Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

PARODIA

PRIMEIRO CANTO

DOS

LUSIADAS  DE  CAMÕES

POR

QUATRO ESTUDANTES DE EVORA

EM 1589.

 

 

 

 

LISBOA.

NA TYPOGRAPHIA DE G. M. MARTINS.

Rua do Ferregial de Baixo, 22.

1880.

As honras da paródia só às obras do gênio costumam conceder-se. A divina Ilíada foi parodiada em um poema herói-cômico tão antigo, que geralmente se atribui ao próprio Homero; ainda que Suidas lhe dá por autor a Pigres, irmão da Rainha Artemisa. Nesse poema, intitulado a Batracomiomaquia, a terrível luta dos Gregos e Troianos é reproduzida no maravilhoso combate dos ratos e das rãs. Esta coroa burlesca ainda faltava ao rival de Homero, quando o poeta Scarron primeiro marido da famigerada Marquesa de Maintenon, se lembrou de cantar:

    …… cet homme pieux,

Qui vint chargé de tous ses Dieux

Et de Monsieur son père Anchise,

Beau vieillard à la barbe grise, etc.

A grande obra do único homem de gênio que talvez tenha produzido a nossa terra, não podia isentar-se deste fado inerente às grandes celebridades. Eram apenas passados dezoito anos depois da publicação dos Lusíadas — ainda a reputação de Camões não estava consagrada pelos séculos, quando alguns homens engenhosos compreenderam que aquela obra imortal era uma daquelas a que a paródia era devida. O resultado de seus trabalhos não é de certo para comparar com nenhuma das espirituosas produções que ficam mencionadas; mas ainda assim não é esta inteiramente destituída de merecimento. Francisco Soares Toscano, bem conhecido dos literatos pelo seu Paralelo de Príncipes, escreveu uma interessante notícia sobre esta obra, em que nos conta o curioso modo por que ela foi composta. Quatro estudantes da Universidade de Évora costumavam sair a passear, às tardes, aos arrabaldes da cidade, levando consigo os Lusíadas. Chegados a um verde forrageal, sentavam-se a uma fresca sombra, e se abria a sessão parodiadora. Assim como a engelhada e disforme máscara de uma velha megera cobre o rosto radiante de formosura de uma elegante Coquette, para mais fazer realçar seus encantos, quando deixe cair aquele hediondo disfarce; assim o imortal poema devia ser desfigurado por aqueles travessos estudantes. Os Gamas, Castros e Albuquerques tinham de ceder seu lugar aos Catigelas, Lunas e Barbanças, barões sem dúvida tão assinalados nos combates de Baco como essoutros nos de Marte.

Dois meses durava aquela sessão extraordinária; e já tão continuados passeios davam que falar aos estudantes e também dariam que entender à Santa Inquisição de Évora, se aquela sociedade secreta não fosse composta, como de facto o era, de quatro teólogos, e tão ortodoxos, que um deles veio a ser Inquisidor Geral. Mas por fim apareceu a misteriosa obra dos quatro patuscos, como hoje lhe chamaria um acadêmico, e não sei se já então lhe chamavam. A este modo de composição de sociedade e às muitas emendas que depois sofreu dos curiosos, como adverte Toscano, se deve talvez a confusão do enredo deste poema. Parece que seus colaboradores tinham principalmente em vista inverter ao de-vinho cada verso que entrava em discussão, sem atender à coerência do todo. É provável que se propusessem a celebrar os mais famosos bebedores Evorenses, aos quais aludissem, e talvez nomeassem por seus próprios nomes ou apelidos. Toscano, que os devia conhecer, assim o indica quando diz que tinha feito várias cotas a esta paródia para melhor se entender. Com efeito na est. XXX se faz menção de um Pero Vaz, que provavelmente é o mesmo cristão-novo, bêbado perdido, autor do epigrama latino de que fala a notícia. Infelizmente para a história da Borracheologia Lusitana, cotas e epigrama tudo se perdeu.

Os colaboradores desta inocente profanação literária não são inteiramente desconhecidos. Manoel do Vale de Moura, natural de Arraiolos no Alentejo, doutorou-se em Teologia na Universidade de Évora, e chegou a ser Arcebispo desta diocese e Inquisidor geral. Contava vinte e cinco anos quando concorria para esta composição, e chegou a uma avançada idade. Além da obra De Encantationibus et Ensalmis, de que fala Toscano, e outras de não menor utilidade, Barbosa o faz autor de uma Ilustração à primeira Ode de Camões. De certo não fez pouco Sua Revma. se conseguiu lançar alguma luz sobre aquele confuso ou estropeado poema. Nem Bartolomeu Varela, nem o Licenciado Manoel Luiz, tiveram a honra de encher as colunas da Biblioteca Lusitana; mas João Baptista de Castro de ambos faz menção no seu Mapa de Portugal. Não é contudo a Varela, como ele pensa, que cabem os louvores que lhe dá por esta composição burlesca. Manoel Luiz Freire — que assim lhe chama um Padre Francisco da Cruz, citado por Castro, — se deve ter como o principal e mais chistoso colaborador desta obra. As únicas notícias biográficas que dele sabemos, são as apontadas por Toscano em sua notícia. O quarto dos teólogos, e ao que parece o mais teólogo de todos, foi o pobre Luiz Mendes de Vasconcelos, cujo ronceiro estro só lhe pôde inspirar um único verso. Não se confunda este obscuro indivíduo com o autor do Sitio de Lisboa e da Arte militar, suposto fossem contemporâneos. Um dedicou-se à Egreja, o outro às armas.

