Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Quincas Borba, de Machado de Assis


Edição de Referência[1]:

Assis, Machado de. Quincas Borba. Apêndice.

Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; INL, 1977.

I

— Então, Doutor, como vou?

— Vae bem. Estas molestias são demoradas, mas o senhor vae bem. Tomou o remedio?

— Tomei.

— Ás horas marcadas?

— Creio que sim. Não foi, Rubião?

Rubião, que estava familiarmente sentado na cama, confirmou a resposta. Havia alli ainda outra creatura, deitada no chão, com a cabeça levantada, olhando para o medico, interrogativo: era um cão, o cão do doente, que mal sahia do quarto, desde longas semanas.

O doutor levantou-se, para sahir; deu algumas indicações ao doente e ao amigo, e despediu-se de ambos; voltaria no dia seguinte. Rubião foi acompanhal-o até o patamar da escada. No patamar:

— Então? perguntou Rubião.

— Perdido, completamente perdido. Viverá pouco tempo. Não posso repor-lhe as visceras estragadas; mas vá confirmando o que digo. Para que tornar-lhe a morte mais afflictiva pela certeza...

— Lá isso, não; para elle é a causa mais indifferente deste mundo. Nunca leu um livro que elle escreveu, ha annos, não sei que negocio de philosophias...

— Não; mas philosophia é uma cousa, e morrer de verdade é outra; adeus.

Rubião, voltou ao quarto; entrou prazenteiro, para obedecer ao medico, mas era certo que vinha constrangido. O doente estava de lado, junto á beira da cama, affagando o cachorro, que lhe lambia a mão.

— Que te disse elle? Vocês fallaram em particular.

— Disse o mesmo que tinha dito, demora necessaria, muita cautella, nada de imprudencias...

As palavras de Rubião não lhe sahiam naturalmente nem persuasivas; mas podiam illudir a um doente, e foi o que lhe pareceu. Acabou e fallou de outro assumpto. O doente, porém, abandonára o cão, que voltou a deitar-se ao pé da cama, desta vez com a cabeça entre as patas,e os olhos meio-cerrados; e voltando-se em cheio para o amigo que lhe servia de enfermeiro, disse rindo:

— Tu e o medico são dous empulhadores de marca maior...

Rubião ficou sério e confuso. Empulhador, elle? Não; lá se o medico mentia... Nem podia mentir, porque dissera-lhe a mesma cousa em particular. Doente era sempre desconfiado. Não, senhor, d'ahi a poucas semanas podiam ir á rua, e logo depois a cavallo... E então é que era ver outra vez o que era o Quincas Borba... Ouvindo este nome, o cão deu um salto, e foi ter com o Rubião, que o acolheu com gestos de amigo, affagando-lhe as orelhas, batendo-lhe na anca, e dizendo-lhe, a rir, mas a rir mal:

— Não é comtigo, é com teu senhor, pelintra.

Aqui, toda a gente que me fez o favor de ler as Memorias posthumas de Braz Cubas, lembra-se, — póde ser que se lembre — de que apparece alli, em tres ou quatro capitulos, um tal Quincas Borba, e pergunta e cuida naturalmente que é o mesmo.

Cuida bem. Mas não é preciso ler as Memorias; basta saber que é o mesmo, e que vae morrer, como disse o medico. Póde ir, que não precisamos delle. Que fosse creança graciosa, mendigo algum tempo, herdeiro inopinado e inventor de uma philosophia, não temos nada com isso. Quando muito, é bom saber (e aqui lh'o digo) que alguns annos antes, um medico suppôz que este Quincas Borba tinha um grãosinho de sandice, cousa de nada (está no cap. CLIII das Memorias), é bom sabel-o para explicar algumas disposições testamentarias do homem, que vae morrer d'aqui a pouco.

Repito que não precisamos delle, e a terra que lhe seja leve; só precisamos do nome do homem, e não pelo homem, senão pelo cão, por este mesmo cão que o amigo enfermeiro acarinha, explicando-lhe que quando fallou em Quincas Borba não se referia a elle, mas ao senhor. O que quer dizer, em duas palavras, que o nome era commum ao cachorro e ao dono.

II

Rubião fazia festas ao cachorro; esfregou-lhe as orelhas com as mãos espalmadas, beijou-o acima dos olhos, e quiz excital-o a dar pulos: mas o cão, como se tivesse melhor comprehensão da inconveniencia do rumor, ao pé do doente, olhou triste para a cama, e foi deitar-se ao pé da cabeceira.

Quincas Borba, commovido, olhou para Quincas Borba:

— Meu pobre amigo! meu bom amigo! meu unico amigo!

— Unico! disse-lhe Rubião, da janella, onde fôra concertar a posição das cortinas por causa do sol que ia entrando.

— Desculpa-me, tu tambem o és, bem o sei, e agradeço-te muito; mas a um doente perdoa-se tudo. Talvez esteja começando o meu delírio. Deixa ver o espelho.

— Para que? Você afflige-se átoa; doente tem cara de doente; não quer dizer nada.

— Que affligir-me o que, Rubião? Quero ver só até que ponto o medico e tu são dous mariolas. Dá cá o espelho.

Rubião deu-lhe o espelho. O doente contemplou por alguns segundos a cara magra, o olhar febril, com que descobria os suburbios da morte, para onde caminhava a passo lento, mas seguro. Depois, deixando cair o espelho, fallou ao Rubião com um sorriso pallido e ironico:

— Mentirosos! Tudo o que está cá fora corresponde ao que sinto cá dentro; vou morrer, meu caro Rubião... Não gesticules, vou morrer

Rubião desmentia com o gesto; mas, ou porque não tivesse a força necessaria para mentir bem, ou por qualquer outra razão particular, o gesto era frouxo, era quasi meia confissão. Tirou-lhe o espelho, sorrindo amarello, vexado de não poder confessar tudo. Fez alguns arranjos na quarto; depois pegou em jornaes, para lel-os ao doente, como era costume: mas o doente disse-lhe que antes da leitura, mandasse chamar o tabellião; queria fazer testamento.

— Testamento? repetiu o outro estremecendo.

E disse-lhe que não, que se deixasse disso, mas não alcançou nada; creio que lhe faltava o talento da persuasão, creio tambem que as palavras já lhe sahiam da alma desejosas de ser inuteis. O doente teimou, elle não teve remedio, e obedeceu; foi dentro e deu as indicações precisas ao pagem, que era o mais intelligente dos famulos. Voltou depois ao quarto do doente; passando por.uma sala, foi a um espelho, concertar a expressão do rosto. Os musculos recusavam-se: mas uma bella perspectiva dá vontade ao animo, e este pôde então reagir sobre a face e compol-a. Foi assim que dali a pouco entrou no quarto uma especie de monge compassado e tristonho, pegou dos jornaes, e começou a ler melancolicamente as primeiras noticias politicas.

(Continúa.)

III

Mas que Rubião é este? E, antes, de tudo onde estamos nós? Estamos, por ora, em Barbacena, Minas Geraes. Logo que aqui chegou, Quincas Borba namorou-se de uma viuva, dama de condição mediana, e parcos meios de vida; mas tão recatada e medrosa, que os suspiros do namorado ficaram sem troco. Chamava-se Maria da Conceição. Um irmão della,. que é o presente Rubião, fez tudo o que poude para vêr se os casava; mas nem um nem outro estavam por isso. Quando ele começou a inclinar-se ao casamento, era tarde; Maria da Conceição apanhára uma febre typhoide, e falleceu em menos de uma semana.

Se a dôr de ambos foi egual, não se póde saber com certeza; mas o facto é que Rubião perdia uma irmã querida e uma esperança pecuniaria. Rubião era um desenganado da politica. Vivia de ser professor, officio em que ia já cançado; mas de todas as ambições antigas ficara-lhe uma: a do dinheiro. Antes de ser professor, metteu-se em tres emprezas, que naufragaram todas; não podendo ser nada, nem ter nada, destinou-se ao ensino, para comer alguma cousa, e morrer em alguma parte.

Foi por esse tempo que alli appareceu o nosso Quincas Borba, não já moço, mas levando comsigo a bella agua de Juventa chamada apolice. Seguiu-se a tentativa de namoro e logo depois a morte da viuva. Rubião acreditou que o ser elle caipora é que fez morrer a irmã; mas, como as relações entre os dous estavam já travadas, a morte da viuva ligou-os ainda mais que a vida.

Quincas Borba tivera alli alguns parentes, mortos já agora, em 1867; o ultimo foi o tio que o deixou por herdeiro de um bom par de contos de réis. Dos conhecidos antigos restavam poucos; e Rubião teve a arte de os arredar a todos.

IV

Não é só a riqueza, a miseria tambem deixa as suas heranças, menos faceis de dissipar, antes propicias á accumulação de juros. Quincas Borba patinhára na miseria, algum tempo; não saiu de lá com as mãos abanando, e as molestias, que aliás também se contrahem na opulencia, mais depressa as apanhou elle quando não tinha onde dormir. Não esqueçamos tambem o grãosinho de sandice, que cooperou em pol-o nas mãos do Rubião, porque a attenção deste, obsequiosa e paciente, não se cançava de ouvir-lhe a exposição das doutrinas novas, que elle trazia de cór, fazendo-lhe crer que as entendia, quando era certo que não entendia nada.

Rubião teve um rival, — o cão que vimos ha pouco, ao pé da cama, cão ainda novo, bonito, e que adorava o senhor, como a um deus. Era mediano, algo pelludo e côr de café. Quincas Borba levava-o para toda a parte, dormiam na mesma alcova. De manhã, era o cão que acordava o senhor, indo latir de manso, ao pé do leito, trocavam alli as primeiras saudações. Uma das extravagancias do dono foi dar-lhe o seu proprio nome, e explicava isto por dous motivos, um doutrinario, outro particular.

— Desde que Humanitas, segundo a minha doutrina, é o principio da vida e reside em toda a parte, conforme a graduação dos seres e das cousas, existe tambem no cão, e este póde assim receber um nome de gente, seja christão ou mussulmano...

— Bem, mas porque não lhe deu antes o nome de Bernardo, disse Rubião que tinha o pensamento no seu rival politico da localidade.

— Esse agora é o motivo particular. Se eu morrer antes, como presumo, sobrevivirei no nome do meu bom cachorro.

Rubião concordou tambem com este motivo, embora in petto achasse que nem um nem outro valiam nada; e chegou a descobrir um terceiro motivo, a saber, que as qualidades daquelle cão eram tão finas e     superiores que não ficava mal honral-as com um nome tão distincto. Em seguida cuidou de amar o cão, tanto ou mais que o dono, caminho certo para entrar no coração do Quincas Borba. O cão, pela sua parte, affeiçoou-se ao novo amigo e companheiro do senhor.

V

Rubião leu as noticias dos jornaes, alguns retardados: mas a cabeça do doente já ligava mal as cousas, e ouvia com o mesmo interesse o extracto de um discurso e o annuncio de um emplasto. Os minutos voavam, Rubião estava impaciente com a demora do tabellião. Começava a parecer-lhe desde alguns dias que o Quincas Borba não regulava bem, e temia que a loucura formal se declarasse, antes do testamento. Afinal chegou o tabellião. Veiu o pagem á porta do quarto annuncial-o.

— Quem é?

— O tabellião, explicou Rubião; você não o mandou chamar?

— Parece que sim... Ah! sim, é verdade, o testamento: que entre, que entre.

Quando o tabellião se retirou de casa com as testemunhas, Rubião bem quizera adivinhar quaes tinham sido as disposições do enfermo a seu respeito. Pareceu-lhe que vira no rosto do tabellião alguma cousa singular e animadora, uma expressão de assombro e curiosidade, quando olhou para elle á despedida; mas quanto seria? — ficava sempre esta duvida relativa á importancia do legado. Fosse o que fosse, Rubião desvelou-se como até alli.

Um dia, no principio da outra semana, o doente levantou-se com ideia de ir côrte, voltaria no fim de um mez, tinha certos negocios. Rubião ficou espantado; como ir á côrte? e a molestia? e o medico? O doente respondeu que o medico era um charlatão, e que a molestia precisava de espairecer, tal qual a saude. Molestia e saude eram irmãs gemeas: a differença é que uma era magra e pallida, a outra corada e robusta. E, posto que elle dissesse isto com voz ainda fraca, parecia realmente melhor; não obstante, Rubião teimou que ficasse. Quincas Borba concordou sómente em não ir logo; ficaria alguns dias a tomar alento. Depois exigiu de Rubião que não confiasse aquelle seu proposito ao medico.

— Vou a alguns negocios pessoaes, concluiu elle, e levo, além disso, um plano tão sublime, que nem mesmo você poderá entendel-o. Desculpe-me esta franqueza; mas eu prefiro ser franco com você a sel-o com qualquer outra pessoa.

Rubião fiou do tempo que esta ideia lhe passasse como tantas outras; mas enganou-se; a ideia era fixa, unica e fascinante. Accrescia que, em verdade, o doente parecia estar melhorando; passeava na varanda, depois saiu á rua; no fim de trez dias, declarou que ia á côrte; era só um mez de ausencia, nada mais.

— Está claro que eu não o deixo ir só, disse Rubião; vamos juntos.

— Não, não, accudiu o doente.

— Mas você sósinho?

— Tres a quatro semanas; levo dous pagens. Demais, Quincas Borba não vae, e quero que você fique tomando conta delle. Cuide delle, sim? Jura?

— Que ideia! Pois então?... Fica como se fosse você proprio.

— Deixo a casa como está. Daqui a um mez estou de volta. Não quero que elle presinta a minha sahida. Cuide delle, Rubião.

— Já lhe disse que sim.

— Jura?

— Por esta luz que me allumia. Então sou alguma creança?

— Dê-lhe leite ás horas apropriadas, as comidas todas de que elle gosta, e os banhos; e quando sahir a passeio com elle, olhe que elle não vá fugir. Não, o melhor é que elle não saia... não saia...

— Vá socegado.

— Quincas Borba chorava pelo outro Quincas Borba. Não quiz vel-o á sahida. Chorava deveras, lagrimas de loucura ou de affeição, quaesquer que fossem, elle as ia deixando pela boa terra mineira, como o derradeiro suor de sua alma obscura, prestes a cahir no abysmo.

(Continúa.)

VI

Tão alegre! tão philosopho! e sae-se com lagrymas, chora miseravelmente por um cão! Lagrymas verdadeiras, não ha negal-o; o Rubião viu-as cahir, e o sol as alumiou no momento em que ellas desciam pela face abaixo. Verdadeiras são; mas porque? Já está dito: é o tal grãosinho de sandice que lhe entrou no cerebro, semente que dá tudo, desde a lagryma até á cutilada. Rubião creu nellas, porque as viu, e porque sabia bem a estima que elle tinha ao cão; mas vós todos...

Vós que passaes pelo caminho da vida, alegres como eternos rapazes, duvidaes certamente do que estou contando. Cá trarei uma dessas lagrymas, daqui a pouco, fechada n'uma bocetinha antiga, e mostral-a-hei tão verdeira e tão amarga como no dia em que brotou dos ohos do nosso Quincas Borba.

Repito: o Rubião, que as viu, não precisou de outra prova. Viu-as, despediu-se, e foi calado para casa.

VII

Em casa, passadas muitas horas, é que lhe acudiu uma ideia terrifica. Podiam crer que elle proprio incitara o outro a viagem, para o fim de o matar mais depressa, e entrar na posse do legado, se é que realmente estava incluso no testamento. Rubião ficou aturdido um dia inteiro; tinha vergonha e remorsos. Via na imaginação o cadaver do Quincas Borba, pallido, horrendo, fitando nelle um olhar de ameaça, ou, mais exactamente, abrindo-lhe dous oculos para a eternidade, pelos quaes via o julgamento e o castigo. Rubião era temente a Deus, e a acção pareceu-lhe tão immoral que elle resolveu, se acaso o fatal desfecho se désse em viagem, abrir mão do que o outro lhe tivesse deixado em testamento. Só assim pôde passar tranquilo a segunda noite.

Quincas Borba (fallo agora do cão) é que não a passou mais tranquillo que a primeira; não podia dormir socegado, levantava-se de quando em quando para ir ganir ao pé da cama do Rubião. Este tinha o somno pesado, e não ouvia nada. O cachorro gania, levantava as patas, gania mais, e voltava a dormir; mas dormia pouco e tornava á mesma lamuria. De manhã, Rubião chamava-o á cama, e o cão acudia alegre; imaginava talvez que era o proprio dono; via depois que não era, mas aceitava as caricias, e fazia-lhe outras, como se Rubião tivesse de levar as suas ao amigo, ou trazel-o para alli. Demais, havia-se-lhe affeiçoado tambem, e para elle era a unica ponte que o ligava á existencia anterior.

Não comeu durante os primeiros dias. Supportando menos a sede, Rubião pôde alcançar que bebesse leite; foi a unica alimentação por algum tempo. Passava as horas, calado, triste, a um canto, enrolado em si mesmo, ou então com o corpo estendido e a cabeça entre as mãos. Se ouvia algum rumor, levantava logo a cabeça; mas não era o amigo, era algum escravo ou o proprio Rubião que entrava. Se era este, o cão ia ter com elle, fazia-lhe algumas festas, e acabava ganindo. Ás vezes dava-se no cão um phenomeno, que Rubião dizia serem saudades. Perto havia uma casa em construcção; os trabalhadores levantavam os lagedos ao som de cantigas, que embora destinadas a animal-os no trabalho, tinham uma toada melancolica. Eram já do tempo do enfermo; o cão, que as ouvira outr'ora, não podia ouvil-as agora sem inquietação, e logo depois abatimento. Rubião dizia que eram saudades.

Certo é que o nosso homem cuidava delle como de um filho; não olvidou nenhum dos cuidados recommendados pelo dono. Nisto levava tres fins: cumprir a palavra dada, impedir a fuga do cão, que seria dolorosa para o dono ausente, e podia trazer algumas reformas testamentarias, e finalmente conseguir da parte do cão tamanho affecto que o dono, quando voltasse, achasse nisso mesmo a melhor prova de que obedecêra em tudo. Mas voltaria elle? Eis ahi o ponto escuro.

VIII

Quem voltou dahi a quatro dias, foi o medico; tinha ido a algumas legoas da cidade, e apenas chegou correu á casa do Quincas Borba. Soube pelo Rubião tudo o que succedera; espantou-se da temeridade do doente, disse que deviam tel-o impedido de sahir, e acabou declarando que o doente podia acabar mais cedo, ou mais tarde, mas a morte era certa; estava perdido. Podia ser até que o abalo da viagem...

Rubião enfiou.

— Que o abalo da viagem, concluiu o medico, lhe dê alguns pingos de vida; mas pingos só, e poucos.

Rubião readquiriu a côr natural, e ficou alegre.

— Se quer que lhe diga, respondeu elle, até me parecia melhor quando saiu daqui. Pergunte ao collector, que ficou admirado... Estava outro.

— Levou o tal cachorro? perguntou o medico abrindo o relogio.

— Não, senhor; ficou commigo; pediu que cuidasse delle, e chorou, olhe que chorou que foi um nunca acabar. Verdade é, disse ainda Rubião para defender o enfermo, verdade é que o cão merece a affeição do dono: parece gente.

O medico tirou o largo chapéo de palha para concertar a fita; depois sorriu. Gente? Com que então parecia gente? Rubião insistia, depois explicava: não era gente como a outra gente, mas tinha cousas de sentimento, e até de juizo. Olhe, ia contar-lhe uma...

       — Não, homem, não, logo, logo; vou a um doente de erysipella... Se vierem cartas delle, e não forem reservadas, desejo vel-as, ouviu?

E lembranças ao cachorro, concluiu elle sahindo.       

Não foi só o medico, os conhecidos da cidade começaram a mofar dele e da singular incumbencia de guardar um cão, em vez de ser o cão que o guardasse a elle. Vinha a risota, choviam as alcunhas. Em que havia de dar o professor! sentinela de cachorro! Rubião tinha medo da opinião, e chegou a achar que, em verdade, era ridículo: fugia aos olhos extranhos, o mais que lhe era possivel: em casa, chegava a olhar com fastio para o cachorro; dava-se ao diabo, arrenegava da vida...

IX

No fim de sete semanas. recebeu elle uma carta do Quincas Borba, datada da corte... Não lhes tinha eu promettido uma lagryma de Quincas Borba? dou-lhes uma perola. Ao cabo, é a mesma cousa; aqui vae ella, perola ou lagryma:

"Meu caro senhor e amigo.

"Você hade ter extranhado o meu silencio. Não lhe tenho escripto por certas cousas, e depois como em breve estarei de volta, etc... Mas agora escrevo para contar um achado que fiz, uma suspeita que tenho, cousa muito seria, reservada, reservadissima.

"Rubião, sabe você a ideia que me anda cá no cerebro? Rubião, creio que sou Santo Agostinho. Sei que ha de sorrir, porque você é um ignaro, Rubião; a nossa intimidade permittia-me dizer cousa peor, mas faço lhe esta concessão, que é a ultima. Ignaro.!

 "Ouça, ignaro. Sou Santo Agostinho; descobri isto ante-hontem, aqui em casa do meu amigo Braz Cubas, cujo hospede sou, e que é um grande homem; mas não lhe disse nada. Estavamos conversando, quando, de repente, sem nenhum proposito, pensei em Santo Agostinho. O vir fóra de proposito é que me fez impressão; evidentemente era uma suggestão de Humanitas. Corri á bibliotheca do meu amigo, e verifiquei que eramos a mesma ressoa.

"Ouça, e cale-se. O santo e eu passámos uma parte da vida nos deleites e na heresia; ambos furtámos, elle em pequeno umas peras de Carthago, eu, já rapaz, um relogio do meu amigo Bras Cubas. Nossas mães eram religiosas e castas. Enfim, elle pensava, como eu, que tudo o que existe é bom, e assim o demonstra no cap. xvi, livro vii das Confissões, com a differença que para elle, o mal é um desvio da vontade, illusão propria de um seculo atrazado, concessão ao erro, pois que o mal nem mesmo existe, e só a primeira affirmação é verdadeira; todas as cousas são boas, omnia bona, e adeus.

"Adeus, ignaro, etc. Mande dizer o que houver de novo... Ah! e o meu pobre Quincas Borba? Tem chorado muito? tem comido? faça por elle tudo, tudo, tudo; diga-lhe que eu volto daqui a algumas semanas. Não, você não é ignaro; é o meu amigo, o amigo dos dous Quincas Borbas. Ouviu? Adeus, até breve, vou daqui a dias, amanhã, etc. — Joaquim Borba dos Santos."

Rubião leu e releu a carta: não havia duvida, Quincas Borba estava completamente doudo. Nisto muitas ideias entraram-lhe no cerebro; elle atordoado, ficou a olhar para o chão.

X

Nesse mesmo instante, entrou-lhe o medico em casa. Rubião só deu por elle, quando já o tinha deante de si. Ergueu-se fazendo um gesto para esconder a carta, mas o medico foi direito ao assumpto.

— Já sei que recebeu noticias do nosso homem.

Recebi, respondeu Rubião.

— É essa carta?

— É esta, mas...

— Tem alguma cousa reservada?

— Justamente, traz uma confissão reservadíssima. Imagine que é cousa que elle nem disse ao proprio amigo em cuja casa está... Permitte-me?

E pegando da carta guardou-a na algibeira do rodaque. Começou a querer fallar alegre, mas as palavras sahiam-lhe da boca tropegas, como desvairadas, alguma cousa que indicava que o conteudo da carta era azedo. Já sabemos que era o naufragio mental do Quincas Borba, agora claro e decisivo; e se elle se apresentasse alli no dia seguinte, e se a loucura fosse manifesta, e se o testamento, o legado...

Nada disso o medico adivinhou; viu só que a carta affligio-o, e tratou de fallar da politica local e das ultimas febres; depois vieram notícias de Ouro Preto, onde parece que o Presidente não andava bem... Rubião arregalava os olhos, batia nas mãos, abria a boca, affirmava de cabeça ou de palavra, mas todo elle estava na carta e no autor da carta.

Quando o medico sahiu, a alma de Rubião torceu se em remorsos; devia ter-lhe entregue a carta. E certo que trazia uma confissão particular e reservada, mas sabendo elle que o homem estava louco, porque negar esse documento que podia aproveitar á sciencia, á justiça? Rubião tinha remorsos faceis, mas de pouca dura. Considerou que o Quincas Borba voltava no dia seguinte, e então era arriscar-se a ser arguido por elle, se soubesse que mostrára a carta ao medico; o doente podia dizer-lhe as cousas mais humilhantes, e elle as merecia, e muito, podia tirar-lhe o triste legado...

A ideia do legado foi balsamo sobre balsamo; a alma do homem começou a calcular o que seria. Não podia ser menos de dez contos; compraria um pedaço de terra, levantaria uma casinha em que se mettesse, e tinha onde morrer tranquillo. O peor é se fossem cinco... Cinco? Era pouco; mas enfim, talvez não passasse disso, ninguem pode ir á mão de um ingrato ou de um avaro. Cinco era pouco, mas cinco que fossem, era um arranjo menor, mas antes menor que nenhum.

XI

Assim foi elle pensando, naquelle dia e nos quatro dias seguintes. No quinto recebeu os jornaes do costume (assignaturas ainda do Quincas Borba), abriu um delles, e deu com esta noticia:

"Falleceu hontem o Sr. Joaquim Borba dos Santos, tendo supportado a molestia com singular philosophia. Morreu em casa do nosso amigo Braz Cubas, que o era delle desde o tempo da escola. Borba era homem de muito saber, e cansava-se em batalhar contra esse pessimismo amarello e enfesado que ainda nos ha de chegar aqui um dia, por desgraça nossa; é a molestia do seculo. A ultima palavra delle foi que a dor era uma illusão, e que Pangloss não era tão tolo como o inculcou Voltaire... Já então delirava. Deixa muitos bens. O testamento está em Barbacena onde foi feito e registrado."

XII

Rubião leu isto por alto, só as ultimas palavras é que entendeu bem. Estremeceu, uma claridade rapida, como o de uma vela, que passasse defronte delle, ou de seu sorriso reprimido, deu-lhe á cara uma expressão exquisita que elle reprimiu logo. Depois veiu a tristeza, pelo menos a seriedade, uma melancolia sui generis, porque elle relia a noticia, como para pôr carvão na machina, mas a machina não deitava lagrimas. Entretanto, recordou os carinhos de Quincas Borba, os obsequios que lhe merecera, abanou a cabeça e suspirou... Não me digam que se póde suspirar, querendo. Suspirou: Rubião era grato aos obsequios. Não chorou, mas suspirou.

E heis de notar que elle estava entre quatro paredes frias e indifferentes, tão indifferentes que, se elle, em vez de suspirar, désse quatro pulos, era para ellas a mesma cousa. Não tinha testemunhas: entrou a passear, pensando e suspirando, e dizendo ás vezes:

— Pobre Quincas Borba!

Uma das vezes fallou mais alto, e o cão veiu ter com elle. Rubião abaixou-se e coçou-lhe a cabeça; depois disse comsigo:

— Agora, que já acabou a obrigação, vou dal-o á comadre Angelica.

E olhando para elle:

— Pobre Quincas Borba, se elle podesse saber que o senhor morreu.

XIII

A noticia correu a cidade; o agente do Correio, que tambem a lera, veiu trazer ao Rubião uma carta para elle; podia ser do Quincas Borba, comquanto a lettra do subscripto fosse outra.

— Então a final o homem espichou a canella? disse elle, emquanto Rubião abria a carta, corria á assignatura e lia: Braz Cubas. Era um simples bilhete.

"O meu pobre amigo Quincas Borba falleceu hontem em minha casa, onde appareceu ha tempos esfrangalhado e sordido: fructos da doença. Antes de morrer pediu-me que lhe escrevesse, que lhe désse particularmente esta noticia, e muitos agradecimentos; que o resto se faria, segundo as praxes do foro."

Os agradecimentos fizeram empallidecer o professor; mas as praxes do foro restituiram-lhe o sangue ás faces. Rubião fechou a carta sem dizer nada; o agente fallou de uma cousa e outra, depois sahiu.

Rubião ordenou a um escravo que levasse o cachorro á comadre Angelica, dizendo-lhe que, como gostava muito de bichos, lá ia mais um; que o tratasse bem, porque o dono o acostumara a isso; disse tambem ao escravo que lhe désse noticia da morte do Quincas Borba.

XIV

Nunca uma noiva assistiu aos preliminares do casamento tão tremula e medrosa como o nosso Rubião assistiu dalli a dias, depois de feitas todas as diligencias judiciaes, á abertura do testamento. Não era testamento, era o marmore de La Fontaine: sera-t-il dieu, table ou cuvette? Tal era a pergunta silenciosa que fazia a alma do professor. Cuvette que fosse, era um pedaço de artista. E elle olhava e ouvia as primeiras palavras sacramentaes do papel, impaciente de ouvir o seu nome... Cá está o nome...

Rubião quasi caiu para traz. Elle, o Rubião, era nomeado herdeiro universal dos bens do Quincas Borba. O escrivão leu muito espevitadamente esse pedaço: herdeiro universal dos bens, com uma só clausula, com a clausula de ter comsigo o cão, e cuidar delle até á morte.

(Continúa.)

XIV

(Continuação)

Não era bem assim, era mais explicada a clausula. Depois de dizer que ficava por seu universal herdeiro o seu particular amigo Rubião José de Castro, e de especificar os bens que deixava, casas de morada na côrte, uma em Barbacena, apolices, acções do Banco do Brazil e de varias companhias, escravos, etc. estabelecia o testador que, para a herança havia uma condição fundamental, a de guardar o herdeiro consigo o seu pobre cachorro Quincas Borba, nome que lhe dera por motivo da grande affeição que lhe tinha. Exigia do dito Rubião que o tratasse como se fosse a elle proprio testador, nada poupando em seu beneficio, resguardando-o de molestias, de fugas, de roubo ou de morte que lhe fosse dada por maldade; cuidar finalmente como se cão não fosse, mas pessoa humana. Item, impunha-lhe a condição, quando morresse o cachorro, de lhe dar sepultura decente em terreno proprio, que cobriria de flores e plantas cheirosas; e mais desenterraria os ossos do dito cachorro, quando fosse tempo idoneo, e os recolheria a uma urna de madeira preciosa para deposital os no lugar mais honrado da casa.

XV

Ahi tem a clausula inteira. Não a queria dar por medo de aborrecer o leitor nem a leitora, pessoas principaes em tudo isto, e ás quaes não desejo mais que saude e tempo. Ahi tem a clausula. Que é exquisita, não ha duvida; mas eu não heide inventar um testamento nem mentir á minha historia só pelo gosto de pôr aqui uma clausula vulgar. Toda a questão é que o herdeiro não a achasse humilhante.

Não a achou; achou-a natural, embora nos primeiros minutos, só pensasse claramente na herança. Espreitára, pedira aos ceos um legado, e sae-lhe do testamento a massa toda dos bens. Rubião não quiz crer; foi preciso que algumas pessoas o comprimentassem e lhe apertassem muito as mãos, com força, — com a força dos parabens — para que acabasse crendo que era herdeiro universal.

— Sim, senhor, lavre um tento, dizia-lhe o dono da pharmacia que ministrara os remedios ao Quincas Borba.

Herdeiro já era muito; mas universal... Esta palavra como que inchava as bochechas á herança. Herdeiro de tudo, nem uma colherinha de menos... E quanto seria tudo? ia elle pensando. Casas, apolices, acções, escravos, roupas, louça, alguns quadros, que elle teria na Corte, porque era homem de muito gosto... Fallava de cousas de arte com grande saber. E livros? devia ter muitos livros, citava muitos delles... Mas em quanto andaria tudo? Cem contos? Talvez duzentos. Era possível; tresentos mesmo não havia que admirar. Tresentos contos! tresentos! E o Rubião tinha impetos de dansar na rua. Depois aquietava-se; duzentos que fossem, ou cem, era um sonho que Deus Nosso Senhor lhe dava, mas um sonho comprido, para não acabar mais...

Aqui a ideia do cachorro pôde tomar pé no torvelinho de ideias que iam pela cabeça do nosso homem. Rubião achava que a clausula era natural, mas desnecessaria, porque elle e o cão eram dous amigos e nada mais curial que ficarem juntos, para lembrar o terceiro amigo, o extincto, o autor da felicidade de ambos... Havia, é certo, umas particularidades na clausula, uma historia de urna, e não sabia que mais; mas tudo se havia de cumprir, ainda que o ceo viesse abaixo... Não, com a ajuda de Deus, emendava elle. Bom cachorro! excellente cachorro!

Tudo se baralhava na cabeça do Rubião, — e, no meio de tudo, este grave problema, se — iria viver na Côrte, ou se ficaria em Barbacena. A ideia de ficar não era má; dava lhe umas cocegas de brilhar onde escurecia, de quebrar a castanha na boca aos que se riam delle; mas a Corte, que elle conhecia, com os seus attractivos, movimento, theatros em toda a parte, mulheres na rua, muitas, com vestidos de franceza... Nada; iria para a Corte; estava cansado de viver escondido.

XVI

— Quincas Borba! Quincas Borba! eh! Quincas Borba! bradou elle entrando em casa.

Nada de Quincas Borba. Só então é que elle se lembrou de havel o mandado dar comadre á Angelica. Correu á casa da comadre, que era longe da cidade. De caminho acudiram-lhe todas as ideias feias á cabeça, algumas extraordinarias. Uma ideia feia, é que o cão tivesse fugido. Outra extraordinaria é que algum inimigo, sabedor da clausula e do presente, fosse ter com a comadre, e roubasse o cachorro, e o escondesse ou matasse. Neste caso a herança... Passou-lhe uma nuvem pelos olhos; depois começou a vêr mais claro.

— Não conheço negocios de justiça, pensava elle, mas parece que não tenho nada com isso. A clausula suppõe o cão vivo ou em casa; mas se elle fugiu ou morreu... Não se hade inventar um cão; logo a intenção principal... Mas são capazes de fazer chicana... os meus inimigos... Não cumprida a clausula...

Aqui a testa e as costas das mãos do nosso homem ficaram em agua. Outra nuvem... E o coração batendo-lhe rapido, rapido... A clausula começava a parecer-lhe extravagante... Pois agora um cachorro? Désse o defuncto todo seu dinheiro á quem quizesse, mais obrigar a gente a cousas exquisitas... Era isso; era o caiporismo; quando o mal parecia extincto, lá vinha a ponta do rabo do diabo. Rubião pedia a Deus, promettia missas, dez missas... Mas lá estava a casa da comadre.... Rubião picou o passo; viu a propria comadre... Era ella? era, era ella, encostada á porta e rindo.

— Que figura que o senhor vem fazendo, meu compadre, disse ella ainda de longe. Meio tonto, jogando com os braços.

XVII

A comadre era muito feia. Peço desculpa de ser tão feia a primeira mulher que aqui apparece; mas as bonitas hão de vir. Creio até que já estão nos bastidores, impacientes de entrar em scena. Socegai, muchachas! Não me façaes cair a peça. Aqui vireis todas, em tempo idoneo... Deixai a comadre que é feia, muito feia.

XVIII

— Sinhá comadre, o cachorro? perguntou Rubião com indifferença, mas pallido.

— Entre, e sente-se, respondeu ella offerecendo-lhe um banco. Que cachorro?

— Que cachorro? tornou Rubião cada vez mais pallido. O que lhe mandei. Pois não se lembra que lhe mandei um cachorro para ficar aqui alguns dias, descansando a ver se... em summa, um animal de muita estimação... Não é meu... Veiu para... Mas não se lembra?

— Ah! não me falle nesse bicho! respondeu ella precipitando as palavras.

Era pequena, tremia por qualquer cousa, e quando se apaixonava, engrossavam-lhe as veias do pescoço. Repetiu que lhe não fallasse do bicho.

— Mas que lhe fez elle, sinhá comadre?

— Que me fez? Que é que me faria o pobre animal? Não come nada, não bebe, chora que parece gente, e anda só com o olho para fóra, a ver se foge...

Rubião respirou. Ella continuou a dizer as melancolias do bicho; fallava com taes ternuras que (Deus me perdõe!) que até parecia bonita. Rubião, ancioso, queria ir vel-o. Onde estava?

— Está lá no fundo, no cercado grande; está só para que os outros não bulam com elle. Mas o meu compadre vem buscal-o? Não foi isso o que me disseram. Pareceu-me ouvir que era para mim, que era dado...

— Daria cinco ou seis, se pudesse, respondeu Rubião com ar contricto. Este não posso; sou apenas depositario. Mas deixe estar, prometto-lhe um filho. Ha uma cadellinha que veiu de Inglaterra... Creia que o recado veiu torto.

Rubião ia mentindo e andando; e a comadre, em vez de o guiar, acompanhava-o. Lá estava o cão, dentro do cercado, deitado a distancia de um alguidar de comida. Cães, gatos, saltavam de todos os lados, cá fóra; a um lado havia um gallinheiro, mais longe porcos, e alli perto um bonito pavão, que era o feitiço da comadre.

— Olhe o meu pavão! dizia ella ao compadre.

Rubião tinha os olhos no cercado. O cão ouvindo passos, deu um salto, e veio á cerca farejar; logo que o nosso homem lhe poz a mão e fallou, houve uma explosão de prazer, de delirio. Rubião entrou no cercado, e então é que foi uma scena de commover a feia Angelica. Ella, do lado de fóra, olhava enternecida, tão enternecida que não podia fallar. Quando elles sahiram do cercado, ella ainda fez ao cachorro alguns Carinhos: elle correspondeu-lhe, mas pouco, rapido, toda a sua felicidade estava agora no Rubião. Perdera um deus, aqui estava outro deus.

(Continúa.)

XIX

Passemos o inventario, passemos a estrada de ferro, passemos alguns mezes.

XX

Aqui está o nosso Rubião no Rio de Janeiro. Vês aquella figura de pé, com os polegares mettidos no cordão atado do chambre, á janella de uma linda casa da praia de Botafogo? É o nosso homem. Olha para a enseada; faz comsigo a reflexão de que se todo o mar fosse assim era um espelho. Depois lança os olhos pela praia, de uma ponta a outra; a casa delle fica mais ou menos no centro. Não conhece nada tão bonito: uma ordem circular de casas e jardins, deante de uma bacia de agua quieta, montanha ao fundo, como um panno de theatro.

— Theatro... theatro... murmura elle, aqui se podia representar muito bem um idylio piscatorio.

Saltam-lhe da cabeça dous ou tres versos de um idylio de Bocage, e elle recita-os, mas quasi que sem attender ao que diz, porque o momento em que o nosso Rubião se acha é daquelles em que a alma, não se podendo conter em si mesma, derrama-se nas cousas externas, vagamente, como os olhos, em certas occasiões, olham sem ver. De quando em quando rufa com os quatro dedos na barriga, costume que apprendeu com um dos hospedes da Hospedaria União, onde esteve logo que chegou de Barbacena.

Afinal elevam-se-lhe as reflexões; a alma póde meditar sobre si mesma. Ha um anno que era elle? Professor. Que é elle agora? Proprietario. Não ha duvida que tem saudades de Minas, da boa terra natal, dos seus costumes, dos seus dias de criança, rapaz e homem, e jura que lá irá em breve, uma e mais vezes. Mas não se trata de comparar terra com terra; trata-se de saltar do professor ao proprietario... Rubião olha para si, para a casa, para as chinellas (umas chinellas de Tunis, que lhe deu um recente amigo, Christiano Palha), para o jardim da frente, para a enseada, para a montanha e para o ceu, e tudo, desde as chinellas até o ceu, tudo entra na mesma sensação de propriedade.

— Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas, pensa elle. Se tenho casado a mana Marica como o Quincas Borba, apenas alcançaria uma esperança collateral. Não os casei; ambos morreram, e aqui está tudo commigo; de modo que o que parecia uma desgraça...

XXI

Aqui o pensamento parou, vexado de tanto egoismo; parou, recuou, e foi de uma cousa a outra cousa muito differente; mas o coração, educado nos mesmos principios, não o acompanhou na diversão, e deixou-se estar a bater de alegria. Que lhe importa o cavallo que alli passa na praia nem o cavalleiro que o monta, e que os olhos do Rubião acompanham com interesse, arregalados? Elle, coração, vae dizendo que foi muito bom que, uma vez que a mana Marica tinha de morrer, não se realisasse o consorcio; podia vir um filho ou uma filha... — Bonito cavalo! — Antes assim! — Cabeça levantada, dando ás crinas... — O certo é que ella está no ceu.

E o pensamento e o coração do homem, não podendo entender-se, cuidaram de ver assumpto que os reunisse, e foram direitinhos ao colo da bella Sophia...

XXII

Não era facil; tinham de galgar o espaço que ia dalli ao morro de Santa Thereza, mas subiram depressa, chegaram á porta do jardim; lá estava o bello collo, coberto por um chale, com uma cabeça engraçada por cima, e repousando sobre um corpo airoso e delicado. Póde ser que nem tudo fosse exactamente assim, mas a realidade accomodava-se do estylo, e demais (que é o que importa) essa era, e não outra a impressão do homem. Os olhos entraram desvairados, foram á dama, e rasgaram-lhe o chale, emquanto o coração ia batendo a marselheza do amor:

Liberté, liberte chérie!

Toda essa batalha mental e cordial foi interrompida pelo café, Rubião voltou-se e pegou na chicara que o creado lhe trazia. Emquanto punha assucar e mexia o café, ia disfarçadamente mirando a bandeja, que era de prata lavrada, cousa muito galante. Prata, ouro, eram os metaes que amava de coração; não gostava do bronze, mas o amigo Palha disse-lhe que era materia de preço, e assim se explica este par de figuras que aqui está na sala, um D. Quixote, e um Fausto. Tivesse, porém, de escolher, escolhia a bandeja, — primor de argentaria, execução fina e acabada.

As azas da bandeja estão enfiadas no dedos do creado, tezo, serio, soiças pretas, toda a mais cara rapada. É hespanhol; e não foi sem resistencia que o Rubião o aceitou das mãos de Christiano; por mais que lhe dissesse que estava acostumado aos seus creoulos de Minas, e que não queria línguas estrangeiras em casa, o amigo Palha insistiu, e demonstrou-lhe a necessidade de ter creados brancos. Rubião cedeu com pena. O seu bom pagem, que elle queria pôr na sala, como um pedaço da provincia, nem o pode deixar na cosinha, onde reinava um francez, Jean; foi degradado a outros serviços.

— Quincas Borba está muito impaciente? perguntou Rubião bebendo o ultimo gole de café, e lançando um último olhar á bandeja.

— Me parece que si.

— Lá vou

(Continúa.)

XXII

(Continuação)

Não foi; deixou-se ficar, algum tempo, a olhar para os moveis, e as cortinas. Vendo as pequenas gravuras inglezas, que pendiam da parede por cima dos dous bronzes, Rubião pensou outra vez na bella Sophia, deu alguns passos, e foi sentar-se no pouf, ao centro da sala, olhando para longe... muito longe...

— Foi ella que me recommendou aquelles dous quadrinhos, quando andavamos os tres, a ver cousas para comprar. Estava tão bonita! Mas o que eu mais gosto della são os hombros, que vi no baile do coronel. Que hombros! Parecem de cera: tão lisos, tão brancos! Os braços tambem: oh! os braços! Não, nunca vi cousa assim.

Rubião suspirou, cruzou as pernas, e bateu com as borlas do chambre sobre os joelhos. Via que não era inteiramente feliz; mas via tambem que não estava longe a felicidade completa. Recompunha de cabeça uns modos, uns olhos, uns requebros sem explicação, a não ser esta, que ella o amava, e que o amava muito... Não era velho: ia fazer quarenta e quatro annos; e, rigorosamente, parecia menos. Esta ideia foi acompanhada de um gesto: passou a mão pela cara, barbeada todos os dias, cousa que não fazia d'antes, por economia e desnecessidade. Um simples professor! Mas agora, aqui, no coração do imperio, era indispensavel trazer a cara limpa. Usava soiças; e notou que ellas eram macias, e que dava gosto passar os dedos por ellas... Todos esses movimentos, ideias e memorias, esses e ainda outros, que omitto por brevidade, eram todos como riachos que iam ter a um só rio, azul, sereno, profundo e mysterioso.

XXIII

Não procureis esse rio em cartas geographicas. Nenhumas dellas dá; os mesmos livros calam-se a respeito de um curso d'agua tão importante.

"Todos vós que tendes sede, vinde ás aguas" clama o propheta Isaias; e o nosso Rubião sentiu dentro de si esta exhortação bíblica, logo que, pela primeira vez, deu com os olhos na agua convidativa e pura. Não trazia ideias adequadas ao encontro; vinha de Minas com a herança na cabeça, o testamento, o inventario, uma commenda, cavalos, bonitos cavallos; mas ainda assim, não se pôde ter que não admirasse uma obra tão engraçada, aguas claras, margens verdes, curso sinuoso, sem cachoeiras, nem nada.

XXIV

Foi na estação de Vassouras; foi ahi que Sophia entrou no trem de ferro, vindo daquella cidade, aonde fôra passar uma semana. Vinha com o marido, Christiano de Almeida e Palha, — um rapagão de trinta e dous annos; ella não passaria de vinte e sete. Pouca gente no carro; e toda ella carrancuda ou aborrecida. Rubião era o unico rosto alegre e placido. Tal foi o primeiro encontro. No fim de poucos minutos, Rubião e Christiano conversavam de varias cousas, lavoura, gado, estrada de ferro, que o Palha execrava, um pouco de politica. Christiano foi o primeiro que rompeu o silencio; Rubião, que não desejava outra cousa, acompanhou-o francamente, largamente, opinando isto, aquillo. Sophia, á esquerda do marido (Rubião ficava á direita), inclinava-se ás vezes para ouvir alguma cousa.

— Vem ficar na Corte ou volta para Barbacena? perguntou o Palha no fim de tres quartos de hora de conversação.

— Creio que fico, acudiu Rubião; estou cançado da provincia; quero agora gozar a vida. Póde ser até que vá á Europa, não sei ainda.

Os olhos de Christiano brilharam instantaneamente.

— Faz muito bem, disse elle; eu faria o mesmo se pudesse; por agora, ao menos, não posso. Provavelmente, já lá foi?

— Eu? Qual!

— Dizem que ha muita cousa explendida; não admira, são mais velhos que nós. Mas lá chegaremos no que nos falta, porque em outras estamos a par delles e até acima. A nossa Corte, por exemplo, não digo que possa competir com Paris ou Londres, ou outras assim, mas tem muita cousa boa...

Rubião ouvia attento e risonho, agradecido das attenções de um homem que elle nunca vira antes. Estava morto por lhe dizer o motivo que o trazia á Corte; mas se o outro tinha algum desejo de o saber, não revellava nada; ia sempre fallando de cousas geraes, que a mulher sublinhava com os bonitos olhos que Deus lhe dera. Afinal, Rubião confessou que não iria á Europa ainda naquelles primeiros mezes.

— Não?

— Não posso; tenho de cuidar primeiro de um inventario. Que quer? Tive um amigo que se lembrou de fazer-me seu herdeiro universal.

— Sim?

— Universal.

— Verdadeiro amigo!

— Não imagina. E que cabeça profunda! que saber! Viveu doente os ultimos tempos, d’onde lhe veiu alguma impertinencia, alguns caprichos... Sabe, não? Homem rico e doente, de mais a mais solteirão, tem exigencias, tem cousas... Mas, o coração era de ouro. Herdeiro universal; é por isso que venho á Corte, e provavelmente ficarei por cá.

Aqui os olhos do Palha não faiscaram, reflectiam profundamente. Rubião mettera-se por um matto cerrado, onde lhe cantavam todos os passarinhos da fortuna; regalava-se em fallar da herança; não sabia ainda a somma total, mas podia calcular por longe...

— O melhor é não calcular nada, atalhou Christiano. E, outra cousa, se me permitte que lhe dê um conselho, atrevo-me; creio que é o melhor que póde ouvir, e nasce da natural sympathia que me inspirou.

— Diga...

— Não exponha o seu caso a pessoas extranhas; fel-o a mim, mas não o faça a outros; póde dar com algum espertalhão, que o prejudique em alguma cousa... Lisongea-me ter-lhe inspirado a mesma sympathia; a confiança é reciproca; mas confiança e sympathia nem sempre andam juntas.

Vieram assim fallando até á estação da Côrte, satisfeitos um do outro, quasi familiares. O casal Palha offereceu ao ex-professor a sua casa de Santa Thereza; este disse-lhe que ia para a Hospedaria União, e prometteram visitar-se.

XXV

Vinte e quatro horas depois, estava Rubião ancioso por ter ao pé de si o recente amigo do trem de ferro, e determinou ir a Santa Thereza no dia seguinte á tarde; mas foi o proprio Palha que o procurou, de manhã, na Hospedaria. Ia comprimental-o, ver se estava bem alli, ou se preferia a casa delle, que ficava no alto. Rubião agradeceu cordialmente, mas não aceitou a casa, iria lá para vel-os, isso sim: aceitou, entretanto, o advogado, um parente do Palha, que este lhe indicou, como um dos primeiros da Côrte, apezar de muito moço.

É aproveital-o, accrescentou rindo, é aproveital-o, emquanto elle não se faz pagar a nomeada.

Rubião apertou-lhe as mãos agradecido, e acompanhou-o ao escriptorio do advogado, apezar dos protestos do cão, que queria ir tambem, ou retel-os no quarto. O advogado era realmente moço, chamava-se Monteiro, e recebeu-os com affabilidade; alli ajustaram tudo. De tarde foi Rubião jantar a Santa Thereza, quasi á força, e ainda bem que houve força; não podia passar melhor as horas, não se recordava sequer de as haver tido tão excelsas, tão novas. Sophia era, em casa, ainda muito melhor que no trem de ferro. Lá usava a capa, embora tivesse os olhos descobertos; cá trazia á vista os olhos e o corpo, elegantemente apertado em um vestido de cambraia, mostrando as mãos que eram bonitas, e um principio de braço. Demais, aqui era a dona da casa, fallava mais, desfazia-se em obsequios; Rubião desceu de lá meio tonto.

(Continúa.)

XXVI

Jantou lá muitas vezes. Era timido e honesto; demais, a frequencia attenuou o alvoroço dos primeiros dias. Mas lá ficou sempre, guardado e mal guardado, certo fogo particular, que elle não podia extinguir. Emquanto durou o inventario, e principalmente a denuncia dada por alguem contra o testamento, allegando que o Quincas Borba, por manifesta. demencia, não podia testar, o nosso Rubião distrahiu-se. A denuncia fel-o chegar ao terror. Uma das razões do denunciante era a clausula do cão, que não se podia admittir, disse elle, sem reconhecer que o homem era doudo, a não estarem doudos os que tinham semelhante papel por valido. Christiano animava o amigo; dizia-lhe que o advogado dispunha de saber e capacidade para destruir aquelle obstaculo e outros ainda maiores. Era moço de muito talento, dedicado, arguto, e um dos primeiros... um dos primeiros...

Certo é que a denuncia foi destruida e o inventario caminhou rapidamente para a conclusão. Uma vez concluso, a alma de Rubião readquiriu o seu imperio. Já estava tão affeiçoado á ideia de propriedade, que a posse real dos bens não lhe sacudiu muito os nervos. Palha festejou o acontecimento com um jantar em que tomaram parte, alem dos tres, o advogado, o procurador e o escrivão. Sophia tinha nesse dia os mais bellos olhos do mundo.

