LITERATURA BRASILEIRA
Obras literários em meio eletrônico
Paros, de Plínio Mota
Edição de Referência:
MOTA, Plínio. Paros. Rio de Janeiro: Garnier, 1909.
PLÍNIO MOTA
_____________
PAROS
_________e{g_________
(1905-1908)
PAROS, CARIÁTIDES
EMENTÁRIO
H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
109, RUA DO OUVIDOR, 109 6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6
RIO DE JÁ-NEIRO PARIS
1909
ÍNDICE
Trovas de uma sertaneja que passa ao longe
PAROS
AO Cel FRANCISCO R. JUNQUEIRA
Toma do bloco e talha-o. E, então, daquela
Informe pedra rofa é exsurgida
A amada Galateia, a estátua bela,
Plena de perfeição, plena de vida.
E ele, admirado, cai nos braços dela,
Beijando-a toda. A estátua, agradecida,
De gloriosa, de imortal capela,
Engrinalda-lhe a fronte encandecida.
Também, qual Pigmaleão, a Poesia
Amo-a, com amor ardente e verdadeiro:
A vida eu dou a ela, a ela, dia a dia,
De coração consagro-me: esposei-a,
Como à formosa estátua aquele obreiro
— Minha ideal e divina Galateia.
I
É no recôndito da mata enorme
Que ele, asqueroso, eternamente dorme.
A cúpula que o cobre, é densa e tetra:
Nem um raio de luz ali penetra.
Só estremece ao revoar trissante
Dos morcegos que o tocam, semelhante
De um grande sapo à negra e feia pele.
Há ruídos soturnos dentro dele,
Coro de vozes cavas, coro horrendo!
Há-os que lembram crótalos batendo;
Há-os que lembram rijas marteladas,
Escalas de flautins desafinadas;
Pios, trilos estrídulos de apitos,
Sons cavernosos, ruídos esquisitos,
E baixos a soprar; e, a quando em quando,
Tinidos de metal, serra serrando.
Há-os que lembram rufos de tambores,
Orquestração de todos os horrores!
Cospe, em torno de si, pútrido lodo,
Que o verde dos juncais enlama todo.
A podridão do ventre seu nojoso
Conturba-o às vezes, tira-o do repouso:
Borborigmos rouquejam-lhe no bojo,
Os miasmas letais, que fazem nojo;
Vêm-lhe do fundo esquálido e sombrio,
Fortes arrotos, fétido bafio,
À feição de uma bolha, que, tão lenta,
À tona d’água sobe, e se arrebenta.
Borbulha, às vezes, num vaivém que o agita,
A multidão dos vermes infinita:
Aqui, das sanguessugas ferve o bando,
Mais o negror das águas aumentando;
Ali, cabeça fora, estúpida, olha
À folha a rã, como atrair a folha;
E, mais e mais, o deixa envenenado
Da baba de que o corpo é saturado.
No seu espelho negro, sob a mata,
Nem sequer uma planta se retrata.
A libélula foge-o: tem receio
Da aza manchar ao repelente seio
Do profundo atascal; em suma, esse odre,
De cousas mortas, cousas de alma podre,
De água que anoja, túrbida, estagnada,
Ninguém o entende e nem entende nada.
II
Chega a invernia às árvores funesta,
E rasga o manto verde da floresta.
Um chuveiro de luz entra aramada,
Como uma poeira de Cristal coada.
Entra. E sobre ele cai; e, docemente,
Quebra-se em prismas, torna-o transparente.
Aclara-o. E gota a gota, onde pulula
Uma porção de vermes, ela oscula.
Ilumina o mais íntimo escaninho;
Aqui dispensa amor; ali, carinho.
Aquece-o. Mas, o pântano é impassível,
O pântano é boçal, nojento, horrível!
As rãs fecham os olhos, que os ofusca
Essa invasão de luz, quase que brusca.
Cessa a algazarra tétrica e soturna.
A serpe, guizalhando, entra na furna.
Como um beijo do céu, a luz divina,
Em doce irradiação, tudo ilumina.
Para sorvê-la, em frêmitos, contente,
Cada ramo se estende molemente...
E sorve-a, e beija-a... E a luz, agradecida,
Revigora-lhe a seiva, dá-lhe vida.
O inseto em que ela fulge, é deslumbrante
Parece ter as azas de brilhante.
Tomam, às vezes, refulgências de ouro
Os élitros retintos do besouro.
F zumbidos, cicios, cantos de aves,
Ondas de aromas tépidos, suaves,
Por toda parte o poema da alegria!...
Clara agora, radiante agora, envia
A mata ao céu uma fervente prece.
E nem sequer o pântano estremece.
Selvagem, amazônico, bravio,
Com umas cintilações de bronze ou prata,
Serpeia, em gorgolões, o grande rio,
Por entre o umbroso coração da mata.
Aqui se estreita; além já se dilata,
Torcicolando, múrmuro e sombrio...
Ora ele tem bramidos de cascata,
Ora do arroio imita o murmúrio.
Em uma curva aponta uma piroga,
Que, levemente, em bamboleios, voga,
Níveo rastro deixando na água turva...
É um índio: canta uma canção guerreira,
Que repercute pela selva inteira,
— E some-se, cantando, noutra curva...
A
EUGÊNIO RUBIÃO
O RANCHO
I
Em torno cai a treva. E do escampado
Vozes estranhas vêm, vago arruído...
Junto ao fogo, um tropeiro, acocorado,
Faz o cigarro e canta comovido.
O rosto, fortemente morenado,
Pelo clarão das chamas esbatido,
Torna-se, à meia sombra, avermelhado,
Tem reflexos de bronze repolido.
Outros berram, no truque, mil horrores!
E, popocando, a desprender vapores,
Presa de um gancho, ferve uma chaleira.
Tira outro da viola uns zangarreios,
Tão chorosos, tão lânguidos, tão cheios
De uma agreste doçura brasileira.
II
Mal no levante desabrocha o dia,
Doirando o cimo verde dos outeiros,
Que, através da manhã brumosa e fria,
Partem, cantando, os rústicos tropeiros.
Com a matinal canção desses troveiros,
Ressoa em tudo a guzla da alegria:
Cantam, com eles, os múrmuros ribeiros,
E as aves através da ramaria
Cantam; e o inseto; e a mata que farfalha,
Soberba de frescura e majestade;
E o moinho das fazendas, que trabalha...
E eles se vão, sobre a manhã radiante,
Cantando copias, cheios de saudade
Da sertaneja que ficou distante...
A
ARTHUR LOBO
I
Desvaira o velho boi. A companheira
A longínquo país foi arrastada...
Que dolente mugir na retirada!...
Que triste olhar nessa hora derradeira!
Que solidão pela campina inteira...
Como a alma se lhe punge agoniada,
Quando ele, além, as voltas vê da estrada,
Que a extensos campos e a espigões se abeira.
E quando a tarde cai, que dor tamanha
Pesa-lhe dentro, o coração lhe entranha,
Maior que a dos cruéis chuços de ferro!
E ele a procura em vão. Percorre toda
A várzea; galga um monte; olha de em roda,
E solta um longo e doloroso berro.
II
E os anos o prostraram, ou a lida
Trabalhosa, aos agrores da aguilhada.
Ei-lo agora no meio da explanada,
No dia extremo da pesada vida.