Esta paródia chegou a alcançar certa celebridade, ainda que até agora nunca fosse impressa. Eis-aqui o que dela diz Faria e Souza, falando de outra de um soneto de Graciliano, atribuída a Camões: «Lo que mi poeta hizo con el soneto de Garcilaso, pasándose de tanta gravedad a tanta picardía, hizo otro ingenio Portugués con el canto 1.^o de su Lusíada, intitulándole Borrachera; porque celebra en él a algunos aficionados del vino; y las más de las octavas son vueltas a este propósito con gran felicidad.» E depois de dar como amostra os quatros primeiros versos da 1.^a oitava, prossegue: «El canto 2.^o continuó (y no con menos felicidad) Antonio de Magallanes y Menezes, señor de la Ponte da Barca, que este ano de 1645, aquí en Madrid, me refirió algunas estancias. Yo, cuando en mi mocedad atendía à esto, volví también algunas, de que se me acuerdan los primeros cuatro versos de la 90 del canto 5.^o, que son:

Da boca de facundo capitão, &c.

y mi revuelta dice de este modo:

Da boca do fecundo borrachão

Pendendo estavam todos bem bebidos,

Quando deu fim a grande inundação

Dos altos copos grandes e subidos!»

(Coment. às Rim. Tom. 1.^o pag. 354).

FESTAS BACANAIS:

CONVERSÃO DO PRIMEIRO CANTO DOS LUSÍADAS DO GRANDE LUIZ DE CAMÕES VERTIDOS DO HUMANO EM O DE-VINHO POR UNS CAPRICHOSOS AUTORES: S.
O DR. MANOEL DO VALE, BARTOLOMEU VARELA, LUIZ MENDES DE VASCONCELOS, E O LICENCIADO MANOEL LUIZ, NO ANO DE 1589.

* * * * *

NOTÍCIA.
 

Esta obra da conversão do primeiro canto do poema de Luiz de Camões se fez no ano de 1589, para a qual concorreram quatro pessoas, a saber: o Dr. Manoel do Vale, deputado da Santa Inquisição, que compôs o livro dos Ensalmos em latim, que agora imprimiu: outro foi Bartolomeu Varela, natural de Vianna, junto a Évora, o qual faleceu, que era irmão de Diogo Pereira, que foi este ano às Côrtes, que El-Rei D. Filipe II fez em Lisboa, por Procurador desta cidade de Évora. Foi Bartolomeu Varela clérigo e grandíssimo poeta. O terceiro foi Luiz Mendes de Vasconcelos, criado do Arcebispo D. Teotônio; o qual posto que não era poeta, se achou ao fazer da obra; e só fez um verso, que é o último da oitava 17; porque estando eles suspensos no cuidado de completarem a dita oitava e parados no verso que diz:

Porque este é o que aguenta a velha idade, acudiu o dito Luiz Mendes, concluindo:

Desterrando a água-pé desta cidade.

O quarto e principal autor foi o Licenciado Manoel Luiz, Bacharel; e este ano de 1619 vive com o Priorado de Terena. Este foi o promovedor desta obra, e a fez quase toda, ou o melhor dela.

Quando a fizeram eram então todos teólogos; e às tardes, acabado o estudo, saíam pela porta de Machede, e assentados em um forrageal, iam traduzindo para a bebedice as tais oitavas de Camões, fingindo uma embarcação de Lisboa para Évora, como Camões a de Portugal para a Índia Oriental; e compuseram a tal obra dentro em dois meses, no cabo dos quais saíram com ela: sendo que já os estudantes suspeitavam de alguma aplicação (posto que não soubessem de certo o que era) pelos verem ir todas as tardes para fora dos muros, e comunicarem seus papeis, sem darem conta disso a ninguém.

Finalmente, saída a obra, foi muito festejada e estimada de todos; e lendo-a o Padre Ferrer, castelhano (varão doutíssimo da Companhia, do qual o Dr. Manoel do Vale traz uma carta no seu livro) e falando-se nela, costumava dizer, que era a melhor obra que nunca saíra nem ele vira, se não fosse tão suja.

Depois, como se divulgou, cada um a quis emendar como entendia, donde vem andarem hoje as copias com tanta diversidade de leituras. Porém eu, esta que aqui vai, a trasladei do próprio original e letra de Bartolomeu Varela, que está em poder do Chantre da Sé desta cidade, Manoel Severim de Faria, que a houve do dito Varela, e lhe fiz algumas cotas para inteligência da obra.

Isto me parece basta para se saber o como esta obra se fez. E eu Francisco Soares Toscano o fiz aos 10 de Janeiro de 1619.

FESTAS BACANAIS.

ARGUMENTO.

 

Fazem concílio os bêbados de porte,

Opõe-se aos Bagulhentos Pedro ingente;

Favorece-os o Catigela forte,

No Lamarosa tem seu lava-dente.

De inveja Lieo lhes busca a morte,

Descendo a Montemor contra esta gente,

Que vê em rio Mourinho a ação traidora,

E a Peramanca chega vencedora.

I.

 

Borrachas, borrachões assinalados,

Que de Alcochete junto a Vila Franca,

Por mares nunca dantes navegados

Passaram inda além de Peramanca:

Em pagodes, e ceias esforçados,

Mais do que se permite a gente branca,

Em Évora cidade se alojaram,

Onde pipas e quartos despejaram:

II.

 

Também as bebedices mui famosas

Daqueles que andaram esgotando

O império de Baco, e as saborosas

Águas do bom Louredo devastando;

E os que por bebedices valerosas

Se vão das leis do reino libertando;

Cantando espalharei por toda a parte,

Se a tanto me ajudar Baco, e não Marte.

III.

 

Cessem do Novelão, do grã Barbança

As grandes bebedices que fizeram;

Cale-se do Rangel e do Carrança

A multidão dos vinhos que beberam,

Que eu canto doutra gente e doutra lança,

A quem frascos de vinho obedeceram:

Cesse tudo o que a musa antiga canta,

Que outro beber mais alto se alevanta.

IV.

 

E vós, bacanais ninfas, pois criado

Em mim tendes a sede tão ardente,

Se sempre em largo copo espraiado

Festejei vosso vinho alegremente,

Dai-me agora um bom papo despejado

Para beber à perda co'esta gente,

Porque de vossas águas Baco ordene

Um rio para bêbados perene.

