Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Rezas do Diabo, de Wenceslau de Queiroz


Obra de referência:

Rezas do Diabo, São Paulo:

Empresa Gráfica da « Revista dos Tribunais », 1939.

 Wenceslau de Queiroz

Rezas do Diabo

1939

Empresa Gráfica da « Revista dos Tribunais »

Rua Xavier de Toledo, 72 — São Paulo

PREFÁCIO

Hagop Touriane escreveu e Wenceslau de Queiroz traduziu, sob o título “A verdadeira morte”:

Quando minha alma convolar para essa

Região da morte que ninguém deslinda,

E gelada pender minha cabeça,

Notai-o bem! — estarei vivo ainda...

Quando, por entre o incenso, sobre a eça,

Tiver dos padres a oração infinda

Para que em paz eu adormeça,

Notai-o bem! — estarei vivo ainda...

Mas quando não houver nem mais um traço

Do meu leito final no chão escasso

Do Campo Santo; ah! quando o mundo absorto

Desta existência na fugaz passagem,

Esquecer para sempre a minha imagem,

Sabei-o! — só então estarei morto...

Wenceslau de Queiroz não está morto. Está vivo ainda, na saudade, no amor, na admiração filial, que coligiu as “Rezas do Diabo” e as publicou em volume. Está vivo nos seus versos, que lhe prolongarão a memória pelos tempos afora. Não esquecemos a sua imagem? nós os que viemos vinte ou trinta anos depois dele, nós os que o temos presente na sua obra de poeta como deveríamos tê-lo na sua obra de crítico literário e musical, de jornalista, do operário das letras que por mais de quarenta anos manteve o fogo sagrado numa época em que raras e heroicas eram as vestais.

“Rezas do Diabo” aparece fora do seu tempo. Esvaíram-se as influências baudelairianas, extinguiu-se o culto satanista, passou a nevrose ou tomou novas formas, num mundo em que as dores não são mais doenças, são revoltas. O eco que estes poemas tiveram nas páginas efêmeras dos jornais e das revistas não repercutirá hoje ao redor do livro.

Mas Wenceslau de Queiroz, que estreou aos 18 anos com uma pequena coletânea de versos, “Goivos”, e firmou reputação, sete anos depois, com seus “Versos”, há de ser julgado na distância em que se situou, através da sua produção da maturidade, que são estas “Rezas do Diabo”. Pena é que se conserve ainda inédito outro livro, “Cantilenas”, que nos permitiria acompanhar passo a passo a evolução do seu lirismo para as amarguras e os desesperos do derradeiro período.

Os poetas, de nervos vibráteis e de sensibilidade aguda, sofrem mais do que o comum dos mortais as angústias ambientes da humanidade. Feridos pelos homens, esmagados pelo destino, não podendo vencer as contingências inerentes aos terrícolas, voltam-se para o passado, que os inspira; constroem futuros, em que o homem não é mais o lobo, é o irmão do homem; ou refugiam-se no sonho, no mundo criado pela imaginação, a que pedem felicidade e de que manam torturas. Hoje, um derivativo é a questão social; em certa data, sacrificados na terra, descrentes do céu, voltaram-se, numa atitude que era escárnio intencional e esnobismo inconsciente, para Satã.

Wenceslau de Queiroz leu Baudelaire, os que o precederam, os que o acompanharam, e impregnou-se das suas ideias e dos seus processos, por motivos concorrentes. Antes de tudo, uma relativa afinidade espiritual, que já se sentia nos seus primeiros acordes. Depois, o poder da imitação, que faz as modas e as escolas. Por fim, decisivamente, duros golpes sucessivos, na perda dos filhos, que o rebelou contra o Deus que lhe tirava, um a um, inexorável, os mais fortes e mais quentes afetos.

Sem as repetidas catástrofes, que lhe enegreceram o coração e lhe intoxicaram a alma, este devoto de Satã, que atemorizava a gente piedosa e cristã do S. Paulo dos começos do século, teria rematado sua carreira com preocupações filosóficas, que eram da essência do seu ser, mas à luz do lirismo, que repontava nos seus primeiros versos e se desatou ainda em flores nas “Cantilenas”. A postura rebelde, de incréu e blasfemo, não era senão uma reação do sentimentalista que não soube ter a resignação de Jó ante as desgraças com que o céu o experimentou. Não era por dureza de coração e veneno de alma, era exatamente porque tinha a alma afetiva e o coração sensível que Wenceslau de Queiroz se insurgia contra as dores que amargavam o seu amor de pai.

Nas suas três fases, Wenceslau de Queiroz teve posturas diferentes perante a vida, mas foi invariavelmente artista. Seus versos têm sempre a ourivesaria empregada pelos parnasianos, cujo maior mérito, quanto à técnica do verso, foi a imposição da forma cuidada mesmo aos que não se submeteram à escola. Expliquemos ainda o ritmo, a melodia, a suavidade dos versos pelo culto do som de quem foi poeta e foi também músico.

Wenceslau de Queiroz não está todo nos seus livros de versos. Nem mesmo se dirá que aí se acha a sua porção maior. Porque longa e intensa foi a sua atividade na crítica literária, na crítica teatral e na crítica musical. E não só: jornalista profissional, tem uma extensa folha de serviços à imprensa, onde debateu os problemas do dia, escrevendo editoriais, travando polêmicas, com uma fecundidade que encheu largo período do nosso jornalismo, Como crítico era rigoroso; como polemista, bravio. Mas sabia ter generosidades com os novos e cavalheirismo com os adversários. À distância, aparece-nos como um lutador estrênuo, que se bateu pela verdade, pela justiça e pela beleza.

A geração de hoje, vivendo uma época de vibrações jornalísticas, de efervescências literárias, na florada do pensamento e da arte que ilumina e perfuma S. Paulo, não pode ter ideia do que era o valor, a coragem, o estoicismo dos poucos bravos que sustentavam a trincheira das letras há trinta ou quarenta anos atrás. Pequenos mesmo os nossos grandes jornais. Editor nenhum, salvo os do Rio de Janeiro e Lisboa, que editavam os consagrados. Público escasso e indiferente nas suas massas. Havia só a Escola Normal, só o Ginásio do Estado, só a Faculdade de Direito. Para fundar a Academia Paulista de Letras, recorria-se aos políticos mais cultos, aos médicos mais ilustres, aos advogados mais célebres, para que com a sua inteligência e cultura viessem completar os quarenta necessários.

A esse tempo, que é recente e tão distante já está, Wenceslau de Queiroz ocupava sempre um posto da primeira linha. Nos jornais e revistas, com folhetos e livros, foi um combatente obstinado e valente, que manteve de pé a bandeira quando outros desertavam o campo de batalha ou se conservavam à sua margem, de armas ensarilhadas. Não teve desfalecimentos nem tréguas. Não recuou nem descansou. Era sozinho um exército, a pipocar metralhadoras, a tonitruar canhões, a sobrevoar em reconhecimento e em combate, com as esquadrilhas da sua curiosidade, dos seus sonhos, das suas cóleras.

S. Paulo deve-lhe esse irresgatável serviço. Se da sua história literária se suprimisse a obra de Wenceslau de Queiroz, abrir-se-iam vazios enormes, criar-se-iam desertos, formar-se-iam solidões, zonas de silêncio onde está o poeta das “Rezas do Diabo” a cantar e também a combater dia após dia, mês após mês, ano após ano, operoso e infatigável, intransigente e apaixonado, valente e belicoso. E o bardo e lidador enche o seu tempo com a música dos seus versos, com a trepidação da sua crítica, com o ruído das suas polêmicas, na missão que se impôs e cumpriu, mantendo acesa a chama votiva do culto às letras e às artes, nesta nossa Piratininga então muito mais comercial e cafeeira do que literária e artística.

São Paulo, novembro, 1938.

Rubens do Amaral

MAGIAS NEGRAS

ARTE MALDITA

Arte maldita! Circe feiticeira!

Bebi também teu filtro de estramônio

Para sonhar a minha vida inteira

No meio deste humano pandemônio;

Para não ver, numa feliz cegueira,

Da Realidade o negro horror gorgônio,

Fugindo assim à multidão rasteira

Sobre as asas rebeldes do demônio...

Interpretando os símbolos eternos

Da Natureza, encantos e pavores,

Gozo de quem percorre céus e infernos...

E vou cristalizando no meu verso

 — No meu verso onde estalam tantas dores,

O sonho astral do coração perverso.

NOSTALGIA DO CÉU

Ei-lo que sonha, triste e só... Que estranho augúrio

A alma te agita, Arcanjo Negro? Que magia,

Que sortilégio, à dura abóbada sombria,

No Orco, te prende o chamejante olhar sulfúreo?

Que encantamento cabalístico assedia

Tua cabeça? Em que palácio, em que tugúrio,

À evocação de Grande Mago, no perjúrio

Presa ficou tua infernal figura esguia?

Nada de mais... Lembra Satã a imensa Queda

No boqueirão da Eterna Sombra que lhe veda,

Eternamente, eternamente, ver os céus...

Punge-o a saudade, a nostalgia, a funda mágoa

De estar (Satã já tem os olhos rasos d’água!)

Longe da Luz, longe do Azul, longe de Deus!

FILOSOFIA DA BLASFÊMIA

A Leopoldo de Freitas.

I

E o Homem vai no turbilhão da vida

Levado como um grânulo de areia,

Sem saber o Destino que o norteia,

Como a tábua de um náufrago perdida...

Em cima: o Céu de arcanos se rodeia

Sob uma tela azul sempre estendida...

Em baixo: o Mundo — arena revolvida —

Em que a luta dos Ódios se incendeia...

Que muito é, pois, que ele fraqueje um dia,

Prosternando-se, pávido e contrito,

E sob o vasto Azul um Deus adore?

Que muito é, pois, também que na agonia,

Mal abafando na garganta um grito,

Já moribundo, ele blasfeme e chore?...

II

E ele chora e blasfema, porque em volta

Do seu viver os Males se condensam,

E espera embalde que a divina bênção

Lhe ponha um termo à causa da revolta.

Porém, as trevas mais e mais se adensam

Obumbrando-lhe a mente desenvolta,

E ele passa no meio dessa escolta,

Fitando o céu, à espera que o convençam...

Paladino sem fé nem esperança,

Contempla então no pobre altar despido

As imagens de Deus sem entendê-las...

E erguendo o olhar ingênuo de criança

Ao Azul não vê mais, entristecido,

Do que estrelas... estrelas... só estrelas...

DOUTOR FAUSTO

A Vitaliano Rotelini,

(Segundo uma gravura alemã).

I

Coa o luar no gótico aposento.

Fausto, fincando o cotovelo agudo

Na mesa, as magras mãos na fronte, mudo,

Sente invadir sua alma o desalento.

Dos alfarrábios consumiu no estudo

A mocidade... Como a folha ao vento,

Tudo que levantou seu pensamento,

Tudo caiu, desfeito em cinzas, tudo...

Dentro do frágil cárcere de argila,

Da inócua infância rústica e tranquila

O doce alvor lembra-lhe a alma em vão...

Pensa na morte... Sonda-lhe o horror profundo...[1]

Nisto, entre chamas, do aposento ao fundo,

Surge a rir Mefistófeles do chão...

II

Ao velho Fausto o Tentador dizia,

Estendendo no chão seu rubro manto:

 — “Dou-te de novo o juvenil encanto

Em troca de tua alma.” — E o Diabo ria...

Fausto lhe respondeu com ironia:

 — “A troca me convém... Dar-te por tanto

Tão pouco! Só não t’o daria um santo...

E a alma vendeu, sabendo o que vendia...

E o velho viu cair-lhe aos pés nessa hora

A longa barba... E o Diabo, sem demora,

No seu manto, de súbito, o colheu...

E ambos partiram pelo Azul superno:

Zombando o sábio do poder do Inferno,

O Diabo rindo do poder do céu...