Já sussurrantes moscas a investida,
A horrível destruição, fazem a cada
Membro; e mostram-se os ângulos da ossada,
Por sob a dura pele envelhecida.
Quer se erguer, mas a força já lhe míngua;
Solta mugido rouco; a áspera língua
Pende da boca; o dorso se lhe inclina...
E nas suas pupilas, vagamente,
Aos últimos lampejos do poente,
Se reflete a paisagem da campina.
Até que enfim lá vejo o povoado,
Minha terra natal, meu doce abrigo.
Já avisto o morro do cruzeiro antigo,
E a capelinha branca doutro lado.
E a praça da matriz; e o descampado
Aquém; e o rio, aonde ia comigo
A pequenada ao banho costumado...
Minha terra natal, eu te bendigo!
A estrada deixo atrás, muito vermelha.
Já distingo a porteira, a ponte velha,
A ladeira da entrada, íngreme e estreita,
E a casa de meus pais, minha querida
Casa!... A saudade, até então sustida,
Explode, enfim, em lágrimas desfeita.
AO
DR. JOSÉ NOGUEIRA
Fulvas celagens, nimbos dispersados,
Fundos violáceos tendo de permeio;
Amplo céu do Oriente, todo cheio
De templos bizantinos, rendilhados;
Mesquitas; minaretes aguçados,
Apunhalando o azul, num grande anseio
De atravessar, de lado a lado, o seio
Vasto do céu; e cirros esgarçados,
Quais vestes de odaliscas; e turbantes,
Aqui e ali, formando-se, esmaecendo,
Em leves tons, em bruscas variantes...
E o colar das estrelas se desata...
E vê-se a lua nova, num crescendo,
Como um alfanje rútilo, de prata...
Suspira a mata. A brisa da saudade
Afla por sob a densa ramaria.
Que imensa mágoa que a floresta invade
E a torna, mais e mais, triste e sombria!
Onde os borés? a inúbia? que estrugia,
Enchendo as selvas de uma tempestade
De sons! e o maracá? que reacendia
Os ânimos, em meio à mortandade!
Oh! tudo emudeceu... Nem um gorjeio
De ave, no umbroso e viridente seio,
No seio hospitaleiro da ramagem...
Nem um canto sequer! Que dor suprema!...
Porque o poema da mata, o grande poema,
Ele não canta mais na harpa selvagem!
Balordo aspecto, em que a estultícia chata
Se mostra a pleno: crânio de gorila,
Dolicocéfalo, boçal; prognata,
A dentuça feroz; turva pupila,
Sem vida; torpe e alvar, esgaravata
O nariz achatado, que destila;
Asqueroso bodum, catinga, nata
Do corpo, expele, e anoja que horripila.
Ronca a babar; coça a cabeça, cuja
Carapinha é intonsa, oleosa, suja.
Move-se, cambeteante, aquela massa
Negra, soltando estúpidos grunhidos...
E às vezes para, olhos no chão prendidos,
No supremo êxtase imbecil da raça.
Cabeça de arlequim, de instante a instante,
Muda de cor. Altivo o todo, e os passos.
O seu feio glu-glu é semelhante
À gargalhada aguda dos palhaços,
Quando, a mostrar boçais desembaraços,
Entram em cena. Em ostensão constante,
Tem a soez empáfia dos ricaços,
O mesmo garbo estólido, arrogante.
Vaidoso e bobo, arrasta as azas, anda
Reteso para trás, meio debanda,
E, ancho e rotundo, ainda mais se tufa.
Volteia sobre si, recua, avança,
Como a ensaiar alguns passos de dança,
De carnaval, funambulesca, bufa.
As taças emborcai. A tilintante
Música dos cristais que vos seduza.
Enastrai-vos de pâmpanos, e cante
A ambrosia de Baco a vossa musa.
Que se vos torne túrbida e confusa,
De beberdes, a vista: à bela amante
Que vos pareça a esposa: e, à mente ilusa,
Friné tomeis por virgem, e a bacante.
Vossas rubras paixões, vossos amores
Pérfidos, orvalhai de évios licores;
Cobri de escárnio o preconceito e a lei,
De viridentes pâmpanos cobri-os.
E bebei, a fartar, rios e rios,
Como um tonel danáidico, bebei.
Jesus expira. Carpe a natureza.
Entoam, a chorar, os elementos
Um canto repassado de tristeza...
Os próprios furacões soltam lamentos...
A tragédia das dores, da crueza
Das lagrimas, de todos os tormentos
E consomada... O Deus de mil portentos
Morre entre os seus, sem a menor defesa.
Essa tragédia horrível e infamante
Em nossa alma, hora a hora, instante a instante,
Tristemente, também, se reproduz
O cortejo das nossas alegrias
Crucifica-se em nós todos os dias,
Como o bondoso e pálido Jesus.
Da jaula os tigres os varões de ferro
Rompem, a uivar, e atiram-se aos beluários.
Qual, talvez por vingar o que no encerro
Sofreu, de várias vítimas, de vários
Homens faz um montão de carne; e, em berro,
Qual se arremessa contra uns dromedários;
Qual estrangula, num voraz aferro,
Cervos da Ural, dos montes solitários.
Qual os gradis ataca de uma hiena;
Qual um cisne entre as garras já depena;
Qual persegue um bisão que lhe resiste...
E, no entanto, uma lesma numa folha
De rosa, muito calma as feras olha,
Som o menor temor a tudo assiste.
Disforme tem o corpo: baixo e grosso.
É pachorrentamente, passo a passo,
Bamboleante, em gingos o pescoço,
Que ele se vai banhar. Espaço a espaço,
Grasna ao faiscante sol. Tédio e mormaço.
O barro preto que margeia o poço,
Peganhento reluz, tem brilhos de aço.
E moscas lá se cruzam com alvoroço.
Grita e bate azas, a água vendo e o bando
Dos companheiros. Segue espicaçando
Tudo o que acaso encontra: o verme, o lodo,
Os brotos do capim. Rasteiro e chato,
Quase tocando o chão, caminha o pato,
E a água singra afinal, banha-se todo.
A
GODOFREDO RANGEL
Na frincha enviesada de um fraguedo,
De saxatéis bromélias recoberto,
Fincado à escarpa de estradão deserto,
É que ele vive. E vive ali sem medo,
Tranquilo em seu coaxar, feliz e quedo.
Quando se sente de calor referto,
Vai à palude que se espraia perto,
Numa grande extensão pelo vargedo,
E horas sem conto dorme à soalheira.
Se algum fero animal daí se abeira,
Calmo olha-o; nem se move do logar.
Mas, se, acaso, percebe, de repente,
Que pela estrada vem passando gente,
Foge, assustado, aos pinchos, a saltar.
« Cette chatte m’accompagne depuis longtemps et philosophe la vie come moi. »
Ela entrou do pomar, onde sadia
Carne fresca de caça devorara.
E ronronou uma ária de alegria,
Talvez de bem-estar. À prole cara
O pelo roça; aleita-a, acaricia-a.
Depois, sobe a cadeira; e se prepara
À costumada sesta ao fim do dia:
Lambe-se toda, e arqueia-se, e escancara,
Em um longo bocejo de preguiça,
As pequenas mandíbulas; e eriça
Nédia pelugem mosqueada e fina.