V.

 

Dai-me uma vasilha mui cheirosa,

Seja de bom licor, não saiba a arruda,

De Peramanca seja que é gostosa,

O peito esforça, a cor ao gesto muda;

Dai-me igual nome às taças da famosa

Gente vossa que Baco tanto ajuda;

Que se espalhe, e se cante no universo,

Se tanta bebedice cabe em verso.

VI.

 

E vós, Fernão Gonçalves, segurança

Das festas de Lieo em esta idade,

Podeis atravessar com confiança

Quantas adegas há nesta cidade:

Vós, mano, nosso amor, nossa esperança,

A quem só prometemos lealdade,

Pois Baco a nós vos deu por cousa grande,

Seja a medida assim de quem a mande.

VII.

 

Vós só tendes o ramo florescente

Da árvore de Cibele mais amada,

Que nenhuma nascida em Benavente

Ou pelo rio abaixo até Almada.

Vede-o nas toalhas, que presente

Vos mostra a bebedice já passada,

Nas quais vivas lembranças vos deixou

O que de vinho mais se carregou.

VIII.

 

Vós, alto taverneiro, cujo império

O bêbado em se erguendo vê primeiro,

Ou beba neste nosso hemisfério,

Ou beba lá nesse outro derradeiro:

E nem por isso sente vitupério

O fidalgo, o estudante, o cavaleiro,

Antes o Turco, o Mouro, e o Gentio

Lhes pesa não beber do vosso rio:

IX.

 

Inclinai por um pouco a majestade,

Que no azamboado rosto vos contemplo,

Quando fordes co'os mais desta cidade

Ofertar-vos a Baco no seu templo:

Os olhos da real bebecidade

Ponde no borrachão, vereis exemplo

De amor de vossos vinhos saborosos

Por bêbados louvados espantosos.

X.

 

Então vereis se sois bem conhecido

De todos os amigos de Falerno;

Que não é pouco ser obedecido

No estio, primavera, outono, inverno:

Ouvi, vereis o nome engrandecido

Daqueles de quem sois senhor superno;

E julgareis qual é mais excelente

Se ser do mundo rei, se de tal gente.

XI.

 

Ouvi, que não vereis com vãs façanhas

Fantásticas, fingidas, mentirosas,

Louvar os vossos, como nas estranhas

Musas, de engrandecer-se desejosas:

Bebedices dos vossos são tamanhas,

Que excedem as sonhadas fabulosas,

Que excedem ao primeiro vinhateiro,

E a Baco inda que fora verdadeiro.

XII.

 

Por estes vos darei um Cláudio fero,

Que fez a Peramanca tal serviço,

Um fulano Coutinho, que de mero

A borracha para ele só cobiço.

Pois pelos doze Pares dar-vos quero

Uns doze que sobre um pobre chouriço

Entornaram tão rijo que de cama

Um monte lhes serviu de esterco e lama.

XIII.

 

E se a troco de Nun'alvres e Barbança

Ou do Luna quereis igual memória,

Vede primeiro a Pedro, cuja lança

No beber escurece qualquer glória;

E aquele que do enxame a segurança

No copo só quis ter, por ter vitória;

Aquele Diogo, invicto cavaleiro,

Que em quatro não é quarto, mas primeiro.

XIV.

 

Nem deixarão meus versos esquecidos

Aqueles que na sede gastadora

Se fizeram no copo tão subidos,

De Lieo a bandeira vencedora:

Um Daniel fortíssimo e os temidos

Lacaios, por quem sei que sempre chora

Da Chamusca e Louredo o vinho forte,

E outros a quem Tétis causa a morte.

XV.

 

Em quanto a estes canto, e a vós não posso,

Bom Fernando, que não me atrevo a tanto,

Essa mão alargai ao vinho vosso,

Dareis matéria a nunca ouvido canto.

Começarão a fugir d'água do poço

Os que em vê-la somente tem espanto,

Que em pagodes, merendas e jantares

Empinar querem só de Baco os mares.

XVI.

 

Em vós os olhos tem o Mouro frio,

Frio, que usar de vós lhe não é dado;

Pelo contrário o bárbaro gentio

Com desejo de ver-vos 'stá ‘squentado;

Peramanca o vermelho senhorio

Vos tem se enviuvais aparelhado;

Que pois em dar seus bens sois brando e tenro,

Deseja de comprar-vos para genro.

XVII.

 

De Castela se veem nessa morada

Águas de duas cores deleitosas,

Quando a nossa cidade está esgotada,

Inda que o gesso as faz menos gostosas;

Co'o licor novo espera ser tirada

A reima das entranhas sequiosas,

Porque esse é o que aquenta a velha idade

Desterrando a água-pé desta cidade.

XVIII.

 

Mas em quanto com novo não me alento,

Reparti com os pobres que o desejam;

Ide largando dele, com intento

Que seus poucos reales vossos sejam.

Assi recolhereis o nosso argento,

E de todos aqueles que festejam

Por tal ordem a Baco celebrado,

Que costumam beber cada bocado.

XIX.

 

Já de lá de Alcochete caminhavam,

As fermosas borrachas apertando,

E depois de vazias as largavam,

Outras doutro licor melhor tomando,

De branca escuma os copos se mostravam

Cobertos ao beber não lhe assoprando;

Mas as águas nem doces, nem salgadas

Delas vistas não foram nem provadas.

XX.

 

Quando Francisco, bêbado espantoso,

Que em copo, frasco, taça é eminente,

Se ajuntou em conselho, desejoso

De dar favor a toda aquela gente.

Pisando esse caminho tão famoso

Da rua das adegas prestemente,

Convocados da parte do entornante

Por um já noutro tempo bom tocante.

XXI.

 

Deixam dos sótãos frios o aposento

Que para beber neles lhe foi dado,

Obedecendo logo ao mandamento

De um bêbado tão nobre e tão honrado.

