspícuo.
Esse sopro popular da pequena vila das margens do rio Real, bafejado n’alma do poeta, nunca mais se lhe apagou.
A CENA SERGIPANA, os Tabaréus, os TROVADORES DAS SELVAS e a LENDA RÚSTICA mostram essa origem.
Por elas e pelos cânticos patrióticos, inspirados pela guerra do Paraguai, é que o poeta prende-se ao nosso povo; é um brasileiro no genuíno sentido da palavra.
Nem se diga que ele tem sido um terrível crítico de nossos erros e abusos. Razão de mais para ser brasileiro; porque deseja o nosso progresso. Sabe-se que o célebre romancista russo Ivan Turgenief há sido um acérrimo censor de sua pátria. Julian Schmidt lhe respondeu que a Rússia não pode ser um tão detestável país, desde que produziu um Ivan Turgenief!
É o que se pode dizer do Brasil: não é tão ruim pátria, já que pôde, entre poucos, criar um Tobias Barreto.
O poeta é um nacional em regra, um mestiço claro, em que predomina muito o sangue branco; a tez acusa essa mescla; mas o crânio é puramente caucásico; fronte espaçosa e alta, olhar perscrutador e vívido.
Tem o fogo dos homens de sua raça, a loquela forte e animada, a linguagem brusca e colorida, certa tendência para o pathos; é um mestiço e um meridional.
Ama o calor, devora café e só pode escrever envolto em fumaças.
E comodista, e, ainda em Sergipe, era um exímio tocador de violão e excelente cantor de modinhas.
Um traço mais: nunca pediu cartas de empenho, sempre teve ojeriza a empregos públicos; gosta de viver por si e em pequenas vilas; não pode ter obrigações aturadas e perdeu um ano na Faculdade de Direito, por acordar sempre em hora atrasada. É um descuidoso, um poeta. Isto pinta o seu gênio sem afetação, o seu tipo de homem do povo.
Juntai agora a tudo um caráter severo, uma sinceridade de amigo a toda prova, um amor filial como não me foi dado apreciar outro, uma independência e altivez sempre prontas contra os grandes e potentados, e tereis a face moral de sua natureza[5]. É um homem de bem, e só podia ser o poeta da verdade. Nada de convenções e atitudes teatrais. É simples e lhano. Vi-ο quase louco quando perdeu sua mãe, que ele fora buscar a Sergipe e que acabou os dias em sua casa.
Não posso compreender a poesia num homem, cuja vida não tem também alguma coisa de original e poético; não compreendo como um pacato filho da corte, empregado de secretaria, indivíduo que nunca lutou, nunca sofreu, possa ser um poeta. Este manifesta-se logo em seu modo de ser e de viver.
Que Tobias, porém, o filho de um escrivão pobre, o filho do povo, que hauriu na infância as lendas da plebe, que saiu da casa paterna aos dezesseis anos para ganhar a vida, ensinando primeiras letras, música e latim; que aos vinte e três atirou-se para o Recife, e, sem recursas, aprendeu consigo os preparatórios em um ano; que ali, por um esforço hercúleo, estudou a fundo línguas e ciências frequentando a Faculdade e lecionando; que depois de formado, longe de aceitar empregos públicos, o seu primeiro cuidado foi romper com o Sr. de Vila-Bela e outros pseudo-aristocratas de Pernambuco que o quiseram catequisar·; que um tal homem, que há sofrido, seja um poeta eu compreendo.
E preciso ter lutado, se não tanto como ele, um pouco também; é preciso, antes de tudo, conhecer 0 Povo e ter visto o país.
A literatura cortesã é uma planta de estufa; uma flor num vaso, estiolada e murcha.
Tobias Barreto nunca estudou diretamente a poesia de nosso povo. Saturou-se porém dela e conhece-a por instinto.
Em Sergipe quando ele apareceu, a Poesia era quase nula e só tinha quatro cultores de algum merecimento: Pedro de Calazans, José Maria Gomes de Souza seu irmão Constantino e Bithencourt Sampaio.
Tobias ultrapassou-os muito. Para prova-lo basta citar as duas pequenas peças CENA SERGIPANA e o BEIJA-FLOR.
As poesias puramente sergipanas revelam-nos sua aptidão lírica, uma das mais pronunciadas do Brasil. O poeta é todo objetivista; não pranteia; diz o que viu e sentiu, e não assume ares de filósofo, de raciocinador, nem tampouco de carpideira. Uma cousa fica, desde logo, provada, e é que o autor dos DIAS E NOITES já em Sergipe, antes de saber o Francês e ler Victor Hugo, tinha o mesmo estilo que sempre teve e ainda hoje conserva na poesia. Seu modo de dizer é aquele, é natural. É alguma cousa que se parece com a forma do Victor Hugo lirista nos bons tempos. Depois é que Tobias tomou conhecimento do grande mestre, e achando-se a gosto naquela corrente da poesia, deixou-se ir por ela abaixo exagerando-se um pouco. Foi isto em 1861 nos meses que passou na Bahia, antes de ir a Pernambuco em 1862. [6]
II
O estado intelectual do Recife nesse tempo era lastimável: uma mescla de carolice bebida em Ventura de Raulica e Taparelli, e de palavrosidade metafísica, tomada de Esquiros, Pelletan e Quinet... Tal a face da Academia.
A poesia era um prolongamento dos tacapes de Gonçalves Dias e da choradeira de Álvares de Azevedo.
Neste meio saltou Tobias com vinte e três anos de idade. Ruminou a bordo uma das suas melhores produções: À VISTA DO RECIFE.
Desde logo as cousas se acharam mudadas; aquele modo de dizer másculo e irriante era novo.
A chorominga morreu desde aí; os entusiastas tomaram o partido do sergipano. Castro Alves, muito mais moço, e aparecido posteriormente como poeta do gênero, era do número deles. Os dous foram amigos. Tobias sempre o distinguiu dentre a turbamulta e dedicou-lhe os lindos versos — OS OITO ANOS. Castro Alves dedicou-lhe O RIO E O· GÊNIO. Mais tarde, por intrigas e questões de bastidores, brigarem os dous. A luta foi renhida e escandalosa, por causa de duas atrizes.
Na questão puramente literária e crítica não foi para surpreender que o sergipano contundisse o baiano, que, se tinha, como fui sempre dos primeiros a reconhecer, um apreciável talento poético, não tinha estudos feitos.
Formaram-se dous partidos em torno dos dous poetas. Logo em começo, a nova escola dava o espetáculo de uma luta intestina. Como era natural, os dissidentes e os sectários das antigas maneiras saíram a campo, e Tobias foi horrivelmente apedrejado, o que o fez dizer:
“De tantas pedras que atiram-me
Hei de fazer um altar...”
Em 1867, Castro Alves retirou-se do Recife para a Bahia e depois para o Rio e S. Paulo. Teve então a fraqueza de aceitar as recomendações de José de Alencar e do Sr. Machado de Assis! Castro Alves não era um verdadeiro lutador; não tinha certo pessimismo indispensável ao tempo de hoje. Fraquejou, e deixou-se empolgar por um homem da têmpera do Sr. Machado de Assis, virtuose literário, enroupado à francesa... Desde esse dia o jovem poeta baiano deixou de ser um homem de combate, tinha de retirar-se ou morrer. Deu-se a última hipótese.
A época de 1862 a 1870 no Recife, ao influxo de um entusiasmo de súbito desenvolvido, foi um período de vida e movimento literário. Ali apareceram poetas de grande merecimento: Tobias Barreto, Castro Alvos, Guimarães Júnior, Plínio de Lima, Victoriano Palhares, Carneiro Vilela, Franklin Távora, Generino dos Santos, José Jorge, Altino de Araújo, e muitos outros.
Varela lá também apareceu durante um ano e distinguiu-se por suas singularidades. Se não deixou-se ir pela corrente geral, não teve força para chamar os outros a si. Era um período guerreiro para o país e a poesia acostumou-se ao retintim das armas. Ouvimos então os nossos mais belos hinos patrióticos. O Recife era a passagem de todos os batalhões do norte; o ardor marcial era geral. Tobias recitou os Voluntários Pernambucanos, A CAPITULAÇÃO DE MONTEVIDÉU, OS LEÕES DO NORTE, EM NOME DE UMA PERNAMBUCANA e muitos outros cânticos marciais.
A princípio a guerra tinha sido mal recebida em Pernambuco, sempre ferido no segundo reinado; as festas públicas e os brados dos poetas acabaram por acordá-lo. Tobias foi o Tirteu do movimento.
Em 1870, quando se acabou a guerra, já ele estava entregue a outra ordem de ideias, mas foram ainda chamá-lo para saudar os que regressavam da campanha, e recitou A VOLTA DOS VOLUNTÁRIOS, uma de suas mais ruidosas poesias. Aí o poeta já estava um pouco descrente e seu entusiasmo bastante arrefecido; entre outras notas, ouviram-se estas:
E oxalá que em algum dia,
Tendo saudades da morte,
Não clameis: “feliz a sorte
Dos que não voltaram cá!..."
Foi assim; muitos voluntários arrependeram-se de ter voltado à pátria! Neste país, onde, segundo o nosso poeta, o sol é popular e preside ao trabalho, onde
— O sol que nos conforta
É nosso concidadão...
a natureza é grande, mas deixou pouco lugar para o homem. Se tivermos uma nova guerra no Rio da Prata, duvido muito que ela seja acolhida com o mesmo entusiasmo de 1864.
Antes de prosseguir no estudo do caráter poético de nosso autor, é preciso dar a conhecer o que ele mesmo naquele tempo pensava sobre a poesia. Para aqui transcrevo umas palavras por ele escritas num volume de versos de Paes de Andrade. Aí revela-se a sua intuição daquele tempo. Disse o poeta:
“Passa como uma verdade incontestável que a poesia, a poesia lírica digna deste nome, é a expressão das lutas da alma humana com o enigma do seu destino.
“A felicidade indefinita, que o homem aspira, é a incógnita de um problema sombrio, diante do qual encontram-se perpetuamente embebidos o padre com todas as suas preces, o filósofo com todos os seus cálculos, o poeta com todas as suas queixas. A poesia impregnada dos perfumes da religião e das luzes da filosofia, torna-se um alimento suavíssimo, um favo de consolação para os corações solitários, que não profanam a santidade do padecer com a brutalidade dos prazeres insensatos.
“Deste modo, falseia o entender daqueles que dão, que empregam como caráter da poesia a criação de um mundo à parte, fantasmagórico, impossível. Assim como já não é dado ao filósofo recostar-se nas hipóteses, não é dado ao poeta apegar-se aos vagos sonhos dos espectros fumegantes da imaginação febril.
“A poesia de hoje, a poesia do século XIX também precisa da observação; o poeta deve ser investigador; ele também pertence à grande aristocracia pensante, a esse grupo de cabeças cheias de todas as auroras do futuro, que têm os ouvidos atentos a todos os silêncios misteriosos, e as frontes batidas por todas as vagas do infinito. Mas no homem que pensa, eu quero ver também o homem que obra. Longe estou de supor que para o culto do pensamento, como pretende o Sr. Eugène Pelletan seja mister a instituição de uma classe brahmínica, sagrada. Seria o sacerdócio da ociosidade. O gênio, qualquer que seja a sua manifestação, deve entrar, deve aparecer como parte ativa nos trabalhos, nas lutas, nos progressos da humanidade. Dizer ao poeta, ao filósofo, ao pensador em geral —, nós te sustentamos, o teu trabalho é todo íntimo —, importa dizer-lhe: divorcia-te da sociedade, renuncia às doçuras da família, aos encantos da mulher; nos iremos te consultar na gruta do teu pensamento, piaga da civilização.[7]
“Não sou do número daqueles que amam a poesia como um minuto de prazer, um entretenimento de ocasião, uma embriaguez de todas as, paixões, uma feiticeira noturna que se ocupa de introduzir sonhos de voluptuosidade debaixo do travesseiro da donzela.
“E é a que mais vemos, a que mais temos, a que mais agrada em nossa terra, linguagem da devassidão, linguagem do lenocínio, poesia sensual, ditirâmbica, imoralíssima, pagã.
“Lede os modernos liristas amorosos, e vede: as mulheres aparecem quase nuas, desgrenhadas, preguiçosas ou ninfomaníacas; a natureza flutua em mar de volúpias, a brisa é voluptuosa, a tarde é voluptuosa, a flor é voluptuosa, a estrela é voluptuosa, tudo é voluptuoso. Deus mesmo não escapa, tem os seus momentos de sensualidade!! E depois desta orgia intelectual, aí temo-los caídos em uns sentimentos indizíveis, ou seja o nosso Cismar, ou o rêverie dos franceses, ou o Sehnsucht dos alemães, que todos querem dizer preguiça, essa estupidez da ação. Debalde procuraremos em poesias desta ordem o sentimento da vida, o sentimento das cousas: “Lacrymæ — rerum. Nelas a beleza, sobretudo, a beleza feminina é uma esquisitice ridícula. Quando não é um anjo que vem à terra sem um motivo plausível, é uma mulher microscópica, insignificante, uma descendente bastarda da rainha Mab, metida num froco de escuma ou na dobra de uma nuvem, que ao muito poderá servir para amante de uma criança, mas nunca para ser a doce consolação de um homem, no sagrado aperto das mãos, na santa união dos destinos: Consors.
“E não finda aí. Se acontece que seja real o objeto de suas adorações o poeta, metaforicamente choroso, em vez de apresentar aos olhos de sua querida as delicias, a grata existência, a suavidade dos laços da família, procura desapertar-lhe a charpa dos santos deveres, insinuando-lhe tendências perigosas na impetuosa insolência de uma poesia animal, balda de prazer para o público sensato e sorrateiramente prejudicial à sociedade. Com efeito ao homem sério, que tem o gosto do belo e do bom, nada importam, nada deleitam versos que só tem beijos, que falam de mais beijos do que os milhares e centos de milhares que Catulo pedia à sua Lésbia. Da mi basia mille, deinde centum. Vemos, destarte a poesia prestar-se aos apetites vergonhosos. Desejos que degradam, palpitações criminosas exprimem-se com toda a audácia da libertinagem. O bom senso indigna-se de ver a mais bela das artes, a mais doce das linguagens demitida do seu mister honroso e sublime.
“Seja qual for o vigor de seu talento, e seja qual for a grandeza de suas concepções, o poeta é sempre um homem, e como tal sujeito às leis que regem a natureza humana.
“Observa-se, entretanto, que na época atual quem faz uma quadra, uma tirada dessas bagatelas que por aí facilmente correm com o nome de poesia, crê-se logo revestido de uma certa imunidade moral. E é possível chegar um dia em que os gênios reclamem também a imunidade legal —, por que não?
“Quando se lhes desculpam as suas tolices, porque são poetas, a sua desonestidade, porque são poetas, é de esperar que muito breve se lhes desculpe também o furto, porque são gênios, defloramento, porque são gênios, e até o assassinato, porque são gênios. Falemos franco.
“A poesia rotineira dos nossos dias é a deserção dos princípios morais; é Deus tratado com um certo tom de atrevida familiaridade; é a mulher metricamente seduzida, convidada para presidir ao grande banquete da vida licenciosa; é a criação representada como uma cortesã imensa, cambaleando bêbada no espaço, de taça em punho, atirando ao infinito a gargalhada do deboche.
“O poeta, fazendo o inventário da natureza de que ele se mostra rei e senhor, não esquecendo nunca — a brisa que suspira, a florinha que se inclina, o regato que murmura, a onda que beija a praia, etc., etc., tem o ar de dizer a qualquer bela que se lhe antolhe, como Satanás a Jesus: Tudo isto é meu, e eu t’o dou se te curvares aos meus desejos. É o requinte do desaforo; não tem outro nome. No livro de um poeta deve-se tomar as dimensões de seu crânio e palpar as dores do seu coração. É bem pequenina a cabeça que não aguenta uma ideia nova, grandiosa e aproveitável; bem acanhado o peito que apenas pode conter a mesquinhez de triviais amores. Sufocar, no curso da vida, todas as paixões aviltantes, e deste tormento, dignamente doloroso, fazer brotar os sentimentos nobres que determinam as nobres ações; provocar, interpelar a natureza, cobri-la com um olhar indagador, exigindo-lhe os segredos da sabedoria, e ter em resposta o que outrora ao santo leproso da Idumeia o abismo respondia — non est in me —; amar, procurar unir-se, purificar-se diante de Deus na chama celeste de uma alma de mulher, tudo isto é o assunto da grande, da verdadeira poesia, porque é ao mesmo tempo o assunto da vida do homem de bem.
“É de notar a maldição contínua lançada pelos poetas contra os homens positivos. E quem são os homens positivos? Serão aqueles que, ocupados no seu trabalho, não se demoram um instante para escutar as harmonias fantásticas de algum sonhador alemão, para ler uma página de A. Musset e apreciar poeticamente descritos os trejeitos e coleamentos de alguma espanhola voluptuosa, querendo morder como uma fera na estação da berra; para medir com Goethe os pés do hexâmetro no dorso nu de cortesã romana, tudo isto em verso, tudo isto era livros que se espalham, que se louvam, que se animam, que se beijam... serão esses? Oh! então os homens positivos são os homens honestos.”
É uma de suas boas páginas de prosa; o poeta foi sempre mais ou menos fiel a este programa.
Bem se vê, que ele nada tinha da languidez e do epicurismo burguês da poesia imoral. Sua musa nunca teve necessidade de desenhar-nos alcouces, barregãs, crimes esverdeados, erotismos perpétuos, afrodisíacas pinturas.
Andava distraído com o entusiasmo estético, o sentimento da natureza, o patriotismo e o amor. Dos poetas portugueses, parece-se com João de Deus, de quem tem mais de um traço, e dos brasileiros, com Luiz Delfino, de quem tem a elevação das notas, ainda que os exceda a ambos.
É um cantor altíloquo.
Em 1835, escrevia ele as palavras transcritas, condenando as imoralidades do romantismo. Dez anos depois Guerra Junqueiro, como prólogo da MORTE DE D. JOÃO, pôs alguma cousa de parecido e como quem fazia uma grande revelação.
Tenho sempre associado o nome de Castro Alves ao de Tobias Barreto. Importa mostrar as diferenças entre ambos. Considero-os os dons melhores representantes do lirismo hugoíno no Brasil; ambos têm o tom elevado, que os fez denominar de chefes da escola condoreira. A verdade, porém, deve ser dita com franqueza: tal gênero de poesia nas mãos dos medíocres transformou-se num gongorismo petulante e incorrigível, numa cascata de palavras retumbantes. Era um coaxar incômodo para o ouvido, esterilizador para as ideias. Tobias, nas suas poesias naturalistas, nas amorosas, e nas inspiradas pelo sentimento artístico foi sempre elevado, mas simples; nas ditadas pelo sentimento patriótico, às vezes, foi um pouco exagerado por exigência do assunto.
Castro Alves o foi ainda mais; Tobias o excede na simplicidade e naturalismo.
Um inspirou-se em a natureza, o outro mais no estado de nossa vida social; um cantou os TROVADORES DAS SELVAS e o outro o NAVIO NEGREIRO, um o Gênio da Humanidade e a Lenda Rústica, o outro O Livro e a América e Pedro Ivo. Não quer isto dizer que Tobias não se inspirasse também no Brasil; inspirou-se e muito, como nos Tabaréus e na Vista do Recife, mas pelo lado popular e patriótico.
Tobias é mais lírico, mais suave, mais terno, quando é amoroso; mais crepitante, quando encara os grandes assuntos. Castro Alves mais incorreto, mais palavroso, mais afetado; este dirige-se aos míseros cativos de preferência; aquele aos homens livres, principalmente. As poesias de Castro são mais para serem recitadas e as de Tobias para serem lidas.
Um é o segundo elo da cadeia, de que o outro foi o primeiro e Victoriano Palhares o terceiro. O poeta das ESPUMAS FLUTUANTES foi tido por chefe, por dous motivos principais: o passar-se para, o Rio e S. Paulo e o ter publicado logo o Seu livro. Não esqueçamos, porém, que ele nada teve de inovador, não passando de um sectário de Tobias. Esta é a justiça da história.