Enfim, tranquila, vagarosamente,
Sobre a cadeira estira-se indolente,
Como se fosse uma onça pequenina.
A
JERÔNIMO G. FERNANDES
Quem sofre, vive: a Dor é pois a vida,
A vida, ou transbordada ou exaurida
Da ânfora azul do Amor, ou esgotada
Nos prélios de uma ideia não vingada.
A Dor é pois a vida e não a morte.
Cinge-me, pois, ó Dor, que serei forte
A resistir-te, a ti, que me garantes
Minha vitalidade. Adoro-te. Antes
A ti prefiro, a retornar-me ao Nada.
Tu és a vida, e a vida é adorada.
Ai! do momento em que de mim te fores!
A podridão virá, e os seus horrores:
O asco, o verme, a hediondez, o esquecimento.
Ai! desse horrível fim, desse momento.
Hão de fugir-me, o tumulo somente
Me envolverá, me abraçará contente!
Raivece dentro em mim, ó Dor querida,
Tu és um grande bem, porque és a vida.
Eu obedeço-te impassível, mudo:
Tu é que deves compreender-me em tudo.
Todos os grandes ideais do mundo
São filhos do teu seio almo e profundo!
O Ai! é uma canção sempre sublime,
Canção da Dor, da Dor que a vida exprime!
Eu amo ver Laocoonte, o monumento
Eterno, o eterno, o grande sofrimento,
O símbolo da Dor; minha alma sente
Vago prazer nas voltas da serpente
Que, imóvel e cruel, se lhe enovela;
Sempre é de vê-lo em posição tão bela!
Nada sem ti jamais se imortaliza!
Toda lagrima é rocio que suaviza,
É transparente perola colhida
No pégão tumultuoso desta vida...
Em sua grande Dor, Dor infinita,
Jesus também chorou, fê-la bendita.
E, como a linfa que brotou do Horebe,
A lagrima que cai, e que se embebe
No solo, é pura, é um escrínio santo,
E quase sempre um poema esfeito em pranto.
As azas de morcego, o olhar em fogo,
Satanás, que o sabia agonizante, '
O trono desce, e, em berros, parte logo
Para o cimo do Gólgota. E, diante
Do Cristo, por escárnio ou desafogo,
A falange dos vícios triunfante;
A Gula, a Intriga, a Hipocrisia, o Jogo...
Faz desfilar o espirito arrogante.
E a Terra treme toda, e o céu de luto
Se cobre, e os montes, e o rochedo abrupto
Fendem-se, e o mar transborda, em cataclismo...
Satanás, gargalhando, o olhar profundo
Lança em torno de si, medindo o mundo,
E, vitorioso, vai, de abismo a abismo.
Relógio de minha vida,
Vida tão cheia de afã,
Que pancada aborrecida:
Amanhã... mais amanhã.
Trabalhas, sinistramente,
Sinistro como Satã,
A dizer sempre inclemente:
Amanhã... mais amanhã.
E desse amanhã a vinda
É uma promessa vã.
Cada dia que se finda:
Amanhã... mais amanhã.
Esperar! que de amarguras
Não vêm com as primeiras cãs
E tu sempre me torturas
Com esses teus amanhas!
Relógio de minha vida,
Vida tão cheia de afã,
Que pancada aborrecida:
Amanhã... mais amanhã.
Tempo abaixo, tempo abaixo,
A minha existência passa,
Como um sombrio penacho
De fumaça.
Ontem, o efêmero bando
Das ilusões, tão serenas,
Passava, por mim, cantando
Cantilenas...
Hoje, minh’alma fenece,
Lentamente... lentamente,
Como o cicio da prece
De um doente...
Tempo abaixo, tempo abaixo,
A minha existência passa,
Como um sombrio penacho
De fumaça...
Aspérrima invernia. E eles coitados!
Além se aprumam, margeando o rio,
Em completa nudez de condenados,
Taciturnos e rígidos de frio.
Tudo é desolação. Não há balados
Pela campina, e nem ligeiro pio...
E é de vê-los, então, enfileirados,
De um aspecto minaz, grave e sombrio.
Embora imóveis, lê-se-lhes em cada
Aresta a funda raiva concentrada.
Os austeros, hostis mandacarus
Voltam-se contra Deus, numa postura
De maldição, erguendo-se na altura,
Ameaçando os céus com os braços nus.
Lede o livro todo dia.
Ele é outro Criador:
Cria, cinzela, irradia,
É — como Deus — escultor.
Um livro é sempre atraente,
Tem seu valor e seduz;
O nosso espirito sente
Necessidade de luz.
Há livros com peso de ouro,
E refulgências de sóis;
Que cantam tal qual um coro,
Um coro de rouxinóis.
Muita vez, quanta harmonia,
Da lira de ouro de Orfeu,
No ritmo da poesia
Que algum poeta escreveu.
Da estrofe parnasiana,
A forma nos faz lembrar
— Riquíssima filigrana,
Arabescos de luar.
Muita vez um livro encerra,
Nas páginas imortais,
Mais encantos do que a terra,
Mais riquezas, muito mais.
Taumaturgo: vista ao cego
Dá, como dava Jesus;
Por isso, com amor lhe pego,
Quando eu lhe recebo a luz.
Infância:
Rosa branca da existência,
Que pende e fenece breve,
E onde zumbem — cor de neve
As abelhas da inocência.
Mocidade:
Rosa de rúbidas cores,
Que pende e fenece logo,
E onde zumbem — cor de fogo —
As abelhas dos amores.
Velhice:
Rosa há muito desfolhada
Dos prantos e dos martírios;
E onde pastam — cor dos círios
As larvas que vão ao Nada.
A
JOSÉ GORGULHO NOGUEIRA
Foi na Tessália, terra dos pastores,
Ou melhor, dos idílios, dos amores.
Os dois, Delvo e Zalé, colina acima.
Ela, ao invés dele, a subir o anima.
Vão, cuidadosos, recolher o armento:
Já tinge o poente o sol de um tom sangrento.
Ele é rude: dos montes a rudeza
Tem, e a do cedro antigo da devesa;
E, à vez, no olhar, coléricos arroubos,
Com o habito de enfrentar famintos lobos;
E ela, no todo, a mansidão da ovelha,
E na boca polpuda a cor vermelha
Das flores do caminho. O azul setíneo
Do seu olhar traduz-lhe o amor, define-o:
É vago e meigo como um sonho vago...
Delicioso como um doce afago...
Ele, por distraí-la, assopra a avena;
Ela, por distraí-lo, a voz amena
Solta, e do manso gado tange o bando;
E ele, em vez delia, atrás se vai ficando.
Vai-se ficando atrás, não de cansaço;
Porque anseia o frescor de seu regaço.
E a trechos, monte acima, se demora,
Pousa o pastor no seio da pastora.
Do céu da Grécia a límpida safira
Ele admira; porém mais ele admira
A dos seus grandes olhos. Dos desejos
Abre a punícea rosa... e cantam beijos,
Beijos lascivos, fortemente dados...
O beijo é a canção dos namorados.
E capros, retouçando pelos valos,
Começam de balar, como a saudá-los.
E ele, por distraí-la, assopra a avena;
E ela, por distraí-lo, a voz amena
Solta. Torneiam, sobem a colina,
Enquanto, além, o rubro sol declina...