Ali se acharam juntos num momento

No bairro de Reimonde celebrado,

Os da Porta de Avis e outros onde

As suas casas grandes tem o Conde.

XXII.

 

'Stava Francisco ali sublime e dino,

Vermelho como os raios de Vulcano;

Por cetro tinha um copo cristalino

De cheiroso licor, mas não deste ano;

Da boca lhe saía um ar tão fino,

Que em vinho convertera um tigre hircano;

Dos ramos tinha c'roa rutilante

Em que tornou a Daphne seu amante.

XXIII.

 

Em lagariças, dornas assentados,

Cobertos de mosquitos que voavam,

Os mais bêbados são agasalhados,

Sem ordem nem razão se assentavam.

Precedem os menores aos honrados;

E assim uns pelos outros se trocavam:

Quando Francisco alto assim dizendo,

Com tom de voz começa grave e horrendo:

XXIV.

 

Moradores de donde antigamente

Teve Sertório casa e certo assento,

Se do grande beber da forte gente

De Baco não perdeis o pensamento,

Deveis de ter sabido claramente

Como é dos fados grandes certo intento

Que por eles se esqueçam Castelhanos,

Flamengos, Alemães, Italianos.

XXV.

 

Já lhe foi, bem o vistes, concedido

A um bêbado destes mais pequeno

Sojigar Caparica e ter bebido

Toda a terra que rega o Tejo ameno.

Camarate lhe tem obedecido,

Povos se lhe mostrou brando e sereno;

Para que é mais cansar? cousa é notória

De Ourem e Figueiró levaram glória.

XXVI.

 

Deixo, bêbados, toda a fama antiga

Que lá dentro em Lisboa uns alcançaram,

Quando com dez Tudescos numa briga

No nosso ofício tanto se afanaram.

Também deixo a memória que os obriga

A grande nome quando se tomaram

C’um soldado Holandês, c’um Biscainho,

Quando a carga do frasco era só vinho.

XXVII.

 

Agora vedes bem que vem bebendo,

E cada qual já traz seu couro leve,

Pelas charnecas secas, não temendo

Sequidão dos Pegões, a mais se atreve;

Que havendo tantos já que as partes vendo

Onde o copo comprido tem por breve,

Inclinam seu proposito e porfia

A ver os vinhos que Évora teria.

XXVIII.

 

Prometido lhe tem Baco o governo

Da rua das adegas celebrada,

Onde vinhos lhe tem que os de Falerno,

Os do Rhim, ou de Alcache tem em nada.

Bem sabeis que se vem chegando o inverno,

Esta gente vem seca e esgotada,

Já parece bem feito que lhe seja

Mostrada Peramanca que deseja.

XXIX.

 

E porque, como ouvistes, tem passados

Na viagem tão ásperos perigos,

Tantos vinhos vinagres esgotados,

Nas Vendas novas, nos Pegões antigos;

Que sejam determino agasalhados

Entre as quintas aqui de seus amigos,

E enchendo cada qual a sua bota

Comecem a seguir sua derrota.

XXX.

 

Tais palavras Francisco assim dizia,

Quando todos sem ordem respondendo,

Na sentença um do outro diferia,

Razões diversas dando e recebendo.

Mas Pero Vaz ali não consentia

No que Francisco disse, conhecendo

Que esqueceria um bêbado eminente

Se cá viesse beber aquela gente.

XXXI.

 

A bêbados ouvira que viria

Uma gente de copo tão estranha,

Pela charneca, a qual esgotaria

Tudo quanto Louredo e Lagem banha;

E com beberes novos venceria

A todos os famosos da Alemanha.

Altamente lhe dói perder a glória

Na taça em que de todos tem vitória.

XXXII.

 

Vê que de Évora teve sojigado

Os bêbados e o vinho, e nunca caso

Lhe tirou por insigne ser louvado

‘Té dos imigos d'água do Parnaso.

Teme agora que seja sepultado

Seu tão celebre nome em negro vaso

D'água do esquecimento, se lhe chegam

Os bêbados insignes que navegam.

XXXIII.

 

Sustentava contra ele o Catigela,

Afeiçoado à gente bebedana,

Por quantas bebedices vira nela,

Jantando em Alcochete uma semana.

Afeiçoado vem da gente bela,

Que por brasões os copos tem ufana,

De quem a língua é tal, se o copo empina,

Que ora parece grega, ora latina.

XXXIV.

 

Estas cousas se movem em uma ceia

Onde apenas um ao outro se entende,

Um deles tem a vinda em boa estreia,

Outro às picheladas a defende;

Assi que um pela infâmia que receia,

E outro pelo gasto que pretende,

Porfiam, arrebessam, permanecem,

A quaisquer seus amigos favorecem.

XXXV.

 

Qual o fervente mosto em talha escura,

Quando a tinta lhe lançam espremida,

Por aqui, por ali sair procura

Com ímpeto e braveza desmedida;

A adega brame toda co'a fervura,

Bota o bagulho fora a escuma erguida,

Tal andava o tumulto levantado

Entre um bêbado e outro apaixonado.

XXXVI.

 

Mas um que a esta gente sustentava,

E dentre todos eles mais bebia,

Ou porque o amor do vinho o obrigava;

Ou porque o seu beber o merecia,

Tremelicando ali se levantava,

Olhando a quem primeiro brindaria;

Um borrachão famoso pendurado,

Trazia ao tiracolo ao esquerdo lado.

XXXVII.

 

Do pichel a viseira rutilante

Levantada, de vinho branco e puro,

Por dar-lhe de beber a pôs diante

De Francisco com tais armas seguro,

E dando uma pancada penetrante

Co’o grande borrachão no solo duro,

O chão tremeu, e um deles de torvado,

Uma grã vez tomou sobre um bocado.

XXXVIII.