HERANÇA DO MAL

Numa noite azul de luar de prata ouvi falar assim a uma estrela, que fulgia mais do que as outras no céu translúcido...

 — “Pagando com usura o trágico estipêndio

Da Morte, como um verme, estorce-se, lá em baixo,

O Homem, que só herdou o onusto e vil dispêndio

De Erros e Culpas do Primeiro Macho.

Humilde embora como o humílimo escalracho,

Já não tolera, enfim, tamanho vilipêndio,

Pois nutre a pretensão, com seu pequeno facho,

De atear no Azul um flamejante incêndio...

Subir! Subir! Subir! — Tal é o que ele, entanto,

Aspira, embora vá dentro do rubro manto

Do Diabo, como Fausto, fascinado...

E sobe... e sobe... e sobe... até que as asas foscas

Colhe o Diabo, e ele cai nas terebrantes roscas

Da serpente de bronze do Pecado.” —

SONETO PÓSTUMO

(de um filósofo suicida).

Ha dentro em mim dous seres: — um que nega,

Outro que afirma, numa eterna luta:

 — Luta incessante, formidável, cega,

Em que a vitória cada qual disputa.

Este combate pela Crença e escuta

A voz do coração que a Deus se entrega;

Serve aquele ao Demônio que perscruta

O espírito das cousas na refrega...

Concita o Sentimento: — “Em Deus confia,

Homem feito de argila que a Serpente

Instiga ao Mal na eterna rebeldia...” —

Mas a Razão replica: — “Ó Homem forte!

Repousa em paz no seio do Inconsciente,

Porque só tens uma certeza — a morte.” —

SONETOS DE UM MAGO

A Ciência Oculta pertence ao Diabo.

(Do Livro IV de Cornelius Agrippa).

I

Numa noite de inverno em que eu relia

Fólios poentos, velhos alfarrábios,

Que tratam da Cabala e da Magia,

 — Ciências ocultas dos antigos sábios,

Vi de repente uma figura esguia,

Olhos de fogo, chamejantes lábios,

Que me disse, com laivos de ironia,

Sobraçando papiros e astrolábios:

 — “Se queres penetrar no Mundo Excelso

Dos Arcanos, empunha firmemente

A espada fulgural de Paracelso.

Pois que num vivo duelo, de improviso,

Hás de partir o gládio refulgente

Do Anjo que te expulsou do Paraíso.” —

II

E perguntei-lhe: — “O pomo da Verdade

Existe acaso na Árvore da Ciência,

Onde tentaste o Pai da Humanidade,

Desatando-lhe as asas da Consciência?

Não és acaso o Deus da Falsidade

Que no trono da Humana Inteligência

Queres reinar, impondo-lhe a maldade,

Em troco de uma túrbida existência?” —

 — “Como te enganas! — exclamou, cerrando

Os punhos, para o Céu o Rebelado —

Como te enganas, filho miserando

Da raça eterna de Caim maldito!

Eu tenho para o Céu que está fechado

A chave dos Arcanos do Infinito.” —

ESFINGE AZUL

... Au fond des cieux, au fond de l’altitude

Des cieux, les astres blancs et froids, sans lassitude,

A force d’être loin au sein de la Nuit rude,

Garderont, au dessus des maux, leur quiétude.

(Emile Goudeau).

Por mais que tu, ó Crente, o céu pesquises,

Dos coruchéus ou dos mais altos mastros,

Arrastarás nos pés os térreos lastros

Nessa legião dos Tristes e Infelizes.

És como o egípcio que no Templo d’Ísis

Pedia em vão, de joelhos e de rastros,

Que a eterna esfinge azul do céu, nos astros,

Lhe predissesse as mais funestas crises...

Milênios há que o vasto céu se arqueia

Como um dossel de rútila turquesa

Onde uma chusma de astros enxameia...

E quando, ó Crente, nessa Imensidade,

Viste um só astro encher-se de tristeza

Com as tristezas desta Humanidade?

LÓGICA DO DIABO

Se Deus existe, como a Bíblia ensina,

E o Homem tirou do Caos, do grande Nada,

Para a luta da Vida, árdua, assassina,

Entre o Egoísmo feroz e o Amor travada;

Se Deus na alma nos pôs, ardente e alada,

A crença do Ideal e, negra sina!

Fê-lo depois cair, d’asa quebrada,

Nas próprias garras da ilusão divina;

Se Deus, depois de tanto desengano,

Cerrou ouvidos ao lamento humano,

Que há milênios procura o azul dos céus;

Se Deus matou seu próprio filho — Cristo;

(Falo por vós, ó mães!) se Deus fez isto...

(Falo por vós...) — Maldito sejas, Deus!

JESUS

La religion du Christ est une religion de désespoir, puisqu’il désespère de la vie et n’espère qu’en l’éternité.

Alfred de Vigny.

Só porque minha Mãe, doce lembrança!

Teu nome, entre orações, me repetia,

Quando apenas eu era uma criança

E ia dizendo o que ela me dizia:

Meu lábio inda hoje, numa prece mansa,

Repete-o sempre, ó filho de Maria,

Hoje que já perdi toda a esperança

De ir ter contigo lá no céu um dia...

Mas nem por isso, ó rude carpinteiro,

Que expiraste no trágico madeiro,

Alucinado por um sonho insano,

Eu desconheço os males do teu erro,

Pois não nos deste mais, neste desterro,

Que a religião do desespero humano...

A TENTAÇÃO DE CRISTO

Intendant des somptueux péchés et des grands vices, Satan, c’est toi que nous adorons, Dieu logique, Dieu juste!

(Huismans. — Là-Bas. — Messe noire).

Satã, o tenebroso Arcanjo Trismegisto,

Levou o Nazareno ao cimo da montanha,

E pondo em sua voz uma atração tamanha,

Soberano e revel, falou assim a Cristo:

— “Olha — e apontava o mundo — é meu, é meu tudo isto,

E dá-lo posso a quem acreditar na estranha

Força do meu poder que a terra toda ganha...

Adora-me, e será só teu o que tens visto.”

Cristo lhe respondeu: — “Retira-te! Somente

Adoro meu Senhor, meu Deus, meu Pai clemente!”

E o Demônio fugiu... — De tanta dor ao cabo,

Dize-me, ó carpinteiro ingênuo da Judeia:

Para que nos serviu tua divina Ideia?

Antes tivesses feito um pacto com o Diabo...

A VELHA SERPENTE

 — “Maldita sejas tu, Velha Serpente,

Que à primeira Mulher que veio ao mundo

Deste a comer, maliciosamente,

O pomo sensual do Amor fecundo.

“Tal é teu crime, que no lodo imundo

Caminharás de rojo eternamente,

Como o bicho mais vil e nauseabundo...

Maldita sejas tu, Velha Serpente!” —

Assim Deus te falou no Paraíso,

Depois que Adão colheu nos lábios de Eva,

Num longo beijo, o virginal sorriso...

E tu, Serpente, desde então rastejas,

Mas ouves só do teu golfão de treva

Esta oração de amor: — “Bendita sejas!”

ADÃO

O Pai do gênero humano foi enterrado no monte Calvário. Quatro mil anos depois, a cruz de Jesus Cristo foi plantada sobre a mesma sepultura de Adão.

(Padre J. Gaume. — "Cat. de Perseverança").

 — “Quatro mil anos faz, Jesus, que nesta alpestre

E árida serra, onde hoje expiras como um réu,

Achei, — sofrendo ainda o estigma atroz do Céu, —

O meu pouso final na habitação terrestre.

“Mas repousei enfim... Por quê, Divino Mestre,

Vens hoje me acordar com tamanho escarcéu,

Fazendo remugir a dor de um povoléu,

Na mudez ancestral desta montanha alpestre?

“Pesa-me tua Cruz como se ela tivesse

O peso secular do humano Sofrimento

Desde que me feriu o anátema fatal.

“Jesus! morres em vão, expiando o Mal refece!

Porque em torno da Cruz — a Cruz do teu tormento! —

Coleará, silvando, eternamente, o Mal.” —

A MULHER DE JÓ

Apodrecia Jó no muladar. No entanto,

Não lhe queimava a língua o fogo de uma praga

Contra quem o prostrou na terra de Hus, e, o manto

Roto, deixou-o nu e o corpo, aberto em chaga...

Mas a mulher de Jó pensava, com espanto,

Como podia ser que, da virtude em paga,

Ele sofresse, mudo e só, represo o pranto,

A injustiça do céu que nos abate e esmaga...

Disse-lhe, então: — “Amaldiçoa a Deus e morre!

Desengana-te, Jó! que Deus não te socorre!” —

E não havia quem deixasse de ter dó

Dessa agonia, desse horror, dessa miséria,

Desse disforme pesadelo da matéria...

Toda a razão, porém, tinha a mulher de Jó.

O BEIJO DE SATÃ

(PARÁFRASE)

Quando o remorso mais e mais latente

Judas, o falso apóstolo, sentia,

E da árvore fatídica pendente

Seu corpo, bambo no ar, se contorcia:

O Demônio o fitava bem em frente,

Tocado de tão mísera agonia,

Té que lhe viu na boca horrendamente

A derradeira contração sombria...

Satã então sorriu, fitando o rosto

De Judas, mortalmente descomposto

Num esgar de maldito desafogo...

E em paga desse beijo que inda em vida

Deu em Jesus o traidor suicida,

Beijou-lhe o rosto a sua boca em fogo...

A UM CÃO

Quando escrevi estes versos, eu tinha os olhos arrasados de lágrimas: é que morreste, ó meu amigo, pobre cão que no recanto de meu lar eras conhecido pelo imponente apelido de “Monarca”, apesar de seres bondoso, fiel, humilde e obediente...

I

Quando um monarca — um príncipe da terra —

Morre, troam canhões, os sinos clamam,

Curvam-se as hastes dos pendões de guerra,

E lágrimas pomposas se derramam.

Nos penetrais do Arcano Formidando

O morto paramenta-se de gala;

Como que a Dor triunfa, clarinando,

E, imperativa, os ânimos abala.

Erige-se na sua sepultura

Um mausoléu de bronze e de granito,

Que por séculos e séculos perdura,

Entestando no páramo infinito.

Seu epitáfio é um trecho de epopeia,

 — Resumo do seu largo poderio,

Que do estuário do túmulo coleia,

Até perder-se, como um largo rio...

Assim é que do Tempo a lima surda,

Secundando a Justiça, então carcome

O mausoléu, que pelo chão chafurda,

Desfeito em poeira, com o régio nome.

E a Igreja reza um cantochão funéreo

Para lhe dar no Céu, com segurança,

Um lugar que equivalha ao seu Império:

Um bom lugar na Bem-aventurança!

II

Pobre cão! meu Monarca! que contraste!

Leva-te ao Nada o carroção do lixo,

E custa mesmo achar já quem te arraste,

Porque não passas de um nojento bicho.

Uma chusma de vespas e moscardos

Acompanha-te o carro funerário,

Que, puxado por dois muares tardos,

Solavancando vai no itinerário...

Do azul suspenso como um candelabro

De ouro, lampeja o claro sol, no entanto,

E acende irisações no volutabro

Onde vais atorado para um canto...

Bela compensação da Natureza!

Não tens da Igreja as luzes nem os dobres,

Mas doira o sol a vasta redondeza

Do céu, e cantam aves nos alfobres...

Reza o vento nas ramas do arvoredo

Uma oração de anseios e de mágoas;

Como lugentes harpas, em segredo,

Choram da fonte as cristalinas águas...

E dizei-me, Filósofos do mundo,

Se se distingue um potentado morto

Deste meu cão sobre o monturo imundo

Quando ambos seguem para o mesmo porto...

Tudo é lodo e vaidade! A igualitária

Ciência proclama esta certeza d’aço:

 — Que cada ser, na escala eterna e varia

Dos seres, se transforma pelo espaço...

Por isso, ó meu amigo! ó meu Monarca!

Como qualquer misérrimo vivente,

Deixas saudade nesta vida parca,

Desde que foste bom, leal, clemente...