— Parece que ella os compra em alguma fabrica mysteriosa, pensou elle, nunca os vi como hoje.

Seguiu-se a mudança para a casa de Botafogo, uma das herdadas; foi preciso alfaial-a, e ainda aqui o amigo Palha prestou grandes serviços ao Rubião, guiando-o com o gosto, com a noticia, acompanhando-o ás lojas e leilões. Ás vezes, como já sabemos, iam os tres; porque ha cousas, dizia graciosamente Sophia, que só uma senhora escolhe bem.

XXVII

Tudo isso passava agora pela cabeça do Rubião, depois do café, sentado no pouf, olhando para longe... muito longe... Afinal, lembrou-se de ir ver o Quincas Borba, e soltal-o... Levantou-se e foi ao jardim, ao fundo.

XXVIII

Conheci uma andorinha que definia assim o telegrapho electrico:

— É um fio de arame estendido sobre postes de madeira para uso exclusivo das andorinhas, quando ellas querem repousar um pouco.

Raciocinio de azas cansadas? Não. Sentimento de creatura, que subordina tudo aos seus sentimentos especificos. Digo isto para que vejam bem o que é o egoismo da especie. Tratámos de tudo o que se passou nos ultimos mezes, menos deste cão, origem e clausula da herança do nosso heroe. Verdade é que a historia delle, durante esse praso, é obscura, confusa, misturada de carinhos e pontapés. Rubião recommendava-o aos criados da Hospedaria, dava a estes alguma molhadura; mas a paciencia dos criados tem um limite, e a dignidade humana não póde ajustar-se muito tempo ao serviço canino: dahi os pontapés.

Mas pontapé era o menos: o que elle mais sentia eram as ausencias longas do Rubião; de noite, não dormia emquanto elle não voltava, para recebel-o, como nenhuma mulher amada recebe o seu noivo... Agora, por exemplo, no jardim quando Rubião desceu e abriu-lhe a porta, que alegria! que enthusiasmo! que saltos em volta do amo! Chega a lamber-lhe a mão de contente, mas Rubião dá-lhe um tabefe, que lhe doe; elle recua um pouco, triste, com a cauda entre as pernas; porém o senhor, dá um estalinho com os dedos, e eil-o que volta novamente com a mesma alegria.

— Socega! socega.! brada-lhe Rubião andando e pensando em outra cousa.

(Continúa.)

XXVIII

(Continuação)

Quincas Borba vae atraz delle, pelo jardim fóra, contorna a casa, ora andando, ora aos saltos. Saborea a liberdade, mas não perde o amo de vista. Aqui fareja, alli pára a coçar uma orelha, acolá, com os dentes, pesquiza uma pulga na barriga, mas de um salto galga o espaço e o tempo perdido, e cose-se outra vez com os calcanhares do senhor. Parece-lhe que Rubião não pensa em outra cousa, que anda agora de um lado para outro justamente para fazel-o andar tambem, e recuperar o tempo em que esteve preso na casinha de páo e grades. Quando Rubião estaca, elle olha para cima, esperando; naturalmente, cuida delle; é alguma ideia, algum projecto, ir com elle fóra, ou cousa assim agradavel. Não lhe lembra nunca a possibilidade de um pontapé ou de um tabefe. Tem o sentimento da confiança, e muito curta a memoria das pancadas. Ao contrario, os affagos ficam-lhe impressos e fixos, por mais distrahidos que sejam. Ama ser amado. Contenta-se de crer que o é.

A vida alli não é completamente boa nem completamente má. Ha um moleque que o lava todas as manhãs em agua fria, usança do diabo, a que elle se não acostuma. Jean, o cosinheiro, gosta d elle, — o criado espanhol não gosta nada. Rubião passa muitas horas fóra de casa; mas não o trata mal, e consente que elle vá acima, que assista ao almoço e ao jantar, que o acompanhe á sala ou ao gabinete. Brinca ás vezes com elle; fal-o pular. Se chegam visitas de alguma ceremonia, manda leval-o para dentro ou para baixo, e, resistindo elle sempre, o hespanhol toma-o a principio com muita delicadeza, mas vinga-se d'ahi a pouco, arrastando-o por uma orelha ou por uma perna, atira-o ao longe, e fecha-lhe todas as communicações com a casa:

— Perro del infierno!

Machucado, separado do amigo, Quincas Borba vae então deitar-se a um canto, e fica alli muito tempo, calado; agita-se um pouco, até que acha posição definitiva, e cerra os olhos. Não dorme, recolhe as ideias, combina, relembra; a figura vaga do finado amigo passa-lhe ao longe, muito longe, aos pedaços, depois mistura-se á do amigo actual, e parecem ambas uma só pessoa; depois outras ideias...

Mas já são muitas ideias, — são ideias demais; em todo caso são ideias de cachorro, poeira de ideias, — menos ainda que poeira, explicará o leitor. Mas a verdade é que este olha que se abre de quando em quando para fixar o espaço, tão expressivamente, parece traduzir alguma cousa, que brilha lá dentro, la muito, muito ao fundo de outra cousa que não sei como diga, para exprimir uma parte canina, que não é a cauda nem as orelhas. Pobre lingua humana!

Afinal adormece. Então as imagens da vida brincam nelle, em sonho, vagas, recentes, farrapos d'aqui, remendo d'alli. Quando acorda, esqueceu o mal; tem em si uma expressão, que não digo seja melancolia, para não aggravar o leitor. Diz-se de uma paizagem que é melancolica, mas não se diz egual cousa de um cão. A razão não póde ser outra senão que a melancolia da paizagem é de nós mesmos, é a sensação que esta nos traz por certas

combinações de forma e de côr, emquanto que attribuil-a ao cão é deixal-a fóra de nós. Seja tristeza, porque tambem a coruja é triste. Seja o que fôr, é alguma cousa que não é a alegria de ha pouco; mas venha um assobio do cosinheiro, ou um gesto do senhor, e lá vae tudo embora, como este sol da manhã em que escrevo, depois de tres dias de chuva aborrecivel.

XXIX

Rubião passou o resto da manhã alegremente. Era domingo; dous amigos vieram almoçar com elle, um rapaz de vinte e quatro anos, que roia as primeiras aparas dos bens da mãe, e um homem de quarenta e quatro ou quarenta e seis, que já não tinha que roer.

Carlos Maria chamava-se o primeiro, Freitas o segundo. Rubião gostava de ambos, mas differentemente; não era só a edade que o ligava mais ao Freitas, era também a indole deste homem. Freitas elogiava tudo, saudava cada prato e cada vinho com uma phrase particular, delicada, e sahia de lá com as algibeiras cheias de charutos, provando assim que os preferia a quaesquer outros. Tinha-lhe sido apresentado em certo armazem da rua Municipal, onde jantaram uma vez juntos. Contaram-lhe alli a historia do homem, a sua boa e má fortuna, mas não entraram em particularidades. Rubião torceu o nariz; era naturalmente algum naufrago, cuja familiaridade não lhe traria nenhum prazer pessoal nem consideração publica. Mas o Freitas attenuou logo, á mesa, essa primeira impressão; era vivo, interessante, anecdotico, alegre como um homem que tivesse cincoenta contos de renda. Como Rubião fallasse das bonitas rosas que possuia, elle pediu-lhe licença para ir vel-as: era doudo por flores. Poucos dias depois appareceu lá, ia ver as bellas rosas, eram poucos minutos, não se incommodasse o Rubião com elle, se tinha que fazer. Rubião, ao contrario, gostou de ver que o homem não se esquecêra da conversação, desceu ao jardim onde elle ficára esperando, e foi mostrar-lhe as rosas. Freitas achou-as admiraveis; examinava-as com tal affinco que era preciso arrancal-o de uma roseira para leval-o a outra. Sabia o nome de todas, e ia apontando muitas especies que o Rubião não tinha nem conhecia, — apontando e descrevendo, assim e assim, deste tamanho (indicava o tamanho abrindo e arredondando o dedo pollegar e o index), e depois dizia as pessoas que elle sabia possuirem magnificos exemplares. Mas as do Rubião eram das melhores especies; esta, por exemplo, era rara, e aquella tambem, etc. O jardineiro ouvia-o com espanto. Tudo examinado, disse Rubião:

— Venha tomar alguma cousa. Que hade ser?

Freitas contentou-se com qualquer cousa. Subiram; Freitas achou a casa muito bem posta. Examinou os bronzes, os quadros, os bibelots, olhou para o mar.

— Sim, senhor! disse elle, o senhor vive como um principe.

Rubião sorriu; principe, ainda por comparação, é palavra que se ouve bem. Veiu o creado hespanhol com a bandeja de prata, varios licores, e calices; e foi um bom momento para o Rubião. Offereceu-lhe elle mesmo este ou aquelle licor; recommendou-lhe afinal um que lhe deram como superior a tudo que, em tal ramo, poderia existir no mercado. Freitas sorriu incredulo.

— Talvez seja encarecimento, disse elle; olhe que eu co-nheço estas cousas como as palmas de minhas mãos.

Tomou o primeiro trago, saboreou-o devagar, depois segundo e afinal tudo. No fim, pasmado, confessou que era um primor; nunca bebera egual. Mas quem foi que lhe deu isto? Rubião explicou tudo, longamente, a pessoa, as circumstancias. Freitas pediu outro calice; e desta vez declarou que era sublime.

Não tardou muito que os dous se tornassem familiares; Freitas vae alli frequentemente, as vezes almoçar ou jantar, e o Rubião gosta d'elle, dos seus modos "expansivos e francos".

XXX

"Expansivos e francos! Imaginai o avesso disso, e tereis Carlos Maria; mas é o que a preguiça do leitor lhe não consente; ella quer que se lhe ponha aqui no papel a cara do homem, toda a cara, a pessoa inteira, e não ha fugir-lhe.

De mim digo que sou totalmente outro: arrenego de um autor que me diz tudo, que me não deixa collaborar no livro, com a minha propria imaginação. A melhor pagina não é só a que se relê, é tambem a que a gente completa de si para si. Tres linhas de Pascal dão cinco a oito minutos de reflexão. Vede aqui, por exemplo, certa ideia que sae do papel para a cabeça, entra na cabeça, e de manso accorda outra ideia, falla-lhe, a conversação das duas desperta outra, as tres mais outras, e ahi ficam dez ou doze, em boa, longa e familiar palestra.

XXXI

Eia, faze um exforço, leitor amado. Já te disse que este Carlos Maria é o avesso do Freitas, e se o outro tem os modos "expansivos e francos", — no bom sentido laudatorio, — claro é que elle os tem contrarios. Assim, não te custará nada vel-o entrar na sala, lento, frio e superior, ser apresentado ao Freitas, e estender-lhe a mão, olhando para outra parte. Freitas, que já o mandou cordialmente ao diabo, por causa da demora (é perto do meio dia), corteja-o agora rasgadamente, com grandes alleluias intimas.

Tambem podes ver por ti mesmo que o nosso Rubião, se gosta mais do Freitas, tem o outro em maior consideração; esperou-o até agora, e esperal-o-hia até amanhã. Carlos Maria é que não tem consideração a nenhum delles. Examinai-o bem; é um galhardo rapaz de olhos grandes e plácidos, muito senhor de si, e ainda mais senhor dos outros. Olha direito; não tem o riso jovial, mas escarninho. Agora, ao sentar-se á meza, ao pegar no talher, ao abrir o guardanapo, em tudo se vê que elle está fazendo um insigne favor ao dono da casa, — talvez dous, — o de lhe comer o almoço, e o de lhe não chamar patinho.

E, máo grado essa disparidade de caracteres, o almoço foi alegre. Freitas devorava, com alguma pausa, é certo, — e, confessando a si mesmo que o almoço, se tivesse vindo á hora marcada (onze) talvez não trouxesse o mesmo sabor. Agora orçava pelos primeiros bocados que acodem á fome do naufrago. Ao cabo de uns dez minutos, pôde começar a fallar; e fallou como de costume, cheio de riso, multiplicando-se em gestos e olhares, desfiando um rosario de ditos agudos e anecdotas picarescas. Carlos Maria ouviu a maior parte delles com seriedade, para humilhal-o, a ponto que o Rubião, que realmente achava graça no Freitas, já não ousava rir. Para o fim do almoço, Carlos Maria afrouxou um tanto a gravata do espirito, expandiu-se, referiu algumas aventuras amorosas de outros; Freitas, para lisongeal-o, pediu-lhe uma ou duas delle mesmo. Carlos Maria estourou de riso.

— Que papel quer o senhor que eu faça? disse elle.

Freitas explicou-se; não era uma apologia, eram factos, pedia-lhe factos; não havia inconveniente, nem ninguem era capaz de suppor...

— O senhor dá-se bem com a residencia aqui em Botafogo? perguntou Carlos Maria ao dono da casa.

Freitas, interrompido, mordeu os beiços, e, pela segunda vez, mandou o moço ao diabo. Collou-se ao espaldar, teso, grave, olhando para um painel da parede. Rubião respondeu que se dava bem, que a praia era linda.

— A vista é bonita, mas nunca pude tolerar o máo cheiro que ha aqui, em certas occasiões, disse Carlos Maria. Que lhe parece? continuou voltando-se para o Freitas.

Freitas desencostou-se, e disse tudo o que pensava, que um e outro podiam ter razão; — mas insistiu em que a praia, a despeito de tudo, era magnifica; fallou sem amúo, nem vexame; fez até o obsequio de chamar a attenção do Carlos Maria para um pedacinho de fructa que lhe ficara na ponta do bigode.

Chegaram ao fim, era pouco mais de uma hora. Rubião, calado, recompunha mentalmente o almoço, prato a prato, via com gosto os copos e os seus residuos de vinho, as migalhas esparsas, o aspecto final da meza, em vesperas de café. De quando em quando dava um olhar á casaca do criado. Chegou a apanhar o rosto de Carlos Maria em flagrante prazer, quando tirava as primeiras fumaças de um dos charutos que elle mandara distribuir. Nisto entrou o criado com uma cestinha coberta por um lenço de cambraia, e uma carta, que acabavam de trazer.

XXXII

— Quem é que manda isto? perguntou Rubião.

— D. Sophia.

Rubião não conhecia a lettra; era a primeira vez que ella lhe escrevia. Que podia ser? Via-se-lhe a commoção no rosto e nos dedos. Em quanto elle abria a carta, Freitas familiarmente descobria a cestinha: eram morangos. Rubião leu tremulo estas linhas:

"Mando-lhe estas fructinhas para o almoço, se chegarem a tempo; e, por ordem do Christiano, fica intimado a vir jantar comnosco, hoje, sem falta. Sua verdadeira amiga

SOPHIA"

— Que fructas são? perguntou Rubião fechando a carta.

— Morangos.

— Chegaram tarde. Morangos? repetiu elle sem saber o que dizia.

— Não é preciso córar, meu caro amigo, disse-lhe rindo o Freitas, logo que o criado saiu. Estas cousas acontecem a quem ama...

— A quem ama? repetiu Rubião córando deveras. Mas, póde ler a carta, veja...

Ia mostral-a; mas um sentimento de pudor e discrição levou-o a não dar o papel; fez só o gesto e metteu-o no bolso. Estava fóra de si, meio confuso, meio alegre; Carlos Maria deleitou-se em dizer-lhe que elle não podia encobrir que o mimo era de alguma namorada. E não achava que censurar-lhe; o amor era a lei universal: se era alguma senhora casada, louvava-lhe a discrição...

— Mas pelo amor de Deus! interrompeu o amphytrião.

— Viuva? Estamos no mesmo caso, continuou Carlos Maria; a discrição aqui é ainda um merecimento. O maior peccado, depois do peccado, é a publicação do peccado. Eu, se fosse legislador, propunha que se queimassem todos os homens convencidos de indiscrição nestas materias; e haviam de ir para a fogueira, como os réos da Inquisição, com a differença que, em vez de sambenito, levariam uma capa de penas de papagaio...

Freitas não podia ter-se com riso, e baila na mesa, á laia de applauso: Rubião, meio enfiado, acudia que não era casada nem viuva...

— Solteira então? replicou o moço. Um casorio em breve? Vá, que é tempo. Morangos de noivado, continuou pegando alguns entre os dedos. Cheiram a alcova de donzella e a latim de padre.

Rubião não sabia mais que dissesse; afinal tornou atroz e explicou-se; eram da senhora de um seu amigo particular. Carlos Maria piscou o olho; Freitas interveiu dizendo que, agora, sim, senhor, estava ex plicado; mas que, a principio, o mysterio, o arranjo da cestinha, o ar dos proprios morangos, — morangos adulteros, disse elle, rindo, — todas essas cousas davam ao negocio um aspecto immoral e peccaminoso; mas tudo fi- cára acabado.

Tomaram em silencio o café; depois passaram á sala. Rubião desfazia-se em obsequios, mas preoccupado. Corridos alguns minutos, estava satisfeito com a primeira supposição dos dous convivas; a de um amor adultero; achou até que se defendera com demasiado calor. Uma vez que não dissesse o nome de ninguem, podia ter confessado que era, em verdade, um negocio intimo. Mas tambem podia acontecer que o proprio calor da negativa deixasse alguma duvida no animo dos dous, alguma suspeita... Aqui sorriu consolado.

Carlos Maria consultou o relogio; eram duas horas, ia-se embora. Rubião agradeceu-lhe muito muito o obsequio e pediu-lhe que repetisse; podiam passar alguns domingos assim em boa palestra amigavel.

— Apoiado! bradou Freitas aproximando-se.

Tinha mettido meia duzia de charutos no bolso, e ao sair, disse ao ouvido do Rubião:

— Cá vae a lembrança do costume; seis dias de delicias, uma delicia por dia.

— Leve mais.

— Não; virei busca-los depois.

Rubião acompanhou-os ao portão de ferro. Quinas Borba, logo que ouviu vozes, correu do fundo do jardim e veiu saudal-os, particularmente ao senhor; fez festas a Carlos Maria, quiz lamber-lhe a mão; o rapaz affastou-se com repugnacia. Rubião deu um pontapé no cachorro, que o fez gritar e fugir. Afinal despediram-se todos.

— O senhor para onde vae? perguntou Carlos Maria ao Freitas.

Freitas calculou que elle iria a alguma visita para os lados de S. Clemente, e quiz acompanhal-o.

— Vou até o fim da praia, disse.

— Eu vou para a cidade, acudiu Carlos Maria estendendo-lhe a mão. Estimei conhecel-o.

(Continúa.)

XXXI

Rubião viu-os ir, entrou, metteu-se na sala, e ainda uma vez leu o bilhete de Sophia. Cada palavra d'essa pagina inesperada era um mysterio; a assignatura uma capitulação. Sophia apenas; nenhum outro nome da familia ou do casal. Verdadeira amiga era evidentemente uma metaphora. Quanto ás primeiras palavras: Mando-lhe estas fructinhas para o almoço respiravam a candidez de uma alma boa e generosa. Rubião viu, sentiu, palpou todas essas cousas pela unica força do instincto, e deu por si beijando o papel, — digo mal, beijando o nome, o nome dado na pia de baptismo, repetido pela mãe, entregue ao marido como parte da escriptura moral do casamento, e agora roubado a todas essas origens e posses para lhe ser mandado a elle, no fim de urna tolha de papel... Sophia! Sophia! Sophia!

XXXII

— Por que veiu tão tarde? perguntou-lhe Sophia, logo que elle appareceu á porta do jardim, em Santa Thereza.

— Depois do almoço, que acabou ás duas horas, estive arranjando uns papeis. Mas não é tão tarde assim, continuou Rubião vendo o relogio; são quatro horas e meia.

— Sempre é tarde para os amigos, replicou Sophia em ar de censura.

Rubião cahiu em si; mas não teve tempo para emendar a mão. Deante delle, ao pé da casa, estavam sentadas em bancos de ferro umas quatro senhoras, caladas, olhando para elle, curiosas; eram visitas de Sophia que esperavam a vinda de um capitalista Rubião. Já tinham ouvido fallar delle. Sophia foi apresental-o a ellas. Tres d'ellas eram casadas, uma solteira, ou mais que solteira. Contava trinta e nove annos, e uns olhos pretos, cansados de esperar. Era filha de um major Siqueira, que d'ahi a alguns minutos appareceu no jardim.

— O nosso Palha já me tinha fallado em Vossa Excellencia, disse o major depois de apresentado ao Rubião. Juro que é seu amigo ás direitas. Contou-me o acaso que os ligou. Geralmente, as melhores amizades são essas. Eu, em trinta e tantos, poucos antes da Maioridade, tive um amigo, o melhor dos meus amigos daquelle tempo, que conheci assim por um acaso, na botica do Bernardes, por alcunha o João das pantorrilhas... Creio que usou d'ellas, em rapaz, entre 1801 e 1812. 0 certo é que a alcunha ficou. A botica era na rua de S. José, ao desembocar na da Misericordia... João das pantorrilhas... Sabe que era um modo de engrossar a perna... Bernardes era o nome delle, João Alves Bernardes... Tinha a botica na rua de S. José. Conversava-se alli muito, á tarde, e á noite. Ia a gente com o seu capote, e bengalão; alguns levavam lanterna. Eu não; levava só o meu capote... Ia-se de capote; o Bernardes, — João Alves Bernardes era o nome todo delle; era filho de Maricá, mas criou-se aqui no Rio de Janeiro... João das pantorrilhas era a alcunha; diziam que elle andára de pantorrilhas, em rapaz, e parece que foi um dos petimetres da cidade. Nunca me esqueci: João das pantorrilhas... la-se de capote...

A alma do Rubião bracejava no meio deste aguaceiro de palavras; mas, estava n'um becco sem sahida por um lado, e de outro atravancado de carroças. Nenhuma porta aberta, nenhum corredor, e a chuva a cair. Se pudesse olhar para as moças viria, ao menos, que era objecto da curiosidade de todas, principalmente da filha do major, D. Tonica; mas não podia; escutava o major, e o major chovia a cantaros. Foi o Palha que lhe trouxe um guarda-chuva.

Sophia tinha ido dizer ao marido que o Rubião acabára de chegar; d'ahi a nada estava o Palha no jardim, e saudava o amigo, dizendo-lhe que viera tarde. O major, que explicava ainda uma vez a alcunha do boticario, abandonou a presa, e foi ter com as moças; depois saiu á rua.

XXXIII

As senhoras casadas eram bonitas; a mesma solteira não devia ter sido feia, aos vinte e cinco annos; mas Sophia primava entre todas elas.

Não seria tudo o que o nosso amigo sentia, mas era muito. Era daquella casta de mulheres que o tempo, como um esculptor vagaroso, não acaba logo, e vae polindo ao passar dos longos dias... Essas esculpturas lentas são miraculosas; Sophia rastejava os vinte e oito annos; estava mais bella que aos vinte e sete; era de suppor que só aos trinta désse o esculptor os ultimos retoques, senão quizesse prolongar ainda o trabalho, por dous ou tres annos.

Os olhos, por exemplo, não são os mesmos da estrada de ferro, quando o nosso Rubião fallava com o Palha, e elles iam sublinhando a conversação... Agora, parecem mais negros, e já não sublinham nada; compõe logo as cousas, por si mesmos, em lettra vistosa e gorda, e não é uma linha nem duas, são capítulos inteiros. A boca parece mais fresca. Hombros, mãos, braços, são melhores, e ella ainda os faz optimos por meio de attitudes e gestos escolhidos. Uma feição que a dona nunca póde supportar, — cousa que o proprio Rubião achou a principio que destoava do resto da cara, — o excesso de sobrancelhas, — isso mesmo, sem ter diminuido, como que lhe dá ao todo um aspecto mui particular.

Traja bem; comprime a cintura e os seios no corpinho de lã fina côr de castanha, obra simples, e traz nas orelhas duas perolas verdadeiras, — mimo que o nosso Rubião lhe deu pela Pascoa.

XXXIV

A bella dama é filha de um velho funccionario publico. Casou aos vinte annos com este Christiano de Almeida e Palha, zangão da praça, que então contava vinte e cinco. O marido ganhava dinheiro, era geitoso, activo, e tinha o faro dos negocios e das situações. Em 1864, apezar de recente no officio, adivinhou, — não se póde empregar outro termo, — adivinhou as fallencias bancarias.

— Nós temos cousa, mais dia menos dia; isto anda por arames. O menor brado de alarma leva tudo.

O peior é que elle despendia todo o ganho e mais. Era dado á boa-chira; reuniões frequentes, vestidos caros e joias para a mulher, adornos de casa, mórmente se eram de invenção ou adopção recente, — lá lhe levavam os lucros presentes e futuros. Salvo em comidas, era escasso consigo mesmo. Ia muita vez ao theatro sem gostar delle, e a bailes, em que se divertia muito, — mas ia menos por si que para apparecer com os olhos da mulher, os olhos e os seios. Tinha essa especie de vaidade impudica; decotava a mulher sempre que podia, e até quando não podia, para mostrar aos outros as suas venturas particulares. Era assim um rei Candaules, mais restricto por um lado, e, por outro, mais publico.

E aqui façamos justiça á nossa dama. A principio, cedeu sem vontade aos desejos do marido; mas taes foram as admirações colhidas, e a tal ponto o uso accommoda a gente ás circumstancias, que ella acabou gostando de ser vista, muito vista, para recreio e estimulo dos outros. Não a façamos mais santa do que é, nem menos. Para as despezas da vaidade, bastavam-lhe os olhos, que eram ridentes, inquietos, convidativos e só convidativos: podemos comparal-os a lanterna de uma hospedaria em que não houvesse commodos para hospedes. A lanterna fazia parar toda a gente, tal era a lindeza da côr, e a originalidade dos emblemas; parava, olhava e andava. Para que escancarar as janellas? Escancarou-as, finalmente; mas a porta, se assim podemos chamar ao coração, essa estava trancada e retrancada.

XXXV

— Meu Deus! como é bonita! Sinto-me capaz de fazer um escandalo! pensava Rubião, á noite, ao canto de uma janella, de costas para fóra, olhando para Sophia, que olhava para elle.

Cantava uma senhora. Os tres maridos de fóra, que alli estavam de visita, interromperam o voltarete, em attençao á cantora, e vieram á sala, por alguns instantes; a cantora era mulher de um d'elles. O Palha é que a acompanhava ao piano; não via a contemplação mutua da esposa e do capitalista. Não sei se todas as outras pessoas estavam no mesmo caso. Uma, sim, essa sei que os via: Tonica, a filha do major.

— Meu Deus! como é bonita! Sinto-me capaz de fazer um escandalo! continuava a pensar o Rubião, encostado á janella, de costas para fora, com os olhos esquecidos na bella dama, que olhava para elle.

(Continúa)

XXXVI

Comprehende-se que a D. Tonica não escapasse a contemplação dos dous. Desde que Rubião ali chegou, não cuidou ella mais que de attrahil-o. Os seus pobres olhos de trinta e nove annos, olhos sem parceiros na terra, indo já a resvalar do cansaço na desesperança, acharam em si algumas fagulhas. Volvel-os uma e muitas vezes, requebrando-os, era o longo officio d'elles. Não lhe custou nada armal-os contra o capitalista.

O coração, meio desenganado, agitou-se outra vez. Alguma cousa lhe dizia que esse mineiro rico era destinado pelo ceu a resolver o problema do matrimonio. Rico era ainda mais do que ella pedia; não pedia riquezas, pedia um esposo. Todas as suas campanhas fizeram-se sem a consideração pecuniaria; nos ultimos tempos ia baixando, baixando, baixando; a ultima foi contra um estudantinho pobre... Mas quem sabe se o ceu não lhe destinava justamente um homem rico? D. Tonica tinha fé em sua madrinha, Nossa Senhora da Conceição, e investiu a fortaleza com muita arte e valor.

— Todas as outras são casadas, pensou ella.

Não tardou em perceber que os olhos de Rubião e os de Sophia caminhavam uns para os outros; notou, porém, que os de Sophia eram menos frequentes e menos demorados, phenomeno que lhe pareceu explicavel, pelas cautellas naturaes da situação. Podia ser que se amassem... Esta ideia affligiu-a; mas o desejo e a esperança teceram-lhe um veu de ouro, com que ella cobriu os olhos, e elles entraram a vêr que, depois de um ou mais amores, um homem póde muito bem vir a casar. D. Tonica disse a si mesma que toda a questão era captal-o; a idéa de casar e ter familia podia ser que acabasse de matar qualquer outro sentimento da parte delle, se algum houvesse.

Eil-a que redobra esforços. Todas as suas graças foram chamadas a postos, e obedeceram, ainda que murchas. Gestos de ventarola, apertos de labios, olhos obliquos, marchas, contra-marchas para mostrar bem a elegancia do corpo e a cintura fina que tinha, tudo foi empregado. Era o velho formulario em acção; nada lhe rendera até alli, mas a loteria é assim mesmo: lá vem um bilhete que resgata os perdidos.

Agora, porém, á noite, por occasião do canto ao piano, é que D. Tonica deu com elles embebidos um no outro. Não teve mais duvida; não eram olhares apparentemente fortuitos, breves, como até alli. era uma contemplação que eliminava o resto da sala. D. Tonica sentiu o grasnar do velho corvo da desesperança. Quoth the Raven: NEVERMORE.

Ainda assim continuou a luta; chegou a conseguir que Rubião viesse sentar-se ao pé della, por alguns minutos, e tratou de dizer cousas bonitas, phrases que lhe ficaram de romances, outras que a propria melancholia da situação lhe ia inspirando. Rubião ouvia e respondia, mas inquieto, quando Sophia deixava a sala, e não menos quando tornava a ella. Uma das vezes a distracção foi excessiva. D. Tonica confessava-lhe que tinha muita vontade de ver Minas, principalmente Barbacena. Que taes eram

os ares?

— Os ares, repetiu machinalmente o outro.

Olhava para, Sophia, que estava então em pé, de costas para elle, fallando a duas senhoras sentadas. Rubião admirou-lhe ainda uma vez a figura, o busto bem talhado, estreito em baixo, largo em cima, emergindo das cadeiras amplas, como uma grande braçada de folhas sae de dentro de um vaso. A cabeça podia então dizer-se que era como uma magnolia unica, direita, espetada no centro do ramo. Era isto que Rubião mirava quando D. Tonica lhe perguntou pelos ares de Barbacena, e elle repetiu a palavra dela, sem lhe dar sequer a mesma fórma interrogativa.

XXXVII

Rubião estava resoluto. Nunca a alma de Sophia pareceu convidar a delle, com tamanha instancia, a voarem juntas até ás terras clandestinas, donde ellas tornam, em geral, velhas e cançadas. Algumas não tornam. Outras param a meio caminho. Grande numero não passa da beira dos telhados...

XXXVIII

A lua era magnifica. No morro, com as estrellas e a lua sobre a cabeça, alma menos audaz era capaz de ir contra um exercito inimigo, e destroçal-o. Vede o que não seria com este exercito amigo. Estavam no jardim. Sophia tinha enfiado o braço no delle, para irem ver a lua. Convidára D. Tonica, mas a pobre dama respondeu que tinha um pé dormente, que já ia, e não foi.

Os dous ficaram calados algum tempo. Pelas janellas abertas viam-se as outras pessoas conversando, e até os homens, que tinham acabado o voltarete. O jardim era pequeno; mas a voz humana tem todas as notas, e os dous podiam dizer poemas sem ser ouvidos.

Rubião lembrou-se de uma comparação velha, mui velha, apanhada em não sei que decima de 1850, ou qualquer outra pagina em prosa de todos os tempos. Essa ideia foi chamar aos olhos de Sophia as estrellas da terra, e ás estrellas os olhos do céu. Tudo isso baixinho e tremulo.

Sophia ficou pasmada. De subito endireitou o corpo, que até alli viera pesando no braço do Rubião. Estava tão acostumada á timidez do homem... Estrellas? olhos? Quiz dizer que não caçoasse com ella, mas não achou como dar fórma á resposta, sem rejeitar uma ideia que tambem era sua, ou então sem animal-o a ir adeante. Dahi um longo silencio.

— Com uma differença, continuou Rubião. As estrellas são ainda menos lindas que os seus olhos, e afinal nem sei mesmo o que, ellas sejam; Deus, que as poz tão alto, é porque não poderão ser vistas de perto, sem perder muito da formosura... Mas os seus olhos, não; estão aqui, ao pé de mim, grandes, luminosos, mais luminosos que o céu...

Loquaz, destemido, Rubião parecia totalmente outro. Não parou alli; fallou ainda muito, mas não deixou o mesmo circulo de ideias. Tinha poucas; e a situação, apezar da repentina mudança do homem, tendia antes a cerceal-as, que a inspirar-lhe novas. Sophia é que não sabia que fizesse. Trouxera ao collo um pombinho, manso e quieto, e sae-lhe um gavião, — um gavião adunco e faminto.

Era preciso responder, fazel-o parar, dizer que ia por onde ella não queria ir, e tudo isso, sem que elle se zangasse, sem que se fosse embora... Sophia procurava alguma cousa; não achava, porque esbarrava na questão, para ella insoluvel, se era melhor mostrar que entendia, ou que não entendia. Aqui lembraram-lhe os proprios olhos della, as palavrinhas doces, as attenções particulares; concluia que, em tal situação, não podia ignorar o sentido das finezas do homem. Mas confessar que entendia, e não despedil-o de casa, eis ahi o ponto melindroso.

XXXIX

Em cima, as estrellas pareciam rir daquella situação inextricavel.

Vá que a lua os visse! A lua não sabe escarnecer; e os poetas, que a acham saudosa, terão percebido que ella amou outr'ora algum astro vagabundo, que a deixou ao cabo de muitos seculos. Pode ser até que ainda se amem. Os seus eclypses (perdôe-me a astronomia) talvez não sejam mais que entrevistas amorosas. O mytho de Diana descendo a encontrar-se com Endymião bem pode ser verdadeiro. Descer é que é de mais. Que mal ha em que os dous se encontrem alli mesmo no céo, como os grilos entre as folhagens cá de baixo? A noite, mãe caritativa, encarrega-se de velar a todos.

Depois, a lua é solitaria. A solidão faz a pessoa seria. As estrellas, em chusma, são como as moças entre quinze e vinte annos, alegres, palreiras, rindo e fallando a um tempo de tudo e de todos.

Não nego que são castas; mas tanto peor, — terão rido do que não entendem... Castas estrellas! é assim que lhes chama Othello, o terrível, e Tristram Shandy, o jovial. Esses extremos do coração e do espirito estão de accordo neste ponto: as estrellas são castas. E ellas ouviam tudo (castas estrellas!) tudo o que a boca temeraria de Rubião ia entornando na alma pasmada de Sophia. O recatado de longos mezes era agora (castas estrellas!) nada menos que um libertino. Dissereis que o Diabo andára a enganar a outra com as duas grandes azas de archanjo que Deus lhe poz; de repente, metteu-as na algibeira, e desbarretou-se para mostrar malignas, fincadas na testa. E rindo, daquelle riso obliquo dos máos, propunha comprar-lhe não só a alma, mas a alma e o corpo... Castas duas estrellas!

XL

— Vamos para dentro, murmurou Sophia.

Quiz tirar o braço; mas o dele reteve-lh'o com força. Não; ir para que? Estavam alli bem, muito bem... Que melhor? Ou seria que elle a estivesse aborrecendo? Sophia acudio que não, ao contrario; mas precisava ir fazer sala ás visitas... Ha quanto tempo estavam alli!

— Não ha dez minutos, disse o Rubião. Que são dez minutos?

— Mas podem ter dado pela nossa ausencia...

Rubião estremeceu diante deste possessivo: nossa ausencia. Achou-lhe um principio de complicidade. Concordou que podiam dar pela nossa ausencia. Tinha razão, deviam separar-se; só lhe pedia uma cousa, duas cousas; a primeira é que não esquecesse aquelles dez minutos sublimes; a segunda é que, todas as noites, ás dez horas, fitasse o Cruzeiro, elle o fitaria tambem, e os pensamentos de ambos iriam achar-se alli juntos, intimos, entre Deus e os homens.

O convite era poetico, mas só o convite. Rubião, em quanto fallava, ia devorando a moça com os olhos de fogo, e segurava-lhe uma das mãos para que ella não fugisse. Nem os olhos nem o gesto tinham poesia nenhuma. Sophia esteve a ponto de dizer alguma palavra aspera, mas engoliu-a logo, ao advertir que Rubião era um bom amigo da casa. Quiz rir, mas não pôde; mostrou-se então arrufada, logo depois resignada, afinal supplicante; pediu-lhe pela alma da mãe delle, que devia estar no ceu... Rubião não sabia do ceu nem da mãe, nem de nada. Que era mãe? que era ceu? parecia dizer a cara delle.

— Ai, não me quebre os dedos! exclamou baixinho a moça.

Aqui é que elle começou a voltar a si; afrouxou a pressão, sem soltar-lhe os dedos.

— Vá, disse elle, mas primeiro...

Inclinava-se para beijar a mão, quando uma voz, a alguns passos... veiu accordal-o inteiramente.

XLI

— Olá! estão apreciando a lua? Realmente, está deliciosa; está uma noite para namorados... Sim, deliciosa... Ha muito que não vejo uma noite assim... Olhem só para baixo, os bicos de gaz... Deliciosa! para namorados... Os namorados gostam sempre da lua. No meu tempo, em Icarahy...

Era Siqueira, o terrivel major. Rubião não sabia que dissesse; Sophia, passados os primeiros instantes readquiriu a posse de si mesma; respondeu que, em verdade, a noite era linda; depois contou que Rubião teimava em dizer que as noites do Rio não podiam comparar-se ás de Barba cena, e, a proposito disso, referira uma anecdota de um padre Mendes... Não era Mendes?

— Mendes, sim, o padre Mendes, murmurou o Rubião.

O major mal podia conter o assombro. Tinha visto as duas mãos presas, a cabeça do Rubião meia inclinada, o movimento rapido de ambos, quando elle entrou no jardim; e sae-lhe de tudo isto um padre Mendes... Olhou para Sophia; viu-a risonha, tranquilla, impenetravel. Nenhum medo, nenhum acanhamento; fallava com tal simplicidade, que o major pensou ter visto mal. Mas o Rubião estragou tudo. Vexado, calado, não fez mais que tirar o relogio para ver as horas, leval-o au ouvido, como se lhe parecesse que não andava, depois limpal-o com o lenço, devagar, devagar, sem olhar para um nem para outro...

(Continúa.)

XLI

(Continuação)

— Bem, conversem, vou vêr as amigas que não podem estar sós. Os homens já acabaram o maldito voltarete?

— Já, respondeu o major olhando curiosamente para Sophia. Já, e até perguntaram por este senhor; por isso é que eu vim ver se o achava no jardim. Mas estavam aqui ha muito tempo?

— Agora mesmo, disse Sophia.

Depois, batendo carinhosamente no hombro do major, passou do jardim á casa; não entrou pela porta da sala de visitas, mas por outra que dava para a de jantar; de maneira que, quando chegou áquella pelo interior, era como se acabasse de dar ordens para o chá.

Rubião, voltando a si, ainda não achou que dizer, e comtudo urgia dizer alguma cousa. Boa ideia era a anecdota do padre Mendes; o peior é que não havia padre nem anecdota, e elle era incapaz de inventar nada. Pareceu-lhe bastante isto:

— O padre! o Mendes! Muito engraçado o padre Mendes!

— Conheci-o, disse o major sorrindo. O padre Mendes? Conheci-o; morreu conego. Esteve algum tempo em Minas?

— Creio que esteve, murmurou o outro espantado.

— Era filho aqui de Saquarema; era um que não tinha este olho, continuou o major levando o dedo ao olho esquerdo. Conheci-o muito, se é que é o mesmo; póde ser que seja outro.

— Pode ser.

— Morreu conego. Era homem de bons costumes, mas amigo de ver moças bonitas, como se mira um painel de mestre; e que maior mestre que Deus? dizia elle. Esta D. Sophia, por exemplo, nunca elle a viu na rua que me não dissesse: Hoje vi aquella bonita senhora do Palha... Morreu conego; era filho de Saquarema... E, na verdade, tinha bom gosto... Realmente, a mulher do nosso Palha, é um primor, bella de cara e de figura; eu ainda a acho mais bem feita que bonita... Que lhe parece?

— Parece que sim...

— E boa pessoa, excellente dona de casa, continuou o major accendendo um charuto a um phosphoro.

A luz do phosphoro deu á cara do major uma expressão de escarneo, ou de outra cousa menos dura, mas não menos adversa. Rubião sentiu correr-lhe um frio pela espinha. Teria ouvido? visto? adivinhado? Estava alli um indiscreto, um bisbilhoteiro, um denunciante? A cara do homem dizia que sim e que não; em todo caso, era mais seguro crer no peior. Aqui temos o nosso heroe como alguem que, depois de navegar cosido com a praia, tangos annos, acha-se um dia entre as ondas do alto mar: felizmente o medo tambem é official de ideias, e deu-lhe alli uma, a unica da occasião, que era lisonjear o interlocutor. Não hesitou em achal-o gracioso e interessante, e disse-lhe que tinha uma casa ás suas ordens, na praia de Botafogo, numero tantos. Dava-lhe muita honra em travar relações com elle. Contava poucos amigos aqui: o Palha, a quem devia grandes obsequios, — D. Sophia que era uma senhora de rara gravidade, e mais tres ou quatro pessoas. Vivia só; podia ser até que se retirasse para Minas.

— Já?

— Não diga já, mas póde ser que me não demore. Sabe que uma pessoa que viveu toda a sua vida em um lugar, custa-lhe muito a acostumar-se em outro.

— Isso conforme.

— Sim, conforme... Mas é a regra.

—  Regra será, mas o senhor vae ser uma excepção. A côrte é o diabo; apanha-se uma paixão como se apanha uma constipação; basta uma fresta de ar, fica-se perdido. Olhe, eu não me dava de apostar que o senhor, antes de seis meses, está casado...

— Não viu nada, pensou Rubião.

E depois, alegre:

— Póde ser, mas tambem em Minas ha casamentos; nem lá faltam padres.

— Falta o padre Mendes, acudiu rindo o major.

Rubião sorriu constrangido, não entendendo se a palavra do major era innocente ou maliciosa. Este é que colheu as rédeas ao assumpto, e fallou de outras cousas, do tempo, da cidade, do ministerio, da guerra, e do marechal Lopez. E vede o contraste dos tempos: esse aguaceiro, maior que o da entrada, parecia um raio de sol ao nosso Rubião. Eil-o que espaneja a alma ao calor do discurso infinito do major, intercallando alguma palavrinha se pode, e sempre cabeceando com applauso. E pensava outra vez que não, que elle não vira nada.

— Papae! Papae está ahi? disse uma voz á porta que dava para o jardim.

Era D. Tonica; vinha chamal-o para irem embora. O chá estava na meza, é verdade; mas não podia esperar mais, tinha dor de cabeça, disse ella ao pae, baixinho. Depois estendeu os dedos ao Rubião; este pediu-lhe que ficasse ainda alguns minutos; o estimavel major...

— Perde o seu tempo, interrompeu este; ella é que me governa.

Rubião offereceu-lhe a casa com instancia; exigiu até que lhe marcasse um dia, n'aquella mesma semana, mas o major acudiu que não podia dispor de dia certo; iria, logo que lhe fosse possivel. A vida delle era muito trabalhosa; tinha os negocios do arsenal, que já eram muitos, e tinha mais...

— Papae! vamos!

— Vamos. Está vendo? Não posso conversar um instante. Já te despediste? Onde está o meu chapéo?

XLII

Ladeira abaixo, D. Tonica foi ouvindo o resto do discurso do pae, que mudou de assumpto, sem mudar de estylo, — diffuso e derramado. Ouvia sem entender. Ia mettida em si mesma, absorta, remoendo a noite, recompondo os olhares de Sophia e de Rubião.

Chegaram a casa na rua do Senado; o pae foi dormir, a filha não se deitou logo, deixou-se estar em uma cadeirinha, ao pé da commoda, onde tinha uma imagem da Virgem. Não trazia idéias de paz nem de candura. Sem conhecer o amor, tinha noticia do adulterio, e a pessoa de Sophia pareceu-lhe hedionda. Via nella agora um monstro, metade gente,

metade cobra, e sentiu que a aborrecia, que era capaz de vingar-se exemplarmente, de dizer tudo ao marido.

— Conto-lhe tudo, — ia pensando — ou de viva voz, ou por uma carta... Carta não; digo-lho tudo um dia, em particular.

E imaginando o colloquio, antevia o espanto do homem, depois o agastamento, depois os improperios, as palavras duras que elle havia de dizer á mulher, miseravel, indigna, vil... Todos esses nomes soavam bem aos ouvidos do seu desejo; ella fazia derivar por elles a propria colera; fartava-se de a rebaixar assim, de a pôr debaixo dos pés do marido, já que o não podia fazer por si mesma... Vil, indigna, miseravel...

Durou muito tempo essa explosão de raiva interior, — perto de vinte minutos; mas a alma cançou, e tornou a si. A imaginação não podia mais, e a realidade proxima attrahiu-lhe a vista. Olhou em volta de si, mirou a alcova de solteira, arrumadinha com arte, — dessa arte engenhosa que faz da chita seda e de um retalho velho uma fita, que recama, enlaça, alegra o mais que póde a nudez das cousas, enfeita as paredes tristes, aprimora os trastes modestos e poucos. E tudo alli parecia feito para receber um noivo amado.

Onde li eu que uma tradicção antiga fazia esperar a uma virgem de Israel, durante certa noite do anno, a concepção divina? Seja onde fôr, comparemol-a á desta outra, que só differe daquella em não ter noite fixa, mas todas, todas, todas... O vento, zunindo fóra, nunca lhe trouxe o varão esperado, nem a madrugada alva e menina lhe disse em que ponto da terra é que elle mora. Era só esperar, esperar...

Agora, aquietada a imaginação e o resentimento, mira e remira a alcova solitaria; recorda as amigas do collegio e de familia, as mais intimas, casadas todas. A derradeira dellas desposou aos trinta annos um official de marinha, e foi ainda o que reverdeceu as esperanças á amiga solteira, que não pedia tanto, posto que a farda de aspirante foi a primeira cousa que lhe seduziu os olhos, aos quinze annos... Onde iam elles? Mas lá passaram cinco annos, cumpriu os trinta e nove, e os quarenta não tardam. Quarentona, solteirona; D. Tonica teve um calafrio. Olhou ainda, recordou tudo, ergueu-se de golpe, deu duas voltas e atirou-se á cama chorando...

(Continúa.)

XLVIII

Vossa Senhoria hade ter visto que o cavallinho é bom...

Rubião abriu os olhos, meio fechados, e deu com o cocheiro que sacudia ao de leve a pontinha do chicote para espertar o animal. Interiormente zangou-se com o homem, que o veiu tirar de recordações antigas. Não eram bellas, mas eram antigas, — antigas e enfermeiras, porque lhe davam a beber um elixir que de todo parecia cural-o do presente. E vae o cocheiro empurra-o e accorda-o. Iam subindo a rua da Lapa; o cavallo, em verdade, comia o espaço como se fosse a descer.

— Este cavallo tem-me uma amizade, continuou o cocheiro, que se não acredita. Podia contar cousas extraordinarias. Ha pessoas que até dizem que é mentira minha; mas, não, senhor, não é. Quem não sabe que cavallo e cachorro são os animaes que mais gostam da gente? Cachorro parece que inda gosta mais...

Cachorro trouxe á memoria de Rubião o Quincas Borba, que lá devia estar em casa, á espera delle, ancioso. Tinha ordenado agora que o soltassem para guardar a casa, e tambem para ver se elle não gania, ás noites, como de costume, para dormir fechado. Dormia fechado para não fugir. Rubião não esquecia a condição do testamento; jurava cumpril-a á risca. Convem dizer que, de envolta com o receio de vel-o fugir, entrava o de vir a perder os bens. Não valiam affirmações do advogado; não ha, dizia-lhe este, não ha no testamento clausula reversivel para outrem, no caso de fuga do cachorro; os bens não podiam sair-lhe das mãos. Que lhe importava a fuga, se era até melhor, um cuidado menos? Rubião aceitava apparentemente a explicação, mas lá ficava a duvida, os exemplos de longas demandas, a variedade das opiniões juridicas sobre uma só materia, a acção de algum invejoso ou inimigo, e, o que resumia tudo, o terror de ficar sem nada. Dahi os rigores da reclusão; dahi tambem o remorso de ter passado a tarde e a noite sem pensar uma só vez no Quincas Borba.

— Sou um ingrato! disse comsigo.

Emendou-se logo; mais ingrato era não ter pensado no outro Quincas Borba, que lhe deixou tudo. Vae se não quando, teve uma ideia extraordinaria, a de serem os dous Quincas Borbas a mesma creatura, por effeito da entrada da alma do defunto no corpo do cachorro, menos a purgar os seus peccados que a vigiar o dono. Foi uma preta de S. João d'El rei que lhe metteu, em creança, essa ideia de transmigração. Dizia ella que a alma cheia de peccados ia para o corpo de um bruto; chegava a jurar que conhecera um escrivão que acabou em gambá...

— Vossa Senhoria, não se esqueça de dizer onde é a casa, disse-lhe repentinamente o cocheiro.

— Pare. Já  passámos, é aquella.

O tilbury deu volta e foi parar á porta; Rubião pagou e desceu.      

XLIX

O cão ladrou de dentro; mas, logo que Rubião entrou, recebeu-o com grande alegria; e por mais importuno que fosse, Rubião desfez-se em caricias. A idéa de poder estar alli o testador dava-lhe arrepios. Subiram juntos a escada de pedra; alli ficaram por alguns instantes, á luz do lampeão que Rubião mandára deixar acceso. Rubião era mais credulo

que crente; não tinha razões para atacar nem para defender nada: — tema eternamente virgem para se lhe plantar qualquer cousa. A vida da côrte deu-lhe até uma particularidade; entre incredulos, chegava a ser incredulo, embora reagisse depois...

Olhou para o cão, emquanto esperava que lhe abrissem a porta. O cão olhava para elle, de tal geito que parecia estar alli dentro o proprio e defuncto Quincas Borba; era o mesmo olhar meditativo do philosopho, quando examinava as cousas humanas... Novo arrepio; mas o medo, que era grande, não era tão grande que lhe atasse as mãos. Rubião estendeu-as sobre a cabeça do animal, coçando-lhe as orelhas e a nuca.

— Pobre Quincas Borba! Gosta de seu senhor, não gosta? Rubião é muito amigo de Quincas Borba.

E o cão movia devagar a cabeça, para a esquerda e para a direita, ajudando a distribuição das caricias ás duas orelhas pendentes; depois levantava o queixo, para que lhe coçasse em baixo, e o dono obedecia; mas então os olhos do cão, meio fechados de gosto, tinham um ar dos olhos do philosopho, na cama, contando-lhe cousas de que elle entendia pouco ou nada... Rubião fechava os seus. Abriram-lhe a porta; despediu-se do cão, mas com taes carinhos, que era o mesmo que pedir-lhe que entrasse. O creado hespanhol incumbiu-se de o levar para baixo.

— Não lhe dê pancadas, recommendou Rubião.