Tenho todas as provas deste fato no exame das produções dos dous poetas anteriores a 1862. Tobias começou antes e continuou ainda depois; porquanto, quando ele veio a romper com o Victor Hugo da decadência transformado em profeta, filósofo e político, Castro Alves já dormia o sono do sepulcro. O Victor Hugo das ODES E BALADAS e das ORIENTAIS continua a ser ainda hoje o mesmo aos olhos do poeta do AINDA E SEMPRE. O rompimento foi muito posterior à guerra alemã, quando o sergipano dedicou-se ao germanismo. Foi limitado às extravagâncias do vidente, como se pode ver no artigo AUERBACH E VICTOR HUGO[8]. Com estas considerações tenho em mira firmar a verdade dos fatos e não menosprezar, veja-se bem, o merecimento do poeta baiano em que sempre verei um grande talento, que muito fez, e ainda mais se teria avantajado, se a morte o não houvesse retirado da arena de nossas lutas e se ele quisesse estudar. Deve ser julgado com a verdade e não precisa de ser cercado de uma auréola falsa para ter valor aos nossos olhos. E oxalá todos lhe rendessem o preito desinteressado da justiça. Desta é que precisamos todos, os mortos ainda mais que os vivos.
Tobias Barreto que, como poeta, tem trabalhado no vasto período de vinte e oito anos, não tem convenientemente defendido o seu lugar, e, nem sequer, reuniu jamais suas produções em livros. Os que, porém, vivem em Pernambuco sabem perfeitamente que ele tem sido um trabalhador infatigável no jornalismo e tem tomado parte ativíssima em todas as lutas literárias ali travadas. Com razão disse um dos primeiros sábios deste século o grande Ernesto Haeckel, que ele é zur Race der grossen Denker gehoerig. Sirva este insuspeito testemunho de eterno anátema contra os pequenos zoilos que mordem a sombra do poeta. Castro Alves representou, no terreno da poesia, um papel que foi dele: o de propagador na Bahia, Rio de Janeiro e S. Paulo, onde criou adeptos, do movimento iniciado por Tobias no Recife.
Tal a sua missão histórica que deve ser consignada e que ninguém se lembra de lh’a tirar.
III
Vejamos por último a natureza íntima do talento poético do solitário da Escada. O livro que sai agora dos prelos, divide-se em cinco partes, contendo cinco categorias diversas de inspirações: naturalistas, amorosas, patrióticas, estéticas, e satíricas. Esta divisão não é caprichosa; origina-se da qualidade mesma das composições. O poeta nunca teve a poesia como uma profissão de vida. Tem-na como tal, certos monomaníacos, que entendem, lá de si para si, que são poetas, por graça de Deus ou do diabo; que julgam ter necessidade de fazer versos, como outros julgam que não podem viver sem purgar-se a miúdo. É uma cousa terrível a mania do versejador de profissão, que se concentra para acumular rimas e rimas e compor longas máquinas de martírio, verdadeiras polés para o leitor, como a Independência do Brasil ou a Confederação dos Tamoios. Tobias Barreto nunca fez planos, nem cogitou em vastas obras. A poesia para ele era uma questão de festa, de alegria, de divertimento.
Nessas ocasiões poetava, como um pássaro canta ao clarão matinal. Tal o verdadeiro poeta, aquele que só escreve para vazar no papel alguma cousa que nele trasborda, ou seja a tristeza, ou o entusiasmo. Tobias Barreto é um desses destemidos
“Corações acrisolados
No brasileiro sentir...”
é um desses meridionais, sonhadores, descuidosos, que pegam fogo por qualquer cousa.
Qualquer que seja a doutrina que se professe sobre a natureza da poesia, não se lhe pode negar que ela é a vida em geral, a natureza e o homem, interpretados pelo sentimento. As grandes criações da humanidade não passam de quatro —: a ciência, a filosofia, a religião e a arte.
A ciência é o universo interpretado pelo raciocínio e pela observação; a filosofia é a sua síntese racional; a religião é a origem, a causa primeira, o desconhecido em face de nossa pequenez e do acanhado de nossos conhecimentos; a arte em geral e a poesia, em particular, vem a ser tudo isso de que se ocupam as outras, mas tudo diante das emoções que em nós se despertam pelo espetáculo das cousas, pelas peripécias da vida. A poesia é isto. Como tal, ninguém a sentiu melhor do que o poeta dos DIAS E NOITES.
Dessa sua qualidade essencial originou-se justa- mente o seu maior defeito, que consistiu sempre e sempre em baratear o seu talento. É para impressionar o entusiasmo enorme de que Tobias deixava-se apoderar diante de uma atriz ou de um cantor medíocre. A fonte perene do sentimento é nos poetas, às vezes, um inconveniente: o arderem não raro por uma cousa insignificante. Em tudo acham um encanto, um motivo para um trasbordamento. Tobias é destes; tudo a seus olhos toma proporções excepcionais.
O Brasil é a jovem pátria de heróis, a Tamborini tem frases ele ouro na boca; o rebequista Muniz Barreto é o gênio que ser maior e morrer; o Recife é a cidade das galhardias, da raça das Romas tombadas e das Babilônias em pó...
Ao través do sensório do poeta as cousas e os fatos se avolumam; o inspirado só pode cantar o que é grande, e, quando o objeto é pequeno e vulgar, a imaginação supre o que lhe falta em grandeza.
É um exagero sublime; mas sempre um exagero. Bem haja aos poucos que dele são capazes; porque são os verdadeiros poetas. A arte só é possível sendo vaga, geral, indeterminada, e, para tudo dizer numa palavra, sendo em certo sentido falsa. A poesia é sempre falsa cotejada com a realidade, que lhe está sempre abaixo ou acima; mas é sempre verdadeira cotejada com o estado emocional do poeta, que é, até certo ponto, um visionário.
Tobias Barreto, eu o julgo admirável nas suas poesias gerais e naturalistas, como o GÊNIO DA HUMANIDADE, a CARIDADE, a LENDA RÚSTICA, os TABARÉUS, os TROVADORES DAS SELVAS, OITO ANOS, a POLCA, e outras. Aí seu talento é realista, objetivista.
Nas poesias amorosas, ainda o aprecio quase tanto por ser sempre lúcido e verdadeiro.
As inspiradas pelo sentimento estético desperto pelos espetáculos e festas, a que assistia, me agradam especialmente como modelos de força e de graça, como tipos de metrificação.
Os cânticos patrióticos são alguma cousa de original, que não encontra muitas congêneres em todas as literaturas. Aquele falar tem algo de desusado; são frases vibrantes, que se enterram como dardos acerados; ali há a limpidez das espadas, o silvo das balas e o troar dos canhões. Tobias criou e matou este gênero; depois dele é uma inocência querer tenta-lo de novo. E, todavia, não são para mim as suas melhores produções; acho-o ainda superior nas primeiras.
As satíricas são em pequeno número; o poeta devia cultivar mais amiúde o gênero; porque, pelo REI REINA E NÃO GOVERNA se conhece que ele pode fazer muito ali.
As artes vivem essencialmente pelo prestigio da forma; o estilo é quase tudo em poesia. Neste ponto, o poeta da LENDA RÚSTICA tem uma feição própria, consistente em um certo laconismo forte e rútilo. Pode-se bem vê-lo na seguinte estrofe de 1861 de um QUADRO HISTÓRICO sobre a guerra holandesa; cito de proposito esse tópico tirado das composições mais antigas:
“Barreto diz: — Somos poucos
De encontro ao troço holandês;
Que vamos fazer, oh loucos?!
Morrer inglórios, talvez!
— General, brada Vieira,
Foi minha a ideia primeira,
O passo primeiro, é meu...
Morreremos neste extremo...
— Camarão ruge: não temo!
Henrique Dias: nem eu!”
Eis aí todo um complicado diálogo comprimido numa estrofe. Em todas as suas poesias, além de tudo, o nosso autor nunca usou de uma só palavra peregrina, cujo significado se tenha de ir procurar no dicionário; seus termos são simples e vulgares; é a língua singela e rutilante do povo.
Eis aí o que foi e o que é Tobias Barreto como poeta: um lirista brilhante pela imaginação e comovedor pelo sentimento.
Paulina Moser, poetisa alemã, nos belos versos que lhe dirigiu, diz que ele no alemanismo achou o gênio que o há de levar à imortalidade:
“Nationalstolz auf Wahrheit gebaut
Wollt allemal Er und Achtung gebührt;
Du, Meneses, hast im dem Deutschtum geschaut
Den Genius, der Dich zur Unsterblichkeit führt.” [9]
Eu o creio bem; mas ainda quando o teuto sergipano não houvesse escrito uma só palavra como prosador, seu nome ficaria garantido por suas produções poéticas; seria sempre lembrado como o chefe de uma importante escola nacional de poesia.
Pouco importa que tenham tirado para outro a glória da iniciativa. — Sua antecedência de mais de oito anos será um dia reconhecida.
PARTE PRIMEIRA
IMPESSOAIS E NATURALISTAS
O GÊNIO DA HUMANIDADE
Sou eu quem assiste às lutas,
Que dentro d’alma se dão,
Quem sonda todas as grutas
Profundas do coração:
Quis ver dos ecos o segredo;
Rebelde, sobre um rochedo
Cravado, fui Prometeu;
Tive sede do infinito,
Gênio, feliz ou maldito,
A Humanidade sou eu.
Ergo o braço, aceno aos ares,
E o céu se azulando vai;
Estendo a mão sobre os mares,
E os mares dizem: passai!...
Satisfazendo ao anelo
Do bom, do grande e do belo,
Todas as formas tomei:
Com Homero fui poeta,
Com Isaías profeta,
Com Alexandre fui rei.
Ouvi-me: venho de longe,
Sou guerreiro e sou pastor;
As minhas barbas de monge
Têm seis mil anos de dor:
Entrei por todas as portas
Das grandes cidades mortas,
Aos bafos do meu corcel,
E ainda sinto os ressábios
Dos beijos que dei nos lábios
Da prostituta Babel.
E vi Pentápolis nua,
Que não corava de mim,
Dizendo ao sol: eu sou tua,
Beija-me... queima-me assim!
E dentro havia risadas
De cinco irmãs abraçadas
Em voluptuoso furor...
Ânsias de febre e loucura,
Chiando em polpas de alvura,
Lábios em brasas de amor!...
Travei-me em lutas imensas,
Por vezes cansado e nu,
Gritei ao céu: em que pensas?
Ao mar: de que choras tu?
Caminho... e tudo o que faço
Derramo sobre o regaço
Da história, que é minha irmã:
Chamem-me Byron ou Goethe,
Na fronte do meu ginete
Brilha a estrela da manhã.
E no meu canto solene
Vibra a ira do Senhor:
Na vida, nesse perene
Crepúsculo interior,
O ímpio diz: anoitece!
O justo diz: amanhece!
Vão ambos na sua fé!...
E às tempestades que abalam
As crenças d’alma, que estalam,
Só eu resisto de pé!...
De Deus ao sutil ouvido
Eu sou como que um tropel,
E a natureza um ruído
Das abelhas com seu mel,
Das flores com seu orvalho,
Dos moços com seu trabalho
De santa e nobre ambição,
De pensamentos que voam,
De gritos d’alma, que ecoam
No fundo do coração!...
( 1866 )
OS TABARÉUS
A noite bole-me n’alma,
E eu sinto não sei que pena...
Amor de minha morena?
Quebrantos do seu olhar?
Grossas auras repassadas
De perfumes e lembranças,
Carregam-me as esperanças,
Eu só me vingo em chorar...
Chorar? que bem fazem lágrimas?
À folha seca abrasada
Não vale a fresca orvalhada...
Chorar!... eu nunca chorei:
Ergo a fronte, aparo o raio,
Desgraçado e sempre altivo,
Não morro, porque não vivo;
Não choro, porque não sei.
Não sei! quem é que não sabe
Numa lágrima sentida
Aliviar-se da vida,
Que pesa no coração?
Não sabes como são tristes
Os olhos de quem não chora,
Como o teu rosto descora
No calor deste sertão?
Deste sertão! é bem duro
Soltar inútil queixume,
Amar, sentir um perfume
De que não se sabe a flor...
Não me recordes, não fales
No meu rosto descorado,
No meu olhar desvairado:
Não bulas com a minha dor.
*
* *
Interrompendo os lamentos,
Calaram-se. Ambos atentos
Ouvem como que um tropel,
Que se aumenta, que se engrossa...
A poucos passos da choça
Nitrio, fogoso corcel.
E a todos, que ali se achavam,
Guarde-os Deus! não me esperavam!...
Disse um moço que esbarrou;
De casa aqui numa hora!
São rasgos de quem namora....
Palavra dada, aqui estou!
Consta-me que há muito arrojo
Nos festejos de São João,
Vim hoje ver a novena
E conversar com a morena
Que trago no coração.
Conversar?! e vim disposto
A carregá-la também
Nas ancas do meu murzelo,
Demônio que só eu selo,
Só eu monto e mais ninguém...
*
* *
Olharam-se todos. Tu és um danado!
Disseram. E o moço já estava de pé:
Num cepo de angico, depois assentado,
Contava proezas, mostrando quem é.
Conversa o terrível, que sabe de tudo,
De espectro e fantasma que à noite se vê:
Um diz: é mentira! O campônio peludo
De um pulo s’erguendo, responde-lhe: o quê?!
A noite formosa do Santo Baptista
Tem muitas virtudes, sustenta o rapaz.
Eu conto uma história da bela entrevista
Que têm os valentes com o diabo sagaz.
Peguei, como ensinam, de um galho de arruda,
Depus no caminho que encruza-se ali:
Gritei pelo nome da fera sanhuda,
E ao cheiro da erva com poucas eu vi....
Em negro cavalo de arreios de fogo
Figura medonha me diz: aqui estou!
Senti-me medroso de entrar neste jogo.
Não sei... de repente meu sangue esquentou.
Nos olhos, no punho correu-me a coragem;
Que estava montado no meu alazão;
Cravei-lhe as esporas, cheguei-me à visagem,
Tomei-lhe a distância, meti-lhe o facão.
E o ferro tinia no corpo de pedra,
Faíscas enormes caíam no chão;
Eu cego bradava: comigo não medra!
Virou-se num porco, meti-lhe o facão.
Virou-se... virou-se.... piquei o cavalo,
Bem alto dizendo-lhe: é como quiser!...
Lancei-me por cima, queria pegá-lo...
E esta?!... O diabo virado em mulher!
*
* *
Meto o facão na bainha;
Pergunto-lhe: e quem és tu?
D’alto a baixo era Joaninha,
Por alcunha — Pucassu.
Mas aqui havia engano:
Como é qu’essa meretriz,
Que morreu, há mais de um ano,
De cousa que não se diz,
Vinha encontrar-se comigo?
Não acho a causa. — Só sei
Que ante a cara do inimigo
Fui firme, não recuei.
Não fugi, não tive medo
Das astucias infernais.
Ela pediu-me segredo,
Por isso não digo o mais.
(1866 )
O BEIJA-FLOR
Era uma moça franzina,
Bela visão matutina
Daquelas que é raro ver,
Corpo esbelto, colo erguido,
Molhando o branco vestido
No orvalho do amanhecer.
Vede-a lá: tímida, esquiva...
Que boca!... é flor mais viva,
Que agora está no jardim;
Mordendo a polpa do lábio,
Como quem suga o ressábio
Dos beijos de um querubim!...
Nem viu que as auras gemeram,
E os ramos estremeceram
Quando um pouco ali se ergueu...
Nos alvos dentes, viçosa,
Parte o talo de uma rosa,
Que docemente colheu.
A fresca rosa orvalhada,
Que contrasta descorada
De seu rosto a nívea tez,
Beijando as mãozinhas suas,
Parece que diz: nós duas!...
E a brisa emenda: nós três!...
Vai nesse andar descuidoso,
Quando um beija-flor teimoso
Brincar entre os galhos vem,
Sente o aroma da donzela,
Peneira na face dela,
E quer-lhe os lábios também.
Treme a virgem de surpresa;
Leva do braço era defesa,
Vai com o braço a flor da mão,
Nas asas d’ave mimosa
Quebra-se a flor melindrosa,
Que rola esparsa no chão.
Não sei o que a virgem fala,
Que abre o peito e mais trescala,
Do trescalar de uma flor:
Voa em cima o passarinho...
Vai já tocando o biquinho
Nos beiços de rubra cor.
Λ moça, que se envergonha
De correr, meio risonha
Procura se desviar;
Neste empenho os seios ambos
Deixa ver: inconhos jambos
De algum celeste pomar!...
Forte luta, luta incrível
Por um beijo! É impossível
Dizer tudo o que se deu.
Tanta cousa, que se esquece
Na vida! Mas me parece
Que o passarinho venceu!...
Conheço a moça franzina
Que a fronte cândida inclina
Ao sopro de casto amor:
Seu rosto fica mais lindo,
Quando ela conta sorrindo
A história do beija-flor.
( 1857 )
CENA SERGIPANA
Sim; nas almas das donzelas
Toda a graça se contem ·
Quando eu brincava com elas,
Eu era virgem também...
Por tardes de belo estio
Via-as despir-se no rio,
Não tinham pejo de mim...
Meus olhos se deslumbravam
De formas que se arqueavam
Como liras de marfim.
Quando a dona do vestido,
Que eu me apressava em levar,
Dizia: como é sabido!
Vem trazer para me olhar...
Vendo-me então pequenino:
Quem faz conta de um menino...
Criança, de que te influis?!
Gritavam corpinhos úmidos;
Esta aqui — de seios túmidos,
Aquela — de olhos azuis.
Nem já me lembra qual era
Que em mim se arrimando então,
Meu noivo, dizia: espera!
Outras vezes: meu irmão!...
Como acabava depressa
Tanto amor tanta promessa
De coração virginal!...
Ah belos tempos ditosos
Em que os enganos são gozos
E os beijos não fazem mal!
Um beijo é todo o segredo
Deposto na linda mão;
Milagre!... pomba sem medo,
Brincando com o gavião...
Meio vergada em desleixo,
Com a inocência em que a deixo,
Na areia imprimindo o pé,
Com certa graça fraterna,
Sufralda, descobre a perna,
E me olha e diz: o que é?!...
Fica-lhe a boca entreaberta,
Dizendo sorrindo assim ·
Meu olhar se desconcerta...
Por que não foge de mim?!
Tomo-lhe as mãos pequeninas,
Esguias, brancas, divinas,
E num ligeiro abraçar,
Volvendo o corpo em contrário,
Rebenta-se-lhe o rosário,
E ela se põe a chorar...
( 1850 )
OS TROVADORES DAS SELVAS
Na porta da choça, que aspira a baunilha,
Mistura-se a lua com várias feições
De moças que escutam rapaz que dedilha,
Rapaz que dedilha silvestres canções.
Da prima aos tenidos, ao som da cantiga,
Dançando a mais bela se alquebra e sorri,
E o canto repete-lhe: assim, rapariga,
Assim, rapariga, desfolha-te aqui!
Quem disse, meninas, que lá nas cidades
Tudo era beleza? prorrompe o cantor:
Mentira... não passam de fofas vaidades,
De fofas vaidades, de espinhos em flor.
Ao bafo sonoro da música em ânsias,
Que embaça dos rostos a tez de cristal,
La vai flutuando, perdendo as fragrâncias,
Perdendo as fragrâncias, a flor virginal!
E os seios que pulam em surdas arfadas,
Das harpas serenas ao doce arquejar,
De sons e suspiros as roupas tufadas,
As roupas tufadas, querendo voar?...
São elas que estreitam-se em braços delgados,
As moças, as belas, as virgens de lá...
Corpinhos ligeiros, os seios pegados,
Os seios pegados... que não se fará?
São estas as graças, que lá se desfrutam?
De pé, raparigas, aqui junto a mim!
Cantemos um hino; pois não nos escutam,
Pois não nos escutam, digamos assim:
*
* *
Paixão da beleza,
Nos bailes acesa,
Da selva a simpleza
Mais bela não é?