E quero crer que, se algum prêmio existe

Para os bons nesse Além que não diviso,

Pobre cão! como um santo já subiste,

Ah! já subiste, sim, ao Paraíso...

REDENÇÃO DE JUDAS

A Joaquim Teixeira de Freitas.

I

Diz a Escritura que vendeu a Cristo

Judas por uma bolsa de dinheiro...

Mentira! não foi este o verdadeiro

Motivo por que o mísero fez isto...

Acompanhava o santo carpinteiro

Um tipo de judia nunca visto:

A formosa Magdala! — o seu benquisto

Sonho! o ideal do seu amor primeiro!

Mas a linda judia o desprezava,

Porque a Jesus queria doudamente

E a alma trazia desse amor escrava...

Quando, uma noite, Judas viu, tremente,

Viu que Jesus essa mulher beijava

Ao fulgor de um luar resplandecente...

II

Judas, em pranto, ouviu, desde essa noite,

Na alma invadida de um clarão do inferno,

O rumor desses beijos, doce e terno,

Como sibilos de cortante açoite...

A serpente de um ódio surdo e interno,

Cujos dentes ninguém a ver se afoite,

Acha um lugar então onde se açoite

No coração do justiçado eterno.

Jurou vingar-se... Até que veio o dia

Em que o meigo rabi a alma serena

Exalou numa alpestre penedia...

Mas teve inda mais ódio ao ver tal cena,

Porque escutou ao pé da Cruz sombria

O choro de Maria Madalena...

III

Existe por ventura dor mais forte

(Dizei-me agora, pálidos levitas

Do Amor!) que as ânsias trágicas, malditas,

De Judas quando procurou a morte?

Quando, ao ouvir imprecações aflitas,

Como um réu sentenciado, órfão da Sorte,

Viu Madalena — a estrela do seu norte! —

Do Calvário nas sombras infinitas?

Dizei-me, enfim, se o eterno condenado

Não merece o perdão da Natureza

Sob esse manto azul do sonho amado?

Mártir do Amor! tu gemes sem defesa

No cárcere do opróbrio emparedado,

Preso aos grilhões de uma mortal tristeza...

IV

Judas! eu vejo em ti o sofrimento

Da injustiça do céu como da terra,

Onde se perpetua a humana guerra

Sob o esplendor azul do firmamento.

Que dor mais alta que a mais alta serra

É a tua! pois teu bárbaro tormento

Ouço na voz do mar, na voz do vento,

Na voz das cousas que este mundo encerra.

Grande foi teu amor como teu crime!

Tanto que a morte procuraste, aflito,

A morte que de tudo nos exime...

E és para todos um judeu proscrito:

Mas eu escuto o amor que te redime,

Que te redime o coração maldito...

PROFECIA DE MIQUEIAS

A Landulfo Monteiro.

Do grande e poderoso reino de Israel restava somente a orgulhosa capital de Samaria quando o profeta Miqueias de Morasthi, em face da idolatria sacrílega do seu povo, entoou o canto fúnebre das dez tribos israelitas. Eis a interpretação livre dessa elegia de bronze que ainda soa, através das idades, numa vibração intensa de desespero, como um carrilhão tocando a rebate numa cidade incendiada...

Escutai! escutai, povos da Terra! Eu vejo

Descer e caminhar o Senhor sobre o Mundo:

Fulge no seu olhar colérico lampejo!

Passa na sua voz um frêmito iracundo!

Derretem-se-lhe aos pés cadeias de montanhas,

Como a cera ao calor da chama em paroxismo;

Somem-se vales como rolos d’água, em sanhas,

Mugindo na garganta escura de um abismo...

Israel! Israel! arrepende-te e chora!

Que nada mais já tens que a pobre Samaria,

 — Reduzido torrão do teu reino de outrora,

Que hoje te vaticina a próxima agonia.

Assim, dia virá que, em vez de uma cidade,

Achará o viajor nesse mesmo reduto

De idolatria vã, de torpe iniquidade,

Só pedras, pedras só, cheias de eterno luto...

E eu, profeta que sou do Senhor, clamo e choro,

Encho o ar com a voz soturna do meu grito,

 — Grito de alarma, grito imenso, alto e sonoro,

Mas triste como os guais de um pássaro maldito...

Carne vil! veste o saco atroz da penitência!

Deixa vasar teu sangue e lágrimas tressua!

Mas se como o Dragão que, uivando, na inclemência

Do deserto, perlustra a árida terra nua...

Que os Filisteus, porém, não ouçam vosso pranto,

Ó povo de Israel! Chorai! de pó cobri-vos!

Mas abafai, do lar no humílimo recanto,

Vosso choro, assim como um bando de cativos...

Oh! bela Samaria! Oh! bela entre as mais belas

Cidades de Israel! Teu fado hostil suporta!

Vais dormir, ao palor da lua e das estrelas,

Na tua solidão como cidade morta...

Oh! mãe israelita! o teu cabelo, agora,

Corta, e chora de dor a um golpe tão certeiro!

Olha: teu filho vai marchar (como ele chora!)

Ao cativeiro, ao cativeiro, ao cativeiro...

VISÃO DE S. JOÃO

(Segundo o Apocalipse).

Ao dr. Carlos de Campos.

Eis que aparece

No Azul, de luz solar vestida,

A doce Virgem-Mãe que resplandece,

Plena de eterna vida...

Traz a cabeça

De doze estrelas coroada,

E sob os pés, calçando, em baixo, a espessa

Noite, a lua argentada...

Treme-lhe o seio

Do amor ao frêmito fecundo:

É que ela traz ao colo, em doce enleio,

O Salvador do Mundo.

Súbito, erguendo

Sete cabeças com diademas,

O Dragão apresenta o aspecto horrendo

Das rebeliões supremas.

Nesse momento

Quando, sanhudo, a cauda agita,

Muitos astros do vasto firmamento

No espaço precipita...

O Monstro espera,

Numa insistente e muda ameaça,

Roubar o Filho àquela Mãe austera

 — A Mãe, cheia de Graça...

Quer devorá-lo

Para fugir ao seu domínio,

Para tornar o Mundo num vassalo

Do seu poder fulmíneo.

Nisto, a Criança

Do Padre Eterno ao trono ascende,

E o arcanjo S. Miguel no espaço avança

E o Dragão surpreende...

Traz a falange

De anjos de Deus, em punho a espada,

Que a luz dos astros rútilos refrange

Na noite alvoroçada...

Trava-se a luta

Com o Dragão e seus sequazes,

Que se exasperam por vencer na bruta

Sanha de Satanases.

Logo a vitória

Clarins ressoam proclamando:

“Glória ao Senhor pelas alturas! Glória

Ao Senhor formidando!”

Então, convulso,

Jurando ao Céu eterna guerra,

Rola o Dragão no azul, do Céu expulso,

E vem cair na Terra.

Mas a Serpente

Persegue a Virgem-Mãe, de perto,

Carregue-a embora uma águia alipotente

Aos antros do Deserto:

Persegue-a... e expele

Da sua boca fumegante

A água de um rio que arrebata a imbele

Num vórtice espumante...

Em vão! Por isso,

Investe contra o mundo, irado,

E faz nele brotar, cheia de viço,

A seara do Pecado.

TEMPLO DE SATÃ

A um padre missionário.

Quem lê hoje Missais? A Natureza

Fazes bem de banir da Arte Cristã,

Porque sabes de há muito, com certeza,

Que a Natureza é o templo de Satã.

É da montanha na áspera grandeza

Que canta o Sol a missa de Arimã,

Difundindo, no vale e na devesa,

Largas bênçãos de luz fecunda e sã...

E amando a Natureza, eu amo a Terra,

Cibele eterna! que no seio encerra

A vida de um Messias redentor,

Que o Céu escalará para o Futuro,

Elevando, em lugar de um Templo escuro,

A Torre de Babel do Grande Amor!

CANÇÃO DO LOUCO

(De Paetefi Sandor, poeta húngaro).

Meu pão, meu vinho e até minha água

Envenenaram... Triste ação!

E depois, com fingida mágoa,

Depois cercaram meu caixão.

Não lhes mostrei a cara má...

Ah! Ah! Ah! Ah!

A cada um, ao beijar-me o rosto,

De ódio mordi quase o nariz;

Mas fiz melhor pondo-os a gosto:

Empestei-os eu por um triz

Com o cheiro da carne má...

Ah! Ah! Ah! Ah!

No adusto areal da África em fogo

Cavaram-me o túmulo, onde eu

Já repousava, quando logo

Feroz hiena apareceu,

Porém, como eles, não tão má!

Ah! Ah! Ah! Ah!

Desenterrou-me, mas, comendo

Meu coração cheio de fel,

Sentiu engulho tão horrendo

Que teve a morte mais cruel...

Eu a enganei... Que ação tão má!

Ah! Ah! Ah! Ah!

Por que me rio como um louco,

Quando devia só prantear,

Num eterno soluço rouco,

Dos homens a maldade alvar?

É que possuo a sina má...

Ah! Ah! Ah! Ah!

Deus não chorou por ter criado

O mundo? Para que serviu?

Também de Deus é negro o fado:

Pois seu pranto, quando caiu,

Tornou-o em lodo a terra má...

Ah! Ah! Ah! Ah!

Minha mente já se consome...

Mas aprendi tudo isto com

Certo filósofo que a fome

Matou por ser austero e bom...

É que a Virtude é sempre má!

Ah! Ah! Ah! Ah!

Antes fosse ele um assassino,

Que alcançaria a glória vã,

Ouvindo em cada boca um hino

Ao seu amor de alma cristã!

(Como és blasfema, ó boca má!)

Ah! Ah! Ah! Ah!

Diz-se que um fruto já maduro

Deve cair... apodrecer...

Oh! Terra! — eterno exílio escuro! —

Madura estás! Deves morrer!

Assim te auguro a queda má...

Ah! Ah! Ah! Ah!

Mas se amanhã tu não findares,

Eu te farei como um paiol,

Em chama arder, voar nos ares,

Com um facho, maior que o sol,

Oh! Terra Triste! Oh! Terra má!

Ah! Ah! Ah! Ah!

ESCADA DE JACÓ

(A um poeta satanista).

Jacó (refere a Bíblia) vê, sonhando,

Numa escada de luz, do céu à terra,

De anjos descer um misterioso bando...

E os vis cuidados que sua alma encerra

Jacó esquece, a plêiade fitando

Que nos vastos degraus de nuvens erra...

Sonhas também, poeta... Mas teu sonho

Não prende a terra ao claro céu superno

Por esse laço místico e risonho

Dos anjos triunfais do coro eterno...

Teu sonhar é hiperbólico e tristonho:

Pois, em vez de subir, num eviterno

Pavor, desce, fantástico e medonho,

Torcicolando, ao boqueirão do inferno.

O SONHO DE PARACELSO

Ao dr. Eugênio Egas.

Fitando o luar que flui nos vitrais da janela,

Paracelso, o alquimista, o velho visionário,

No seu laboratório, entre retortas, vela,

Enlevado, a sorrir, num sonho extraordinário...

Veem-se drogas letais, dentro de um velho armário,

Em âmbulas de vidro. Arde um fogão na cela,

Onde funde os metais o sábio solitário.

De um gato escuro, a um canto, o verde olhar estrela.

Sonha o alquimista: — o seu olhar agora via

Transmudados em ouro os vis metais; e, agora,

Era senhor da força oculta da Magia;

E, como possuidor de tamanha riqueza,

Ouvia mil clarins, por céus e terra em fora,

Proclamando o poder de sua alta realeza.

A CABEÇA DE S. JOÃO BATISTA

No seu leito incestuoso repousava

Herodíade, a lúbrica judia,

Quando entre sonhos viu, torva e sombria,

A cabeça do Santo que ela amava.

Ao contemplá-la, sua carne escrava

Na labareda da luxúria ardia...

Mas a fronte do Santo estava fria,

A língua muda, a face triste e cava...