Não lhe deu pancadas; mas a descida só era dolorosa, e o cão amigo gemeu por muito tempo no jardim. Rubião entrou, despiu-se e deitou-se. Ah! tinha vivido um dia cheio de sensações diversas e contrarias, desde as recordações da manhã, e o almoço aos dous amigos, até aquella ultima ideia de metempsycose, passando pela lembrança do enforcado, e por uma declaração de amor não aceita, mal repellida, parece que adivinhada por outros... Misturava tudo, o espirito ia de um para outro lado como bola de borracha entre mãos de creanças. Comtudo, a sensação maior era a do amor. Rubião estava admirado de si mesmo, e arrependia-se; mas o arrependimento era obra da consciencia, ao passo que a imaginação não soltava por nenhum preço a figura da bella Sophia... Uma, duas, Tres horas... Sophia ao longe, os latidos do cão embaixo... O somno esquivo... Onde iam já as Tres horas? Tres e meia... Enfim, depois de muito cuidar, appareceu-lhe o somno, espremeu os classicas papoulas, e foi um instante; Rubião dormiu antes das quatro.

L

Não, senhora minha, ainda não acabou este dia tão comprido; não sabemos o que se passou entre Sophia e o Palha, depois que todos se foram embora. Póde ser até que acheis aqui melhor sabor que no caso do enforcado e da transmigração da alma do Quincas Borba; e cuido que havereis razão.

Tende paciencia; é vir agora outra vez a Santa Thereza. A sala está ainda alumiada, mas por poucos bicos de gaz; apagaram-se alguns, e ia apagar-se o ultimo, quando o Palha mandou que o creado esperasse um pouco la dentro. A mulher ia a sair, o Palha deteve-a, ella estremeceu.

— A nossa festa esteve bem bonita, disse elle.

— Esteve.

— O Siqueira é um cacete, mas paciencia; é alegre. A filha não estava mal arranjada. Viste o Ramos como devorava tudo o que se lhe poz no prato? Tu verás que elle um dia engole a mulher.

— A mulher? disse Sophia, sorrindo.

— É gorda, concordo; mas a primeira era muito mais gorda, e creio que não morreu, elle enguliu-a, com certeza.

Sophia reclinada no canapé, riu das graças do marido. Criticaram ainda alguns episodios da tarde e da noite; depois, Sophia, acariciando os cabellos do marido, disse-lhe de repente:

— E você ainda não sabe do melhor episodio da noite.

— Que foi?

— Adivinhe.

(Continúa.)

L

(Continuação)

Palha ficou algum tempo calado, olhando para a mulher, a ver se adivinhava qual tinha sido o melhor episodio da noite. Não podia acertar; acudia-lhe isto ou aquillo, nada; Sophia abanava a cabeça.

— Mas então que foi?

— Não sei; adivinha.

— Não posso. Dize logo.

— Com uma condição, accudiu ella; não quero zangas nem barulhos.

Palha foi ficando mais serio. Zangas? barulhos? Que diabo podia ser? pensava elle. Já se não ria; tinha só um resto de sorriso forçado e resignado. Olhou bem para ella, e perguntou-lhe o que era.

— Você promette o que lhe disse?

— Vá lá. Que foi?

— Pois saiba que ouvi nada menos que uma declaração de amor.

Palha empallideceu. Não promettera deixar de empallidecer. Gostava da mulher, como sabemos, até o ponto singular de publical-a; não podia ouvir a frio a noticia. Sophia viu a pallidez, e gostou da má impressão causada; para saboreal-a mais, inclinou a cabeça, soltou o cabello atraz, que a incommodava um pouco, recolheu os grampos em um lenço, depois sacudiu a cabeça, respirou largo, e pegou nas mãos do marido, que ficára de pé.

— É verdade, meu velho, namoraram-te a mulher.

— Mas quem foi o patife? disse elle impaciente.

— Mau, se vamos assim, não digo nada. Quem foi? Quer saber quem foi? Hade ouvir quietinho. Foi o Rubião.

— O Rubião?

 Nunca imaginei tanto. Parecia-me acanhado e respeitoso; fica sabendo que não é o habito que faz o monge. De tantos homens que aqui vêm, e até rapazes solteiros, não ouvi nunca a menor cousa. Olhava para mim; naturalmente, porque não sou feia... Para que estás andando assim de um lado para outro? Pára, que não quero levantar a voz... Bem, assim... Vamos ao caso. Não me fez declaração positiva...

— Ah! não ? accudiu vivamente o marido.

— Não, mas vem a dar na mesma.

E depois de contar o que se passára no jardim, desde que alli chegaram os dous, até que o major appareceu:

— Foi só isso, concluiu; mas é bastante para ver que se elle não disse amor é porque não lhe chegou a lingua, mas chegou-lhe a mão, que me apertou os dedos... Só isso, e é demais. Ainda bem que te não zangas; mas é preciso trancar-lhe a porta, — ou de uma vez ou aos poucos; eu preferia logo, mas estou por tudo. Como achas melhor?

Mordendo o beiço inferior, Palha ficou a olhar para ella a modo de estupido. Sentou-se no canapé, mas não fallou logo. Considerava o negocio. Achava natural que as gentilezas da esposa chegassem a captivar um homem, — e Rubião podia ser esse homem; neste, porém, tinha tal confiança, que o bilhete que Sophia mandara naquelle dia ao Rubião, com uma cestinha de morangos, foi redigido por elle mesmo; a mulher limitou-se a copial-o, assignal-o e mandal-o. Nunca, entretanto, imaginou que elle tivesse a coragem de confessar a alguem, menos ainda a ella, que lhe tinha amor, se é que era amor, se não era um gracejo de intimidade. E certo que elle olhava para ella muita vez, e que ella parece que, em algumas occasiões, pagava os olhares com outros... Concessões de moça bonita! Mas, emfim, contanto que lhe ficassem os olhos, podiam ir alguns raios delles. Não havia de ter ciumes do nervo optico, ia elle pensando... Sophia levantou-se, foi pôr o lenço com os grampos em cima do piano, e deu uma olhada ao espelho para ver-se com a trança cahida. Quando voltou ao canapé, o marido pegou-lhe na mão, rindo:

— Parece-me que te amofinaste mais do que o caso merecia. Comparar os olhos de uma moça ás estrellas, e as estrellas aos olhos, afinal de contas é cousa que até se póde fazer á vista de todos, em família, e em prosa ou verso para o publico. A culpa é de quem tem olhos bonitos. Demais, apesar do que me contas, sabes que elle é ainda matuto...

— Então o diabo tambem é matuto, porque elle pareceu-me nada menos que o diabo. E pedir-me que a certa hora olhasse para o Cruzeiro, afim de que as nossas almas se encontrassem?

— Isso, sim, isso já cheira a namoro, concordou Palha; mas bem vês que é um pedido de alma candida. É assim que as moças fallam aos quinze annos; é assim que fallam os tolos em todos os tempos, e os poetas tambem; mas elle nem é moça nem poeta.

— Creio que não; mas segurar-me nas mãos para reter-me no jardim?

Palha teve um calefrio; a ideia do contacto das mãos e da força empregada para reter a mulher é que o mortificava mais. Francamente, se pudesse, era capaz de ir ter com elle, e deitar-lhe as mãos ao gasnate. Outras ideias, porém, acudiram e dissiparam o effeito da primeira; de modo que, cuidando Sophia havel-o irritado, viu-o dar de hombros com despreso, e responder-lhe que effectivamente era um acto de grosseria.

— E depois, Sophia, que ideia foi essa de convidal-o a ir ver a lua, não me dirás?

— Chamei D. Tonica para ir comnosco.

— Mas uma vez que D. Tonica recusou, devias ter achado meios e modos de não ir ao jardim. São cousas que acodem logo. Tu é que deste occasião...

Sophia olhou para elle, contrahindo as grossas sobrancelhas; ia responder, mas calou-se. Elle continuou a desenvolver a mesma ordem de ideias; a culpa era della, não devia ter dado occasião...

— Mas você mesmo não me tem dito que devemos tratal-o com attenções particulares? Seguramente, que eu não iria ao jardim, se pudesse imaginar o que se passou. Mas nunca esperei que um homem tão pacato, tão não sei como, se tirasse dos seus cuidados para vir dizer-me cousas exquisitas.. .

— Pois daqui em diante evita a lua e o jardim, disse o marido, procurando sorrir.

— Mas, Christiano, como queres tu que lhe falle a primeira vez que elle cá vier? Não tenho cara para tanto; olha, o melhor de tudo é acabar com as relações.

Palha atravessou uma perna sobre a outra e começou a rufar no sapato. Durante alguns segundos ficaram calados; cada um delles pensava em alguma cousa. Palha cuidava na proposta de acabar com as relações, não que quizesse acceital-a, mas não sabia como responder á mulher, que mostrava tanto resentimento, e se portava com tal dignidade. Era preciso nem desapproval-a, nem aceitar a proposta, e não lhe accudia nada. Levantou-se, metteu as mãos nas algibeiras das calças e depois de alguns passos, parou defronte de Sophia.

— Talvez nos estejamos a incommodar com um simples effeito de vinhos. Olha que elle não mandou o seu quinhão ao vigario; cabeça fraca um pouco de abalo, e entornou o que tinha dentro... Sim, eu não nego que lhe possas ter causado certa impressão, como tantas outras senhoras, Ha dias foi a um baile no Cattete, e fallou-me depois encantado das senhoras que lá vira, de uma principalmente, a viuva Mendes...

Sophia interrompeu-o:

— Porque é que não convidou essa belleza a ver o Cruzeiro?

— Não jantou lá, naturalmente, e não havia jardim nem lua. O que eu quero dizer é que o nosso amigo não estaria em si. Talvez se ache a agora arrependido do que fez, envergonhado, sem saber como se hade explicar, ou se não explicará nada... E muito possivel até que se ausente...

— Era melhor.

— ... Se o não chamarmos, concluiu Palha.

— Mas para que chamal-o?

— Sophia, disse-lhe o marido, sentando-se ao pé della. Não quero entrar em minudencias; digo só que não permitto que alguem te falte ao respeito...

Houve uma pequena pausa; Sophia olhava para elle esperando.

— Ouve, continuou elle; não consinto, e ai d'aquelle que o fizesse, assim como ai de ti se o consentires; sabes que sou de ferro, a este respeito, e que a certeza da tua amizade, — ou, vá logo tudo, — do amor que me tens e que me tranquillisa. Pois bem, nada me abala relativamente ao Rubião. Crê que o Rubião é nosso amigo, devo-lhe obrigações...

— Alguns presentes, algumas joias, camarotes no theatro, não são motivos para que eu fite o Cruzeiro com elle.

(Continúa.)

L

(Continuação)

— Prouvera a Deus que fosse só isso! suspirou o zangão.

— Que ha mais?

— Não entremos em minudencias... Ha outras cousas... Fallaremos depois... Mas fica certa que nada me faria recuar, se visse no que contaste alguma gravidade. Não ha nenhuma. O homem é um simplorio.

— Não.

— Não?

Sophia levantou-se; tambem não queria entrar em minudencias. O marido pegou-lhe na mão, ella ficou de pé e calada. Palha, com a cabeça reclinada nas costas do sophá, olhava sorrindo, sem achar que dizer. Ao cabo de alguns minutos, ponderou a mulher que era tarde, que ia mandar apagar tudo.

— Bem, tornou o Palha depois de breve silencio; escrevo-lhe amanhã que não ponha aqui os pés.

Olhou para a mulher esperando alguma recusa. Sophia coçava as sobrancelhas, e não respondeu nada. Palha repetiu a solução; e póde ser que desta vez com sinceridade. A mulher então com ar de tedio:

— Ora, Christiano... Quem é que te pede cartas? Já estou arrependida de haver fallado nisto. Contei-te um acto de desrespeito, e disse que era melhor cortar as relações, — aos poucos ou de uma vez.

— Mas como se hão de cortar as relações de uma vez?

— Fechar-lhe a porta, mas não digo tanto; basta, se queres, aos poucos...

Era uma concessão; Palha aceitou-a; mas immediatamente ficou sombrio, soltou a mão da mulher, com um gesto de desespero. Depois, agarrando-a pela cintura, disse em voz mais alta do que até então:

— Mas, meu amor, eu devo-lhe muito dinheiro.

Sonhia tapou-lhe a boca e olhou assustada para o corredor.

— Está bom, disse, não fallemos mais nisto. Verei como elle se comporta e tratarei de ser mais fria... Nesse caso, tu é que não deves mudar, para que não pareça que sabes alguma cousa. Verei o que posso fazer.

— Você sabe, cousas do negocio, algumas perdas... é preciso tapar um buraco daqui, outro dalli... o diabo! É por isso que... Mas riamos, meu bem; não vale nada. Sabes que confio em ti...

— Vamos, que é tarde.

— Vamos, repetiu o Palha dando-lhe um beijo na face.

— Estou com muita dor de cabeça, murmurou ella. Creio que foi do sereno, ou desta historia... Estou com muita dor de cabeça...

LI

— Isso é do jantar. Olha, toma um pouco de camomilla, acudiu o Palha, no quarto, cmquanto ella se despia.

Preparou-lhe, a camomilla. Sophia já deitada, bebeu o remedio, e deixou cair a cabeça no travesseiro. Dormiu pouco, e interrompidamente. De manhã é que dormiu um pouco mais, tanto que não viu o marido levantar-se; mas, cousa digna de reparo, só então é que lhe appareceu a dor de cabeça, que ella dizia ter na vespera. Pode ser que fosse mera coincidencia; pode ser tambem que, como escreve um poeta, a natureza pense antes do homem, e Sophia dissesse que lhe doia a cabeça, inconscientemente e por antecipação. Mas tudo isso é metaphysica; melhor é crer que fallou da dor como fallaria dos espargos do jantar, que achou deliciosos.

Banhado, barbeado, meio vestido, Palha lia os jornaes, á espera do almoço, quando a viu entrar no gabinete abatida e pallida.

— Estás peior?

Sophia respondeu com um gesto dos labios, que tanto negava como affirmava. Palha acreditou que, pelo dia adeante, passaria o incommodo: a agitação da vespera, o jantar tarde... Depois, pediu que lhe deixasse acabar de ler um artigo relativo a certo negocio da praça. Era uma briga entre dous commerciantes, a proposito de uns saques; na vespera escrevêra um delles, hoje vinha a resposta do outro. Resposta completa, disse elle acabando a leitura; e explicou longamente á mulher a questão dos saques, o mecanismo da cousa, a situação dos dous adversarios, os boatos da praça, tudo com o vocabulario technico. Sophia ouvia e suspirava; mas para o despotismo da profissão não ha suspiros de mulher, nem cortezia de homem. Felizmente, o almoço, estava na mesa.

Ficando só, a nossa amiga, que apenas tomou um caldo, lá para as duas horas, foi sentar-se á porta de casa, no jardim... Naturalmente, voltou a pensar no lance da vespera. Não estava bem em si nem fora de si, nem com Deus nem com o diabo. Arrependia-se de haver contado o episodio ao marido, e ao mesmo tempo irritava-se com as tentativas de explicação que este lhe deu. No meio das reflexões, ouviu distinctamente as palavras do major: "Olá! estão apreciando a lua?" como se as folhas as tivessem guardado, e repetido agora que a aragem começava a movel-as. Sophia teve um calefrio. Sequeira era indiscreto, — indiscreto em farejar e indagar das cousas alheias; sel-o-hia ao ponto de publical-as? Sophia considerava-se já objecto de suspeita ou de calumnia... Formava planos. Não visitaria ninguem; ou iria para fora, para Nova Friburgo ou mais longe. A exigencia do marido em receber o Rubião, como d'antes, era excessiva; maiormente pela causa dada. Não querendo obedecer nem desobedecer, cuidava em deixar a cidade, pretextando o que quer que fosse.

— A culpa foi minha! suspirou ella comsigo.

A culpa eram as attenções especiaes com o homem, carinhos, lembranças, obséquios familiares, e, na vespera, aquelles olhos tão longamente pregados nelle... Se não fosse isso... Ia-se assim perdendo em reflexões multiplicadas. Tudo a aborrecia, plantas, moveis, uma cigarra que cantava, um rumor de vozes, na rua, outro de pratos, em casa, o andar das escravas, e até um pobre preto velho que, em frente á casa della, trepava com difficuldade um pedaço de morro. As cautellas do preto boliam-lhe com os nervos.

LII

Nisto passou um rapaz alto, que a cortejou sorrindo e vagarosamente. Sophia cortejou-o tambem, um pouco espantada da pessoa e da acção.

— Quem é este sujeito? pensou ella.

E entrou a cogitar donde é que o conhecia, porque, em verdade, a cara não lhe era extranha, nem as maneiras, nem os olhos plácidos e grandes. Onde é que o teria visto? Percorreu varias casas, sem acertar com a verdadeira; afinal pensou em certo baile, — no mez anterior, — em casa de um advogado que fazia annos. Era isso; viu-o lá, dansaram uma quadrilha, por simples condescendencia delle, que não dansava nunca; lembrava-se de lhe ter ouvido muitas cousas agradaveis, relativamente á belleza da mulher, que, dizia elle, consistia principalmente nos olhos e nos hombros. Os della, como sabemos, eram magnificos. E quasi não tratou de outra cousa, — os hombros e os olhos; — a proposito de uns e outros contou varias anecdotas succedidas com elle, algumas sem interesse, mas fallava tão bem! e o assumpto era tão della! É verdade; lembrava-se agora que, logo que elle a deixou, Palha veiu ter com ella, sentou-se na cadeira, ao lado, e disse-lhe o nome do rapaz, porque ella não ouvira bem á pessoa que Ih'o apresentára: era Carlos Maria, — o proprio do almoço do nosso Rubião.

— É a primeira figura do salão, disse-lhe o marido com orgulho de ver que se occupára tanto tempo com ella.

— Entre os homens, explicou Sophia.

— Entre as senhoras és tu, acudiu elle mirando-se no collo da mulher, e circulando depois os olhos pela sala, com uma expressão de posse e dominio, que a mulher já conhecia e que lhe fazia bem.

Quando acabou de recordar tudo, já iria longe o rapaz; ao menos, foi uma interrupção na serie de tedios que lhe tomavam a alma. A mesma dor de cabeça calára-se por alguns instantes. Voltou logo, teimosa, aborrecida; Sophia reclinou-se na cadeira e fechou os olhos. Quiz ver se passava pelo somno, mas não pôde. Os pensamentos eram tão teimosos como a dor, e ainda mais ruins que ella. De quando em quando um bater de azas, rapido, quebrava o silencio: eram as pombas de uma casa visinha que tornavam ao pombal. Sophia a principio abriu os olhos, umas duas vezes; depois, acostumou-se ao rumor, e deixou-os fechados, a ver se dormia. Passado algum tempo, ouviu passos na rua, e levantou a cabeça, suppondo que era Carlos Maria que regressava; era um carteiro que lhe trazia uma carta da roça. Entregou-lh'a em mão. Ao sair do jardim, tropeçou o carteiro no pé de um banco e caiu tão desastradamente que as cartas espalharam-se-lhe no chão. Sophia não pôde conter o riso.

(Continúa.)

LIV

Perdoem-lhe essa riso. Bem sei que o desassocego, a noite mal passada, o terror da opinião, tudo contrasta com esse iriso inopportuno. Mas, leitora amada, talvez a senhora nunca visse cair um carteiro. Os deuses de Homero, — e mais eram deuses, — debatiam uma vez no Olympo, gravemente, e até furiosamente. A orgulhosa Juno com os seus grandes olhos e braços magnificos, ciosa dos colloquios de Thetis e Jupiter em favor de Achilles, interrompe o filho de Saturno. Jupiter troveja e ameaça; a esposa treme de colera. Os outros gemem e suspiram. Mas quando Vulcano pega da urna de nectar, e vae coxeando servir a todos, rompe no Olympo uma enorme gargalhada inextinguivel. Porque? Senhora minha, com certeza nunca viu cair um carteiro.

Ás vezes, nem é preciso que elle caia; outras vezes nem é sequer preciso que exista. Basta imaginal-o ou recordal-o. A sombra da sombra de uma lembrança grotesca projecta-se no meio da paixão mais aborrecivel, e o sorriso vem ás vezes á tona da cara, leve que seja, — um nada. Deixemol-a rir, e ler a sua carta da roça.

LV

Quinze dias depois, estando Rubião em casa, appareceu-lhe o marido de Sophia. Vinha perguntar-lhe o que era feito delle? onde se tinha mettido que não apparecia? estivera doente? ou já não cuidava dos pobres? Rubião mastigava as palavras, sem acabar de compor uma phrase unica. No meio disto, Palha viu que havia na sala um homem mirando os quadros, e abafou a voz.

— Desculpe, não vi que estava com visitas, disse elle.

Desculpar o quê? é um amigo, como o senhor. Doutor, aqui está o meu amigo Christiano de Almeida e Palha. Creio que já lhe fallei delle. Este é o meu amigo Dr. Camacho, — João de Souza Camacho.

Camacho fez um sinal de cabeça, disse uma ou duas cousas, e quiz sair; mas Rubião acudiu, que não, senhor, que ficasse. Eram ambos amigos; e depois a lua não tardava a illuminar a bella enseada de Botafogo.

A lua, — outra vez a lua, — e esta phrase: Creio que já lhe fallei delle, atordoaram de tal geito o recem-chegado, que não lhe foi possivel proferir uma palavra durante algum tempo. Bom é accrescentar que o dono da casa tambem não sabia que dissesse. Estavam os tres sentados, Rubião no canapé, Palha e Camacho em cadeiras defroote um do outro Camacho, que conservára a bengala na mão, pol-a verticalmente nos joelhos, batendo no nariz e olhando para o tecto. Fóra, rumor de carros, tropel de cavallos, e algumas vozes. Eram sete horas e meia da noite, ou mais, perto de oito. O silencio foi mais longo do que era licito na occasião; nem Rubião nem Palha davam por elle. Camacho é que, aborrecido, foi á janela. e exclamou dalli para os dous:

— Lá vem o luar entrando!

Rubião fez um gesto, Palha outro; mas quão differentes! Rubião era para transportar-se á janella; Palha ia a agarral-o pela gola. Cedia menos á divulgação possivel da aventura do que á lembrança da violencia com que elle pegára nas mãos da mulher para attrahil-a a si. Um e outro contiveram-se; logo depois, Rubião, cruzando a perna esquerda sobre a direita, voltou-se para o Palha, e perguntou-lhe:

— Sabe que vou deixal-os?

LVI

Tudo esperava o outro, menos isto. Dahi o espanto em que se dissolveu a colera; dahi tambem uma sombrinha de pezar, que é o que o leitor menos espera. Deixal-os? Naturalmente ia-se embora do Rio de Janeiro; era o castigo que a si mesmo impunha, pela acção ruim que praticara, em Santa Thereza; logo, vexára-se, arrependera-se... Não tinha cara de apparecer á esposa do amigo... Tal foi a primeira conclusão do Palha; mas vieram outras hypotheses... Por exemplo, a paixão podia persistir, e a sahida delle era um modo de affastar-se da pessoa amada... Também podia acontecer que entrasse ahi algum plano de casamento.

A ultima hypothese trouxe á physionomia do Palha um elemento novo, que não sei como chame. Desappontamento? Já o elegante Garrett não achava outro termo para taes sensações, e nem por ser inglez o despresava. Vá desappontamento. Misturem-lhe o espanto da noticia de separação, e a sombrinha de pezar; não se esqueçam da colera que primeiro trovejou surdamente, e não faltará quem ache que a alma deste homem é uma colxa de retalhos.

Póde ser; mas as colxas inteiriças são tão raras! A questão é que as cores se não desmintam uma ás outras, — quando não possam obedecer á symetria e regularidade. Era o caso do nosso homem. Tinha o aspecto baralhado á primeira vista; mas attentando bem, por mais oppostos que fossem os matizes, lá se achava a unidade moral da pessoa.

LVII

Mas, porque é que Rubião ia deixal-os? Que razão? Que negocio?

No dia seguinte ao do caso de Santa Thereza, acordou oppresso. Almoçou mal. Não cuidou de nada; calçou as chinellas africanas sem interesse, não cuidou das coisas bellas, ou simplesmente ricas, que lhe enchiam a casa. Não pôde supportar as caricias do cão mais de dous minutos; tão depressa o recebeu na sala, como o mandou embora. Elle é que enganou os criados e tornou ao amo; mas, tal foi o tabefe que recebeu na orelha, que não repetiu os affagos: estirou-se no chão com os olhos no amigo.

Rubião estava arrependido, irritado, envergonhado. No cap. X deste livro ficou escripto que os remorsos deste homem eram faceis, mas de pouca dura; faltou explicar a natureza das acções que os podiam fazer curtos ou compridos. Lá tratava-se daquella carta escripta pelo finado Quincas Borba, tão expressiva do estado mental do autor, e que elle occultou do medico, podendo ser util á sciencia ou á justiça. Se entrega a carta, não teria remorsos, nem talvez legado, — o pequeno legado que então esperava do enfermo. No caso presente, era uma tentativa de adulterio. Certo que elle suspirava ha muito, e tinha impetos interiores; mas foi só a animação indiscreta da moça, e a propria excitação do momento que o levou a fazer a declaração repellida. Passados os vapores da noite, não era só o vexame que sentia, mas tambem os remorsos. A moral é uma, os peccados são differentes.

(Continúa.)

LVI

(Continuação)

Saltemos por cima de tudo o que elle sentiu e pensou durante os primeiros dias. Chegou a esperar alguma cousa no domingo, um bilhete como o do anterior, — com morangos ou sem elles. Na segunda feira estava determinado a ir a Minas passar uns dous mezes; tinha necessidade de restaurar a alma aos ventos de Barbacena. Não contava com o Dr. Camacho.

— Deixar-nos? perguntou finalmente o Palha.

— Creio que sim; vou a Minas.

Camacho, voltando da janella, sentou-se na cadeira em que estivera antes.

— Que Minas? disse elle sorrindo. — Deixe-se de Minas por ora; lá irá quando fôr preciso, e não se demorará muito que o seja.

Palha não ficou menos admirado das palavras deste que das do outro. Donde surgira semelhante homem, com ar de dominar o Rubião? Olhou para elle; era pessôa de estatura media, rosto estreito, pouca barba, queixo comprido, orelhas de pavilhão largo e aberto. Foi tudo o que pôde observar rapidamente. Viu tambem que a roupa era fina, sem luxo, e que os pés não estavam mal calçados. Não examinou os olhos, nem o sorriso, nem as maneiras; não chegou a reparar no principio de calva, nem nas mãos magras e cabelludas.

LVII

Camacho era homem politico. Formado em direito em 1844, pela faculdade do Recife, voltara para a provincia natal, onde começou a advogar; mas a advocacia era um pretexto. Já na academia, escrevera um jornal politico, sem partido definido, mas com muitas ideias colhidas aqui e alli, e expostas em estylo meio magro e meio inchado. Pessoa que recolheu esses primeiros fructos de Camacho fez um indice dos seus principios e aspirações: — ordem pela liberdade, liberdade pela ordem; — a autoridade não pode abusar da lei, sem esbofetear-se a si propria; — a vida dos principios é a necessidade moral das nações novas como das nações velhas; — dai-me boas finanças, dar-vos-hei boa politica (Barão Louis); — mergulhemos no Jordão constitucional; — dai passagem aos valentes, homens do po-der; elles serão os vossos sustentaculos, etc., etc.

Na província natal, essa ordens de ideias teve de ceder a outras; e o mesmo se pode dizer do estylo. Fundou alli um jornal; mas, sendo a politica local menos abstracta, Camacho aparou as azas e desceu dos intermundios de Epicuro, ás nomeações de delegados, ás obras provinciaes, ás gratificações, á luta com a folha adversa, e aos nomes proprios e improprios. A adjectivação exigiu grande apuro. Nefasto, esbanjador, vergonhoso, perverso, foram os termos obrigados, emquanto atacou o governo; mas, logo que, por uma mudança de presidente, passou a defendel-o, as qualificações mudaram tambem: energico, illustrado, justiceiro, fiel aos principios, verdadeira gloria da administração, etc., etc. Esse tiroteio durou tres annos. No fim delles, a paixão politica dominava a alma do joven bacharel.

Membro da assemblea provincial, logo depois da camara dos deputados, presidente de uma provincia de segunda ordem, onde, por natural desforço do destino, leu nas folhas da opposição todos os nomes que escrevera outr'ora, nefasto, esbanjador, vergonhoso, perverso, Camacho teve dias grandes e pequenos, andou fóra e dentro da camara, fallou, escreveu, lutou constantemente. Acabou por vir morar na capital do imperio. Deputado da conciliação dos partidos, viu governar o marquez de Paraná, e instou por algumas nomeações, em que foi attendido; mas se é certo que o marquez lhe pedia conselhos, e, usava confiar-lhe os planos que trazia, ninguem podia affirmal-o, porque elle, em se tratando da propria consideração, mentia sem difficuldade.

O que se pode affirmar é que queria ser ministro, e trabalhou por obtel-o. Aggregou-se a varios grupos, segundo lhe parecia acertado; na camara discorria largamente sobre materias de administração, accumulara algarirmos, artigos de legislação, pedaços de relatorio. trechos de autores francezes, embora mal traduzidos. Mas, entre a espiga e a mão, está o muro de que falla o poeta; e por mais que o nosso homem estendesse a mão do seu desejo para colhel-a, a espiga la ficava do lado opposto, d'onde a arrancavam outras mãos, mais ou menos soffregas, ou até descuidadas.

Ha solteirões na politica. Camacho ia entrando nessa categoria melancolica, em que os sonhos nupciaes se evaporam com o tempo; mas não tinha a superioridade de abandonal-a. Ninguem que organisasse um gabinete se atrevia, ainda que o desejasse, a dar-lhe uma pasta. Camacho ia-se sentindo cair; para simular influencia, tratava familiarmente os poderosos do dia, contava em voz alta as visitas aos ministros e a outras dignidades do Estado; mas nem por isso dava um passo adeante.

Não lhe faltava que comer. A familia era pequena; mulher, uma filha, que ia nos dezoito annos, um afilhado de nove, e para isso dava a advocacia. Mas trazia a politica no sangue; não lia, quasi não fallava de outra cousa. De litteratura, sciencias naturaes, historia, philosophia, artes, não se preoccupava absolutamente nada. Tambem não conhecia grandes cousas de direito; guardava algum do que lhe dera a academia, e mais a legislação posterior e as praticas forenses. Com isso ia arrazoando e ganhando.

(Continúa.)

LVIII

Dias antes, indo passar a noite em casa de um conselheiro, viu alli Rubião. Fallava-se de politica. O principal assumpto da noite foi a mudança da situação, com a chamada dos conservadores ao poder, e a dissolução da camara. Rubião assistira á sessão em que o ministério ltaborahy pediu os orçamentos. Tremia ainda ao contar as suas impressões, descrevia a camara, tribunas, galerias cheias que não cabia um alfinete, o discurso de José Bonifacio, a moção, a votação... Toda essa narrativa nascia de uma alma simples; era claro. A desordem dos gestos, o calor da palavra tinham a eloquencia da sinceridade. Camacho escutava-o attento. Teve modo de o levar a um canto da janella, e fazer-lhe considerações graves sobre a situação. Rubião opinava de cabeça, ou por palavras soltas e approbatórias.

— Os conservadores não se demoram no poder, disse-lhe finalmente Camacho.

— Não?

— Não; elles não querem a guerra, e tem de cahir por força. Veja como andei bem no programa da folha.

— Que folha?

— Conversaremos depois.

No dia seguinte, almoçaram no Hotel de la Bourse, a convite de Camacho. Este referiu ao outro que fundara, meses antes, uma folha com o unico programa de continuar a guerra a todo o transe... Andava muito acesa a dicensão entre liberaes; pareceu-lhe que o melhor modo de servir ao proprio partido era dar-lhe um terreno neutro e nacional.

— E isto agora serve-nos, concluiu elle, porque o governo inclina-se á paz. Já amanhã sae um artigo meu, furibundo.

Rubião ouvia tudo, quasi sem tirar os olhos do outro, comendo rapidamente, nos intervallos em que o proprio Camacho inclinava a cabeça ao prato. Folgava de vêr-se confidente politico; e, para dizer tudo, a ideia de entrar em luta para colher alguma cousa depois, um lugar na camara, por exemplo, espanejou as asas de ouro no cerebro do nosso amigo. Camacho não lhe falou em mais nada; procurou-o no dia seguinte, e não o achou. Agora, pouco depois de entrar, vinha o Palha interrompel-os.

LIX

— Sim, mais eu preciso ir a Minas, teimou Rubião.

— Para quê? pergunta Camacho.

E o Palha fez-lhe egual pergunta. Para que iria a Minas, salvo se era negocio de pouco tempo. Ou já estava aborrecido da Corte?

— Não, aborrecido não estou; ao contrario...

Ao contrario, gostava muito della; mas a terra natal, — por menos bonita que seja, — um lugarejo, — dá saudade á gente; — ainda mais quando a pessoa veio de lá homem. Queria ver Barbacena. E Barbacena era a primeira terra do mundo. Durante alguns minutos, Rubião pôde subtrair-se á ação dos outros. Tinha a terra natal em si mesmo: ambições, vaidades da rua, prazeres ephemeros, tudo cedia ao mineiro saudoso da provincia. Se a alma delle foi alguma vez dissimulada, e escutou a voz do interesse, agora era a simples alma de um homem arrependido do amor, e mal accommodado na propria riqueza.

Palha e Camacho olharam um para o outro... Oh! esse olhar foi como um bilhete de visita trocado entre as duas consciencias. Nenhuma disse o seu segredo, mas viram os nomes no cartão, e cumprimentaram-se. Sim, era preciso impedir que o Rubião sahisse, ainda que por algum tempo. Minas podia retel-o. Que era elle na Corte mais que um hospede de alguns mezes? Entenderam-se os dous, e uniram-se na acção. Concordaram que fosse a Minas, mas depois, — alguns meses depois; — e talvez o Palha fosse tambem. Nunca vira Minas; seria excellente occasião.

—  O senhor? perguntou Rubião.

— Sim, eu; ha muito que desejo ir a Minas e a S. Paulo. Olhe, ha mais de anno que estivemos vae não vae... Sophia é companheira para estas cousas. Lembra-se quando nos encontramos no trem da estrada de ferro?... Vinhamos de Vassouras; mas esta ideia de Minas nunca nos deixou. Iremos os tres.

Rubião agitava-se no canapé, um pouco tremulo. Sorria, abanava a cabeça. Camacho allegava os successos politicos…

— Por isso mesmo, as eleições, interrompia Rubião.

— Não, deixe lá as eleições. Cá temos muito que fazer por ora. Precisamos lutar aqui mesmo, na capital; aqui é que devemos esmagar a cabeça da cobra. Lá irá quando fôr tempo; irá então receber a recompensa e matar as saudades… E saiba que politico não tem saudades; e o dever do cidadão é entregar-se ao seu partido, militar no ostracismo para triumphar no dia da victoria.

A recompensa era, com certeza, o diploma de deputado. Rubião entendeu bem, posto que o outro não lhe fallasse em tal. Visão deliciosa, ambição que nunca teve, quando era um pobre diabo... Eil-a que o toma, que lhe aguça todos os appetites de grandezas e de gloria… De outro lado, o amigo Christiano continua a fallar da necessidade de ficar, por enquanto, — mórmente agora que acaba de saber da vocação politica do amigo. Concorda com o outro, sem saber bem porque, nem para que. Tudo é que fique.

— Mas uma viagem de alguns dias, disse Rubião sem desejo de lhe aceitarem a proposta.

— Vá de alguns dias, concordou Camacho.

A lua estava então brilhante; a enseada, vista pelas janellas, apresentava aquelle aspecto seductor que nenhum carioca póde crêr que exista em outra parte do mundo. A figura de Sophia passou ao longe, na encosta do morro, e diluiu-se no luar; a ultima sessão da câmara, tumultuosa, ressoou aos ouvidos do Rubião... Camacho foi até á janella e voltou logo.

— Mas quantos dias? perguntou elle.

— Isso é que não sei, mas poucos.

— Em todo o caso, amanhã fallaremos.

Camacho despediu-se. Palha ficou ainda alguns instantes, para dizer-lhe que seria exquisito que voltasse para Minas, sem que elles liquidassem as contas... Rubião interrompeu-o. Contas? Quem lhe fallava em contas?

— Bem se vê que o senhor não é homem de commercio, redarguiu Christiano.

— Não sou, é verdade; mas as contas pagam-se quando se podem. Entre nós, tem sido isto. Ou, quem sabe? Seja franco; precisa de algum dinheiro?

— Não, não preciso. Obrigado. Tenho que propor um negocio, mas hade ser mais demoradamente. Vim vel-o para não botar annuncios nos jornaes: “Desappareceu um amigo, por nome Rubião, que tem um cachorro...”

Rubião gostou da facecia. Palha sahiu e elle foi acompanhal-o até a esquina da rua marques de Abrantes. Ao despedir-se prometeu ir visital-o em Santa Thereza, antes de ir a Minas.

LX

Pobre Minas! Rubião voltou para casa, sozinho, a passo lento, pensando no modo de lá não ir agora, visto que era necessario ficar. E as palavras dos dous andavam-lhe no cerebro, como peixinhos de ouro em globo de vidro, abaixo, acima, rutilantes: “aqui é que se deve esmagar a cabeça da cobra”; —“Sophia é companheira para estas viagens”. Pobre Minas!

LXI

No dia seguinte recebeu um jornal que nunca vira antes, a Atalaia, sem nome de redactor, artigos anonymos, varias noticias, poucos annuncios e de grandes letras. O artigo editorial desancava o ministerio; a conclusão, porém estendia-se a todos os partidos e á nação inteira: — Mergulhemos no Jordão constitucional. Rubião achou-o excellente; tratou de ver onde se imprimia a folha para assignal-a. Freitas, que veiu almoçar com elle, deu-lhe explicações sobre a Atalaia. Era redigido pelo Dr. Camacho, um Camacho…

— Conheço; ainda hontem esteve aqui commigo, interrompeu Rubião.

— é delle, e não é má. Que diz o numero de hoje?

Freitas leu o artigo com emphasis, por modo que o Rubião ainda o achou melhor do que quando o lera na cama. Concordaram que era magnifico. Ao almoço, fallaram muito do Camacho, confessando Rubião que sympathizava com elle, e pedindo ao outro a sua opinião. A opinião era a mesma. Depois indagou dos costumes da pessoa, da consideração em que a tinham, e todas as respostas foram agradaveis; era homem circunspecto, estimado, perfeito cavalheiro, un gentleman.

LXII

Nesse mesmo dia foi ao escriptorio de Camacho. Queria elogiar o artigo e assignar a folha. Ia andando pela rua da Ajuda, quando succedeu dar com um menino de dous annos, se tanto, no meio da rua, e um carro que descia a trote largo, com o cocheiro distrahido. A mãi, que estava á porta de uma colchoaria, deu um grito angustioso, mas não teve forças para correr a salval-o.

— Deolindo! Deolindo! bradou a pobre mulher.

Rubião ouviu o grito primeiro; depois é que viu o perigo. Tudo foi rapido. O carro vinha já sobre a creança. Rubião correu ao meio da rua, bradou ao cocheiro que parasse. A creança, tendo ouvido a mãi, ia a voltar para ella, mas deu com o carro, atarantou-se e caiu. O cocheiro refreou os animaes, mas a marcha em que vinha não permittia fazel-os parar de subito. Então o nosso amigo deitou a mão com força ao freio de um delles, e com a outra pegou do menino, que já estava entre as patas de ambos. Podia ser envolvido por elles, mas conseguiu salvar a creança.

A mãi, quando o recebeu das mãos do Rubião, não podia fallar; estava pallida, tremula, e chorava. Algumas pessoas puseram-se a altercar com o cocheiro, mas um homem calvo, que vinha dentro, ordenou-lhe que fosse andando sem demora. O cocheiro continuou o seu caminho. Assim, quando o pai, que estava no interior da colchoaria, veio fora, já o carro dobrava a esquina de S. José.

— Ia quase morrendo, disse a mãi. Se não fosse este senhor, não sei o que seria do meu pobre filho.

Era um acontecimento no quarteirão. Vizinhos entraram a ver o que succedera ao pequeno; na rua,

creanças e moleques, espiavam pasmados. A creança tinha apenas um arranhão no hombro esquerdo, e certamente produzido pela queda, não pelos cavallos.

— Ah! mas você é descuidada, Josephina! dizia o marido. Como é que você deixa sair assim o menino?

— Estava aqui na calçada, redarguiu a mãe.

— Qual calçada! A creança o que quer é brincar. Você é muito distrahida...

— E você tambem não é? Quero vêr se você tambem não se distrae.

— Não foi nada, interveiu Rubião; em todo caso, não deixem o menino sahir á rua; é muito pequenino.

— Obrigado, disse o marido; mas onde está o seu chapéo?

Rubião advertira então que perdêra o chapéo. Um rapazinho esfarrapado, que o apanhára, estava á porta da colxoaria, aguardando a occasião de restituil-o. Rubião deu-lhe uns cobres em recompensa, cousa em que o rapazinho não pensava, ao ir apanhar o chapéo. Não o apanhou senão para ter uma parte na gloria e nos serviços. Entretanto, aceitou os cobres com prazer; foi talvez a primeira ideia que lhe deram da venalidade das cousas.

— Mas, espere, tornou o colchoeiro, o senhor feriu-se?

Com effeito, a mão do nosso amigo tinha sangue; havia um ferimento na palma, cousa pequena, e que elle não podia saber se era obra do dente do cavallo, se de algum ferrão das correias. A verdade é que só agora começou a sentil-o. A mãe do pequeno correu a buscar uma bacia e uma toalha, apezar de dizer o Rubião que não era nada, que não valia a pena. Veiu a agua; emquanto elle lavava a mão, o colchoeiro correu á pharmacia proxima, e trouxe o medicamento necessario. Rubião curou-se, atou o lenço na mão; a mulher do colchoeiro escovou-lhe o chapéo, e, quando elle sahiu, um e outro agradeceram-lhe muito o beneficio da salvação do filho. A outra gente, que estava á porta e na calçada fez-lhe alas. Rubião seguiu o seu caminho.

(Continúa.)

LXIII

Que é que tem ahi na mão? inquiriu Camacho.

Rubião narrou o incidente da rua da Ajuda. O advogado fez-lhe muitas perguntas sobre a creança, os paes, o numero da casa; mas, o proprio Rubião pôz termo ás respostas.

— Não sabe ao menos, o nome do pequeno?

— Ouvi chamar Deolindo. Vamos ao que importa. Venho assignar a sua folha; recebi um numero, e quero contribuir para...

Camacho acudiu que não precisava de assignaturas. Em assignaturas, a folha ia bem. O que ella precisava era de material typographico e desenvolvimento no texto; ampliar a materia, pôr-lhe mais noticiario, variedades, traducção de algum romance para o folhetim, movimento do porto, da praça, etc. Tinha annuncios, como viu.

— Sim, senhor.

— Nem pense que eu me descuido disso. Tenho o capital quasi subscripto. Bastam dez pessoas, e já somos oito; eu e mais sete. Faltam dous. Com mais duas pessoas está completo o capital.

— Quanto será? pensou Rubião.

Camacho batia com um canivete na beira da escrevaninha, calado, olhando ás furtadellas para o outro. Rubião passava uma vista á sala, poucos moveis, alguns autos sobre um tamborete ao pé do advogado, estante com livros, Lobão, Pereira e Souza, Dalloz, Ordenações do reino, um retrato na parede, deante da escrevaninha.

— Conhece? disse Camacho apontando para o retrato.

— Não, senhor.

— Veja se conhece.

— Não posso saber. Nunes Machado?

— Não, acudiu pesaroso o ex-deputado. Não pude obter um bom retrato delle. Vendem se ahi umas photographias que me não parecem boas. Não; aquelle é o marquez.

— De Barbacena?

— Não, do Paraná; é o grande marquez, meu particular amigo. Tentou conciliar os partidos, e foi por isso que me achei com elle. Morreu cedo; a obra não pôde ir adeante. Hoje, se elle a quizesse, ter-me-hia contra si. Não! nada de conciliações; guerra de morte. Havemos de destruil-os; leia a Atalaia, meu bom companheiro de lutas; recebel-a-ha em casa...

— Não, senhor.

— Porque não?

Rubião baixou os olhos deante do nariz interrogativo do Camacho.

— Não, senhor; sou firme, desejo ajudar os amigos. Receber a folha de graça...

— Mas, se já lhe disse que de assignaturas vamos bem, retorquiu Camacho.

— Sim, senhor, mas não disse tambem que faltam duas pessoas. para o capital?

— Duas, sim; temos oito...

— Quanto é o capital?

— O capital é de cincoenta contos; cinco por pessoa.

— Pois entro com cinco.

Camacho agradeceu-lh'o em nome das ideias. Tinha intenção de convidal-o para entrar com elles; era um direito adquirido pela convicção, pela fidelidade, pelo amor aos negocios publicos do seu recente amigo. Uma vez que espontaneamente se alistou, pedia-lhe que o desculpasse... Mostrou-lhe a lista dos outros; Camacho era o primeiro; entrava com a folha, o material existente, as assignaturas e o trabalho herculeo... Ia a emendar-se, mas repetiu corajosamente: trabalho herculeo. Podia dizer que o era, sem deslustre, nem mentira; esganou cobras, em creança. Já agora era um vicio; gostava da luta, morreria nella, envolvido na bandeira...

— Está ahi uma senhora que deseja fallar a V. Ex., veiu dizer o porteiro.

Rubião levantou-se.

— Mande entrar. Adeus, até breve; temos de fazer uma reunião...

Rubião despediu-se. No corredor passou por elle uma senhora alta, vestida de preto, com um arruido de seda e vidrilhos. Indo a descer a escada, ouviu a voz do Camacho, mais alta do que até então: — Oh! senhora baroneza!

LXIV

Na rua, encontrou Sophia com uma senhora edosa e outra moça. Não teve olhos para ver bem as feições desta; todo elle foi pouco para Sophia. Fallaram-se acanhadamente, dous minutos apenas. Rubião parou adeante, e olhou para ellas; mas as tres senhoras iam andando sem voltar a cabeça. Depois do jantar, comsigo:

— Irei lá hoje?

Reflexionou muito sem adeantar nada. Ora que sim, ora que não. Achara-lhe um modo exquisito; mas lembrava-se que sorriu, — pouco, mas sorriu. Poz o caso á sorte. Se o primeiro carro que passasse viesse da direita, iria; se viesse da esquerda, não. E deixou-se estar na sala, no pouf central, olhando. Veiu logo um tilbury da esquerda. Estava dito; não ia a Santa Thereza. Mas aqui a consciencia reagiu; queria os proprios termos da proposta: um carro. Tilbury não era carro. Devia ser o que vulgarmente se chama carro, uma caleça inteira ou meia, ou ainda uma victoria... D'ahi a pouco vieram chegando da direita muitas caleças, que voltavam de um enterro. Foi.

Sophia deu-lhe a mão gentilmente, sem sombra de rancor. As duas senhoras do passeio estavam com ella, em trajes caseiros; apresentou-as. A moça era prima, a velha era tia, — aquella tia da roça, autora da carta que Sophia recebeu no jardim das mãos do carteiro, que logo depois deu uma queda. A tia chamava-se D. Maria Augusta; tinha uma fazendola, alguns escravos e dividas, que lhe deixára o marido, alem das saudades. A filha era Maria Benedicta, — nome que a vexava, por ser de velha, dizia ella; mas a mãe retorquia-lhe que as velhas foram algum dia moças e meninas, e que os nomes adequados ás pessoas eram cousas de poetas e contadores de historias. Maria Benedicta era o nome da avó della, afilhada de Luiz de Vasconcellos, o vice-rei. Que queria mais?

(Continúa.)

LXIV

(Continuação)

Contaram isto ao Rubião, sem que ella se vexasse. Sophia, ou por attenuar o caso, ou por outro motivo, accrescentou que os mais feios nomes eram lindos, segundo a pessoa. Maria Benedicta era lindíssimo.

— Não lhe parece? concluiu voltando-se para Rubião..

— Deixa de caçoada, prima! acudiu Maria Benedicta, rindo.

Podemos crer que a velha nem Rubião entenderam o dito, — a velha, porque começava a cochilar, — Rubião porque affagava um cãosinho que tinham dado a Sophia, pequeno, delgado, leve, boliçoso, olhos negros, com um guizo ao pescoço. Mas, insistindo a dona da casa, elle respondeu que sim, sem saber o que era. Maria Benedicta tornou a rir. Em verdade, não era uma formosura; não lhe pedissem olhos que fascinam, nem d'essas boccas que segredam alguma cousa, ainda caladas. Altinha, mãos grandes, grandes olhos attonitos quando escutavam sómente, mas que sabiam rir e conversar, se a bocca fallava tambem, — ahi fica o principal das feições da moça. Era natural, sem acanho de roceira; e tinha um donaire particular, que corrigia os descuidos do vestido.

Nascera na roça e gostava da roça. A roça era perto, Iguassú. De longe em longe vinha á cidade, passar alguns dias; mas, ao cabo dos dous primeiros, já estava anciosa por tornar a casa. A educação foi summaria: ler, escrever, doutrina e algumas obras de agulha. Nos ultimos tempos (ia em dezenove annos), Sophia apertou com ella para apprender piano; a tia consentiu: Maria Benedicta veiu para a casa da prima, e alli esteve uns dezoito dias. Não pôde mais; apertaram as saudades da mãe e da filha, e a moça voltou para a roça, deixando consternado o professor, que annunciou n'ella, desde os primeiros dias, um grande talento musical.

— Oh! sem duvida, um grande talento!

Maria Benedicta riu-se quando a prima lhe contou isto, e nunca mais pode ver a serio o homem. Ás vezes, no meio de uma licção, deitava a rir; Sophia contrahia as sobrancelhas, a modo de ralho, e o pobre homem perguntava o que era, e de si mesmo explicava rindo que havia ser alguma lembrança de moça, e continuava a licção. Nem piano nem francez, — outra lacuna, que Sophia mal podia desculpar. D. Maria Augusta não comprehendia a consternação da sobrinha. Para que francez? A sobrinha dizia-lhe que era indispensavel para conversar, para ir ás lojas, para ler um romance...

— Sempre fui feliz sem francez, respondia a velha; e os meia-linguas da roça são a mesma cousa; não vivem peior que os creoulos.

Um dia accrescentou:

— Nem por isso lhe hão de faltar noivos. Pode casar, já lhe disse que pode casar quando quizer, que eu tambem casei; e até deixar-me na roça, sosinha, morrer como uma besta velha...

— Mamãe!

— Não tenha pena; é só apparecer o noivo. Em apparecendo, vá com elle, e deixe-me ficar. Olha Maria José o que fez commigo? Vive lá pelo Ceará...

— Mas se o marido é juiz de direito, ponderava Sophia.

— Torto que seja! Para mim é a mesma cousa. Cá fica o frangalho da velha. Casa, Maria Benedicta, casa depressa; eu morrerei com Deus... Não terei filhos, mas terei Nossa Senhora, que é mãe de todos. Casa, anda, casa!

Toda essa rabugem era calculo; tinha em mira arredar a filha do matrimonio, excitando-lhe o terror e a piedade. Quando menos, retardar-lh'o. Não creio que confessasse esse peccado ao confessor, nem que chegasse a sentil-o: era obra de um egoismo edoso e melindroso. D. Maria Augusta fora longamente querida; a mãe era douda por ella, o marido amou-o até o ultimo dia com a mesma intensidade. Mortos ambos, todas as suas saudades filiaes e matrimoniaes foram postas na cabeça das duas filhas. Uma fugira-lhe, casando. Ameaçada da solidão, se a outra casasse tambem, .D. Maria Augusta fazia tudo o que podia por espaçar o terrivel lance.