Que importa esse encanto
De um colo sem manto,
De um rosto sem pranto,
De uma alma sem fé?
Que são vossas belas?
Nós temos donzelas
Mais lindas do que elas,
Mais virgens enfim:
Meninas caladas,
Bebendo as toadas,
Do peito choradas
Do meu bandolim...
E aqui no terrado,
Por elas pisado,
De lua forrado,
Dançamos também;
Mas tudo é candura,
Que aqui não impura
Não pega em cintura,
Nem dá-se a ninguém.
Nem crescem desejos,
Que em surdos adejos
Em busca de beijos,
Produzem só fel;
Aqui na colmeia
Do peito mais cheia,
Que o céu só tenteia...
Quem sabe-lhe o mel?
É nossa a vitória:
Gravai na memória,
Que um raio de glória
Nos doira o suor.
Com Deus trabalhamos,
Colhemos, cantamos,
E assim nos amamos,
Quem vive melhor?
(1864)
A CARIDADE
Fazei o bem Sobre a terra
É a beleza suprema,
Tem mais luz do que um poema,
Vale mais do que um troféu.
Por uma dádiva ao pobre,
Que é de Deus o grande eleito,
Podeis comprar-lhe o direito
De que ele goza no céu.
Se ao grito dos que padecem
O mundo cerra os ouvidos,
Se do prazer nos ruídos
Perdeu-se do céu a voz;
De torpezas maculada
Do Cristo a veste inconsútil,
Parece que foi inútil
O ter morrido por nós!
Será que o sol da bondade
Vá no ocaso se escondendo?
Será que Deus vá descendo
A força do homem subir?
Por isso de dia em dia
Ganha o vício mais encantos,
E vê-se a virtude em prantos
E a impiedade a sorrir?
Será que os raios divinos
Tenham enfim resfriado?
Que indiferente e calado
O céu nos contemple? Não:
Deus perdoa ao mundo ingrato
E aos suspiros de quem sofre,
Tem sempre aberto o seu cofre
De amor e consolação.
E desse amor o perfume,
Que alimenta a caridade,
No seio da humanidade
Brotá-lo quando o céu quer,
Lançando mão duma estrela
Mais viva do firmamento,
Forma dela um sentimento
No coração da mulher.
Nem cremos que às outras almas
Tais pensamentos assomem;
Não, não é cabeça d’homem
Qu’estas ideias contém;
É da mulher que elas partem,
Da mulher, que suspirando,
Mesmo sorrindo e cantando,
Ensina a fazer o bem.
Geme a família do bravo
Que a morte cobriu de louros;
Que custa abrir-lhe os tesouros
Bondosos do coração?...
E assim falarem unidas,
Como ecos de um só abismo,
A voz do patriotismo
E a voz da religião?
Se é bela assim a virtude
Face a face com a opulência,
Derramando aquela essência,
Que em harmonias se esvai;
Que custa dar um sorriso,
Dar um óbolo, um carinho
Às aves, que não têm ninho,
Aos filhos, que não tem pai?
A caridade inda soa
Nas fibras do humano peito:
Como no céu satisfeito
Vai ficar o moço Deus,
Jesus, o amigo dos tristes
Quando os astros lhe contarem,
E estas vozes lá chegarem
Nas asas dos anjos seus!...
Fazei o bem. Sobre a terra
É a grandeza suprema;
Tem mais luz do que um poema,
Vale mais do que um troféu;
Por uma dádiva ao pobre,
Que é de Deus o grande eleito,
Podeis comprar-lhe o direito
De que ele goza no céu.
(1866 )
O DIA DE FINADOS NO CEMITÉRIO
Trajando galas de morte,
Virgens filhas desgrenhadas,
De almos prantos enfeitadas,
Querem falar a seus pais...
Quer a viúva enoitecida
Ver do esposo a face algente,
Dizer-lhe um adeus somente...
Senhor! por que não deixais?
Vós, que o templo dos sepulcros
Encheis de augusta presença,
Com o sério da indiferença,
Contemplais tamanha dor?!
São corações que se chamam,
São mães de peito anelante,
Que pedem ver um instante
Seus filhos... deixai, Senhor!
Vós, que sabeis que hoje ao menos,
As nossas mágoas são puras,
Que ambrosias, que doçuras
Podeis achar nestes ais?
Rescende a prece orvalhada,
Palpita o mármor funéreo,
Querem sondar o mistério,
Senhor, por que não deixais?
Aqui, de envolta com as súplicas,
Uma saudade sentida
Sob a cabeia adormida
Do amigo se quer depor...
Vem queixosa a orfãzinha,
Por entre ruas de lousas,
Dizer chorando... umas cousas...
A seu pai; deixai, Senhor!
Pelo aflato destas auras,
Pela boca destas flores,
Mandai um conforto às dores
Que o dia de hoje acendeu:
Assim a mãe cuidadosa
Do filho tenro, choroso
Sopra o dedinho mimoso
Que um vil incesto mordeu...
Podeis austero e sombrio
Sacudir a prece, o pranto,
Que as orlas do vosso manto
Nesta hora ensopado têm?
Não, meu Deus, alguma gota
Sobre estes tesouros de ossos,
Que são os tesouros nossos,
Aqui derramais também...
É uma lágrima doce,
Que cai do olhar providente,
Mais bela que outro presente
Que venha de vossa mão;
E essa lágrima invisível,
Que verteis límpida e calma,
Tem nome caindo n’alma,
Se chama: — Resignação!
( 1862 )
MÃE E FILHO
Menino, que ao céu revoa
Levado por mão de santa;
Junto a Deus a luz o espanta,
Quer chorar e Deus sorri...
Neste abandono celeste,
No vago de uma lembrança,
Mãe!.. balbucia a criança,
E um anjo canta: ei-la aqui!
Súbito o triste inocente
Se lança meigo e choroso
No branco seio amoroso
Que ali outra mão conduz;
A mãe e o filho abraçados
Se prostram na imensa alfombra,
Ela... com medo da sombra
Ele... com medo da luz!!.
(1860)
LENDA RÚSTICA
Como um perfume que embalsama os campos
E as abelhas atrai à flor que o exala,
Vaga o renome da mulher mais linda
Que na selva se viu. Rivais perdidos
Já no punho mediram-se por ela.
Por ela triste o sertanejo bravo,
Que amostra da corage, a cor e a seiva,
Sangue nos olhos e suor na fronte,
Deixou tombar aos sóis do meio dia
Pelo ermo a cabeça atormentada.
*
* *
Lá se avista uma choça. Ali se esconde
No seu ninho de palha a ave esgarrada:
Cansada e louca e só, nua se atira
Nesse banho do céu, fervendo em sonhos,
Que e o seu dormir. Sobre ela arregalados
Da noite os astros, através das frestas,
No leito vem-na estremecida, ansiosa
Revelar ao seu anjo espavorido
Daquele corpo os cândidos mistérios.
Divino sangue lhe realça as veias;
E do sono emergindo à face nítida,
Nas alvas carnes docemente escorrem
Tênues fios azuis de ondas celestes.
*
* *
Abandonada assim, de riso em riso,
De sonho em sonho, dilatando as graças,
Não acorda, desbrocha... abre com as flores,
E a estrela da manhã lhe acende os olhos.
Inquietos, grandes, que borbulham d’alma...
A esmo lavram nos seus lombos rígidos
Louros cabelos, flutuando esparsos,
Como uma irradiação do sol nos mares.
Basto, abundante, pesa-lhe nos ombros
O maciço das tranças, balançadas,
Como torrentes, que dum monte caem,
Em suas ondas rolando areias de oiro.
E hás de ver: — este arcanjo é condenado,
Esta pomba caiu em laço ignóbil,
Esta mulher se mancha em lodo infame!
Prostituta, com seios de donzela,
Of’rece aos beijos vis aquela testa
Branca, pendida, como a lua baça,
Lá para o ocaso, ao despontar do dia.
E nem sei como os sopros da lascívia
Não murcharam-lhe ainda os beiços rúbidos,
Folhas de riso e mel, que abrem polposas,
Ao biquinho dos pássaros implumes,
Que ela tira do ninho e traz no seio.
Por que muda de cor a cada instante?
Dir-se-ia que flutuam-lhe no rosto
As sombras vagas de visões angélicas;
Que altamente suspendem-se e revoam
De su’alma na escura imensidade
Legiões que passam, cândidas, purpúreas,
E atrás... o anjo pálido da morte!
O bosque verde, a solidão florida,
As grutas cheias de mistério e sombra,
Moitas folhudas, onde a rola geme,
E debaixo remói a corça arisca,
Eis aí, trescalando, as mil alcovas
Do prostibulo imenso dessa douda.
*
* *
De bem longe a pomba linda
Fugindo sentou-se aqui:
E pensas que o ódio finda,
Que não se lembram de ti?
É já muito e não se estanca
Dos teus o pranto infeliz;
Cresce, cresce a barba branca
Do velho que te maldiz...
Em braços d’homem repousas,
As tranças varrem o chão:
Por que ensinas essas cousas
Às flores da solidão?...
No vício teu corpo ilustre.
Não murcha, sempre gentil!
É como uma flor palustre,
Que cheira no lodo vil.
De beijos queimada, esqueces
Que a morte te vê... pois bem:
Tu peças e adormeces!...
Espera, o raio aí vem.
*
* *
É noite, bem noite. Na estrada arenosa,
Que em léguas de plano se vê branquear,
Qual serpe disforme de prata lustrosa,
Que aí se estirasse dormindo ao luar,
Vai um cavaleiro... Flutuam nos ares
Ao sopro do vento, que açoita cruel,
Os fios ligeiros de negros pensares
E as crinas brilhantes de negro corcel.
A senda achatada sumiu-se na mata,
E o vulto noturno com ela embocou.
Do ventre das brenhas, que têm a cascata,
Rugido medonho na mata estrondou.
É d’onça terrível, que vai diligente
Na seca folhagem pisando sutil.
Refuga o cavalo na mão do valente,
Como um pirilampo clareia o fuzil.
Sua arma querida, que não desfogona,
Diabo!... medrosa!... lhe mente esta vez;
Medroso o cavalo também lhe abandona,
Lançando-o por terra, num giro que fez.
Mas ele, que a queda previne adestrado,
De um salto adiante se firma de pé!
Com as rédeas seguras, cabelo eriçado,
Lembranças perdidas, nem sabe o que é!!...
Ninguém lhe aparece. Cavalga ligeiro;
Palavras soturnas murmura e sorri.
Caminha... e saindo num largo terreiro,
Quem visse-lhe o gesto, diria: é aqui!...
*
* *
Decerto a aragem campestre
Levemente sussurrou
Na palha. Uma estátua equestre
Diante da choça brotou.
*
* *
Mas ei-lo já de pé Num braço d’árvore
Enfia as rédeas, e o ginete espera.
Avança e para... O coração se encolhe.
Com o ferro em punho, de bainha argêntea,
Faz um aceno rápido de sombra,
Como impondo silêncio à natureza,
E ao monstro horrível, que lhe morde n’alma.
Avança e chega. — Cede a porta frágil,
E entra lúgubre o espectro da vingança.
Na lareira encinzada um lenho ardendo
Brota de um sopro a tocha, que alumia
O misérrimo alvergue. Olhou em roda,
E nos lábios correu-lhe um riso trêmulo,
Porque ela aparece enfim! coitada!...
*
* *
Ressona a pobre, despedida,
Com o corpo todo risonho,
Suada, lidando em sonho
De amor e beijos talvez...
Como que um tépido orvalho
Sobre ela a noite derrama,
E língua de etérea flama
Lambe-lhe a flórea nudez.
*
* *
Ele a vê... sua irmã!... Retira os olhos,
Lança-lhe em cima um véu, que acaso encontra,
Chega-se a ela, trava-lhe do braço,
Sacode-a e diz: — acorda, eu vim matar-te!
Mal estremunha, a vítima conhece
O seu algoz, que descarrega o golpe,
Mugindo: a um velho pai este ofereço,
E mais este, que é meu, e, agora morta,
A punhalada última, profunda,
Seja este beijo, que saudosa envia-te
Por despedida minha mãe... Calou-se.
E o toque desses lábios enraivados,
Que poisaram na fronte de um cadáver,
Queimando-o, lhe deixou medonho estigma.
*
* *
Já começava a desbrochar, corando,
A papoula dos céus, a aurora. Os pássaros
E as flores confundiam suas preces.
No momento em que as choças humilhadas
Aos pés da Virgem Santa um hino erguendo,
No levante a sorrir, a alva tremia,
Como cruz de diamante em seio pálido,
E suavíssimas vozes de donzelas
Cantavam — Salve, stela matutina!...
Passava um cavaleiro à trote surdo
De agitado corcel. Com as mãos crispadas,
Olhos torvos, cabeça descoberta,
Que os bafos matinais não refrescavam,
Era horrível!... O ancião rústico e forte,
Que madruga, aspirando o aroma puro
Da guabiraba a se benzer dizia:
“Nunca vi de manhã cara tão feia!...”
(1866)
OITO ANOS
Que belo é vê-la brincando
A virgenzinha em botão,
Inquieta, rindo, saltando
Sobre o tapiz do salão
Com essa malícia divina,
Que a faz em tudo bulir;
E dão-lhe um grito: — menina!...
E ela foge, e torna vir...
Toda primores celestes,
Coberta de alvura só,
Nuas pernas, curtas vestes,
Cabelos, qual áureo pó,
De angélico pensamento,
Perfumoso enchendo o ar,
Naquele arrebatamento,
Com que a infância quer brincar...
A flor conserrada ainda
Recende em sua manhã;
E se ouve uma voz: — tão linda!...
Voz mais doce; — ó minha irmã....
Por graça alguém diz: que moça,
Mostrando o joelho nu!...
Mais alguém: — que perna grossa!
E ela diz: grossa tens tu.
Quis prová-lo, e num instante
De pueril insensatez,
Viu-se o lampejo inflamante
De nunca vista nudez
De sob a folhuda veste
Claro revelar-se até...
E o demoninho celeste
Gritou fugindo: — não é?!...
Dá-se perdão à criança,
Que inda não sabe o que faz,
Da vida na onda mansa,
Da inocência na paz.
Contou-se o crime sorrindo,
Quem é que puni-la vai?
Depois... estava dormindo
Já nos braços de seu pai...
( 1865 )
ANELOS
Não olheis para a sombra que passa;
Quero triste viver, ermo e só.
Minha noiva me espera nas nuvens,
Minha glória da campa no pó.
Nem tenteis impedir me a passagem,
Que não curvo a cabeça a ninguém.
Para entrar nos combates da sorte,
Tenho asas e garras também.
Sou um filho das plagas selvagens,
Onde o peito não teme bater;
Aprendi os queixumes da rola,
E a cascata ensinou-me a gemer.
Preste, preste a lançar-me às alturas,
Tenho as rédeas da morte na mão,
Pelo trilho que as águias abriram
Traz o anjo do meu coração.
Os tormentos da vida me cabem,
Os espinhos da rosa são meus;
Mas não posso encontrar quem me diga
Onde estão os tesouros de Deus!
Interpelo as estrelas que choram,
E as estrelas não querem dizer;
Falo aos ventos e os ventos respondem:
Também nós procuramos saber...
É assim: — tudo tem sua mágoa,
Tudo tem sua sombra de horror,
Que de envolta com a sombra da terra
Vai lançar-se nos pés do Senhor!...
( 1860)
DÚVIDAS
Quanta ilusão!... O céu mostra-se esquivo
E surdo ao brado do universo inteiro...
De duvidas cruéis prisioneiro,
Tomba por terra o pensamento altivo.
Dizem que o Cristo, o filho de Deus vivo,
A quem chamam também Deus verdadeiro,
Veio o mundo remir do cativeiro,
E eu vejo o mundo ainda tão cativo!
Se os reis são sempre os reis, se o povo ignavo
Não deixou de provar o duro freio,
Da tirania, e da miséria o travo,
Se é sempre o mesmo engodo e falso enleio,
Se o homem chora e continua escravo,
De que foi que Jesus salvar-nos veio?...
(1880)
TENTEMOS
Ante o vulto das montanhas,
Que pousam na solidão,
De sondar-lhes as entranhas
Há como uma tentação,
Que nos diz: ali há ouro!...
Decerto, quanto tesouro
Não se pudera encontrar
Sob os montes arrasados,
Sob os tronos derrocados,
E até nas bases do altar?!...
(1858)
REALIDADE
No drama universal, cujo desfecho
Do mundo e d’alma o himeneu encerra,
Tudo é cena de amor, sim, tudo fala,
Tudo tem seu diálogo na terra.
Conversa o mar com o céu; a flor e a estrela,
Como duas irmãs que dormem juntas,
Beijam-se, abraçam-se, estremecem lânguidas,
Fazendo mútuas infantis perguntas...
Somente o coração geme isolado
Neste deserto de perpétua lida;
Por isso folga de encontrar um verbo,
Uma voz que lhe fale de outra vida...
De outra luz, de outro ar, que se respira,
De outro mundo vestido de alvorada:
Ou sejam quebros de um olhar de virgem,
Ou sons de uma harpa d’anjo além vibrada...
(1864)
VOOS E QUEDAS
Quebrei a c’roa de espinho,
Que a minha fronte sangrou:
Como a serpe ocupa o ninho
Que o pássaro abandonou,
Jaz em meu peito o desgosto...
Do abismo lava-me o rosto
A onda crepuscular;
De minh’alma a fibra extrema
Sai nas unhas do problema,
Que não se deixa pegar...
Ver o mistério eriçado
Rodeando os mausoléus,
Morrer... subindo... agarrado
No escarpamento dos céus,
É triste! — Mas é a vida...
O homem, de tanta lida
Cansado, indagando vai;
Chora embalde, grita, escuta,
E a terra, mãe prostituta,
Não lhe diz quem é seu pai!...
E a humanidade rolando
De queda em queda a gemer,
E o pensamento voando,
E o coração a bater;
Do gênio augusto aos ouvidos
Mal chegam vagos ruídos,
Que soam: — Deus aí vem...
Eu digo a Virgílio terno:
Foste com Dante ao inferno,
Leva-me a ele também.
Do prazer tênue ressábio
Fica n’alma que o sentiu;
Súbito cerra-se o lábio,
Ninguém diz que ele sorriu:
Mas dos olhos que choraram
Como ainda se deparam
Indícios na rubidez,
Na tristeza, no quebranto,
Naquele trilho do pranto,
Que mancha a mais linda tez!...
Na cabeça, que arde e pensa,
Lança embalde os ópios seus
A noite, esta gruta imensa,
Cheia da sombra de Deus.
Para a alma entenebrecida,
Pelos mistérios perdida,
Sem fé que vale a razão?
É como a tocha tremente
Que a Sonâmbula inocente
Leva na pálida mão.
Abalo as ramas celestes,
E um fruto só me não cai;
Seguro de um anjo as vestes,
E o anjo em fumo se esvai!
Quando cuido em ledo sonho
Beijar um vulto risonho,
A aurora grita: — sou eu!
E a natureza acordada
É toda uma gargalhada,
Que zomba do engano meu...
De tudo a ira ressuma:
O pego profere além
Sua palavra de escuma,
Dá sal e raiva e desdém.
Na mata o cedro detento,
Despeitado pelo vento,
Que a coma lhe esfrangalhou,
Range os dentes agastado...
Será, meu Deus, irritado
Contra a mão que o enraizou?
Mas o homem... que emudeça,
Que se contente em chorar,
Joelhe, curve a cabeça,
E deixe-se coroar....
Coroar de espinhos duros,
Cercar de dias escuros,
Por isso — o que se lhe dá?
Ah! como é trêmula a crença
Firmada na recompensa
Deferida para lá!...
Lá mesmo onde não se chora,
Onde se vive feliz,
Fala Tasso a Eleonora,
E Dante abraça Beatriz?...
Sinto já monotonia
Neste sol de todo o dia,
No riso destas manhãs;
Contemplo, triste, pasmado,
O giro desorientado
De tantas ideias vãs.