E a trechos, monte acima, se demora,
Pousa o pastor no seio da pastora.
E, senão quando, touro bravo berra,
Investe com eles, escarvando a terra.
Foge o pastor ao animal irado.
Ele, pelo caminho, tão cansado,
Todo indolência há pouco, num assombro,
Salta uma sebe com a pastora ao ombro.
Certa rosa, desejando
Ocultar-se de uma abelha,
Que vinha, de quando em quando,
Beijar-lhe a boca vermelha,
Pediu emprestada a veste
De uma flor azul-celeste.
Enfiada em nova roupagem,
Estava a rosa contente;
E, ao leve sopro da aragem,
Vergava-se brandamente...
E, nisto, zumbindo, veio
A abelhazinha. E, zumbindo,
Tirou-lhe o pólen do seio,
Do seio rórido e lindo.
E, depois de satisfeita,
Disse à rosa contrafeita:
Foi embalde, minha esperta,
O teu disfarce. Formosa,
Saibas que, embora encoberta,
Será a rosa sempre rosa.
A
JOAQUIM S. DE PAIVA AZEVEDO
Velando à dor, ao crebro sofrimento,
Erra através da vasta enfermaria.
Aqui um ai, além uma agonia,
Desolamento e mais desolamento
Fervorosa, as camândulas desfia,
Sobe perante Deus, em pensamento.
Na alvorada da vida, um só momento,
Não mais o rosicler de uma alegria.
Foram-se as ilusões e os seus amores.
Geme-lhe perto o cantochão das dores,
Como um longo gemer dos sonhos idos...
Sob o palio da Fé, bondosa e pura,
Já se afizera aos prantos, à tortura,
Àquela triste orquestra de gemidos.
É a Suprema Potência incompreendida,
Que mais me assombra quanto mais a estudo.
O Nada não existe, pois que a Vida
Está em tudo, procriando tudo.
Na vibração da luz, no doce aroma,
Na brisa, na úsnea, na cerúlea esfera,
No lapedo, nas células, na estoma,
No mar, na microscópica monera.
Existe Deus — a Criação secreta,
A que tudo obedece, e a tudo assiste.
O Onipotente é como a linha reta,
Que, imutável e eterna, em tudo existe.
A MURILO DE CAMPOS
Sente que vai morrer. Então, sustido
Aos braços dos discípulos, é guiado
Para o seu tabernáculo sagrado,
Onde as horas passava-as embebido.
Aqui é “Roma a arder”; ali é “Dido”,
Suspensos da parede; e, doutro lado,
Gomo um enorme coração magoado,
Vê por terra a paleta. E, comovido,
Firma-se então. Empunha-a, o grande artista.
Já trêmulas as mãos, turbada a vista,
Em um febril anseamento louco,
A obra trabalha, há tempos esquecida...
E, enquanto ele na tela insufla a vida,
A vida se lhe evola a pouco e pouco.
A alvura açucenal, a alvura casta,
De suas formas freme, a quando em quando.
Sua undiflava cabeleira basta
Cai-lhe por sobre o corpo, cintilando.
Cai-lhe beijando tudo: aqui se engasta,
Nos lácteos seios túmidos arfando;
Aqui lhe envolve o braço, aqui se afasta,
Lascivamente o tronco lhe enroscando.
O mármore ideal do esculturado
Busto, de um vago tom nevi-rosado,
Remira, ufana, ao luxuoso espelho.
E a luz do sol que tomba no ocidente,
O corpo lhe incendeia inteiramente,
Cobre-o de beijos, tinge-o de vermelho.
A
PEDRO B. GUIMARÃES
Ei-lo, o sagrado, o grande rio eterno
Na sua mansidão, na sua nobre
Jornada imensa, a socorrer o pobre,
Fecundando-lhe as terras, sempre terno.
Sicômoros, ao longe, a quando e quando,
Parecem o chamar, em leve aceno;
Pedir-lhe d’água o beijo fresco e ameno:
Files se curvam todos, ramalhando.
O lótus, a flor santa, santa e rara,
Berço outrora de um deus recém-nascido,
Muito azul paira à tona d’água clara,
Como um floco de céu ali caído.
Pesados hipopótamos boiando,
Boiando, rio abaixo, como troncos
De cedros a rodarem, toros broncos
Passam, em fila, muita vez, nadando.
E cisma junto à margem escarpada,
Sobre as lajes lodosas da barranca,
A íbis esguia, muito esguia e branca,
Como a alma de algum deus ali pousada.
Desliza aqui mais manso e reverente,
Mais manso e reverente irriga as glebas
Que o circundam aqui: pois, passa em frente
As ruínas velhíssimas de Tebas.
E mais além se alteia rebramando,
Em ânsias de galgar a imensidade
— No vale de Gize, onde, passando,
Das Pirâmides canta a eternidade.
Escalando as seteiras do Infinito,
Atravessa cada uma os evos, calma,
Bruta, descomunal, bruto granito,
Simbolizando a eternidade d’alma.
De trecho a trecho, eleva-se, isolada,
Uma palmeira rumorosa e esbelta.
Cansado, ele entra, enfim, terras do Delta,
Depois de muitas léguas de jornada.
Sob um céu rubro e azul, pesado e lindo,
Cairo agora se estende solitário,
Como um pedaço enorme de sudário,
O cadáver dos séculos cobrindo.
A Esfinge. Pobre Esfinge! fria e nua,
Exposta ao furacão, sempre inclemente!
Seu mutismo é, talvez, a prece ardente
Alevantada a Deus, porque a destrua.
O zimbório do céu, amplo, se arqueia,
Ansioso de cobri-lo, protegê-lo;
E areia... areia mais... e mais areia...
O deserto o defende com desvelo.
E, como em oração, todo contrito,
Olhos no céu, flutua um crocodilo,
De vez em vez...
E rola sempre o Nilo,
Placidamente fecundando o Egypto.
Indexo, como a ouvir-te o murmúrio
Que do fundo te vem tão contristado,
Soturno salgueiral anoso e esguio
Ensombra as tuas margens, lado a lado.
Regues embora o Tártaro sombrio,
Onde, de dor, se torce o condenado,
Rio benquisto, benfazejo rio,
Eternamente sê abençoado.
Tu que esquecer as lágrimas fazias,
Todo o tormento dos passados dias,
No sorvedouro intérmino das mágoas...
Ah! Letes imortal, pudera eu hoje,
Que a instante a instante uma ilusão me foge,
Dessedentar-me em tuas santas águas.
Palmas verdes, e grácil, e delgada,
Sempre é de vê-la, a altíssima palmeira;
Cada palma lembrando uma bandeira,
E o estípite, coluna alevantada.
Ela nasceu, cresceu, desamparada,
Sem as carícias de uma companheira.
Sozinha, nunca amou, nem foi amada,
Tristemente ramalha a vida inteira.
O amor só vê de longe, qual miragem...
Muita vez, que irrisão! aves errantes
Fazem ninho de sob sua ramagem.
Volteiam-lhe em redor, zumbem-lhe perto,
Cantando amor, insetos revoantes...
Eu sou como a palmeira do deserto.
AO
DR. JOSÉ PAULINO RIBEIRO GORGULHO
Alto da Mantiqueira. Espraio avista e cismo.