LXV

Curta foi a visita de Rubião. As oito horas levantou-se elle discretamente, esperando qualquer palavra de Sophia, um pedido para que ficasse ainda algum tempo, que esperasse o marido que já vinha, um espanto que fosse: Já! mas nem isso. Sophia estendeu-lhe a mão, em que elle mal pôde tocar. Comtudo, a moça, durante a visita, mostrou se tão natural, tão sem rancor... Não teve seguramente os olhos longos e pausados, como d'antes; parecia até que não houvera nada, nem bem nem mal, nem morangos, nem lua. Rubião tremia, não achava palavras; ella achava todas as que queria, e, se era preciso olhar para elle, fazia-o direitamente, tranquillamente.. .

— Lembranças ao nosso Palha, murmurou elle de chapéo e bengala na mão.

— Obrigada! Foi fazer uma visita; parece que ouço passos; hade ser elle.

Não era elle; era Carlos Maria. Rubião ficou espantado de o ver alli, mas achou logo que a presença da fazendeira e da filha explicaria tudo; podia ser até que fossem aparentados.

— Ia saindo, quando o senhor entrou, disse-lhe Rubião depois de o ver sentado ao pé de D. Maria Augusta.

— Ah! respondeu o outro, indifferentemente, olhando para o retrato de Sophia.

Sophia foi até á porta despedir-se do Rubião; disse-lhe que naturalmente o marido ficaria com pena de não estar em casa; mas que a visita era imperiosa. Negocios... Iria pedir-lhe desculpa.

— Que desculpa? acudiu Rubião.

Parece que quiz dizer ainda alguma cousa; mas o aperto de mão de Sophia e a reverencia que esta lhe fez, deram-lhe o signal de despedida. Rubião despediu-se, atravessou o jardim, ouvindo a voz de Carlos Maria, na sala:

— Vou denunciar seu marido, minha senhora; é um criminoso provavel; le mauvais goût mène au crime... e elle é homem de muito mau gosto.

Rubião parou.

— Porque? suspirou Sophia.

— Tem este seu retrato na sala, continuou Carlos Maria; a senhora é muito mais bella, infinitamente mais bella do que a pintura... Comparem, minhas senhoras.

(Continúa.)

LXVI

Como elle diz aquellas cousas tão naturalmente! pensou Rubião, em casa, relembrando as palavras de Carlos Maria. Desfazer no retrato só para elogiar a pessoa! Note-se que o retrato é muito parecido...

LXVII

De manhã, na cama, teve um sobresalto. O primeiro jornal que abriu foi a Atalaia. Leu o artigo editorial, uma correspondência, e algumas noticias. De repente, deu com o seu nome.

— Que é isto?

Era o seu proprio nome impresso, rutilante, multiplicado, nada menos que uma noticia do caso da rua da Ajuda. Depois do sobresalto, aborrecimento. Que diacho de ideia aquella de imprimir uma cousa particular, contada em confiança? Não quiz ler nada; desde que percebeu o que era, deitou a folha ao chão, e pegou em outra. Infelizmente, perdera a serenidade, lia por alto, pulava algumas cousas, não entendia outras; ou dava por si no fim de vinte linhas sem saber como viera escorregando até alli...

Ao levantar-se, sentou-se na poltrona, ao pé da cama, e pegou da Atalaia. Lançou os olhos pela noticia: era mais de uma columna. Columna e tanto para cousa tão diminuta! pensou comsigo. E afim de ver como é que Camacho enchera o papel, leu a noticia, um pouco ás pressas, vexado dos adjectivos e da descripção dramatica do caso.

— Foi bem feito! disse em voz alta. Quem me mandou ser linguarudo?

Passou ao banho, vestiu-se, penteou-se, sem esquecer a bisbilhotice da folha, acanhado com a publicação de um negocio, que elle reputava minimo, e ainda mais pelo encarecimento que lhe dera o escriptor, como se se tratasse de dizer bem ou mal em politica. Ao café, pegou novamente na folha, para ler outras cousas, nomeações do governo, um assassinato em Garanhuns, meteorologia, até que a vista desastrada foi cair na noticia, e leu-a então com pausa. Aqui, confessou Rubião que bem podia crer na sinceridade de Camacho. O enthusiasmo da linguagem explicava-se pela impressão que lhe ficou do facto; tal foi ella que lhe não permittiu ser mais sobrio. Naturalmente é o que foi. Rubião recordou a sua entrada no escriptorio do Camacho, o modo porque fallou; e dahi tornou atraz, ao proprio acto. Estirado no gabinete, evocou a scena: o menino, o carro, os cavallos, o grito, o salto que deu, levado de um impeto, irresistivel: — Agora mesmo não podia explicar o negocio; foi como se lhe tivesse passado uma cousa pelos olhos... A tirou-se á creança, e aos cavallos, cego e surdo, sem attender ao proprio risco... E podia ficar alli, embaixo dos animaes, esmagado pelas rodas, morto ou ferido; ferido que fosse... Podia ou não podia? Era impossivel negar que a situação foi grave... A prova é que os paes e a visinhança...

Rubião interrompeu as reflexões para ler ainda a noticia. Que era bem escripta, era. Trechos havia que releu com muita satisfação. O diabo do homem parecia ter assistido á scena. Que narração! que viveza de estylo! Alguns pontos estavam accrescentados, — confusão de memoria, — mas o accrescimo não ficava mal. E certo orgulho que lhe notou ao repetir-lhe o nome? "O nosso amigo, o nosso distinctissimo amigo, o nosso valente amigo..."

Ao almoço, riu-se de si mesmo; achou-se mortificado o em demasia. Afinal, que tinha que o outro desse aos seus leitores uma cousa que era verdadeira, que era interessante, dramatica, — e, seguramente — não vulgar? Sahindo, recebeu alguns comprimentos; Freitas chamou-lhe S. Vicente de Paula. E o nosso amigo sorria, agradecia, diminuia-se, não era nada...

— Nada? replicou alguem. Dê-me muitos desses nadas... Salvar uma creança com risco da propria vida...

Rubião ia concordando, ouvindo, sorrindo; contava a scena a alguns curiosos, que a queriam da propria bocca do autor. Certos ouvintes respondiam com proezas suas, — um que salvara uma vez um homem, outro uma menina, prestes a afogar-se no boqueirão do Passeio, estando a tomar banho. Vinham tambem suicidios malogrados, por intervenções do ouvinte, que tomou a pistola ao infeliz, e fel-o jurar... Cada gloriasinha occulta picava o ovo, e punha a cabeça de fóra, olho aberto, sem pennas, em volta da gloria maxima do Rubião. Tambem teve invejosos, alguns que nem o conheciam, só por ouvil-o louvar em voz alta. Rubião foi agradecer a noticia ao Camacho, não sem alguma censura pelo abuso de confiança, mas uma censura molle, ao canto da bocca... D'alli foi comprar uns tantos exemplares da folha para os amigos de Barbacena. Nenhuma outra transcreveu a noticia; elle, a conselho do Freitas, fel-a reimprimir nos a pedidos do Jornal do Commercio, interlinhada.

LXVIII

Maria Benedicta consentiu finalmente em apprender francez e piano. Durante quatro dias a prima teimou com ella, a todas as horas, de tal arte e maneira, que a mãe da moça resolveu appressar a volta á fazenda, para evitar que ella acabasse aceitando. A filha resistiu muito; respondia que eram cousas superfluas, que moça de roça não precisa de prendas da cidade. Uma noite, porém, estando alli Carlos Maria, pediu-lhe este que tocasse alguma cousa; Maria Benedicta fez-se vermelha. Sophia acudiu com uma mentira:

— Não lhe peça isso; ainda não tocou depois que veiu. Diz que agora só toca para os roceiros.

— Pois faça de conta que somos roceiros, insistiu o moço.

Felizmente, fallou logo de outra cousa, do baile da baroneza do Piauhy (casualmente, a mesma que o nosso amigo Rubião encontrou no escriptorio do Camacho), um baile esplendido, oh! esplendido! A baroneza presava o muito. No dia seguinte, Maria Benedicta declarou á prima que estava prompta a aprender piano e francez, rabeca e até russo, se quizesse. A difficuldade era vencer a mãe. Esta, quando soube da resolução da filha, poz as mãos na cabeça. Que francez? que piano? Bradou que não, ou então que deixasse de ser sua filha; podia ficar, tocar, cantar, fallar cabinda ou a lingua do diabo que os levasse a todos. Palha é que a persuadiu finalmente; disse-lhe que, por mais superfluas que lhe parecessem aquellas prendas, eram o minimo dos adornos de uma educação de sala...

— Mas eu criei minha filha na roça e para a roça, interrompeu a tia.

— Para a roça? Quem sabe lá para que cria os filhos? Meu pae destinava-me a padre; é por isso que arranho algum latim. A senhora não hade viver sempre; os seus negocios andam atrapalhados. Pode acontecer que Maria Benedicta fique ao desamparo... Ao desamparo, não digo; emquanto vivermos somos todos uma só pessoa. Mas não é melhor prevenir? Podia ser até que, se lhe faltassemos todos, ella vivesse á larga, só com ensinar francez e piano... Basta que os saiba para estar em condições melhores. É bonita, como a senhora foi no seu tempo; e possue raras qualidades moraes. Pode achar marido rico... Sabe a senhora se já tenho alguem em vista, pessoa seria?

— Sim? Então ella vae aprender francez, piano e namoro?

— Que namoro? Fallo-lhe de pensamentos intimos, de um plano que me pareceu adequado á felicidade della e de sua mãe. Pois eu havia... Ora, tia Augusta!

Palha mostrou-se tão mortificado, que a tia deixou o tom aspero pelo tom secco. Resistiu ainda: mas a noite deu-lhe bons conselhos. O estado dos seus negocios, e a possibilidade de um genro abastado fizeram mais que outras razões. Os melhores genros da roça alliavam-se a outras fazendas, a familias de representação e riqueza segura. Dous dias depois acharam um modus vivendi: Maria Benedicta ficaria com a prima; iriam de quando em quando á roça, e a tia tambem viria á capital, para vel-os. Palha chegou a dizer que, logo que o estado da praça o permitisse, arranjaria meio de liquidar-lhe os negocios e transportal-a para aqui. Mas a isto a boa senhora abanou a cabeça.

(Continúa.)

LXVIII

(Continuação)

Não se pense que tudo isso foi tão facil como ahi fica escripto. Na pratica, vieram os obices, amofinações, saudades, rebelliões de Maria Benedicta. Dezoito dias depois da volta da mãe á fazenda, quiz ir visital-a, e a prima acompanhou-a; estiveram lá uma semana. A mãe, dous meies depois, veiu passar uns dias aqui. Sophia acostumava habilmente a prima ás distracções da cidade; theatros, visitas, passeios, reuniões em casa, vestidos novos e bem talhados, chapéos lindos e graciosos, joias. Maria Benedicta era mulher, posto que mulher exquisita; gostou de taes cousas, mas tinha para si que, logo que quizesse, podia arrebentar todos esses liames, e andar para a roça. A roça vinha ter com ella, ás vezes, em sonho ou simples devaneio. Depois dos primeiros saráos, quando voltava para casa, não eram as sensações da noite que lhe enchiam a alma; eram as saudades de Iguassú. Cresciam mais a certas horas do dia, quando a quietação da casa e da rua era completa. Então batia as azas para a varanda da velha casa, onde bebia café, ao pé da mãe; pensava na escravaria, nos moveis antigos, nas lindas chinellas que lhe mandara o padrinho, um fazendeiro rico de S. João d'El-rey, — e que lá ficaram em casa. Sophia não consentiu que ella os trouxesse.

Os mestres de francez e piano eram homens sabedores do officio. Sophia teve modo de dizer-lhes em particular que a prima vexava-se de aprender tão tarde, e pediu-lhes que não fallassem nunca de tal discipula. Prometteram que sim; o de piano apenas referiu o pedido a alguns collegas d'arte, que lhe acharam graça, e contaram outras anedoctas da clientela. O certo é que Maria Benedicta aprendia com singular facilidade, estudava com afinco, quasi todas as horas, a tal ponto que a mesma prima julgou acertado interrompel-a.

— Descança, filha de Deus!

— Deixa recobrar o tempo perdido, respondia ella rindo.

Então Sophia inventava passeios, á toa, para fazel-a descançar. Ora um bairro, ora outro. Em certas ruas, Maria Benedicta não perdia tempo: lia as taboletas francezas, e perguntava pelos substantivos novos, que a prima, algumas vezes, não sabia dizer o que eram, tão estrictamente adequado era o seu vocabulario ás cousas do vestido, da sala e do galanteio.

Mas não era só nessas disciplinas que Maria Benedicta fazia progressos rapidos. A pessoa ajustára-se ao meio, mais depressa do que faziam crer o gosto natural e a vida da roça. Já competia com a outra, embora houvesse nesta um desgarre, e não sei que expressão particular que, para assim dizer, sublinhava todas as linhas e gestos da figura. Não obstante essa differença, é certo que a outra era vista e notada ao pé della, de tal geito que Sophia, que começára por louval-a em toda a parte, não a deslouvava agora, mas ouvia calada as admirações. Fallava bem; — mas quando calava, era por muito tempo; dizia que eram os seus "calundús". Contradansava sem vida, que é a perfeição desse genero de recreio; gostava muito de ver polkar e valsar. Sophia, adivinhando que era por medo que a prima não valsava nem polkava, quiz dar-lhe algumas lições em casa, sosinhas, com o marido ao piano; mas a prima recusava sempre.

— Isso é ainda um bocadinho de casca da roça, disse-lhe uma vez Sophia.

Maria Benedicta sorriu de um modo tão particular, que a outra não insistiu. Não foi riso de vexame, nem de despeito, nem de desdem. Desdem, porque? Comtudo, é certo que o riso parecia vir de cima. Não menos o é que Sophia polkava e valsava com ardor, e ninguem se pendurava melhor do hombro do parceiro; Carlos Maria, que era raro dansar, só valsava com Sophia, — dous ou tres gyros, dizia elle;  — Maria Benedicta contou uma noite quinze minutos.

(Continúa.)

LXIX

Os quinze minutos foram contados no relogio do Rubião, que estava ao pé da Maria Benedicta, e a quem ella perguntou duas vezes que horas eram, no principio e no fim da valsa. A propria moça inclinou-se para ver bem o ponteiro dos minutos.

— Está com somno? perguntou Rubião.

Maria Benedicta olhou para elle de soslaio. Viu-lhe o rosto placido, sem intenção nem riso.

— Não, respondeu; digo-lhe até que estou com medo que prima Sophia se lembre de ir cedo para casa.

— Não vae cedo. Já acabou a desculpa de Santa Thereza, por causa da subida. A casa fica perto daqui.

De facto as duas moravam agora na praia do Flamengo, e o baile era na rua dos Arcos.

É de saber que tinham decorrido oito mezes desde o principio do capitulo anterior, e muita cousa estava mudada. Rubião, por exemplo, é socio do marido de Sophia, em uma casa de importação, á rua da Alfandega, sob a firma Palha & Comp. Era o negocio que este ia propor-lhe, naquella noite, em que achou o Dr. Camacho na casa de Botafogo. Rubião, apezar de facil, recuou algum tempo. Pediam-lhe um bom par de contos de réis, não entendia de commercio, não lhe tinha inclinação. Demais, os gastos particulares eram já grandes; o capital precisava do regimen do bom juro e alguma poupança, a vêr se recobrava as cores e as carnes primitivas. O regimen que lhe indicavam não era claro; Rubião não podia comprehender os algarismos do Palha, calculos de lucros, tabellas de preço, direitos da alfandega, nada; mas, a linguagem fallada suppria a escripta. Palha dizia cousas extraordinarias e aconselhava ao amigo que aproveitasse a occasião para pôr o dinheiro a caminho, multiplical-o. Se tinha medo, era outra cousa; elle, Palha, faria o negocio com John Roberts socio que foi da casa Wilkinson, fundada em 1844, cujo chefe voltou para a Inglaterra, e era agora membro do parlamento.

Rubião não cedeu logo, pediu praso, cinco dias. Consigo, era mais livre; mas desta vez a liberdade só servia para atordoal-o. Computou os dinheiros despendidos, avaliou os rombos feitos no cabedal, que lhe deixára o philosopho. E, como nessa occasião, o cão estivesse diante delle, no gabinete, deitado, levantou casualmente a cabeça e fitou-o. Rubião estremeceu; a idéa de que naquelle Quincas Borba podia estar a alma do outro nunca se lhe varreu inteiramente do cerebro. Desta vez chegou a ver-lhe um tom de reproche no olhar; mas riu se, era tolice; cachorro não podia ser homem. Insensivelmente, porém, abaixou a mão e coçou as orelhas ao animal, para captal-o.

Atraz dos motivos de recusa, vieram outros contrarios. E se o negocio rendesse? Se realmente lhe multiplicasse o que tinha? Accrescia que a posição era respeitavel, e podia trazer-lhe vantagens na eleição, quando houvesse de propor-se ao parlamento, como o velho chefe da casa Wilkinson. Outra razão mais forte ainda era o receio de magoar o Palha, de parecer que lhe não confiava dinheiros, quando era certo que, dias antes, recebera parte da divida antiga, e a outra parte restante devia ser-lhe restituída dentro de dous mezes.

Nenhum desses motivos era pretexto de outro; vinham de si mesmos. Sophia appareceu no fim, sem deixar de estar nelle, desde o principio, ideia latente, inconsciente, uma das causas ultimas do acto, e a unica dissimulada. Rubião abanou a cabeça para expellil-a, e levantou-se. Sophia (dona astuta!) recolheu-se á inconsciencia do homem, respeitosa da liberdade moral, e deixou-o resolver por si mesmo que entraria de socio com o marido, mediante certas clausulas de segurança. Foi assim que se fez a sociedade commercial; assim é que Rubião legalisou a assiduidade das suas visitas.

— Senhor Rubião, disse Maria Benedicta depois de alguns segundos de silencio, não lhe parece que minha prima é bem bonita?

— Não desfazendo na senhora, acho.

— Bonita e bem feita.

Rubião aceitou o complemento. Um e outro acompanharam com os olhos o par de valsistas, que passeava ao longo do salão. Sophia estava magnifica. Trajava de azul escuro, mui decotada, — pelas razões ditas no cap. xxxviii; os braços nús, cheios, com uns tons de ouro claro, ajustavam-se ás espaduas e aos seios, tão acostumados ao gaz do salão. Diadema de perolas feitiças tão bem acabadas, que iam de par com as duas

perolas naturaes, que lhe ornavam as orelhas, e que Rubião lhe dera um dia...

Ao lado della, Carlos Maria não ficava mal. Era um rapaz galhardo, como sabemos, e trazia os mesmos olhos placidos do almoço do Rubião. Não tinha as maneiras subditas, nem as curvas reverentes dos outros rapazes; fallava com a graça de um rei benevolo. Entretanto, se, á primeira vista, parecia fazer apenas um obsequio áquella senhora, não é menos certo que ia desvanecido, por trazer ao lado a mais esbelta mulher da noite. Os dous sentimentos não se contradiziam; fundiam-se ambos na adoração que este moço tinha de si mesmo. Assim, o contacto de Sophia era para elle como a prosternação de uma devota, — devota magnífica, era o essencial. Carlos Maria era feito de modo que, se um dia accordasse imperador, só se admiraria da demora do ministerio em vir comprimental-o.

(Continúa.)

LXIX

(Continuação)

— Vou descançar um pouco, disse Sophia.

— Está cançada ou... aborrecida? perguntou-lhe o braceiro.

— Oh! cançada apenas!

Carlos Maria, arrependido de haver admittido a outra hypothese, deu-se pressa em emendar-se.

— Sim, creio; porque é que estaria aborrecida? Mas eu affirmo que é capaz de fazer-me o sacrificio de passear ainda algum tempo: Cinco minutos?

— Cinco minutos.

— Nem mais um que seja? Pela minha parte, passaria a eternidade.

Sophia abaixou a cabeça.

— Com a senhora, note bem.

Sophia deixou-se ir com os olhos no chão, sem contestar, sem concordar, sem agradecer, ao menos. Podia não ser mais que uma galanteria, e as galanterias é de uso que se agradeçam. Já lhe tinha ouvido outr'ora palavras analogas, dando-lhe a primazia entre as mulheres deste mundo. Deixou de as ouvir durante seis mezes, — quatro que elle gastou em Petropolis, — dous em que lhe não appareceu. Ultimamente é que tornou a frequentar a casa, a dizer-lhe finezas daquellas, ora em particular, ora á vista de toda a gente. Deixou-se ir; e ambos foram andando calados, calados, calados, — até que elle rompeu o silencio, notando-lhe que o mar defronte da casa della, batera com muita força, na noite anterior.

— Passou lá? perguntou Sophia.

— Estive lá; ia pelo Cattete, já tarde, e lembrou-me descer á praia do Flamengo. A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora aposto que nem sonhava commigo? Entretanto, eu quasi ouvia a sua respiração...

Sophia tentou sorrir; elle continuou:

— O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente; — com esta differença que o mar é estupido, bate sem saber porquê, e o meu coração sabe que batia pela senhora.

— Oh! murmurou Sophia.

Com espanto? Com indignação? Com medo? São muitas perguntas a um tempo. Estou que a propria dama não poderia responder cabalmente, tal foi o abalo que lhe trouxe a declaração do moço. Em todo caso, não foi com incredulidade. Não posso dizer mais senão que a exclamação saiu tão frouxa, tão abafada que elle mal pode ouvil-a. Pela sua parte Carlos Maria disfarçou bem, ante os olhos de toda a sala: nem antes, nem durante, nem depois das palavras, mostrou no rosto a menor commoção; tinha até umas sombras de riso caustico, um riso de seu uso, quando mofava de alguem; parecia ter dito um epigramma. Comtudo, mais de um olho de mulher espreitava a alma de Sophia, estudava o gesto da moça, tal ou qual acanhado, e as palpebras teimosamente cahidas.

— A senhora está perturbada, disse elle; disfarce com o leque.

Sophia machinalmente entrou a abanar-se e levantou os olhos. Viu que muitos outros a fitavam, e empallideceu. Os minutos iam correndo, com a mesma brevidade dos annos; os primeiros cinco e os segundos iam longe; estavam no decimo terceiro, atraz deste iam apontando as azas de outro, e mais outro. Sophia disse ao braceiro que queria sentar-se.

— Vou deixal-a e retiro-me.

— Não, disse ella precipitadamente.

Depois, emendou-se:

— O baile está bonito.

— Está, mas eu quero levar commigo a melhor recordação da noite. Qualquer outra palavra que ouça agora será como o coaxar das rãs, depois do canto de um lindo passaro, um dos seus passaros lá de casa... Onde quer que a deixe?

— Ao lado de minha prima.

LXX

Rubião cedeu a cadeira, e acompanhou Carlos Maria, que atravessou a sala, e foi até o gabinete da entrada, onde estavam os sobretudos e uns dez homens conversando. Antes que o rapaz entrasse no gabinete, Rubião pegou-lhe do braço, familiarmente, para lhe perguntar alguma cousa, — fosse o que fosse, — mas, em verdade, para retel-o comsigo, e procurar sondal-o. Começava a crer possivel ou real uma ideia que o atormentava desde muitos dias. Agora, a conversação dilatada, os modos della...

Carlos Maria não tinha noticia da longa paixão do mineiro, guardada, mortificada, não se podendo confessar a ninguem, — esperando os beneficios do acaso, — contentando-se de pouco, da simples vista da pessoa, dormindo mal as noites, dando dinheiro para as operações mercantis... Que elle não tinha ciumes do marido. Nunca a intimidade do casal lhe excitara os odios contra o legitimo senhor. E lá iam mezes e mezes, sem alteração do sentimento, nem morte da esperança... Mas a possibilidade de um rival de fóra veiu atordoal-o; aqui é que o ciume trouxe ao nosso amigo uma dentada de sangue.

— Que é? disse Carlos Maria voltando-se.

Ao mesmo tempo entrou no gabinete, onde os dez homens tratavam de politica, porque este baile, — ia-me esquecendo dizel-o, — era dado em casa de Camacho, a proposito dos annos da mulher. Quando os dous alli entraram, a conversação era geral, o assumpto o mesmo, e todos fallavam para todos, — um turbilhão de ditos, de pareceres, de affirmações diversas... Um, que era doutrinario, conseguiu dominar os outros, que se calaram por instantes, fumando.

— Podem fazer tudo, disse o doutrinario, mas a punição moral é certa. As dividas dos partidos pagam-se com juros até o ultimo real e até a ultima geração. Principios não morrem; os partidos que o esquecem expiram no lodo e na ignominia.

Outro, meio calvo, não acreditava na punição moral, e dizia porquê; mas um terceiro, fallou da demissão de uns collectores, e os espíritos, meio tontos com a doutrina, tomaram pé. Os collectores não tinham outra culpa, alem da opinião; e nem ao menos se podia defender o acto com o merecimento dos substitutos. Um destes trazia ás costas um desfalque; outro era cunhado de um tal Marques que dera um tiro de garrucha no delegado, em S. José dos Campos... E os novos tenentes-coroneis? Verdadeiros réos de policia...

— Já se vae embora? perguntou Rubião ao moço, quando o viu tirar o sobretudo d'entre os outros.

— Já; estou com somno. Ajude-me a enfiar esta manga. Estou com somno.

— Mas ainda é cedo: fique. O nosso Camacho não deseja que os rapazes saiam; quem é que hade dansar com as moças?

Carlos Maria replicou sorrindo que era pouco dado a dansas. Valsára com D. Sophia, por ser mestra no officio; senão, nem isso. Estava com somno; preferia a cama á orchestra. E estendeu-lhe a mão com benignidade; Rubião apertou-lh'a, meio incerto.

Não sabia que pensasse. O facto de sair, de a deixar no baile, em vez de esperar para acompanhal-a á carroagem, como de outras vezes... Podia ser engano delle... E pensava, recordava a noite de Santa Thereza, quando elle ousou declarar á moça, o que sentia, pegando-lhe na bella mão delicada... O major interrompera-os; mas porque não insistiu elle mais tarde? Nem ella o maltratou, nem o marido percebera cousa nenhuma... Aqui voltava a ideia do possivel rival; é certo que se retirára com somno, mas os modos della... Rubião, erguia-se, ia á porta do salão, para ver Sophia, depois chegava-se a um canto ou á meza do voltarete, inquieto, aborrecido.

LXXI

Em casa, ao despentear-se, Sophia fallou daquelle saráo como de uma cousa enfadonha. Bocejava, doiam-lhe as pernas. Palha discordava; era má disposição della. Se lhe doiam as pernas é porque dançára muito. Ao que retorquiu a mulher que, se não dançasse, teria morrido de tedio. E ia tirando os grampos, deitando-os a um vaso de crystal; os cabellos cahiam-lhe aos poucos sobre os hombros, mal cobertos pela camisola de cambraia. Palha, por traz della, disse-lhe que o Carlos Maria valsava muito bem. Sophia estremeceu; fitou-o no espelho, o rosto era placido. Concordou que não valsava mal.

— Não, senhora, valsa muito bem.

— Você louva os outros porque sabe que ninguem é capaz de o desbancar. Anda, meu vaidoso, já te conheço.

Palha, estendendo a mão e pegando-lhe no queixo, obrigou-a a olhar para elle. Vaidoso, porque? porque é que elle era vaidoso?

— Ai, gemeu Sophia; não me machuques.

Palha beijou-lhe a espadua; ella sorriu, sem tedio, sem dor de cabeça, ao contrario daquella noite de Santa Theresa, em que relatou ao marido os atrevimentos do Rubião. É que os morros serão doentios, e as praias saudaveis...

No dia seguinte, Sophia accordou cedo, ao som dos trillos da passarada de casa, que parecia dar-lhe um recado de alguem. Deixou-se estar na cama, e fechou os olhos para ver melhor.

(Continúa.)

LXXII

Ver melhor o que? Não, seguramente, os morros doentios. A praia era outra cousa. Posta á janella, dalli a meia hora, Sophia contemplava as ondas que vinham morrer ao pé do paredão, e, ao longe, as que se levantavam e desfaziam á entrada da barra. A imaginosa dama perguntava a si mesma se aquillo era a valsa das aguas, e deixava-se ir por essa torrente de ideias abaixo, sem velas nem remos. Deu comsigo olhando para a rua, ao pé do paredão, como procurando os signaes do homem que alli estivera, na ante-vespera, alta noite... Não juro, mas cuido que achou os signaes. Ao menos, é certo que cotejou o achado com o texto da conversação:

"A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora aposto que nem sonhava commigo? Entretanto, eu quasi que ouvia a sua respiração... O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente; com esta differença que o mar é estupido, bate sem saber porque, e o meu coração sabe que batia pela senhora..."

Sophia teve um calefrio, procurou esquecer o texto, mas o texto ia-se repetindo: "A noite era clara..."

LXXIII

— Até logo, disse uma voz.

Era o Palha que estava ao portão de casa. Desde que se estabelecera como negociante, almoçava no armazem. Sophia, arrancada ás reminiscencias da vespera, mal teve tempo de fazer signal que esperasse. Desceu logo; dalli a pouco estava com elle, ao portão, risonha e fresca, apesar de cahir de somno, como disse.

— Também eu tenho somno, acudiu o marido bocejando.

— Já tomou café?

Palha, em vez de responder, disse:

— Parece que cá em casa toda a gente accordou cedo, apesar do baile. Maria Benedicta ha muito que está de pé. Sabes que quer ir para a roça?

— Como para a roça?

— Ora, como! Accordou com essa mania. Repetiu o que tem dito, que uma noite de dansa e musica faz-lhe lembrar a vida da roça, sem musica nem dansa; e parece que tambem sonhou com a mãe, um sonho de facadas... Vê se a distraes.

— Verei; mas se ella teimar em ir?

Palha fez um gesto de estranheza.

— Se teimar? Não pode teimar. Você parece esquecer tudo. Diga-lhe que tratamos de a fazer feliz. Já lhe disse isso mesmo outras vezes, por insinuação; mas é preciso pôr mãos á obra. Rubião é frouxo, acanhado ou não entende; vou pegal-o pela gola. O que é preciso é distrahil-a e guial-a.

— Você sabe muito bem que, mais de uma vez, tenho fallado no negocio, brincando. Maria Benedicta ri, creio que entende, mas não lhe faz conta. Como é desconfiada e caprichosa, não teimo no assumpto... Mas então hoje disse positivamente que se quer ir embora?

— Calundús!

— Hade haver alguma cousa mais particular para accordar assim disposta.

— Pode ser; e é o que você descobrirá, a sós com ella. As mulheres entendem-se umas ás outras. Confesso que achei tão despropositada a ideia de deixar a vida que leva e o futuro que a espera, que engrossei um pouco a voz. Você trate de desfazer qualquer má impressão. Diga-lhe que a estimo muito, que me achou penalisado e triste... Quanto ao mais, habilidade e prudencia. E não nos afoguemos em pouca agua. Se ella teimar muito, escrevo á mãe pedindo-lhe que venha e nos ajude.

Palha estendeu a mão á mulher, em despedida; mas a mulher prendeu-lh'a. Era cedo, disse ella acariciando-lhe os dedos; elle replicou que não, ia em mais de oito horas, mas deixou-se ficar. Com quê, estava com somno? E cançada, não?

— Tambem cançada.

— Pois é descançar; nem visitas nem passeios. Descançar, e dormir cedo. A reunião esteve boa... Ah! sabes que o tal Camacho tem ideias de fazer o Rubião deputado.

— Sim?

— Esteve a contar-me tudo. Affirmou-me que para elle e os seus amigos é questão de honra; Rubião hade entrar na camara. Falla nisso a Maria Benedicta.

— Pois sim, fallo... Quantas? continuou Sophia, vendo que o marido consultava o relogio.

— É tarde; passa de oito e meia. respondeu elle puxando a mão.

Sophia ainda a reteve, um instante, para saber se o marido viria cedo. Palha respondeu que sim e despediu-se. A proxima rua ficava distante da casa; mas elle contava tanto com a mulher, que antes de voltar a esquina, olhou para traz; Sophia lá estava, parada, olhando, dizendo-lhe adeus com a mão.

LXXIV

— "Pois sim, fallo", tinha dito Sophia promettendo dissuadir a prima da ideia de voltar para a roça.

Mas ha palavras friorentas ou envergonhadas, que não saem fóra do coração: nascem dentro delle, e ahi vivem o resto dos seus minutos. Quando muito, enfeitam outras, menos idoneas, e estas é que saem a passear, luzir, respirar os ares da conversação humana. Foi o que se deu com a nossa bella dama. Em quanto esta palavra lhe brotava dos labios: "Pois sim, fallo", eis a que lhe nascia e morria no coração: "Vá para a roça que me não deixa saudades".

LXXV

Com o sentimento da segunda é que Sophia entrou na sala onde a prima passava pelos olhos os jornaes do dia. Não vão crer que lhe tinha odio; mas a dama casquilha, conscia de suas graças, não atura de bom rosto uma rival, que, pelo menos, equilibra as impressões. Na vespera, Maria Benedicta tinha sido objecto de cortezias rasgadas, de preferencias na dansa, e até mulheres a acharam deliciosa, e foram dizel-o á prima. O coração trazia ainda esse veneno.

Maria Benedicta percorria uma folha, lendo a trechos, nada seguido, duas linhas de obituario, cinco de annuncios, uma noticia, uma mofina, pedaços de leilão, anecdotas; dahi o farfalhar continuo do papel. Sophia compoz o rosto, á porta, e entrou risonha na sala.

(Continúa.)

LXXV

(Continuação)

— Que valentona! Já de pé?

Maria Benedicta, colhida de espanto, estremeceu.

— E você? disse ella.

— Cá eu já estou acostumada a estas folias. Danso desde os nove annos. Em criança, arranjava sempre bailes de meninas. Menina com meninas. Aos doze, dansei com um moço; faltava um par e elle pegou em mim... Mas você dansou muito a noite passada. Tire as polkas e a valsas, creio que não perdeu occasião. E porque é que não ha de polkcar tambem?

Maria Benedicta dardejou á prima um olhar, que foi como um relampago.

— Não gosto, murmurou.

— Não negue que é medo.

— Medo?

E depois de um instante:

— Não gosto que um homem me aperte o corpo ao seu corpo, e ande commigo, assim, á vista dos outros. Tenho vexame.

Sophia deu de hombros, rindo de pena e de bondade; depois perguntou-lhe que impressão trouxera do baile. A prima acudiu que boas.

— Boas? pensou Sophia. Então as saudades da roça?

Maria Benedicta inclinou se outra vez ao jornal que estivera lendo, e deu com um artigo de agradecimento a um pharmaceutico, por ter curado o agradecido da morte, com umas pilulas. Eram trese linhas, que a moça leu inteiras, sem que lhe ficasse uma só palavra. Dansavam-lhe antes os olhos, não as lettras, mas a prima e Carlos Maria, valsando agarradinhos, como na vespera, e as mãos da moça tremiam. Deitou fora o jornal; foi como que um esforço para fugir á visão.

— Que é? perguntou Sophia.

— Nada!

A resposta foi secca e surda; Maria Benedicta levantou-se, ao proferil-a. Deu uma volta pela sala; depois de alguns instantes, apanhou o jornal, pol-o dobradinho sobre uma mesa, e foi ter com a prima, sorrindo amarello. Confessou-lhe que acordara aborrecida, sentia-se capaz de quebrar ou rasgar alguma cousa. E, dizendo isto, rasgou o lenço que trazia na mão. Sophia, espantada, perguntou-lhe o que era, que tinha, e puxou-a a si; mas a outra recuou com repugnancia, e desviou-a com um gesto violento.

— Que é que você tem? insistiu Sophia, cada vez mais aturdida. Diga-me? Que foi? Você tem algum desgosto. Anda, Maria Benedicta, falla. Que foi?

Maria Benedicta tinha ido cair n'um canapé, offegante. Os cabellos, não trançados, e mal atados, por um frouxo laço côr de rosa, desataram-se com o movimento e espalharam-se-lhe nos hombros e no peito. De um gesto, a moça pegou delles, enfeixou-os com as duas mãos, derreando a cabeça, mas não achou o laço que os prendia. Sophia, com um puxão, rasgou uma das pontas da fita preta, estreita e já edosa, que lhe servia de cinta, e, chegando-se á prima:

— Deixa ver... Que tolice é essa? Que é que te fiz? Deixa amarrar o cabello...

Conseguiu atar-lhe os cabellos. Maria Benedicta, que se .oppuzera a principio, obedeceu afinal; advertiu bem no gesto da outra, e achou que o sacrificio do cinto valia alguma cousa, — um pobre cinto velho! Sophia, depois de atar-lhe os cabellos, junto á nuca:

— Já sabia que você amanhecera aborrecida. Christiano disse-me tudo, e até parece que fallou um pouco zangado... Não se amofine com elle; creia que ficou penalisado, e que a propria zanga é signal da affeição que tem a você. Não imagina como é seu amigo. Não ha muitos dias, disse-me elle...

Continuou assim attribuindo ao marido uma porção de palavras que elle não chegara a proferir. Como não desmentiam do sentimento que ella lhe conhecia, nem dos seus motivos, fel-o sem custo, e foi mettendo discursos na historia, á maneira de Thucydides. A prima escutava, calada, já mais tranquilla, deixando que a outra lhe pegasse nas mãos e as apertasse entre as suas. Quando ella parou:

— Mas eu não estou zangada com o primo Christiano, acudiu Maria Benedicta; nem me lembra até o que elle me disse. Accordei assim, nervosa...

Depois apertou-lhe tambem as mãos, — frouxamente, é verdade, — e fez uma tentativa para sorrir, mas não passou de um geito sem significação. O desejo era sincero; mas ha organisações reversas, difficeis de tornar ás boas, ainda depois de deliberadas.

— E a roça? repetiu Sophia consigo. Ainda me não fallou da roça.

Logo, alto:

— Os nervos acabam-se desde que a gente se distrae. Vamos dar um passeio na praia, antes do almoço; ao menos, come-se com appetite. Joanna, dá cá os nossos chapéos de sol, bradou para dentro á escrava que lhe servia de camareira.

(Continúa.)

LXXV

(Continuação)

Muitas cousas aturdiam o cerebro da ex-roceira, — sensações complicadas, rascunhos de ideias, fragmentos de raciocinios, calculos de probabilidade, perguntas sem resposta, respostas sem pergunta... Tudo isso, e muito mais rapido que o tempo que levo a escrevel-o.

Dedos tropegos, palavra tardia, em quanto vos fatigaes no papel, com estas poucas linhas, já as duas primas receberam os chapelinhos de sol, desceram a escada, atravessaram o saguão e chegaram á porta. Sophia achou o mar admiravel. Maria Benedicta concluia assim a desordem das suas ideias:

— Sim, ella é boa. Gosta de polkar é o que é; não será mais que isso...

LXXVI

Cerebro não tem syntaxe. A phrase que lá fica no outro capitulo não se formulou assim na cabeça da nossa amiguinha. É correcta, posto que vaga e obscura, para nós; para ella é clara e definida, mas não a formulou assim textualmente.

Não digaes nada, se adivinhaes tudo. Ella que fique attonita descobrindo que, entre o francez e o piano, ha outra lingua triste, e outra musica menos severa, ambas feitas pelo diabo maestro e polyglotta. Resta-lhe a esperança a que se agarra: "Gosta de polkar é o que é; não será mais que isso". Calemo-nos, repito. Deixal-as ir juntinhas, com os chapéos de sol abertos e inclinados para o lado do astro. Vão costeando o mar. Fallam disto e daquillo, mas sérias. A mais garrula é Sophia; não obstante, tem silencios compridos como a outra, e ambas esquecem-se a ponto de não saber se gastaram dous ou vinte minutos caladas. Defronte da casa, quando vinham de volta, pararam algum tempo antes de ir adeante; ahi é que a pausa foi mais longa. Sophia calou-se de repente; Maria Benedicta fechou o chapelinho de sol.

— O sol não está quente, disse ella.

Sophia não respondeu nada, não ouviu nada, deixou-se estar com o seu chapéo aberto, pousado no hombro. Olhava para o chão, onde dous dias antes, estivera Carlos Maria, parado, alta noite, mirando a casa della. Mirava as pedrinhas: chegava a escutar o ranger dellas debaixo dos pés daquelle bello homem. Arguia-se de não ter adivinhado, accordado, espiado. Para que? Para contemplal o atravez da sombra, para ouvir-lhe as pancadas do coração. A allucinação foi indo, indo, até eliminar completamente a realidade. Pedras, casa, rua, prima e as mesmas ondas que batiam na praia com fragor, tudo ficou diffuso e afinal acabado para ella. Nenhum principio lutava na alma da curiosa dama; nenhuma ideia chamava por outra. Era tão sómente uma sensação confusa, mas deliciosa, em que todo o seu ser se espraiava e se esquecia.

Maria Benedicta, que tambem se esquecera de si fitando o mar, voltou a si primeiro que a outra, e deu com ella a olhar para o chão.

— Que é que você está procurando?

Sophia accordou.

— Nada, respondeu tranquillamente.

E logo depois:

— Estava vendo como estas pedrinhas formam tantas figuras, algumas bem exquisitas. Olhe, aqui está uma estrella; aqui ao pé, ve-se um chapéo, — meio torto, é verdade, — mas parece um chapéo de senhora.

Não lhe custou mentir, assim como á outra não lhe custou crer. Foram seguindo pela praia adeante, deixando a casa atraz. Agora, a menos gárrula era. Sophia; levava a scena nocturna deante dos olhos, e tinha ainda aos ouvidos a palavra carinhosa e superior de Carlos Maria. Via de memoria a "figura aristocratica" do moço; era assim que sentia consigo a mulher do ex-zangão da praça. Parecia-lhe que ainda polkavam no salão do Camacho, que enchiam todos os olhos de inveja e admiração. Maria Benedicta, quando olhava para a prima, achava-lhe o mesmo sorriso amigo, porque Sophia accordava logo, interrompia o sonho, fallavam de alguem ou de alguma cousa, — Sophia menos, — até que o silencio volvia, e o devaneio atava outra vez á alma daquella dama as asas de ouro e pluma fina.

LXXVII

Como lhes parece que entraram em casa? Entrelacadas pela cintura. Fructo do passeio á beira d'agua, — ou seja que os membros cançados esteiam mais perto da sympathia e da confiança, — ou que a salsugem do mar limpe a alma de todas as impurezas. Contudo, alguma cousa inexplicavel ficava entre ellas: a explosão de Maria Benedicta, de manha.

Nem esta queria, nem a outra podia explical-a. Era um pingo amargo na taça do mel recente. Maria Benedicta buscava extrahil-o com esta ideia, que lhe não sahia da cabeça: "gosta de polkar; é o que é". A outra é que não achava nada.

(Continúa.)

LXXVIII

— Você o que precisa é casar, disse Sophia á prima, depois do almoço.

Maria Benedicta fez-se rubra, baixou os olhos, levantou-os, com o fim de dizer alguma cousa, — responder gracejando, — mas não lhe acudiu nada. O dito da prima podia ser vago, abstracto, um conselho, — mas podia ser tambem alguma insinuação, e, entre todas, só uma a faria realmente feliz... Não lhe achou no rosto expressão maliciosa. Naturalmente falla á tôa, pensou ella. Entretanto, pôde sorrir e disse:

— Casar? Você já me deu piano e francez; agora quer tambem que me case; é muita cousa em menos de um anno. Marido tambem é prenda de sociedade?

— Seguramente, e até mais facil de estudar: não tem escalas nem grammatica.

Sophia riu da sua propria agudeza; mas, como a outra ficasse séria e pensando, colheu as redeas ao riso, e repetiu que era preciso casar.

— Com quem? perguntou Maria Benedicta.

Aqui a outra hesitou. Era tão simples dizer Rubião, —a occasião era tão propicia, — mas a boca hesitou em articular o nome. Contára ao marido que já havia feito presentir á prima, alguma vez, o projecto Rubião, mas disse-o tão sómente para o não aborrecer, fallando verdade; a verdade é que nunca lhe tocou em tal. Agora que a noticia vinha de si mesma, recuou; e teimando a outra que lhe dissesse com quem é que podia casar, nem assim lhe sahiu o nome da boca, por mais que tentasse proferil-o; nem o nome, nem algum indicio. Podia dizer que era pessoa muito da casa, varão sisudo e rico, parece que filho de Minas, proximo deputado, e ahi encartava o advento politico do Rubião... Nada; não lhe sahia nada. Em compensação, bateu-lhe nas mãos, rindo; depois tocou-lhe com o dedo na testa, dando a entender que havia alli um segredo, que ella bem sabia o nome da pessoa, que toda a gente o conhecia, etc. Maria Benedicta entendeu o gesto, fez-se outra vez rubra, e desviou os olhos, medrosa.

— Gosta de alguem! disse consigo Sophia. E, querendo descobrir quem era, imaginou citar os nomes conhecidos. Começaria pelo Rubião; fez um pequeno esforço, mas o nome desse homem, que ella sabia que a amava em silencio, não chegava a sahir da boca. O que parece é que lhe custava dar á outra um homem que ella não queria para si, mas que lhe queria a ella, que a comia com os olhos, furtivamente; especie mui particular de ciume, o de uma mulher que não cede o que desdenha, e não faz caso de lagrimas que não quer ver enxutas por outrem.

LXXIX

Entretanto, á mesma hora em que as duas andavam na praia, abrindo o appetite, Carlos Maria accordava, estirava os membros, e antes de ir para o banho, vestir-se e dar um passeio a cavallo, reconstruía a vespera. Tinha esse costume. De manhã ruminava o dia anterior, menos por philosophia que por amor-proprio; havia sempre nos successos da vespera algum facto, algum dito, alguma cousa que lhe ia bem á alma, como um par de suspensorios elasticos, que se accommodam ás ondulações e movimentos do tronco. Nesses é que o espirito se demorava; ahi eram as estalagens do caminho, onde elle descavalgava o corpo, — la bête, — para beber vagarosamente um golpe d'agua fresca. Se não havia sucesso nenhum desses, — ou se os havia só contrarios, nem por isso as sensações eram desconfortativas; bastava-lhe o sabor de alguma palavra que elle mesmo houvesse dito, — de algum gesto que fizesse, a contemplação subjectiva, o gosto de se ter sentido viver, — para que a vespera não fosse um dia perdido.

Na vespera figurava Sophia. Parece até que foi o principal da reconstrucção, a fachada do edificio, larga e magnifica. Carlos Maria saboreou de memoria toda a conversação da noite, e, quando se lembrou da confissão do amor, sentiu-se bem e mal. Era um compromisso, um estorvo, uma obrigação; mas a belleza da pessoa corregiu o mal, e o espirito do rapaz ficou entre uma e outra sensação, sem plano. Quando recordou a noticia que lhe deu de ter estado na praia do Flamengo, na outra noite, olhando para a casa della, não pôde suster o riso, porque não era verdade. Nascera-lhe a ideia da propria conversação; mas nem lá foi nem pensára nisso. Afinal susteve o riso, e até arrependeu-se delle; a ideia de haver mentido trouxe-lhe uma sensação de inferioridade, que o abateu. Chegou a pensar em rectificar o que dissera, logo que estivesse com Sophia, mas reconheceu que a emenda era peor que o soneto, e que ha muitos sonetos mentirosos.

Depressa ergueu a alma. Viu de memoria a sala, os homens, as mulheres, os leques impacientes, os bigodes invejosos, e distendeu-se todo n'um banho de inveja e admiração. De inveja alheia, note se bem; elle carecia desse sentimento ruim. A inveja e a admiração dos outros é que lhe davam ainda agora uma delicia intima. A princeza do baile entregava-se-lhe... Definia assim a superioridade de Sophia, posto lhe conhecesse um defeito capital, — a educação. Achava que as maneiras polidas da moça vinham da imitação adulta, após o casamento, ou pouco antes, e ainda assim não subiam do meio em que vivia. De resto, o baile da vespera não passava de uma réles academia de copistas. Carlos Maria achou-se tão humilhada que nem pode rir desta sua definição... Vingava-se em dizer que a princeza do baile era sua. Princeza, nada menos.

(Continúa.)

LXXIX

(Continuação)

Outras mulheres vieram alli. Eram as que o preferiam aos demais homens no trato e na contemplação da pessoa. Se as requestava ou requestára todas? Não se póde dizel-o sem metter a alma no inferno. Algumas, vá: é certo, porém, que se deleitava com todas ellas. Taes havia de provada honestidade que folgavam de o trazer ao pé de si, para gostar o contacto de um bello homem, sem a realidade nem o perigo do peccado, — como o expectador que se regala das paixões de Othello, e sae do theatro com as mãos limpas da morte de Desdemona.

Vinham todas rodear o leito de Carlos Maria, tecendo-lhe a mesma grinalda virginal, — ou quasi, — daquelle coro de opera: Wir winden dir den Inngfernkranz... Nem todas seriam moças em flor; mas a distincção suppria a juvenilidade melhor que posturas de toucador. Carlos Maria recebia-as, como um deus antigo devia receber, quieto no marmore, as lindas devotas e suas offerendas. No borborinho geral distinguia as vozes de todas, — não todas a um tempo, — mas ás tres e ás quatro.

A derradeira das vozes foi a da recente Sophia: escutou-a ainda namorado, mas sem o alvoroço do principio, porque lembrança das outras donas, pessoas de qualidade, lhe diminuia agora a importancia. Comtudo, não podia negar que a voz canora e doce cahia pela alma dentro como o "oleo derramado" do Cantico. Ouvira essa expressão ao internuncio, em Petropolis. A pessoa de Sophia era ainda mais attractiva que a voz. Valsava bem. Chegaria a amar com força? Nisto appareceu-lhe outra vez a mentira da praia. Levantou-se aborrecido da cama:

— Quem diabo me mandou dizer semelhante cousa?

Tornou a encarar a ideia de restabelecer a verdade: e desta vez mais seriamente que da outra. Uma peta daquellas parecia-lhe muito ordinaria; — desdourava a pessoa pela apparencia de inferioridade que trazia. Mentir, sentia elle comsigo, é para os lacaios e seus congeneres...

Dahi a pouco, — tres quartos de hora, mais ou menos, — trepava elle ao cavallo, e sahia de casa, que ficava na rua dos Invalidos. Era esbelto a cavallo, e trajava a primor; fazia parar a gente ou chamava a attenção de quem estivesse ás janellas ou ás portas. Carlos Maria, — e este era o ponto em que cedia á multidão, — recolhia as admirações todas, por intimas que fossem; para adoral-o todos os homens faziam parte da humanidade.

LXXX

— Parece que aquelle é o cachorro do Rubião, pensou Carlos Maria ao passar pelo largo do Machado.

Não chegou a fazer parar o cavallo; olhou ainda de lado para o cão, atarantado, ganindo, farejando as pessoas, meio doudo; e foi andando. Não amava os cães; não sei mesmo se perdoaria nunca a applicação de tal verbo a tal creatura. Entretanto, ha pessoa que os amam, que os têm por amigos, que os conservam, que os perdem com lagrimas... Algumas chegam a enterral-os em sagrado, não digo no cemiterio, mas em pedaço de terra tão exclusivo, que é como se fosse sagrado para qualquer outro uso, excepto o plantio de flores e folhagens. Conheci uma dessas sepulturas; as flores brotavam mofinas e tristes, como se quizessem ajustar-se ás saudades que o cachorro deixara no coração da amiga... Não me digam nada; bem sei que a qualidade da terra e outros factores explicam o aspecto do producto. Mas, ponhamos de lado os factores, porque a amiga do cão póde ler estas linhas; deixal-a crer que todas as cousas deste mundo estavam com ella, e viviam para ella.