Apraz-me a tarde saudosa,
Como o olhar de quem chorou,
E a descor daquela rosa,
Que aberta n’haste ficou.
Luz mais viva me ilumina
De ver o sol, que se inclina,
Como quem diz: terminei!...
De ver, sangrento o horizonte,
Rolar do topo do monte
Essa cabeça de rei!...
Doem-me as auras na face...
Amor e gozo... nenhum!
Ruge o coração vorace,
Ansioso, fero, em jejum.
Como um grito soterrado,
Geme o espírito abafado
No antro escuro da dor;
Se então blasfema impiedoso?!...
Ah! meu Deus, o cão raivoso
Não conhece o seu senhor!
Sobre a dor, que me consome,
Mão virgínea inda não pus:
Tenho sede, tenho fome
De beijos, de vida e luz...
Nas fauces quentes, sequiosas
Não me entornam estas rosas
Tanto orvalho, que elas têm!
Vejo: só se me revela
Desdém no rir da donzela,
Na boca da flor desdém.
Mal a folhada dos dias
Cobre-me a débil raiz...
Ao sopro das agonias,
Vacilo, nuto, infeliz...
Tão puro em minha nascença!...
Arrasta-me força imensa,
E eu chego turvo no mar:
Na luta descai-me o braço,
Minha fé, meu peito d’aço,
Que mal te pôde varar?
Lembra-me a garça serena
Voava lá dos pauis;
Morria a tarde morena
Com as suas veias azuis;
Fitando o céu do sol posto,
Pálido, como um desgosto.
Limpo, como um seio nu,
Não sei que dor me doía...
E minha mãe me dizia:
Filho, de que choras tu?
Meiga, enxugando-me a face,
Mandando uma prece além,
Pedia que eu não chorasse...
Ela... chorando também!...
Brandas auras vespertinas,
Como roupas femininas,
Faziam-me estremecer:
Na fronte — maternos beijos,
No peito — vagos desejos
De meditar e morrer...
Meu pai, se não tinhas ouro,
Por que confiaste assim?
Minha mãe, que é do teu choro,
Que é dos teus votos por mim?
E essas lágrimas, que banham
Faces de mãe, não se apanham,
Deixam-se à toa... cair?!
Os anjos encarregados
Andam aí ocupados
Na graça de algum sorrir...
E o meu destino adversário
Ela o não pôde escoar
Nas contas do seu rosário
Nas gotas do seu chorar!
Minha alma vasculejada
Borbulha a palavra irada,
Escuma de essência ruim...,
Qual fora disso o efeito,
Se uma lágrima, do peito,
Não rebentasse?... ai de mim!
Como um hino mudo, santo,
Como a prece que mais sei,
Em terminando o meu pranto,
Posso dizer: — já rezei:
Por mim, por tudo, em abono
Dos mortos, cujo abandono
Não fica bem ao Senhor;
E a eles, doces e gratas,
As preces são serenatas
Da sua noite de horror.
D’árvore o espectro soturno,
O tronco velho de pé
Espanta o viajor noturno,
Que lhe pergunta: — quem é?
Tal o fantasma terrível,
A negra forma impossível
Que representa-se além;
Mas que cede à confiança
Do caminheiro, que avança,
E lá murmura: — ninguém!
Lutar com o anjo da sorte
Para dizer-lhe: venci!...
Tremenda luta, que a morte
Contempla ao lado, e sorri;
Noites sorver, que consomem,
E não ser mais do que um homem
Pequeno, tosco, vulgar,
Ao muito libando amores,
Nos degraus inferiores...
Assim... não quero lutar!...
Pois que não sou um eleito
Para as conquistas da luz,
Eis a vida, — eu a enjeito,
Amarro-a nos pés da cruz;
E vou-me, espírito audace,
Mais livre no desenlace,
Que a hora estrema produz,
À claridade, em que ondeiam,
Deslumbram, cantam, vagueiam
Verdades, mistérios nus.
Dá em terra o desgraçado
Que a mão sicária abateu,
A fera ruge — coitado!
E a serpe diz — não fui eu!
Quem sabe se a alma sedenta
Tomando a porta sangrenta,
Que lhe abre o ferro letal,
Voando por sobre a vida,
Não repete enternecida:
Muito obrigada, punhal!
Eu sei!... a campa desperta
Deitada aos pés do Senhor,
Anseia com a boca aberta,
Como cão de caçador,
Pois a vida é sua presa...
Talvez que d’alma a beleza
Se estrague na escuridão,
Se o Senhor não a reserva,
Tirando a pele da cerva,
E a carne dando ao seu cão.
Da vida escura, mesquinha,
Quando a alma solta os seus ais,
Como os pios da avezinha
No enleio dos espinhais,
Voa talvez de repente...
Oh! sim... que eu morra contente,
Nem ouça o pranto dos meus:
Sob a campa em abandono,
Não me acordeis do meu sono,
Deixai-me sonhar com Deus!...
( 1865 )
MULHER E GÊNIO
Foi uma ideia, que engastou-se quente
De moços nobres na cabeça ardente,
Foi um sonho feliz;
Desses, que amostram em batéis de luas
Cantando e rindo deslumbrantes, nuas,
Luminosas Huris.
Foi uma ideia, que emergiu singela;
Afoitos corações travaram dela,
Entregaram-na a ti.
Desce Deus um olhar que os anjos vara,
E através da mulher límpida e clara
Como a ideia sorri!...
Cinge-te a graça de íntima beleza;
Nos mistérios d’além tua alma acesa
Começa a radiar:
Tendo louros da ideia no proscênio,
Que nome dar-te-ão? chamar-te gênio?
Isto é muito vulgar...
Falar em gênios!... Que me quer nos lábios
Esta frase, este mel de acres ressábios,
Este riso de dor?
Embriagados do céu, que em áureas taças
Bebem os tragos de infernais desgraças
Em honra do Senhor!
...........................................................
Gênio!... é sondar o golfão do inefável
E ter um coração, monstro insaciável
De esperança e porvir,
Calcando o mundo, que lhe diz: padeça!...
Este horizonte aperta-lhe a cabeça,
E ele tende a subir.
Gênio!... ele manda à aurora que desponte;
Sobe; os futuros roçam-lhe na fronte
Perto, perto do céu...
Sacode-se dos pés a poeira humana;
Nos páramos azuis da luta insana
Levanta-se o troféu.
Os grandes dias do progresso humano
Custam a vir. O gênio soberano,
De alma branca e louçã,
Cresce, cresce, debruça-se nos montes
E arranca lá dos fundos horizontes
A estrela da manhã!...
(1863 )
PARTE SEGUNDA
AMOROSAS
AMEMOS
Amar é fazer o ninho,
Que a duas almas contém,
Ter medo de estar sozinho,
Dizer com lágrimas: vem!...
Flor, querida, noiva, esposa...
Cabemos na mesma lousa,
Julieta, eu sou Romeu;
Correr, gritar: — onde vamos?
Que luz!... que cheiro! onde estamos?
E ouvir uma voz: no céu!
Vagar em campos floridos
Que a terra mesma não tem;
Chegarmos loucos, perdidos
Onde não chega ninguém...
E ao pé de correntes calmas,
Que espelham virentes palmas,
Dizer-te: senta-te aqui;
E além, na margem sombria,
Ver uma corça bravia,
Pasmada, olhando p’ra ti!
( 1866 )
SÚPLICA
Que brancas formas ao meu peito afago!
Não; são quimeras pela mente esparsas:
Não; é a escuma que acolchoa o lago;
Não; é a alvura de serenas garças...
Não me maltrates!... tu que tens no seio
Tanto rebento de paixões viçosas
D’alma supérflua, que amanhece cheio
Do teu sorriso o coração das rosas.
Os astros limpos a tremer sedentos
Da luz que guardas como em um tesouro,
Pedem um fio dos teus pensamentos
Para adornarem suas frontes de ouro.
E a onda pede, para arfar mais bela,
A inquietude que o teu corpo abala...
E a aura da tarde suplicante anela
Pelas essências, que tua boca exala.
Boca mimosa, que uma aurora encerra,
Que meiga espira virginal fragrância!...
Formou-a Deus para suprir na terra
Das flores mudas a perpétua infância.
Boquinha aberta ao matinal rorejo,
Que existe só para sorrir nos prados,
Falar ao céu e receber o beijo,
Que Deus envia aos corações magoados.
Olha... se meiga, como tu pareces,
Terna criasses, nos vergéis nascida,
Pobre avezinha, e por amor lhe desses
Na flor dos lábios o alento e a vida;
Um dia ingrata, te esquecendo dela,
Com quem, tu sabes, ninguém mais se importa,
Quando a lembrança te viesse, oh bela,
Não chorarias de encontrá-la morta?
(1866)
DÁ-ME DEPRESSA...
Que silêncio, que calma
No teu olhar!
Querubim da minha alma,
Vamos voar?
Algum canto suave
No bosque ouvir?
Ou no ninho de uma ave
Juntos dormir?
Vamos, longe do mundo,
Que é um paul,
Espelhar-nos no fundo
Do céu azul?
Sei de um ermo encantado,
Que existe além;
Já corremos o prado,
Caminha, vem!
Dentro deste arvoredo
Ninguém nos vê...
Vamos, tremes de medo?
Medo de quê?
Olha as frutas vermelhas
Do meu vergel...
Quanto enxame de abelhas!
Tu queres mel?
Olha... que passarinho
Lindo a cantar!...
Vou pegá-lo no ninho,
Para t’o dar.
Quanta sombra!... Repousa,
Descansa aqui:
Vou dizer-te uma cousa,
Que eu sei de ti.
Mas só digo na boca,
No ouvido não...
Anda, espera; que louca!..
Retira a mão!...
Suspirar-te um segredo
Deixa, que tem?
Cuidas que no arvoredo
Buliu alguém?
Foi o vento; ora essa!...
Ninguém buliu:
Chega, dá-me depressa...
Está!.. Quem viu?
(1867)
PELO DIA EM QUE NASCESTE
Ouve-me tu: na tristeza,
Como uma sombra estendida,
No mais escuro da vida,
Cá onde nada sorri,
Minha alma bebe os orvalhos
Do teu suor odoroso
Como se eu rico e ditoso
Velasse perto de ti!
Volvendo as folhas dos dias,
Paraste rindo encantada
Sobre a estampa mais dourada
Desse livro que não lês:
Com o seu cocar luminoso
O sol espana o teu rosto;
Não fica n’alma um desgosto,
Nem uma sombra na tez.
Hoje que cabes num berço,
Que abriste d’alma o tesouro,
O dia é teu livro d’ouro,
E eu pego nele sutil
Para escrever uns segredos,
Para depor uns carinhos
E uns beijos... nos sapatinhos
Da tua idade infantil.
Por ti... conservo sorrisos
Pela dor não apagados,
Como títulos gravados
Em face de mausoléu.
Contemplo o resto de infância
Que a tua testa alumia,
Qual o fim de um belo dia
Crepusculando no céu.
Bem sei que sonhas venturas
E a aragem que te balouça,
Franzina, lânguida moça,
Não te consente pender.
Sossega, flor buliçosa,
Deixa em teu seio inocente,
Vertida em lágrima quente,
Minh’alma se recolher.
*
* *
Bela!... nem sentes o ruir da vida,
Celeste arroio que te cobre a planta,
Bafejada dos céus, estremecida,
Etérea, límpida, impalpável, santa!...
Fulges como de orvalho perfumoso
Pérola solta ao matinal gotejo:
Noiva do raio pálido mimoso
Que no cálix da flor sorve-a de um beijo!
Transparece o candor d’alma sem mágoas;
À noite, ao dia estranha, sobranceira,
Teu trajo soa, como o som das águas,
Teu corpo treme e tua sombra cheira...
*
* *
E tua alma também por que não voa?
Podíamos subir, vagar à toa
Pelo infinito sós;
Eu faria de amor hinos e preces,
Um ninho para ti... Se tu quisesses,
Um ninho para nós.
*
* *
Que receias? teu lábio não murchece,
De moça eterna o raio te circunda:
Da fronte o lírio não descaí. Parece
Que uma alma exterior teu corpo inunda.
Como em flóreo botão fechas as graças
E de um peito aos anelos doloridos,
Às ânsias loucas, não te volves, passas...
Cuidas que é o soar de teus vestidos.
Edênica romã que um anjo parte,
É tua boca entreabrindo-se risonha.
Sou pequeno, bem sei, para tocar-te,
De que tamanho queres que eu me ponha?
Num fio odoro tua imagem sigo,
Teu nome doce como um hino entoo:
Eleva-me, que amar-te é voar contigo,
Ser águia e d’anjo acompanhar-te o voo.
Ei-la de brilhos no seu trono alçada!
Eu te saúdo, buriti do outeiro,
Que balanças a coma alumiada
Do sol nascente ao radiar primeiro.
Ouves? eu amo-te. Inda não sentiste
A mão que acaricia a sombra tua?
Meu amor é o cismar da fera triste,
Fitando estúpida o clarão da lua...
(1865)
CONSENTE...
Oh! deixa aquecer-te ao calor de meu peito,
Derrama os cabelos por cima de mim,
De flores e sonhos forremos o leito,
Num beijo esvaídos... morramos assim!
E Deus, que nos visse na campa dormindo,
Vedara que as auras nos fossem bulir;
E aos anjos inquietos dissera sorrindo:
São noivos ainda, deixai-os dormir!...
( 1864 )
IMPOSSÍVEL...
Ver-te chorar!... E não poder prostrar-me
Dos olhos teus ao infantil quebranto,
E, como o orvalho da manhã nos campos,
Nas minhas barbas embeber-te o pranto!...
Ver-te chorar!... E não poder as lágrimas,
Que tu vertias com virgíneo pejo
Num cofre d’ouro recolhê-las todas,
Secá-las todas no calor de um beijo!...
Que beijo! ... O eco dos abismos d’alma,
Se abrindo aos raios da beleza tua...
Um beijo enorme de oceano imenso
Na branca praia, solitária e nua!
.............................................................
Tu trazes fitas nos cabelos negros,
Nos seios quentes o calor dos ninhos,
Na fronte a sombra do cair das tardes,
Flores na mão, no coração espinhos...
( 1875 )
LEOCÁDIA
Livro de luz em que o Senhor medita
E às mãos dos anjos não é dado abrir,
Onde as estrelas aprenderam juntas
Com as rosas puras a chorar e a rir,
Alma que dá-se em alimento às flores
De cuja essência a criação trescala,
Ingênua e cândida, escutando em sonhos,
A voz da santa que do céu vos fala,
Vós sois na terra a encarnação brilhante
Do sacro amor que a vossos pais adita,
Rútila estrofe de um poema d’ouro,
Livro de luz em que o Senhor medita...
Lágrima d’alva que no seio cálido
Da nuvem rubra vos deixou cair,
Página alvíssima em que Deus escreve
E às mãos dos anjos não é dado abrir,
Virgem serena a cujos olhos tímidos
A lua gosta de fazer perguntas,
Bíblia celeste de mistérios castos,
Onde as estrelas aprenderam juntas,
Com as brisas tênues a dizer as queixas
De alguma dor que só Deus pode ouvir,
Com as ondas cérulas, com as auroras pálidas,
Com as rosas puras a chorar e a rir,
Fronte em que passam doutro mundo as cismas,
Rosto banhado em matinais albores,
Peito onde arquejam do infinito as vagas,
Alma que dá-se em alimento às flores,
Mimo do sol, que vos atrai os raios,
E as vossas graças pelo céu propala,
Vós sois a alvura dos eternos lírios,
De cuja essência a criação trescala...
E quão piedosas não serão as preces
Dos vossos lábios divinais, risonhos!...
Tranças esparsas, joelhada, extática,
Ingênua e cândida, escutando em sonhos,
Por entre os cantos das esferas lúcidas,
E os ais sentidos que o universo exala,
E os sons melífluos do saltério angélico,
À voz da santa que do céu vos fala!...
(1867)
DIZE-ME SEMPRE
Que te custa uma frase, um consolo,
Para o meu coração que padece,
Por afago pisar sobre a juba
Do leão que a teus pés adormece?
Que te custa enganar-me falando,
Se a tua alma por mim não suspira?
Quero ouvir-te dizer que me amas,
Inda mesmo que seja mentira!...
(1880 )
OH! ISTO MATA...
Não tenho forças para tanta luta,
Luta d’arcanjo, que se mais um raio
Do seio ardente me lançares caio;
Que eu já não posso com teu meigo olhar.
Por ti sem vida, abandonado à sorte,
Gosto das noites, que me causam medo;
Gosto da rosa, que me espinha o dedo;
Gosto de tudo que me faz chorar.
Carpindo mágoas que comprimo n’alma,
Gemendo queixas de fatal desgosto,
Não sei que névoa te passou no rosto,
Não sei que sombra nos teus olhos vi...
Mandas que eu fuja, que não mais te adore?
Temes que um sonho revelado seja?
Queres que eu morra, que não mais te veja?
Pois bem; não temas: fugirei de ti.
De ti, de mim... que pensarão as rosas,
Quando ao correr das virações macias,
Das tardes frescas nas mansões sombrias,
Me virem triste, lacrimoso a sós?!...
Oh! isto mata!... O que respondo às flores,
Quando, insensíveis a meu longo pranto,
Disserem rindo qu’é do teu encanto?
Que é da criança mais gentil que nós?
Talvez cuidasses que pudesse amar-te...
Não que o teu nome nem sequer profiro!
Foi-te contado por algum suspiro,
Por algum astro, por alguma flor?
Quem é que veio devassar mistérios
Na gruta opaca do meu pensamento?
É falso; é falso o que te disse o vento...
Mentiu a estrela que falou de amor...
( 1866)
COMO É BOM! CANTAI...
Cantai, felizes, para, quem deslizam
Do céu as ondas, insensíveis, mansas...
Colhei as graças, desprendei as tranças
Do anjo que é vosso... Como é bom! cantai...
Vós outros, loucos, que de lábios puros
Nem voz de amor, nem um suspiro ouvistes,
Na própria sombra mergulhando tristes,
Nunca entendidos, que fazer? — chorai.
Chorai comigo, corações doentes,
Lentos, cansados de amorosa lida;
Pobres de gozo, no festim da vida
Nem um sorriso... só nos coube a dor...
Mas o martírio fez voar minh’alma
Do afeto puro à região serena,
Que já não troco a minha doce pena
Pelas delícias de um ditoso amor.
Vamos; que importa? morrerei fitando
A ideia eterna que acendi na mente,
Sinto acabar-me; desgostoso e crente
Da morte o voo sussurrar ouvi:
Basta, Hermengarda, o impossível mata!
Laura, a teus pés um coração é pouco...
Abre-me o cárcere, Leonor, ’stou louco!
Desço ao inferno, Beatriz, por ti.
( 1867 )
TU ME ENTENDES...
Podes rir e não crer no que sofro,
Nem ouvidos prestar aos meus ais,
E o festão de esperanças fagueiras
Desfolhar-me na face; inda mais...
Podes vir laurear-me de espinhos,
Sem que o pobre uma queixa profira,
Ver-me triste e dizer: que loucura!
Ver-me louco e dizer: é mentira!
Podes, bela, a meus olhos cansados,
Que sem ver-te na sombra falecem,
Ordenar que não ousem fitar-te,
Que os meus olhos chorando obedecem.
Mas querer que minha alma te esqueça,
Mas dar ordens ao meu coração,
Mas impor-lhe que deixe de amar-te,
Proibir-me que sofra?!... isso não!
Meu amor, este amor que me mata,
De minh’alma no seio profundo,
Traduzindo o silêncio dos astros,
Encerrando a grandeza do mundo,
É a onda que vem bem de longe,
Que não geme sequer, nem murmura,
Dos meus olhos trazendo a tristeza,
Dos teus lábios a doce frescura.
É o susto da flor que descora
Por um beijo do sol que lhe ofende;
O segredo de brando favônio,
Que suspira e ninguém compreende.
É a glória do mar que se ufana
De apanhar a botina e a meia
Da donzela, que foi por brinquedo
Descalçar um pezinho na areia.