Lembrou-se então do dia em que o profeta

Repeliu seu amor como um asceta

Quando do cárcer lhe transpôs a porta...

Lembrou-se ainda da homicida sanha...

Nisto, a chorar de comoção estranha,

Beijou-lhe a gélida cabeça morta...

AS MÚMIAS EGÍPCIAS

(Das Piedras Preciosas — de Salvador

Rueda).

Não é dado a ninguém tornar a vida

Inerte e muda como simples nada,

Porque não é matéria inanimada

A escória de uma carne apodrecida...

Disso que chamam alma — desunida,

E com o pó universal mesclada,

Ela sempre revive, transformada

Em flor, ou ave, ou cousa indefinida...

Múmias! que lei contrária ao ser vivente

Vos quer fazer parar eternamente

Na evolução dos seres e das cousas?

Em vão! porque sereis na Vida, em breve,

Na eterna rotação que ela descreve,

Cardos ou lírios, rãs ou mariposas...

A PRAGA DO MENDIGO

Ao dr. Odilon Goulart.

 — “Para encobrir, ó minha mãe, teu erro,

Na roda me puseste sem piedade,

E a vida para mim foi um desterro,

De minha infância à minha mocidade.

Arrastei a misérrima orfandade,

Como um forçado em vis grilhões de ferro,

E vi passar toda a florente idade,

No duro esquife do meu próprio enterro...

Agora, como inválido mendigo,

Sem família, sem pio e sem abrigo,

Espero a paz na morte deletéria...

Talvez habites a região celeste...

Mas de um minuto de prazer fizeste

Oitenta anos de dor e de miséria!”

VISÕES DO PROFETA

A A. Goulart.

(Versão livre de Alexandre Pouchkine, o maior poeta lírico da Rússia, nascido em 1799 e morto em duelo em 1837).

Pela sede atormentado

De luzes celestiais,

Eu me arrastava, ajoelhado,

Num deserto só povoado

De ferozes animais,

Quando, armado de seis asas,

Vi baixar um Serafim,

Envolto em fúlgidas gazas...

(Nos painéis das Santas Casas

Igual eu não vi assim!).

Tocou-me então com seus dedos

Os olhos... Que talismã!

Tudo avistei, sem segredos,

Qual águia que dos rochedos

Olha, altaneira, a rechã...

Das misérias deste mundo

Vi logo o negro crisol,

Como de um pântano imundo

O verde, o lodoso fundo,

Exposto ao queimor do sol...

Roçou-me também o ouvido

Com sua sagrada mão:

Ouvi logo, embevecido,

O rumor indefinido

Das estrelas na amplidão...

(Que contraste! O humano vício,

Como fanfarra infernal,

Lançava ao Céu o convício

Das paixões do seu flagício

Numa infrene saturnal...)

Depois, beijando-me os lábios,

A língua então me arrancou:

Língua cheia de ressábios

Dessa mentira dos sábios

Que de Erros a saturou...

E na minha boca ardente

Colocou, em seu lugar,

O aguilhão de uma serpente,

 — Bífido gume tremente.

Esfuziando sempre no ar...

Senti nesse mesmo instante

Uma ânsia douda, febril,

De me arrastar, soluçante,

Junto a uma cruz negrejante,

Nas urzes de um cerro hostil...

Fendeu-me o peito, em seguida,

Com sua espada de luz,

E por sangrante ferida

Meu coração já sem vida

Nas suas mãos veio a flux...

E no meu peito vazio

Um carvão em chamas pôs,

Que me fez no corpo frio

Ferver o sangue tardio

Num curso quente e veloz.

Mas, às súbitas, no espaço,

O Serafim se perdeu,

Não deixando nem um traço

Do seu rutilante passo

Nas profundezas do céu...

Nisto escutei, em voz cava,

O que me disse Iahveh:

 — “Levanta-te, argila ignava!

Anda! Prega à turba escrava

A bíblia de minha Fé.

“Percorre o Mundo, clamando

Contra o Espírito Revel:

Que o teu Verbo formidando

Aos poucos irá minando

A diabólica Babel.

“Com tua alma iluminada

De luzes celestiais,

Leva, carcaça animada!

Minha Palavra abrasada

Ao coração dos Mortais.” —

A UM ESTOICO

O homem vive pouco sobre a terra, mas a sua vida é cheia de misérias: “Brevi vivens tempore, repletur multis miseriis”.

(Do Livro de Jó).

Num castelo de cartas derruído

Cifram-se as tuas ilusões falazes,

Em que, sombrio anatomista, fazes

A própria anatomia do gemido.

Sarjam-te a alma os bisturis mordazes

Da ironia... Que importa? O busto erguido,

Palpando ainda o coração ferido,

Afrontas, com desprezo, os Satanases.

Não que ambiciones as coroas parvas

Neste vale de lágrimas de lodo,

Onde a Vaidade oculta ascosas larvas...

 — É que a ideia do Nada te consome:

Pois o que aspiras neste mundo todo

É uma pequena lápide... sem nome.

CERES DE GNIDO

(Das Piedras Preciosas — de Salvador Rueda).

Adivinha-se o par de pomas duras

Que um filho amamentou dando-lhe a vida,

Através da roupagem mal cingida

Que do corpo te envolve as formas puras...

Do feto a gestação estremecida,

Só te causa volúpias e venturas,

Até que te revês, nas angusturas

Do parto, em outro ser reproduzida...

Lembras-me a Virgem-Mãe do Cristianismo,

Em cujo olhar soluça o misticismo

De uma luz sempre ungida de piedade...

Mas eu te encaro com amor mais franco,

Porque palpita no teu ventre branco

A dor sagrada da maternidade.

MISSA NOVA

Fazes-me rir, angélico Tartufo,

No púlpito sombrio das Igrejas,

Quando, a pregar, num largo assomo bufo,

Contra o amor, apoplético, esbravejas...

É que, a despeito desse teu arrufo,

Beijarias, eu sei, em tais pelejas,

Com tanta unção, o bico de um pantufo,

Como a patena de ouro, à missa, beijas...

Cala-te, pois, padre funambulesco:

Que não passa de um caso picaresco

A castidade ideal do teu sermão.

Eia! cá fora, como um homem, goza!

Ama! cantando, em plena luz radiosa,

A missa nova da procriação.

A RESSURREIÇÃO DE LÁZARO

Ao Padre Senna Freitas.

(PARÁFRASE)

Lázaro ergueu-se à voz do Nazareno...

 — “Por que, doce Rabi, — assim dizia, —

Me chamas tu à vida a um teu aceno

Quando na morte já não mais sofria?

Por que escutaste o lacrimoso treno

Dos corações de Marta e de Maria,

Quando, bondoso Espírito sereno,

Livre da eterna dor, eu já dormia?

Acaso cometi algum pecado

Tão desumano, que eu me torne agora

Dos desgraçados o mais desgraçado?

Punes em mim os crimes do teu povo...

Pois nesta escura, inexorável hora,

Torno a viver para morrer de novo...” —

TORSO DE BELVEDERE

Ao dr. Baptista Pereira.

(Das Piedras Preciosas — de Salvador Rueda).

Em que batalha entraste, que, em pedaços,

Hércules imortal! voltas à vida?

Quem no corpo te abriu tanta ferida

Que ao torso te arrancou pernas e braços?

Foi acaso em coléricos rechaços,

No mais aceso da guerreira lida,

Que te rolou dos ombros, desprendida,

A cabeça febril de rudes traços?

Vendo talvez do Mal a triunfante

Babel erguer-se, tua mão possante

Quis derribá-lo para humano exemplo...

E esbarrondando a abóboda em teus ombros

Sepultado ficaste nos escombros

Como Sansão no legendário templo.

A UMA NOVIÇA

Em nome do Amor e da Natureza! maldita sejas, noiva de Cristo, que o mundo abandonaste por um convento...

Grite a luxúria no teu corpo em febre,

 — Corpo viúvo do amoroso beijo, —

Mas no leito vazio então se quebre,

Estertorando, a voz do teu desejo.

Tua carne queixosa enfim se alquebre

Da velhice ao congélido bafejo,

E, como nas ruínas de um casebre,

Leve-lhe o inverno o último lampejo...

Mas, nesse “dies iræ” da Matéria,

Ao pé da Cruz, em pranto, que miséria!

Não aches nela o mínimo conforto.

E a morte esperes, monja ciliciada,

Sem que ouças nunca uma palavra amada

Dos lábios frios do teu Cristo morto...

CONTRIÇÃO DE VERLAINE

A ti, Santo sem altar, Glorioso Mártir do Sonho Místico, a ti, Bem-aventurado do Inferno da Carne, a ti, que escreveste o piedoso livro — Sagesse, depois da magia negra dos Poèmes Saturniens...

Na purificação da culpa que te encarde

Todo o passado — culpa trág ica e solene! —

Vãmente, alma cristã! vãmente em chamas arde

Teu coração votado ao céu em lausperene!

Sim! de tanto fervor para que tanto alarde,

Se, com o seu perdão embora Deus te acene,

Tua carne se insurge e exclama: — “É tarde! É tarde!” —

Na volúpia infernal do seu desejo infrene?

Assim, por mais que suba a alma que te acompanha,

Numa assunção de luz, ao alto da Montanha,

Onde jamais brotou do Mal o vil tortulho,

Não te podes conter na hora mortal do Tédio,

Pois ouves, conclamando, em tenebroso assédio,

A voz do Sangue, a voz do Amor, a voz do Orgulho...

DIÓGENES

A Américo de Campos Sobrinho.

Verdadeira miséria é viver na terra. Quanto mais espiritual quiser ser o homem, tanto mais amarga lhe será a vida: porque sente com maior intensidade e vê mais claramente os defeitos da corrupção humana.

(Kempis, liv. I, cap. XXII).

Liberto da ilusão de todos os amores,

Olhando o mundo como antro de feras bravas,

Dentro de tua cuba, ó Diógenes, rosnavas

Ante esta farsa vã de risos e de dores.

Quis um dia, porém, Aspásia ver se a amavas,

E foi, ó sábio cão, coberta de esplendores,

Tentar-te no canil com joias e com flores,

Pois lhe disseram que de todo amor zombavas...

 — “Despe-te, cortesã, — disseste logo, é certo, —

“Nesse teu corpo assim de pérolas coberto

“Vejo o pranto da plebe envolta em seus farrapos...”

Com isso a bela Aspásia, ó sábio, confundiste...

Mas qual será mais vil, mais cínico, mais triste:

 — O orgulho do seu luxo? o orgulho dos teus trapos?

MAGIAS DA CARNE

IRREPARÁVEL

I

Impressão de uma água-forte — “A Bebedora de absinto”, — de Félicien Rops, um dos “malditos” iniciados no espiritualismo da luxúria de Baudelaire: — o Satanismo.

Boca sanguínea e quente — golpe vivo

De uma gélida lamina acerada! —

Como uma flor de vinho e fel, queimada

No fogo estéril do seu beijo esquivo...

Verdes olhos de pérfido atrativo,

Que, saturando como o absinto, em cada

Olhar, deixam de tédio a alma gelada,

Sem um consolo, sem um lenitivo...

Mãos de Febre e de Sonho, transparentes,

Afeitas a cerrar os olhos crentes

Dos que desmaiam no seu frio seio...

Ventre infecundo mas voluptuoso

Que a Loucura propina com o Gozo...

 — Eis a mulher que eu amo e que eu odeio!

DE PROFUNDIS CLAMAVI

II

(Paráfrase de Ch. Baudelaire).

Exoro-te piedade, imploro-te socorro,

Deste abismo onde jaz meu frio coração,

Onde vivo a morrer, onde a viver eu morro,

Cheia a boca de fel, de horror, de maldição...

É uma região polar que em lágrimas percorro,

Com os pés sobre a neve, o olhar na escuridão.

Que encobre o céu azul como chumbado forro:

Um país sem calor e sem vegetação.

