Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

 Textos literários em meio eletrônico

Hespérides, de Carvalho Júnior


Texto-fonte:

REEL — Revista Eletrônica de Estudos Literários, Vitória, a. 3, n. 3, 2007.

ÍNDICE

Profissão de fé

Nêmesis

Antropofagia

O perfume

Lusco-fusco

Símia

Ambae florentes

Cena de bastidor

Febre cibária

Margarida Gautier

Plástica

Esboço

Après le combat

Ídolo negro

Sulamita

Adormecida

Helena

For ever

A nova sensação

En attendant

A ***

No álbum de um colega

 

I

Profissão de fé

Odeio as virgens pálidas, cloróticas,

Belezas de missal que o romantismo

Hidrófobo apregoa em peças góticas,

Escritas nuns acessos de histerismo.

Sofismas de mulher, ilusões ópticas,

Raquíticos abortos do lirismo,

Sonhos de carne, compleições exóticas,

Desfazem-se perante o realismo.

Não servem-me esses vagos ideais

Da fina transparência dos cristais,

Almas de santa e corpo de alfenim.

Prefiro a exuberância dos contornos,

As belezas da forma, seus adornos,

A saúde, a matéria, a vida enfim.

 

II

Nêmesis

Há nesse olhar translúcido e magnético

A mágica atração de um precipício;

Bem como no teu rir nervoso, cético,

As argentinas vibrações do vício.

No andar, no gesto mórbido, spleenético

Tens não-sei-quê de nobre e de patrício,

E um som de voz metálico, frenético,

Como o tinir dos ferros de um suplício.

És o arcanjo funesto do pecado,

E de teu lábio morno, avermelhado,

Como um vampiro lúbrico, infernal,

Sugo o veneno amargo da ironia,

O satânico fel da hipocondria,

Numa volúpia estranha e sensual.

 

III

Antropofagia

A Fontoura Xavier, poeta socialista.

Mulher! ao ver-te nua, as formas opulentas

Indecisas luzindo à noite, sobre o leito,

Como um bando voraz de lúbricas jumentas,

Instintos canibais refervem-me no peito.

Como a besta feroz a dilatar as ventas

Mede a presa infeliz por dar-lhe o bote a jeito,

De meu fúlgido olhar às chispas odientas

Envolvo-te, e, convulso, ao seio meu t’estreito:

E ao longo de teu corpo elástico, onduloso,

Corpo de cascavel, elétrico, escamoso,

Em toda essa extensão pululam meus desejos,

— Os átomos sutis, — os vermes sensuais,

Cevando a seu talante as fomes bestiais

Nessas carnes febris, — esplêndidos sobejos!

 

IV

O perfume

A Artur de Oliveira

Unge-te a pele fina e cetinosa

Um perfume sutil, insinuante,

Igual à planta da Ásia venenosa,

Cuja sombra atraiçoa o viandante;

O nardo, o benjoim e a tuberosa,

As tépidas essências do Levante,

Do meio-dia a flora luxuosa,

De cores e de aromas abundante,

Não disputam-lhe o passo, a primazia,

Nem produzem-me a lânguida apatia

Que em noites de verão, lentas, calmosas,

Sinto quando debruço-me em teu seio,

Afogando-me em morno devaneio

Num mar de sensações voluptuosas.

 

V

Lusco-fusco

Da alcova na penumbra andavam flutuando

Em tênue confusão fantasmas indecisos,

Gerados ao fulgor da luz reverberando

Nos límpidos cristais e nos dourados frisos.

Era como um sabbat fantástico e nefando!

Das velhas saturnais talvez tivesse uns visos

A enorme projeção das sombras vacilando

Esguias e sutis sobre os tapetes lisos.

Havia no ambiente uns mórbidos perfumes;

Os bronzes, biscuits, se olhavam com ciúmes

Nos dunkerques, de pé, por dentro das redomas.