É o orgulho da vaga empolada,
Que se julga mais rica e ditosa
De embalar uma lágrima d’anjo
No batel de uma folha de rosa.
Meu amor é a rola selvagem
De um cabelo prendida no laço:
É o lírio que diz: não me mates!
Ao tufão que lhe diz: eu te abraço!
Mas tu foges de mim!... ouve, espera...
Se procuras saber quem eu sou,
Diga o anjo que sempre comigo
Minhas mágoas sentiu e chorou.
Diga o céu a quem conto os meus sonhos,
A quem dou para ver e guardar
Meu tesouro de lágrimas puras
Que as angústias me querem roubar.
( 1867 )
IDEIA
Amo-te muito. Não temas
Que possa dizê-lo. Espera...
Contigo a sós eu quisera
Beijar as mãos do Senhor:
No ninho das rolas castas,
No cálix das flores puras
Guardar as nossas ternuras,
O nosso morrer... de amor.
Quisera aquecer-te n’alma
Cândida, meiga avezinha,
Unida ao meu peito, minha...
Como dizer?... minha irmã;
Contigo brincar à tarde
Na mesma sombra florida,
Respirar a mesma vida
Nos perfumes da manhã.
E à noite quando medito,
Quando as lágrimas enxugo
No fogo de um verso de Hugo,
Mais durável que um troféu,
Pudera ver-te a meu lado
Chegar ansiosa e louca,
E dar-me na tua boca
Alguma cousa do céu.
Pudera ver-te mimosa,
Com a trança desfeita, esparsa,
Movendo as roupas de garça,
Nos meus segredos bulir,
Juntando ao calor, à vida
Do livro amado, que leio,
O palpitar de teu seio,
E a graça de teu sorrir.
Só tu puderas, passando,
Qual um aroma aos ruídos
De harmoniosos vestidos,
Meu coração acordar,
Derramando enternecida
De amor, de cândidos zelos,
O cheiro dos teus cabelos
No fundo do meu pensar.
( 1865 )
CRIANÇA
Em tenra e frágil vergonta
De uns treze anos que tem,
Agora é que a alma desponta
No viço e no olhar... pois bem!
E se eu a chamo menina,
Ela me chama senhor!
Se eu a toco, ela s’inclina...
Será respeito, ou amor?
( 1854 )
SEMPRE BELA
Na luta pela vida, iluminada
De uns lindos olhos ao clarão divino,
Diz o tempo à beleza: — eu te devoro!...
E a beleza responde: eu — te domino!...
O tempo curva-se ao poder mais forte.
Das belas, como vós, é esta a glória:
— Onde murcha uma flor, mil flores brotam,
E sempre assim repete-se a vitória...
( 1877 )
VARIAÇÃO À HEINE
Donde vem que por ti sinto-me forte,
Capaz de expor-me a épicos perigos,
Se nos tratamos como indiferentes,
E olhamo-nos até como inimigos?
Por que, ao ver-te, descoro e tremo e calo-me?
Só por que amar é lei da humanidade?
Não sei disso; o que sei é que tens força
De prolongar a minha mocidade.
Viver é ter paixões. Enquanto n’alma
Borbulhar-me sedento este desejo,
Que me sustenta, de abraçar-te um dia,
E sugar-te da boca o mel de um beijo,
Não murcha no meu peito a flor da vida,
Que sempre rórida a teus pés deponho...
Já vês como te adoro; e, todavia,
Não nos falamos, nem sequer em sonho!
( 1879 )
PENSO EM TI
Perdoa, se, nas horas que se embebem
No coração mais cheias de amargura,
Mais pesadas de amor e de saudade,
Penso em ti... Do teu seio moduloso
Sinto a onda empolada em ânsias doces
Quebrar-se junto a mim.
Oh! minha estrela,
Noiva dos lírios, pérola celeste,
Lágrima d’anjo sobre mim chorada,
Que te somes no fundo de minh’alma,
Perdoa, se, nas horas do repouso,
Quando da morte me deslumbra o riso,
Tenho desejos tímidos de ver-te;
Que não agaste do teu anjo as asas,
Que não te acorde; — de invejar-te o sonho.
E dar-te um beijo na mãozinha casta
Que deixaste pender fora do leito...
Perdoa ainda, se arroubado, insone,
Quando na testa do levante pálido
Menos bela que tu a alva fulgura,
Ruminando a doçura do teu nome,
Nos perfumes, nos bafos matutinos,
Vagos longes de um cântico inefável,
Que vem do céu, aspiro a essência tua...
Oh! não poder-te amar com mais candura!...
Se este ansioso querer e louco anelo
Não é amor que se revele aos anjos,
Porque não tenho um coração mais puro?
Cego inditoso, que adormido sonha
Beijar-lhe os olhos peregrina imagem,
Acorda e sente o odor... palpando as vestes
Do sonho certo, que lhe diz: olhai-me!
Blasfema, estorce-se e não pode vê-lo!...
Que horrível trance! E é assim que eu te amo,
É assim que te adoro, e não te beijo,
Que não posso dizer-te, e nesta luta,
Rindo assisto aos combates tenebrosos
Que se dão na minh’alma, e, sempre amando,
Nem dos meus olhos este amor confio...
*
* *
Quisera, virgem, que meus versos débeis,
Meus pensares ao ar soltos, perdidos,
De mistura com as auras vespertinas,
Modulassem de manso — aos teus ouvidos;
Que falassem do céu, da tarde límpida,
Derramando em tua alma um vago enleio;
Que tu pudesses entendendo as queixas,
Meus versos, tímida, esconder no seio.
E como a santa da legenda, quando,
Cortando o voo a virginais amores,
Teu pai acaso perguntasse: filha,
Que tens no seio? respondesses: — flores.
*
* *
Quisera a teu lado chorar de ternura,
Dizer: que ventura!
Meu bem;
Guardar em tua boca, esse cofre de gemas,
Minh’alma; não temas,
Que tem?!
Em lendo estas frases, do mar na bafagem,
Nos beijos que a aragem
Te dá,
Teu anjo suspira: não vês que é contigo!
Tu dizes: comigo?...
Será?...
E atenta a cismar, murmurando sozinha:
Meu peito adivinha,
Sou eu...
Qu’é dele? perguntas, e o vento que passa
Dirá: que desgraça!
Morreu...
( 1865 )
QUANDO NASCESTE
Nós as estrelas, que no eco pensamos,
As folhas mortas, que no pó jazemos,
Os olhos tristes, que já não choramos...
Ah! que ventura de chorar perdemos;
De orvalho as gotas, pelo chão bebidas,
Porque em seu cálix não nos quis a flor,
Banhar-nos do anjo no clarão viemos,
E nossas preces a seus pós depor...
As auras frescas, de bem longe vindas,
Que a boca rubra da criança abrimos,
Nem lhe passamos pelas faces lindas,
Que temos pena de levar-lhe os mimos;
As rosas murchas, por ninguém colhidas,
Que inda podemos reviver de amor,
Banhar-nos do anjo no clarão viemos,
E nossas preces a seus pés depor...
Assim teu astro, nas cerúleas dobras
Do manto eterno, mais e mais fulgura;
Nasceste bela, como são as obras,
Todas as obras, em que Deus se apura.
E nesta hora em que nasceste, bela,
E a terra encheu-se dos fulgores teus,
O mar revolto era um bater de palmas,
E o céu azul era a atenção de Deus.
Lembram-se as flores, que sentiram quentes
No seio a força desse novo encanto,
Mais o calor de um coração ardente,
Que se alimenta de ternura e pranto;
Lembram-se as flores que aos ouvidos delas
Chegaram tênues os vagidos teus:
E o mar revolto era um bater de palmas,
E o céu azul era a atenção de Deus...
( 1866 )
E NEM TE IMPORTAS...
Na selva longe entre espinhos
Minh’alma sonha e medita.
Desta ave, que geme aflita,
Que embalde tenta voar,
Desta flor, que morre aos poucos,
Não podem vagos queixumes,
Transformados em perfumes,
Ao teu olfato chegar.
E eu cismo à beira dos lagos,
E eu erro em sombrios vales,
E digo ao ermo: não fales
Do meu tormento a ninguém.
Sufoco no íntimo abismo
Um nome que não profiro;
Que o meu último suspiro
Pode escapar-me também.
Não sabes disso; entretanto,
Tremem-te as fibras mimosas
Por um desmaio das rosas,
Por um soluço do mar...
Por um gemido da linfa,
Que pela veiga desliza,
Por um gracejo da brisa,
Tu és capaz de chorar...
Mas de quem sofre, não ouves,
Não ouves as sérias preces;
Ah! talvez no peito aqueces
Contra mim frios desdéns:
Palpitas por uma sombra,
Por uma flor que descora,
Mas por uma alma, que chora,
Nem uma lágrima tens?
Feres e não te incomodas!...
É o que faz a criança,
Que os passarinhos não cansa
De espantar e perseguir;
Que em todo viço da infância,
Cabeça d’anjo, louquinha,
Tira as asas da avezinha,
Torce-a, mata, e põe-se a rir...
Será talvez um mistério,
Que a beleza e a inocência
São feitas da mesma essência,
E os mesmos raios contém?
De unir a rosa ao espinho
Será de Deus um engano...
Ou tudo que é sobre-humano,
É desumano também?
Quis contar aos lírios cândidos
Da minha dor o segredo...
Quis contar, e tive medo
Das meninices da flor!..
Imenso, mas concentrado,
De fogo, porém discreto,
Como se chama este afeto?
Como nasceu este amor?
Este amor, que é minha dita,
Santo amor, que é minha pena,
Nasceu da tarde serena,
Do azul do céu e do mar;
Nasceu do incenso sagrado,
Que exala a roupagem tua,
Nasceu de um raio da lua,
E um raio de teu olhar.
Ave, que os voos ensaias,
Rosa, que mal entreabriste,
Não saibas, por que sou triste,
Arcanjo, dá-me a tua mão!
E vós, oh! auras dos prados,
Flores, que abris melindrosas,
Bocas, que rides mimosas,
Soprai no meu coração...
( 1867 )
FILIPA
Oh! tu, que abriste no meu peito estéril
Fontes de amor e virginal ternura,
Íntima essência das manhãs cheirosas,
Lírio animado de infantil candura;
Ideia, encanto, lucidez dos anjos,
Pálido sonho de saudades feito,
Por ti definho... vem tocar mais perto
A dor oculta, que me rasga o peito.
Podem teus olhos, que deslumbram fúlgidos,
Quando entre os astros fulgurosos tremem,
Saber a causa, por que a lua é triste;
Por que a alma chora, por que as rolas gemem...
Mas não puderam, por desdita minha,
Sondar o gérmen desta mágoa infinda;
Mas não puderam, penetrantes, vívidos,
Teus meigos olhos entender-me ainda!
E eu tenho n’alma, para dar-te, o aroma
De inotas flores que ninguém sentiu,
Como no fundo dos espaços brilham
Milhões de mundos que inda não se viu.
E eu tenho n’alma a vibração eterna
D’harpas, que ao longe soluçar ouvi;
Tenho os suspiros, o bater das asas,
Talvez de um gênio, que morreu por ti.
Mas tu não sabes o que sinto! Escuta
O verbo augusto, que direi tremendo;
Última nota que do peito as cordas,
Por ti quebradas, soltarão morrendo...
Eu te amo! Atende: e deste amor, que eu calo,
Por prêmio e glória, só imploro a Deus
Na terra — um pouco de silêncio... nada;
No céu — a graça dos sorrisos teus...
( 1865 )
LUTAS D’ALMA
Como é sublime o combater de uma alma,
Que abriu as asas aos tufões da sorte!
Leva no seio um oceano amargo,
Transcende as nuvens soberana e forte;
Toma-lhe o vento as esperanças todas,
Mas não sucumbe, mas não foge à morte...
Como e sublime o combater de uma alma,
Que abriu as asas aos tufões da sorte!
Sim! E que importa que na fronte curva
Pressinta o frio de funérea lajem?!
De uma tristeza no fatal suspiro,
De uma lembrança na veloz passagem,
Escuto ao longe o coração, que bate,
E a voz de um anjo que me diz: coragem!
Sim! E que importa que na fronte curva
Pressinta o frio de funérea lajem?!
Sorte maldita, que me tens ferido,
Tu me venceste, mas eu não me entrego!
Na mente escura, como o vasto globo
Da noite negra tateando cego,
Encontro as crenças de futuras glórias,
Que hão de valer-me, porque as não renego...
Sorte maldita, que me feres n’alma,
Tu me venceste, mas eu não me entrego!
Possa meu pranto fecundar a terra,
Donde rebentam da piedade as flores;
E tu, que assistes de minha alma às lutas,
Sê compassiva para tantas dores.
Morta a palavra pelo sofrimento,
Perdido o riso pelos dissabores,
Possa meu pranto fecundar a terra,
Donde rebentam da piedade as flores...
( 1867 )
JERÔNIMA
Junto, bem junto à região dos sonhos
Ergueste o trono da beleza tua;
Ris, tudo brilha, tudo fala e sente,
O céu trasborda e o coração flutua.
Nos seios te arde perenal, cheiroso,
Incenso puro de sagrado amor:
Mostras nos olhos, nas feições, nos lábios,
A luz de um astro dentro de uma flor.
Lá onde correm, no correr das nuvens,
Gênios etéreos, matinais, risonhos,
Na plaga imensa de estrelados mares,
Junto, bem junto à região dos sonhos;
Lá onde ousado o pensamento humano,
Querendo entrar ante o clarão recua,
Lá onde apenas meus suspiros chegam,
Ergueste o trono da beleza tua.
Há no teu rosto uma intenção divina;
Oremos que és santa; pois que Deus não mente...
Sai de tua boca misterioso aroma,
Ris, tudo brilha, tudo fala e sente.
Nem há segredo que medrosa ocultes;
Porque tua alma é uma deusa nua
Que os anjos banham, e na terra em ondas
O céu trasborda e o coração flutua...
Mas ninguém sabe que visões douradas
Enchem teus dias de indizível gozo:
O sentimento da candura eterna
Nos seios te arde perenal, cheiroso.
Guardas, é certo, para quem no mundo
Tiver mais glória, mais ditoso for,
Guardas no peito, que as paixões não ferem,
Incenso puro de sagrado amor.
Ver-te... é beber uma porção de néctar,
Deixar no espírito imortais ressábios.
O que és, mal pensas; tua origem, bela,
Mostras nos olhos, nas feições, nos lábios;
Na fronte clara, sobranceira, altiva,
Nesses desmaios de celeste alvor...
Como que Deus em teu corpinho encerra
A luz de um astro dentro de uma flor...
( 1871 )
PORQUE ME FERISTE!
Bem como as rosas cm botão fechadas,
À espera d’alva, que lhes venha abrir,
No peito mágoas, a doer caladas,
Pedem um raio para as expandir.
Fita-me, eu quero do martírio santo,
Que o céu me outorga, oferecer-te a palma;
Deixa em teus olhos depurar minh’alma,
E em teus cabelos enxugar meu pranto.
Desde que, ao ver-te ajoelhei-me absorto,
E à hora extrema o coração bateu,
Meu pensamento, qual um raio morto,
Caiu-te aos pés e nunca mais se ergueu.
Quis perguntar-te: por que me feriste?...
Fitei-te os olhos e tremi de medo...
Tive receio de morrer tão cedo,
Tendo o desgosto de viver tão triste...
Tu, que sorrindo minha fronte abrasas,
Por que não deixas que te possa amar?
Eu dispensara do meu anjo as asas,
Bastara um anjo para nos guardar.
Forma visível de minha alma errante,
Que o meu penoso coração dedilhas...
Oh! minha estrela, que de longe brilhas,
Nada te importa que eu soluce ou cante!
Para em teu seio penetrar a furto,
E haurir o orvalho da pureza em flor,
Longo... infinito... o pensamento é curto,
Curtos os voos do meu casto amor.
Quantas e quantas já lá vão perdidas
Lágrimas d’alma, que se quebra em ânsias!
Pude nos sonhos aspirar fragrâncias...
E achei as rosas de manhã caídas!
Ai! deste amor o ansiar dorido
Cubra, sufoque do mistério o véu.
Gênio dos anjos, se te amei perdido,
Não rias, ouve: dir-t’o-ei no céu...
Fita-me; eu quero acrisolado e santo,
Do meu tormento oferecer-te a palma,
Deixa em teus olhos depurar minha alma,
E em teus cabelos enxugar meu pranto.
( 1867 )
AMÁLIA
(NUM ÁLBUM)
Que vem fazer em página tão alva
Uma ideia mortal, humana, imprópria,
Como em fronte infantil ruga sombria?
Ah! se ao apelo de teus olhos sérios
Responde tudo, que palpita e brilha;
A flor, a estrela, o coração respondem
Num canto vago, imaculado, etéreo;
Possa, minh’alma enevoada, agreste,
De um nome angélico atirar as sílabas
Ao mar, ao céu, à luz, ao vento, às águias,
Capazes de apanhar a poeira fúlgida
Do chão que pisas, e, num voo celeste,
Ir, por brinquedo, sacudir as asas
No seio branco da mais linda nuvem...
*
* *
Feito de riso e doçura,
Aura do céu respirável,
Teu nome santo, inefável,
Tão puro, que os lábios meus
Têm susto de proferi-lo,
Desperdiçar-lhe os odores,
Amália!... é o abrir das flores
Pronunciado por Deus!
Bem como do sol projetam-se
Os longos raios na lua,
Dardeja na face tua
Paterno olhar do Senhor.
Nem sei o que é mais visível,
Se do teu rosto a lindeza,
Do teu corpo a sutileza,
Ou da tua alma o candor!...
Mas é verdade que sofres?...
Tão moça, — sofres tão cedo!
Dize: que angélico dedo
Buliu-te no coração?
Ou foi a aragem da tarde,
Que o teu bordado de sonhos,
Esperançosos, risonhos,
Arrebatou-te da mão?
Dize: — no céu, nas esferas,
Fitaste um olhar mais triste?...
Tão terna às flores sorriste,
Que a alma puderam-te ver?
Pois as flores todas, todas,
Já sabem do teu segredo,
E se elas sabem... tem medo,
Que as aves queiram saber.
Os ninhos não são capazes
De esconder este mistério;
Nem mesmo o túmulo é sério,
Para guardar esta dor...
As rosas não são amigas,
A quem abras o teu peito,
Cruéis que dizem: bem feito,
Quem te mandou ter amor?
*
* *
De um peito débil nos sonoros ritmos,
Como que se ouve o tropear de instantes,
Que vão correndo fugitivos, trépidos...
Não ouças: — canta. Que disse eu? não cantes!
Não; não recebas do piano os bafos,
Que são veneno para a tua dor:
Esconde o peito dessas auras frias,
Que passam cheias de saudade e amor.
Dizem que as serpes habitar costumam
Ninhos sem aves, por aí desertos;
E a morte gosta de beijar os seios,
Que as mágoas deixam para os céus abertos.
Não penses nisso; em tua fronte límpida
Corre da vida o matinal frescor:
Esconde o peito dessas auras frias,
Que passam cheias de saudade e amor.
Como se calam da esperança os hinos,
Ruído d’asas, que ao teu lado ouviste!...
Ao céu perguntas: por que morre a virgem?
E o céu te escuta num silêncio triste...
É que tens medo de fechar os olhos,
Cerrar os lábios, e perder a cor....
Esconde o peito dessas auras frias,
Que passam cheias de saudade e amor.
Tudo faz mal ao coração: — a folha,
Que cai, o ramo, que estremece, a vaga,
Que geme à tarde, uma lembrança ao longe,
Um raio trêmulo, um olhar, que afaga;
Tudo faz mal ao coração: — a aurora,
O riso, o pranto, o desfolhar da flor...
Esconde o peito dessas auras frias,
Que passam cheias de saudade e amor.
( 1864 )
TÃO LONGE ASSIM...
Quando no peito mais a dor se entranha,
Quando as saudades me atormentam mais,
Despido arcanjo, que na luz se banha,
Dormes, não ouves de quem te ama os ais!...