Abre, lá-baixo, o imenso, o insondável abismo,
A fauce verde-negra, escanceladamente.
A alma se me dilata, agita-se fremente:
O abismo atrai o abismo e o abismo tenho-o n’alma.
Que grande paz aqui, que doce e eterna calma!
Vaga sussurração, um místico vozeio,
Paira em tudo o que vejo: é a voz de abismo, creio.
Solta, flexando o espaço, um gavião bravio
Um pio à Liberdade, um estridente pio.
E, asas expansas vai, num voo altivo e brando,
Piando vale a vale e monte a monte piando...
É aqui, alto da serra, onde ninguém a infesta,
Que é grande, e majestosa, e esplendente a floresta.
Estranha catedral de esquisitos lavores,
Cujo incenso aromai é o incenso das flores,
Que se espalha sutil, em volutas suaves,
Cujo coro eternal é o coro das aves.
É grandiosa em tudo, em tudo ela é divina;
Não lhe excele em primor a Capela Sistina!
Cada árvore ancestral, austera e ramalhosa,
Lembra-me a toda mãe que é boa e carinhosa.
Há um leve frescor debaixo dos seus galhos,
Blandícias maternais, maternais agasalhos.
As árvores têm vida: amam qual nós amamos;
Há frêmitos de amor nos tomentosos ramos.
Na volúpia da luz, quando o sol as fustiga,
Que doce prostração, que sensual fadiga.
Curva-se a fronde a meio, à guisa de repouso;
Dobra-se folha a folha, em contrações de gozo...
Depois, na primavera, ela é toda esplendores,
Aí ressurge o amor desabrochado em flores.
Ninho dos ninhos, guarda-os, teme-lhes a morte:
A cabeleira no ar, esfuziante e forte,
Vede-lhe o desespero, a agitação violenta,
No cavo rouquejar da troante tormenta.
Belo, vê-las à tarde, em plácida postura,
Num brando ramalhar. É como quem murmura
A derradeira prece ao expirar do dia,
A essa hora em que a saudade a nossa alma crucia
Uma saudade vaga, ignota, incompreendida,
Não se sabe de que, mas que é fundo sentida!...
Internai-vos na mata escusa e emaranhada,
Que aí, tonto de olência, encontrareis em cada
Tronco que se levante, em cada hastil que trema,
Um canto, um madrigal, um grandioso poema.
É um crime nefando, é um crime tremendo
A árvore derribar. Quando ela cai rangendo,
Esse ranger dolente, esse ranger é um brado
De eterna maldição contra o feroz machado.
Elas tombam por terra, erguem-se as urbs, mas :vede-o
Depois aí abrolha a jalde flor do tédio.
Quando na arcada azul do curvo firmamento,
A lua, hóstia de luz, se alteia, lento e lento,
Que formosa há de ser essa formosa mata,
Como um templo pagão toda incrustada em prata.
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Não sei se é mata, ou campo, aquilo muito verde
Que se adelgaça além, que lá no azul se perde...,
Como chuveiros de ouro, hartos ipês gigantes
Arfam, plenos de flor, sobre os grotões hiantes.
Altas rochas aqui, socalcos em seguida,
E a linha da montanha, extrema, indefinida...
Não há pintar-lhe os tons, a máxima beleza,
Na sua ondulação suprema da grandeza.
E, do alto deste abismo, eu vejo, lentamente,
O rubro sol tombar no abismo do ocidente...
CARIÁTIDES
De crenças e de fé, se não de calma,
Trouxe de longe o coração vazio;
Porém, ao ver-te, lírio de minh’alma,
Vi dentro dele o amor florindo. E vi-o
Aclarado de luz, e não sombrio,
E não deserto como outrora. Espalma
As azas sobre mim, Anjo erradio,
Guarda-me a crença, o meu sofrer acalma.
O Templo de minh’alma está aberto:
Tu hás de ouvir ali rumor incerto
Do sombras que ao passar, eterna dor
Deixaram, uma dor profunda e imensa...
Entra, porém, que, enfim, cheio de crença,
Eu te darei a comunhão do amor.
Quando a vejo passar, pisando leve,
Como rósea ilusão por mim sonhada,
Entre fitas e rendas naufragada,
O que eu sinto não sei, nem se descreve.
De sua veste alvíssima, de neve,
Uma fragrância tépida, evolada,
Deixa a minh’alma toda embriagada,
Quando a vejo passar, pisando leve.
Que doçura suavíssima na fala
E no aroma sutil que sempre exala
O seu busto ideal e majestoso!
É formosa demais, formosa e casta!
E na onda de perfumes que ela arrasta
Arrasta-se minh’alma, ébria de gozo.
Esplende a sala. Airosa e sedutora,
Valha com outro que me dá receios.
Nele se premem seus virgíneos seios,
Perfuma-o todo a cabeleira loura.
E. como se uma sílfide ela fora,
Parece evaporar-se nos volteios
Rumorejantes, céleres, e cheios
De uma fascinação deslumbradora.
Faíscam luzes: meu olhar faísca,
Voluptuoso, como o da odalisca,
Cuja lascívia nunca se enregela.
Não a perco de vista; sempre a sigo:
Ela se esquiva de dançar comigo,
Porém o meu olhar dança com ela.
Lembra-me ainda: ela chorava e ria,
Em uma certa vez que a visitei.
Que alegria indizível, que alegria
Me entrou a alma, a cantar! Mais do que um rei,
Eu senti-me orgulhoso nesse dia.
Mas eu soube depois (e torturado
De uma descrença atroz tenho vivido!...)
Que ela ria por eu haver chegado,
E chorava por outro haver partido.
Caminhos escabrosos, escarpadas
Serras, imensos pântanos, e rios;
Os lugares mais ermos e sombrios,
Os mais ínvios sertões, ínvias estradas;
Grandes desertos, matas habitadas
De animais famulentos e bravios;
Os países mais cálidos, mais frios,
Profundos mares de ondas revoltadas:
Atravesso contigo, se quiseres,
Mulher que vence todas as mulheres,
Com essa beleza que me atrai e enleva!...
Ao teu lado eu irei tudo enfrentando,
Animoso, invencível, te levando,
Porque o teu grande amor é que me leva.
Bondosa esposa querida,
Na hora da despedida,
Se te surpreendo a chorar,
Faço a viagem sorrindo,
Acho tudo, tudo, lindo,
E alegre volto ao meu lar.
Mas, se te vejo contente,
Indizíveis mágoas sente,
A minh’alma ao te deixar;
Faço a viagem tristonho,
Tudo, tudo, acho medonho,
E triste volto ao meu lar.
Sobre a galera azul “Felicidade”!...
Tenho vogado... Adeus, linda galera!...
Com que pungente dor, com que saudade,
Vou te deixar agora!... Pois, quisera
Sempre enfunar, distante à tempestade,
A lua vela, panda de Quimera,
Branca de Paz, com toda a suavidade,
Por sobre o mar da vida. Quem me dera!
Mas seduz-me a sereia... Ela, a inclemente,
Deita-me, apaixonada e longamente,
Uns olhos negros que me estão falando
Dos ciúmes que hão de vir breve nascendo,
Dos prantos que hão de vir breve gemendo,
Das fundas mágoas que hão devir matando.