Acontece, porém, que a luz de um sol de gelo

Trespassa alguma vez a escuridão polar,

Como se a trespassasse um álgido cutelo...

E sinto em cada fibra um urso branco a uivar,

 — Trôpego o passo, o olhar em chama, hirsuto o pelo, —

Com fome do teu beijo, arcanjo tutelar!

BEATA BEATRIX

III

Dizem que és casta, és santa, és pura...

E, na verdade, quem te veja

O rosto... os olhos... a figura

Que lembra as santas de uma Igreja,

Por Deus! negar não pode, jura

Que és pura, és santa, és casta, e beija,

Com untuosa compostura,

Tua mão franca e benfazeja...

Mas que o Senhor me fira em cheio

O coração, se, em longo anseio

Da mais brutal paixão espúria,

Teu corpo em meus braços de ferro

Não palpitou ouvindo o berro

Do bode negro da Luxúria!

MISSA DE AMOR

IV

Sobre o teu branco ventre, cor de leite,

 — Alucinante mármore de Paros, —

Canto, ó meu sonho, a missa do deleite,

Eu, o ministro de teus sonhos raros.

Lubrificam-te os olhos, como o azeite

Da lâmpada de um templo, os estos claros

Da volúpia... Ai, assim, amo-te, amei-te,

Altar ungido de meus beijos caros.

Vamos! Que as hóstias brancas do teu seio,

Trêmulas, saltem da camisa, louca...

Que o cálix seja a tua boca langue...

De joelhos, presto! A missa vai em meio...

 — Pode o beijo cantar na tua boca!

 — Pode romper a orquestra do teu sangue!

DONNA FRANCESCA

V

(Gabriel D’Annunzio).

Quando, uma noite, com a mão nervosa

Do teu quarto afastei o reposteiro,

Estavas no teu leito feiticeiro,

Braços em cruz, numa oração piedosa.

Tinhas em frente a imagem dolorosa

De Cristo que morria num madeiro;

Mas, ai de mim! embriagou-me o cheiro

Da tua carne de verbena e rosa...

E aproximei-me como um sacerdote,

Ungindo-te de beijos, no decote,

Dos seios rijos o pequeno par...

Mas quando tu despiste a alva camisa

E mal vi tua pele branca e lisa,

Caí de joelhos como ao pé do altar...

VULNUS AMORIS

VI

Ninguém sonde jamais a viva chaga

Que no meu sangue se alimenta agora,

 — Boca voraz de amor, lasciva e maga,

Que a alma dementa e o coração devora.

Mas essa boca, que tortura e afaga,

Que morde e beija, que maldiz e implora,

Dirá somente a dor que me embriaga

Na hora da minha morte, só nessa hora...

Porque esse amor, voluptuoso e oculto,

Que tanto eleva, tanto abate, elando

Duas almas, dois corpos, num só culto,

Me faz gozar os mais febris assombros,

Pois eu vivo, entre o inferno e o céu voando,

Com as asas de Lúcifer nos ombros!

CREDO

VII

 — “Não crer em Deus! que horror e que pecado!

Ela assim fala e fita-me com pena

De ver-me ao fogo da infernal Geena

Irremissivelmente condenado.

E, compassiva, a sua mão pequena

Estende-me num gesto abençoado...

Mas eu que aos pés lhe caio, ajoelhado,

Confesso-lhe a paixão que me condena:

 — “Não creio em Deus; mas creio no teu beijo

Que o sangue me alvorota nas artérias

Na rebelião do mais carnal desejo:

“Creio no ardor de teus abraços, louca!

Se tenho, neste vale de misérias,

A minha boca sobre a tua boca...” —

SALMOS E EXORCISMOS

A COMÉDIA DO AMOR

A A. Salles Junior.

ENCORE UN INSURGÉ!

(Le Mal de Misère — de H. Napias).

Atraídos e presos num abraço

Beijam-se os dous na síncope amorosa...

Que longo beijo! Que apertado laço

De amor! Quanto esse par anseia e goza!

 — “Que venturoso par! Que venturosa

Cena de amor!” — direis... Mas eu que passo

Da Vida a perquirir a alma ansiosa,

Como das Cousas o segredo escasso,

Eu vos direi: — “Que desgraçados! Antes

Morressem, tendo os corações amantes

Atravessados de punhais buídos,

Do que houvessem gerado mais um ente,

Um revoltado, um pária impenitente,

Naquele beijo cheio de gemidos...”

FREI SATANÁS

(Lenda da Idade Media).

I

Na biblioteca de um convento (um frade

Da Idade Média narra em manuscrito)

Achou-se um livro pelo Diabo escrito

Quando fez parte da comunidade...

Era a novela de um amor maldito

Que teve Satanás na Média Idade

Por uma Santa, que, na mocidade,

Votou a Deus seu coração contrito.

Esse livro foi posto num braseiro

Diante dos monges do exemplar mosteiro

E reduzido a cinzas num momento...

E para que do livro não ficasse

Nem um argueiro, da irmandade em face,

As próprias cinzas dispersou o vento...

II

Mas pelo manuscrito do indiscreto

Cronista-irmão soube-se logo, um dia,

Que existiu numa cela estreita e fria

O herói da história desse estranho afeto.

E ninguém houve nessa confraria

Que não tivesse compaixão do quieto

E triste frade (lívido esqueleto!)

Que só em preces e em jejuns vivia...

Conta-se até as folhas do Breviário

Em que rezava o Diabo solitário,

Tinham sinais de lágrimas... Coitado!

E que numa manhã de frio inverno

Foi encontrado o Tentador eterno,

No seu genuflexório — desmaiado...

III

Numa noite de horrível catadura,

 — Noite sem astros, noite de procela, —

Começaram os sinos da capela

A dobrar... a dobrar... na torre escura.

Alguém agonizava numa cela:

 — Era o frade tristonho e sem ventura

Que em sua mão gelada e mal segura

Premia, em ânsias, uma cruz singela...

Por entre os uivos da nortada intensa

Ouviu-se então, dentro da noite imensa,

O Miserere num clamor profundo...

E a confraria o mísero fitava,

Entre os fuzis da tempestade brava

Que parecia destruir o mundo...

IV

Foi posto na capela erma, deserta,

Frei Satanás, tão triste como outrora,

Alumiado somente, noite em fora,

Do alampadário pela luz incerta...

E no outro dia, mal rompia a aurora,

Dobrava o carrilhão: Alerta! Alerta!

E a confraria, ainda mal desperta,

Entrava na capela sem demora.

Mas qual não foi de cada monge o espanto

Quando se viu sob o mortuário manto

Seu esquife vazio e desconjunto...

Refere a lenda que da igreja as portas

Se abriram de repente às horas mortas

E os anjos conduziram o defunto.

PERGUNTAS AO SOL

A Nuto Sant’Anna.

(PARÁFRASE)

I

Interroguei um dia ao sol nascente:

 — “Por quê, na festa fulgural da aurora,

Quando surges do mar, o céu do Oriente

De vivas cores triunfais se enflora?”

Deu-me em resposta o sol: — “É que eu, amigo,

Nesta viagem pelo céu profundo,

Levo a esperança — o grande sonho antigo! —

De ser feliz, iluminando o mundo”. —

II

Ao sol poente perguntei um dia:

 — “Por quê, quando no mar desapareces,

Do horizonte na linha fugidia

O céu ocidental empurpureces?”

O sol me respondeu: — É que, no mundo,

Vejo misérias tais que me envergonho,

E, cheio de rubor, de asco profundo,

No ocaso escondo o meu eterno sonho..

O ESPETÁCULO DA VIDA

(Das Piedras Preciosas — de Salvador Rueda)

Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que sois como os túmulos: por fora sois formosos, na verdade, mas por dentro estais cheios de ossos de mortos e de todas as imundices.

(Palavras de Jesus Cristo).

Ante meus olhos, com secreto espanto,

Vi desfilarem, nesta humana vida,

Seres e seres de honradez fingida,

Da hipocrisia sob o falso manto.

Quantos sorrisos contrafeitos! Quanto

Remorso na consciência corrompida!

Quanta dobrez numa cerviz erguida!

Quanta mentira no amoroso encanto!

E dos homens que tenho conhecido

Um entre mil achei que digno há sido

De ornar a fronte com virentes palmas.

Descreu por isso minha sã consciência

Ao atentar, no palco da existência,

Em tantos homens e tão poucas almas.

NIHIL

(S. Rueda).

Se as cinzas do mais forte Soberano

Cabem na mão como um punhado leve,

E o Tempo edaz a escarnecer se atreve

Da Glória astral do próprio Gênio Humano;

Se a áurea grandeza do poder romano

Desaparece como sonho breve,

E o Homem, por mais que no saber se eleve,

É de si mesmo o mais cruel tirano;

Ciência! — não gastes mais tua energia

Em prolongar do coração desperto

A dolorosa e bárbara agonia.

P’ra que alongar nosso destino incerto,

Se das próprias pirâmides um dia

A poeira rolará pelo deserto?!

A DEUS

(Soneto de E. Haraucourt).

Se é verdade que tu, ó Deus, Juiz Supremo,

Existes, mas a quem blasfemei; se é verdade

Que devo um dia, inerme e nu, na Eternidade,

Esperar a teus pés o meu castigo extremo:

Tu, ó Deus, perdoarás o meu grito blasfemo,

Tu, ó Deus, perdoarás a minha iniquidade,

Pois sabes que, na Dor, a Dúvida me invade

E não me escuta o Céu quando por terra eu gemo...

Sabes — e tu somente! — o fundo desta chaga

Que toda a minha vida em pranto e sangue alaga;

Sabes tu só, só tu, meu desespero eterno...

Ninguém sondou meu mal — mal secreto e profundo!

Porque fiz sempre rir meu pranto neste mundo

E sempre enchi de luz e de anjos meu Inferno!

ATO DE CONTRIÇÃO

(Escrito depois da leitura de uma poesia de Santa Tereza de Jesus, quando esta carmelitana se refere a Satã).

Já que meu coração, no desencanto

Das ilusões do Orgulho e da Vaidade,

Encruou na feroz iniquidade,

Como na rede de infernal amianto,

Dai-me, Senhor! um pouco de piedade,

Para que eu possa, com esse óleo santo,

Ungir meu seio onde secou o pranto,

Como a estéril Gomorra da Impiedade.

Uma lágrima só que me tombasse,

Como divino bálsamo, na face,

Desfaria, Senhor! minha cegueira...

E essa gota de lágrima salgada

Lavaria, num sonho de alvorada,

As maldições de minha vida inteira.

DIÁLOGO

 — “Como podes viver sem crença alguma

Com esse rir feito de fel, zombando

De toda a crença que o ideal resuma

Do cristão neste mundo miserando?...

“A que bordão te arrimas, caminhando

Após uma miragem que se esfuma

E vai fugindo ao teu olhar nefando

Até se desfazer em fria bruma?

“Não acreditas que na Imensidade

Exista um Deus de amor e de bondade

Que os Bons premia e os Maus do céu afasta?”—        

 — “Abençoa-me, padre! a alma descrida.

Pois tenho uma só crença nesta vida:

Creio no amor de minha mãe, e basta.” —

[— “GLÓRIA A TI, Ó SATÃ, NO ETERNO PAROXISMO]

Salute, ó Satana,

O rebelione!

(G. Carducci).

Gloire et louange à toi, Satan...

(C. Baudelaire).

 — “Glória a ti, ó Satã, no eterno paroxismo

Do Érebo eterno! Glória a ti, Arcanjo exul,

Que sonhas como um Deus, nas tênebras do Abismo,

Nostálgico do Azul!...

“Glória a ti, ó Revel, que o monge em misticismo

Tentas no claustro, e, a leste, ao oeste, ao norte, ao sul,

Reinas no Mundo, a rir das rezas do exorcismo,

Sarcasta Arcanjo exul!

“Glória a ti, ó soberbo Arauto do extermínio,

Que insurges contra a Carne o exército fulmíneo

Dos Sonhos sensuais!