Sem ver que rolam sobre as faces tuas
Lágrimas quentes de abafado choro,
Boias no lago, em que as deidades nuas
Lavam cantando seus vestidos de ouro.
Sonhas; no sonho, o coração falando;
Na boca... o orvalho de um sorriso lindo...
E os astros tremem de te ver boiando,
Como eu tremera de te ver dormindo!
E vão teu corpo, tua imagem bela
Volvendo as ondas do infinito... além...
E as santas dizem: que florinha aquela,
Que na corrente deslizando vem!...
Tão longe assim! Das efusões celestes
Sobrenadando no sereno mar,
Feliz o anjo, que te guarda as vestes,
Que estende as asas para te embrulhar!
Eu tenho ânsias de viver arcando
Com as águas quentes desse mar infindo!...
E os astros tremem de te ver boiando,
Como eu tremera de te ver dormindo.
Na voz penosa ele sentidas queixas
Eu sou o arroio, que a teus pés murmura,
E a quem, medrosa, refletir não deixas
Todo o teu rosto em sua linfa pura...
Passei nas várzeas: — não havia flores;
Mudei de rumo, pelo val desci;
Nas minhas selvas não achei verdores,
Tudo era morto de sofrer por ti...
( 1866 )
NÃO FALEIS EM MIM...
E hei de acabar, desventurado e triste,
Falando aos lírios, que me não respondem,
Lascando uns olhos que de mim se escondem,
Paia não darem-me ilusões de amor?
Hei de acabar!... e do fatal poema...
Sim, deste salmo que a chorar desfiro,
O último verso é o último suspiro,
Suspiro eterno da inefável dor.
Qual brava corça das virentes selvas,
Na sombra oculta a se nutrir de espinhos,
Minh’alma pobre, que não tem carinhos,
Amargas penas na soidão remói:
Pasmando aos mimos da mulher que adoro,
Visão que abraço pelos raios dela,
Transido, sofro a suspirar: oh bela,
O sol que brilha, também queima e dói!
Morrer por ela... que loucura minha!
Longe, bem longe o seu olhar diviso...
Que tenho eu, para pedir-lhe um riso,
Que tenho eu, para adorá-la assim?
Astros da noite, que fitais-me atentos,
Dizei, dizei que esta paixão me mata,
Mas, por amor, não a chameis ingrata,
Ride com ela, e não faleis em mim...
( 1866 )
AINDA E SEMPRE
Eis-me à borda do abismo arrastado,
Deste amor aos impulsos fatais;
E teus olhos, que assim me levaram,
Já parecem dizer: é demais!
É demais, bem o sei, a loucura
Com que cego atirei-me a teus pés;
E da poeira de luz, que circunda-te,
Quis ousado romper através.
Vi-te bela; encarei as estrelas,
Não achei quem dissesse: onde vais?
E minh’alma perdeu-se nas sombras
De teu negro cabelo... É demais!..
Fazes bem; meu amor não tem asas
Para ao longe contigo voar;
Pobre, louco, misérrimo e triste...
O que tenho? o que posso eu te dar?
Neste cofre de um peito sincero,
Que padece, e não sabe-o ninguém,
Guardo lágrimas; queres? não queiras;
Para quê? pois é só o que tem...
Mas as lágrimas valem riquezas
De um afeto que é pena deixar,
Por desdém ou fereza, perdido,
Qual tesouro no fundo do mar.
( 1881 )
INCRÉDULA...
Quando refiro-te a porção de sombras
Que o teu cabelo me lançou na fronte,
E os ais sentidos que no ermo exalo,
Pedindo ao ermo que a ninguém os conte;
Quando te falo no profundo afeto
Que tua boca me imprimiu no seio,
Teus meigos olhos me respondem tímidos:
Como é possível este amor? não creio.
Como é possível?! tens razão... As almas
Não sobem todas à serena altura,
Donde se expelem deste mundo as mágoas
E lá mais vivo o coração fulgura.
Não sobem todas. Entretanto eu sofro,
Ninguém percebe a minha dor, — eu choro,
Ninguém conhece do meu pranto; eu morro,
E tu perguntas com que fim te adoro?!...
Podes dizer-me com que fim rebentam
Brancas boninas no deserto? e as aves,
Que o sol saúdam, com que fim gorjeiam,
E acordam d’alma as emoções suaves?...
A flor das veigas e dos céus a estrela,
Que meigos prantos entre si derramam!
A flor não sobe, nem a estrela desce,
Qual o motivo por que tanto se amam?
( 1872 )
POR BRINCADEIRA
"Bem vês, as ilusões fugiram-me da mente,
Os sonhos de minha alma o tempo esvaeceu;
Na sombra e no silêncio arrasto-me indolente,
Contudo... pensas tu que o coração morreu?”
( Do Autor )
Vinde comigo ver essa beleza,
Encarnação do espírito das flores,
Última ninfa que encontrei perdida,
Solitária na ilha dos amores.
Como cera mil vezes depurada,
Realça-lhe o candor da fronte linda;
— Natureza cruel e demoníaca,
Da família de Lélia e de Lucinda;[10]
Bastos, crespos cabelos de mulata,
Sendo ela aliás de pura raça ariana,
Olhos d’águia, de mãozinhas de criança,
Boca de rosa e dentes de africana...
É esta a imagem que peguei num sonho,
Sonho de amor, febril e delirante;
A mais moça, a mais quente das dez virgens,
A que o reino dos céus é semelhante...
( 1881 )
PARTE TERCEIRA
PATRIÓTICAS
À VISTA DO RECIFE
É a cidade valente,
Brio da altiva nação,
Soberba, ilustre, candente
Como uma imensa explosão:
De pedra, ferro e bravura,
De aurora, de formosura,
De glória, fogo e loucura...
Quem é que lhe põe a mão?
Mágoas tem que estão guardadas,
Quando as vingar é sem dó!
Raça das Romas tombadas,
Das Babilônias em pó,
Quer ter louros que reparta;
Vencer, morrer não lhe farta...
Grande, da altura de Sparta,
Afronta o mundo ela só!...
Com os seios entumecidos
Do gérmen de muito herói,
Tem nos olhos aguerridos
Fulmínea luz que destrói.
Detesta a classe tirana,
Consigo mesma inumana,
Vê seu sangue que espadana,
Ri de raiva, e diz: não dói!...
No seu pisar progressivo
Ostenta um certo desdém;
Suspendendo o colo altivo,
Não rende preito a ninguém.
Lê no céu seu fado escrito,
Quando o Brasil solta um grito,
Franze a testa de granito,
E diz ao estrangeiro: vem!...
Sim, eu vejo ainda a espada
Na tua destra reluz,
Cabocla civilizada
De pernas e braços nus,
Cidade das galhardias,
Que no teu punho confias,
Coeva de Henrique Dias;
Guerreira da Santa Cruz!
Estremecida, ridente,
Como que esperas alguém.
Ouves um som de torrente?
É a grandeza que vem...
Teu hálito alimpa os ares,
Por cima do azul dos mares
Prolongam-se os teus olhares,
Que vão namorar além...
Não te pegam em descuido;
Teu movimento é fatal.
E a liberdade, esse fluido,
Que forma o gládio, o punhal,
Nos teus contornos ondula,
Nas tuas veias circula,
E vai chocar-te a medula,
Dos ossos de pedra e cal.
Ê um lidar incessante:
Cai-te da fronte o suor;
Ferve tua alma brilhante,
E tudo é belo em redor.
O assombro lambe-te a planta.
Na estrela, que se alevanta,
Pousado o teu gênio canta:
Vai ser do mundo a maior!
Tens aberta a tua história:
Laboras como um crisol;
Como um estigma de glória,
Nos ombros queima-te o sol.
A guerra, a guerra é teu cio,
Fera! ... O estrangeiro frio
Se aquece ao beijo macio
Dos teus lábios de arrebol.
Assopras nas grandes tubas,
Que despertam as nações;
Eriçam-se as férreas jubas,
Uivam as revoluções...
Teus edifícios dourados
Vão-se erguendo penetrados
Da voz dos Nunes Machados,
Do grito dos Camarões!...
Com a morte bebes a vida;
Não te abalas, não te dóis!...
De ouro e luz sempre nutrida
Novas ideias remóis.
E que à voz das liberdades,
Calcadas as potestades,
Germinam, brotam cidades
Do sepulcro dos heróis!
Possa a coragem de novo,
Teu bafo ardente inspirar,
E a glória sair do povo,
Como tu surges do mar...
O coração te o adivinha,
De fome o ferro definha,
Ruge o gládio na bainha,
Como na gruta o jaguar...
Sejam meus votos aceitos:
Dá-me ver tuas ações,
Dá-me sugar esses peitos,
Que amamentaram leões...
Saíste nua das matas,
Não temes, não te recatas,
Contra a frota dos piratas
Açula os teus aquilões...
( 1862 )
VOLUNTÁRIOS PERNAMBUCANOS
Já fomos a gente ousada
Que um mundo virgem produz;
Já viu a Europa assustada
Setas e caboclos nus
Pularem grandes, valentes,
Vermelhos, resplandecentes,
Do abismo dos ocidentes,
Lavados em sangue e luz!...
Hoje a ideia em nossa terra
Fulmina a espada voraz:
Que somos? Lavas de guerra,
Petrificadas em paz;
E pois não venham ignavos
Na língua dos ferros bravos
Deixar os amargos travos
Desse horror que o sangue faz.
O Brasil, de coma intonsa,
Dorme e deixa-se afagar;
Macio qual pelo d’onça,
Não no queiram insultar:
Os que repousam nas campas,
Sentem que o vento dos pampas
Lhes açoita as áureas lampas,
E os faz com raiva acordar!...
Para estes vultos brilhantes
Morrer... é não combater;
É apear-se uns instantes,
Do vale ao fundo descer,
Fitar a noite estrelada,
E à espera doutra alvorada,
Dormir nos copos da espada,
Deixando o sangue escorrer!
Que atletas! que espectros grandes!
Lá por onde o sol tombou,
No topo altivo dos Andes
Um cavaleiro estacou...
Sussurram voos angélicos,
Lambem-se os gládios famélicos,
Dir-se-iam relinchos bélicos
Que o brônzeo corcel soltou!...
Muita coragem, que dorme,
Desperta da guerra ao som:
Fumega o banquete enorme
De ferro e fogo! Está bom!...
Tudo ri, palpita, avança...
Que o rei também tome a lança,
Se tem brios um Bragança,
Se tem valor um Bourbon!
O povo sacode o sono
Da cabeça que descaí:
Senhor! d’altura do trono
Vede a mão de vosso pai,
Limpando todas as frontes,
Passando em montes e montes,
Por cima dos horizontes
À cata do Paraguai!...
E temos peitos vetustos,
Que batem sempre leais;
Âmagos d’homens robustos,
Que ainda guardam mortais,
Antigas, ferventes ascas....
Do tronco saltam as lascas:
Mazeppas, Árabes, Guascas,
Vede lá: quem corre mais?...
No coração desta gente
O bravo sufoca o ai.
Que ferros! o cedro ingente
De um golpe derreia e cai;
Ceda a república insana;
Se enfim não se desengana,
Espada pernambucana,
Des embainha-te e vai!
Vai tu, que não geras fracos,
Cidade que abres-te aos sóis...
Cornélia mãe de cem Gracos,
Viúva de oitenta heróis!
Quem há que o colo te dobre?
Terrível, sincera, nobre,
Limpaste as faces de cobre
Das batalhas nos crisóis!
Não fala, não ri, não medra
Contigo estranha altivez;
Tu tens nas unhas de pedra
Cabelo e trapo holandês...
Teu sopro que acende a glória,
Suspende a poeira da história
Em turbilhões de vitória;
Venceste por uma vez!
Levantas o braço forte
E o raio matas na mão!
Como um aceno de morte,
Os Guararapes lá estão!...
Volúpias de fogo exalas,
As pétreas juntas estralas,
E pões-te a salvo das balas
Por detrás de Camarão.
Guerreiro a morrer afeito
Defende o Brasil, que é seu;
A hora soa no peito,
A cicatriz é troféu.
Da pátria as manhãs coradas,
As tardes acabocladas,
Flores, mulheres amadas,
São estrofes de Tirteu...
( 1865 )
OS LEÕES DO NORTE
( AOS VOLUNTÁRIOS PERNAMBUCANOS )
Se há quem possa ter visto em noite lúgubre,
De tempestade disposta rugindo,
Nas primitivas solidões das selvas
Estorcerem-se as árvores gigantes,
Em contrações de dor, rugindo iradas,
E ao abrir do relâmpago, estalando
Altos cedros que o raio despedaça,
Passar um vulto de caboclo impávido,
Sacudindo os cabelos, indomável,
Atrás das feras disparando setas,
Grande, rebelde às leis da natureza;
Se alguém já viu, imaginou tal cena,
Poder-me-á dizer que dessa têmpera
Só há, seguindo sempre a sua origem,
Fortes, fortes assim do norte os filhos,
Quando atiram-se rígidos, invictos
Nas procelas cruéis que as armas fazem,
E embrulhados na nuvem tenebrosa,
Com que os encobre o anjo das batalhas,
Sobranceiros à morte que rechaçam,
Galgam da glória o escarpamento altíssimo,
Pelos raios da guerra iluminados!...
Terra de bravos, raça de valentes,
Tu és o punho do gigante império!
Terra de bravos, raça de valentes,
Desde quando nos músculos selvagens,
No solo virgem, no âmago dos troncos,
Livre corria do Brasil a seiva;
Desde quando rugiam nas florestas
A torrente, o caboclo, a onça, o vento...
Desde o arco encurvado por Tabira,
Té o gládio brandido por Lamenha!
Só este nome encerra uma epopeia;
Pois que de quantos houve heróis honrados,
Que ainda há pouco a pátria enobreciam,
Que sufocados no silêncio eterno,
Fumegantes ainda dos combates,
Como os leões a pernoitar nas grutas,
Recolheram-se aos túmulos... foi ele,
Que, ajustando o valor com a lealdade,
Sob o azul deste céu lançou mais brilho,
Fez mais rápido a órbita da espada!
Só Pernambuco tem destes modelos.
Imitemo-los todos, imitai-os,
Vós, que tendes no peito ardendo oculta
D’almos brios a flama inextinguível,
Para brilhar num dia de vingança...
O que há de ilustre, glorioso e belo,
Que dirige-se a nós, ao nosso mundo,
Longe no abismo do porvir imenso,
Branqueando como a vela de Colombo,
Só avista-se bem, só se descobre
De cima desses túmulos heroicos,
Promontórios do mar da eternidade...
Imitemo-los todos, imitai-os,
Vos, que a pátria podeis salvar do opróbrio;
Vós, que daqui saís, deixai que eu diga,
Inexpertos, incógnitos, pequenos,
E amanhã vos tornais grandes, esplêndidos,
Da vitória ao clarão transfigurados!
É mister que o Brasil, se erguendo altivo,
Despreze de uma vez, não mais aceite
Os apertos de mão, que lhe prodiga
D’além do mar a pérfida amizade.
O mundo sabe a nossa história. Tudo
Que há de heroico entre nós também foi feito.
Quem duvida? O oceano interpelado
É capaz de atestar esta verdade,
Arrojando indignado em nossas plagas
Armas, destroços e almirantes batavos!...
Ide varrer o Sul, tufões do Norte!
O Deus de Camarão vos abençoa.
E Olinda, a triste, a pensativa Olinda,
Tem mais um pranto, que chorar de glória,
E um fato que contar aos vossos netos...
( 1865 )
SETE DE SETEMBRO
Quando os céus limpos, atentos,
Falavam com as solidões
Cheias de estremecimentos,
De vastas palpitações;
No dia em que o luso Diogo
Tornou-se o homem de fogo,
Que a taba curva adorou,
De frente encarando o raio,
Houve um que disse: — não caio!...
E riu-se, e não se curvou!
Era um irmão de Moema,
Que amava Paraguaçu;
Ergueu a fronte suprema
E disse ao luso: o que és tu?
Viu toda a tribo prostrada...
Fugiu; e a seta irritada
Que ele atirou para o ar,
Varando através dos anos,
No coração dos tiranos
Há de um dia se cravar...
Rolam os astros, os dias,
E o grande dia não vem:
Cada povo o seu Messias
Aguarda, espera também;
Suporta, suspira, anseia
Pelo homem, pela ideia,
Que passa e se faz nação...
Para que tudo estremeça,
Basta erguer-se uma cabeça,
Cheia da revolução!...
Ergueu-se: foi decepada.
Ergueu-se outra, caiu.
Mais outra: ainda calcada...
Ao longe um brado se ouviu!
Era o espírito das matas,
Os turbilhões democratas
Que a liberdade produz,
Fazendo os tronos vergarem,
E os reis se descoroarem,
Cortejando a nova luz....
Mais de uma fronte abatida,
Sangrenta, humilde no pó,
Suspendeu-se esclarecida
A luz deste dia só.
E todos que despertaram
Com o ferro em punho, esbarraram...
Porque Deus, que ama os perdões,
Disse aos livres que rugiam,
Que inda vingar-se queriam:
Tranquilizai-vos, leões!
( 1865 )
EM NOME DUMA PERNAMBUCANA
Nas unhas de ferro de infames rapaces
Lá morre o soldado que a pátria enviou!
Por ele uma lágrima inunda.... que faces!
Se ainda há quem vacile, quem diga: não vou!..
Assim é que a vida se cobre de flores,
De beijos, de risos, de dias caudais....
Destarte é que vamos a ser uns senhores
Galantes, mofinos, covardes, banais!
Ruído nos mares... clarão no horizonte....
Os nossos murmuram: são eles que vêm!
Por cima das serras lampeja uma fronte....
É o sol que levanta-se, é nada, ninguém!...
Que é desses valentes, que abraçam as glórias,
Que plantam cidades nos seus mausoléus?
Oh! vinde escaldar-vos ao sol das vitórias,
Espadas geladas no fundo dos céus!
*
* *
Volvem-se os ossos da história,
Olha-se em torno.... ninguém!
És o eclipse de uma glória
Em pleno dia... pois bem!
Ímpetos d’almas ardentes,
Corações, forças, torrentes,
Vós todos, que cavalgais
De um pulo os corcéis da morte,
Guerreiros, ventos do norte,
Deus de Vieira, onde estais?
De suas irmãs aos gemidos,
A mais valente, pasmai!
Com as mãos tapando os ouvidos,
Responde que lá não vai!...
Pode Aquiles agastado
Sair, e ver-se vingado;
Porém tu, cidade, não....
Negas a tua falange?!
Es a bastarda de Orange,
Ou Clara de Camarão?
Corre da pátria em defesa:
Fé no triunfo que vem.
Diante de tua grandeza
Eu me engrandeço também.
Vê do passado as entranhas:
Sepulcros, troféus, montanhas,
Esqueletos de Titães,
Nomes que os mundos ouviram,
Garras, jubas, que inda inspiram
Terror aos rábidos cães!
Sob os seios tumulares
Que heroicas palpitações,
Quando abrem-se em nossos ares
As asas dos batalhões!
São esses de peito forte,
Meio engolidos da morte,
Sublimes, descomunais,
Que o golfão da noite escura
Some-os até a cintura,
Somente, não pode mais.
Emudecidos, guardados,
Por que não querem luzir
Corações acrisolados
No brasileiro sentir?!
Que gelo em tórrida zona!
Do Deus, que nos abandona,
Vingai-nos, velhos heróis:
Vossas testas são levantes,
Lavai as barbas, gigantes,
No sangue dos arrebóis...
Os mortos.... ei-los na frente!
E os vivos.... onde é que estão?
Que quer o povo? que sente?
Medo de morrer? oh! não!...
Morrer é soltar um grito,
Que rola pelo infinito,
Terrível, terrível.... sim!
E o nome, o valor subido,
A glória, a fama, e o ruído
Daquele rolar sem fim.
( 1865 )
VERSOS ESCRITOS NUM DIA NACIONAL
Ê mais um dia azul, um astro de ouro,
Que passa e volta nos vaivéns do tempo,
Onda que arroja a eternidade límpida,
Banhando de esplendor a face augusta
Da nação, que se mostra ousada e forte...