 

E diz: Ó bêbado alto, a cujo império

Os vinhos obedecem que encerraste,

Se aqueles que em ti buscam refrigério,

Cujo beber soberbo tanto amaste,

Não queres que padeçam vitupério,

Pois que esta adega hoje lhe mostraste,

Não ouças mais, pois bêbado és direito,

A quem em bebedices é suspeito.

XXXIX.

 

Porque se o copo aqui se não mostrasse

Vencido desta gente e infamado,

Bem fora que aqui Baco o sustentasse,

Que o território seu deixa esgotado,

Mas esta tenção sua agora passe,

Porque em fim vem de estomago danado;

E nunca beba mais vinho de Beja

Quem do beber alheio tem inveja.

XL.

 

E tu pois que padre és da borracheza,

Não consintas que bebam por canada;

E porque mostres mais tua grandeza,

Com pipas, quartos seja agasalhada:

Tragam-lhe alguns leitões lá da devesa

De conserva azeitona e retalhada,

Sardinha de Liceira que é conforme

Que a sede se repare e se reforme.

XLI.

 

Como isto disse o bêbado famoso

O grão Francisco ledo consentiu,

E uma taça de vinho mui cheiroso

Logo sobre eles todos esparziu.

Cada um pelo caminho desgostoso

Da rua das adegas se partiu,

Providos de beber seus instrumentos

Tornaram para os frios aposentos.

XLII.

 

Em quanto este conselho na famosa

Adega se passou, aquela gente

Pisando a charneca sequiosa

Beber deseja de Évora a aguardente.

E chegando à Amieira lamarosa,

Onde o caminho vem de Benavente,

Se algum licor trazia de Lieo,

Sem gota lhe ficar ali o bebeu.

XLIII.

 

Tão rijamente os odres despejavam

Como em terra que tem de vinho abrigo;

Mas se tanto bebiam confiavam

No Thomé dos Pegões que era amigo.

Á desejada venda já chegavam

Onde os abraça o seu compadre antigo;

E em sinal que da vinda se alegrava,

Novos vinhos que tinha lhe mostrava.

XLIV.

 

Vasco Bagulho que era o capitão

Que às Bacanais venturas se oferece,

De soberbo e altivo borrachão,

A quem fortuna em copo favorece,

Para se aqui deter não vê razão,

Que a terra não dá vinho ao que parece.

Por diante passar determinava

Mas impediu-lho o vinho que chegava.

XLV.

 

Eis que aparece logo em companhia

Uma recova de asnos de Castela,

Que grã cópia de vinho lhe trazia,

Que foi fermosa vista, cousa bela.

Alvoroçam-se todos de alegria,

Desejam já provar a causa dela:

Que tal será o vinho ali diziam,

De que lugares estes o trariam?

XLVI.

 

Os seus borrachões eram de maneira

Que pipas pareciam mui compridas,

Agasalha-os com festa a taverneira

Por suas taças ver melhor providas,

O vinho bota em vasos de madeira.

Enchendo do restante as mais medidas.

Senta-se à mesa logo em continente,

Para beber também com esta gente.

XLVII.

 

E do que os Castelhanos vem providos

Começam a comer todos sentados,

Que uns de azeitonas vem apercebidos,

Outros de uns peixinhos bem salgados.

E os que de manjares vem despidos,

Começam a mandar vir alhos assados,

E sobre isto aos outros vão brindando,

Os castelhanos vinhos festejando.

XLVIII.

 

Estando assim comendo, eis que chegavam

Outros que lhes pediam que esperassem,

Porque para beber desafiavam

Os mais famosos três que ali se achavam.

Vinho trazem também, o qual gavavam,

Pedindo aos assentados que provassem:

Para provar do vinho um fora salta,

Que no beber aos outros mais se exalta.

XLIX.

 

Não tem descarregado a aguardente,

Quando o que saltou fora já bebia;

Começa de gavá-lo à sua gente,

Dizendo que parece malvasia.

O taverneiro então em continente

Tal gente recebeu com alegria.

Enchem vasos de vinho e do que deitam

Os que vem e os que estão nem gota enjeitam.

L.

 

Comendo alegremente perguntavam,

Com língua onde as palavras se detinham,

Donde era o licor branco que gostavam

E se vermelho entre ele também tinham.

De Castela os marranos lhe tornavam

Que si, e suas mercês de donde vinham?

Disse um deles: De junto a Benavente,

Vimos a Évora a beber somente.

LI.

 

De Ribatejo temos já provado

Os vinhos, e as adegas temos visto,

Caparica deixamos esgotado

Molto sudando nel glorioso acquisto.

E de um bêbado somos tão amado,

Tão querido de todos e bem quisto,

Que não no largo mar com leda fronte,

Mas de vinho entraremos numa fonte.

LII.

 

E por mandado seu buscando vamos

A terra que Louredo em torno rega,

Depois que os quartos todos esgotamos

Da Telha, Lavradio, Aldeia-galega.

Mas já razão parece que saibamos,

Se entre vós a verdade se não nega,

Quem sois, que vinho é este que buscais,

E se tendes do de Évora alguns sinais.

LIII.

 

Somos, um dos do vinho lhe tornou,

Estrangeiros na terra e na nação,

Que os próprios são aqueles que criou

A terra que sovado come o pão.

A lei cega tivemos que ensinou

Aquele descendente de Abrahão,

Que vinho não bebeu quente nem frio;

Intendami chi può, che m'intend'io.

LIV.

 

Esta pequena venda aonde estamos

É de nossa passagem certa escala,

Onde às vezes tais vinhos nós gostamos,

Que acontece ficar homem sem fala.

E por ser terra estéril procuramos,

Cada vez que passamos, visitá-la.

Comem aqui e bebem tanto a pique,

Que prometo que o Fuentes cedo enrique.

LV.

 

E pois que tantos odres despejais

Se de Évora buscais o vinho ardente,

Guiando-vos irei, ‘té que sejais

Postos em Montemor seguramente,

Onde será bem feito que vejais

O tridentino André que é o bebente

Que essa terra governa, e que vos veja,

Para que dalguns vinhos vos proveja.