“Glória a ti, ó Demônio ultriz, de asas sulfúreas,

Que queimas no braseiro iníquo das Luxúrias

Os corpos virginais!”

SINOS DO NATAL

A José Vicente Sobrinho.

Meia noite. Repicam os sinos. Que dizem eles? “Nasceu Jesus! Nasceu Jesus!” E um luar de prata banha o céu, banha a terra, enquanto escuto a voz dos sinos do Natal.

Não sei que oculta mão nos leva, sei apenas

Que vamos caminhando, às tontas, caminhando,

Sob a carga mortal de misteriosas penas,

Ante a força minaz do horóscopo nefando...

Mas o oásis do Amor, em miragens serenas,

Nos sorri, nos atrai... E passa o nosso bando

Embalado na voz de estranhas cantilenas...

E vai cantando... e vai sonhando... e vai passando...

Bendito seja o Amor que enfeita de sorrisos

A terra, e faz sonhar, criando paraísos

No céu! Bendito seja e no céu e na terra!

É o Amor que nos dá os Cristos pequeninos...

Bimbalhai, bimbalhai no Azul, sonoros sinos!

Dos convales em flor às cúspides da serra...

O DEMÔNIO AZUL

(De Ada Negri — Tempeste).

Da noite apenas a lutuosa trama

Envolva tudo — o céu, a terra, o mar, —

Um demônio verás, olhos em chama,

A fronte me beijar.

E eu, trêmula e branca, abandonando

O leito em que a teu lado estou, o passo

Daquele belo vulto formidando

Seguirei pelo espaço.

E ele há de segredar aos meus ouvidos

O mistério fatal da Criação,

Que me despertará, entre gemidos,

A Dor no coração.

Aí meus cantos de infernal magia

Como ecos vibrarão de mil clamores:

 — Meus cantos que soluçam na agonia

De incomportáveis dores;

Que aos Miseráveis, na batalha insana,

Os céus apontam — os longínquos céus! —

Onde terá a grande Chaga Humana

O bálsamo de Deus;

Que são feitos de Prantos e Pecados,

Que Ódio tressuam, que Paixões tamanhas

Ateiam, desde os astros inviolados

Da terra até às entranhas. —

Nessa hora de volúpia e de loucura

Não me perturbes com teu zelo; pois

Aos braços teus, como parti, tão pura

Eu voltarei depois.

Submissa, feiticeira, enamorada,

Eu voltarei para implorar teu beijo

 — Treno de luz, doce canção alada, —

Que me aplaca o desejo.

E hei de pousar a minha fronte mansa,

Rindo e sonhando, sobre o seio teu,

Como cândida fronte de criança

Que, a rir, adormeceu...

TESTEMUNHO DE CRISTO

 — “Eu te amo... eu te amo...” disse-me, beijando

A boca, os olhos, os cabelos... Nisto,

Por testemunha desse amor, jurando,

Tomou a efígie do meu brônzeo Cristo.

Foi-me, entanto, infiel... Por isso, quando

Essa imagem contemplo, eu me contristo,

E vejo duas lágrimas rolando

Dos olhos cavos do meu brônzeo Cristo...

A CAVEIRA HUMANA

Por trás da carne existe uma fria caveira,

Que ri de nós, que ri do nosso ardente esforço,

Desde o embrião vital em seu primeiro escorço,

Desde a cova do ventre à cova derradeira.

Seja o atleta a lutar, de músculo retorço,

Na arena, seja o poeta em sonho a vida inteira,

Ela zomba, por trás da máscara de poeira,

Desse eterno labor que lhes corcova o dorso...

Desejo insatisfeito! eis o acicate em brasa

Que esporeia o animal humano toda a vida,

Até que o leva ao Nada em que a Dor extravasa.

Não importa! a caveira ainda ri mais forte,

Pois que ela passa, então, a máscara descida,

Da comédia da vida à comédia da morte.

AUTÓPSIA

(Ada Negri).

Impassível doutor, que empunhas o calelo,

Incapaz de qualquer sentimento mais brando,

Vais o meu corpo nu, sem o menor desvelo,

Talhando e retalhando...

Ah! ignoras quem fui... Não vês que desafio

O golpe cru de tua lâmina glacial?

Pois já vais conhecer do meu drama sombrio

O que fui, afinal.

Donde vim? Do pecado: enjeitaram-me, creio;

Nunca soube o que fosse um carinho materno;

Não tive lar, sofri o ríspido bloqueio

Das nevascas do inverno.

Curti noites de febre e insônia, a arfar, diante

Das minazes visões do dia de amanhã:

 — Horas de inútil prece, horas de fome uivante,

Horas de rude afã...

Assim fui percorrendo, ao peso das fadigas,

Um por um, da Miséria escusos corredores,

Por entre crispações de faces inimigas

E máscaras de dores...

Até que, um dia, entrei, exangue e combalida,

No lôbrego hospital, já prestes a morrer:

Foi então que paguei, com uns restos de vida,

O crime de viver.

Sem ouvir, junto a mim, uma oração magoada,

Que me fizesse crer na paz do céu venturo,

Deixaram-me extinguir, num catre, abandonada,

Como um cão no monturo...

A Natureza, entanto, irônica e indiscreta,

Da beleza me deu o imortal esplendor;

Mas, para quê? Para atirá-lo à vasa infecta,

Sem um beijo de amor.

Antes disso, bofé! que o bisturi lascivo

Me recorte a epiderme, o corpo me esviscere!

Que importa! Em mim se encarna o sonho redivivo

De uma lúbrica hetere...

Mas, agora, reparo, estoico anatomista,

Que, suspenso o cutelo, hesitas em sarjar

A neve do meu colo, estremecendo, à vista

Dessa flor de luar...

Vamos! golpeia presto! esquadrinha e procura

O lugar em que está meu coração... Coragem!

A Dor nele morou qual numa furna escura

Um animal selvagem.

Ah! não basta... Depois, no meu ventre escavado,

Sonda o mistério atroz da fome; pois, talvez,

Resolvas a questão desse mal num “Tratado”,

Para o rico burguês.

Mas observa, afinal, com teu olhar profundo,

Que o meu olhar de gelo, impávido, te acusa,

Como algoz de meu corpo — o último algoz! — no mundo,

Em que fui uma intrusa...

Eis a cena final... Vamos! arreia o pano

Sobre o meu corpo nu, sem gesto e sem ação...

Que importa! Vibra em mim todo um clamor humano

De dor e maldição!

O CÉU...

(Ch. Baudelaire).

Por onde quer que vá, sobre o mar, sobre a terra,

Morador da cidade ou do campo distante,

No côncavo de um vale ou no alto de uma serra,

Sob um clima de gelo ou sob um sol flamante,

Mendigo tenebroso ou Creso rutilante,

Quer se conserve em paz, quer se destrua em guerra,

— O Homem cai a tremer, em qualquer parte, diante

Do Mistério que o Céu — trágico abismo — encerra...

Sempre o Céu! sempre o Céu! — teto que se ilumina,

No teatro do mundo em que o Homem representa

 — Mascarado histrião! — a comédia divina;

Em que o Homem, — pobre ator cheio de desenganos, —

Das paixões arrostando a terrível tormenta,

Chora, blasfema e ri — há mais de dez mil anos...

A TORRE DE BABEL

(Dos Sonnets Amers, de

Jean Richepin).

Mais alto! ainda mais alto! estes altos pilares

Ergamos! Torres sobre torres! Nos espaços,

Terraços colossais sobre vastos terraços

Percam de vista, em cima e ao longe, a terra e os mares!

Toquemos com a mão os constelados paços!

Mais arcarias! mais paredes aos milhares!

Subamos sempre! até que lá no azul dos ares

Deixemos o sinal firme dos nossos passos...

Mas em vão nosso orgulho, armado de paciência,

A torre de Babel em construir persiste,

Criando a Religião, a Arte, a Indústria, a Ciência...

Em vão! porque essa torre, instável como a bruma,

Não passa de ilusão que só na mente existe,

E o céu nos foge... o céu se afasta... o céu se esfuma...

A CAVEIRA DE YORICK

Eis o que a caveira de Yorick diz a Hamlet, depois que este, num gesto de desdém, a joga ao chão, e se oculta entre as árvores do cemitério, ao passar o enterro de Ofélia...

— “Hamlet! Hamlet! como te iludes, se procuras

Nesta cidade morta os mortos iludir!

Não vês? Cada caveira, a rir, a rir, a rir,

Escarnece de ti, no chão das sepulturas!

Pranteando o passado e sonhando o porvir,

Sangra réu coração em pávidas agruras,

E, lívido, beirando estas covas escuras,

Os mistérios do Além receias descobrir.

Tua dor teatral nem mesmo a compreendes,

Príncipe doudo! que vieste perturbar

Esta mansão de fogos fátuos e duendes...

Na tua mente, como um pêndulo, a oscilar,

A dúvida te absorve a alma... Que pretendes?...

Que pretendes, então, fazer neste lugar?”

LENDA DO JUDEU ERRANTE

I

Ia o meigo Rabi para o Calvário,

Quando viu, à soleira de uma porta

Sentado, um homem pobre, um operário,

Um triste que a existência mal suporta...

Jesus lhe disse: “A cruz, meus ombros corta;

Três vezes já caí neste fadário;

Deixa-me entrar e descansar...” — Qu'importa!

Caminha!” — respondeu o proletário.

Então, Jesus, o Bom, o Justiceiro,

Praguejou: — “Andarás por toda a vida,

Sem descansar jamais, no mundo inteiro...”

Com efeito, segundo reza a lenda,

O proletário, errante, sem guarida,

Sofre até agora a punição tremenda...

II

E caminha... e caminha, noite e dia,

À luz do sol, ao pálido luar,

Correndo atrás da morte fugidia,

Porquanto a vida é o seu maior pesar...

Caminha sempre... Quanta vez revia,

Em vago sonho, o fumo do seu lar!

E ele, desamparado de alegria,

Na terra, a caminhar, a caminhar...

Vales, montes, desertos e cidades

Viu, através de todas as idades,

E ele nunca parou... Que maldição!

Viu todos os recantos deste mundo

E não achou um báratro bem fundo

Para enterrar seu morto coração...

III

Contam que, um dia, o coração lhe aperta,

Longa e funda, a saudade... Então procura

A terra em que nasceu, na rota incerta,

Para cavar a sua sepultura...

Entra em Jerusalém: era deserta.

O incêndio lavra na cidade impura;

Por entre as chamas, a voar, liberta,

A águia negra dos Césares fulgura...

Tombam muralhas com fragor medonho...

E ele vê desabar o antigo teto

Que o viu nascer, brincar, feliz, risonho...

“Dai-me, Senhor, a morte! — exora o triste;

Pois que perdi o derradeiro afeto:

O teto de meus pais não mais existe...”

IV

Esperança tão vã! Como seus passos

Deter, se ele ouve a maldição fatal,

Ali mesmo partir, entre fracassos,

Das ruínas do teto paternal?

Alucinado, erguendo então os braços,

Num instante de cólera infernal,

Envolve-se das chamas nos baraços,

Como o gênio terrífico do mal...

Em vão! Repele o fogo o filho espúrio

Da Vida, a dardejar, alto e purpúreo,

Em tetânicos vólvulos de horror...

Adeus, Salém! adeus, Salém divina!

Teu filho segue a irrevogável sina

Que lhe impôs Jesus Cristo — o Redentor...

V

Ei-lo que corre agora, desvairado,

Como a fugir da própria sombra, corre,

Certo de que, da morte mesma odiado,

Como um eterno réprobo, não morre...

Da fronte em bagas o suor lhe escorre...

Embora! impele-o para diante o Fado:

Corta cidades, solidões percorre,

Até que chega a Roma o desgraçado...

Mas Roma, entregue ao saque nesse dia,

Com a invasão dos Bárbaros do Norte,

Lavada em pranto e sangue, tripudia...