São palmas para ti, terra fecunda
De valentes e bons. São palmas tuas,
Terra em que o sol e Deus são populares,
Jovem pátria de heróis!
Que outros te vejam
Grande, estendida vastidão, prostrada
D o Amazonas ao Prata em sono estúpido...
Quero ver-te de pé; pisando em nuvens!
Só ergue-te, Brasil, fita mais alto,
E lança a voz aos ecos do infinito,
Aos combates, às lutas gloriosas
Que o futuro longínquo te promete;
Leva contigo o teu passado ilustre
De robustas ações. Leva contigo
D’heróis o século auroral, brilhante,
Como de Homero os colossais guerreiros
Meio nus mergulhavam nas batalhas,
Com seus mantos de púrpura no braço!...
Atira a voz aos ecos das alturas;
E no teu avançar para a conquista
Das estrelas que além te chamam, tendo
Na larga destra a tocha do progresso;
Projetando tua sombra sobre os mundos,
Com tua índole própria de cometa,
Ergue o punho, desloca-te do globo
E sacode no espaço os teus cabelos!
Perante os vendavais os troncos rangem
À face dos leões a grei se esconde,
Ao grito dos heróis as armas tremem.
Cada guerreiro que por nós combate
É a ira de Deus que se faz homem;
Tem na espada o relâmpago, e no peito
O subterrâneo palpitar da pátria.
Labora a chama, a serpe se contorce,
A guerra avança, o Paraguai recua!...
Do século que passa o gênio ousado,
Que conduz as nações ao grande, ao belo,
Definha e morre ali, como um antigo
Prisioneiro de Francia. As férreas portas
O Brasil vai-lhe abrir, dissera o povo.
Mas nós que combatemos e que amamos
As vitórias sem sangue, como auroras
Que não tem arrebol; nós, que vencemos,
Sejamos bons. A obra heroica do homem,
O triunfo, a conquista, o louro, a palma,
Todos os feitos da grandeza humana,
Face a face com Deus, com as obras suas,
Não igualam, não valem na beleza
Uma gota de orvalho, que cintila
No cálix de uma flor....
No céu, na terra
O que há de grande, as árvores, as águas,
A procela com todos os seus raios,
O oceano com toda a sua cólera,
Face a face, grandeza por grandeza,
Luta por luta, esforço por esforço,
Também não valem, no ideal que encerram,
Uma paixão que esmague-se no peito,
Um só dever cumprido, um grito, um ímpeto,
No fundo d’alma comprimido e morto!
*
* *
Limpas de sangue as espadas,
Limpos de sangue os troféus,
De glória as faces banhadas,
Banhados de glória os céus;
Açoitam nossos ouvidos
De etéreas harpas os sons...
Perdão aos pobres vencidos,
Guerreiros, sejamos bons!
( 1865 )
CAPITULAÇÃO DE MONTEVIDÉU
Juntemos as almas gratas
De colegas e de irmãos;
O vento que acorda as matas
Nos toma os livros das mãos:
A vida é uma leitura,
E quando a espada fulgura,
Quando se sente bater
No peito heroica pancada,
Deixa-se a folha dobrada
Enquanto se vai morrer...
Não permitamos que falem
Campas ilustres por nós:
São grandes, mas já não valem
Fantasmas, sombras de avós.
Se vos cobris de flagícios,
Ociosos, nobres, patrícios,
Diz Mário, se nada obrais,
Que importam avoengos brios,
Caducos, mansos e frios,
Raios que não prestam mais?
Que leio em vossa alma inquieta?
Queda de Montevidéu:
Tombaste, diz o profeta,
E o raio aplaude no céu!
Pernambuco agita a coma,
Irrita-se um pouco e toma
O peso do Paraguai;
Dá de escárnio uma risada,
Cerra o punho e a sua espada
Desembainha-se e vai...
Já das vitórias que correm
Nitrem os rubros corcéis,
Os fortes avançam, morrem;
Erguem-se espectros cruéis!
Levam dos gládios terríveis,
Rúbidos, quentes, flexíveis,
Como línguas de leões;
Gritam, a morte se assusta,
Voa tonta e barafusta
Nas asas dos pavilhões!
E tinem os músculos de aço
Do brasileiro valor;
O herói alevanta o braço,
Clamando: esperai, Senhor!
Tudo nosso, nada alheio!...
A sorte vã neste meio
Não ponha o seu pé fatal:
Tendo os auxílios divinos,
Chamar-nos-ão de mofinos!...
Senhor, sede imparcial!
Bem como os rios valentes,
Que arrojam-se além da foz,
Distintos, independentes
Das águas do mar feroz,
Desses que a pátria defendem,
E aos sacrifícios se rendem,
Guardando os direitos seus,
O vulto impetuoso e forte
Avista-se além da morte,
Não se confunde com Deus...
Esses, que alargam os peitos
E as mãos para sustentar
Vastos planos, altos feitos,
E a fama enorme empolgar,
Da altura precipitados,
Rolam nos ecos abraçados
Com suas grandes ações, ·
Deixando impressos os dedos
Nos poemas, nos rochedos,
Nos bronzes, nos corações!...
( 1864 )
A VOLTA DOS VOLUNTÁRIOS
Inda têm fogo nos olhos!...
E as armas inda estão quentes!
A face destes valentes
Faz medo, custa a encarar,
Para não ler as palavras
Que o anjo da guerra imprime
Na fronte heroica e sublime
Que ele não pôde curvar!
Palavras fundas e lúgubres,
Que traçam esta sentença:
Não achareis recompensa,
Que a lei dos homens não dá...
E oxalá que em algum dia,
Tendo saudades da morte
Não clameis: — feliz a sorte
Dos que não voltaram cá!
Que dizes, pendão soberbo,
Trapo de raios e glórias,
Por combates e vitórias,
Que ainda fazem tremer,
Esta relíquia de bravos,
Fundidos em altos feitos,
Com a vastidão de seus peitos,
Chegas tu para envolver?
Não vos lembreis dessas horas
De universal agonia,
Quando, aos ais da artilharia,
Levantam-se os gládios nus;
O inferno cospe a metralha,
Fuzila o raio mais forte,
Diz a bala: eu sou a morte...
Diz a morte: eu sou a luz!...
Entrai, golfadas do abismo,
Primogênitos da guerra,
Que pisais de novo a terra
Glorificada por vós.
Desconfiais do futuro?!
Não, não! a pátria não mente,
De tudo é ela inocente,
Pois a pátria somos nós.
Somos nós que só com flores
Remunerar-vos podemos;
Se outros títulos não temos
Para dar-vos, não zombeis!...
À altura que estais erguidos
Braço d’homem não atinge,
Nem régia destra vos cinge
Dos louros que mereceis...
( 1870 )
DECADÊNCIA!
Nós já não temos caracteres nobres,
Nem voz, nem sombra de Catões e Gracos:
O céu tem pena de nos ver tão pobres,
O mar tem raiva de nos ver tão fracos.
Por que não ergue-se o Brasil fecundo,
Por vastas ambições, por fortes brios?...
Que glória é esta de mostrar ao mundo,
Em vez de grandes homens, — grandes rios?...
Bastas selvas, um céu azul imenso,
Que os corações em flor bafeja e rega;
Uma terra abrasada, como incenso,
Que do sol no turíbulo fumega?!
Nada val, se não há quem se ofereça
Para d’alma arrancar-lhe o negro espinho...
Tudo em baixo!... não surge uma cabeça
Em que as altas ideias façam ninho!..
Donde é que teu primor, pátria, derivas?
Por que ao orgulho ingênua te abandonas?
Ai!... as outras nações dizem altivas:
Pitt, ou Bismarck; e nós?... o Amazonas!...
O cetro é nulo: e os ânimos languescem
Da indiferença no pesado sono...
Não vêm as horas em que as águas crescem,
E a onda morde na raiz do trono....
Que o povo fale, isto é, — prenda na boca
A escuma, a raiva, o fel dos oceanos,
E a brasa dos vulcões! matéria pouca
Para cuspir na face dos tiranos...
Tiranos?! sim, que matam o progresso,
Que sufocam a luz e o direito,
Para quem toda ideia é um excesso!...
Não há mais fogo do Brasil no peito!...
( 1870 )
À POLÔNIA
Ainda um povo cativo,
Que em luta inútil se esvai!
Da luz o século altivo
Encolhe as asas e cai....
Lá sofre a virgem sozinha.
Lhe diz o Cossaco: — és minha!
E a pobre soluça: não!...
Frase negra, renegada,
Que sai como uma golfada
De raiva e desesperação.
O mundo vê... não lh’importa!
Ninguém que remi-la vá....
Gritam por ela: ei-la morta!
Chama-se um gládio:—hão há!
Abre-se a tumba da história,
E envolta em trapos de glória
Vai a Polônia dormir.
Bocas grudadas de medo
Guardem o triste segredo,
Fiquem tiranos a rir!...
Já são demais os ressábios
Da ira, diz o Senhor...
Ai daquele que em seus lábios
Foi lançar o dissabor!
É quando o povo delira,
Bradando altivo: mentira
Crenças, direitos e leis!...
Só é grande a liberdade,
Que sacode a majestade,
E arranca a juba dos reis!...
O seu esforço era louco,
Saiu-lhe o último ai...
Morrer é esperar um pouco:
Mártires dela, esperai...
Cristã, confia em teus santos;
Que purpurem-se os mantos
Com o sangue dos filhos teus...
Não digas: o céu é mudo,
O que há por vir, veio tudo...
Alguém falta vir: é Deus!
Polônia, na tua ossada
Ezequiel soprará;
Ao clarim de uma alvorada
Teu túmulo partir-se-á.
E tu, maior nesse dia,
Apanhando a cinza fria
Dos que morreram por ti,
Gládio em punho, olhar insano,
Elarás o Deus do tirano
Ressuscitá-los aí...
Pois que assim morres tão forte,
Deixa-te agora morrer:
Impaciente da morte,
Tu voltarás a viver.
Cabelos e pensamentos
Largados aos quatro ventos,
Dirás ao mundo: venci!
E o despotismo embriagado
Verás a teus pés rojado:
Segura o golpe, Judite!
Cadáver santo e glorioso,
Amam-te os livres de cá;
Aceita o beijo amoroso
Que o moço império te dá.
É livre a nossa bandeira,
Que açoita o ar altaneira
Com as asas do condor;
Nossas almas tem mais fundo:
Por ti... um protesto ao mundo...
Por ti... um voto ao Senhor!
( 1864 )
A ESCRAVIDÃO
( IMPROVISO )
Se Deus é quem deixa o mundo
Sob o peso que o oprime,
Se ele consente esse crime,
Que se chama a escravidão,
Para fazer homens livres,
Para arrancá-los do abismo,
Existe um patriotismo
Maior que a religião.
Se não lhe importa o escravo,
Que a seus pés queixas deponha,
Cobrindo assim de vergonha
A face dos anjos seus,
Em seu delírio inefável,
Praticando a caridade,
Nesta hora a mocidade
Corrige o erro de Deus!...
( 1868 )
À VIÚVA E FILHOS DO CAPITÃO PEDRO AFONSO
Era num dia de glória,
Passava, tristonha e bela,
Criança de alma singela,
Folha de etéreo jasmim,
As multidões estacaram;
Que o pobre do anjinho implume,
Em mavioso queixume,
Passava falando assim:
“De minha mãe os cabelos
A dor da viuvez espalha...
Meu pai morreu na batalha,
Grandes da pátria, escutai:
Não sei quem é que permite
Que se tenha um mau destino,
Que se sofra tão menino,
Que a gente fique sem pai...
“Pode ficar nas florestas
Pássaro órfão perdido;
Existe um desconhecido,
Que não no deixa morrer;
Manda ao sol que lance um raio
Para aquecê-lo no ninho,
E diz: abre o teu biquinho,
Venho dar-te o que comer.
“Dorme no berço a criança,
Que perde o seu pai valente;
Languesce, definha, sente
Falta de paterno amor...
Ai! quando as aves se aquecem
Pelos cuidados divinos,
Não acho bom que os meninos
Chorem de frio, Senhor!...
“O caçador das montanhas
Exclama, sondando o ninho,
Que belo!... meu passarinho!
E ao seio criá-lo vai:
Não diz o homem que aspira,
Que atrás da glória se lança,
Bravo!... achei uma criança
Tenra e mimosa, sem pai!
Mas ei-lo em seu alto feito
Seguro, impávido e forte...
Se indago por sua morte,
Todos me dizem: Teu pai
Foi qual águia, que morrendo,
Fica n’altura escarpada
Pelas garras pendurada,
Que morre, porém não cai!..”
Calou-se. O povo magoado
O anjo triste abraçava;
E Deus atento escutava
Os ternos queixumes seus;
Porque há lágrimas tão puras,
Que mal sentidas no mundo,
Fazem lá dos céus no fundo
Franzir a fronte de Deus.
E é quando em prol, em socorro
Do órfão, que é sempre pobre,
Rebentam no peito nobre
Lances de ilustres ações;
Porque súbito expandindo-se
Um pensamento divino,
Como o frescor matutino,
Penetra os bons corações.
( 1867 )
PARTE QUARTA
ESTÉTICAS
À ADELAIDE DO AMARAL
Sou grego pequeno e forte
Da força do coração,
Vi de Sócrates a morte,
E conversei com Platão;
Sou grego: — gosto das flores,
Dos perfumes, dos rumores;
Mas minh’alma inda tem fé;
Meus instintos não esmago,
Não sonho, não me embriago
Nos banquetes de Friné...
Se eu já tivesse um instante
Descrido do teu poder,
Gênio, mulher fulminante,
Que o palco fazes tremer,
Louco, cético, blasfemo,
Pelo teu raio supremo
Varado no coração,
Caíra humilhado e crente:
Fala Deus da sarça ardente
E o ímpio grita: perdão!
No meio dos esplendores
Das noites do teu brilhar,
Não perguntes se houve flores
Lançadas no teu altar:
Pergunta aos astros sentidos,
Aos olhos umedecidos,
Se o coração te escutou,
Se as fibras d’alma tremeram,
Se as harpas do céu gemeram,
Se alguma virgem chorou.
*
* *
Quem vive do pensamento
No merencório retiro,
Que nem um leve suspiro
Deixa do seio escapar;
Quem tem num cofre de estrelas
Seu coração escondido,
Tão mole, tão dolorido,
Que as flores podem magoar;
Quem tem sua alma queixosa
De Deus envolto em mistério,
Quem acha que tudo é sério,
Que é sério o pranto da flor;
Quem fita a noite serena,
Suspenso num vago medo,
Quem diz à lua: segredo!
Não fales na minha dor;
Quem sorve aromas celestes
Pelo olfato da esperança,
Quem tem afetos.... descansa,
Que para ouvir-te aqui vem,
E há de aplaudir-te sincero
E em tuas lágrimas puras,
Bebendo as santas doçuras,
Contigo chorar também.
( 1866 )
À JÚLIA TAMBORINI
Do teu canto na ternura
Doce, doce, que faz mal,
Sente-se a êxtase pura
Da vida celestial;
Tanto a música é mais bela
Na tua voz que revela
Bondades do coração,
Como que atrais aos ouvidos
O som dos beijos perdidos
Que os anjos do céu se dão.
 força do órgão que vibras,
Aos brilhos do teu cantar,
Do peito expandem-se as fibras
E as almas querem voar...
Em busca do impossível,
Atrás da flor invisível
Que perfuma os lábios teus,
Flor de luz que cai do espaço,
Lançada no teu regaço
Por um afago de Deus.
Que notas! que auras macias!
Dir-se-ia que a ígnea mão
Do arcanjo das harmonias
Aperta o teu coração!
Aperta.... e brota a doçura,
O mimo, a graça, a frescura....
Basta! arcanjo, isto é atroz!
Aperta.... e rebenta o pranto,
O aroma, o fogo, o quebranto,
E o incenso da tua voz!...
( 1868 )
A MR. REICHERT
“E quando ameigas as fibras
De tudo que pasma aqui;
À cada nota que vibras,
Não vês por detrás de ti
Loira, celeste menina,
Colhendo a flor matutina
Dos sons que sabes tirar,
E um anjo de roupas cérulas,
Rindo, apanhando-te as pérolas
De que faz o seu colar?”
Assim eu disse ante um homem
Que faz do piano troféu,
Um dos poucos que se somem
Entre os mistérios do céu...
Assim te vejo. São fráguas
De sons, de anelos, de mágoas
Crepitando aos sopros teus;
Faíscas de pensamento,
Levadas por esse vento,
Que parte das mãos de Deus.
Tu sopras, — é um tesouro
De mimo e graça e fulgor;
Sussurro de abelhas de ouro,
Compondo favos de amor...
Na tua frauta divina,
Qual na aragem vespertina,
Vem saudade e languidez,
Que mal sentida vagueia,
Como o azul de uma veia
Por baixo de nívea tez.
Tu sopras, — é um assomo
De matutino clarão;
E essas vozes, não sei como,
São beijos no coração,
Que vem banhar-se de gozo
Ouvindo-te a frauta, ansioso,
Qual um amante infeliz
Surpreende a bela num sonho
Falando... e treme risonho,
Escutando o que ela diz...
São beijos harmoniosos,
Ressonar de querubins,
Adormecidos, mimosos,
Das auroras nos colchins.
São segredos palpitados,
Ledos instantes passados
Que ao coração restituis,
Carícias, beijos que soam,
Ruídos d’almas que voam
Nos infinitos azuis!
São suspiros de donzelas,
Repercutidos nos céus;
Lágrimas de noivas belas,
Quando as noivas tinham véus;
Abrir de virgíneas bocas,
Moças desgrenhadas, loucas,
Revelando aos seios nus.
E as notas, que aí clareiam,
Por cima de ti se arqueiam
Num firmamento de luz...
E quando a frauta inspirada
Falar aos teus lábios vem,
Na tua fronte pousada
Não sentes a mão de alguém?
E a desgraça, é a glória,
Essa princesa ilusória,
Que no seu trono fatal,
Dando ao beijo o pé descalço,
Mostra a perna... e o cadafalso,
Antigo pajem real!
Mas que importa? O espaço é grande.
Talentos, astros, brilhai;
Que à luz, que de vós se expande,
O tempo se abrindo vai!
Pelos degraus das idades
Vão rolando as potestades,
Que lá não podem chegar....
Como nas torres, nos montes
À luz d’alva, em vossas frontes
Vê-se a ideia radiar...
Não há mais para onde cresças;
Teu nome vale brasões.
É belo quando as cabeças
Conquistam os corações.
Assim te vejo. São fráguas
De sons, de anelos, de mágoas,
Crepitando aos sopros teus;
Faíscas de pensamento,
Levadas por esse vento,
Que parte das mãos de Deus.
( 1866 )
A JOAQUIM AUGUSTO
(IMPROVISO)
Quando por cima das nuvens
Tão alto o gênio fulgura;
Quando assume essa estatura,
Essa atitude de rei,
Déspota, impondo nas almas
Teu nome, tua grandeza,
Faz parte da natureza,
Como força e como lei!...
Se em mármore talhar pudesse
O teu olímpico vulto,
Como um preito e como um culto,
Mostrando ao vivo o que és,
Nas mãos pusera-te um drama,
Pelo teu sopro animado,
Uma águia, um anjo a teu lado,
E um coração a teus pés!...
( 1866 )
AINDA À TAMBORINI
Na transparência desta voz augusta,
Que as nossas mágoas docemente acalma,
Quem não te sonda o íntimo celeste,
Quem não vê a candura de tu’alma?
Meiga e terna, suavíssima e brilhante
Quando às alturas do ideal revoa,
O ouvido diz: este cantar é belo,
O coração murmura: est’alma é boa.
Luz, que se ouve, harpa etérea, sonho d’anjo,
Divina essência, perfumado encanto!
Oh! metáforas vãs que nada valem
Para exprimir a graça do teu canto!
Porque esta voz, que excede o pensamento,
Que te torna radiante e adorável,
Nos infiltra um anelo, uma saudade,
Sem saber-se de quem... vaga, inefável?