Napoleão não tinha outra opinião de si mesmo. Alem desse exemplo sublime, citarei o do grande Bismarck, com esta vantagem que o chanceller de ferro tambem viu morrer com lagrimas um pobre cão amigo, Sultão; não houve filho nem familia que o arrancasse do quarto onde Sultão exhalava o ultimo suspiro; deu-lhe lagrimas de verdade, lagrimas que não deu aos homens mortos em guerra. Eu, se pudesse, mandava pedir ao grande chanceller a sua Biblia de protestante. Talvez lá esteja emendado o  Genesis: "No principio, creou Deus o cão; depois, vendo a melancolia do cão, creou o homem..." A dona da sepultura que conheci é capaz de pensar a mesma cousa.

(Continúa.)

LXXX

(Continuação)

Carlos Maria nem deteve o cavallo, para ver o cão, como ficou dito, — nem desceu á praia do Flamengo para ver Sophia. Ir vel-a agora pareceu-lhe que era dar testemunho da mentira da vespera. Foi serenamente para casa.

Em casa, esperava-o Rubião, que chegara alguns minutos antes, para almoçar com elle.

— Que bom vento o trouxe até aqui?

— O vento da fome, respondeu Rubião. Como o senhor não quiz voltar á nossa choupana, vim fazer-me lembrado.

Carlos Maria gostou deste modo despachado do hospede. Não tardou o almoço. Rubião estava preoccupado, mal podia attender ás alfaias da casa, que eram louçans e bem dispostas. Eram novas, porque o dono deixára de roer as aparas dos bens da mãe (cap. XXIX); agora possuia-os todos, — os da mãe e os do pae, — mortos com poucos dias de differença; viviam separados, por motivos que só a memoria de algum velho ainda guardará. Ha assim peccadores mal vistos na mocidade e acatados na velhice, — tudo porque o tempo não deixou dos sabedores mais que dous ou tres discretos sem sociedade. Aqui as culpas foram do marido. A herança delle era muito menor que a da mulher, sem que a desta subisse a grande altura. Juntas davam para viver com decencia. Carlos Maria vivia a larga.

Se Rubião mal podia attender ás galas da casa, menos via os requintes do almoço, menos ainda as maneiras de grande senhor do Carlos Maria. Comia pensando. Ouvia trocado. Ás vezes fallava direitamente, chegava até a algum dito gracioso. No meio do almoço, trouxe um criado uma carta ao rapaz, — carta grande em salva de prata. Carlos Maria e o criado fallaram em francez; Rubião teve um calefrio, e logo que o criado sahiu, e o da mesa deu uma chegada ao interior, disse ao amphitrião, procurando sorrir:

— Aposto que é carta de namoro?

— Qual!

— Pode ser que seja. Em todo caso, note uma coincidencia. Certo dia, almoçavamos tres pessoas, eu, o senhor e outro amigo; recebi uma carta á mesa, e por mais que lhes dissesse a verdade, nem o senhor nem o outro amigo quizeram crer que a carta não era de amores; por signal que me debicaram á grande.

— Não me lembra.

— Hade lembrar-se. A carta vinha com um uns morangos...

— Morangos? repetiu Carlos Maria. Tenho ideia vaga de uns morangos... Ah! sim, creio que vinham com uma carta... Ha tanto tempo! Mas então o senhor pensa que todas as cartas que se recebem á mesa são de amores?

— Todas, não; mas esta traz cheiro de mulher.

Carlos Maria pegou da carta e levou-a ao nariz do hospede. Este explicou-lhe que cheiro de mulher nem sempre eram essencias de frascos; e disse isto rindo, porque tivera tempo de ver que a lettra do sobrescripto, não era de Sophia; — trazia até um caracter commercial. Pareceu-lhe mais que, no alto da sobrecarta, havia uma linha impressa, naturalmente alguma firma ou indicação de escriptorio. Rubião expelliu a suspeita e continuou a rir-se e a explicar-se.

— Que tem que seja carta de amores? Que ha de fazer um homem de sua edade? Ao contrario, o teimar que não ha nada é que prova haver alguma cousa.

— Justamente; lembro-me que o senhor teimou naquelle dia.

— Apanhou-me! retorquiu Rubião; mas hade lembrar-se tambem que a accusação foi mais repetida, e eram dous contra um. Aguas passadas. O que lhe posso dizer, continuou elle meio serio, é que é melhor amar em moço; gaste-se bem agora para que os annos da madureza o achem sem fogo. Não ha nada peior que paixões tardias.

Rubião ficou remoendo as ultimas palavras; depois arrependeu-se de as haver dito. Ao café, renasceu-lhe a suspeita. A sobrecarta podia ser uma dissimulação, pensou elle. Não cuidou de ver o modo pratico daquella dissimulação; a suspeita não analysava, não examinava; se algum raciocinio punha a cabeça de fóra, recolhia-a logo, tão promptamente vinha a suspeita vaga e summaria. Não se diga que esta phase do espirito do nosso homem desmentia a credulidade anterior, a boa fé dos seus maiores, a singeleza que se entrega sem advertir. Não; credulo com os outros, era-o agora comsigo. A suspeita era aqui uma pessoa que lhe dizia uma cousa, em que elle devia crer, tivesse ou não razão.

A carta lá estava, ao pé do rapaz, tranquilla, apenas interrogativa. Quando este, antes de acabar o café, deixou a mesa dizendo que voltava já, Rubião teve ideia de lançar mão á carta, abril-a rapidamente, ver a lettra. Estava só, nenhum creado, era um instante; mas não teve animo. A vontade não cumpria a ideia. Carlos Maria voltou logo, chamou o creado que trouxera a carta, e deu-lhe duas notas de duzentos mil reis.

— Hade receber cinco mil reis de troco, disse em francez. Creio que cinco, repetiu abrindo a carta e examinando-a.

Era uma conta; ficou aberta na mesa. Tanta afflicção por uma conta! Rubião criou alma nova. Carlos Maria foi bebendo o resto do café, aos golinhos, entremeados de charuto, gosando em si mesmo o prazer das contas grandes. Costumava dizer, para forçar o riso dos outros, que as duas cousas principaes da vida eram o cavallo e o credor. Não pregava calotes; deixava crescer as dividas para ter o gosto de as pagar volumosas. Aquella não era velha, tinha poucas semanas de existencia, e foi contrahida em casa de um ourives, por uma só vez.

— Cá os alfaiates da corte, aventurou Rubião, são careiros como o diabo.

Carlos Maria accordou da contemplação de si mesmo. Defendeu os alfaiates; a conta era de um ourives, disse, e mostrou-lh'a. Rubião não a leu. Contentou-se de olhar; mas dahi a pouco, ao levantar-se da mesa, negrejou-lhe outra nuvem no espirito. A canta podia ser o preço de joias dadas, em mimo de annos, a Sophia. Não lhe fez elle alguns eguaes presentes?

Na sala, Carlos Maria disse-lhe rindo:

— Ora, o senhor a crer que era carta de namoro! Mas, meu caro senhor Rubião, é preciso que me conheça bem, para ver que sou differente do que suppõe. Nem todo rapaz é namorador de officio.

— Quem lhe falla de officio? interrompeu Rubião.

— Alguma paixão particular? Comprehendo. Mas eu sou avesso a amores, meu caro senhor Rubião. Gosto de conversar com mulheres, uso dizer cousas duvidosas e até francas; ás vezes, chego a suppor-me namorado. Nada mais. Tenho um livro lá em cima que diz que o amor eguala Marco-Aurelio e o seu lacaio. O senhor provavelmente não sabe quem foi Marco-Aurelio... Bem, fique sabendo que não sou eu; para que heide imitar o lacaio?

LXXX

(Continuação)

Rubião disse-lhe que era suspeito de amar uma senhora casada...

— Casada? perguntou Carlos Maria depois de alguns instantes.

— Casada, repetiu Rubião.

E de pé, fronteiro ao rapaz, que estava meio reclinado no canapé, perna sôbre perna, repetia que era uma senhora casada, casada, casada. Carlos Maria pensou logo em Sophia; as relações de Rubião com a familia faziam crer que era ella. Então imaginou que, — ou o Rubião vinha, de movimento proprio, servir aos interesses do marido, seu socio, — ou ella mesma o incumbira de ser terceiro entre ambos. Não cuidou que podia ser curiosidade simples, menos ainda rivalidade occulta.

— Que tem isso? disse-lhe Rubião com um ar pelintra, que destoava da compostura, dos modos e até das soiças pendentes e graves, como as de um bispo anglicano. Tudo são amores. Ande cá, diga-me a verdade, que eu sou de confiança, e até pode ser que lhe conte algumas patifarias minhas, em paga. O marido é alto ou baixo?

Interiormente, mordia-se; as lagrimas queriam vir-lhe aos olhos. Como as mãos lhe tremessem muito, metteu-as nas algibeiras das calças; a voz sahia-lhe soturna, apezar do esforço que elle fazia para alegral-a. Sentou-se n'uma cadeira rasa e estendeu as pernas. Carlos Maria, apenas franzira os sobr’olhos, voltou logo á posição anterior. Sorria agora, falando, com uma pontinha de ironia ao canto da boca. Que senhora casada? perguntava. Attribuiam-lhe cinco, pelo menos; e era bom saber qual dellas. Cinco, com duas viuvas, eram sete pessoas confiadas ao seu coração; não contava as solteiras que lhe davam por noivas. Em summa, um sultão baptisado. Casada, mas casada com quem?

— Com um homem, rosnou o mineiro.

Carlos Maria, rindo:

— Seguramente, não hade ser com um cão... A proposito de cão, sabe que encontrei o seu cão no largo do Machado, creio que perdido, farejava muito as pessoas...

— Quando? perguntou Rubião inteiriçando-se na cadeira.

— Quando estava para almoçar.

— Perdido?

— Creio que perdido; só se havia alli algum creado com elle; mas não parece. O cachorro estava desorientado...

— Mas é impossivel, reflexionou Rubião; elle nunca sae só, e lá de Botafogo até o largo do Machado é longe. Conhece bem os meus creados?

Tinha-se levantado. Carlos Maria declarou-lhe finalmente e seriamente que não trazia amores com senhoras casadas. Corriam boatos a seu respeito, pela razão de que elle gostava mais de conversar com mulheres que com homens. Os homens eram insupportaveis. Naturalmente, concluíam das suas conversações para os seus amores; mas a verdade é que nenhuma senhora, casada nem outra cousa, podia dizer que lhe possuia o coração.

— Jura-me isso? perguntou Rubião.

— Se eu posso mentir, posso jurar a mentira, observou Carlos Maria.

Calou-se Rubião, por algum tempo, indo do canapé á janella e da janella ao canapé. A ideia do cão perdido, por instantes, excluia qualquer outra; então o nosso amigo não podia fugir aos remorsos de estar alli, e fallava, e indagava; queria uma descripção; podia não ser o Quincas Borba...

— Pareceu-me que era, dizia Carlos Maria.

— Conheceu-o bem?

— Jurar, não juro; mas cuido que o conheci.

Rubião despediu-se; ia saber o que era. Quanto aos amores, desculpasse a curiosidade; mas que diriam dous homens solteiros, entre si? Carlos Maria perdoou-lhe a comparação. De pé, estendeu-lhe os dedos; sentindo que os do outro estavam tremulos, pegou-lhe no punho para retel-o, para interrogal-o, para pedir uma explicação. Rubião, porem, puxou o braço, e disse-lhe adeus, rindo, — rindo mal.

— Já agora não vá sem confessar uma cousa que suspeito, disse Carlos Maria.

Rubião enfiou

— Está-me parecendo que o senhor vinha fazer-me alguma confidencia

— Não, murmurou o outro.

E, por um instante, cuidou em fazel-a. As suspeitas fugiam deante da palavra indifferente do rapaz, do seu ar duro e soberano, e, quando preciso, do sarcasmo agudo e secco. Accresce, — e esta razão agora é mais decisiva, — que Rubião precisava confiar a alguem o seu segredo; não tinha peito para guardal-o só comsigo. Se Carlos Maria fosse mais instante e expansivo, era mui provavel que alli ficasse tudo; este, porem, tão depressa lhe ouviu dizer que não, fallou de outra cousa, — do Quincas Borba. Quem é que lhe dera aquelle cachorro? Rubião enfiou outra vez.

— Um amigo, um bom amigo, resmungou despedindo-se.

— Máu amigo, que nos separa.

— Não, não, bom amigo. Adeus! Appareça por lá, conversaremos de outras cousas. Adeus! até breve! disse Rubião, descendo precipitadamente as escadas.

LXXXI

Carlos Maria voltou a sentar-se no canapé, no qual estivera a principio, perna sobre perna, — parecendo mirar o tempo, — o grande invisivel, — mas realmente interrogando um vaso de Sèvres, que estava no apparador fronteiro. O vaso, porém, como todos os vasos, — sejam de Sèvres ou da China, — deixava-se estar pousado e mudo.

(Continúa.)

LXXXII

Na rua, a ideia que ficou ao Rubião foi a do cachorro perdido. Todo o prestigio da conversação e do seu principal objecto cedeu ao medo de não tornar a ver o Quincas Borba. Em casa, não o achou. Nenhum creado o vira sair. Estava tonto o homem. Gostava do pobre bicho, achava-lhe graça, acostumara-se ás caricias, aos latidos de prazer, aos saltos com que elle o recebia; eram provas de affecto, e o nosso amigo queria ser amado. Demais, não perdera ainda a superstição de estar alli a alma do outro Quincas Borba, guarda invisivel, espiando-lhe os actos e os sentimentos. Assim é que, pelo anniversario da morte do philosopho, Rubião mandou dizer uma missa; e, antes de sair para ella, fallou ao cachorro, coçando-lhe a cabeça.

— Mal sabes tu que vou á missa por alma do nosso bom amigo.

Não se achou o cão; mas um creado da visinhança disse que o vira sair atraz do senhor. Rubião construiu o resto. Na esquina da rua do Marquez de Abrantes mettera-se em um tilbury, naturalmente o cachorro correu atraz do tilbury, até que o perdeu e ficou desorientado. Onde estaria agora? Podia ter sido apanhado por algum amador; — podiam tel-o envenenado, officialmente, por meio de uma bola municipal.

Mandou pôr annuncios, — dando os signaes do cão, e promettendo gratificar a pessoa que lh'o restituisse; nada. Tres dias depois, marcou vinte mil reis de gratificação; mais tarde, cincoenta; afinal, cem.

— Cem mil reis! Olha, que, não é por amor ao dinheiro, — mas, quem dá cem mil reis por um animal é que o estima muito. Vamos mandal-o ao dono.

O major Siqueira repetiu isto á filha, moradores agora na rua Dous de Dezembro. Foi um sobrinho que lhe levou alli o cão, pedindo que o guardasse até o dia seguinte, que mandaria buscal-o. D. Tonica, porém, achou-o tão bonito, tão triste, tão ancioso de ir ter com o senhor ou a senhora, que resolveu de ficar com elle. Seria uma affeição domestica. D. Tonica estava ainda qual a deixamos no capitulo XLIII — com a differença de que os quarenta annos vieram. Quarentona, solteirona. Chorou os comsigo, logo de manhã, no dia em que os completou: não pôz fita nem rosa no cabello. Nenhuma festa; tão somente um discurso do pae, ao almoço, lembrando-lhe cousas de criança, anecdotas da mãe e da avó, um dominó de baile de mascaras, as festas do Divino, as cocadas da mãe, dous ministros da guerra, 1848, a solitaria de um coronel Clodomiro, varias cousas assim de mistura, antigas ou menos antigas, — para entreter o almoço. A filha mal podia ouvil-o; mettida em si mesma, ia roendo o pão da solitude moral, ao mesmo tempo que se arrependia dos ultimos esforços empregados na busca de um marido. Quarenta annos; era tempo de parar. Se Deus lhe guardasse algum noivo, dar-lh'o-hia em tempo; se não, para que?

Nestas circumstancias, o cão era uma companhia, uma affeição. Não quiz desfazer-se delle, quando o primo veiu buscal-o no dia seguinte. Não lhe sabendo o nome, poz-lhe o de Fujão. Appareceram annuncios, não fizeram caso; o de cincoenta mil reis deu que pensar ao major; o de cem mil exaltou-o. Tinha escassos meios; cem mil reis vinham do

ceu. Demais, o cão não se acostumava á casa, não queria comer, vivia ganindo, farejando as portas, querendo sair; para que fazel-o padecer, —a elle e ao dono?

— Elle acostuma-se, papai.

E pegava do cachorro, mettia-o no regaço, apesar de grande. Quincas Borba olhava para ella, ella para elle, um longo olhar tristonho e miseravel. Siqueira ao lado, relia o annuncio, os signaes eram os mesmos. Só não vinha o nome; porque não vinha o nome? Erguia-se, reprehendia a filha; depois, inclinando-se, fazia festas ao cachorro, fallava-lhe do senhor, perguntava-lhe quem era, tudo com os cem mil reis no coração. Que aborrido que foi o jantar! De tarde era costume do major, cochilar um pouco, relendo algum romance cortado das folhas e cosido á margem com barbante; tinha-os mui antigos, sahidos em folhetim do Jornal do Commercio e do Correio Mercantil de cincoenta e tantos. Nem leitura nem somno, nada pôde com elle. No dia seguinte, correu á casa indicada no annuncio; deu com Rubião, e durante os primeiros minutos, espantado, não pôde sair dos comprimentos. Afinal, batendo-lhe no hombro:

— O cachorro é seu?

— Achou-o?

Contou o major tudo o que se passara até á obstinação da filha. Vá depressa, concluiu elle, antes que a amizade cresça; penso até que elle já gosta della.

— Como heide dar os cem mil reis a este homem? pensou Rubião.

Ficou de ir buscar o cão, entre quatro e cinco horas. O major pediu-lhe que não dissesse nada á filha do que se passara entre elles. De tarde, parou uma carroagem á porta do major; era o nosso amigo. O espanto daquelle, ao vel-o, não foi menor que o da filha, que estava com o pae na sala. Que milagre é que o trazia áquella sua casa? etc.

— Não é capaz de adivinhar, retorquiu Rubião. Dou-lhe um doce, se adivinhar...

— Doce de que?

Um e outro requintavam no espanto, quasi que por aposta de saber quem era capaz de dissimular melhor. Afinal Rubião fallou no cachorro; tinha sabido casualmente que elle estava alli, e vinha buscal-o. D. Tonica enfiou. O pae respondeu que já agora tinha de perdel-o, porque a filha não o restituiria, nem ao padre Eterno que fosse.

— Estou que cederá, acudiu Rubião, se lhe disser que este cão me foi legado pelo meu maior amigo. Herdei-lhe os bens com a clausula de o tratar, de fazel-o viver commigo, de lhe dar sepultura. Cederá tambem se souber que o pobre cachorro gosta de mim, tanto ou mais do que ao outro senhor; e que eu lhe quero egualmente...

Sequeira estava admirado d'aquellas circumstancias ignoradas. Provavelmente, é tudo mentira, disse comsigo; mas confirmou-as para enternecer a filha. Esta replicou sorrindo que não era preciso tanto para levar o que era seu; levantou-se e foi chamar o cão. Quincas Borba já então farejava pela sala de jantar, veiu com ella á de visitas, e atirou-se latindo de prazer, tremulo, doudo, aos joelhos de Rubião. O major admirava dos beiços para fóra; a filha contemplava os dous, com inveja.

— Como se chama? interrompeu ella.

— Quincas Borba; era o nome do meu pobre amigo...

— Então o senhor...?

— Eu não; foi elle mesmo que lhe deu este nome em vida. Respeitei o acto, que aliás consta do testamento...

— Por que continua a mentir? perguntou a si mesmo o major, irritado.

(Continúa.)

LXXXII

(Continuação)

— Socega! disse Rubião; mas o Quincas Borba não se aquietava, lambia-lhe as mãos, dava saltos, até que de um delles trepou aos joelhos do senhor, pousou-lhe as patas nos hombros, e entrou a lamber-lhe as barbas. Nos dias em que elle passou alli, D. Tonica tivera cuidado de o lavar por suas proprias mãos, penteal-o, aromal-o com agua florida.

— Sae! sae! disse Rubião.

D. Tonica proseguia na contemplação dos dous; lembrou-se de Santa Thereza, pensou na somma de affectos que esse homem parecia trazer em si. Como não amaria elle a esposa, se Deus lh'a désse? Expelliu taes ideias, e restringiu-se ao cão. Havia de comprar um para seu companheiro; precisava de uma affeição daquellas, exclusiva, obediente...

— Já vê que somos amigos, disse Rubião depois de fazer descer o Quincas Borba. Hade de tel-o mesmo adivinhado pelos annuncios...

— Os annuncios, é verdade, retorquiu a dama com viveza; esquecia-me dizer-lhe que não dispenso os cem mil réis.

Rubião ficou attonito, não menos que o pae. O primeiro, não querendo offendel-a, nem mentir á promessa, trazia comsigo um par de brincos, que lhe custara cento e trinta mil réis; ainda assim achava difficil offerecel-o. Agora não pôde mais que assentir por um gesto; D. Tonica, porém, rematou o que ia dizendo:

— Não dispenso os cem mil réis, nem o favor de os entregar na egreja do largo do Machado, para a cera de Nossa Senhora, minha madrinha; mas note que hade fazel-o em seu nome.

Rubião declarou promptamente que sim. O major tinha os olhos prenhes de discursos; não penetrou logo, logo, a intenção da filha; mas, tão depressa ficaram sós, ella estendeu-lhe as mãos rindo, com o ar contricto da peccadora que pede absolvição. Comprehendeu tudo.

— Então isso são cousas que se attribuam a seu pae? disse elle. Tinha medo que eu fosse atraz do sujeito pedir-lhe os cem mil reis? Sou algum mendigo?... Não, graças a Deus... Mendigo que fosse... Faça-me o favor de dizer o que é que elle vae pensar de mim? Que sou um pedinchão... Isso são cousas que se attribuam a seu pae? Elle, com certeza, vae imaginar o diabo; o menos que pensa é que eu ia atraz delle pedir-lhe os cem mil réis; porque este ar despachado de uma filha que diz que não dispensa os cem mil reis e pede para leval-os á egreja, a Nossa Senhora, — a Nossa Senhora que nos vê a todos, e que hade reprovar a acção da afilhada, uma afilhada sem entranhas da filha. Como se eu fosse um pedinchão, um mendigo...

D. Tonica fizera-o sentar, pegando-lhe nos pulsos; elle obedeceu sem sentir, fallou, fallou; ella, cautelhosa, deixou-o fallar, até que começou a pingar algumas palavrinhas no discurso, — mau, precipitado, injusto, — ou então que lhe perdoasse, que não valia a pena; — era um modo de não entregar o cachorro de graça. Lá isso, sim, approvou o major; já que o estimava tanto, leval-o de graça era uma empulhação; mas, porque não disse ella isso mesmo a seu pae, afim de que elle...? D. Tonica acudiu que era a mesma cousa; ficava até melhor na boca de uma senhora.

LXXXIII

— A moça é devota, reflexionou o Rubião ao sair de lá, na carruagem, com o focinho do cão entre os joelhos. Na verdade, quando ella me disse que não dispensava os cem mil réis, achei exquisito; mas o fim explicou o principio. Nossa Senhora é sua madrinha... Comtudo, sendo elles pobres, davam para um vestido ou dous, e um chapéo. Não é qualquer aquella moça... isto é, ella já bade rastejar pelos quarenta, mas tão bem arranjadinha, tão esbelta que não parece. Não, não é qualquer; teve graça no modo de resolver o caso. Socega. Quincas Borba! bradou elle ao cachorro que teimava em trepar-lhe aos joelhos, assustado com os solavancos da carruagem.

(Continúa.)

LXXXIII

(Continuação)

Dous dias depois recebeu o major um bilhete de Rubião, acompanhado do recibo dos cem mil réis, dados á egreja. Ficou vexado; a cousa, posta assim no papel, trazia as feições proprias de uma gratificação. Foi ter com o Rubião, pediu-lhe desculpa das palavras da filha, affirmou-lhe que nenhum delles tivera nunca a intenção de aceitar nada. Quando a filha pediu que désse os cem mil réis á egreja, não a reprimiu, porque cuidou que era um modo de gracejar; com quanto estivesse certo que era mui devota. Erro, má lembrança...

— Que má lembrança, o que? atalhou Rubião; eu achei até que foi delicada. Digo-lhe mais...

Rubião estacou por alguns instantes rapidos; depois continuou com singeleza:

— Digo lhe mais que embora nunca me passasse pela cabeça gratificar pessoas tão distinctas...

— Justamente! assentiu o major.

— ... tal foi a alegria que tive em achar o meu pobre cachorro que cheguei a comprar uma joiasinha para offerecer a sua filha em lembrança. Como, porém, me fallou de Nossa Senhora, vi logo que era mais bonito assim. Não se afflija com isto; religião não faz mal a ninguem; a falta della é que perde uma pessoa...

— Sim, realmente, a haver alguma lembrança, antes fique nas mãos da Mãe Santissima, disse o major depois de alguns segundos de silencio. E logo depois: — Deve ser muito rico este homem.

— Eu só lhe peço uma cousa, e a sua filha, disse Rubião; é que não contem a ninguem este negocio. O senhor sabe que nem todos apreciam a estima que se pode ter a um animal, — principalmente cachorro, que anda na rua, e apanha pedrada de moleque. Este meu parece gente. Se eu lhe contar cousas delle, o senhor não acredita.

— Ah! os cachorros são...

— Mas não é só por isso que o estimo; é lembrança de um amigo, — um bom amigo, — morto ha tempos, — e gosta tanto de mim como do outro senhor... Está ouvindo?

— Parece que é elle.

— Quincas Borba! gritou o Rubião.

Ouviu-se logo o passo rapido do cão no corredor. Chegando á sala, Quincas Borba deu com o estranho, rosnou um pouco, foi a elle, entrou a farejal-o. O major encolheu as pernas. Rubião puchou o cão pela orelha.

— Vem cá! Que é isso? Não conheces mais o pae da moça que tratou de você? Ponha-se em pé! Vamos! ande! fique em pé.

Quincas Borba sustentou-se sobre as pernas trazeiras.

— Dê cá a mão! disse-lhe o amigo. Assim, muito bem; agora a outra.

Com effeito, o cão deu-lhe a pata direita, que elle apertou; depois a esquerda, que apertou tambem. O major sorria espantado.

— Ora, muito bem! Agora tome a benção.... Então? Tome a benção, Quincas Borba?

De cançado, voltára o cão á posição natural; mas o senhor fel-o ergueu outra vez, pegou-lhe na pata direita e levou a propria mão á boca do animal, que lhe deu uma lambedela nos dedos. Rubião fez o gesto de abençoal-o. Então o Siqueira riu-se muito da acção, admirou a paciencia do senhor, a intelligencia do cachorro, concordou que era um animal muito apreciavel. Foi menos sincero ahi do que quando lhe disse, minutos depois:

— Realmente, vejo que lhe dava grande desgosto, se o não restituo.

Rubião fincára em Quincas Borba uns olhos longos, metade ternos, metade tristes. Não ouviu as palavras de Siqueira. Este fel-o acordar, levantando-se para ir embora.

— Já?

— Já; Tonica não janta sem mim.

— Venha jantar commigo alguma vez, disse-lhe Rubião.

— Pode ser, avisando em casa.

Desceram ao jardim. Indifferente ao luxo da sala, não o foi Siqueira aos canteiros de rosas e margaridas, ás palmas, ás begonias, á disposição das plantas. Era modesto; chegaria a preferir os seus trastes simples de jacarandá, mangas de vidro, castiçaes de casquinha, tudo nu e velho, aos tapetes, bronzes e ouros do Rubião; mas as flores deram-lhe rebate á alma. Foi a ellas, percorreu o jardim todo, acompanhado do outro, indicando-se aqui e alli, fallando dos bonitos jardins que conhecera outr'ora, e ainda agora. Não comprehendia o Palha, que deixára as flores de Santa Thereza para metter se na praia do Flamengo, em casa que não tinha nada.

— Verdade é que tambem não tenho nada, mas é porque me falta o melhor. Já tive jardim bonito, durante cinco annos, entre 45 e 50. Com a guerra do Rosas, acabei tudo. Do Rosas; veja a ironia do acaso, eu que adoro as rosas... As suas são admiraveis.

Continuou sem parar uns dez minutos; embora algumas reminiscencias da guerra tivessem vindo alli, sem proposito, a paixão sincera do major varreu-as do discurso. As folhagens e as flores o absorveram inteiramente. Depois de vel-as todas, suspirou á larga, fitou o dono da casa, e chamou-lhe feliz. Este não teve mais que um sorriso pallido.

— Sabe o que lhe falta? acudiu Siqueira. Uma só cousa; falta-lhe aqui uma mulher. O senhor precisa casar. Case-se, e diga-me que o engano.

Rubião lembrou-se de Santa Thereza, — daquella famosa noite da conversação com Sophia, — e sentiu correr-lhe um frio pelas costas; mas, a cara do major não tinha nenhum sarcasmo. Estava até séria. Se lhe tem acudido á memoria o encontro dos dous no jardim, é provavel que vertesse uma gotinha de fel no conselho matrimonial; mas nem lhe occorreu isso, nem outra cousa; o conselho sahiu-lhe livre e desinteressado.

— Case-se, e diga que eu o engano! repetiu elle á sahida.

(Continúa.)

LXXXIV

— E porque não? perguntou uma voz, logo depois que o major saiu.

Rubião, apavorado, olhou em volta de si; viu apenas o cachorro, parado, olhando para elle. Era tão absurdo crer que a pergunta viria do proprio Quincas Borba, — ou antes do outro Quincas Borba, cujo espirito estivesse no corpo deste, que o nosso amigo sorriu com desdem; mas, ao mesmo tempo, executando o gesto do capitulo XLIX, estendeu a mão, e coçou amorosamente as orelhas e a nuca do cachorro, — acto proprio a dar satisfação ao possivel espirito do finado.

Era assim que o nosso amigo se desdobrava, sem publico, deante de si mesmo.

LXXXV

— E porque não? repetiu a mesma voz mysteriosa.

Só agora advertiu Rubião que a bocca invisivel estava dentro d'elle; a voz emergia das profundezas do inconsciente para interrogal-o. Sim, porque não havia de casar? continuou andando e raciocinando, alvoroçado com essa ideia tão simples e tão complexa, tão facil e tão difficil. Casando, esquecia tudo. Mataria a paixão tardia e adultera que o ia comendo aos poucos, sem esperança nem consolação. Demais, era a porta de um mysterio... Casar, sim, não havia outro recurso; casar logo, casar bem. E Rubião ficou a andar de um lado para outro, sem calcar uma planta, uma flor, nada mais que a terra do chão; as pernas é que o levavam por si mesmas, direitas, lucidas vagarosas, para que ficasse á cabeça tão somente a tarefa de pensar.

Boas pernas! pernas amigas! Muletas naturaes da alma! Só pararam quando o creado veiu chamar o Rubião para jantar. Tambem era tempo; a viagem tinha sido longa. E porque, segundo o velho Goethe, ha muito que contar depois de uma viagem, muito contaria o nosso amigo se pudesse colligir todas as reminiscencias. Não podia; tal foi o turbilhão de cousas e pessoas que passaram por elle, vagamente, confusamente, que não distinguiria agora um só perfil, uma unica scena. Viu mãos de padre e hombros de mulheres, ramalhetes de cravos brancos entremeados de hyssope, olhos claros, olhos de todas as cores e tamanhos, bençãos, risos, lagrimas, carruagens, tudo de mistura, sem poder saber onde é que cada cousa principiava nem acabava.

Dias e dias vieram vindo e passando, sem adiantar nada; mas a ideia conjugal persistia. Que elle é preciso deixar aqui bem claro, —a ideia de casar não era só isto, — nem tambem, como o nosso amigo presumia, — unicamente um modo de matar a paixão adultera. Era, antes de tudo, uma cousa obscura e inconsciente.

LXXXVI

Sim, leitor profundo. A vida de Rubião carecia de unidade. Sem o perceber, o que elle buscava no casamento era a unidade que a vida não tinha. Sentia-se disperso e confuso; era como um morador de hospedaria, que passa, que está aqui dous dias, acolá quatro; tem de visitar hoje um musco, amanhã uma ruina, para a semana outra cidade. Não convive, não móra: falla ao inglez, ao francez, ao italiano, ao allemão, ao russo, a todas as nações, de todas as maneiras, a pé, de carro, fumando, comendo.

Mas, ainda assim, a vida pode ter unidade, — ou na alma ou na situação do homem. Nem a situação nem a alma do nosso homem estava em tal caso. A vida partira-se-lhe. Vivera mais de metades em outro logar, com outras gentes, outros meios, outros horizontes. Não tinha aqui familia; as relações eram de acaso e recentes, não cimentadas pelo tempo nem explicadas por outras causas mais intimas e profundas. Nenhuma fallava da existencia anterior. Tambem não fallava della nenhuma cousa da cidade, um marco de pedra, uma esquina, uma loja, — uma botica velha que fosse, — nada lhe trazia á memoria um passo da adolescencia ou da mocidade.

A alma era a mesma cousa. Não achava equilibrio nem alimento em si propria. Acabára o alvoroço dos primeiros tempos. A solidão, que é para outros uma janella aberta, era para elle carcere fechado. A casa, a despeito do luxo, estava núa. Dahi o ruido externo, a dispersão, os theatros sem prazer, as visitas desnecessarias, os jantares a miudo, os amigos de transito, enxame que se renovava trimestralmente, variado sempre, desde o negociante quebrado até o rapaz vadio. O rapaz lia-lhe sonetos, o fallido desvendava-lhe os mysterios do commercio, ambos pediam-lhe dinheiro, nenhum o restituia.

Rubião, ás vezes, com saudades de Minas, recompunha a existencia obscura de outro tempo. Obscura, não, senhor; era muito mais notoria que a actual, que se perdia na multidão de tantas vidas. Era simples, limitada ao pouco, mas egual a si mesma e estavel; entre o homem e o meio existia communhão de ideias, de reminiscencias, de amor ou de aversão, de nojo ou de alegria, — de habitos, ao menos. Lá, um trecho de rua ou um retalho de phrase accordava toda a gente a lembrança do mesmo sucesso ou pessoa. Cá tudo era novo; nada fazia sentir nada.

Crê, leitor, tal foi a origem secreta e inconsciente da ideia conjugal. As outras explicações são boas, por serem razoaveis e até honestas, mas a verdadeira e unica é a que ahi fica. Crê ou fecha o livro. Assim, por exemplo, se o proprio Rubião dissesse que o casamento era um modo de calafetar o capital que abria agua, pódes aceitar essa explicação, não como causa, mas como effeito. Em verdade, elle gastára, muito, ia gastando, contribuia para uma folha politica, divertia-se á larga, fazia mimos e emprestimos. Celibato não é incompativel com economia; mas Rubião não tinha força nem vontade; talvez o casamento lhe désse o segredo de viver com parcimonia, — ou tento, pelo menos.

Isso, porém, era puro effeito do acto. A causa era a que ficou dita. O matrimonio enfeixaria os esforços, recolheria em si o homem disperso, embora elle não soubesse nada dessa causa verdadeira e unica. Que sabe a aranha a respeito de Mozart? Entretanto, ouve com summo gosto a guitarra e o piano.

(Continúa.)

LXXXVII

Um dia, indo ao armazem, achou o Palha de luto. Morrera a tia da mulher, D. Maria Augusta, na fazenda; a noticia chegára na vespera á noite.

— A mãe daquella moça? perguntava Rubião.

— Justamente; uma boa senhora, muito agarrada aos seus costumes da roça, onde viveu sempre. Não havia modo de a prender cá muito tempo. Consegui guardar a filha, mas a mãe...

Rubião ouviu distrahido. Cousa singular: a imagem de Sophia, vestida de preto, fixou-se-lhe deante dos olhos. Foi tudo o que lhe trouxe a morte da fazendeira. Palha descreveu a dor da moça; narrou circumstancias interessantes da sua vida, em pequena, anecdotas domesticas, argucias, graças, repentes; de envolta com isso, a excellente criação que a mãe lhe dera, as virtudes naturaes, todas as partes de uma boa dona de casa. Sophia tinha nella a maior confiança. Nem foi á toa que, desde algum tempo, tramára ficar com ella, a despeito da affeição que Maria Benedicta votava á mãe e vice-versa; Sophia queria uma segunda dona de casa ao pé de si.

— Sim, senhor... Ora veja... Acredito... ia dizendo o socio.

Visivelmente não tinha interesse. Palha fitava nelle uns olhos sonsos e tristes, — ás vezes suspirava, abanava a cabeça, passeava com as mãos nas algibeiras das calças. Dahi a pouco tornou a dizer que a prima ficava morando com elles.

— É claro que, se Maria Benedicta já estava comnosco, agora fica inteiramente. Sabe que tem uma irmã, Maria José, casada com um juiz de direito? vivem no Ceará. Não é provavel que Maria Benedicta.

— São ambas Marias?

— Eram as tres, a mãe tambem; na familia dizia se — as tres Marias. Uma exquisitice. Mas, como ia dizendo, não é provavel que Maria Benedicta queira ir para a companhia da irmã; e, ainda que queira, não o queremos nós. Está em nossa casa, cá fica. Havemos de casal-a, affirmou elle golpeando o ar com o dedo indicador da mão esquerda.

— Tem outros parentes?

— Poucos e remotos. Tem, é verdade, tem o padrinho ainda vivo; é um fazendeiro de S. João d'El-rey. Talvez o senhor conheça.

— Coma se chama?

— O coronel Manoel Ricardo...

— Conheço.

— ... Xavier Carneiro.

— O coronel Manoel Ricardo, não precisa mais nada. Só o vi uma vez, ha muitos annos, em S. João d'El-rey, mas elle é muito conhecido em Minas, e muito respeitado. Grande liberal: parece até que, em rapaz, era exaltado. Sempre ouvi dizer que sympathisara com os barulhos de 1842. Bom homem tambem.

— A defuncta fallava delle com elogio, disse Christiano assignando um papel que o guarda-livros lhe apresentára. E logo depois, deixando a penna: — Não creio que o padrinho queira mandal-a buscar; ainda que o deseje, acharei meio de ficar com ella, sem desgostal-o. Já não podemos viver sem Maria Benedicta. Ella fez maretas para voltar á roça e lá ficar. Ultimamente então, zangada ou aborrecida, ou com saudades, como declarou, poz os pés á parede, que ia, que ia, até que se desenganou. Agora creio que já está tão acostumada que seria difficil deixar isto. O Rio de Janeiro é o diabo. Aqui caçará, concluiu tirando com a unha um pouco da poeira da gola do Rubião.

Rubião agradeceu, sem acrescentar nada. Palha insistiu na ideia do casamento da prima. Achar-lhe-hia um bom marido, não qualquer, porque era noiva de primeira agua, brilhante sem jaça; não a levaria nenhum peralta, mas pessoa digna.

— Parece boa moça, parece, concordava Rubião.

— Não imagina, acudiu Christiano animado, é o que se pode dizer, sem mentira nem exageração, um anjo. Ha moças bonitas e educadas, mas sem prestimo; e ha outras que tem prestimo, mas não tem prendas de sociedade, nem belleza; Maria Benedicta reune tudo. Ajuda minha mulher no governo da casa; repartem o serviço, fazem semanas. Eu, ás vezes, digo brincando que sou imperador, e pergunto-lhes, ao domingo, quem é a semanaria.

Palha disse isto a rir, chegou a repetir as palavras e a rir mais alegre, de alma aberta, serena e feliz. De repente, fez-se serio.

— Coitada! coitada! murmurou; lá está agora bem triste, e com razão. A defuncta era uma santa creatura; tinha suas teimas, seus velhos habitos, aspera ás vezes, mas o coração era ouro massiço.

Assignou ainda alguns papeis; depois disse que ia voltar para casa; viera ver as ultimas fazendas entradas. Tirou o paletot, ficou em collete e mangas de camisa. No armazem entravam fardos despachados da vespera, morins inglezes, algodãos americanos, baetas. Vinham da calçada para dentro, empurrados por homens descalços, braço pelludo e nu, suando em baga. Um caixeiro confrontava os conhecimentos com os numeros dos fardos. Cada um destes tinha o seu numero e firma, em grandes lettras pretas, assim:

C. P. & R.

Rio de Janeiro

9,424

Custa dizel-o, mas a verdade antes de tudo. Rubião não atinou logo que as iniciaes eram as dos nomes delles, Christiano Palha e Rubião; fitou-as muito, viu-as pintadas em todos os fardos, não quiz perguntar o que seria; d'ahi a cinco minutos, porém, percebeu que se tratava da firma da casa. Nunca as teria visto alli? Visto, é possivel, mas com indifferença, com a cabeça alhures. Agora gostou de ter adivinhado; chegou mesmo a repetir em voz baixa, satisfeito:

— Christiano Palha & Rubião.

O socio dava-lhe noticias das vendas, do estado da praça, do movimento dos negocios, que fazendas achavam agora melhor preço. As casimiras francezas iam bem. A proposito, tinham-lhe dito uma cousa boa na vespera; a casa Moraes & Cunha pagava todos os credores, integralmente.

— Ah! respondeu Rubião.

Este ah! saiu sem grande alegria. Rubião reconheceu isto, e  tornou ao assumpto com volubilidade; era bem bom que a casa pagasse integralmente, mas não haveria illusão, não seria boato falso? Continuou empregando palavras que não eram de uso mercantil, e não lhes deu aquelle tom proprio, já não digo do officio, mas do interesse. Para simulal-o, entrou a percorrer o armasem. O armasem era escuro e fundo, estava em desordem, mas uma desordem natural; não se tratava alli da vitrina que allicia a pessoa que vae passando. Prateleiras toscas, com rolos e pacotes de pannos. Cartões com amostras de fazendas; outros com simples annuncios. O chão atulhado de muitos fardos, ainda encerrados nas taboas de pinho e cintas de ferro. Rubião ouvia o que o socio lhe dizia, fitando muito os olhos nelle, tornando ás mesmas cousas, inclinando-se, apalpando isto e aquillo. Dous freguezes vieram ter com o Palha, e os separaram.

Rubião ficou só, olhando á toa. Percebeu que os empregados o miravam, e assumiu um ar de dono e de entendido. Virava e revirava as amostras, estendia o beiço, mexia a cabeça. Ao fim de dez minutos, inda os freguezes não tinham sahido; elle foi ter com o socio.

— Bem, adeus, disse-lhe.

— Vae logo lá em casa?

— Logo?

— Vá, vá.

E deixando os freguezes por um instante:

— Vá, ellas estão muito tristes; eu mesmo vim por que não podia deixar tenho um negocio inadiavel, mas volto cedo. Vá logo, sim?

— Vou, á noitinha.

Rubião estendeu-lhe os dedos, sahiu á rua, e desceu.

(Continúa.)

LXXXVIII

Antes fosse logo: era a ir alguma parte. Rubião achou-se sosinho na rua, profundamente aborrecido, não sabendo que fizesse de tempo, sempre accrescido, por mais que cuidasse gastal-o. Não tinha onde ir; o Camacho estava em Vassouras curando da defesa de um réo; o centro politico, onde passava alguma hora, só abria tarde; não havia de ir metter se nas casas commerciaes de suas relações; para a rua do Ouvidor era cedo; voltar já para casa, não Rubião desceu, subiu, parando, olhando, profundamente aborrecido.

LXXXIX

Felizmente (ha também um deus para os enojados) felizmente lembrou-lhe que o Freitas estava á morte, na Praia Formosa, onde residia. Rubião chamou um tilbury e foi visital-o.

Achou-o estirado em uma cadeira baixa, magro, pallido, com a barba crescida, os olhos meio mortos. Padecia de uma lesão do coração; dias antes, foi accommettido de uma congestão pulmonar. Tinha sobre os joelhos um lençol, para esconder as ulceras das pernas inchadas. Uma das mãos, a direita, tambem estava ferida. Foi com a esquerda que elle apertou a do Rubião, espeitorando estas palavras:

— Como vae? Eu vou melhor, muito melhor. Para que se incommodou? Tenho-me lembrado das suas rosas... bonitas rosas, mamãe; e dos charutos tambem. Já não fumo, sabe? Deixei por ora o tabaco. Bonitas rosas, rosas vermelhas, brancas, amarellas...

Os olhos do doente foram parando no ar; a palavra ensurdecia-se-lhe.

— Solo... melhor solo... Dou só duas vasas, tres, uma em copas... Sete, capenga... Sim, prefiro um abacate...

Em seguida, exaltou-se um pouco, fallou da guerra do Paraguay, do duque de Caxias, inclinou a cabeça e fechou os olhos. Respirava a custo. A mãe, — uma triste velha magra e pequenina, que estava ao pe delle, — levantou os olhos medrosos para o Rubião, como a pedir-lhe desculpa do delirio do filho. Depois, pé ante pé, foi buscar uma cadeira e offereceu-a á visita. Rubião, sentou-se, relanceando a vista pela sala; era pobre, os trastes desiguaes, muito usados e poucos. O chão estava gretado; o caio das paredes encardido.

Fez-se, durante alguns minutos, triste e profundo silencio, apenas interrompido por uma quitandeira, que passava fora, apregoando com toda a força de pessoa sadia: "— Vae cheiro! vae abobora! vae tomate!" Afinal o doente acordou do torpor; ergueu a cabeça devagar, levantou a mão direita até á altura dos olhos, para mirar a ferida, coberta por um atilho de panno preto; em seguida, fallou outra vez ao Rubião, perguntou-lhe como estava, nomeou varios conhecidos de ambos. A mãe pediu licença; foi dar uma vista á panella.

— Já volto, Chiquinho, disse ella ao filho.

Viviam sós os dous; á noite vinha alli ficar um velho compadre da mãe, revesando-se na vigilia, hoje um, amanhã outro. O mais estava a cargo della, cosinhar, lavar a roupa, curar as ulceras do doente, dar-lhe os remedios, e chorar pelos cantos. Antes da molestia do filho, trabalhava para fóra, e comia com isso, porque a casa era delles resto da antiga mediania, que ella não consentiu nunca em alienar. Agora fazia dividas.

Rubião não tinha repugnancia á pobresa; achou-lhe até um sabor mysterioso, entre doce e amargo, — como a saudade do poeta; — lembrava-lhe tempos idos, e pode ser que bons tempos. A doença é que lhe dava asco; era tão natural estar de saude! Contudo, olhava para o enfermo, que ora cochilava, ora dizia alguma cousa, direita ou torta. Quando era direita, entretinha, porque o doente, apezar do coração e das pernas, trazia ainda a nota jovial. Contava anedoctas, ditos, com allusões brejeiras. A mãe, voltando á sala, fez suspender certas reminisceneias; mas o delirio tornou, trabalhado nor essa ordem de ideias, e foi por ellas abaixo; a velha recolheu-se à cosinha. Quando estava só, não podia fugir, escutava tudo, obscenidades grossas, nomes crús, toda a lama pôdre da vida; e, por maior que fosse a vergonha, preferia ouvir-lhe isso a ouvil-o gemer.

Veiu o medico, examinou, perguntou, recommendou comprimentou e saiu. Freitas a custo deixou-o sair; nessas occasiões a vida impunha-se-lhe violentamente, e elle pedia a saúde, como se pede um emprego ou uma joia. A mãe deu-lhe a dose do remédio, que elle bebeu sofrego e confiado, e era um palliativo; durante muito tempo esteve sem fechar os olhos.

— Elle come? perguntou Rubião.

— Come, não come muito, respondeu a velha limpando o suor do queixo com a ponta do avental de chita.

— Como, como, affirmou o doente.

Rubião consultou o relogio; era hora e meia. Começava a fazer calor.

— Onde vae? espere um pouco, disse o Freitas.

Rubião inclinou-se, poz os braços sobre os joelhos, e respondeu que tinha negocios; mas o outro riu dos negocios; naturalmente, eram moças bonitas ou receber os juros das apolices. Grandes negocios; em verdade, eram os unicos valiosos deste mundo e do outro... Aqui fez-se muito serio; Rubião não viu a mudança do gesto, e endireitou o corpo, disposto a esperar ainda meia hora para não chegar cedo de mais ao centro da cidade. Essa outra parte do tempo não correu tão fácil; mas enfim passou, e foi mais além, porque, quando elle consultou outra vez o relogio, eram duas horas e dez minutos.

— Agora vou, adeus.

Freitas não respondeu, dormia. Rubião levantou-se devagarinho, a velha tambem, e foi abrir-lhe a porta. Antes de sair, depois de um instante de silencio:

— A senhora hade ter tido grandes dificuldades de dinheiro, disse o Rubião; e, vendo-a morder o beiço e baixar os olhos: Não se envergonhe; necessidade afflige, mas não envergonha. Eu o que queria era que a senhora aceitasse alguma cousa, que lhe vou deixar para acudir a despeza; pagará um dia, se puder...

Tinha aberto a carteira, tirou seis notas de vinte mil reis, fez um bolo de todas ellas, e deixou-lh'o na mão. Abriu a porta e saiu. A velha, espantada, nem teve alma para responder; ao ouvir o movimento do tilbury, ainda abriu a janella, mas o tilbury ia andando; ella ficou a olhar attonita.

(Continúa. )

XC

Tudo aquillo saiu tão naturalmente ao Rubião, tão de si e tão prompto, que elle só teve tempo de reflectir, depois que o tilbury começou a andar. Parece que chegou a levantar a cortina trazeira do tilbury, para ver se a velha estava á janella. Ia entrando; viu-lhe ainda o resto do braço. Coitada da velha! suspirou consigo, e com os olhos no ar, fitos em nada, passou alguns minutos sem saber em quê, nem onde. Não pensava; se pensasse, podia estar cuidando no proprio acto, e a achal-o bom, — mas não pensava em nada; foi assim, vago, aturdido, fóra de si.

Voltando a si, Rubião sentiu toda a vantagem de não estar invalido. Reclinou-se, desabafou o peito com um grande suspiro e olhou para a praia: logo depois inclinou-se. Na vinda, mal pudera vel-a, com a vegetação curiosa que a enchia de ilhas de verdura.

— Vossa Senhoria está gostando, disse-lhe o cocheiro contente com o bom freguez que tinha.

— É muito bonita.

— Nunca veiu aqui?

— Creio que vim, ha muito annos, quando estive no Rio de Janeiro pela primeira vez. Que eu sou de Minas... Pare, moço.

O cocheiro estacou o cavallo; Rubião desceu, e disse-lhe que fosse andando de vagar.

Em verdade, o espectaculo era raro. As ilhas das Moças e dos Melões, postas alli ao pé da cara delle, á mão, davam vontade de entrar n'agua e ir ter com ellas. Tão perto da rua! Rubião ia andando sem tirar os olhos d'agua. Esquecera o doente e a mãe do doente. Assim, sim; fosse o mar todo uma cousa daquelle feitio, alastrado de terra e verduras, e valia a pena navegar; — é o que elle ia dizendo consigo. Ás vezes estugava o passo; para lá das ilhas ficava a praia dos Lazaros e de S. Christovão, — uma pernada apenas. Tudo aquillo fazia um recanto do mundo. Rubião não era poeta; mas o horizonte estreito ajustava-se-lhe á alma, como um collete feito por medida.