LVI.

 

Dizendo isto o Mourisco carregou

Os seus odres, deixando a companhia,

Dela e do vendeiro se apartou;

Bebe cada um sua vez por cortesia;

Os novos companheiros aceitou

Com mostras de prazer e de alegria,

Dizendo a cada um que caminhasse,

E quem beber quisesse que o tomasse.

LVII.

 

A noite se passou na leda frota

Com estranha alegria não cuidada,

Por acharem em terra tão remota

A venda nova deles desejada.

Disse o Mourisco ali: Venga la bota!

Na castelhana língua dele usada.

Eles que no beber tanto se esmeram,

A seu mandado logo obedeceram.

LVIII.

 

Do vinho alegres cores rutilavam

Pelas taças de vidro cristalino;

As velhas azeitonas que lhes davam

Festejam mais que flores e boninas,

Da venda os taverneiros se espantavam

Do cheiro e do sabor das águas finas,

Porém a demais gente não provava

O bom licor que entre esta se brindava.

LIX.

 

Mas assim como a Aurora marchetada

As fermosas borrachas lhe mostrou

Àquela gente meia atordoada,

Cada qual deles sua vez tomou.

Começa a embebedar-se a camarada,

Que de fermosos frascos se adornou,

Para beber com festa e alegria

Co’o bebedor da terra que partia.

LX.

 

Partia alegremente, desejando

De beber já com gentes tão ufanas,

Que por charnecas secas caminhando,

Vem a beber em terras Transtaganas.

A borracha que traz vem empinando

Do licor que se vende não com canas.

Já chega, mas sem gota o Tridentino;

E quem sem gota está é bem mofino.

LXI.

 

Recebem-no ali alegremente,

O Mourisco com sua companhia,

E dá-lhe de azeitonas um presente,

Que para tal efeito já trazia.

Dá-lhe sardinha frita; salta o ardente

Licor, com que ele tem tanta alegria.

Tudo o Marques contente bem recebe,

Mas triste está com ver que ninguém bebe.

LXII.

 

Estava o Granadino mui confuso

Com ver que não tem já de vinho nada,

Com que brinde ao bebente, como é uso,

Que para o receber fez tal jornada.

Reprende o companheiro seu abuso,

Pois sequer não deixara uma canada

Para enxaguar a boca ao que trazia

Do fresco Montemor a alegre via.

LXIII.

 

Porque em chegando diz que ver deseja

Do vinho os instrumentos; que não crê

Que tão honrada gente ali esteja,

Sem terem pelo menos água-pé.

Mas os outros a quem nada sobeja

Do licor da boa planta de Noé,

Aos vendeiros pedem que ali 'stavam,

Das fundagens que para si guardavam.

LXIV.

 

E disse um deles: pois que em tal sazão

Viemos que entre nós nem gota havia,

Quero-vos dar alguma informação

De nós, em quanto o vinho lá se avia.

Posto que granadino é de nação

Este homem que nos serve aqui de guia,

Perto está de Lisboa a pátria nossa,

Buscamos Peramanca amada vossa.

LXV.

 

Deixamos esgotado todo o império

Que Baco em nossas terras tem visível;

Vimos correndo agora este hemisfério,

Porque beber por lá não é sofrível:

E posto que soframos vitupério,

Por um largo beber tudo é sofrível:

Que melhor é vergonha em quem bebeu,

Que a dor por não sofrer que outrem sofreu.

LXVI.

 

Porque bastava só vinho infinito,

Que não há nem gota já na companhia,

Que é tal, e no beber tem tal esp'rito,

Que inda um Tejo de vinho esgotaria.

Se as vasilhas quer ver como tem dito,

Cumprido esse desejo te seria:

Vazias as verás, que eu me obrigo

Que sempre assim 'starão, se imos contigo.

LXVII.

 

Isto dizendo mostram diligentes

Os vasos com que apagam as securas;

Mostram fermosos frascos e as pendentes

Borrachas que em caminhos são seguras:

Os odres nas medidas diferentes,

Cobertos de encouradas vestiduras:

Outras borrachas trazem por aljavas,

De corno copos grandes, taças bravas.

LXVIII.

 

Chega nisto o vendeiro diligente

Com as suas fundagens saborosas;

Bebe delas André alegremente,

Desafiando as gentes tão famosas.

Mas dentre eles um bêbado valente

Responde-lhe que as gentes valerosas

Não saíam a um; e com razão,

Que é fraqueza entre ovelhas ser leão.

LXIX.

 

Mas disto que André Marques bem notou

E de tudo o que ouviu no copo atento,

Um ódio certo n'alma lhe ficou

Uma vontade má de pensamento.

Nas obras e no gesto o não mostrou,

Mas com risonho e ledo fingimento

Tratá-los brandamente determina,

Até que mostrar possa o que imagina.

LXX.

 

Piloto lhe pedia o capitão

Por quem pudesse a Évora ser levado,

Polo qual lhe daria um borrachão

De vinho de Valbom que é extremado.

André lho prometeu, mas com tenção

De peito venenoso e tão danado,

Que a morte, se pudesse, neste dia

Em lugar de piloto lhe daria.

LXXI.

 

Tal ódio lhe ficou e má vontade

Da resposta que aquele lhe tornou,

Que água lhe ordena dar com falsidade

Em lugar do licor que Noé deixou.

Oh que caso cruel! oh que maldade!

Que de uma só palavra que soltou

Deste que ele buscava como amigo

O faz ficar seu pérfido inimigo!

LXXII.

 

Partiu-se nisto André, sem companhia

Dos bêbados que tinha despedido,

Com engano seu e grande cortesia,

O gesto ledo a todos e fingido.

Já sobre seu asninho se subia

Com vinho de que ia apercebido,

E quando se desceu no aposento

Não levava a borracha mais que vento.