Então, sem negaceadas esquivanças,

É de ver, como ansioso, busca a morte

Num torvelim de espadas e de lanças...

VI

 — “Enfim! — disse ele, vou morrer! Bendita

A lança que varar meu coração!” —

Espera a morte e, com inveja, fita

Cada guerreiro a escabujar no chão...

Tudo baldado! Porém deixa a avita

Roma envolta de sangue num golfão...

Procura o mar, no mar se precipita,

Mas sobre a praia cospe-o um vagalhão...

Sobe ao Vesúvio e engolfa-se no abismo...

Como se houvesse um grande cataclismo,

Vomita-o em chamas o vulcão também...

Interna-se na selva e no deserto,

E as feras fogem, evitando o incerto

Passo do Velho de Jerusalém...

VII

De um casebre lhe acena um criança,

Quando passava, um dia, numa aldeia:

Uma alma em flor! um sonho! uma esperança,

A rir... O triste para e titubeia...

E da infantil caricia à luz tão mansa

O caminheiro mais e mais se enleia...

Mas uma voz, travada de vingança,

Como um trovão, de súbito, estrondeia...

“Caminha!” — a voz imperativa brada...

Aí, tapa os ouvidos o mesquinho,

Medonho o olhar, a face demudada...

Mas, afinal, blasfema o Velho Errante,

Quando, na extrema curva do caminho,

Perde de vista o carinhoso infante:

VIII

 — “Maldito sejas tu que o vil suplício

Me deste de viver, cruel Jesus,

 — Sacrifício maior que o sacrifício

Que suportaste ao peso de uma cruz...

Pois que, acima do humano precipício,

Foste habitar numa região de luz,

Logo que conheceste o malefício

Que a todas as misérias nos conduz...

Ouve, porém... Caminha sempre o Homem,

Enquanto os Deuses imortais se somem

À análise glacial do sábio incréu...

E tu mesmo, ó divino missionário,

Quando subiste a serra do Calvário,

Nunca pensaste achar deserto o céu...” —

ILUSÃO DA CARNE

A João Silveira Júnior.

Como és bela, mulher! Bela, somente?

Não... Que não basta a modelagem pura:

És também a mulher de sangue ardente

Que ama — e no seu amor se transfigura...

Feliz de quem, como eu, sorve a doçura

Do beijo no teu lábio que não mente,

E, a um tempo, nessa estética figura

Goza o primor da carne florescente...

Mas, que tristeza a minha! quando penso

Que esse corpo de mármor palpitante,

Sob o acicate de um prazer intenso,

Não passa, flor, de um esqueleto imundo,

Que aperto nos meus braços, delirante,

Como um tesouro sem igual no mundo...

VISÃO DE SANTA BRÍGIDA

(Ao dr. Joaquim Leitão).

Une sainte, trois fois canonisée par l’Eglise, sainte Brigitte, a bien osé nous montrer Jésus-Christ, offrant à Satan une grâce pleine et entière, sous la condition d’une parole de repentir.

(T. Dulamon).

No místico fervor de uma oração, ungida

A alma de Amor, de Paz, de Graça e de Piedade

Pelos que vão caindo, em luta, nesta Vida,

Pelos que vão tateando, em pranto, a Escuridade,

Santa Brígida viu (chorando, enternecida)

Satã ante Jesus que, cheio de bondade,

Súplice a voz, lhe diz: — “Ó Alma decaída!

Roga a Deus o perdão da tua Iniquidade”. —

Satã, zombando, ri; porém tanta é a brandura

De Jesus Cristo, e a unção de sua voz tão pura,

Que aos pés lhe cai Satã, colhendo à boca o riso...

— “Senhor! — implora então — eis-me aqui ajoelhado...

Lava-me pois, Senhor! a mancha do Pecado”. —

E a Santa viu Satã subir ao Paraíso...

SÃO MARTINHO

Ao cônego dr. Valois de Castro.

Estava São Martinho, a orar, em sua cela,

 — Cinza à cabeça, os rins sangrando no cilício, —

Prostrado ante uma cruz que aos olhos lhe revela

A morte do Senhor no trágico Suplício:

Quando, entre chamas, viu surdir, estranha e bela,

A figura do Diabo — o eterno Deus do vício —

Que assim lhe disse, rindo: — Oh! Santo! abre a janela:

Distante é o céu! Vê como é vão teu sacrifício!” —

Tinha Satã na fronte um rútilo diadema,

Dos ombros lhe caía a púrpura, de gema

E de ouro ornada... Nisto, em meio da oração,

O Santo, olhos na cruz, com venerando aspeito,

Ao Diabo respondeu, cruzando as mãos no peito:

 — “Mentira! o céu eu trago aqui no coração!” —

O NOME DE MARIA

(De Lorenzo Stecchetti — Nova Polêmica).

Nem a distância nem o tempo (embora

Corra este, e aquele só de ti me aparte)

Jamais conseguirão que eu, como outrora,

Hoje possa do espírito apagar-te.

E quando mesmo se aproxime a hora

Em que de dor o coração se parte,

Direi o nome teu que sempre fora

O lema do meu rútilo estandarte.

E hão de falar de mim: “Na hora do pranto

Converteu-se o rebelde; ei-lo vencido,

Buscando amparo nesse nome santo”.

Mas não. Só do meu lábio moribundo

Tal nome escapará como um gemido

Em memória do bem que amei no mundo.

NO CONFESSIONÁRIO

Yo non puedo absolver-te

De un pecado tan grande, Dios eterno!

(Morales Ferrer).

Joelho em terra, cabisbaixo e atento,

A absolvição ele esperava, quando

O padre — ancião de rosto macilento —

Disse: — “Meu filho, tu pecaste, amando...” —

Ele ergueu-se, de súbito, corando,

Como ferido por um sentimento,

E diante do padre venerando

Proferiu o seguinte juramento:

 — “Padre, se Deus, perdoando os meus pecados,

Me reserva um lugar no paraíso,

Entre os eleitos bem-aventurados,

Eu juro, ó padre, sobre a tua estola,

Que jamais trocarei um seu sorriso

Por essa mísera e divina esmola”. —

O SENHOR MORTO

Entrei no templo quando entraste. Ao fundo

Da nave, sobre o altar iluminado,

Via-se o corpo lívido, chagado,

De Jesus Cristo — o Redentor do mundo.

Depois que, a medo, com fervor profundo,

Beijaste o rosto do Crucificado,

Beijei também... mas o lugar sagrado,

Em que pousou teu lábio sitibundo...

Mas que Deus me perdoe a irreverência:

Naquele rosto inda senti o aroma

De teus lábios repletos de inocência...

E, ai de mim! como um louco, depois disto,

Surdo ciúme o coração me toma

Desses teus lábios e daquele Cristo...

A UM MORTO QUE PASSA

(Verifiquei depois, por acaso, que era o cadáver de um pobre operário que havia sido posto completamente nu dentro do esquife...)

Quem quer que fosses tu, morto que passas,

Eu te saúdo com o meu chapéu...

Foste feliz? ou foste das desgraças

Deste mundo corrido como um réu?

Morreste herege, ou recebeste as graças

De Deus? Foste cristão, ou foste incréu?

Que luz te enleva essas pupilas baças?

Vais para o Inferno ou sobes para o Céu?

Nada sei eu de ti. Morreste: eis tudo.

Somente numa cousa não me iludo:

Não houve alguém tão pobre como tu...

Mas ninguém, como tu, que foste pobre,

Foi mais honesto, consciencioso e nobre:

Pois sais do mundo como vieste: nu!

A MÚMIA DE QUÉOPS

A R. Lagoa.

Quéops, um poderoso e antigo rei do Egito,

Mandou que se elevasse, um dia, uma segura

Pirâmide eternal de rígido granito

Para nela fazer a sua sepultura.

Nesse alto mausoléu, longe da lama escura,

Onde esfervilha o verme em pavoroso atrito,

Julgou o rei que sua múmia, eterna e pura,

Descansaria em paz junto ao céu infinito...

Mas, no curso veloz dos séculos, um dia,

Achou-se o mausoléu do rei e, que ironia!

Só nele se encontrou um punhado de poeira...

Assim, a Glória vã, em vão, persegues, Homem!

Porque tudo na Terra os séculos carcomem

E a Glória Humana é a atroz mentira derradeira...

PLANTA MALDITA

É da noite na escura estufa que, em resguardo,

Cinzela o estranho artista a orquídea do seu estro,

 — Rubra e esquisita flor, misto de eufórbia e cardo,

Que a alma lhe prende e traz num infernal sequestro.

Dentro do coração do feiticeiro bardo,

Que da visão do mal jamais perdeu o sestro,

Ela finca a raiz como bigúmeo dardo

Com que o transfixa a dor num golpe vivo e destro...

Dessa planta letal não sorvam o perfume,

Que faz gozar, bem sei, mas um veneno instila

E acende em cada veia inextinguível lume...

A alma do poeta, assim, é o tormentoso mangue,

Onde essa flor de maldição rutila,

Desabrochada em finas pétalas de sangue...

A MAIOR DOR

Que grande dor é essa que te para-

lisa o espírito e o corpo, deixando este

sem gesto e aquele sem entendimento,

reduzindo-te afinal a uma estátua de

pedra?

(De um poema hindu).

No confuso tropel das ideias a esmo

Que me tomam de assalto o cérebro aturdido,

Donde parece ter minha razão fugido,

Procuro inutilmente encontrar-me a mim mesmo...

E nesse caos mental de tamanho alarido

Em vão eu me concentro, em vão eu me ensimesmo:

Pobre espírito meu! o desespero fez-mo

Cair na prostração como um herói vencido...

Sou qual um desertor da Vida, inda vivendo,

No silêncio estatual do meu tremendo espanto,

Na faquirização do meu pesar tremendo.

Ah! quem dera que dessa esfinge de granito,

Como um sinal de dor, espadanasse o pranto,

Como um libelo contra o Céu, partisse um grito!...

A VOZ DO SILÊNCIO

A Manoel Viotti.

Nem todos ouvem essa voz que eu ouço

Através do silêncio desconforme

Da noite, quando a Natureza dorme

Como no fundo de insondável poço.

É uma voz suplicante, de ânsia enorme,

Como que estrangulada nalgum fosso,

Que sobe ao céu da terra — ermo destroço!

Como a agonia de um titã disforme...

Se elevo ao céu, no entanto, o olhar ardente,

Contemplo esse dossel resplandecente

Na festa das estrelas que ele encerra...

Mas quanta indiferença eu noto, aflito,

Nesse azul constelado, ao grande grito

Deste hospital de pranto e sangue: — a Terra!

O VINHO

A Figueiredo Pimentel.

(Contaste-me tu, velho operário! a história do teu amor e, comovido, fizeste-me escrever estes versos inspirados nas tuas lágrimas...)

— “Dá-me tu que beber, ó taverneiro oleoso,

Do vinho secular da tua garrafeira,

Desse raro licor, estranho e capitoso,

Que me faz afogar no Sonho a vida inteira...

“Bofé! Enche-me a taça! A vida é uma canseira,

E dá-me só prazer teu vinho generoso,

Pois quando o bebo, ri, como histrião de feira,

A cantar, a folgar, meu coração choroso.

“Mas reparo: emborquei hoje mais de uma taça

Do teu vinho, e não posso esquecê-lo, esquecê-lo,

Por mais que eu, ébrio já, e tonto, esforços faça...

Outro vinho, por Baco! outro vinho mais forte,

Que me faça com que jamais eu possa vê-lo,

E descansar em paz na embriaguez da morte.” —

MEU ABSINTO

Tu que, no doudo egoísmo de um momento,

Apunhalaste as minhas alegrias,

Dando-me em troca, blasfemo e violento,

O desespero de cruéis harpias,

Para que, cheia de arrependimento,

Avincas, entre inúteis agonias,

Teu rosto, que consome, lento e lento,

O sal de tantas lágrimas tardias?