— Praia Formosa, murmurou elle; bem posto nome.

Entretanto, a praia ia mudando de aspecto; de quando em quando, interpunham-se casas edificadas á beira d'agua. Ás vezes, não eram casas, mas canoas, encalhadas no lodo, ou em terra, fundo para o ar. Em dous logares viu meninos brincando ao pé das canoas, em camisa e descalços; viu até um homem ao pé delles, de barriga para baixo, como as canoas. As casas de ambos os lados eram modestas e deseguaes, algumas enterradas no chão. Pareciam feitas para os meninos da praia; elles eram magros e amarellos, e as casas, com um pouco de esforço da imaginação, eram egualmcnte amarellas e magras.

O melhor, porém, é que, a despeito da má côr e das carnes chupadas, os pequenos riam tambem, como as ilhas de ha pouco. Um ria mais que os outros, porque não acabava de fixar no chão o pé do homem que estava de barriga para baixo. Era um pecurrucho de tres annos; aggarrava-se-lhe á perna e ia-a estendendo até nivelal-a com o chão, mas o homem fazia um gesto e levava pelo ar o pé e o menino.

Rubião deteve-se alguns minutos deante daquillo. O sujeito, vendo-se objecto de attenção, redobrou o exforço no brinco; perdeu a naturalidade. Os outros meninos mais edosos detiveram-se a olhar para elle espantados. Mas Rubião não distinguia nada; confusamente tudo aquillo e outras muitas cousas.

Andando, levou, a visão consigo. Foi ainda a pé durante largo tempo; passou o Sacco do Alferes, a Gamboa a Saude. Viu ruas esguias, outras em ladeira, casas apinhadas ao longe e no alto dos morros, beccos, muita casa antiga, algumas do tempo do rei, com suas grossas varandas de columnas, lembrando construcções do interior. E tudo isso lhe dava uma sensação de nostalgia... Pelo amor de Deus, não lhe attribuam nenhuma corda poetica.

Não, não. Se o nosso amigo disse algumas cousas bonitas, naquella noite no morro de Santa Thereza, é porque ha uma poesia que todo homem póde sentir ao pé das mulheres; vulgar, convenho mas que ha mais vulgar que os bons-dias? A não ser essa poesia, não sei que outra podesse elle sentir, salvo a dos lenços marcados. Era uso burguez e popular, alli por 1850, metter quadrinhas nos lenços, a ponto de marca, um verso em cada lado, com uma flor ou um coração, ou qualquer cousa que indicasse onde começava a estrophe. Onde vae esse costume? Talvez expire em alguma villa interior... Poesia chilra, mas ingenua.

Não, não. A nostalgia do nosso amigo não era poetica nem profunda; não trazia nada daquella melancolia, que um classico lusitano chamou dos sabedores, e uma princeza qualificou de sentimento de almas patricias, — des âmes bien nées. A quem é que lhe não nasceu bem a alma, Deus de justiça? Ao nosso Rubião, cujo sentimento era pura e simplesmente a nostalgia do farrapo, da vida escassa, acalcanhada e sem vexames; era, nos proprios termos, a visão da liberdade perdida. Que o luxo possa opprimir, e o superfluo chegue a enfastiar, cousa é de difficil comprehensão; nem eu estou agora para explicar, senão para narrar. Explicai-vos uns aos outros, dizei isto ou aquillo, tudo ou nada, mas deixai que vos conte onde é que elle tornou a entrar no tilbury, para onde foi e o que fez.

(Continúa.)

XCI

Em verdade, succedeu uma cousa imprevista, — possa dizer fulminante; vel-a-hemos daqui a pouco.

Rubião chegou ao fim da rua da Saude. Divagava; os olhos iam espraiados e desattentos... Rente com elle, passou uma mulher, não bonita, nem feia, singella sem elegancia, antes pobre que remediada, mas fresca de feições; teria vinte cinco annos, e levava pela mão um menino. Este atrapalhou-se nas pernas do Rubião.

— Que é isso, nhonhô? disse a moça, puxando o filho pelo braço.

Rubião inclinara-se ao pequeno, para amparal-o, e sorriu quando os viu seguir caminho. A visão da familia apoderou-se delle outra vez. — "Case-se, e diga que eu o engano!" Parou, olhou para traz, viu ir a moça, tique-tique, e o menino ao pé della, amiudando as perninhas, para ajustar-se ao passo da mãe.

Ora, é certo que o nosso Rubião cobiçava a mulher elegante, e ainda fidalga, se fosse possivel; aceital-a-hia corrompida, e, em falta de outra, até sem graça. A riqueza, caindo tarde nas mãos daquelle galé da fortuna, deu-lhe a embriaguez da grandeza e do apparato. Mas, tendes visto que já as pobrezas de outro tempo lhe traziam não sei que de saudades exquisitas. E depois tudo o que contribuisse de uma vez por todas para libertal-o daquella mulher do diabo, — dizia elle consigo, arrependendo-se logo, — tudo era um beneficio do ceu.

Assim se explica que, andando logo depois, vagarosamente, pensasse em outras mulheres que elle podia escolher muito bem, para casar. Com effeito, desde algum tempo que escutava de cabeça a sonata conjugal: faltava-lhe só, para executal-a a quatro mãos, duas mãos femininas que emparelhassem com as delle. Achou algumas, — as de uma sobrinha do Camacho, por exemplo, moça que começava a entrar em concertos, mas tão atabalhoada que não se lhe entendia uma nota, — e mais outra, e ainda outra, sem contar a propria filha do major, que não dava mais que velhas polkas e mazurkas. Mas, como a resolução ainda estava em flor, pouco tempo deu ao piano dessas artistas, e tornou á harpa de David, com os seus cantos regios e egregios. Cançava, entretanto; os dias iam enferrujando as cordas da harpa; não tardaria a vez da guitarra ou da viola.

A moça da rua da Saude dera-lhe o som da guitarra. Dedos havia que acordavam naquelle instrumento de apparencia rude a sonata mystica e universal. Rubião sentiu bem que era a mesma musica, e escutou os compassos restantes, ainda depois que a moça ia longe, dobrára a esquina, enfiára por algum becco, até entrar em casa. Estrepito de carroças, rumor de trapiches, de serrarias de madeira, nada fazia perder uma só nota daquelle rosarios de notas divinas...

XCII

Rubião parou para entrar no tilbury. A vista do tilbury fez-lhe lembrar o doente da praia Formosa.

— Pobre Freitas! suspirou.

E o suspiro era sincero. Rubião gostava delle; tinha-lhe secreta inclinação. Pensou tambem no dinheiro que deixára á mãe do enfermo, e achou que fizera bem. Talvez a ideia de haver dado uma ou duas notas de mais esvoaçou por alguns segundos no cerebro do nosso amigo; elle a sacudiu depressa, não sem se zangar consigo, e para esquecel-a de todo exclamou ainda em voz alta, — mais alta que da primeira vez:

— Boa velha! pobre velha!

XCIII

Como a ideia tornasse ainda, elle atirou-se depressa ao tilbury, entrou e sentou-se, fallando ao cocheiro rara fugir a si mesmo.

— Dei uma caminhada grande, disse elle; mas, em verdade, isto aqui é bonito, é curioso: aquellas praias, aquellas ruas, é differente de outros bairros. Gósto disto.

O cocheiro, estendido o chicote, e pingando uns golpes leves nas orelhas do animal, sorria para si de um modo tão particular, que o nosso Rubião desconfiou. Este calou-se, depois quiz sair, mas a sua desconfiança era das impacientes, que não sabem desdenhar nem esperar. Anciava por saber o motivo do riso; talvez lhe houvesse escapado alguma palavra que no Rio de Janeiro tivesse máo sentido; mas repetiu-as e não descobriu nada; eram todas usadas e communs. Entretanto, o cocheiro sorria ainda, com o mesmo ar do principio, meio subserviente, meio velhaco. Rubião esteve a pique de o interrogar, mas recuou a tempo. Foi o outro que reatou a conversação.

— Vossa Senhoria está então muito admirado do bairro? disse elle. Hade deixar que eu não acredite, sem se zangar, que não é para offender a Vossa Senhoria, nem eu sou pessoa que aggrave um freguez serio; mas não creio que esteja admirado do bairro.

— Porque não? aventurou Rubião.

O cocheiro meneou a cabeça para um e outro lado, e insistiu em não crer, — não porque o bairro não fosse digno de apreço, mas porque naturalmente já o conhecia muito. Rubião ratificou a primeira affirmação; tinha ido alli muitos annos antes, quando esteve da outra vez no Rio de Janeiro, mas não se lembrava de nada. E o cocheiro ria; e, á medida que o freguez ia demonstrando, elle ia ficando mas familiar, fazia negativas com o nariz, com os beiços, com a mão.

— Já sei disso, concluiu elle. Nem eu sou homem que não veja as cousas. Vossa Senhoria pensa que não vi a maneira porque olhou para aquella moça que passou ainda agora? Basta só isso para mostrar que Vossa Senhoria tem faro e gósta...

Rubião, lisongeado, sorriu um pouco; mas emendou-se logo:

— Que moça?

— Que lhe dizia eu? redarguiu o homem. Vossa Senhoria é fino, e faz muito bem; mas eu sou pessoa de segredo, e cá o carro tem servido para estas idas e vindas. Não ha muitos dias trouxe aqui um enganou-se; cuidou que elle dissimulava a culpa.

— Olhe, eu bem digo, — continuou elle; tal qual o moço da rua dos Invalidos. Vossa Senhoria póde ficar descançado; não digo nada; cá estou para outras. Então, quer que eu acredite que é por gosto que uma pessoa, que tem carro ás ordens, vem andando a pé desde a praia Formosa até aqui? Vossa Senhoria veiu ao logar marcado, a moça não veiu...

— Que moça? Fui ver um doente, um amigo que está para morrer.

— Tal qual o moço da rua dos Invalidos, repetiu o homem. Esse veiu ver uma costureira da mulher, como se fosse casado...

— Da rua dos Invalidos? perguntou Rubião, que só agora attentava no nome da rua.

— Não digo mais nada, acudiu o cocheiro. Era da rua dos Invalidos, bonito, um moço de bigodes e olhos grandes, muito grandes.

Oh! eu tambem, se fosse mulher, era capaz de apaixonar-me por elle... Ella não sei d'onde era, nem diria ainda que soubesse; sei só que era um peixão.

E vendo que o freguez o escutava com os olhos arregalados:

— Oh! Vossa Senhoria não imagina! Era de boa altura, bonito corpo, a cara meia coberta por um veu, cousa papa-fina. A gente, por ser pobre, não deixa de apreciar o que é bom.

— Mas... como foi?... murmurou Rubião.

— Ora, como foi! Elle chegou como Vossa Senhoria, no meu tilbury, apeou-se e entrou numa casa de rotula; disse que ia ver a costureira da mãe. Como eu não lhe perguntei nada, e elle tinha vindo calado, toda a viagem, muito cheio de si, comprehendi logo a finura. Agora, podia ser verdade, porque é mesmo uma costureira que mora na casa do rua da Harmonia...

— Da Harmonia? repetiu Rubião.

— Máu! Vossa Senhoria está arrancando o meu segredo; fallemos de outra cousa; não digo mais nada.

Rubião olhava attonito para o homem, que de facto se calou por dous ou tres minutos, mas logo depois continuou:

— Tambem não ha muita cousa mais. O moço entrou; eu fiquei esperando; meia hora depois vi um vulto de mulher, ao Longe, e desconfiei logo que ia para lá. Meu dito, meu feito; ella veiu, veiu, de vagar, olhando disfarçadamente para todos os lados; ao passar pela casa, não lhe digo nada, nem precisou bater; foi como nas magicas, a rotula abriu-se por si e ella enfiou por alli dentro. Se eu já conheço isto. Em que é que Vossa Senhoria quer que a gente ganhe alguma cousa mais? O preço da tabella mal dá para comer; é preciso fazer estes ganchos...

(Continúa.)

XCIV

— Não, não podia ser ella... disse consigo Rubião, em casa, vestindo-se para jantar.

Desde que chegára (e veiu directamente) cogitou quasi exclusivamente do assumpto. Os "olhos grandes" do rapaz e a "boa figura" da senhora roiam lhe as entranhas; elle andou, disfarçou, arranjou a collecção mensal dos jornaes, releu uns recibos, fez pular o cão, dando estalinhos com os dedos; nem assim a visão o deixou completamente. A razão dizia-lhe que era absurdo desconfiar; pelo menos, que ha muitas senhoras de "boa figura" e nada provava que a tal fosse a mulher do Palha. Este raciocinio tinha effeito prompto, mas curto; dahi a pouco, desenhava-se ao longe, cabisbaixa, vagarosa, uma pessoa, que era nem mais nem menos a propria Sophia, e andava, e entrava de repente pela porta de uma casa, que se fechava logo... Beati quorum tecta sunt peccata. Assim rangia a porta em máo e litteral sentido.

A visão foi tal, em certa occasião, que o nosso amigo ficou a olhar para a parede, como se realmente alli estivesse a rotula da rua da Harmonia. De imaginação, fez uma porção de cousas: — bateu, perguntou pela costureira, disse-lhe que levava uma encommenda de vestidos da mulher. Uma vez lá dentro, lançou-lhe a mão ao gasnate, e pediu-lhe a verdade ou a vida. A pobre mulher, ameaçada da morte, confessou tudo; levou-o a ver a dama, que era outra não era Sophia... Quando Rubião voltou a si, sentiu-se vexado.

XCV

Então, ao vestir-se, disse consigo que, em verdade, a supposição era insensata.

— Não, não podia ser ella.

Vestiu-se de preto, para ir á noitinha, á praia do Flamengo. Tinha enfiado as calças; agora atava a gravata, andando. Era no quarto de dormir; duas janellas abriam para a chacara, nos fundos. No meio a cama celibata. Acabou de compor a gravata e parou deante de uma das janellas, olhando para longe: depois, caindo-lhe os olhos no peitoril, deu com uma caravana de formigas, que iam passando de fóra para dentro; ficou indifferente, mas d'ahi a pouco, irritado, levantou o dedo, e riscou transversalmente o peitoril, em tres logares. Talvez alguma das formigas lhe pareceu "boa figura e bonita de corpo". A caravana desfez-se; ellas iam e vinham, abaixo e acima, de um lado para outro, ás tontas, trocando os passos. Umas doze tinham ficado esmagadas pelo dedo do Rubião.

Este, seja dito em honra da natural benignidade, saiu logo da janella, não sei se com uma ponta de remorso. — uma pontinha de nada. Estava tão melindroso que a morte de uma duzia de formigas bastava a molestal-o. Enfiou o collete ás pressas, para não pensar naquilo. Felizmente, começou a trillar na chacara um passarinho, com tal melodia e graça que o nosso Rubião esqueceu por um instante as cogitações de outra especie. Chegou a parar no quarto botão do collete, tão namorados eram os trillos do animal: So, so, so... fia, fia, fia... So, so, so... fia, fia, fia.

XCVI

Com um pouco de philosophia, teria Rubião agradecido á natureza a precaução sublime e piedosa de pôr um passarinho vivo ao pé de doze formigas mortas, para compensal-as. Mas aquelle homem era avêsso a cogitações profundas. Acabou de abotoar o collete, e desceu á sala de visitas, onde o esperavam tres habituados; tinha sempre de dous a cinco, ao jantar.

XCVII

De noite, correu à praia do Flamengo. Sophia recebeu-o á porta de entrada, como se o esperasse. Ia passando do gabinete, á esquerda, para a sala de visitas, que ficava á direita, e onde acabava de entrar uma familia de amizade. Rubião balbuciou duas palavras de pesames; ella, que o ia recebendo com um sorriso, compoz logo o rosto.

— Obrigado, respondeu. Está bom?

— Estou.

— Temos andado com saudades suas. Dê-me licença, olhe, entre alli, Christiano e Maria Benedicta lá estão.

Rubião foi pendurar o chapeo no cabide, emquanto Sophia passava á sala. Não se enganára; realmente, a côr do luto ia muito bem á moça. Mirou-a por traz, um pouco de relance, e viu tal qual a figura descripta pelo cocheiro, de um modo tão summario e simples; mas, effeito de uma boa palavra amiga! todos os tormentos d'aquelle dia ficaram dissipados.

A porta do gabinete estava meia aberta; Rubião pediu licença e foi entrando. Ao pé da janella, meia reclinada na cadeira de balanço, viu a filha da defuncta, com os olhos cerrados; Palha, ao pé della, segurava-lhe uma das mãos. Sentadas á mesa do centro, duas mulheres desconhecidas cosiam o luto.

Maria Benedicta, levantando a cabeça, agradeceu sem palavras os pesames do Rubião. Tudo silencioso, a tal ponto que se ouvia o som das agulhas no panno; de quando em quando um som de tesoura, cortando ou cahindo na mesa. Ao cabo de dez minutos ouviram rumor de passos e vozes baixas, á porta da sala, e na entrada; eram as visitas que se iam embora. Sophia tornou logo ao gabinete; transmitiu á prima os pesames, e perguntou-lhe como ia.

— Vou melhor, disse Maria Benedicta.

— Não tem mais a affrontação?

Maria Benedicta respirou largo.

— Não, disse; estou melhor.

Sophia fez-lhe um carinho com os dedos; depois, voltou-se para o Rubião:

— Conheceu bem minha tia? perguntou.

— Vi-a aqui algumas vezes.

— Uma santa senhora. Olhe, venha para aqui, continuou Sophia indo sentar-se á mesa de costura.

Rubião obedeceu encantado. Havia muito tempo que ella lhe não fallava com tanta doçura. Sentou-se no angulo da mesa, um pouco arredado d'esta. As duas costureiras olharam para elle, a furto; Palha fallava baixo á prima, para distrahil-a. Sophia tomou conta do Rubião. Cosia tambem, pregava umas mangas. As palavras sahiam-lhe carinhosas, mas graves; toda ella tinha um ar juntamente amigo e honesto. E Rubião, ouvindo, dava mentalmente punhadas em si mesmo, pela injustiça e perversidade das suas suspeitas.

(Continúa.)

XCVI

Vieram mais duas visitas. A primeira foi Carlos Maria. Não entrou no gabinete, foi levado para a sala.

— Quem é? perguntou o Palha á mulher, que lia o cartão entregue pelo criado.

— Vae recebel-o; é aquelle moço, o Carlos Maria...

Rubião teve um choque. Olhou bem para ella, não lhe achou signal algum de commoção. Ao contrario, emquanto o marido caminhava para a sala, Sophia continuou a fallar, terminando não sei que historia, com tal desprendimento e socego, que era difficil não a acceitar por sincera. Rubião ouviu-a com prazer. Nem o murmurio da conversação na sala perturbou a moça, que, acabada a historia, pegou logo em outra. Esta outra não era exactamente historia, mas desejo e plano. Sophia confessou que tivéra muita pena no lêr as noticias de uma epidemia nas Alagoas, e imaginára compor uma commissão de senhoras para collectar esmolas. A morte da tia interrompera os primeiros passos; mas ia continuar a obra, passada a missa de setimo dia. Que lhe parecia a elle?

— Parece-me bom. Não lia homens na commissão?

— Ha só senhoras. Os homens apenas dão dinheiro, concluiu Sophia sorrindo.

Rubião, de cabeça, subscreveu logo uma quantia grossa, para obrigar os que viessem depois. Era tudo verdade; era tambem verdade que esta commissão ia pôr em evidencia a pessoa de Sophia, e dar-lhe um empurrão para cima. Uma titular, senhora edosa e recolhida, presidiria a commissão; Sophia tinha outras senhoras em vista, pessoas mui da moda, e, por intermedio da titular alcançaria que todas acceitassem aquella obra de misericordia. Trabalhariam juntas, pediriam juntas, comeriam juntas, ás vezes; o costume traria o communhão. Poder-se-hia crer que esta ideia nascera na cabeça do Palha; mas era della mesma, original. Palha o que fez foi approvar, animar e trabalhar. Não lhe faltaria com dinheiro para as despezas necessárias; por-lhe-ia um coupé ás ordens, dar-lhe-hia os vestidos que precisasse; estimulou-a, aconselhou-a, cuidou das carteirinhas de notas, do papel, da circular que devia ter, ao alto, (ideia delle) as armas da presidente...

Carlos Maria demorou-se alguns minutos; ouviram-lhe a voz, á porta da sahida:   -

— Os meus respeitos a sua senhora.

E Sophia, no mesmo instante, ao Rubião:

— Conto que nos ajudará; mas, por em quanto não queremos noticia nos jornaes; daqui a dias... quando tudo estiver prompto...

— Prompto o que? perguntou o marido, que viera metter-se entre elles.

— A commissão.

— Ah! uma bôa ideia! Uma commissão de senhoras, sabe? Já lhe disseste que a baroneza aceitou? Tudo gente fina... Outra visita?

Com effeito, era outra visita. O criado acudira ao tympano, fez entrar a pessoa para a sala, e trouxe o cartão ao Palha. Era um presidente de banco; Palha correu a recebel-o. Maria Benedicta levantou-se então, queria recolher-se, precisava de repouso. Tinha os grandes olhos cançados de chorar; estava abatida e tropega. Sophia foi acompanhal-a, dizendo ao Rubião que voltava já.

— D. Sophia, são horas de eu ir para casa, disse uma das costureiras.

— Espere um bocadinho; já venho.

XCVII

Rubião, ficando só com as duas mulheres, entrou a andar de um lado para outro, abafando os passos, para não incommodar ninguem. Ouvia os tacões rapidos e intimativos de Sophia, no quarto de Maria Benedicta, que ficava por cima do gabinete; ouvia tambem o pé descalço e obediente da mucama... Da sala vinha o rumor da conversação, e uma ou outra palavra do Palha: "Em todo o caso póde crer...".— "Nem a administração de um banco é cousa de brincadeira..." — "Positivamente..." O presidente falava pouco, secco e baixo.

Entretanto, a costureira que annunciára a partida, ia arrecadando os retalhos, as tesouras, os carreteis de linha, de retroz, com ar apressado. Rubião deteve-se a vel-a, curioso. Era magrinha, pallida, olhos sonsos e não feios; trinta annos de edade.

— Mas, Dondon, você porque não espera um bocadinho, que eu vou tambem? disse a outra cosendo.

— Não posso.

Tinha arrecadado tudo em uma cesta pequena, que deixou no centro da mesa; depois foi ao cabide da entrada buscar o chapéo e o chale; ao voltar, perguntou ao Rubião que horas eram.

— Oito e meia.

— Jesus! é muito tarde!

E atou ás pressas as fitas do chapéo, e embrulhou-se no chale, inquieta, murmurando. Rubião, para dizer alguma cousa perguntou-lhe porque não esperava, como a outra pedia.

— Se eu pudesse, esperava, acudiu Dondon com respeito; mas o senhor sabe onde ella móra? Móra na rua do Passeio. E eu vou dar com os ossos na rua da Harmonia... Olhe que daqui á rua da Harmonia é um estirão...

XCVIII

Quando Rubião deu accordo de si, estava Sophia em baixo, e a costureira despedia-se della; fallaram ainda do trabalho no dia seguinte. Sophia acompanhou-a a porta do gabinete, dizendo-lhe que viesse almoçar.

— Demorei-me muito? perguntou depois, voltando-se para o Rubião.

— Não, senhora...

Sophia notou que elle tinha alguma cousa, e perguntou-lhe o que era. Rubião aproveitou a ponte, e galgou-a; era dôr de cabeça, uma dôr terrivel, que lhe tomava as fontes; ia-se embora, pedia-lhe licença... — Quer um pouco de agua de melissa?

— Não, agradeço, agradeço...

Na sala, rumor de passos; depois, á porta da entrada, a visita despediu-se. Palha agradecia-lhe a fineza, estimava-lhe a saude. Onde estava o chapéo? Achou-o; deu-lhe tambem o sobretudo; e, parecendo-lhe o outro procurava alguma cousa, perguntou se era a bengala.

— Não, senhor; é o guarda-chuva. Creio que é este; é este. Adeus.

— Ainda uma vez, obrigado, muito obrigado. Ponha o seu chapéo, está humido, não faça cerimonias. Obrigado, muito obrigado, concluiu apertando-lhe a mão nas suas, e curvado em angulo.

Quando Palha voltou ao gabinete, com o olho brilhante e um sorriso mal coberto, deu com o socio, que teimava em ir. Instou tambem; disse-lhe que tomasse uma chicara de chá, que lhe passava logo; Rubião agradeceu.

— A sua mão está fria, observou a moça ao Rubião, apertandolh'a; porque não espera? Agua de melissa é muito bom. Vou buscar.

Rubião deteve-a; não era preciso; conhecia aquelles achaques, curavamse com o somno. Palha quiz mandar vir um tilbury; mas o outro recusou dizendo que o ar da noite lhe faria bem, e que no Cattete acharia condução.

(Continúa.)

XCIX

— Vou agarral-a antes de chegar ao Cattete, disse o Rubião subindo pela rua mais proxima.

Calculou que a costureira teria ido por alli. Ao longe, descobriu alguns vultos de um e outro lado; um delles pareceu-lhe de mulher. Hade ser ella, pensou; e picou o passo. Entende-se naturalmente que levava a cabeça atordoada: rua da Harmonia, costureira, uma dama, e todas as rotulas abertas. Não admira que, fóra de si, e andando rapido, desse um encontrão em certo homem que ia devagar, cabisbaixo, pensando. Nem lhe pediu desculpa; alargou o passo, vendo que a mulher tambem andava depressa.

C

E o homem empurrado, mal sentiu o empurrão. Caminhava absorto, mas contente, espraiando a alma, desabafado de cuidados e fastios. Era o presidente de banco, o que acabava de fazer a visita de pezames ao Palha. Sentiu o empurrão, e não se zangou; concertou o sobretudo e a alma, e lá foi andando tranquillamente.

Tinha tido commoções diversas: fôra primeiro á casa de um ministro de Estado, tratar do requerimento de um irmão. O ministro, que acabava de jantar, diggeria calado e pacifico. O presidente expoz, contou, saltou adiante, tornou atraz, ligou e desligou as cousas. Mal sentado, para não perder a linha do respeito, trazia na boca um sorriso constante e venerador: e curvava-se, pedia desculpas. O ministro fez algumas perguntas, elle, animado, deu respostas longas, extremamente longas, para explicar bem o negocio, e acabou entregando um memorial.

Depois ergueu-se, agradeceu, apertou a mão que o ministro lhe estendia, e curvou-se em despedida; o ministro foi leval-o, ainda que oppresso, até o terraço. Ahi fez o presidente duas cortezias, — uma em cheio, no patamar da escada, — outra em vão, já em baixo; em vez do ministro, viu só a porta de vidro fosco, e no terraço, pendente do tecto, o lampião de gaz. Enterrou o chapéo, e saiu.

Saiu humilhado, vexado de si mesmo. Não era o negocio que o affligia, mas as curvaturas que fez, as desculpas que pediu, as attitudes subalternas, um rosario de actos sem proveito. Chegou a dar uma punhada no ar, e a soltar um nome feio, — elle, em geral, pacato e honesto. Foi assim que chegou á casa do Palha.

Em dez minutos, tinha a alma espanada, e restituida a si mesma, taes foram as curvaturas do dono da casa, as palavrinhas doces, os apoiados de cabeça, e uma ponta de sorriso perenne, não contando offerecimentos de chá e charutos. O presidente fez-se então severo, superior, frio poucas palavras; chegou a arregaçar com desdem a venta esquerda, a proposito de uma ideia do Palha, que a recolheu logo, concordando que era absurda. Copiou algumas das attitudes do ministro, mas tão mal e desengraçadas, que só podiam criar tedio; foi justamente quando o Palha se mostrou mais serviçal e attento. Sahindo, não foram delle as cortezias, mas do dono da casa.

Estava outro, quando chegou á rua; dahi o andar lento e satisfeito, o espraiar da alma restituida a si propria, e a quasi indifferença com que recebeu o embate do Rubião. Lá se iam a gravidade do ministro, e as suas proprias curvaturas; agora o que elle rumina gravemente são as curvaturas e os rapapés de Christiano Palha.

CI

Não contaria toda essa odysséa miuda de uma alma, senão tivesse dous motivos capitaes, — explicar a benevolencia do empurrado, e dar ao leitor um bom ensejo de fazer uma reflexão. A benevolencia está explicada; resta só reflectir.

CII

Aos preguiçosos... Sim, ha desses cerebros, capazes de crear um mundo, mas que por indolencia, não acabam de compor uma flor nem de consolidar um seixo .. Cerebros invejaveis! Melhor é o poder virtual que o poder effectivo. Mais vale possuir uma ideia que divulgal-a; emquanto a ideia está em tua casa, é a virgem pura e celeste, de olhares serenos e claros, mãos finas e habeis, silenciosa ou fallando pouco, mas só palavras eternas, castamente nua, e linda. Abre-lhe, porém, a porta: deixa que ella vá por esse mundo. Não faltará namorado vadio que a apanhe, nem logo outro que lh'a furte, e ella irá assim de casa em casa, de porta em porta, de rua em rua; e com pouco, virão contar a ti mesmo, — a ti, que a recebeste do ceu, após uma noite de fadiga, — que ella é a mais bella das creaturas humanas, tem os olho claros, mãos habeis e finas, — unica e nova.

Mas não essa a reflexão que eu queria fazer aos preguiçosos, e que provavelmente já os diligentes fizeram calados. A reflexão é que aquelle presidente não tem nome. Não tem nome, é certo, mas é porque não o achei na lista das pessoas deste livro, que é um livro exacto. Podia por-lhe um, á escolha; seria repetir o acto do pae Adão, a quem o Senhor levou os animais todos, para que os nomeasse á vontade. Nem aqui se trata de animaes nem eu imitaria, por mim mesmo, as acções do primeiro homem biblico. Não gósto de Adão; é um simplorio. Se elle tem frustado a desobediencia da mulher, não haveria inimizade entre a posteridade desta e a da serpente: nem a mulher pisaria a cabeça á serpente, nem esta lhe morderia o calcanhar; — poderiamos estar hoje comendo com pantheras á meza; as moças em vez de brincos, trariam escorpiões.

CIII

Não tem nome o presidente, nem é já preciso, porque o vamos deixar aqui na esquina do Cattete, à direita, onde está um homem conversando com uma mulher.

(Continúa.)

CIV

— Você está aqui ha muito tempo? perguntava a mulher.

— Estou ha uns vinte minutos.

— Não pude sahir mais cedo; descuidei-me da hora, é verdade; mas, depois tive de esperar por D. Sophia, que foi levar a prima ao quarto. Vamos.

— Vamos... Mas espera, porque não ficamos hoje na rua da Barreira?

— Pois sim.

— O melhor, Dondon, é você mudar-se de uma vez lá para casa. A rua da Harmonia fica muito fóra de mão...

Lá foram andando para o lado da Gloria. O presidente achou-os no meio da conversa, e atravessou logo a rua. Na outra esquina roçou por um homem, que alongava os olhos e as orelhas para o grupo e     o dialogo fronteiros. Era Rubião; acompanhára ás pressas a costureira, mas, quando ia a pegal-a, deu com o desconhecido. Só ouviu estas primeiras palavras:

— Você está aqui ha muito tempo?

— Estou ha uns vinte minutos.

— Não pude...

CV

O resto? Oh! o resto das cousas! Foi para a outra esquina, e parou; tentou ouvir, mas não ouviu nada. Viu só que o homem tinha os modos honestos, e que a familiaridade de ambos podia ser conjugal.

Supponha se um marido pobre, que acabava o seu trabalho, e vinha esperar a mulher...

Mas então ella é casada? perguntava elle a si mesmo.

Viu que davam o braço, e seguiam para o lado da Gloria. Deixou-se estar quedo, acompanhando com os olhos os dous, que lá se perdiam na noite e no mysterio.

Gulliver, atado pelos fios da gente de Lilliput, com os primeiros esforços que fez, pôde desvencilhar-se delles, sem dôr; mas, ao levantar a cabeça, que estava presa pelos cabellos, é que padeceu uma dôr de todos os diabos. Assim aconteceu ao nosso amigo. Perdera de vista o casal e caminhou para o lado opposto. Pouco depois accordava, como e outro naufrago, e, de um gesto, rasgou todos os retrozes da costureira; era casada, não podia entender-se com ella o caso da rua da Harmonia, posto lá morasse. Mas este nome da rua ventou e trovejou, ainda na alma de Rubião; era a suspeita que revivia. Elle, porém, comparou os obsequios daquella noite, com as outras indicações minimas e vagas, fez um nobre esforço e sacudiu o resto do mal. Custou-lhe naturalmente, e não o fez sem dor, como o outro Gulliver, arrancando os cabellos presos ao chão pelos fios da gente miuda...

— Não, não póde ser verdade; Sophia é innocente.

CVI

"Ficamos hontem muito inquietos, depois que o senhor saiu. Christiano não..."

Rubião recebeu este bilhete. ainda na cama, estando a ler os jornaes, Em cima da cama, indo de um para outro lado, lambendo-lhe as mãos, deitando-se a fio comprido ou enroscado em si mesmo, estava o Quincas Borba. O criado pediu-lhe licença, entrou, e deu-lhe a carta.

— Tem resposta? perguntou Rubião.

— Diz que tem, sim, senhor.

Rubião não viu o sobrescripto. Se o visse, conheceria a lettra e deixaria logo a folha; mas, com a carta na mão, acabou de ler uma noticia, — cousa curta, — onze ou treze linhas, — mas que o interessava. Tratava-se de um caso da vespera; á noite, no fim do Cattete; um velho fôra esbofeteado por alguem que desapareceu. Cavalheiro que passava encontrou o velho chorando; ouviu a historia, foi chamar um policia; este veiu, bradou que o velho estava bebado, vibrou-lhe algumas pranchadas, e levou-o preso. O cavalheiro foi com os dous á estação policial. O tenente ouviu a praça e o cavalheiro, que deu todas as explicações e fianças necessarias. O policial berrou e puxou pela espada; reconheceu-se que estava fóra de si, avinhado ou louco; foi recolhido ao xadrez. Depois, o tenente poz o velho em liberdade.

CVII

Não valia a pena fazer esperar a carta; entretanto, Rubião ainda a fez esperar um pouco. Abriu-a, é verdade, mas devagar, sem ler o sobrescripto, com os olhos na cupula do cortinado. Chegou a ficar parado, com ella na mão, aberta. Quincas Borba poz-se de pé, a espreital-o. O criado que até então se apoiava na perna esquerda mudou de apoio e esperou.

(Continúa.)

CVIII

Rubião pensava na noticia da folha, porque o cavalheiro era elle proprio; elle é que fez tudo para salvar o pobre diabo, que acabava de receber uma bofetada, — ao que parece, sem vislumbre de odio, nem nada, por desfastio ou talvez por graça. Era tudo verdade. Rubião arrepiára caminho para ir á estação depôr contra o policial, e ver se punha o velho em liberdade; tal qual a folha dizia.

O que a folha não dizia é que o velho, a um canto da sala da estação, enxugava os olhos na manga, emquanto se examinavam as cousas. Quando lhe deram liberdade, ainda enxugou os olhos, o rosto serenou-se-lhe, elle acabou dizendo ao tenente e ao Rubião, "que ficava muito obrigado a Suas Senhorias", e saiu. Rubião saiu tambem; viu o homem atravessar a rua, coser-se ás casas do outro lado, e perder-se, como a costureira e o marido (se o era) na noite e no silencio.

Rubião seguira outra vez para casa, meio desconsolado, porque o velho lá ia, sem lhe dar um particular agradecimento; parecia-lhe que não avaliára bem o favor, nem mais se lembraria delle, senão para relatar o caso aos amigos: "Um senhor que ia passando..." Um senhor! um anonymo! Nem lhe perguntou quem era, onde morava, para ir comprimental-o no dia seguinte e, ainda uma vez, agradecer. Não lhe apertou a mão, não a levou ao peito ou qualquer outro modo assim demonstrativo; não fez nada, nada.

— Fico obrigado a Vossas Senhorias.

Olhou ainda para traz; o velho ia passando por um lampião, com o chapéo inclinado sobre os olhos, e hombro direito meio cahido. Talvez fosse pensando justamente na bofetada anonyma.

CIX

Tudo acabaria se elle lesse a carta logo... Oh! se Julio Cesar tem lido a carta de aviso que lhe entregaram na rua, quando ia ser assassinado! O seculo tomaria outro curso. — Nem Cesar nem Rubião: o destino parece que os marcou bem com o sello da morte e da amargura. Fique esta linha de parallelo á maneira de Plutarcho. Em alguma cousa se hão de parecer os homens.

CX

Quincas Borba chamou o dono amigo á realidade, dando um pulo sobre elle, e latindo; Rubião voltou a si e leu então o papel.

"Ficamos hontem muito inquietos, depois que o senhor sahiu. Christiano não vae lá agora, porque accordou tarde, e tem de ir fallar ao inspector da alfandega. Mande-nos dizer se passou melhor. Lembranças de Maria Benedicta e da

                                                                                 Sua amiga e obrigada

                                                                 SOPHIA".

CXI

Rubião releu essas poucas linhas, a segunda vez mais demoradamente; depois, deparando no criado, disse-lhe que fosse dizer ao portador da carta que esperasse a resposta

— Que bobo! pensou o criado, ao sair do quarto; tanto tempo para dizer o que podia ter dito logo.

Dahi a vinte minutos a resposta chegou á mão do moleque que trouxera a carta; foi o proprio Rubião que lh'a entregou, perguntando-lhe como tinham passado as senhoras. Soube que bem; deu-lhe dez tostões recommendando-lhe que, quando precisasse alguma cousa delle, viesse procural-o. O rapaz, espantado, arregalou os olhos e prometteu tudo.

— Adeus! disse-lhe benevolamente o Rubião.

E ficou parado, emquanto o portador descia os poucos degraus. Indo este a meio jardim, ouviu bradar o Rubião:

— Espera!

Voltou para acudir ao chamado; Rubião já tinha descido os degraus; foram um ao outro, e pararam, calados, no meio do jardim. Correram tres minutos sem que Rubião abrisse a boca. Afinal, perguntou alguma cousa, — se as senhoras tinha passado bem. Era a mesma pergunta de ha pouco; o criado confirmou a resposta. Depois, Rubião deixou vagar os olhos pelo jardim. As rosas e as margaridas estavam lindas e frescas, alguns cravos desabrochavam, outras flores e folhagens, begonias e trepadeiras, todo esse pequeno mundo parecia estender os olhos invisíveis ao Rubião, e bradar-lhe:

— Alma sem vigor, acaba de uma vez com o teu desejo; colhe-nos, manda-nos...

— Bem, disse finalmente Rubião; lembranças ás senhoras. Não se esqueça do que lhe disse; precisando de mim, venha cá. Guardou a carta?

— Está aqui, sim, senhor.

— É melhor mettel-a no bolso, mas olhe não machuque.

— Não machuco, não, senhor, retorquiu o criado accommodando a carta.

(Continúa.)

CXII

Sahiu o moleque; Rubião ficou passeando no jardim, com as mãos nos bolsos do chambre, e os olhos nas flores. Que tinha que mandasse algumas? Era um presente natural, e até de obrigação para pagar uma cortezia com outra. Fez mal; chegou ao portão; mas já o moleque ia longe, dando aos hombros, com ar, pachola. De repente, Rubião advertiu que o luto da familia devia excluir as lembranças alegres, e ficou tranquillo

CXIII

Senão quando, ao recomeçar o passeio, viu uma carta ao pé de um canteiro, meia coberta por folhas. Inclinou-se, apanhou-a, leu o sobrescripto... Ficou estupefacto.

Perto havia um banco; foi sentar-se, com a carta nas mãos, sem poder arrancar dalli os olhos nem a alma. Que demonio trouxera durante a noite, aquelle papel immundo e assassino, e o deixára cair no jardim, para que elle lesse de manhã, e morresse de um golpe? Traduzo assim as sensações confusas e vagas do nosso amigo. Póde ser que exagere; a ideia da morte não corresponde, talvez, a nenhuma daquellas sensações. A verdade é que elle não pensou nada, não formulou um raciocinio, uma phrase sequer, um retalho de phrase; ficou a olhar estupido. Estava tão longe do achado! Mordeu o beiço, deu um golpe no ar com a carta; depois tornou a olhar para ella, fixamente; afinal fechou os olhos, como quem quer ver melhor um quadro ou pessoa ausente. De facto, as flores e o resto desappareceram, mas só por um instante, porque elle abriu outra vez os olhos, espavorido. Cahiram-lhe na carta. Oh! maldita carta!

Quiz duvidar, mas não pôde; a letra era della, tão só della, era a mesma da outra; e o nome do sobrescripto estava claro e nitido; era o nome do diabo, Carlos Maria.

CXIV

Qualquer pessoa que lê isto, a frio, acha naturalmente que a carta caiu do bolso ou da mão do portador, por descuido. Não aconteceu o mesmo ao espirito do Rubião; esse, sempre que buscava explicar a presença da carta, escorregava para a autora, para o destinatario, e finalmente para o couteudo.

Oh! o conteúdo! Que iria alli escripto dentro daquelle papel homicida? Perversida de luxuria, toda a linguagem do mal e da demencia, resumidas em duas ou tres linhas... Não; mais, muito mais. Com esta ideia, Rubião levantou a carta, deante dos olhos, a ver se descobria alguma cousa. Não descobriu nada; o papel era grosso; não podia ver se todo elle estava escripto.

— Sim, foi isso, pensou elle ao cabo de vinte minutos; o portador da minha carta trouxe esta, e deixou a cair. Viria na mão ou caiu-lhe do bolso, ao tirar o lenço? Tinha lenço; viu-o enxugar-se depois, andando...

De repente, salteou-o o receio de que o moleque, dando por falta da carta, em caminho, voltasse a procural-a. Rubião metteu-a atrapalhadamente no bolso do chambre. Depois, com a ideia de não poder encobrir a perturbação, se o portador voltasse retirou-se do jardim.

CXV

Deve ser assim, quando um homem medita algum crime. Rubião, em casa, tirou a carta e mirou-a outra vez; as mãos tremiam-lhe, reproduzindo o estado da consciencia. Se abrisse a carta, saberia tudo, tudo, tudo; ficava apto para recompor-se. Lida e queimada, ninguem mais conheceria o texto, ao passo que elle teria rompido por uma vez com essa terrivel fascinação que o fazia penar ao pé daquelle abysmo de opprobios... Não sou que o digo, é elle; elle é que junta todos esses nomes ruins, elle é que pára no meio da sala, com os olhos no tapete, em cuja trama figura um turco indolente, com o chibuque nos labios, olhando para o Bosphoro... Devia ser o Bosphoro.

Illusões, illusões. Bem podia ser que, aberta a carta, lido o texto, longe de fugir ao "abysmo de opprobios", Rubião corresse a lançar-se nelle de uma vez, ou a quebrar a cabeça de encontro ás bordas. Isto é que é meu, — e nosso, se o leitor vae acompanhando attento os movimentos intimos daquelle homem. Hade concordar que este resultado era bem possivel, e talvez o unico possivel. O texto poderia ser um desafio a todas as suas forças; elle as enfeixaria contra essa mulher enigmatica.

(Continúa.)

CXII

"Infernal carta!" rosnou surdamente Rubião, repetindo uma phrase ouvida no theatro, algumas semanas antes; phrase esquecida, que, por uma associação de ideias, vinha agora exprimir a analogia moral do espectaculo e do expectador.

Teve impetos de romper o involucro; era só um gesto, um acto, e a verdade surgiria do poço fechado. Ninguém o via; os quadros da parede estavam quietos, indifferentes; o turco do tapete continuava a fumar e a olhar o Bosphoro. Mysterioso turco! Em que estaria pensando? Em si mesmo? nas bellas damas de Constantinopla, ou na guerra da Criméa? Talvez na guerra; tem o seu titulo de pachá, commandou (miserrimo!) ao lado de christãos... Onde iam os tempos de Omar, quando o alfange e o Korão ditavam leis a Jerusalem? Agora o Evangelho e o Korão andam encadernados em um só tomo, obra da velha sultana diplomatica; póde ser até alguns capitulos de um livro fossem intercallados no outro, e vice-versa... Mas ha aqui ideias de mais para um turco de tapete.

Nem era delle que vinha a hesitação ao nosso amigo. Vinha de algum turco interior, que o puxava para traz, sempre que elle tentava dar um passo adeante, e abrir a carta. Em verdade, tinha escrupulos; a carta, posto que achada no jardim, não lhe pertencia, mas ao outro. Era como se fosse um embrulho de dinheiro; não devolveria o dinheiro ao dono?

Despeitado, atirou a carta ao aparador, e foi concluir a leitura dos jornaes.

Concluir é um modo dizer; lia seguidamente, mas não poderia explicar, no fim, o assumpto do artigo ou da noticia, ainda que contivesse só a transferencia de um soldado, ou o furto de um par de botas: menos ainda se tratava longamente da guerra. Um desses artigos vinha na Atalaia; e a natureza politica da folha trouxe-lhe á lembrança que nãorespondera ainda á carta de um senador, recebida na vespera. Correu á secretaria, procurou a carta, achou dous recibos da casa, e uma conta de alfaiate. Na conta, a palavra colletes fixou-lhe a attenção. Foi a primeira em que lhe cahiram os olhos: colletes. Colletes de que? Colletes. Fitou-a com grandes olhos apagados. Afinal arrolou a conta devagarinho, fez um canudo, e olhou por elle. Cançou-se, procurou a carta do senador. achou-a e respondeu logo... Desde as primeiras linhas, Rubião sentiu que não podia dar a resposta idonea que lhe cumpria. pela materia e pela pessoa: mas foi escrevendo, escrevendo, como para esquecer a outra carta; acabou-a, fechou-a e pol-a de lado, para lançar-lhe depois o sobrescripto; mas com a intenção feita de a rasgar.

CXIII

Depois do almoço, tornou á maldita carta. Já então encarou friamente o sobrescripto, com animo, resoluto a abrir aquelle papel do inferno; mas não abria nada. E achava-se illogico.

— Que escrupulos são estes em abrir uma carta alheia, quando os não tenho em cobiçar a mulher do proximo?

Está claro que estes pensamentos não saem assim formulados; são rapidos como relampagos. A pessoa não se demora em os mirar e examinar; elles é que, ás yeses, se batem e se destroem, com a mesma brevidade de ação. Aquelle voltou ainda, teimando em comparar o respeito da carta ao respeito da mulher; obstinação caracteristica, dir-se-hia um modo de lhe dar forças para abrir finalmente o papel, que alli tinha na mão e o desafiava pelo mysterio. Em verdade, parecia-lhe contradicção e absurdo; não chegava a explicar o absurdo nem a conciliar a contradicção; era um problema insoluvel.

CXII

Dentre muitos alvitres: abrir a carta e lel-a; — devolvel-a á dona, — mandal-a entregar ao destinatario, — dal-a ao proprio marido, — queimal-a, — guardal-a fechada comsigo, — Rubião escolheu o ultimo. Este continha todos os outros em si; não fazia mais que adiar a solução.

Era tarde. Descendo ao banho, esbarrou com um tal Sarmento que ia lá almoçar todos os dias, e entrava esbaforido, por causa da hora. Rubião, de chambre o chinellas, disse que acordara tarde, já vinha, era um instante, fosse lendo os jornaes.

Sarmento entrou na sala da frente, desconsolado. Consultou o relogio, e, para passar o tempo, pegou em uma das folhas, leu a por alto, noticia aqui, artigo alli, um emplastro, uma descompostura. Estava inquieto; tinha de ir á repartição, onde, desde trinta anos, não fazia nada. Consultou outra vez o relogio, ergueu-se, deu alguns passos, puxando a gola do fraque, para sacudir a impaciencia. Depois, foi á janella, distrahiu-se um pouco, e tornou a sentar-se com o jornal nas mãos.

— Se isto são horas de esperar...

Foi percorrendo o jornal á toa, calculando que o amphytrião não se podia demorar muito; mas, afinal atirou-o ao chão, irritado. Era demais: dir-se-hia proposito. Estendeu as pernas, e começou a evocar não sei que historias antigas, mas a fome atalhava a memoria. De repente, poz-se á escuta; pareceu-lhe que era o Rubião que voltava; enganara-se; era o copeiro que punha a mesa.

— Se adivinho isto, ia a uma casa de pasto.

Entrou a amiudar os movimentos, andar, parar, ir á janella, mirar algumas das galanterias postas em cima dos dunkerques. Conhecia-as de cór; mas assim como algumas pessoas, quando padecem de insomnia, recitam machinalmente as lettras do alphabeto, assim elle ia tirando e repondo uma a uma dessas cousas, que não diziam nada. Entre ellas estava uma photographia de Quincas Borba (o homem) e outra de Quincas Borba (o cão), pelas quaes, Rubião mandára fazer um só painel, que tinha no gabinete, por cima da escrevaninha.

Não, nunca lhe acontecera cousa igual. De costume, chegava ás nove horas, nove e um quarto; achava Rubião na sala, banhado, penteado, meio vestido, com um paletó de casa por cima, acabando de ler as folhas do dia. Nove e meia, almoço na mesa; ás dez, estava livre. Não entrava cedo na repartição, é claro; mas havia considerações com elle, pelos longos annos, gravidade de pessoa, e velhas amizades, que o recommendavam. Hoje, nem ao meio dia daria entrada. A irritação, abafada, era dura de soffer. Quando lhe acontecia dar um passo mais impaciente, moderava-se logo, sacudia fortemente as calças com o lenço, para simular que as estava limpando, se algum servo o escutasse. Todos os defeitos do Rubião appareceram lhe de repente aos olhos; achava o aborrecido, sem graça, com o sestro de louvar as comidas, e mettel-as á cara dos hospedes. D'aqui a zombar delle foi uma pernada. Que estaria fazendo? Desbastando a caspa...

Nesta última parte, refere o pesamento, ainda que a custo, envergonhado. Foi outra vez sentar-se, estendeu ainda as pernas e cerrou os olhos, á espera, até quando a fortuna quizesse. Assim é que Rubião veiu achal-o d'ahi a alguns segundos.

— Você parece que acordou hoje antes de dormir, disse-lhe da porta.

— Não, estava pensando, respondeu Sarmento abrindo os olhos.

Viu Rubião, mettido no chambre, vindo do banho, e empallideceu. Vagamente, lembrou-lhe ir-se embora, allegando qualquer cousa, mas Rubião deu-se pressa em animal-o: ia vestir-se, era um instante.

— Tudo são instantes hoje! pensou elle.

Jurou não voltar alli. Que differença que era o trato do desembargador, com quem jantava todos os dias! — Quatro horas em ponto. Entrava ás tres e meia, era recebido nas palminhas pela mulher, pela filha e uma sobrinha. O desembargador, grave e cortez, deixava autos e livros para ir jogar com elle duas ou tres partidas de damas. Vinha logo o jantar, sadio, abundante e quente Sarmento não gostava de comidas frias. E depois as finezas. Ninguem era servido antes delle, por mais que teimasse e até se zangasse. Aqui não se passam pratos, dizia-lhe a dona da casa, servindo á esquerda do hospede. Que differença! Tudo a tempo e a horas; tudo delicado...

Os tacões do Rubião, caminhando para a sala, cortaram o fio ás reflexões de Sarmento.