LXXIII.

 

Da rua das adegas o Tebano,

Que da paternal coxa foi nascido,

Olhando o ajuntamento tão ufano,

Ser do seu bom André aborrecido,

No pensamento cuida um falso engano

Com que seja de todo destruído.

E em quanto isto n'alma imaginava

Um borrachão tomando assim falava.

LXXIV.

 

Está do Fado já determinado

Que em tantas bebedices tão famosas

Se tenham destes bêbados achado,

As suas taças sempre vitoriosas;

E eu Baco tão sublime e tão honrado

Bêbado, e mais de partes tão honrosas,

Hei de sofrer que o Fado favoreça

Outrem por quem meu copo se escureça?

LXXV.

 

Já quiseram os Fados que tivesse

Esta gente vitória nesta parte,

Cujos campos o Tejo reverdece;

E que com tanto vinho não se farte!

Pois não se há de sofrer que o Fado desse

A tão poucos tamanho esforço e arte,

Que venham beber vinho transtagano,

Abatendo o grã nome do Tebano.

LXXVI.

 

Não será assim: porque antes que chegado

Seja Vasco Bagulho, astutamente

Lhe será tanto engano fabricado,

Que nunca beba de Ev'ra o vinho ardente.

A Montemor irei, e o indignado

Peito revolverei do bom bebente:

Porque sempre per via irá direita

Aquele que no vinho água não deita.

LXXVII.

 

Isto dizendo irado e quase insano

Nesse Montemor fresco se desceu,

Onde tomando a forma e gesto humano,

Para onde estava o Marques se moveu:

E por melhor tecer o astuto engano,

No gesto natural se converteu

De Talha-manco muito seu valido,

Um Taverneiro velho conhecido.

LXXVIII.

 

Estando assim bebendo co'ele a horas

Á sua falsidade acomodadas,

Lhe diz como eram gentes roubadoras.

Estas que ora de novo são chegadas,

Que das gentes nas vendas moradoras

Correndo a Fama veio que roubadas

Foram por estes homens que passavam,

Que sob capa de paz sempre ancoravam.

LXXIX.

 

E sabe mais, lhe diz, como entendido

Destes bêbados tenho bagulhentos,

Que deixam Ribatejo destruído

Em beber com incêndios violentos:

E trazem já de longe o engano urdido

Contra nós; que todos seus intentos

São para os nossos vinhos esgotarem,

E pipas, toneis, quartos, despejarem.

LXXX.

 

E também sei que tem determinado

Da virem buscar vinho aqui mui cedo,

Mas ter-lhe-emos um tal ardil traçado

Que não cheguem a ver o de Louredo.

Á justiça darás logo recado

Que estes galantes prenda, que sem medo

Pelo caminho roubam, pela estrada,

E só com furtos bebem na jornada.

LXXXI.

 

E se assim não tivermos deste feito

Impedido o caminho totalmente,

Eu tenho imaginado no conceito

Outra manha e ardil que te contente.

Manda-lhe aqui dar guia que de jeito

Seja astuto no engano e tão prudente,

Que os leve adonde sejam submergidos,

Onde a água dê fim a seus sentidos.

LXXXII.

 

Tanto que estas palavras acabou,

O Tridentino André, bêbado velho,

Os braços ao pescoço lhe lançou,

Agradecendo muito o tal conselho.

Em se apartando dele concertou

Para os poder prender todo o aparelho,

Com que em puro desgosto lhe tornassem

De Évora o vinho puro que buscassem.

LXXXIII.

 

E busca mais para o cuidado engano

Um homem que dali com ele mande,

Sagaz, astuto, sábio em todo o dano,

De quem fiar se possa um quarto grande.

Diz-lhe que acompanhando o Alcochetano

Por ribeiras, por charcos com ele ande,

Que se daqui passar, que lá adiante

Vá cair onde nunca se levante.

LXXXIV.

 

Já o carro de Apolo caminhava

Pelo nosso horizonte, quando erguido

O bom Vasco co’os seus determinava

De vir por vinho à terra apercebido.

Os borrachões a gente desatava,

Corre-se cada qual não ter bebido;

E do que à venda veio novamente

Beberam todos logo em continente.

LXXXV.

 

Assi se vem chegando junto à terra

Para tomar o vinho necessário;

Mas o Marques o vinho todo encerra

Só pelo não beber o seu contrário.

Porém Vasco Bagulho que não erra

Em não se fiar deste adversário,

Apercebido vem como podia

E entra em Montemor com alegria.

LXXXVI.

 

O grão Marques que o vê logo desmaia,

Diz à Justiça que ande aparelhada

De pistolete, chuça e azagaia,

De rodela, de casco e boa espada;

E que em dando recado logo saia,

Porque tome esta gente atordoada.

E para que melhor isto se faça

Vai-se beber com eles per negaça.

LXXXVII.

 

Bebendo André co'a gente sequiosa,

Andam os beleguins fora espreitando,

E co'a chuça e azagaia perigosa

Ao Marques se entraram acenando.

Mas a gula que estava desejosa

De beber, sem recado vão entrando.

Qualquer se lança ao copo tão ligeiro,

Que nenhum dizer pode que é primeiro.

LXXXVIII.

 

Qual pobre ajuntamento de estudante

De quatro, cinco ou seis de camarada

Que vê que é pouco o vinho e não bastante,

Que há para todos só uma canada;

Qualquer deles pretende andar diante,

Por lhe não tocar vez esfarrapada:

Tal pressa há nos de fora e nos da terra,

Mas todos se vão já chegando à serra.

LXXXIX.

 

Eis no estomago o fumo se levanta

Da furiosa e quente companhia,

Que de tal modo bebem que se encanta

O vendeiro que o vinho lhes vendia.

A multidão dos fumos era tanta

Do vinho que à cabeça lhes subia,

Que logo o Alcaide foge de medroso,

De que o Marques ficou mui desgostoso.