Enquanto eu, sem temor, ao lado de uma taça,

Um conto oriental relia entre a fumaça

Dum charuto havanês de excêntricos aromas.

 

VI

Símia

Sobre uma página de Baudelaire.

Assim como os painéis, aos quadros inspirados,

Embora perfeições, adorna-os a moldura,

Que, apesar de excluir o exato da pintura,

Vem destacar a tela aos olhos fascinados;

Igualmente o cold-cream, as tintas, os frisados,

Não te empanam sequer a rara formosura,

E em meio do aranzel dessa Babel impura

Os teus encantos mil eu vejo realçados.

Tudo parece amar-te e condizer contigo;

E quando num abraço afetuoso, amigo,

Cambraias e cetins envolvem-te sem pejo

O belo corpo nu, febril e palpitante,

Tens o gesto, o ademã e a graça triunfante

Duma infantil macaca ao som dum realejo.

 

VII

Ambae florentes

a C. F.

São ambas louras e finas

Como as virgens esboçadas

Nas amplas telas divinas

Das escrituras sagradas.

Duas irmãs peregrinas,

Entre mimos educadas,

Brasileiras genuínas,

Polidas e delicadas.

Mas não sei por que debique,

(Dessas pilhérias cediças,

Que não há quem as explique)

Além de serem postiças,

Dizem todos que por chic

Intitulam-se suíças.

 

VIII

Cena de bastidor

Entre aplausos gerais findara o ato.

Na plateia faziam comentário

Do desempenho e luxo do seu fato,

Do mérito da peça e do cenário.

Para saudá-la um batalhão compacto

De amantes, inclusive o empresário,

Esperava na caixa timorato

Que ela trocasse a roupa, o vestuário.

Baldado intento! O pálido galã

Repete a cena ao vivo com afã

No camarim, beijando-lhe a madeixa.

O pano vai subir; porém que importa?

E quando o contra-regra bate à porta

Mal pode a bela responder à deixa.

 

IX

Febre cibária

Num divã reclinada, em desalinho,

Ardendo toda em lúbricos desejos,

Alvoroçados ao vapor dos vinhos,

Que não pagara-lhe os ardentes beijos,

A cortesã, no solitário ninho,

À sua viuvez lia uns motejos...

Era casado o amante, e foi caminho

Dos penates... após meros cortejos.

Tinha, contudo, uma esperança vaga:

Uma aventura, a aparição de um mito,

Uma dessas visões que a mente afaga.

‘Stava quase descrente, quando um grito

De surpresa escapou-lhe. Era Malaga,

King-charles educado e favorito.

 

X

Margarida Gautier

Dir-se-ia uma paixão, ao menos na aparência;

Na desordem febril, no fogo que emanava

Do seu olhar de onix, vivaz fosforescência,

Tremeluzindo a flux, ardente como a lava.

Outras vezes sombria em presa da influência,

Dum profundo pesar, de apreensões escrava,

Odiava o passado e instava a Providência

P’ra abençoar-lhe o afeto, o amor que a dominava.

Arrependida assim, qual nova Madalena,

Conquista a admiração do mundo que a condena,

E dos bardos gentis merece a apoteose.

A ciência, porém, que estuda e não se ilude,

Rejeita a redenção, descrê dessa virtude,

Recusa o sentimento e afirma — uma nevrose.

 

XI

Plástica

Quando tombam-te aos pés as roupas elegantes,

As rendas, os cetins, as nuvens de brocados,

Que envolvem-te o perfil, as carnes deslumbrantes,

Como as névoas do inverno os montes anilados,

Deixando-me entrever-te as formas palpitantes

De seiva e de calor, os traços arqueados,

Os flácidos quadris, as curvas cintilantes,

Do contorno polido ocultos predicados:

Não sinto dentro em mim ferverem-me os desejos,

Nem tento consumir-te ao fogo dos meus beijos,

Esplêndida mulher, formosa cortesã!

Apenas te contemplo extático, enlevado,

Como o artista que vê palpável, animado,

Um molde escultural de inspiração pagã.