— Prompto! disse Rubião. É tarde; estou com fome. Aposto que tambem está com ella...

— Fome, não digo; vontade de comer, distinguiu Sarmento, esboçando um sorriso. Está fresco; vejo que está fresquissimo, continuou levantando-se.

Foi uma alleluia, quando o criado appareceu á porta para dizer que o almoço estava na mesa. Sarmento fallava pouco, por causa da fome, mas con amore. Antes de mais nada, engoliu um pedaço de pão; dahi a pouco estava em paz com a natureza, como o homem de Rousseau;mas a conversa era rara e fria porque o amphytrião cuidava de outra cousa. Deante do criado, para disfarçar a situação, Sarmento rufava nos pratos ou dava pedaços de pão ao Quincas Borba.

Appareceu o correio, com uma carta do Camacho. Sem saber o que fosse, Rubião pol-a de lado; mas logo depois recebeu outra, não pelo correio, mas por um homem, que ficára no jardim, esperando.

— É o dia das cartas, disse elle ao hospede.

— Teve muitas?

Rubião não lhe respondeu, abriu aquella; a mãe do Freitas, por mão de outra pessoa dava-lhe noticia da morte do filho. Apezar do estado em que o deixára, Rubião não contava que a morte fosse tão proxima.

— Morreu o Freitas, disse elle ao hospede. Não sei se se lembra de ter visto aqui um Freitas, um rapaz muito engraçado, que jantava commigo, algumas vezes, e almoçava tambem.

— Lembra-me; morreu?

Era mentira; mas, qualquer explicação iria longe, e Sarmento queria acabar de almoçar. Faltava o café. Rubião, porém, levantou-se e saiu para fallar ao portador que lhe contou a morte do Freitas; expirára das quatro para as cinco horas. A mãe, chorando muito, disse que queria mandar noticia ao Rubião, que se mostrára amigo do finado. Rubião tomou a si custear o enterro; deu o dinheiro preciso ao portador, e recommendou que o avisassem da hora.

— Pobre Freitas! suspirou elle ao tornar á mesa do almoço.

E, mexendo o café, com os olhos parados, lembrava-se daquella exclamação com que o finado saudára um presente de Sophia, quando ella ainda morava em Santa Thereza: "Morangos adulteros!" Nunca lhe esqueceu essa palavra, supposição de peccado que não existia, mas que o abasteceu então de esperanças. Morangos adulteros! Tem ainda na memoria o tom e o gesto do moço. Carlos Maria estava presente, lembra se bem; a cesta das fructas veio com um bilhete, que elle não lhes leu. Dahi a exclamação do outro: Morangos adulteros! Rubião sentia, ao repetir esta palavra, um fremito inexplicavel, deleite mysterioso, espreguiçamento da alma, e repetia comsigo: morangos adulteros!

Quando acabou o café, estava prestes a dar meio dia. Sarmento despediu-se ás pressas. Rubião abriu então a carta de Camacho. Era confidencial; dava-lhe noticia da morte provavel de certo deputado mineiro, que fôra accommettido de uma syncope cardiaca. Os amigos do enfermo occultavam a ocurrencia; mas, era certa, e o desfecho mortal probabilissimo. Tratava-se agora de fazel-o substituir por elle, — elle, Rubião. Recommendava-lhe silencio absoluto. Voltaria brevemente; fallariam então aos chefes do senado.

(Continúa.)

CXIII

Em verdade, era demais essa nova comoção. Não faria descançar das outras, complicava-as. Um logar na camara! Ter de fallar aos chefes do senado! Rubião releu a carta; não se lhe dizia quem era o deputado que estava á morte; fez miudo escrutinio de todos elles; todos lhe pareciam vender saude. Não deixou, porém, de advertir que as apparencias, nos cardiacos, enganam muito; recordou-se de casos em que recebeu a um tempo noticia da morte e da molestia. Quando menos se espera, adeus. A carta dizia que o desfecho mortal era probabillissimo; e Camacho não era pessoa de impressões panicas. Alguma certeza teria para fallar assim.

De tarde, foi Rubião ao enterro do Freitas. Quando entrou na sala mortuaria, todas as attenções voltaram-se do cadaver para elle. A velha mãe, erguendo-se a custo, beijou-lhe as mãos, por mais que elle as recusasse. Vendo que ia ajoelhar-se tambem, Rubião impediu-a a tempo, suspendendo-a e abraçando-a commovido. Esse acto do nosso amigo encheu de admiração aos convidados, sabedores todos da affeição que tinha ao defunto, e dos beneficios que fizera á mãe naqueles dias de miseria. Um delles ousou apertar-lhe a mão; depois a um canto, baixinho, contou-lhe a injustiça de demissão que recebera, dias antes; demissão acintosa, por causa de intrigas...

— Imagine V. Ex. que aquillo é (com perdão da palavra) um covil de bandalhos...

Chegou a hora de sahir o enterro; as despedidas da mãe foram dolorosas; beijos, soluços, exclamações, tudo de mistura e lancinante. As mulheres não conseguiram arrancal-a dalli; foram precisos dous homens e o emprego da força; ella gritava e forcejava por tornar ao cadaver: meu filho! meu pobre filho! Depois as amigas pegaram della e a levaram para dentro. Soaram os martellos, surdamente, pregando o caixão: pan, pan, pan, pan, pan.

— Um escandalo! O proprio ministro dizem que não gostou do acto; mas V. Ex. sabe, para não desmoralisar o diretor...

Rubião accedeu ao pedido que lhe faziam de pegar em uma das argolas, e deixou o demitido. Fóra, muita gente parada; os visinhos ás janellas, debruçavam-se uns sobre os outros, com os olhos cheios dessa curiosidade que a morte inspira aos vivos. Ao demais, havia o coupé do Rubião, que se destacava das caleças velhas. Já se fallava muito daquelle amigo do finado, e a presença confirmou a noticia. O defuncto era agora apreciado com certa consideração.

— Voltando do enterro, noite entrada, Rubião pensava no rapaz que lá ficára debaixo do chão. Não se contentou com deitar a pá de terra, acto em que foi primeiro, por solicitação de todos; esperou que os coveiros enchessem a cova com as suas grandes pás do officio. Ouvira muito elogio, murmurado, ao pé delle, ácerca do defuncto; e caminha até á porta ladeado por todos, que lhe retribuiram compridamente as despedidas de chapéo.

Vinha assim, perdido em pensamentos vagos e tristes, quando viu passar um coupé acompanhado de ordenanças. Era um ministro que ia para o despacho imperial, em S. Christovão. Recordou os termos da carta do Camacho, e por alguns minutos não cuidou de outra cousa. Então a carta dirigida a Carlos Maria poz outra vez a orelha de fóra; veiu a mulher do Palha, com os seus modos tão particulares, vieram o defuncto, a mãe, a costureira, o marido da costureira, o cocheiro do tilbury, o portador das cartas, um turbilhão de cousas e, pessoas que estupificaram.

Rubião sentiu que se perdia no abysmo. Essa grande commoção, feita de todas, trouxe-lhe um estado singular. Não era vertigem, nem equilibrio. Moralmente, não se podia ater a cousa nenhuma; cada lembrança em que pegava desfazia-se para dar logar a outro, que operava do mesmo modo, até que todas se juntavam para aturdil-o. Os pensamentos atropelavam-se-lhe; era tudo confusão, instabilidade, beirando o delirio Aterrado buscou fixar em objectos proximos, inclinava-se para ver as lojas que corriam, ou então cantarolava algum trecho de cantiga mineira ou de opera italiana. Teve medo de ir jantar em casa, e mandou guiar para um restaurant. Era uma distracção; a ausencia das cousas habituaes podia restituir-lhe o equilibrio. A mesma ideia o levou ao theatro, sem que um e outro remedio produzisse grande effeito.. Quando tornou a casa, era meia noite; as sensações confusas e baralhadas pegaram d'elle novamente, e o retiveram no estado angustioso do principio.

Dormiu tarde e mal. Acordou melhor, fatigado naturalmente da tontura moral da vespera, mas socegado agora, e podendo reflectir. Achára na historia da noite anterior alguns intersticios escuros; — ou factos de que absolutamente se esquecera, ou puras allucinações perdidas. Felizmente um dos elementos da tempestade da vespera ia longe; — eram as scenas da casa mortuaria e do cemiterio. O sol, astro de vivos, entrava-lhe pelas janellas. Como pensasse na carta de Carlos Maria, determinou entregal-a á propria mulher do Palha. Dar-lh'a-hia, com os olhos arredados, afim de não ver o effeito; podia córar, podia impellidecer; não queria saber de nada.

(Continúa.)

CXIV

Camacho voltou poucos dias depois, e confirmou a noticia. Disse-lhe que o deputado ficára mal; uns criam na morte próxima, outros admitiam que arribasse, mas era questão de poucas semanas: estava acabado. Depois, referiu miudamente o que fizera, o modo porque insinuou a candidatura do Rubião, carteando se com as influencias locaes, e dizendo-lhes que era a melhor solução da divergencia.

— Divergencia?

— Sim, o Dr. Hermenegildo, de Cattas-Altas, e o coronel Romualdo; dizem que ambos, em caso de vaga, querem apresentar-se; é dividir os votos„

— Seguramente; mas teimam?

— Creio que não teimarão quando eu lhes mandar d'aqui a resposta dos chefes superiores; porque foi uma das cousas que alguns sujeitos me lançaram á cara, é que eu não tinha poderes; confessei que, para aquelle caso imprevisto, não; mas que possuia a confiança dos superiores, os quaes me approvariam. Creia que está feito. Então que pensa? Pensa que trabalho aqui sacrificando tempo e dinheiro, e algum talento, para não valer a um amigo, que tantas provas tem dado de fidelidade aos princípios? Oh! isso não. Hão de ouvir-me, e adoptar o que lhes proponho.

Rubião, commovido, fez ainda outras perguntas ácerca da luta e da victoria, se eram precisas algumas despezas já, ou carta de recommendação e pedido, e como é que se havia de ter noticias frequentes do enfermo, etc. Camacho respondia a tudo; mas recommendava-lhe cautella. Em politica, disse elle, uma cousa de nada desvia o curso da campanha e dá a victoria ao adversario. Comtudo, ainda que não sahisse vencedor, tinha Rubião a vantagem de ficar com o seu nome suffragado; e o precedente valia por um serviço, se elle já contasse outros de valia, e de valia rara

— Firmeza e paciencia, concluiu.

E logo em seguida:

— Eu proprio que sou, se não um exemplo de paciencia e firmeza. A minha provincia está entregue a um grupo de bandidos; não ha outro nome para a gente dos Pinheiros; e alem disso (digo-lhe isto com dor e em particular) tenho amigos que me intrigam, uns ganhadores, que querem ver se o partido me repelle e se me tomam o logar... Não fallemos disso! Ah! meu caro Rubião, isto de politica pode ser comparado á paixão de Nosso Senhor Jesus Christo; não falta nada, nem o discipulo que nega, nem o discipulo que vende. Coroa de espinhos, bofetadas, madeiro, e afinal morre-se na cruz das ideias, pregado pelos cravos da inveja, da calumnia e da ingratidão..

Esta phrase, cahida no calor da conversa, pareceu-lhe digna de um artigo; reteve-a de memoria; antes de dormir, escreveu-a em uma tira de papel. Mas, na occasião da conversa, em quanto a repetia consigo para fixal-a, Rubião dizia que se animasse, que elle era homem para grandes campanhas. E não fugisse de caretas.

— De caretas? Seguramente que não. Nem de papões verdadeiros, se os ha. Cá os espero! Que se acautellem no dia em que subirmos! Hão de pagar tudo. Ouça-me este conselho; em politica, não se perdoa nem se esquece nada. Quem fez uma paga; creia que a vingança é um prazer, continuou sorrindo: ha muita delicia... Emfim, contados os males e os bens da politica, os bens ainda são superiores. Ha ingratos, mas os ingratos demittem-se, prendem-se, perseguem-se...

Rubião ouvia subjugado. Camacho impunha: faiscavam-lhe os olhos. Os anathemas brotavam-lhe como da boca de Isaias; as palmas do triumpho verdejavam-lhe nas mãos. Cada gesto parecia um principio. Quando fallava com os braços abertos, ferindo o ar, era como se desdobrasse um programma inteiro. Ia-se embriagando de esperanças, e tinha o vinho alegre. De uma vez, parou deante de Rubião, estendeu lhe as mãos nos hombros:

— Vamos lá, deputado; ensaie um discurso pedindo o encerramento da discussão: Sr. Presidente... Vamos, diga commigo: Sr. Presidente, peço a V. Ex...

Rubião interrompeu-o erguendo-se; teve uma especie de verttigemn. Sahiu de lá allucinado. Via-se na camara, entrando para prestar juramento, todos os deputados de pé; e teve um calefrio. O passo era difficil. Contudo, atravessou a sala, subiu á mesa do presidencia, prestou o juramento de estylo... Talvez a voz lhe fraqueasse na occassião...

CXV

— Que bom e grande amigo! que homem superior! disse Rubião em voz baixa, andando.

— Que homem superior! repetiu uma voz.

Olhou, não viu ninguem. Has de ter ouvido vozes dessas, leitor discreto, sem que te assustes mais que com um phenomeno commum; mas tu não és Rubião nem Pascal. Este via ao pé de si um abysmo. A voz sem boca, ouvida por aquelle, articulára as palavras de um modo claro e sonoro. Já um dia (está no capitulo LXXXII deste livro) ouviu Rubião uma pergunta no ar, e attribuira-a á alma do Quincas Borba, que estaria mettida no cão herdado. Agora não havia cão; traria elle a alma do outro em si mesmo? Seria elle dous? Eis ahi um mysterio psychologico, physiologico se não puramente pathologico.

CXVI

É opinião de Schiller que a fome e o amor governam este mundo. Incluamos na fome a ambição, que não é outra cousa mais que a gula moral, social e politica, e fica explicado o nosso Rubião.

Aberta a aza da ambição, agitou-se nelle a do amor. Na noite seguinte foi á praia do Flamengo, aonde não ia desde alguns dias; protestos, juramentos, indignações, suspeitas crueis e recentes, nada valeu para lhe empecer a resolução Quiz levar a carta, para dal-a a Sophia, conforme determinára; tirou a, mirou-a, virou-a; sentiu outra vez a comichão de abril-a; resolveu guardal-a; deixou-a ficar no canapé, por distracção.

— Deputado? perguntou Sophia com alvoroço, depois que elle, estando a sós, com ella, lhe contara os planos politicos do Camacho.

E estendeu-lhe a mão, que elle recebeu na sua, não ousando dar-lhe mais que a leve pressão do costume. Occasião unica! Estavam a sós, como digo. Palha não viera jantar, por motivo de uns impressos para a commissão de socorros ás victimas das Alagoas. Maria Benedicta fora ao quarto buscar um retrato da mãe, que prometera a Rubião; mas, ao pegar nelle, beijou o ainda com lagrimas, e, para não descer assim, encostou-se á janella, olhando para o mar, apenas clareado por um retalho de lua fosca, e coberto por véo espesso.

Depois de soltar a mão de Sophia é que Rubião se lembrou de a reter; era tarde; a dona repetiu sorrindo:

— Deputado!

— Pelo amor de Deus, não repita isto a ninguém; é segredo, por ora; em politica, uma cousa de nada desvia o curso da campanha (era a phrase do Camacho, na vespera); não diga a ninguem... a ninguem..

Os olhos delle faiscaram de audacia.

— A ninguem, concluiu baixinho, nem mesmo a seu marido. Faz-me este favor?

— Nem a elle, affirmou Sophia.

Rubião, após alguns segundos:

— Entendi que a senhora devia ser a unica pessôa confidente deste negocio particular. Peço-lhe perdão do atrevimento; mas, é verdade, e eu só digo a verdade. Creia que a respeito muito; mas a senhora sabe tudo, não ignora nada. Heide respeital-a sempre... Sabe que, desde aquelle dia da estrada de ferro, quando viemos juntos, com seu marido no meio...

— Cale-se, vem gente.

Não vinha ninguem. Sophia levantou-se, abriu o piano e rufou sobre as teclas. Logo depois, rodando rapidamente no banquinho, voltou-se para elle, que ficára no meio da sala, em pé.

O senhor não calcula o mal que me fez com isso, disse ella. Tenho-lhe muita amizade; não ha ninguem, mulher nem homem, a quem eu estime tanto; por isso mesmo, ouvindo-lhe cousas dessas, creia que fico triste, triste como não póde imaginar.

Rubião ia a fallar.

— Sabe porque é que o desculpo? interrompeu ella. É porque o senhor é bom e generoso; apesar de tudo o que haverá sentido.

— Diga: soffrido

— Soffrido, vá.

— Oh! mas soffrido como não calcula. Rio-me, disfarço, mas só eu sei o que tenho cá dentro do coração. Nunca me esqueceu a noite de Santa Thereza... Quer que lhe diga uma cousa? Juro por esta luz, juro por seus olhos: já fiz quarenta annos, e nunca, nunca tive uma paixão neste mundo, nem grande nem pequena; a primeira é a senhora. Minha vida de outro tempo não dava logar a amores... É verdade, foi a primeira...

Sophia pedia-lhe com o gesto que se calasse, e olhava de quando em quando para a porta; mas Rubião, embriagado da propria audacia, dizia tudo o que até agora retivera. Provavelmente, não haveria medo de ninguem, nem de Maria Benedicta, nem de algum escravo, nem do proprio marido. Não pleiteava esperanças; abria e despejava a alma. As vozes sahiam-lhe impetuosas; Sophia, desatinada, levantou a mão e tapou-lhe a boca.

CXVII

Ao contacto daquella epiderme querida, Rubião perdeu a voz. Sophia retirou a mão, e dispoz-se a deixar a sala; mas, chegando á porta, parou. Rubião caminhára até á janella, para desabafar, para convalecer, tonto do que dissera, ouvira e sentira. Respirou largo, e apertou a cabeça entre as mãos.

CXVIII

Então Sophia, depois de estar alguns segundos á escuta, tornou á sala, e foi sentar-se com grande rumor de saias, n'um divan de setim azul, compra de poucos dias. Rubião voltou-se, e deu com ella, abanando reprehensivamente a cabeça. Antes que elle falasse, Sophia poz o dedo na boca, pedindo-lhe silencio; depois chamou-o com a mão; Rubião obedeceu.

— Sente-se naquella poltrona, disse ella; e continuou, depois de o ver sentado: Tenho razão para zangar-me com o senhor; mas já lhe disse, o senhor é bom, e estou que sincero; arrependa-se do que me disse, e tudo lhe será perdoado.

Acabando de fallar, Sophia bateu com o leque no lado direito do vestido para o abaixar e compôr; depois levantou os braços para sacudir as pulseiras de prata, cheias de perendengues sacros e profanos; finalmente, pousou os braços sobre os joelhos, e, abrindo e fechando as varetas do leque, esperou a resposta.

Ao contrário do que esperava, Rubião abanou a cabeça negativamente.

— Não tenho de que me arrependa, disse elle; e prefiro que me não perdoe. A senhora ficará cá dentro, quer queiramos, quer não; podia mentir, mas que é que rende a mentira? Mineiro é assim; peccando mesmo, é sincero. A senhora é que não tem sido sincera commigo, porque me tem enganado...

Sophia retesou o busto.

— ...Não se zangue; não desejo offendel-a; mas, deixe-me dizer que a senhora é que me tem enganado, e muito, e sem compaixão.

(Continúa.)

CXVII

(Continuação)

Sophia ergueu-se. elle tambem; ella deu um passo para a porta, Rubião poz-se-lhe diante. Estava nervoso, tinha os olhos desvairados, a voz continuava a brotar-lhe, apenas abafada pelo instincto da conveniencia, mas em si mesma rude e franca. Repetiu que Sophia o enganara, não lhe cortando as esperanças, dando-lhes vida, quando era certo que não lhe tinha amor...

— Certo é, interrompeu Sophia com dignidade, para resgatar as condescendencias anteriores; certo é, mas podia ser de outro modo? Não sabe quem sou?

Rubião susteve a ponto uma risada ironica, depois, flamejando-lhe os olhos, respondeu em voz sumida:

— Sei... Carlos Maria...

Pasmada e pallida, Sophia recuou um passo, e durante alguns segundos, não poude descerrar os beiços: afinal, venceu-se e fallou. Não o achando capaz de semelhante calumnia, perguntou quem é que lh'a tinha mettido na cabeça? Havia de dizel-o alli mesmo, já é já, ou ella contaria tudo ao marido. Rubião não attendeu á ameaça, que aliás devia destruir a suspeita; respondeu que ninguem lhe referira nada; não precisava das vistas alheias para conhecer o que era claro a todos; depois, possuia uma carta d'ella áquelle homem.

— Carta minha?

— Carta sua.

Maria Benedicta entrou na sala; descera as escadas sem estrepito, como era seu costume; e os dous estavam tão fóra d'alli que só deram pela moça, quando ella disse ao Rubião:

— Aqui está o retrato de mamãe.

Rubião recebeu o retrato, sem agradecer; olhou para elle, e metteu-o no bolso. Maria Benedicta notou a indifferença, mas tinha pensado em tanta cousa, que não se lhe deu de pequenos nadas. Foi d'alli á janella, depois entrou e abriu um album de paysagens, mirou algumas, deixou-as; erguendo os olhos, perguntou ao Rubião se não ia á commissão das Alagoas. Sophia sahiu por poucos minutos.

Quando esta voltou á sala, trazia as feições tranquillas. A conversa dos dous cochilava, porque Rubião, pouco depois da sahida de Sophia, ficara inquieto, não sabendo se ella tornaria ou não, se elle iria embora sem lhe fallar, se perguntara por ella, etc. Respondia pouco ás perguntas de Maria Benedicta, que, de sua parte, não lhe achava grande interesse. O unico assumpto em que elle pegou mais longamente foi a origem do nome do cão. Rubião explicou que era o mesmo do antigo dono, um Quincas Borba, grande philosopho, e amigo seu. Desse homem herdou o que possuia, com a condição de lhe tratar do pobre animal. Era a primeira vez que confessava esta clausula; verdade é que accrescentou:

— Não era preciso escrevel-a; eu a cumpriria por mim mesmo, porque considero o meu pobre cachorro acima de todas as creaturas humanas... A senhora desculpe este modo de fallar, pode ser que não seja assim, mas é o que eu sinto. Não imagina; digo-lhe que parece gente no entendimento, tem cousas que espantam... E depois não é capaz de esganar ninguem, oh! não! nunca! Hei de trazel-o um dia aqui; verá que perola Para mim vale tanto como a pessoa que o possuia, o outro Quincas Borba...

— Logo, interrompeu sorrindo a moça, não é tão superior o cachorro que não possa comparar-se a alguma creatura humana.

— Quincas Borba... Quincas Borba...

A conversa amolleceu outra vez; foi então que Sophia entrou na sala. A prima repetiu-lhe a opinião pouco antes ouvida ácerca do cão; Sophia apenas sorriu. Rubião tinha os olhos nella, interrogativos, mas de tanta cousa diversa, que era bem difficil saber se a affeição dominante era amor, se era odio, puro ciume, arrependimento, ou qualquer outra menos esperada. Sophia, para romper o silencio deante de Maria Benedicta, e lembrando-se da pergunta que lhe ouvira ao sair da sala, perguntou ao Rubião se não ia á commissão das Alagoas.

— Pode ser; seu marido já me fallou duas vezes. É sabbado, não é?

— Sabbado. Conhece a casa?

— Conheço.

Rubião começava a desconfiar de Maria Benedicta, posto que ella nada tivesse ouvido nem imaginado da conversação anterior; mas a teima da moça em ficar alli só a explicava elle pelo interesse de os espreitar, de impedir que fallassem; talvez fosse mandada pelo proprio marido de Sophia. Entretanto, nunca mais candidos olhos tinham pousado nelle. Maria Benedicta attribuia a graduação que elle dava ao cachorro a algum velho amargor da vida, e achava na confissão da clausula da herança tal prova de singelleza, tal ausencia de vergonha convencional, que lhe lembrava o seu proprio espirito da roça.

— Este homem, dizia ella comsigo, deve ser bom por força.

— Esta creaturinha, pensava de sua parte Rubião, foi naturalmente paga pelo diabo para não sair daqui.

CXVIII

— Toca alguma cousa, Maria Benedicta, disse finalmente Sophia.

E emquanto a prima foi dalli ao piano e começou as primeiras notas de um concerto qualquer, Sophia approximou-se de Rubião; sentaram se perto um do outro, fallaram de musica, de operas, de polkas, mas á toa. No meio de duas escalas mais fortes, disse ella a Rubião:

— Essa carta é falsa, quero vel-a.

— Posso mandal-a.

— Não; traga em mão; mostra-lhe-ei que é falsa.

Adeante, em occasião opportuna, disse ainda a mulher do Palha: — Venha amanhã mesmo, entre uma e tres horas; Maria Benedicta sae e janta fóra; a mãe de uma amiga della virá buscal-a.

CXIX

No dia seguinte, pouco mais de uma hora, estava Rubião á porta da casa. Não levava só a carta; tinha comsigo um revólver de quatro tiros.

— Pode ser que ella, uma vez de posse da carta, a guarde comsigo, e eu fico sem saber nada. Neste caso ameaço-a; se tentar correr, mato-a.

Para evitar esse extremo, bastava-lhe abrir a carta, e, ainda uma vez, tentou fazel-o, pouco antes de sair de Botafogo; mas rejeitou a ideia, repugnava-lhe, achava-se pusillanime; afinal, considerou que o revólver dispensava a violação.

Sophia estava anciosa que elle chegasse; nem por isso foi abrir a porta da saleta de entrada, quando ouviu o tympano; o criado é que veiu dizer lhe que estava alli o socio de seu amo.

— Você disse-lhe que seu amo não está cá?

— Disse, sim, senhora; mas elle respondeu que o que tem que entregar póde entregar a minha ama.

— Pois que entre.

Depois que ficaram a sós, nenhum delles soube por onde começasse. Venceu a curiosidade; Sophia pediu-lhe o papel, a famosa carta; que diria ella?

— Não sei o que diz, porque não a abri, explicou Rubião; tenho-a commigo desde muitos dias, mas não lhe toque.

— Como sabe que é minha?

— A lettra do sobrescripto é sua.

Rubião tirou a carta do bolso da sobrecasaca; antes de a entregar, verificou se trazia o revólver; a mão tremia-lhe.

(Continúa.)

CXIX

(Continuação)

— Aqui está.

Sophia pegou curiosa no papel; em verdade, a lettra do sobrescripto era sua. — A lettra do sobrescripto é minha, disse ella sorrindo, mas posso jurar-lhe que não sei o que está aqui dentro. Conte-me como é que achou esta carta.

— Para que? Melhor é abril-a, retorquiu Rubião: mas, insistindo a dama, relatou as circumstancias e a occasião do achado. Nem assim ella podia adivinhar o que escrevera.

— Melhor é abril-a.

— Pois então o senhor mesmo a abrirá, retorquiu ella dando-lhe a carta. Se houver alguma cousa ruim, é obra de falsario; abra e leia.

Rubião deixou-se estar quieto, sem poder vencer o acanho que lhe trazia a moça com aquelles seus modos tão seguros. tão frios. tão destemidos. Quiz ser cavalheiro, entregar-lhe a carta, pedir-lhe desculpa, pegar em si e sair. Era o modo unico de resgatar a suspetia. Mas esta ideia passou rapida, como palhinha que o vento leva; só ficou o vento roncando no cerebro. A hesitação de Sophia, ao parecer delle, podia ser um laço para chegar áquilo mesmo; toda ella era um composto de perfidias. Pois abriria a carta; e rasgou a sobrecarta. Sophia deu então um pequeno grito.

— Espere, disse ella. Agora me lembro; já sei o que é; leia, e verá Hade ser o negocio da commissão das Alagoas. O ladrão do creado é que levou a circular. Já não está cá em casa; era um tonto, um pachola sem prestimo. Vá, leia a circular.

De facto, era a circular impressa, com as assignaturas manuscriptas da baroneza, de Sophia, e de mais tres senhoras. Rubião não pode arrancar os olhos do papel durante alguns minutos. A vergonha superava a alegria; o gosto perdia-se na confusão. Quando afinal levantou os olhos, deu com os de Sophia que saboreavam a confusão e a vergonha, não risonhos, mas gloriosos. Rubião, não podendo achar palavra, estendeu a mão, como pedindo que lhe perdoasse.

— O senhor julgou-me muito mal, disse ella. Se eu contasse a meu marido, elle o poria fóra desta casa, e com razão. Calarei tudo; quero ser generosa. E depois, sempre ganhei alguma cousa em todo este negocio; reconheci que a sua estima é nenhuma. Creio que basta; adeus.

Sophia levantou-se; elle agarrou-lhe as mãos ajoelhou-se, fallando, exclamando. Sophia deixou-se resvalar ao sophá. A mandado della, Rubião levantou-se; mas não obedeceu á ordem de ir embora. Não, respondia elle; dir-lhe-hia ainda uma vez as cousas que o matavam; não lhe pedia perdão, nem desculpa, nem nada; tinha razão de dizer o que disse, pensar o que pensou, porque a adorava sobre todas as cousas do mundo; foi por causa della que entrou de socio com o marido; por ella, seria até caixeiro da casa, creado, varredor, carregador de fardos... Tudo isso era expresso com tal calor e tão desvairadamente, que ella, apezar do perigo de serem ouvidos, não o fazia calar. Não tardaram lagrimas; a principio eram só os olhos rasos dellas, mas a accumulação fel-as cair, quatro e quatro, sem soluços.

— Não seja creança!

E em quanto elle, dando-lhe as costas, enxugava os olhos o rosto:

— Este homem adora-me, pensava Sophia.

Dizer que esta ideia a aborreceu seria desdizer da verdade do livro e desmentir outra página em que já se affirmou o contrario. Não, não a aborreceu; Sophia gostou até de o ver padecer, tresloucado, a ponto de lhe perder o respeito. Ha desses aggravos que consolam. Rubião, entretanto, não sei se vexado da fraqueza, compoz o rosto e dispoz-se a sair; foi então que ella se lembrou do motivo principal daquelle prazo dado, em tal lugar e       a taes horas; era saber se as suspeitas de Rubião eram indignas da alma delle, ou incutidas por outrem. Rubião já lhe havia negado a segunha hypothese, na vespera, mas em condições que ella não podia fascinal-o bem. Agora, fez-se pomba e serpente, e pediu-lhe a verdade; não exigia nomes, queria só saber se era boato; podia ser um boato.

— Ninguem se livra de um boato falso, disse ella; o senhor mesmo, em boa fé, seria capaz de jurar que a carta continha outra cousa, se a tivesse perdido; e assim se faz a reputação de uma senhora. Vamos, diga com franqueza, ouviu isso a alguem?

— A ninguem.

— Pura impressão sua; mas, porque não desconfiou de si? Os seus sentimentos deviam naturalmente enganal-o. Jura que me não está mentindo? Não se afflija com a palavra: a paixão póde mentir sem desdouro. Jura que é verdade não ter ouvido a alguem?

— Juro; mas que interesse...

— Que interesse tenho em teimar por isto? completou Sophia. O mais natural de todos: saber se sou calumniada por ahi, ou se é só a sua ruim cabeça que me quer mal, concluiu ella estendendo-lhe a mão. Adeus. Esquecemos o tempo; até sabbado.

Ouviu-se parar um carro á porta: Sophia foi á janella. Rubião teve uma sensação de raiva: era talvez, elle, Carlos Maria. Era a baroneza. Vinha pela primeira vez á casa de Sophia. Esta correu a fazer-lhe os seus recebimentos, tão grata, commovida, tão olvidada das outras cousas, que encantou a boa senhora, e mais lhe entrou no coração.

— Este senhor, disse Sophia, depois de apresentar o Rubião, é sócio de meu marido, e vae ser um dos melhores auxiliares na nossa obra de caridade. Até sabbado, concluiu voltando-se para elle.

(Continúa.)

CXX

A baroneza saiu pouco depois O sabor da visita ficou por algum tempo na dona da casa, menos do que cumpria. Foi morrendo o echo das palavras doces e graves, que ella lhe ouvira, das saias, da carruagem, dos cavallos..

Uma revoada de memorias entrou na alma de Sophia. A imagem de Carlos Maria veiu postar-se ante ella, com os seus grandes olhos de espectro querido e aborrecido. Sophia quiz arredal-o, mas não pôde. Entrou a agitar-se, elle acompanhava-a de um lado para outro, sem perder o tom esbelto e masculo, nem o ar de riso sublime. Ás vezes, via-o inclinar se, articulando as mesmas palavras de certa noite de baile, que lhe custaram a ella horas de insomnia, dias de esperança, até que se perderam na irrealidade. Nunca Sophia compreendera o mallogro daquella aventura. O homem parecia querer-lhe deveras, e ninguem o obrigava a declaral-o tão atrevidamente, nem a passar-lhe pelas janellas, alta noite, segundo lhe ouviu. Recordou ainda outros encontros, palavras furtadas, olhos calidos e compridos, e não chegava a entender que toda essa paixão acabasse em nada. Provavelmente, não haveria nenhuma; puro galanteio; — quando muito, um modo de apurar as suas forças attractivas... Natureza de pelintra, de cynico, de futil.

Que lhe importava o mysterio? Era um sujeito futil. Cresceu-lhe o nojo e o desdem. Chegou a rir-se delle: podia encaral-o sem remorsos. E foi andando por alli fóra, vingando-se do bobo, — chamava-lhe bobo,  e   fitando no ar os olhos de immaculada. Em verdade, era occupar-se de mais com tal assumpto: entrou a maldizer do Rubião, que evocára semelhante homem do esquecimento, por causa daquella triste circular; ahi estava outro que lhe queria tambem.

Eram dous a querel-a; dous, porque Carlos Maria não fez mais que deixal-a em caminho, se é que a deixára deveras. Riram-lhe muito os olhos, achou-se bem consigo, cuidou de suas glorias, antigas ou recentes, dos murmurios que ia deixando, quando sahia á rua, ou entrava em alguma sala de baile. Sentia-se muito bem feita; era a opinião do marido, eram as vozes anonymas. Carlos Maria devia pensar a mesma cousa; Sophia lembrava-se das admirações em que o apanhou muita vez, por mais que elle as dissimulasse logo em carinho proprio de um deus para uma deusa inferior. Esta comparação pagã não é de Sophia, que ignorava, mas é um modo de definir o melhor possivel a attitude de um e a impressão da outra; impressão que a deprimia agora, que a humilhava... Talvez o tivesse a seus pés, se não se houvesse mostrado tão agradecida, tão rasteira...

De repente, a criada, que estava na outra sala, ouvindo rumor de alguma cousa que se quebrava, correu á de visitas, e viu a ama, sozinha de pé.

— Não e nada, disse-lhe esta

— Pareceu que ouvi...

— Foi aquelle boneco que cahiu; apanhe os cacos.

— O chinez! exclamou a creada.

De feito, era um mandarim de porcelana, pobre diabo que estava muito quieto, em cima de uma estante. Sophia achou-se com ella entre os dedos, sem saber como, nem desde quando; ao cuidar na sua voluntaria humilhação, teve um impulso singular, — parece que raiva de si mesma,  — e deu com o boneco em terra. Pobre mandarim! não lhe valeu ser de parcellana; não lhe valeu siquer ser dado pelo Palha. Dois annos antes iam, marido e mulher pela rua do Ouvidor pararam ante o mostrador de uma loja, onde o mandarim pousava entreve dois bonzos. Sophia riu muito do mandarim; Palha comprou lhe logo os tres, sendo que os outros eram de bronze puro. Não lhe valeu esta particularidade.

— Mas, minha ama, como é que o chinez...

— Vá-se embora!

A humilhação fez desapparecer o chim com os cacos, e atou a nossa dama a uma cadeira. Sophia recordou todas as suas attitudes diante de Carlos Maria, as acquiescencias faceis, os perdões antecipados, os olhos com que o buscava, os apertos de mão tão fortes... Era isso; tinha-se-lhe lançado aos pés. Depois, o sentimento foi mudando. Apezar de tudo, era natural que elle gostasse d'ella, e a conformidade moral de ambos não traria o abandono de um. Podia ser que a culpa fosse della. De instincto, sabia que, assim como uma boa palavra paga cem phrases ruins, uma só ruim corrompe cem orações deliciosas. Escavou algumas razões possiveis, — um gesto duro e frio, alguma falta de attenção, — e uma vez que, por medo de o receber sosinha, mandou dizer que não estava em casa. O acto foi de ciume; corriam então alguns mexiricos.

Sim, podia a culpa ser d'ella. Carlos Maria era orgulhoso; a menor desfeita pungia-o. Era d'ella a culpa, assim concluia, depois de muito apurar as reminiscencias. Foi vestir-se e pentear-se, o marido veiu achal-a absorvida, com o desastre do mandarim; não podia explicar como se dera o caso.

— A porcellana era forte, observou o Palha, principiando a sopa.

— Justamente, mas eu estava tão alegre, pancada, como você diz, — que comecei a brincar com elle, a atiral-o ao ar, até que de uma das vezes, caiu nas costas de uma cadeira e d'ahi ao chão, em cacos.

— Vamos a cousas sérias, interrompeu elle; está tudo prompto para a primeira sessão.

CXXI

A primeira sessão foi no sabbado. Seguiram-se outras, a miudo, com bastante animação. Sophia não entrou desde logo na intimidade das demais senhoras; recebia dellas tão somente o aperto de mão necessario. Mas era habil, vestia-se a primor, e a baroneza fallava tão bem della, que não tardaram os beijos e a familiaridade. As sessões eram longas, porque acabavam sempre em pura conversação, extranha ao objecto. A sala da baroneza tinha o luxo velho e fixado; e as commissarias achavam-se juntas, e aproveitavam o tempo tratando de cousas diversas. Socios poucos. Rubião ia a todas as sessões, Palha tambem. Este tinha o trabalho externo, annuncios, impressões de circulares, deposito nos bancos, noticias para as folhas publicas; escrevia as actas. Em sessão excedia a linha, agitava-se de mais, bracejava, e, quando ficava quêdo, ninguem lhe tirava da boca um sorriso de enlevo, nem dos olhos um ar de vigilancia.

— Você estraga a pintura, dizia-lhe a mulher, ás vezes, em casa; não socega nunca, parece até um criado.

Maria Benedicta não pertencia á commissão, por mais que a prima a quizesse lá metter. D. Tonica, — ou o pae por ella, — tentou entrar. O major foi ter com o Rubião, disse-lhe que a filha precisava apparecer, sair daquella vida de bicho do matto e pediu-lhe que in tercedesse com Sophia ou com o Palha.

Sophia não acceitou a proposta; para encobrir a si mesma o motivo secreto da recusa, declarou que, ainda se fosse só ella, podia entrar, mas o pae era insupportavel, um grulha eterno, um mettidiço...

Rubião lembrou-se do lance de Santa Thereza, e concordou; chegou a crer que Sophia tinha em mente aquella noite em que o major os interrompera no jardim; fitou-a interrogativamente. Palha, entretanto, propoz que se admitti-se só D. Tonica.

— Sem o pae? perguntou a mulher admirada.

— Sim, o pae não é preciso, atrapalha tudo.

— Sem o pae, é feio; deixemos este assumpto. Peço-lhe, concluio ella voltando-se para o Rubião, que não lhe diga nada, ou então que o numero das senhoras está completo.

— E se forem admittidas ou outras? ponderou o marido.

— Que tem isso? Diga-lhe o que acabo de dizer, Sr. Rubião, o numero está completo.

CXXII

Rubião prometteu e cumpriu. Encontrando o, major no largo do Paço, foi com elle até o Carceller, e pediu café. Ao primeiro gollo repetiu o recado. O major enfiou; depois com amargura:

— Historias, meu caro! D. Sophia, admittida na alta roda, não quer dividir essa gloria com outras pessoas, principalmente pessoas que a podem envergonhar. Conheço isto. Envergonhar é um modo de dizer; nós não envergonhamos ninguem; mas, não andamos de carro... Não vê que está na alta roda? Não divide a gloria. Conheço, conheço isto. Não quer ser envergonhada... Pois faço-lhe a vontade. Quer ficar só, fique! Ora, a mulher do Palha!

Rubião ia defendel-a.

— Perdão, não diga nada; dispenso tudo. Da sua parte é natural; o senhor não é socio do marido?

— Sou.

— Bem, confessa...

— Naturalmente.

— Naturalmente? Faz muito bem; afinal é o melhor, entre amigos. E o padre Mendes como vae? Sabe que nunca acreditei na existencia do padre?

Ora, a mulher do Palha! Emfim, cousas do mundo! Faz muito bem; o melhor é confessar a verdade. Envergonhamol-a! Já chegou a este ponto de se pejar em ver-nos ao pé de si. Em casa, póde ser; não ha dous mezes que lá jantamos; mas entre as grandes senhoras... É assim mesmo, conheço isso; os hospedes novos dão pontapés nos que podem entrar em competencia com elles... Pois fique-se lá; não a importunarei. Em casa delle, é que não ponho mais os pés; no dia em que lá me vir, escarre-me na cara... Ora, a Sophia! — Phosphoros!

(Continúa.)

CAPITULO CVI

... ou, mais propriamente, capitulo em que o leitor, desorientado, não pode combinar as tristezas de Sophia com a anecdota do cocheiro. E pergunta confuso: — Então a entrevista da rua da Harmonia, Sophia, Carlos Maria, esse chocalho de rimas sonoras e delinquentes é tudo calumnia? Calumnia do leitor e do Rubião, não do pobre cocheiro, que não proferiu nomes, não chegou sequer a contar uma anecdota verdadeira... E o          que terias visto, se lesses com pausa. Sim, desgraçado, adverte bem que era inverosimil que um homem, indo a uma aventura daquellas, fizesse parar o tilbury deante da casa pactuada. Seria pôr uma testemunha ao crime. Ha entre o ceu e a terra muitas mais ruas do que sonha a tua philosophia, — ruas transversaes, onde o tilbury podia ficar esperando.

— Bem; o cocheiro não soube compôr. Mas que interesse tinha em inventar a anecdota?

Conduzira Rubião a uma casa, onde o nosso amigo ficou quasi duas horas, sem o despedir; viu o sair, entrar no tilbury, descer logo e vir a pé, ordenando-lhe que o acompanhasse. Concluiu que era optimo freguez; mas, ainda assim não se lembrou de inventar nada. Passou, porém, uma senhora com um menino, — a da rua da Saude, — e Rubião quedou-se a olhar para ella com vistas de amor e melancolia. Aqui é que o cocheiro o teve por lascivo, além de prodigo, e encommendou-lhe as suas prendas. Se fallou em rua da Harmonia disse que foi por suggestão do bairro d'onde vinham; e, se disse que trouxera um moço da rua dos Invalidos, é que naturalmente transportára de lá algum, na vespera, — talvez o proprio Carlos Maria, — ou porque lá morasse, — ou porque lá tivesse a cocheira, — qualquer outra circumstancia que lhe ajudou a invenção, como as reminiscencias do dia servem de materia aos sonhos da noite. Nem todos os cocheiros são imaginativos. Já é muito saber concertar farrapos da realidade.

Resta só a coincidencia de morar na rua da Harmonia uma das costureiras do luto. Aqui, sim, parece um proposito do acaso. Mas a culpa é da costureira; não lhe faltaria casa mais para o centro da cidade, se quizesse deixar a agulha e o marido. Ao contrario disso, ama-os sobre todas as casas deste mundo. Não era razão, para que eu cortasse o episodio, ou interrompesse o livro.

CAPITULO CVII

Das reflexões de Sophia é que não ha que explicar. Todas tinham o pé na verdade. Era certo e certissimo que Carlos Maria não correspondera as primeiras esperanças, — nem ás segundas e terceiras, — porque as houve em quadras diversas, ainda que menos verdes e bastas. Quanto a causa disso, vimos que Sophia, á mingua de uma, attribuiu-lhe successivamente tres. Não chegou a pensar em alguns amores que elle porventura trouxesse e lhe tornassem insipidos quaesquer outros. Seria uma quarta causa, e talvez a verdadeira.

CAPITULO CVIII

Durante alguns mezes. Rubião deixou de ir ao Flamengo. Não foi resolução facil de cumprir. Custou-lhe muita hesitação, muito arrependimento: mais de uma vez chegou a sair com o proposito de visitar Sophia e pedir-lhe perdão. De que? Não sabia: mas queria ser perdoado. Em todas as tentativas desse genero, a ideia de Carlos Maria fazia-o recuar. De certo ponto em diante, foi o proprio lapso de tempo que o tolheu; era exquisito apparecer lá um dia, como um triste filho prodigo, unicamente para supplicar o calor dos bellos olhos da dona da casa. la ao armazem, fallar ao Palha; este, ao fim de algumas semanas, reprochou-lhe a ausencia; e, passados dous mezes, perguntou-lhe se era formal proposito.

— Tenho tido muito que fazer, accudiu Rubião; estas cousas politicas tomam todo o tempo a uma pessoa. Vou lá domingo.

Sophia apparelhou-se para recebel-o. Espiaria a occasião de lhe dizer o que era a carta, jurando por todas as cousas santas, para que elle visse que a verdade não era contra ella. Planos perdidos; Rubião não compareceu. Veiu outro domingo, vieram outros domingos... Não obstante, Sophia remetteu-lhe um dia a subscripção para as Alagoas; elle assignou cinco contos de réis.

— É muito, disse-lhe o socio, no armazem, quando elle lhe foi levar o papel.

— Não dou menos.

— Mas olhe que pode dar muito, sem dar tanto. Parece-lhe então que esta subscripção é feita entre meia duzia de pessoas? Anda nas mãos de muitas senhoras e de alguns homens; está nos mostradores das lojas, na praça do Commercio, etc. Assigne menos.

— Como, se está escripto?

— Deste 5 póde-se fazer muito bem um 3. Tres contos já é uma boa assignatura. Ha maiores, mas são de pessoas obrigadas pelo cargo ou pelos milhões; o Bomfim, por exemplo, assignou dez contos.

Rubião não pode reter um risinho ironico; abanou a cabeça, e não sahiu dos cinco contos. Só emendaria, escrevendo o algarismo 1 atraz, —quinze contos, — mais que o Bomfim.

— Seguramente, que pode dar cinco, dez e quinze contos, tornou o Palha; mas e seu capital precisa cautellas, você está entrando muito por elle... Repare que já lhe rende menos.

Palha era agora o depositario dos titulos de Rubião (acções, apolices, escripturas) que estavam fechados na burra do armazem. Cobrava-lhe os juros, os dividendos e os alugueis de tres casas, que lhe fizera comprar algum tempo antes, a vil preço, e que lhe rendiam muito. Guardava tambem uma porção de moedas de ouro, porque Rubião tinha a mania de as colleccionar, para a contemplação. Conhecia mais que o dono, a somma total dos bens, e assistia aos rombos feitos na caravella, sem temporal, mar leite. Tres contos bastavam, insistiu elle; e provou a sinceridade pelo facto de ser justamente marido da fundadora da commissão. Mas o Rubião não desistiu dos cinco; aproveitou a occasião para pedir-lhe mais dez; precisava de dez contos. Palha coçou a cabeça.

— Você desculpe, disse-lhe ao cabo de alguns instantes, mas para que é que os quer? Não está certo que vae perdel-os, ou arriscal-os, ao menos?

Rubião riu da objecção.

— Se eu estivesse certo de que os perdia, não vinha buscal-os. Póde ser arriscado, mas não é sem arriscar que se ganha. Preciso delles para um negocio, — quero dizer, tres negocios. Dous são emprestimos seguros, e não passam de um conto e quinhentos. Os oito contos e quinhentos são para uma empreza. Por que abana a cabeça, senão sabe de que se trata?

— Por isso mesmo. Se você me consultasse, se me dissesse que empreza e que pessoas eram, eu veria logo se podia arriscar-se; e receio muito que nada preste, a não ser o dinheiro que se perder. Lembra-se das acções daquella Companhia União dos Capitaes Honestos? Disse-lhe logo que este titulo era emphatico, um modo de embair a gente, e dar emprego a homens necessitados. Você não quiz crêr, e caiu. As acções estão por baixo, e já o ultimo semestre não deu dividendos.

— Pois venda justamente essas acções, ainda a resto de barato. Contento-me com o solido. Ou então dê-me da caixa da nossa casa... Passo logo por aqui, se você quizer, — ou mande-me lá a Botafogo. Caucione umas apolices, se lhe parecer melhor...

— Não, não faço nada; não dou os dez contos, atalhou fogosamente o Palha. Basta de ceder a tudo, o meu dever é resistir. Emprestimos seguros? Que emprestimos são esses? Não vê que lhe levam o dinheiro, e não lhe pagam as dividas? Alguns sujeitos vão ao ponto de jantar diariamente com o proprio credor, como um tal Carneiro que lá vi algumas vezes. Dos outros não sei se lhe devem tambem alguma cousa; é possivel que sim. Vejo que é demais. Fallo-lhe por ser amigo; não dirá algum dia que não foi avisado em tempo. De que hade viver, se estragar o que possue? A nossa casa pode cair.

— Não cae, acudiu o Rubião.

— Póde cair; tudo póde cair. Eu vi o banqueiro Souto, em 1864.

Rubião remoia os conselhos do socio, não por serem bons nem provaveis, mas por achar nelles uma intenção maviosa, revestida de forma crúa. Agradeceu-os de coração, mas rejeitou-os; precisava dos dez contos. Podia ter mais tento, dalli em deante, e affirmava-lhe que seria menos facil. De resto, possuia de sobra, tinha dinheiro para dar e vender...

— Para vender só, emendou o Palha. 

E, depois de um instante:

— Bem, agora é tarde, amanhã levo-lhe os dez contos. E porque os não hade ir buscar lá á nossa casa ao Flamengo? Que mal lhe fizemos nós? Ou que lhe fizeram ellas? porque a zanga parece ser com ellas, visto que o vejo aqui, algumas vezes. Que foi, para castigal-as? concluiu rindo.

Rubião desviou os olhos do socio, cuja falla lhe parecia afiada de ironia, — como de pessoa que soubesse tudo, e risse delle. Quando lh'os tornou, viu o mesmo semblante interrogativo, e respondeu:

— Não me fizeram nada; lá irei amanhã à noite.

— Vá jantar.

— Jantar, não posso, tenho uns amigos em casa; vou de noite — E querendo rir: Não as castigue, que não me fizeram nada.

— Alguem o possue, reflictiu Palha logo que elle saiu: alguem, por inveja ás nossas relações. Tambem póde ser que Sophia lhe fizesse alguma para arredal-o de casa...

Rubião assomou outra vez á porta; não tivera tempo de chegar á esquina. Voltava para dizer que, precisando do dinheiro cedo, viria buscal-o ao armazem; de noite iria então visital-os. Precisava do dinheiro até ás duas horas da tarde.

CIX

Nessa noite, Rubião sonhou com Sophia e Maria Benedicta. Viu-as n'um grande terreiro, apenas vestidas de saia, costas inteiramente despidas: o marido de Sonhia, armado de um azorrague de cinco pontas de couro, rematando em bicos de ferro, castigava-as despiedadamente. Ellas gritavam, pediam misericordia, torciam-se, alagadas em sangue, as carnes cahiam-lhes aos bocados. Agora, porque razão Sophia era a imperatriz Eugenia, e Maria Benedicta uma aia sua, é o que não sei dizer com exactidão. "São sonhos, sonhos, Penseroso!" exclamava um personagem do nosso Alvares de Azevedo. Mas eu prefiro a reflexão do velho Polonius, acabando de ouvir uma falla tresloucada de Hamlet: "Desvario embora, lá tem seu methodo". Tambem ha methodo aqui, nessa mistura de Sophia e Eugenia; e ainda ha methodo no que se lhe seguia, e que parece mais extravagante.