A
BELMIRO BRAGA
Olha-me sempre: o teu olhar trevoso
Do nosso amor traduz a profundeza.
Olha-me sempre: dá-me o eterno gozo,
O gozo eterno da imortal beleza.
Olha-me sempre, deusa da pureza;
Fita-me bem o teu olhar bondoso:
Toda a minh’alma de tua alma é presa,
Por ti meu coração vibra ditoso.
Olha-me sempre: dou-te a vida, dou-te
Tudo o que meu por essa negra noute
Do teu ardente olhar fascinador.
Olha-me sempre, que eu assim me alegro:
A densa treva desse olhar tão negro
Dá luz, e muita luz, a meu amor.
Rosa morena, rosa de Sevilha,
Se te vejo a dançar, que desespero!
Ondas de aroma, aroma de baunilha,
Vêm do teu corpo, lavorado a esmero.
Nos dengosos meneios do bolero,
Aos compassos de alguma tonadilha,
Cheia de graça, trêfega, te quero,
Rosa morena, rosa de Sevilha.
Dos lírios ideais da tua boca,
Que, risonha, ao dançar, vais desfolhando,
Triunfalmente o meu amor se touca.
Vendo-te assim, minh’alma se espanhola:
Sinto-a, em requebros, dentro em mim, dançando,
Ao lépido estalar da castanhola.
Formosíssima e lânguida espanhola,
Flores pediste. E eu te colhi contente:
Camélias de corola alvinitente,
Frescas rosas de rúbida corola;
Lírios, de cujas pétalas se evola
Um perfume suavíssimo, excelente;
Muitas flores, enfim, incontinenti,
Formosíssima e languida espanhola,
Colhi; porém, não encontrei nenhuma
Como essa tua boca: ela perfuma
Um coração inteiro, uma alma inteira...
É uma flor que atrai e que provoca;
É uma flor de carne a tua boca,
Vermelha como a flor da romãzeira.
A
PAULO BARRETO
« Ton coeur est mon trésor ;
Je ne veux que ton coeur. »
E o anel riquíssimo atira
No seio azul, de safira,
Do lago.
Olho-a calmo, indiferente,
E, entre os dedos, friamente,
Umas boninas esmago.
E lança, depois, tranquila,
O broche que lhe cintila
Ao peito.
O lago, de leve, treme
Ao recebê-lo: era um M
Artisticamente feito.
Alegres canções trauteio,
Fingindo-me a tudo alheio,
A tudo.
E sobre o flácido leito
Da verde relva me deito,
Macio como veludo.
De coral uns brincos finos
— Dois corações pequeninos —
Atira.
Semelham, no ar, insetos
Que passam, por mim, diretos,
Indo ao lago de safira;
E o leque de alva plumagem,
Que, como um pato selvagem,
Desliza
Por sobre o lago azulado,
Por doce brisa tocado,
Uma suavíssima brisa.
E alegres canções trauteio,
Fingindo-me a tudo alheio,
A tudo.
O lago, como a jiboia,
Devora joia por joia,
Faminto, elástico, e mudo.
Digo-lhe, enfim, com ternura:
Porque tamanha loucura
Que fazes?
A joia que mais cobiço,
Não podes jogar... Por isso,
Melhor fazermos as pazes.
À fonte chega. E a estrada que coleia
Para as bandas do sul, com mágoa fita:
Por lá que ele se foi, deixando-a cheia
De uma saudade intérmina, infinita.
Bandos de garças, como grandes lenços
A dizerem-lhe adeus, cortam o espaço
E que de agrores íntimos, imensos,
Se lhe estampam no olhar úmido e baço.
Afasta os olhos tristes do horizonte;
Porém, no espelho límpido da fonte,
Onde se arqueia um céu de cor violácea,
A rosa vê — tristíssima lembrança!
A rosa que, ao partir, lhe pôs na trança...
Levasse-a com ele de uma vez, levasse-a...
Tem ela o todo altivo da palmeira,
As formas graciosas, sedutoras.
É sua longa e basta cabeleira
Loura, mais loura que as espigas louras.
Berenice, a formosa Berenice,
Cujas madeixas eram um portento,
Se, por acaso, tais cabelos visse,
Esconderia os seus, de acanhamento.
Quando ela canta, lembra-me a sereia;
Quando sorri, a perola nevada;
Quando ela valsa — wilis que volteia
No turbilhão do vento em que é levada.
Quando ela chora, lembro-me do orvalho
Que as romãs vermelhíssimas roreja;
Quando ela reza, lembra-me o farfalho
Da brisa matinal que as flores beija.
O azul de céu daquele olhar bondoso,
Onde refulge a estrela da constância,
É vago, transparente, vaporoso,
Como o que veste os montes à distancia
E, esmaecidos, vagos, e ligeiros,
Como nevoa fantástica, enganosa,
No azul daqueles olhos feiticeiros,
Vejo passar meus sonhos cor de rosa.
A JÔNATAS MONTEIRO
Ela dorme. De manso resfolega.
É deslumbrante: uma beleza grega.
A cabeleira, flava; oval o rosto,
E afogueado como o sol de Agosto.
Semelha, sob o níveo cortinado,
Entre nuvens um anjo repousado.
A boca lembra a uma romã partida...
É uma Vênus, enfim, adormecida.
E tudo a admira: à sua esquerda, perto,
Com o grande olho enormemente aberto,
Um rico espelho de cristal polido;
Numa peanha de mármore, um cupido;
Suspensa da parede, uma princesa;
E dois clowns de biscuit que ornam a mesa.
Tamborila um besouro na vidraça.
Cai. E zumbe e zumbe; ergue-se, esvoaça.
E os minúsculos olhos, irrequieto,
Também, de vez em vez, lhe crava o inseto.
Olha-a: ele admira aqueles cachos de ouro,
Muito triste, talvez, de ser besouro...
Num paroxismo vagaroso e brando,
Bruxuleia uma vela, estalitando.
E a própria flama, trêmula, expirante,
Para a virgem se curva, instante a instante.
Há pela alcova, em tudo, um vago anseio
De ver-lhe as curvas divinais do seio,
De vê-la, ver o corpo seu formoso,
Cuja eurritmia descrever não ouso.
Tudo deseja, enfim, que ela se mova,
Que se descubra, anseia toda a alcova.
De golpe a moça se descobre. E a vela,
Como ciosa da beleza delia,
Apaga-se de golpe “Oh! formosura,
Que pena! a luz! a luz!” tudo murmura.
Quanto é impiedosa, quanto ela é inclemente!
Que olhar aquele, que expressão aquela!
A alma me apunhala, a alma me escalpela
E friamente, dolorosamente...
Minhas frases de amor, quando por ela,
Eu passo, nem n’as ouve. Indiferente,
Sorrindo, as escarnece, ou nem n’as sente...
Tal a algidez que o corpo lhe enregela.
Ama iludir-me entanto, ama iludir-me...
O amor que me consagra, é imenso e firme,
A mor que é mais que amor: é adoração!
Se a minha mão febril aperta a sua,
Os olhos baixa e, trêmula, recua,
Tomada de uma estranha comoção...
Há quanto que partiu, e a espero ainda!
A minha gloria nela se resume.
Quando será, meu Deus, a sua vinda?
O altar de meu amor está sem Nume.
Que saudades, que mágoa que não linda!