 

XII

Esboço

D’après-nature.

Je suis belle, ó mortels! comme un rêve de pierre,

Et mon sein, où chacun c’est meurtri tour à tour,

Est fait pour inspirer au poète un amour

Eternel et muet ainsi que la matière.

Ch. Baudelaire, Les fleurs du mal.

No dorso azul cetíneo da otomana,

À frouxa luz do gás, amortecida,

Numa pose indolente de sultana

Ou de estátua pagã, jaz estendida.

O correto Ideal da forma humana,

A Estética no mármore esculpida

P’la crença grega, sensual, profana,

Nela se reproduz, sendo excedida

Por uns retoques mais, indefiníveis,

Que as estátuas marmóreas, impassíveis,

Não poderiam nunca traduzir;

Por uns lampejos dúbios, infernais,

Como o brilho fulgente dos metais

 Agudos como a ponta dum fakir!

 

XIII

Après le combat

Quando, pela manhã, contemplo-te abatida,

Amortecido o olhar e a face descorada,

Imersa em languidez profunda, indefinida,

O lábio ressequido e a pálpebra azulada,

Relembro as impressões da noite consumida

Na lúbrica expansão, na febre alucinada

Do gozo sensual, frenético, homicida,

Como a lâmina aguda e fria de uma espada.

E ao ver em derredor o grande desalinho

Das roupas pelo chão, dos móveis no caminho,

E o boudoir enfim do caos um fiel plágio,

Suponho-me um herói da velha antiguidade,

Um marinheiro audaz após a tempestade,

Tendo por pedestal os restos dum naufrágio!

 

XIV

Ídolo negro

Tens o perfil sombrio e monstruoso

Das frias divindades indianas,

Cujo culto feroz e sanguinoso

Se alimenta de vítimas humanas.

Fazes do vício o teu sinistro gozo,

E o sangue de teus crentes espadanas,

Moderna Jaghernat, mito assombroso,

Da marcha de teu carro entre as hosanas.

Inspiras-me a paixão desordenada,

Que anima a consciência depravada

Do Thug, cuja sede não se acalma

Assassinando em honra ao atroz Siva;

E como deusa Kali, — a vingativa –,

És o ídolo negro da minha alma.

 

XV

Sulamita

Vogavam no ambiente os tépidos vapores

Dos vinhos do festim, fogosos, aloirados

Aos prismas dos cristais brilhantes, irisados,

Dum luxo oriental de excêntricos lavores.

Nas jarras do Japão emurchecidas flores

Trescalavam sutis perfumes saturados,

Pelo fumo do gás e do álcool misturados,

Subindo em espirais pesadas, incolores.

A um canto do salão, numa otomana escura,

Jazia seminua a bela sibarita

Em doce embriaguez, a pálpebra cerrada.

Um tipo sensual! A lúbrica estrutura

Da beleza da Bíblia — a casta Sulamita, –

O amor de Salomão na Página Sagrada!

 

XVI

Adormecida

Quando vejo-te assim, do sono na indolência,

Dilatado o contorno algente, acetinado,

Entumecido o seio, e um tom fresco e rosado

Tingindo-te da carne a rica florescência;

Quando vejo o abandono, a mórbida aparência

Do teu corpo em nudez, imóvel e prostrado

Como se fora morto; apenas agitado

Pelo fluxo do sangue em plena efervescência;

E mais a trança negra, a trança que se espraia

Na vaga dos lençóis, na espuma da cambraia,

Trescalando o perfume incômodo de Orizza,

Aos flancos de teu leito, abutres esfaimados,

Meus instintos sutis negrejam fileirados,

Bem como os urubus em torno da carniça.

 

XVII

Helena

A Lopes Trovão.

Cruzamos um olhar veloz como um fuzil,

Um único, o primeiro, e desde esse momento

Feriu-me vivamente o teu régio perfil

A ponto de esquecer-me o nono mandamento.