Só tu tens o segredo dos arroubos,
Das novas emoções que nos implantas:
Que dor é esta? que desejo é este,
Que sentimos arder quando tu cantas?
Não e da terra, não! nem se parece
Com as terrenas paixões que nos afligem:
É o desejo da beleza eterna,
Que a alma remonta à sua grande origem.
Como os deuses de Homero em quatro passos,
Do Olimpo abriam a planura extensa,
De quatro notas numa frase abranges
Do coração e Deus a altura imensa.
*
* *
Pela força indefinível
Dos santos gorjeios teus,
Torna-se clara, visíveis
Uma das faces de Deus.
Sentimos que quando cantas
Do peito humano levantas
O grande e pesado véu....
Num raio d’alma estendida,
Tua voz é a medida
Do que vai da terra ao céu!
Como que um anjo te abraça,
E deste abraço ao calor,
Trescala o perfume, a graça
Do teu cantar sedutor.
Sempre doce e redolente
Da Sonâmbula inocente
No mavioso chorar,
Ou nos ais de Lúcia a louca,
Tens frases d’oiro na boca
E música até no olhar!
*
* *
No mesmo tomem que os Bellinis vertem
Ternos queixumes de su’alma errante,
Deus escreveu o verbo de teus olhos,
E o suave palor do teu semblante.
Das harmonias que os arcanjos vibram,
Teu peito nobre é o celeste ninho;
Cantas do palco, e as estrelas dizem:
É a filha de Deus, nosso vizinho!...
( 1868 )
AO PIANISTA HERMENEGILDO
Sentem-se n’alma as tuas mãos divinas
Banhadas no esplendo que sai do piano,
Ligeiras, como as auras vespertinas,
Que acarinham a juba do oceano.
E da vida dissipam-se as caligens
Ante essas notas cálidas, ansiosas,
Qual o bafo confuno de cem virgens
Ébrias de amores num tapiz de rosas...
*
* *
As teclas incandescidas
Por tuas leves pressões,
Como fibras doloridas
De profundas emoções,
Palpitam, choram afáveis,
Moles, ternas, irritáveis,
Ao toque meigo e sutil
Dos teus dedos pressurosos,
Como ritmos maviosos
De um coração infantil.
Abre-nos esse tesouro,
Mais um punhado de sons...
Arcanjo! em tua taça de ouro
Que sorvos de mel... tão bons!
Sobre estas frontes profanas
Estende as mãos sobre-humanas,
Que dos céus colhem jasmins;
Derrama o teu óleo santo;
Dá-nos beber esse pranto
De estrelas e querubins...
Menino-gênio, que tão cedo voas,
Que já sobes tão alto, e do cansaço
Vais dormir machucando almas coroas
De tua mãe no angélico regaço;
Aspira a flor que no porvir se expande,
Dos louvores daqui não, não te fartes....
É só por vós que a natureza é grande,
Águias, gênios, apóstolos das artes!...
É para vós que os dias alvorecem,
Que desbrocham paixões no peito nosso;
É por isso que as rosas amanhecem
Boquiabertas, pedindo um beijo vosso.
A ti cabe também muita vitória,
Manda às terras d’além tua alma acesa;
Trarás no peito as emoções da glória
E na fronte... algum beijo de princesa!...
( 1866 )
AINDA À ADELAIDE DO AMARAL
Atriz, não sei o mistério
Do teu talento estupendo!
Mulher, eu te compreendo
Nas falas do coração....
Tu, simpática e celeste,
Colheste, d’arte aos quebrantos,
O aplauso de nossos prantos,
E queres deixar-nos?... não!
Se tens saudades que ao longe
Dispersam teu pensamento,
Nós pediremos ao vento
Que sopre mais devagar,
Que, à tarde nas fibras ternas
Do teu peito harmonioso,
Module um canto mimoso,
Que não te faça chorar...
À noite que seja meiga,
Que não te traga lembranças;
Que durmam, que sejam mansas
Todas as ondas do mar...
Nós pediremos à aurora
Que surja mais sedutora,
Que te console, senhora,
Que não te faça chorar.
É por ti que se enternecem
As nossas auras olentes,
E os corações inocentes,
Melodiosos de amor...
Se partes, que faz a virgem
Do orvalho que tem no seio?
E de seu cálice cheio,
Se partes, que faz a flor?
Os gênios vivem de orvalhos,
Alimentam-se de odores;
Diremos às flores: flores,
Ah! não a deixeis partir!...
Com ela a chorar se aprende
Todas as dores profundas,
Todas as mágoas fecundas
Que a mulher pode sentir.
( 1867 )
AINDA A MR. REICHERT
Tonteia o palco em musical vertigem,
Sopro de Deus que os corações abala;
E a voz mimosa dessa frauta vigem
É um perfume que dos céus trescala.
Aos sons fluentes que o teu gênio empalma
Como que se abrem de prazer as dores!
Que anjos meninos nos açoitam n’alma
Com ramalhetes de orvalhadas flores.
Auras virgíneas por teus lábios cantam....
Dir-se-ia uma poeira refulgente,
Que as asas dos arcanjos alevantam
Nos desertos do céu, gênio eminente!
São turíbulos de ouro que embalanças,
E o incenso ondeia n’amplidão do espaço;
Como que ameigas docemente as tranças
De uma santa amparada no teu braço.
De tua boca a música espadana,
Parece, que ao fervor das harmonias,
Vais ciumento a um colo de sultana
E lhe espalhas no chão as pedrarias....
( 1866 )
À BOTTINI
Eu bem sei o poder que ao céu da glória,
Filha dos silfos, vossos passos guia,
Reconheço, porém, a demasia
De sacra flama que reluz assim:
Eu bem sei; mas reprovo este capricho,
Mas censuro de Deus este delírio....
Uma estrela no cálice de um lírio!
Fibras d’alma nas mãos de um querubim.
Não há motivo porque aí... da moça
Na fronte esplêndida o laurel duplique:
É preciso que Deus se justifique
Desses primores que trazeis de mais;
Vós, que abris nas alturas do mistério
Essas fontes de luz que nos inundam,
E os raios do porvir, que vos circundam,
E as asas d’ouro com que ao céu voais...
Há disso uma razão?! talvez do berço
Alto destino vos conduz.... quem sabe?
A glória d’arte, que também nos cabe,
Realçada por vós quer o Senhor...
Gênio e lindeza!... abraço de dous anjos,
Que se confundem numa só vertigem,
Donde resulta o rosto de uma virgem,
A porção do ideal que se faz flor....
Pelo sopro da música embalada,
O hálito da glória vos aquece:
No vosso coração, que se enternece
Das pátrias auras ao tocar sutil,
Trazeis as vibrações de estranhos mundos,
Onde aos olhos de Deus o peito abristes,
E em místico himeneu, voando, unistes
A alma da Itália ao gênio do Brasil.
( 1867 )
AO RABEQUISTA MUNIZ BARRETO FILHO
Houve um tempo em que as artes, recolhidas
Nas santas solidões do claustro fundo,
Eram pálidas monjas, embebidas
Nos louvores de Deus, longe do mundo.
A música também gemeu cativa,
Fugiu do templo atrás da liberdade,
De sóror fez-se atriz no palco altiva;
Mas não perdeu a sua virgindade.
Para ela, essa deusa a quem falaste,
Parece que o Senhor te destinava;
Que assim dos olhos seus inda limpaste
As lágrimas do céu que ela chorava.
Como uma imagem, que sonhando abraças,
Tua rabeca, em poética vertigem,
Tem mais risos, mais pérolas, mais graças
Que a boca meiga de mimosa virgem.
Tanta harmonia divinal, bendita
Tem um fundo de amor, que ninguém sonda;
Em cada coração, que aqui palpita,
De além dos mundos vem quebrar-se a onda.
Na corrente dos sons flutua a vida
Com seus ais, seus anélitos, seus prantos;
E tua alma é a fada adormecida
Nas vagas d’ouro desse mar de encantos.
Pura, como o respiro da inocência,
Sai das cordas a voz evaporada,
Que se espalha no ar, como uma essência
De flor querida, ou de mulher amada...
*
* *
Dessa altura, eu compreendo,
Que possas tu gênio ser,
Gênio da pátria estupendo,
Que ser maior é morrer,
Isto é, sacudir a poeira
Da vida, e com a asa altaneira
A natureza roçar,
Deixando o mundo maldito
Teus voos pelo infinito
Longo tempo a contemplar.
O talento em seus fulgores
Banha, embebe as multidões;
O pasmo atira-lhe — flores,
A inveja vil — maldições...
E ele diz: não esperdiço:
Tudo se presta ao serviço
Da obra descomunal....
Para a c’roa apanha os cultos,
E os motejos, os insultos
Servem p’ra o seu pedestal.
*
* *
Na linguagem do céu — gênio e grandeza,
Na linguagem da terra — pobre artista!
É assim, porque Deus, baixando à terra,
Se rebuça nas noites tenebrosas;
Ou, quando ao mundo envia os seus arcanjos,
É sempre numa nuvem que os encobre...
Oh! tu és grande! — sim, poeta do arco!
Tu que sabes tirar notas sentidas,
Filhas do coração, preciosas, fúlgidas,
Como joia, que treme em colo alvíssimo;
Notas que saltam, borbulhosas, quentes,
Como rojam da pálpebra da moça,
No arfar do seio, as lágrimas primeiras,
A primeira expressão dos seus amores...
*
* *
Por entre a luz de incendiada sarça
Das íntimas visões, diz Deus ao gênio:
O que tens a teu lado?
A minha lira.
Calca-lhe o peito, sonda-lhe as entranhas;
E ela exala perfumes, brota risos,
Golfa prantos, riquezas, luzes, sonhos...
O que tens a teu lado?
O meu tesouro.
Derrama, entorna-o sobre o mundo absorto...
E nesse despenhar de sons angélicos,
Suspiram aves, esvoaçam flores,
Correm auras celestes, redolentes,
Que balançam brincando os lírios d’alma;
Passam meiguices, murmurar de afagos,
Tremer de lábios, estalar de beijos....
O que tens a teu lado?
Oh! uma virgem!
É tua glória: abraça-te com ela!...
( 1865 )
GIUSEPPINA DE SENESPLEDA
Et vera incessu patuit dea.
Virgílio
Não é só pelo porte que se ostenta,
No dizer do poeta, a deusa oculta.
Quando cantas da terra, e o céu contempla,
Quando cantas do céu, e a terra escuta,
Cai, como orvalho, a lucidez angélica
Sobre o teu rosto matinal, risonho;
Mais dum espírito abre as asas de ouro,
É um delírio, uma loucura, um sonho...
É um cantar de flores e de estrelas,
Que se consomem de ânsias e de anelos;
Canta a flor de teus lábios purpurinos,
Cantam os astros de teus olhos belos...
Tudo medido, acomodado e justo
Ao rítmico ondular de teu corpinho;
E o coração voraz tenta agarrar-te
Para esconder-te dentro de seu ninho.
Quis uma vez o gênio da harmonia,
Que te vira e tomara-se de medo,
Asilar-se no cálix de um cravo,
E asilou-se em tua boca,... eis o segredo!
Espanhola gentil, das raras graças,
De que essa voz etérea se colora,
Mimo de voz que se dilata aos poucos,
Crê-se que é uma flor, e é uma aurora.
Que aurora! O ramo seco da velhice
Reverdece ao clarão da feiticeira;
Mas não se sabe ao certo o que é teu canto,
Se uma cousa que se ouve, ou que se cheira...
Se digo às auras que tua voz é meiga,
Se conto às musas que teu rosto é lindo,
Não é por mim, — tudo isto é uma história,
Que ouvi dos lábios de uma rosa abrindo.
( 1881 )
A UMA CANTORA
Lágrima santa caída,
Estrela d’ouro a tremer,
Nos seios d’alma embebida,
Tua voz é um poder,
Que diz às flores: — brotemos!
Que diz às águias: — voemos!
E nas alturas se esvai...
Voz do céu, que o céu atende,
Que por si só se defende,
Dizendo a tudo escuta!
Que aromas puros recendem
Do cálix daquela flor!
Deus e a alma, que se estendem
Nos seus colóquios de amor,
Não querem saber dos gritos,
Que os seios rompem aflitos
Da natureza feroz...
Do céu nos doces retiros
Gostam de ouvir os suspiros
E os hinos da tua voz!
( 1860 )
PARTE QUINTA
SATÍRICAS
DIANTE DO RETRATO DE D. JOSEFA A. F. DE OLIVEIRA[11]
Bela flor da família das Nadeschda,
Das Garret, das Lozier.... eu só lamento
Que, ao voltares um dia, aqui não aches
Prêmio adequado ao teu merecimento....
Que entre os fidalgos que esta terra conta,
Por dúbio sangue, ou títulos baratos,
Não encontres um só que te mereça:
Todos são pobres, parvos e.... mulatos...
( 1880 )
CHAPA...
Agora tudo é chapa!... A luz de uns olhos,
Donde a furto um sinal de amor se escapa,
O sol e a lua, o céu e as estrelas,
Tudo que é velho, o próprio Deus.... é chapa.
Nenhuma ideia, que não traje humilde
Do comum, do vulgar, a rota capa...
Se ao amigo se diz: sou teu amigo!
Não se acredita, pois amigo é chapa.
A honra, a liberdade, o amor, a glória,
E se quiserem, a igreja e o papa,
Tudo está gasto; e afinal de contas
A mesma chapa já tornou-se chapa!...
( 1880 )
A UM JUIZ DA ESCADA[12]
Considerando que as flores
Existem para o nariz,
E as mulheres para os homens,
Na opinião do juiz;
Considerando que as moças,
Ariscas como a perdiz,
Devem ter seu perdigueiro,
Na opinião do juiz;
Considerando que a gente
Não pode viver feliz
Sem fazer seu namorico,
Na opinião do juiz;
Amemos todos, amemos,
É Cupido quem o diz;
Pois namoro não é crime,
Na opinião do juiz....
( 1874 )
REI REINA E NÃO GOVERNA
(APÓLOGO)
Não sei por que a língua humana
Os brutos não falam mais,
Quando hoje têm melhor vida,
E há muita besta instruída
Nas ciências sociais...
Ultimamente entenderam
Que tinham também razão
De proclamar seus direitos,
Pondo em uso os bons efeitos
Que trouxe a Revolução....
“Seja-o leão, diz o asno,
Um rei constitucional;
Com assembleias mudáveis,
Com ministros responsáveis,
Não nos pode fazer mal.
Fiquem-lhe as garras ocultas,
Não ruja, não erga a voz,
Conforme a tese moderna
Qu'ele reina e não governa,
Quem governa somos nós....
Todas as bestas da terra,
Todas as bestas do mar,
Tenham os seus delegados,
Sendo os ministros tirados
Do seio parlamentar....”
“Muito bem! — grita o macaco,
A gente vai ser feliz!
Respeito a ciência alheia;
Publicista de mão cheia,
O burro sabe o que diz.
Todavia, acho difícil
Que Dom Leão rugidor,
Sujeito à sede e à fome,
Queira ter somente o nome
De Rei ou de Imperador!...
Acostumado a pegar-nos
Com suas patas reais,
Calar-se, fingir-se fraco!...
Segundo penso eu... macaco...
Dom Leão não pode mais!”
Acode o asno: “eu lhe explico,
Nada val a objeção:
Se o Rei viola o preceito,
Salvo nos fica o direito
De fazer revolução.”
“Mestre burro, isto é asneira,
Palavrão de zurrador;
Esse direito ó fumaça;
De que nos serve a ameaça,
Quando nos falta o valor?!
Só vejo, que bem nos quadre
No trono, algum animal,
Que coma e viva deitado:
O porco!... Exemplo acabado
De Rei constitucional...”
( 1870 )
DIANTE DE UM BATALHÃO QUE VOLTAVA DA CAMPANHA
Lavas de glória aos terremotos d’alma
Queimam os peitos de paixões estranhas:
É o povo que pesa os seus guerreiros
Na balança em que Deus pesa as montanha!
Homens do céu, fantásticos, enormes,
Que sondastes o golfão do heroísmo,
Inda tendes nos pés ensanguentados
Agarradas as pérolas do abismo!
Tendes na fronte um resto de fumaça
Que trazeis das batalhas, e os ressábios
Do cartucho mordido se misturam
Com o soberbo desdém dos vossos lábios.
O pendão que os relâmpagos rasgaram,
Das mãos da guerra bravamente escapo
De que pode servir? O rei tem frio...
Dai ao rei por esmola... este farrapo!
( 1870 )
NOTA
Este livro, primeiro de uma serie que pretendemos dar a lume, contém um terça ou quarta parte das produções poéticas de Tobias Barreto. Faltam aí muitas das mais inspiradas composições do poeta, as quais aparecerão nos volumes seguintes. A grande dificuldade para obtermos as peças desta coleção motivou sua demora. é certo que todas as poesias do distinto sergipano foram publicadas em jornais e periódicos de Pernambuco e que ali existem muitas coleções manuscritas desses cantos; compreende-se, entretando, o embaraço que hoje encontrará quem daqui da corte se abalançar a coligir versos esparsos pelas folhas provincianas.
Recorremos ao poeta como à fonte mais segura; ele, porém, ao invés de certos atormentadores da paciência alheia, que, ao comporem qualquer bagatela, guardam-na debaixo de chaves, depois de abusarem do próximo com repetidas leituras, ele não possui a coleção de seus versos — atirou-os aos quatro ventos como folhas soltas; eis tudo.
Cremos não ser de nossa parte uma arrojada esperança o acreditarmos que este livro, documento de uma das fases mais interessantes da poesia nacional, há de agradar ao público brasileiro. — O seu autor tem hoje um nome conhecido em todo o país. É uma individualidade simpática, por seu caráter, espírito culto e livre de certos preconceitos científicos, literários e políticos.— É um desses que conquistaram afama a esforços renhidos por meio da luta. Conta, é certo, muitos inimigos no país; mas já é tempo de deixarmo-lo passar em meio de nossos aplausos. Não lhe regateemos honras, que do estrangeiro já lhe foram feitas pela imprensa e por espíritos como Haeckel, Paulina Moser, Guilherme Sellin, Apsfeldt, Richard Lesser na Alemanha; Bernard Perez em França.
Calemos os ódios diante de um nome que honra a nossa pátria e que é um dos poucos que temos a lembrar diante da imensa falange que na Europa trabalha e pugna pelo espírito moderno.
Corte novembro de 1881.
S. R.
[1] Como crítico analisei-o na Filosofia do Brasil.
[2] Análise das Espumas Flutuantes de C. Alves no Americano ( 1870 ) e das Peregrinas de V. Palhares no Diário de Pernambuco ( 1871 ).
[3] Esta última subdivide-se no período do Recife ( 1862 — 1870 ) e o da Escada ( 1871 — 1881 ).
[4] Ensaios de filosofia e crítica. Uma carta aberta à imprensa alemã. O Brasil literário. Um discurso em mangas de camisa. Estudos alemães. Algumas Ideias sobre o Fundamento do Direito de Punir.
[5] Ainda há pouco, estando em luta com certa aristocracia fátua de Pernambuco, teve a casa cercada por capangas, que tentaram assassiná-lo!!...
[6] Em 1861 passou Tobias Barreto alguns meses na Bahia; ali tornou-se logo saliente na poesia a ponto de merecer a atenção do velho e ilustre Muniz Barreto, o célebre repentista e um dos melhores poetas deste país.
[7] Neste período já claramente, em 1865, Tobias Barreto mostra que possuía a intuição do verdadeiro realismo moderno.
[8] Escrito em 1873 e publicado nos Ensaios e Estudos de Filosofia e Crítica em 1875.
[9] [Esses versos foram corrigidos, com relação ao que está na edição consultada do livro de Tobias Barreto.]
[10] Referência à Lucinda de Schlegel, digna irmã da Lélia, de Sand.
[11] Bela e jovem pernambucana, estudanta de medicina em Nova-York.
[12] Um tal que num processo, por crime de defloramento, despronunciou o réu, entre outras razões, porque — não considerava ser crime o namoro....