Esquece! Para mim já não existe

Esse passado — esse passado triste! —

Que hoje deploras sem nenhum remédio.

Faze como eu que me esqueci de tudo,

E vivo a sós, como um conviva mudo,

Tragando o absinto amargo do meu tédio.

NOVA EUCARISTIA

Feliz no mago exílio do teu sonho,

 — Imaculada anêmona, — ao flagício

Foges do mundo bárbaro, medonho,

Que te alicia como um precipício...

Nada vês, nada escutas do enfadonho,

Humano abismo onde estrondeia o vício,

Que, sob um estendal flóreo e risonho,

Pérfido, oculta os ferros do suplício.

Mas tua carne virgem — branco bestiário

Que ainda incuba o gozo voluptuário,

Sem que ninguém o comungasse, — um dia,

Há de sentir a garra da luxúria,

E dará de beber, ó flor purpúrea,

O vinho de uma nova eucaristia...

HISTÓRIA VULGAR

Os homens mordiam de dor a própria língua. E por causa de suas dores e de suas chagas, eles blasfemaram contra o Deus do céu.

(Apoc., XVI, 10, 11).

Quando, às primeiras luzes da alvorada,

Parti, caminho em fora da existência,

Eu levava em minha alma enamorada,

Um tesouro de amor e de inocência.

Mas logo na primeira encruzilhada

Feriu-me a Dor com bárbara inclemência,

Pois vi cair num féretro, enrolada,

A bandeira de minha adolescência.

Desceu depois a noite como um crepe

Sobre o meu coração — medonho estepe! —

Amortalhado num pesar profundo...

Foi então que, perdendo o meu tesouro,

Clamei em vão, coberto de desdouro,

Contra Deus, contra os Homens, contra o Mundo.

VATICÍNIO

(Da Contessa Lara, poetisa italiana).

Foge — se podes! — ao mortal quebranto

Que nos encarcerou dentro de um sonho,

Durante o tempo em que gozamos tanto

Longe do humano vortilhão medonho.

Desse passado corta o liame santo

Num gesto alegre e fútil; no enfadonho

Prazer da orgia busca novo encanto,

E segue outra mulher, meigo e risonho...

Mas, ai de ti! eu sei que dentro em pouco,

Depois de tu colheres, como um louco,

A flor do Vício que a paixão consome,

Proferirás um dia, — exangue o rosto,

A mão crispada, o gesto descomposto, —

Como um soluço trêmulo, meu nome...

PRIMEIRA COMUNHÃO

Foi na primeira comunhão, quando ela

Tinha doze anos... quando apenas tinha

Na alma — o candor imáculo da estrela,

E no corpo — a leveza da andorinha...

Foi nessa idade rutilante e bela,

Quando da igreja mal saindo vinha

Sob o véu branco e a virginal capela,

 — Que ela jurou... que ela jurou ser minha.

Nas minhas mãos as suas mãos tomando,

Beijei-a então, e ela, a tremer, corando,

Na sua boca virgem de desejo

Deu-me, — como lhe deu o celebrante,

Junto do altar, a hóstia alva e brilhante,

A comunhão do seu primeiro beijo...

VIRGEM SANTÍSSIMA

Quando ela à igreja vai, e na discreta

Prece deixa voar a alma piedosa,

No seu livro de missa uma violeta

É que lhe marca as folhas cor de rosa.

Talvez se oculte nessa flor mimosa,

 — Prenda amada e gentil de algum poeta, —

O fio de uma história dolorosa,

O doce fel de uma paixão secreta.

Contam que a viram, quando orava um dia,

Beijar essa relíquia sacrossanta,

Que no seu livro d’orações jazia;

E então, vencida de uma funda mágoa

Tinha nas faces um palor de santa,

E os negros olhos arrasados d’água.

NA QUARTA-FEIRA DE CINZAS

Pulvis es...

Que tu és pó — disse-te o padre, Elvira,

Fazendo-te uma cruz de cinza escura

Na testa branca, virginal e pura...

“Pulvis es!” — Que impostor e que mentira!

E mente! Juro pela minha lira!

Ele não viu que luz do céu fulgura

No teu olhar! Nem viu quanta candura

Tua boca de púrpura transpira!

Como podes ser pó, tu, que na terra

Trazes no peito um coração que encerra

Amor tão santo que me salvaguarda!

Não! esse padre nunca amou! Portanto

Não pode ver em ti sem grande espanto

As asas do meu bom anjo da guarda...

IMPOSSÍVEL

Quem me diz que entre nós, como um coveiro,

O tédio sepultar não venha, um dia,

A paixão que nos traz o corpo inteiro

Num sonho de volúpia fugidia...

Pois que nos gele a boca, traiçoeiro,

O beijo! Que da nossa fantasia

Parta a ilusão num voo derradeiro!

Que nos fuja dos olhos a alegria!

Venha o tédio! Num réquiem doloroso

Morra em mim, morra em ti, chorando, o gozo

Solte a carne sua última canção!

Que todo o mal nos faça o escuro verme!

Porém, fazer que deste amor inerme

Nos esqueçamos para sempre... não!

TEDIUM VITÆ

(Sobre a morte de Júlio Riedel).

Soavam inda as lúcidas fanfarras

De teus sonhos, na pompa irial da aurora,

E ias da vida pelo mar em fora,

Cheia de rosas e virentes parras,

Quando do teu batel, musa canora,

Despedaçadas todas as amarras,

Ah! naufragaste, do suicídio às garras,

Em plena vida, na manhã sonora...

Descansa em paz... Da terra na retorta

Tornar-se-á em alcaloides logo

Teu arcabouço de matéria morta,

Enquanto, como dromedário tardo,

Cada um de nós, neste areal de fogo,

Espera o dia de alijar seu fardo...

A MINHA SOMBRA

(Soneto póstumo de um fantasista).

Quer a Dor eu sentisse, quer o Gozo,

Da minha vida na mundana farsa,

Num discreto silêncio misterioso

Seguiu-me como um cão esta comparsa...

E eu via nela essa tristeza esparsa

De alguém que segue um féretro, choroso,

Mas que no rosto as lágrimas disfarça

Para conter o coração ansioso...

E ela só me deixou quando, na terra,

Se fez a cova que meu corpo encerra

Sob a camada de uma verde alfombra...

Agora, livre de cruel fadiga,

Sei que não tive então melhor amiga

E amante mais leal que a minha sombra.

NÃO!

A filhinha morria-lhe nos braços

Dolentemente como um passarinho,

Que as asas colhe de cruéis cangaços

E expira, triste, à beira do seu ninho...

E ela disse: — “Deus meu! sustai os passos

Da morte que a arrebata ao meu carinho...” —

Mas o alento final — os membros lassos

Sacudiu do seu mísero corpinho...

Aproximei-me. Ela embalava ainda

A filha morta — anémona tão linda! —

Que lhe crescia sobre o coração...

Nisto eu lhe disse: — “Deus roubou-te a filha...

E nesse Deus que assim te prostra e humilha

Inda acreditas?” — Respondeu-me: — “Não!”

NO ENTERRO DE UMA CRIANÇA

Encarcerada nesse esquife leve,

Pálido anjinho, que aí vais tão triste,

Em demanda do céu, que nunca viste,

 — Onde deixaste as asas cor de neve?

Pois tua pobre mãe, quando partiste,

Disse: “Foi para o céu! Que Deus o leve!”

 — Crédula mãe! Nesta existência breve,

Que céu melhor que o céu, donde saíste!

Se Deus, portanto, te não deu as asas,

Com que possas voar, pálido anjinho,

Do vasto azul entre as nitentes gazas,

Espera! a Natureza, — mãe dileta, —

Cedo transformará o teu corpinho

Nas asas leves de uma borboleta...

POVERA MADRE!

I

Quando o Senhor lhe deu uma filhinha,

 — Risonho prêmio do seu puro amor, —

Ela disse: “Ah! que linda a filha minha!

Obrigada, Senhor!

Cabelos de oiro... olhos de azul celeste...

Corpinho de ave em cálice de flor...

Nos seus olhos azuis dois céus me deste!

Obrigada, Senhor!

II

Expirou-lhe nos braços a filhinha,

 — Último sonho do seu puro amor, —

E ela disse: “Ah! que linda a filha minha

Triste de mim, Senhor!

Cabelos de oiro... olhos de azul celeste...

Tudo se abisma nesta minha dor!

Restituo-te os céus que tu me deste...

Triste de mim, Senhor!

DEPOIS DE MORTO

Depois de morto, depois de morto,

Quando sem pompas for enterrado,

Larvas da terra! dizei-me: — “Quem

Irá levar-me, como um conforto,

Ao duro leito, no chão cavado,

Uma só prece de amor?” — “Ninguém!” —

Depois de morto, depois de morto,

Quando meu corpo tiver despido

A carne alegre, desfeita em pó,

Na minha cova, como num Horto,

Somente o cardo terá crescido

Sobre a carcaça tábida e só...

Depois de morto, depois de morto,

Uma cruz pobre dirá somente

Onde repouso como um cristão,

 — Farol de angústias, que indica o porto

Aos que, em procura do céu clemente,

Choram, perdidos, na escuridão...

Depois de morto, depois de morto,

Se a Dor, no entanto, se transformasse

Em mármore negro, meu mausoléu

Seria (É grande meu desconforto!)

Tão elevado que, face a face,

Minhas tristezas diria ao céu...

Depois de morto, depois de morto,

Quando sem pompas for enterrado,

Larvas da terra! dizei-me: — “Quem

Irá levar-me, como um conforto,

Ao duro leito, no chão cavado,

Uma só prece de amor?” — “Ninguém!” —

SOLILÓQUIO DO TÉDIO

Cupio dissolvi.

(S. Paulo).

Entre o Pavor e o Tédio oscilas tristemente,

Meu coração! meu coração doente!

Faz frio! Ouço uma longa e fúnebre canção

De alguém talvez que prega o meu caixão...

Por que tirito, a medo e a sós, como um demente,

Da nortada a escutar a voz dolente?

É que me apalpa alguém, no horror da escuridão,

Com uma branca, uma gelada mão...

Homem! que és tu senão um verme que afuroas,

Famélico, tenaz, o cadáver da Terra,

Gérmen do mal que te envenena o ser?

Fazes rir, torvo anão! que, em busca de coroas

E de palmas, só tens, fazendo à Morte guerra,

Esta ambição: Viver! Viver! Viver!

SUPREMO RESGATE

Receio a Morte, sim, se o Pensamento

Deve sobreviver à carne triste,

E se atrás desse Azul, no firmamento,

Alguma cousa... alguma cousa existe...

Maldição! Maldição! se no momento

Em que me fira a tua foice em riste,

Ó Morte, não findar o meu Tormento,

E persistir a Dor que em mim persiste!

Ah! mas se colhes minha vida inteira,

O meu ser: — alma e corpo, — de maneira

Que tudo acabe... tudo morra, então

Benditas sejas, Morte cobiçada,

Porque sem ódio, sem amor, sem nada,

Nunca mais pulsará meu coração.

O ENTERRO

(PARÁFRASE)

A Luiz Carneiro.

L’homme n’est rien qu’un mort qui traîne sa carcasse.

Du May.

Desfila o enterro. Para o cemitério

Vai, entre pompas lúgubres, o morto.

É longo, é extenso o préstito funéreo,

E ouvem-se nele vozes sem conforto...

Mas quem é esse que o sinistro porto

Busca, deixando-nos pesar tão sério?

 — Pois teve acaso, como Cristo, um Horto?

 — Pois lhe não foi a vida um sonho etéreo?

Ricos brocados entre sedas luzem...

A contemplar, porém, já não me atrevo

Pompas tão vãs que a multidão seduzem.

Quanta dor! Por um morto — quanto enlevo!

Vede: um cadáver mais de mil conduzem:

Sozinho, entanto, o meu cadáver levo...



[1] Provavelmente, para manter a isometria, esse verso deveria ser:

Pensa na morte... Sonda o horror profundo...