A história desse amor tantálico, febril,

Amor italiano, audaz e ciumento,

Que teve a duração de um sonho em mês de abril

E viveu do perigo ao mágico elemento,

É a história comum dos dramas do adultério,

Que tem a seu favor a musa do mistério,

Os reclamos da carne e as seduções do crime.

Teu marido, porém, já tarda a deitar cena,

É um novo Menelau, burguês a fazer pena...

E um fastio de morte há muito nos oprime...

 

XVIII

For ever

Fugiste-me! Que importa? Em toda a tua vida

Arraigou-se este amor, mais forte que o destino!

Seu eco há de seguir-te o passo peregrino,

Não tentes abafá-lo; hás de ficar vencida!

Liga-nos a saudade — algema denegrida!

Na espádua, no quadril, qual garra de Ugolino,

Selei-te com meu lábio ardente e purpurino,

Que por onde roçou deixou-te uma ferida.

Na massa do teu sangue, em cada artéria ou fibra,

Nas rijas pulsações, em ti constante vibra

A força varonil dessa infernal paixão.

Cada um beijo que eu dei-te e mais cada carinho,

Eu sei que te há de ser horrível pelourinho,

Bem como cada abraço um guante de prisão!

 

XIX

A nova sensação

A propósito d’O Primo Basílio.

Sentado ali juntinho em atitude ufana

Num puff de cetim, — dispéptico, suado,

O cabelo revolto, arfando de cansado,

Ele a contempla nua em cima da otomana.

Enquanto ela indolente e mórbida se abana,

A boca e o lábio seco, o rosto machucado,

Por um tremor nervoso o corpo inda agitado

Na febre da volúpia histérica e tirana.

Então a se esvair no derradeiro espasmo,

Com um gesto de enfado e mágoa e de sarcasmo,

Tediosa e sutil murmura-lhe a uma orelha:

“Ora! o Primo Basílio é mesmo uma antigualha!

Estás muito atrasado, ó pálido canalha!

A nova sensação pra mim é muito velha!”

 

XX

En attendant

Nas costas de um retrato de Castro Alves.

Onde estás que não ouves meus suspiros,

Peregrina andorinha da minh’alma?

Debalde por ti clamo!... tudo é mudo

Na alcova triste, solitária e calma.

E tudo aqui a me falar de ti!

O puff aonde assentas os pezinhos,

A otomana azul onde repousas

Nas horas em que vemo-nos sozinhos!

As poltronas vazias e dispersas,

O espelho dourado, a jardineira,

O toucador, altar dos teus encantos,

A isolada e gentil conversadeira!

Teu leito é um deserto árido e triste,

Vasto Saara do amor abandonado!

Murmura-me o teu nome o travesseiro,

E saudoso balouça o cortinado.

Vem, Nini! não tardes, estou viúvo!

Em meio desta noite escura e fria

Vem aquecer-me ao fogo de teus beijos,

Andorinha do amor, ave erradia!

 

XXI

A ***

Improviso.

Um beijo teu val’ mais que o mundo inteiro

E mais que a eternidade o teu amor:

Humilha-se o universo às tuas plantas;

Não és filha, és irmã do Criador.

 

XXII

No álbum de um colega.

Agora que é chegado o fim da romaria

E o grau de bacharel, há tanto cobiçado,

Vai breve nos livrar daqui, d’Academia,

Forçoso é que ao partir, cada um para seu lado,

Digamo-nos adeus. Amigo, a primazia,

Aceito-a com prazer, não quero ser rogado,

Unidos como irmãos na dor e na alegria,

De primeiro escrever neste álbum reservado.

Por isso eu te consagro aqui neste soneto

Um voto de afeição que nem por um decreto

Jamais esquecerei, nem mesmo sendo velho.

Deixamo-nos aqui. Se não vier a morte,

Havemo-nos de ver algures, quando a sorte

Quiser nos dar lugar de Estado no Conselho.