E arde-me dentro a pira do ciúme.
Quero abraçá-la (que doçura infinda!...)
Beber de seu olhar o claro lume.
Um dia, enfim, ela entra de surpresa,
E, muda, fita-me; eu a fito, mudo:
A voz, de comoção, nos fica presa...
E eu a cubro de abraços e de beijos...
Beijo-lhe as mãos, beijo-lhe os lábios, tudo,
Numa vertigem louca de desejos...
EMENTÁRIO
A
ALBERTO DE OLIVEIRA
Hoje, olhando o passado, aberto ao meio
O ementário de amor, sentido e vago,
É o livro apenas que compulso e leio,
E onde, imitando um bandolim queixoso,
Passa e repassa em namorado afago,
Das saudades o bando vaporoso.
Alberto de Oliveira.
I
Em caminho do vale. A madrugada
Caçoilas de fragrância já derrama
Na terra fresca, na orvalhada grama,
Em todos os recônditos da estrada.
Das meias sombras vão surgindo vultos
De troncos, de cupins, de ramaria,
À proporção que vai rompendo o dia,
Que espanca as trevas onde estão ocultos.
Do alto uma chuva de ouro vem caindo...
Num preguiçoso, tardo desafio,
Os galos cantam pelo casario,
Curvas de sons dolentes emitindo.
Com as primeiras canções dos passarinhos,
É que vamos, eu e Hilva, a nosso vale,
Esfolhar as camélias dos carinhos...
Não há vida que à nossa vida iguale.
Nós vamos desfrutar nossos amores,
Pelos prados, agora florescendo:
Enquanto ela estiver colhendo flores,
Hu vou, de quando em vez, beijos colhendo.
Num sobe e desce gracioso e brando,
Ligeira borboleta cor de prata
À nossa frente segue volitando,
E, volitando, some-se na mata.
À esquerda altíssimo coqueiro vê-se.
Em noites claras, quando existe lua,
Sua ramagem múrmura parece
Imensa aranha que no ar flutua.
Um rio, para as bandas do poente,
Desliza pela várzea, em torcicolo.
Numa fazenda, além, ringe o monjolo,
Bombondeando compassadamente.
Extensos milharais apendoados
Verdes colinas cobrem, lourejantes:
Parecem batalhões ali parados,
Com seus elmos de plumas flutuantes.
Pendem dos gravatás cheios de viço,
Cachos de frutos ácidos, picantes,
Como enormes botões de ouro maciço
Que ali foram guardados por gigantes.
“Hilva, vem ver aqui uns pés de avenca
Pelos barrancos húmidos, seguros.
Vê acolá também que bela penca
De cocos indaiás muito maduros.
“Neste arbusto vem ver, tão solitário,
Umas frotas de cor muito vermelha.
Olha esta que colhi, como semelha
As contas de coral do teu rosário.”
II
“Escuta: os sabiás estão cantando agora,
Ao fulgido esparzir dos matinais albores.
Que tremolos na voz! que doce voz canora
Quantas notas de amor! como falam de amores
Que inefável canção essa canção erguida
No conchego feliz, pelos florentes prados...
Ao menos uma vez possa eu também na vida
Cantos assim cantar, tão d’alma assim cantados!”
III
Como um pequeno e tosco chalezinho
(Que belo quadro, digno de um desenho!)
Vê acostado ao morro aquele moinho
Num ru-ru perro, num ru-ru rouquenho.
Campanulas agrestes, lado a lado,
Vestem-no todo de nitentes cores.
O azul do moinho, meio desbotado,
Casa-se bem com o alvor daquelas flores.
Cai em rolos de prata a água espumante,
Depois, desce o grotão que cerca a mata.
Que chispação fantástica e irisante,
Naquela água a imitar rolos de prata!
Fomos. E a longo trato do caminho,
lnda o rodar da moenda se escutava.
Antigamente, como aquele moinho,
O ciúme ao coração me triturava.
IV
Uma cascata além! Como um gigante,
Que admira o despontar da madrugada,
Solta, bramando, um ah! tonitruante,
Numa eterna e monótona toada.
De salto cm salto, quebra-se espumante,
Qual montanha de neve desmanchada.
E lá do abismo, onde a água é despenhada,
Sobe uma nevoa alvíssima e brilhante.
O louro sol primaveral que nasce,
Os seus raios dardeja, face a face,
Contra as fulgentes gotas numerosas!
Todas as cores! Quadro nunca visto!
Eu, deslumbrado, muito tempo assisto
À uma chuva de pedras preciosas.
V
Poética choupana! Habitam nela
Uns simples camponeses, cuja vida,
Como a da flor do campo, é retraída,
Que até nome não tem, de tão singela.
À janela, ninguém. Mas, em seguida,
Uma trigueira surge, fresca e bela,
Qual uma imagem rústica embutida
Na rústica moldura da janela.
Cá fora latem cães, cavalos rincham,
Grasnam marrecos, bácoros coincham,
A ração esperando, num berreiro.
A moça cumprimenta-nos contente,
E, bocejando preguiçosamente,
Joga milho, aos punhados, no terreiro.
E fomos convidados pela moça
A descansar um pouco da jornada.
Alegre recebeu-nos, e tão dada,
Como se fosse conhecida nossa.
Mostrou-nos tudo; e disse que na roça
O pai se achava desde a madrugada;
Que à fonte fora a mãe lavar a louça,
E que seria em breve ali chegada.
Depois de muita prosa e muito agrado,
E de haver percorrido e nos mostrado
Os cômodos mais íntimos da casa,
Um café perfumoso ela nos trouxe,
Um café muito forte e muito doce,
Em duas velhas xícaras sem asa.
VI
Fresca, a manhã, balsâmica, pompeia.
Cantam as aves pelos descampados.
À terra está completamente cheia
De sussurros, e flores, e trinados.
Cantam as aves pelos descampados.
As campinas cintilam deslumbrantes,
Qual se fossem ali pulverizados
Berilos, esmeraldas, e brilhantes.
As campinas cintilam deslumbrantes,
Na sua matinal policromia;
A brisa, pelos campos verdejantes,
Passa cantando doce sinfonia.
Na sua matinal policromia,
O vale todo é só deslumbramento:
Aves e flores, célica harmonia,
Montes azuis, azul o firmamento.
O vale todo é um deslumbramento,
Esplendorosa e fresca a madrugada!
Só para festejar, nesse momento,
Nossa feliz e triunfal chegada.
VII
Escondei, escondei, rosas do vale,
O vosso aroma divinal e doce:
Pois não há flor nenhuma que trescale
Tanta fragrância como a flor que eu trouxe.
Vede-a: como deslumbra essa madeixa!
 boca, vede-a: como é tão vermelha!
Vereis que breve o beija-flor vos deixa,
E a refulgente e pequenina abelha.
 sua voz melódica soltando,
Todo este vale se enche de harmonia;
A muda escarpa fica ressoando,
Fica ressoando a muda penedia...
VIII
Eu sempre os vejo alegres na copada
Da caneleira rúmura e frondente,
Soltando uma sonora gargalhada,
Guizalhante, metálica, estridente.
Sob o verde docel sombrio e morno
Da árvore, sua rústica morada
Parece muito um pequenino forno,
Com aquela portinhola arredondada.
Dizem-me a gargalhar sempre o bom-dia.