XC.

 

Não deixam os que ficam sua empresa,

Mas o muito que bebem mal os trata,

Que se o beber tomavam por defesa,

Esse mesmo beber os desbarata.

Alegres ficam todos sem tristeza,

Já julgam a amizade por barata,

E trocam seus enganos à porfia

Pelo amor que do vinho lhes nascia.

XCI.

 

Vai-se cada um a casa retirando,

Porque quer vomitar muito apressado;

Quem arrota, e ali vai engulhando,

Na boca mete a mão desatinado.

O vendeiro fugiu, desamparando

A venda, do beber amedrontado;

Gloriam-se os que ficam do seu braço

Que a tantos afugenta em breve espaço.

XCII.

 

Uns deixam por ali suas espadas,

Dos outros quem a leva não o sente;

Quem se deixa cair às três passadas,

Quem bebe o vinho e o deita juntamente.

Arrombam as medidas às pancadas,

Á parede se arruma o mais valente;

Assim que a gente dantes inimiga

Com tão alto beber se torna amiga.

XCIII.

 

Passando isto, fica a camarada

Com gosto de haver feito tal empresa;

Manda logo fazer de vinho aguada,

Porque dali não quer outra riqueza.

Ficou a alma do Marques magoada,

No ódio antigo mais que nunca acesa;

E vendo sem vingança tanto dano,

Somente estriba no segundo engano.

XCIV.

 

Torna-se a eles, tendo-a já cozido,

Levando alguns refrescos que há na terra,

Com um frasco de vinho mui comprido,

Mas sob capa de paz armado em guerra.

Piloto lhe oferece conhecido,

Dizendo que em tais vias jamais erra,

Com o qual se fizesse o que esperava,

Que a Évora os levaria confiava.

XCV.

 

O grã Vasco Bagulho, a quem convinha

Fazer já seu caminho desejado,

Que Borrachões não poucos cheios tinha,

Para buscar Louredo tão amado;

Recebendo o piloto que lhe vinha,

Foi dele alegremente agasalhado.

Despede-se com grã contentamento,

Co’o guia, sem saber o falso intento.

XCVI.

 

Destarte despedida a gente honrada,

Começou a seguir o falso guia.

Não tinham meia légua bem andada,

Quando do bom caminho se desvia.

O bom Vasco que não caía em nada

Do grande engano que este tal lhe urdia,

Dele mui largamente se informava

A que parte Louredo lhe ficava.

XCVII.

 

Mas o guia instruído nos enganos

Que o malvado do Marques lhe ensinara,

Leva-os por partes onde cruéis danos

E morte em fim em águas lhe prepara.

Diz-lhes que vão contentes, vão ufanos,

Que mui prestes verão a terra cara;

Porque ele caminhava por tal via,

Que cedo a Peramanca os levaria.

XCVIII.

 

E diz-lhes mais, com falso pensamento,

Que esta via por mais breve tomou,

Posto que um rio tem, mas sem tormento

E sem perigo sempre se passou.

O Bagulho que a tudo estava atento,

Muito com estas novas se alegrou;

E com grandes copadas lhe rogava

Os levasse por donde o porto estava.

XCIX.

 

O falso guia, porque determina

Dar-lhe porto, mas não qual ele pede,

Posto em Rio Marinho lho imagina

Num pego que em altura os mais excede.

Aqui o engano e a morte lhe maquina,

Para que tal beber com pressa vede;

E para o porto verem logo os chama

Onde lhe arma perderem vida e fama.

C.

 

Já para lá inclina a leda frota

E em chegando ao rio da cilada,

Um descalça o sapato, o outro a bota,

Para ir buscar a morte não cuidada.

Chega um bêbado nisto, que remota

Lhe parece esta gente e enganada,

E com duras palavras repreendia

De entrarem em tal pego a ousadia.

CI.

 

Mas o malvado guia conhecendo

Ser manifesto o engano, num instante,

Se vai por uns outeiros acolhendo,

Corrido de não ir a sua avante.

Os outros que ficavam 'stão tremendo,

Cuidando que ‘inda o engano era diante;

Mas o que os tirou dele, mui contente

Lhes diz que irá com eles juntamente.

CII.

 

Ficam todos então com alegria,

Bebem e dão de beber ao que os guiava.

Um olha para o céu, e diz que via

Mais luas do que dantes costumava.

Duas luas a mi, Senhor, dizia,

Ao Mouro, ao infiel que vos agrava.

Outro a um tronco diz; bebei, Senhora,

Senão deitar-vos-ei os olhos fora.

CIII.

 

E tendo esta ribeira já passada,

Onde os quis afogar o falso guia,

A torre apareceu numa assomada

Onde matou Giraldo a má vigia.

Á mão direita fica situada

Uma povoação de que bebia

A gente principal da nossa idade,

Peramanca é o nome da cidade.

CIV.

 

E sendo o capitão aqui chegado

Estranhamente ledo, porque espera

De ser ali mui bem agasalhado

Dos refrescos que há naquela terra:

Eis vem frascos de vinho com recado

De Diogo que sabe a gente que era,

Porque Baco já dantes o avisara

Que de bom vinho ali os regalara.

CV.

 

Agasalha-os a todos como amigos;

Preza-se já cada um de falar certo,

Dando conta de todos os perigos,

Que em caminho passaram tão desertos.

Não curam de lhe dar uvas nem figos,

Mas o licor que deixa o olho esperto.

Quer imitar cada um o grã Barbança

Que pôs neste licor sua esperança.

CVI.

 

Aqui já vem tomar, livre de engano

Anda esta gente pouco conhecida,

E debaixo de um vil e pobre pano

Tão alta bebedice anda escondida,

Quem bebe vinho velho, quem deste ano,

Dum e doutro se entorna sem medida.

E assim favoreceu o Céu sereno

A quem deixou por vinho o seu terreno.

 

 

 

 

FIM.