Que cumprimento extravagante é esse!
Se alegre vou, parece de alegria,
Se triste vou, de escárnio, então, parece.
IX
Há uma vaga fanfarra
Nos lugares mais secretos:
Na folha que se desgarra,
Nos zumbidos dos insetos;
No fresco sopro da brisa,
Nos estalidos da relva;
No riacho que desliza,
Bisbilhando, pela selva.
Dos cachos das ipomeias
Vêm ondas de rumorejos:
São invisíveis Napeias
Que arpejam doces arpejos.
Ouço por toda a floresta
Sinfonias de mistérios...
Longe sussurro de festa,
Uns sons místicos, aéreos...
Certo, essa música toda,
Sob a víride ramagem,
Está festejando a boda,
D’alguma ninfa selvagem.
Parece que Pan exulta,
E beija planta por planta:
Canta a erva mais oculta,
A inata, enfim, toda canta.
X
Assim vagando, borboleta,
De galho a galho, flor a flor,
Talvez, como eu, andas inquieta,
Aqui e ali, buscando amor.
Baldado intento! As azas cerra,
Pois que volitas sempre em vão:
Se erras de flor a flor, ele erra
De coração a coração.
XI
Cascalho, quanto te invejo
Jogado no fundo d’água!
Não te palpita um desejo,
Não te punge a menor mágoa.
Como tu, eternamente,
Nessa eterna solidão,
Antes fosse inconsciente,
Não tivesse coração.
De angústias tenho a minh’alma,
Horrivelmente tão cheia!
Quisera-te a doce calma,
Aí, cravado na areia.
A terra não te aborrece,
E nem tu a ela também:
Que belo viver é esse,
Que não magoa a ninguém!
Nada, nada, te consome,
No teu recanto sombrio:
Não sofres sede nem fome,
Não sentes calor nem frio.
As tristezas d’este mundo
Passam por ti a fugir:
Nesse teu dormir profundo,
Tu não as podes sentir.
Religiões... Deus... que te importa,
Nesse teu repouso eterno?
Pois, a tua alma está morta,
Não te arreceias do inferno...
Cascalho, nem sabes quanto
Inveja-me esse torpor:
Tu não conheces o pranto,
Nem as agruras do amor.
Corpo insensível, de pedra,
Mais esta felicidade:
Jamais, jamais, em ti medra
A triste flor da saudade!...
Como tu, eternamente,
Nessa eterna solidão,
Antes fosse inconsciente,
Não tivesse coração.
XII
Sou como a rosa, como o lírio aberto,
Estremecendo ao rugitar da brisa,
Quando, a sorrir, de mim tu passas perto,
Chapéu de palha, em mangas de camisa.
Sincero é o teu amor e os teus afetos;
A paixão que eu te tenho, não se acaba:
Eu estou presa por teus olhos pretos,
Que me fazem lembrar jabuticaba.
Fico toda tremente, comovida,
Quando ao samba me apertas a cintura:
Torna-se a minha face enrubescida,
Como a pitanga que caiu madura.
Quando tu passas, a tanger o gado,
Estrada afora, alegre trauteando,
Meu pensamento vai sempre a teu lado,
Bem como a garça alvíssima, voando.
Que grande amor, que adoração tamanha,
Por ti dentro em meu peito desabrocha!
É mais firme que o cedro da montanha,
É mais firme e mais forte do que a rocha.
E, como o noitibó, eu triste canto,
Se, em viagem, te somes no horizonte:
Dos meus olhos derrama-se mais pranto,
Do que derrama a cristalina fonte.
Tua feição eu trago bem gravada
No fundo de minh’alma, todo o dia.
Por ti eu rezo junto à cruz da estrada,
Quando, à tardinha, o uru na mata pia.
Não te esqueças do amor que nos consola,
Quando, longe de mim, vires as belas:
Olha bem que enfeitei tua viola
De fitas verdes, fitas amarelas.
O colar de caetê que me fizeste,
Ainda o guardo, envolto no pescoço;
E o ramo de alecrim cheiroso e agreste,
Que colheste comigo junto ao poço.
Sincero é o teu amor e os teus afetos;
A paixão que eu te tenho, não se acaba:
Eu estou presa por teus olhos pretos,
Que me fazem lembrar jabuticaba.
XIII
Apostemos, minha Hilva, uma corrida
Até lá, muito embaixo, na touceira
De cipó S. João, toda florida,
Que se enxerga à direita da porteira.
Condições: um riquíssimo presente,
Se ganhares a aposta, como espero,
Eu te darei. E me darás somente
Um beijo, se a perderes. Queres?
— Quero
E parte, e desce, e corre, e voa, e ao alto
De um comoro, saltando, galga ofega.
E parlo, e desço, e corro, e voo, e salto.
E ela corre mais... mais... quase que chega
Ao ponto combinado. E corro, e corro,
E voo, c voo. Tomo-lhe a dianteira.
Grito, ao passar-lhe perto: “Quase morro!”
Mais porque ela se anime na carreira.
E, ligeiro, levípede, eu alcanço
A moita de cipó que tanto almejo.
Vitorioso, impaciente, nem descanso,
E volto ao seu encontro e dou-lhe o beijo.
XIV
Sob este verde céu de estrelas verdes,
Vamo-nos descansar. Que inseto belo,
Hilva, aqui nesta folha. Muito perdes,
Se não o vires: vem depressa vê-lo.
Vem depressa, que o voo já ensaia.
E preciso não foi que ela viesse:
Voou. E, presto, lhe pousou na saia,
E uma conta a mover-se, então parece.
E foi subindo lento, foi subindo
(E vede que ousadia!) até o rosto.
Seja que o achasse bom, que o achasse lindo,
Fica parado ali, muito a seu gosto.
E muito negro, de uma cor retinta,
Pouco acima da boca, rósea taça!
Como pequena e graciosa pinta,
Dá-lhe ao semblante mais um quê de graça.
Não faço mal ao ente mais imbele.
Entre os dedos, entanto, esmigalhei-o:
Eu só, só eu, por ela viva e zele,
E goze-lie eu somente o doce enleio.
XV
Eis-nos à estrada que margeia os montes,
Sob uma pitangueira florescida...
Ah, chora, coração! e nada contes
Dessa história feliz de minha vida.
Profere-a baixo, como as tuas preces,
Ao altar da Saudade e do Passado...
Só tu a entendes, tu só a conheces;
Nesse idílio de amor pensa calado...
XVI
Que saudados, meu Deus, daquela volta,
Quase ao crepúsculo, ao findar do dia!...
Ela, a meu lado, a cabeleira solta,
Frases de amor, sorrindo, me dizia.
Com que delicia, então, não a ouvia,
Naquela volta que não mais me volta...
Só de beijos, de amor, e fantasia,
Foi nossa escolta, encantadora escolta!...
Tanto era o enlevo meu, tanto o carinho
Que nada ouvi nem vi pelo caminho...
Meus olhos embebiam-se nos seus...
Nada vi nem ouvi... nossa jornada
Somente percebi que era findada,
Quando ela, ao me deixar, me disse adeus.
XVII
Hilva há muito que é morta. E o vale ainda
É o mesmo, e as mesmas flores na campina.
Punge-me vê-la assim, assim tão linda,
Eu quisera-a mudada, ou feita em ruina...