Sim, Rubião, indignado, mandou logo cessar o castigo, enforcar o Palha e recolher as victimas. Uma delas, Sophia acceitou um lugar na carruagem aberta que esperava pelo Rubião, e lá foram a galope, ella garrida e sã, elle glorioso e dominador. Os cavallos, que eram dous á sahida, eram dahi a pouco, oito, quatro bellas parelhas. Ruas e janelas cheias de gente, flores cahindo em cima delles, acclamações... Rubião sentiu que era o imperador Luiz Napoleão; o cachorro ia no carro aos pés de Sophia...

Tudo acabou sem fim, nem fracasso. Rubião abriu os olhos; talvez alguma pulga o mordeu; qualquer cousa: "Sonhos, sonhos, Penseroso!" Ainda agora prefiro o dito de Polonius: "Desvario embora, lá tem seu methodo!"

(Continúa.)

CX

Rubião fez os dous emprestimos e o negocio. O negocio era uma Empreza Melhoradora dos Embarques e Desembarques no porto do Rio de Janeiro. Um dos emprestimos tinha por fim pagar certa conta atrazada de papel da Atalaia, divida urgente. A folha estava ameaçada de parar.

Perfeitamente, disse Camacho, quando Rubião lhe foi levar o dinheiro á casa. Muito obrigado. Veja você como, por uma miseria desta ordem, podia emmudecer o nosso orgão. São os espinhos naturaes da carreira. O povo não está educado; não reconhece, não apoia os que trabalham por elle, os que descem á arena todos os dias em defesa das liberdades constitucionaes. Imagine, que, de momento, não dispunhamos deste dinheiro, tudo estava perdido, cada um ia para os seus negocios, e as sãs ideias ficavam sem o seu leal expositor.

— Nunca! protestou Rubião.

— Tem razão; redobraremos de esforços. A Atalaia será como o Antheu da fabula. De cada vez que cair, erguer-se-ha com mais vida.

Dito isto, Camacho mirou o maço de notas Um conto e duzentos, não? perguntou; e metteu-o no bolso do fraque. Continuou a dizer que estavam seguros agora, a folha ia de vento em popa. Tinha algumas reformas materiaes em vista; foi ainda mais longe.

— Precisamos desenvolver o programma, adeantar as ideias, dar um empurrão aos correligionarios, atacal-os, se fôr preciso...

— Como?

— Ora, como? atacando. Atacar é um modo de dizer: corrigir. É evidente que o orgão do partido está  afrouxando. Chamo orgão do partido, porque a nossa folha é orgão das ideias do partido; comprehende a differença?

— Comprehendo.

— Vai afrouxando, continuou Camacho apertando um charuto entre os dedos, antes de o accender; e nós precisamos de accentuar os principios, mas francamente, nobremente, dizendo a verdade. Creia que os chefes precisam ouvil-a a seus proprios amigos e adherentes. Nunca rejeitei a conciliação dos partidos, pugnei por ella, e a ideia fundamental da Atalaia foi a principio um terreno neutro. Mas conciliação não é jogo de empulha. Para lhe dar um exemplo, na minha provincia a gente dos Pinheiros tem o apoio do governo, unicamente para me deslocar; e os meus correligionarios da Côrte, em vez de a combater, visto que o Governo lhe dá força, que pensa que fazem? Dão tambem apoio aos Pinheiros.

— Têm ao menos alguma influencia os Pinheiros?

— Nenhuma, respondeu Camacho fechando violentamente a caixa de phosphoros que ia a abrir. Ha um réo de policia entre elles, e ha outro que até foi aprendiz de barbeiro. Matriculou-se, é verdade, na Faculdade do Recife, creio que em 1855, por morte do padrinho que lhe deixou alguma cousa, mas tal é o escandalo da carreira desse homem que, logo depois de receber o diploma de bacharel, entrou na assembléia provincial. É uma besta; é tão bacharel como eu sou papa.

Entenderam-se sobre as modificações políticas da folha. Camacho lembrou ao Rubião que a candidatura deste naufragára por causa justamente da opposição dos chefes. De alguns, emendou logo. Rubião concordou; assim lh'o tinha dito o amigo em tempo, e a lembrança avivou o resentimento do desastre.

Podia, devia estar na camara. Os taes é que o não quizeram; mas haviam de ver, pensava Rubião; tinham de amargar o mal feito. Deputado, senador, ministro, vel-o-hiam tudo, com olhos tortos e espantados. A cabeça do nosso amigo, tanto que o outro lhe pôz a faisca, foi ardendo de si mesma, não por odio, nem inveja, nas de ambição ingenua, de cordial certeza, visão antecipada e deslumbrante das cousas. Camacho estimou achal-o de accordo.

— O nosso grupo é da mesma opinião, disse elle. Creio que não faz mal uma pequena ameaça aos proprios amigos.

Nessa mesma noite, leu-lhe o artigo em que advertia o partido da conveniencia de não ceder ás perfidias do poder, apoiando em algumas provincias certa gente corrupta e sem valor. Eis aqui a conclusão:

"Os partidos devem ser unidos e disciplinados. Ha quem pretenda (mirabile dictu!) que essa disciplina e união não podem ir ao ponto de rejeitar os beneficios que caem das mãos dos adversarios Risum teneatis! Quem póde proferir tal blasphemia sem que lhe tremam as carnes? Mas supponhamos que assim seja, que o partido da opposição possa, uma ou outra vez, fechar os olhos aos desmandos do governo, á postergação das leis, aos excessos da autoridade, á perversidade e aos sophismas Quid inde? Taes casos, — aliás, raros, — só podiam ser admittidos quando favorecessem os elementos bons, não os máos. Cada partido tem os seus discolos e sycophantas. É interesse dos nossos adversarios ver-nos afrouxar, a troco da animação dada á parte corrupta do partido. Esta é a verdade; negal-o é provocar-nos á guerra intestina, isto é (horresco referens!), á dilaceração da alma nacional... Mas, não, as ideias não morrem; ellas são o labaro da justiça. Os vendilhões serão expulsos do templo; ficarão os crentes e os puros, os que põem acima dos interesses mesquinhos, locaes e passageiros a victoria indefectivel dos principios. Tudo que não fôr isto ter-nos-ha contra si. Alea jacta est...

CXL

Rubião applaudiu o artigo; achava-o excellente. Talvez pouco energico. Vendilhões, por exemplo, era bem dito; mas ficava melhor vis vendilhões.

— Vis vendilhões? Ha só um inconveniente, ponderou Camacho. E a repetição dos vv. Vis ven... Vis vendilhões; não sente que o som fica desagradavel?

— Mas lá em cima ha vis vis...

— Vis vis repelitur. Mas é uma phrase Latina. Podemos arranjar outra cousa: vis mercadores.

— Vis mercadores é bom.

— Comtudo, mercadores não tem a força de vendilhões.

— Então, porque não deixa vendilhões? Vis vendilhões é forte; ninguem repara no som. Olhe, eu nunca dou por isso. Gósto de energia. Vis vendilhões.

— Vis vendilhões, vis vendilhões, repetiu Camacho, á meia voz. Já estou achando melhor. Vis vendilhões. Acceito, concluiu emendando. E releu: "Os vis vendilhões serão expulsos do templo; ficarão os crentes e os puros, os que põem acima dos interesses mesquinhos, locaes e passageiros a victoria indefectivel dos principios. Tudo que não for isto ter-nos-ha contra si. Alea jacta est..."

— Muito bem! disse Rubião, sentindo-se algum tanto autor do artigo.

— Parece-lhe bem? perguntou Camacho, sorrindo. Ha pessoas que ainda me acham no estylo a frescura do meu tempo de estudante. Não sei, não digo nada; a disposição, sim, é a mesma. Hei de castigal-os; havemos de castigal-os.

CXII

Aqui é que eu quizera ter dado a este livro o methodo de tantos outros, — velhos todos, — em que a materia do capitulo era posta no summario: "De como aconteceu isto assim, e mais assim". Ahi está Bernardim Ribeiro; ahi estão outros livros gloriosos. Das linguas extranhas, sem querer subir a Cervantes nem a Rabelais, bastavam-me Fielding e Smollet, muitos capitulos dos quaes só pelo titulo estão lidos. Pegai em Tom Jones, livro IV, cap. I, lêde este titulo: Contendo cinco folhas de papel. É claro, é simples, não engana a ninguem; são cinco folhas, quem quer lê, quem não quer não lê, e é para os primeiros que o autor conclue: "E agora, sem mais prefacio, vamos ao seguinte capitulo". Conclusão que tambem imito, para tambem dizer o que quero.

CXIII

Se tal fosse o methodo deste livro, eis aqui um titulo que explicaria tudo: "De como Rubião satisfeito da emenda feita no artigo, tantas phrases compoz e ruminou, que acabou por escrever todos os livros que lêra".

Lá haverá leitor a quem só isso não bastasse. Naturalmente, quereria toda a analyse da operação mental do nosso homem, sem advertir que, para tanto, não chegariam as cinco folhas de papel de Fielding. Ha um abysmo entre a primeira phrase de que Rubião era co-autor até a autoria de todas as obras lidas por elle; é certo que o que mais lhe custou foi ir da phrase ao primeiro livro; — deste em diante a carreria fez-se rapida. Não, importa: a analyse seria ainda assim longa e fastiosa. O melhor de tudo é deixar só isto: durante alguns minutos, Rubião se teve por autor de muitas obras alheias.

(Continúa.)

CXIV

Ao contrario, não sei se o capitulo que se segue poderia estar todo no titulo. Veja o leitor por si mesmo.

CXV

Rubião foi mantendo o proposito de não tornar a ver Sophia; pelo menos, não ia ao Flamengo. Viu-a um dia passar de carro, com uma das damas da commissão das Alagoas; ella inclinou-se risonha, dizendo lhe adeus com a mão. Elle retribuiu o comprimento, tirando o chapéu, com tal ou qual alvoroço, mas não ficou parado como lhe aconteceria d'antes; apenas lançou um olhar ao carro que ia andando. Tambem elle foi andando, — e pensando no lance da carta, não comprehendendo aquelle gesto de mão, sem odio nem vexame, — como se nada houvesse entre elles. Podia ser que o serviço da commissão e a companheira que levava explicassem a benevolencia graciosa do gesto; mas Rubião não cogitou desta hypothese.

— Estará assim tão falta de brio? perguntava elle. Pois não se lembra da carta que achei, mandada por ella ao tal gamenho da rua dos lnvalidos? É muito; é de mais Parece um desafio, um modo de dizer que não faz caso, que escreverá todas as cartas que quizer. Que as escreva, mas gaste algum dinheiro em registral-as no correio; é barato...

Achou algum pico em si mesmo e riu-se. Isto, e um homem que passou rasgando-lhe uma cortezia, tiraram-lhe o amargor das saudades, e elle esqueceu o assumpto, para cuidar de outro, que o levava ao Banco do Brazil.

Ao entrar no Banco esbarrou com o socio, que sahia.

— Creio que vi agora D. Sophia, disse-lhe Rubião.

— Onde?

— Na rua dos Ourives; ia de carro, com outra senhora, que não conheço. Como tem você passado?

Viu-a, e não se lembrou de nada, observou Palha, sem responder á pergunta. Não se lembrou que ella faz annos, quarta-feira, depois de amanhã. Não lhe peço que vá jantar, não ouso tanto seria convidal-o a aborrecer-se; mas uma chicara de chá bebe-se depressa. Faz-me esse favor?

Rubião não respondeu logo.

— Vou até jantar, disse finalmente. Quarta-feira? Conte commigo. Tinha-me esquecido, confesso; mas ando com tanta cousa na cabeça... Espere por mim daqui a meia hora, no armazem.

Antes de meia hora estava lá, pedindo-lhe dous contos de reis. Palha já não resistia ao desmoronamento do capital; e, se uma ou outra vez, dizia alguma palavrinha frouxa, agora entregou-lhe o dinheiro com indifferença. Rubião não tornou a casa sem comprar um magnifico diamante, que na quarta feira, enviou a Sophia, acompanhado de um bilhete de visita, e duas palavras de felicitação.

Sophia estava só, no quarto de vestir, calçando os sapatos, quando a criada lhe entregou o pacote. Era o terceiro presente do dia; a criada esperou que ella o abrisse para ver tambem o que era. Sophia ficou deslumbrada, quando abriu a caixa e deu com a rica joia, — uma bella pedra, no centro de um collar. Esperava alguma cousa bonita; mas, depois dos ultimos sucessos, mal podia crer que elle fosse tão generoso. Batia-lhe o coração.

— O portador está ahi?

— Já foi. Que cousa rica, minha ama!

Sophia fechou a caixa, e acabou de calçar-se. Deteve-se algum tempo, sentada, sosinha, recordando cousas idas, e levantou-se pensando:

— Aquelle homem adora-me.

Tratou de vestir se; mas, ao passar por deante do espelho, deixou-se estar alguns instantes. Comprazia-se na contemplação de si mesma, das suas ricas fórmas, dos braços nus de cima a baixo, dos proprios olhos contempladores. Fazia vinte e nove annos, achava que era a mesma dos vinte e cinco, e não se enganava. Cingido e apertado o colete, deante do espelho, accommodou os seios com amor, e deixou espraiar-se o collo magnifico. Lembrou-se então de ver como lhe ficava o diamante; tirou o collar e pol-o ao pescoço. Perfeito. Voltou-se da esquerda para a direita e vice-versa, approximou-se affastou-se, augmentou a luz do camarim; perfeito. Fechou a joia e guardou-a.

— Aquelle homem adora-me, repetiu comsigo.

— Provavelmente elle já estará, pensou Rubião indo jantar ao Flamengo; duvido que tenha dado melhor presente que eu.

Carlos Maria já estava, effectivamente, conversando, entre uma das commissarias das Alagoas e Maria Benedicta. Poucos eram os convivas; houve proposito em escolher e limitar. Mas estava alli o major Sequeira, nem a filha, nem as senhoras e os homens que Rubião conheceu naquelle jantar de Sta. Thereza; ninguem. Da commissão das Alagoas viam-se algumas damas; via-se mais o director do banco, — o da visita ao ministro, — com a senhora e as filhas, — outro personagem bancario, — um commerciante inglez, um deputado, um desembargador, alguns capitalistas, e pouco mais.

Posto que evidentemente gloriosa, Sophia esqueceu por um instante os outros, quando viu Rubião entrar na sala e caminhar para ella. Ou mudança, ou descostume, achou-lhe outro ar, passo firme, cabeça levantada, o avêsso, em summa, do antigo gesto encolhido e diminuto. Sophia apertou-lhe a mão com força e sussurrou um agradecimento. A mesa fel-o sentar ao pé de si, tendo do outro lado a presidente da commissão.

Rubião olhava superiormente para tudo. A qualidade dos convivas não lhe produziu impressão. Hão de lembrar-se do capitulo LXII, quando elle cruzou com uma baroneza na escada do escriptorio do Camacho e foi descendo a custo, sorvendo o aroma que ella ia deixando, captivo do titulo, até chegar a baixo, onde ficou admirando a farda do cocheiro. Tempos idos; capitulos passados. Agora, desceria a escada tranquillo, tão tranquillo como se acha, a despeito da qualidade das pessoas, do ar ceremonioso, do luxo da mesa, da farda dos creados, barbeados de fresco, abotoados até á gravata branca, e trazendo nos botões estas duas letras C. P. Nada disso o deslumbrou.

O mesmo cuidado particular de Sophia, embora lhe fosse agradavel, não o tonteava, como outrora. E da parte della era mais apurada a attenção, e os olhos excepcionalmente meigos e serviçaes Rubião procurou Carlos Maria: lá estava entre as mesmas moças da sala, — Maria Benedicta e a commissaria das Alagoas. Verificou que só se occupava com ellas, não olhava para Sophia, nem esta para elle.

— Talvez disfarcem, pensou.

Pareceu-lhe, ao levantarem-se da mesa, que trocavam um olhar — mas o movimento geral da reunião podia illudil-o, e Rubião não fez maior cabedal da observação. Sophia dera-se pressa em tomar-lhe o braço. De caminho, disse-lhe ella:

— Tenho esperado pelo senhor desde aquelle dia, e nunca mais veiu aqui. Era meu direito exigil-o, para explicar-me. Logo fallaremos.

Rubião foi dahi a pouco para o gabinete dos fumantes, onde se fallava de politica e voltarete. Ouviu calado, com os olhos erradios. Quando os outros sahiram, Rubião deixou-se estar só, meio reclinado em um sophá de couro, sem pensar. A imaginação é que fazia o seu officio, um tanto pachorrenta, agora, — talvez porque elle tivesse comido muito. Lá fóra iam entrando os convidados da noite; enchia-se a casa, crescia o borborinho da conversação, sem que o nosso amigo descesse dos seus bellos sonhos. O proprio som do piano que fez calar todos os rumores, não o attrahiu á terra. Mas um farfalhar de sedas, entrando no gabinete, fel-o erguer-se do golpe, accordado.

— Ahi está, disse Sophia, recolhe-se aqui para fugir ao aborrecimento; nem quer ouvir boa musica. Pensei que tivesse ido embora Vim ter com o senhor.

E sem mais demora, porque não podia perder um minuto, referiu-lhe o que o sabemos da carta achada no jardim de Botafogo: lembrou-lhe que, antes de a abrir, pedira-lhe que elle mesmo a abrisse e lesse. Que melhor prova de innocencia? A palavra sabia-lhe rapida, seria, digna e commovida. Occasião houve em que os olhos se lhe tornaram humidos; ella enxugou-os, e ficaram vermelhos Rubião pegou-lhe na mão, e viu ainda uma lagryma, — uma pequena lagryma, — escorregar até o canto da bocca. Jurou então que sim, acreditava em tudo. Que idéa aquella de chorar? Sophia enxugou ainda os olhos e estendeu-lhe a mão agradecida.

— Até já, disse ella.

O piano continuava: Rubião notou-lhe esta circumstancia. Emquanto ouviam tocar, não viriam ter com elles.

— Mas eu é que não posso estar ausente tanto tempo, acudiu Sophia. Demais, tenho ordens que dar. Até já.

— Olhe, escute, insistia Rubião.

Sophia parou.

— Escute; deixe-me dizer-lhe, e não sei se pela ultima vez...

— Pela ultima vez?

— Quem sabe? Pode ser que ultima. Importa-me pouco que esse homem viva ou não, mas posso achal-o aqui alguma vez, e não me sinto disposto a encaral-o.

— Hade encontral-o todos os dias. Christiano ainda lhe não disse o que ha? Vae casar com Maria Benedicta.

Rubião deu um passo para traz.

— Casam-se, continuou ella. O facto é de admirar, porque surgiu quando menos contavamos com isto; — ou eram muito fingidos, — ou foi cousa que lhes deu de repente. Casam-se. Maria Benedicta contou-me uma historia, que me foi confirmada por outra pessoa; mas, afinal, a historia é sempre a mesma. Gostaram um do outro, e adeus. Casam-se brevemente. Quando elle falou a Christiano. Christiano respondeu que dependia de mim... Como se fosse mãe d'ella! Consenti logo, e desejo que sejam felizes. Elle parece bom rapaz; ella é excellente creatura; hão de ser felizes, por força. E bom negocio, sabe? Elle está de posse de todos os bens do pae e da mãe. Maria Benedicta, não tem nada, em dinheiro; mas tem a educação que lhe dei. Hade lembrar-se que, quando veiu para minha companhia, era um bicho do matto; não sabia quasi nada; fui eu que a eduquei. Minha tia merecia tudo, e ella tambem. Pois, é verdade, casam-se muito breve. Não os viu hoje sempre juntos? Não ha ainda participação official; mas os intimos da familia podem saber. Casam-se, é verdade...

Para quem tinha tanta pressa, eis ahi um discurso demasiado comprido. Sophia deu por isso um pouco tarde; repetiu a Rubião que até logo, que fosse para a sala. O pianno acabara; ouvia-se um borborinho discreto de applauso e conversação.

(Continúa.)

CXVI

Iam casar? Mas como é então que...? Maria Benedicta, — era Maria Benedicta que casava com Carlos Maria; mas então Carlos Maria... Comprehendia agora; era tudo engano, confusão; o que parecia ser com uma pessoa era com outra, e ahi está como a gente póde chegar á calumnia e ao crime.

Assim reflexionava Rubião, saindo para a sala de jantar, onde os copeiros adereçavam a mesa da ceia. E continuou, andando ao comprido da sala: "— Ora vejam! E o Palha queria justamente casar-me com a prima, mal sabendo que o destino lhe guardava outro noivo. Não é feio rapaz; é muito mais bonito que ella. Ao pé de Sophia, Maria Benedicta vale pouco ou nada; mas a sympathia é assim mesmo... Casam-se, e breve... Será de estrondo o casamento? Deve ser; o Palha vive agora um pouco melhor..." — e Rubião lançava os olhos aos moveis, porcellanas, cristaes, reposteiros." — Hade ser de estrondo. E depois o noivo é rico..." Rubião pensou na carruagem e nos cavallos que levaria; tinha visto uma parelha soberba, no Engenho Velho, dias antes, que estava mesmo ao pintar. Ia fazer a encommenda de outra assim, fosse por que preço fosse; tinha tambem de presentear a noiva. Ao pensar nella viu-a entrar na sala.

— Prima Sophia onde está? perguntou ella ao Rubião.

— Não sei; esteve aqui ha pouco.

E, como a visse disposta a ir adeante, pediu-lhe uma palavra, e que se não zangasse. Maria Benedicta esperou: esperou; elle, sem hesitação, deu-lhe os parabens. Sabia que ia casar... Maria Benedicta ficou muito vermelha, e murmurou alguma cousa parecida com um pedido de não divulgar nada. Não havia então nenhum creado alli; Rubião pegou-lhe na mão e fechou-a entre as suas.

— Eu sou da casa, disse; a senhora merece ser feliz, e espero que seja.

Um pouco assustada, Maria Benedicta puxou a mão e libertou-a; mas, para o não aborrecer, sorriu. Não era preciso tanto; elle estava encantado. Sabemos que a moça não era bonita. Pois estava linda, á força de felicidade. A natureza parecia haver posto nella as suas mais finas ideias. Sorrindo egualmente, Rubião fallou-lhe como se fosse seu pae:

— Foi sua prima que me disse; recommendou-me segredo. Não direi nada antes do tempo. Mas que tem que diga á senhora? A senhora é boa e merece tudo. Não é preciso esconder os olhos; casar não é vergonha. Vamos lá; levante a cabeça e ria.

Maria Benedicta poz nelle os olhos radiantes.

— Isso! applaudiu Rubião. Que mal ha em confessar-se a um amigo? Deixe-me dizer-lhe a verdade; creio que a senhora será feliz, mas admitto que elle ainda será mais feliz. Não? Verá se não fallo verdade; elle mesmo lhe hade dizer o que sentir, e, se fôr sincero, a senhora reconhecerá que eu estou apenas prophetisando. Bem sei que não tem balança para medir os sentimentos; enfim, o que eu quero dizer é que a senhora é uma linda e boa creatura... Vá, vá-se embora; se não, fico dizendo verdades, e a senhora está corando muito...

De facto, Maria Benedicta corava de gosto ouvindo a linguagem de Rubião. Em casa, achára acquiescencia, nada mais. O proprio Carlos Maria não era assim terno; gostava della com circumspecção. Fallava-lhe da felicidade conjugal, como de uma taxa que ia receber do destino, — pagamento devido, integral e certo. Tambem não era preciso que lhe fallasse de outro modo, para que ella o adorasse sobre todas as cousas deste mundo. Rubião repetiu a despedida, e ficou a olhar para ella, como para uma filha. Viu-a ir assim, atravessar a sala, viva e satisfeita, — tão diversa do que a achára em outros tempos, e desaparecer por uma das portas. Não pode reter esta palavra:

— Linda e boa creatura!

CAPITULO CXVII

A historia do casamento de Maria Benedicta é curta; e, posto Sophia a ache vulgar, vale a pena dizel-a. Bom é advertir que, senão fosse a epidemia das Alagoas, Maria Benedicta não chegaria a casar jamais, pois a nenhum outro homem amaria; assim o pensava, ao menos. Não vamos, porém, tão longe; admittamos só que não casaria com elle, se não fosse a epidemia das Alagoas. Consequencia: as catastrophes são uteis, e até necessarias. Os exemplos historicos são taes e tantos, que encheriam o resto do livro, sem proveito para o leitor, que os sabe de cór. Mas, caso ignore um contosinho que ouvi em creança, aqui lh'o dou em duas linhas. Ardia uma velha choupana na estrada; a dona, sentada sobre uma pedra, chorava o desastre, sem forças para tais. Passa um homem ebrio vê o incendio, vê a mulher, pergunta-lhe se a casa era della.

— É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuia n'este mundo.

— Dá-me então licença que accenda alli o meu charuto?

O padre que me contou isto emendou o texto, com certeza pois não é preciso estar embriagado, para accender um charuto nas miserias alheias. Bom padre Chagas! — Chamava-se Chagas. — Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos annos essa ideia consoladora, de que ninguem, em seu juizo, faz render o mal dos outros; não contando, esta outra: — o respeito que aquelle bebado tinha ao principio da propriedade, —a ponto de não accender o charuto sem pedir licença á pona das ruinas. Tudo ideias consoladoras. Bom padre Chagas!

CAPITULO CXVIII

Mas vamos á historia do casamento. Que Maria Benedicta gostava de Carlos Maria, é cousa vista ou presentida desde aquelle baile da rua dos Arcos, em que elle e a prima valsaram tanto. Vimol-a na manhã seguinte prestes a ir para a roça; a prima apaziguou-a com a promessa de que lhe estava arranjando um noivo. Maria Benedicta cuidou que era o valsista da vespera, e ficou esperando. Não lhe confessou nada, — por vergonha, a principio, — e depois, por lhe não fazer perder o effeito da novidade, quando Sophia houvesse de descobrir o nome da pessoa. Se fallasse desde logo, podia acontecer tambem que a outra affrouxasse na tarefa, e lá se perdia a causa. Não façamos caso disto; são pequenos calculos de moça.

Ficou esperando. Carlos Maria não as visitava a miudo; e, posto acabasse desmentido as ilusões de Sophia, com esta é que despendia o melhor tempo. Fallava pouco á outra, e de cousas minimas e futeis, não lhe suppondo aptidão para mais; isso mesmo, porém, dito á sua maneira, trazia um cunho original. Tão certo é que a materia vale menos que a arte daquelle que a affeiçoa. Maria Benedicta pouco dizia, raramente acabava as phrases, aliás curtas; não travava dialogo. Tremula e encantada, — deixava-se ir ao sabor da palavra delle, — sem alma para interrompel-a. Carlos Maria não percebeu o estado moral da moça. Concluiu até contra ella, porque a suppõe insipida ou estupida. Por fim, as visitas cessaram inteiramente.

(Continúa.)

CXVIII

(Continuação)

Sobreveiu a epidemia das Alagoas. Sophia organisou a commissão, que trouxe novas relações á familia Palha. Incluida entre as senhoras que formavam uma das sub- commissões, Maria Benedicta trabalhou com todas, mas grangeou em especial a estima de uma dellas, D. Fernanda, esposa de um deputado. D. Fernanda tinha pouco mais de trinta annos, era jovial, expansiva, corada e robusta; nascera em Porto Alegre, casara com um bacharel das Alagoas, deputado agora por outra provincia, e, segundo corria, prestes a ser ministro de Estado. A naturalidade do marido foi o pretexto para mettel-a na commissão; e bem acertado foi, porque ella pedia como quem manda, não tinha acanhamento nem admittia recusa. Maria Benedicta era o contrario disso, acrescendo a tristeza que a abatia por esse tempo; mas foi justamente a disparidade que as prendeu. D. Fernanda possuia, em larga escala, a qualidade da sympathia; amava os fracos e os tristes, pela necessidade de os fazer ledos e corajosos. Contavam-se della muitos actos de piedade com gentes e com bichos. Maria Benedicta acolheu-se naturalmente ás suas azas.

— A senhora que tem? perguntou-lhe um dia D. Fernanda. Quasi nunca ri, anda sempre com os olhos espantados, pensando...

Maria Benedicta respondeu que não tinha nada, que era o seu modo; e sorria dizendo isto, por simples condescendencia. Fallou tambem na perda da mãe, como uma das causas de suas melancolias. D. Fernanda entrou a leval-a a toda parte, a trazel-a para jantar, a dar-lhe logar no camarote, se ia ao theatro; e graças a isso, e ao seu genio galhofeiro, sacudiu da alma da moça os corvos aborrecidos que lá avoejavam. Costume e affeição depressa as fizeram intimas. Não obstante, Maria Benedicta continuou a calar o seu mysterio.

Pouco antes dessas relações, logo ao chegar á capital, D. Fernanda recebeu a visita de Carlos Maria. Eram ainda parentes; não se viam desde dous ou tres annos. Carlos Maria achou-a mais formosa ainda que d'antes e talvez fosse verdade; concluiu que o ar do sul era feito para enrijar as pessoas, duplicar-lhe as graças, e prometteu ir lá acabar os seus dias.

— Vamos para lá, que lhe arranjarei casamento, disse ella. Conheço uma moça de Pelotas, que é um bijou, e só casa com moço da Côrte.

— Commigo, naturalmente?

— Da Côrte e de olhos grandes. Olhe que não estou brincando. É uma guasca de primeira ordem. Tenho aqui o retrato della.

D. Fernanda abriu o album e mostrou o retrato da pessoa.

— Não é feia, concordou elle.

— Só?

— Sim, é bonita.

— Onde é que você bota os seus chinellos velhos, primo?

Carlos Maria sorriu sem responder; não gostou da expressão. Quiz passar a outro assumpto, mas D. Fernanda tornou ao casamento da amiga de Pelotas. Mirava o retrato, coloria-o de palavra, dizendo como eram os olhos, os cabellos, a tez: e depois fez uma pequena biographia de Sonora. Tinha este bonito nome. O padre que a baptisou, hesitou em dar-lh'o, apezar do respeito e influencia do pae da menina, rico estancieiro; mas, afinal cedeu, considerando que as virtudes da pessoa podiam levar o nome ao rol dos santos.

— Crê que ella vá ao rol dos santos? perguntou Carlos Maria.

— Se ella casar, com você, creio.

— Não me explica nada: casando com o diabo suceederá a mesma cousa, e com mais certeza, por causa do martyrio. Santa Sonora, não é feio nome, responde bem ao sentido. Santa Sonora... Em todo caso, prima...

— Você tem raça de judeu; cale-se, interrompeu ella. Recusa então a minha guasca? continuou indo pôr o album no seu logar.

— Não recuso; deixe-me ir indo com o meu celibato, que é meio caminho do ceu.

D. Fernanda soltou uma gargalhada.

— Deus de misericordia! Você acredita mesmo que vae para o ceu?

— Já cá estou, ha vinte minutos. Pois que é esta sala, tranquilla, fresca, tão longe da gente que anda lá fóra? Aqui conversamos os dous, sem ouvir blasphemias, sem aturar espiritos aleijados, tisicos, escrophulosos, insupportaveis, o proprio inferno, em summa. Aqui é o ceu, —ou um pedaço do ceu; uma vez que nós cabemos nelle, vale pelo infinito. Conversamos de Santa Sonora, de S. Carlos Maria e de Santa Fernanda, que, para contrastar com S. Gonçalo, fez se casamenteira das moças. Onde é que ha outro ceu como este?

— Em Pelotas?

— Pelotas fica tão longe! suspirou elle estendendo as pernas e pondo os olhos no lustre da sala.

— Está bom, é só a primeira investida; darei outras, até você acabar de querer.

Carlos Maria sorriu e olhou para as borlas cahidas do cordão de seda que ella trazia á cintura, atado por um laço frouxo; ou para ver as borlas, ou para notar a gentileza do corpo. Viu bem, ainda uma vez, que a prima era uma bella creatura. A plastica levou-lhe os olhos, — o respeito os desviou; mas, não foi só a amizade que o fez demorar ainda alli, e o trouxe novamente áquella casa. Carlos Maria amava a conversação das mulheres, tanto quanto, em geral, aborrecia a dos homens. Achava os homens declamadores, grosseiros, cançativos, pesados, frivolos, chulos, triviaes. As mulheres, ao contrario, não eram grosseiras, nem declamadoras, nem pesadas. A vaidade nellas ficava bem, e alguns defeitos não lhes iam mal; tinham, ao demais, a graça e a meiguice do sexo. Das mais insignificantes, pensava elle, ha sempre alguma cousa que extrahir. Quando as achava insipidas, ou estupidas, tinha para si que eram homens mal acabados

Maria Benedicta, que já lhe parecêra aquellas duas cousas, não lhe deu outra impressão, quando a viu em casa de D. Fernanda. Entende-se, naturalmente, que ella, ao vel-o, não ficou menos abalada nem menos encolhida... D. Fernanda conseguira modifical-a um pouco: mas não podia obstar a commocão que lhe dava a presença de Carlos Maria nem os seus motivos secretos. Um dia, accordou com a ideia de os casar Era o modo, a seu ver, de tornar feliz a amiga.

— Você precisa casar, Maria Benedicta, disse-lhe dalli a dous dias, da manhã, na chacara, em Matta-cavallos; Maria Benedicta tinha ido ao theatro com ella, e passára lá a noite. — Não quero estremecimentos; precisa casar e hade casar... Desde ante-hontem que estou para lhe dizer isto, mas estas cousas falladas em sala ou na rua, não tem poesia. Aqui na chacara é outra cousa. E se você tem animo de trepar commigo um pedaço do morro, então é que ficaremos bem. Vamos?

— Está fazendo calor...

— É mais poetico, menina. Ah! carioca sem sangue! Vocês só tem agua nas veias. Pois fiquemos aqui neste banco. Sente-se; assim, eu fico aqui ao pé, armada para tudo. Casa ou morre. Não me replique. Você não é feliz, — continuou mudando o tom; por mais que faça, eu vejo que você passa a vida sem gosto. Venha cá, diga-me com franqueza, tem inclinação a alguem? Se tem, confesse, que eu mando procurar a pessoa.

— Não tenho.

— Não? Pois é justamente o que nos serve. Não precisa pôr escriptos no coração; conheço um bom inquilino.

Maria Benedicta voltou-se de todo para ella, com os labios entreabertos e os olhos escancarados. Parecia receiar da proposta ou anciar por ella. D. Fernanda, não atinando com o verdadeiro estado da amiga, pegou-lhe na mão primeiro, e pediu que lhe dissesse tudo. De força que amava a alguem, era claro, via-se-lhe nos olhos, cumpria confessar tudo, instava, rogava, — intimaria, se preciso fosse... A mão de Maria Benedicta esfriára, os olhos cavavam o chão, e por alguns instantes, nem uma nem outra disse nada.

— Vamos, falle, repetia D. Fernanda.

— Não tenho que dizer, murmurava a outra.

D. Fernanda fazia gestos de incredulidade; apertava-a cada vez mais, passou-lhe a mão pela cintura, e ligou-a muito a si; disse-lhe baixinho, dentro do ouvido, que era como se fosse sua propria mãe. E beijava-a na face, na orelha, na nuca, encostava-lhe a cabeça ao hombro, acarinhava-a com a outra mão. Tudo, tudo queria saber tudo. Se o namorado estava na lua, mandaria buscal-o á lua, — fosse onde fosse, — excepto no cemiterio; mas, se estivesse no cemiterio, dar-lhe-hia outro muito melhor, que faria esquecer o primeiro em poucos dias. Maria Benedicta ouvia agitada, palpitante, não sabendo por onde escapasse, — prestes a fallar, e calando a tempo, como se defendesse o seu pudor. Não negava, não confessava, — mas, como tambem não sorria, e tremia de commoção, era facil á outra adivinhar meia verdade, ao menos.

— Mas então não sou sua amiga, não tem confiança em mim? Faça de conta que sou sua mãe.

Maria Benedicta pouco mais resistiu; gastára as forças e sentia a necessidade de revellar alguma cousa. D. Fernanda escutou-a commovida. O sol vinha já lambendo as cercanias do banco, não tardou que lhes trepasse aos sapatos, á barra dos vestidos e aos joelhos; mas nenhuma deu por elle. O amor as absorvia; a exposição de uma tinha para a outra um enlevo raro. Era uma paixão não sabida, não compartida, não adivinhada; paixão que ia perdendo de indole e de especie para se converter em adoração pura. A principio, quando ella via a pessoa amada, passava por dous estados mui diversos, — um que não podia definir, alvoroço, tonteira, pancadas no coração, quasi um desmaio; o segundo era de contemplação. Agora era quasi que só este. Tinha chorado muito, comsigo, perdera noites e noites de saudades; pagou caro a ambição das suas esperanças. Mas não

perderia nunca a certeza de que elle era superior a todos os demais homens, um ente divino, que, ainda não fazendo caso della, mereceria sempre ser adorado.

CXVIII

(Continuação)

— Bem, disse D. Fernanda, quando a outra se calou de todo. Vamos ao essencial, que é não ficar penando á tôa. Não queridinha, isto de adorar a um homem que não faz caso da gente, é poesia. Deixe-se de poesia. Olhe que só você perde no negocio, porque elle casa com outra, os annos passam, a paixão monta na garupa delles, e um dia, quando você menos pensar, accorda sem amor nem marido. E quem é esse barbaro?

— Isso não digo, respondeu Maria Benedicta, levantando-se do banco.

— Pois não diga, acudiu D. Fernanda, pegando-lhe nos pulsos e fazendo-a sentar nos seus joelhos. A questão principal é casar; não podendo ser com esse, será com outro.

— Não, não caso.

— Só com elle?

— Nem sei se com elle, respondeu Maria Benedicta, depois de alguns instantes. Gósto delle, como gósto de Deus, que está no ceu.

— Virgem Santissima! Que blasphemia! Duas blasphemias, menina; a primeira é que não se deve amar a ninguem como a Deus, —a segunda é que um marido, ainda sendo máo, sempre é melhor que o melhor dos sonhos.

CXIX

"Um marido, ainda máo, é sempre melhor que o melhor dos sonhos."

A maxima não era idealista; a outra protestou contra ella. Pois não era melhor sonhar que chorar? Os sonhos acabam ou alteram-se, enquanto que os máos maridos podem viver muito. — A senhora fala assim, concluiu Maria Benedicta, porque Deus lhe destinou um anjo. Olhe, lá vem elle."

— Deixe estar que hade ter tambem o seu anjo; conheço um magnifico para você; todos os anjos me procuram.

Theophilo, marido de D. Fernanda, que as vira a distancia, veiu ter com ellas; trazia na mão um diario amarrotado. Não saudou a hospede; foi direito á mulher.

— Você quer saber o que me fizeram, Nannan? disse elle com os dentes cerrados. Sahiu hoje o meu discurso do dia 5. Veja esta phrase; eu tinha dito: Na duvida abstem-te, é o conselho do sabio. E puzeram: Na divida abstem-te... É insuportavel! Nota que tratava-se justamente de um credito do ministerio da marinha, allegando-se no debate que muitas despezas estavam autorisadas. De modo que pode parecer chulice da minha parte; é como se aconselhasse o calote. Em todo caso, é disparate.

— Mas você não leu as provas?

— Li, mas o autor é o menos apto para as ler bem. Na divida abstem-te, continuou elle com os olhos na folha. E bufando: — Isto só com...

Estava consternado. Era homem de talento, de gravidade e de trabalho; mas, naquelle instante, todas as grandes obras, os mais temerosos problemas, as batalhas mais decisivas, as revoluções mais profundas, o sol e a lua, e todas as constellações, e todas as alimarias, e todas as gerações humanas, valiam menos que a troca de um u por um i. Maria Benedicta olhava para elle sem entendel-o. Cuidava padecer a maior tristura; mas alli estava outra tão grande como a sua, e muito mais afflictiva. Assim, a melancolia roaz de uma pobre creatura era tanto como um erro typographico. Theophilo, que só então deu por ella, estendeu-lhe a mão; estava fria. Ninguem finge as mãos frias; devia padecer deveras. Instantes depois, atirou a folha ao chão, com um gesto violento, e foi-se embora.

— Mas, Theophilo, emenda-se amanhã, disse-lhe D. Fernanda, levantando-se.

Theophilo, sem voltar atraz, deu de hombros, desesperado. A mulher correu a elle; a outra seguiu-a espantada. Ficou só o banco, já agora livre dellas, recebendo em cheio os raios do sol, que não ama nem faz discursos. D. Fernanda levou o marido para um gabinete, e, á força de beijos, consolou-o do erro typographico. Ao almoço, já elle sorria, ainda que de um sorriso pallido; a mulher, para desvial-o da preoccupação fallou do plano de casar Maria Benedicta, e havia de ser com um deputado, se existia na camara algum solteiro, qualquer que fosse a opinião. Podia ser governista, opposicionista, ambas as cousas, ou nada, — contanto que fosse marido. Sobre este thema fez algumas reflexões, vivas, lepidas, que encheram o tempo e destinavam-se a matar a lembranção do erro typographico. Pia creatura! Theophilo, entendendo a mulher, ia-se fazendo alegre, e fallava tambem da conveniencia de casar Maria Benedicta.

— O peor, acudiu a mulher olhando para a amiga, é que ella ama a outro cujo nome não quer dizer.

— Nem é preciso, atalhou o marido enxugando os beiços; vê-se bem que ella gósta de teu primo.

CXX

No domingo seguinte, D. Fernanda foi á egreja de Santo Antonio dos Pobres, para ouvir missa. Acabada a missa, viu surgir do movimento dos fieis que se comprimentavam entre si, ou saudavam o altar, nada menos que o primo, erecto, risonho, estendendo-lhe a mão.

— Veiu tambem á missa? perguntou espantada.

— Vim.

— Costuma ouvir missa?

— Nem sempre, mas ouço muitas vezes.

— Francamente, não esperava tanta devoção em você. Os homens são, em geral, uns impios. Theophilo não pisa na egreja, a não ser para baptisar os filhos. Você então é religioso?

— Não posso responder com certeza; mas tenho horror á banalidade, que é dizer mal da religião. E basta; vim á missa, não vim confessar-me; agora vou conduzil-o á casa, e, se me offerecer almoço, almoçarei com vocês. Salvo se quizerem vir almoçar commigo; é nesta rua, como sabe.

— Iria eu só, se pudesse ser, para lhe dar uma noticia muito comprida.

— Vamos então devagar, disse Carlos Maria á porta da egreja, offerecendo-lhe o braço. E dous passos adeante. — Noticia importante?

— Importante e deliciosa.

— Querem ver que Deus, sempre misericordioso, vai levar para si o nosso querido Theophilo, deixando aqui ao desamparo a mais gentil de todas as viuvas... Não precisa fazer essa cara, prima; deixe estar o braço. Vamos á noticia. Chegou a moça de Pelotas, aposto?

— Não direi o que é, se você me não jurar ouvir seriamente.

— Seriamente.

D. Fernanda confessou-lhe que hesitava em casal-o com a patricia de Pelotas; não queria remorsos; descobrira aqui alguem que tinha ao primo um immenso amor. Carlos sorriu, iniciou um gracejo, mas a noticia esporeou-lhe o espirito. Immenso amor? Immenso amor, paixão violenta, confirmou a prima, accrescentando que talvez a definição já não coubesse bem ao actual sentimento da pessoa. Agora era uma adoração quieta e calada. Tinha chorado por elle noites e noites, emquanto as esperanças lhe duraram... E D. Fernanda foi assim repetindo a confidencia de Maria Benedicta. Restava só o nome; Carlos Maria quiz sabel-o, ella negou-lh'o. Não podia revellal-o. Para que dar-lhe o gosto de saber quem era que o adorava, se não corria ao encontro da alma della? Melhor era deixal-a no mysterio. Já não chorava agora; modesta e desambiciosa, perdera as esperanças de ser amada, e, com o tempo ficou apenas uma devota, mas uma devota sem par, que nem sequer esperava ser ouvida ou agraciada um dia por um olhar benevolo do seu deus querido.

— Prima, você...

Eu que?...

Carlos Maria concluiu dizendo que a advogada era digna da causa. Realmente, se esse moça o adorava a tal ponto, era justo e natural que a prima se interessasse por ella com tanto calor. Mas porque não dizer o nome?

— Agora não digo; pode ser que algum dia... Mas, você comprehende que me custaria muito casal-o com a minha patricia, sabendo que outra pessoa o ama tanto. E dahi bem pode ser que esta de cá não padeça muito, se o vir casado. Sim, senhor, parece absurdo, mas é preciso conhecel-a; digo que, uma vez que você seja feliz, é capaz de abençoar a bella rival.

— Já não é romantismo, é mysticismo redarguiu Carlos Maria depois de alguns passos, com os olhos no chão. Não está nas cordas do nosso tempo. Tem alguma prova de semelhante estado de alma?

— Tenho... A sua casa é aquella, não? perguntou D. Fernanda parando.

— É.

— Bonito predio, e solido.

— Muito solido.

— Uma, duas, tres, quatro... Sete janellas. O salão vae de ponta a ponta? Bem bom para um baile.

E andando:

— Eu, se tivesse aqui uma casa maior que a minha, daria um grande baile, antes de voltar para o Rio Grande. Gosto de festas. Os meus dous filhos não me dão grande trabalho. A proposito, ando com ideia de metter o meu Lopo no collegio; onde acharei um bom colegio?

Carlos Maria pensava na devota incognita. Estava longe, muito longe do ensino e seus estabelecimentos. Que bom que era sentir-se um deus adorado, e adorado á maneira evangelica, (S. MATHEUS, vi, 6), mettida a devota no aposento, fechada a porta, em secreto, não nas synagogas, á vista de todos. "E teu pae que vê o que se passa em secreto te dará a paga.” Oh elle daria a paga se soubesse quem era. Casada, seria? Não, não podia ser, não iria confessal-o a ninguem; viuva ou solteira, antes solteira. Cheirava-lhe a solteira. Em que aposento se fechava para resar, para evocal-o, choral-o e abençoal-o? Já nem teimava pelo nome; mas o aposento, ao menos.

— Onde acharei um bom collegio? repetiu D. Fernanda.

— Collegio? Não sei; estou pensando na desconhecida. Comprehende bem que uma pessoa que me adora, em silencio, sem esperanças, é objecto de alguma attenção. Alta ou baixa?

— Maria Benedicta.

Carlos Maria estacou o passo.

— Aquella moça...? Não é possivel. Tenho-lhe fallado muitas vezes, e nunca descobri nada. Achei-a sempre fria. Hade ser engano. Ouviu-lhe o meu nome?

— Não, por mais que lhe pedisse. Confessou o milagre, sem nomear o santo, mas que milagre! Gabe-se de ser adorado como ninguem... De quem é aquella casa?

— Você costuma exagerar as cousas, prima; póde não ser tanto. Adorado como ninguem? E de que modo soube que era eu?

— Theophilo foi o primeiro que descobriu; ella, dizendo-se-lhe isto, ficou como uma pitanga. Negou-o ainda depois, commigo; e desde esse dia não voltou lá a casa.

Tal foi o inicio dos amores. Carlos Maria folgou de se ver assim amado em silencio, e toda a prevenção se converteu em sympathia. Começou a vel-a, saboreou a confusão da moça, os medos, a alegria, a modestia, as attitudes quasi implorativas, um composto de actos e sentimentos que eram a apotheose do homem amado. Tal foi o inicio, tal o desfecho. Assim os vimos, naquella noite dos annos de D. Sophia, a quem elle dissera antes cousas tão doces. São assim os homens; as aguas que passam, e os ventos que rugem não são outra cousa.

(Continúa.)

CXXI

— Bem, vae casar, tanto melhor! pensou Rubião.

Entre aquella noite e o dia do casamento, Rubião apanhou o  olhar de Sophia, cinco ou seis vezes, em flagrante delicto de tentação, sendo que uma só vez lhe correspondeu Carlos Maria. Rubião examinou comsigo o facto e achou-o fortuito; lembrava-se ainda da lagrima que Sophia vertera, na noite dos annos, quando lhe explicou a historia da carta.

Oh! boa lagrima inesperada! Tu, que bastaste a persuadir um homem, podes não ser explicavel a outros, e assim vae o mundo. Que importa que os olhos não fossem costumados ao choro, nem que a noite parecesse exaltar sentimentos mui diversos da melancolia? Rubião a viu cair; ainda agora a vê de memoria. Mas a confiança de Rubião não vinha só da lagrima, vinha também da presente Sophia, que nunca fôra tão solicita nem tão dada com elle. Parecia arrependida de todo o mal causado, prestes a sanal-o, ou por affeição tardia, ou pelo proprio malogro da primeira aventura. Há delictos virtuaes, que dormem. Há operas remissas na cabeça de um maestro, que só esperam os primeiros compassos da inspiração.

CXXII

— Ainda bem que se casa! repetiu o Rubião.

Não se demorou o casamento: tres semanas. Na manhã do dia aprazado, Carlos Maria abriu os olhos com algum espanto. Era elle mesmo que ia casar? Não havia duvida; mirou-se ao espelho, era elle. Relembrou os ultimos dias, a marcha rapida dos successos, a realidade da affeicão que tinha á noiva, e, emfim, a felicidade pura que lhe ia dar. Esta derradeira ideia enchia-o de grande e rara satisfação. Ia-as ruminando ainda, a cavallo, no passeio habitual da manhã; desta vez escolhera o bairro do Engenho Velho.

Posto se achasse costumado aos olhos admirativos, via agora em toda a gente alguma cousa parecida com a noticia de que elle ia casar. As casuarinas de uma chacara, quietas antes que elle passasse por ellas, disseram-lhe cousas mui particulares, que os levianos attribuiriam á aragem que passava tambem, mas que os sapientes reconheceriam ser nada menos que a linguagem nupcial das casuarinas. Passaros saltavam de uns lado para outro, pipilando um madrigal. Um casal de borboletas, — que os japões têm por symbolo da fidelidade por observarem que, se pousam de flor em flor, andavam quasi sempre aos pares, — um casal dellas acompanhou por muito tempo o passo do cavallo, indo pela cêrca de uma chacara que beirava o caminho, volteando aqui e alli, lepidas e amarellas. De envolta com isto, um ar fresco, ceu azul, caras alegres de homens montados em burros, pescoços estendidos pela janela fóra das diligencias, para vel-o e ao seu garbo de noivo. Certo, era difficil crer que todos aquelles gestos e attitudes dos homens e das cousas, exprimissem outro sentimento que não fosse a homenagem nupcial da natureza.

As borboletas perderam-se em uma das moitas mais densas da cêrca. Seguiu se outra chacara, despida de arvores, portão aberto, e ao fundo, fronteando com o portão, uma casa velha, que encarquilhava os olhos sob a fórma de cinco janellas de peitoril, cançadas de chorar moradores. Tambem elles tinham visto bodas e festins; o seculo já os achou verdes de novidade e fortes de esperança.

Não cuideis que esse aspecto abalou a alma do cavalleiro. Ao contrario, elle possuis o dom particular de remoçar as ruinas e viver da vida primitiva das cousas. Gostou até de ver a casa velhusca, desbotada, em contraste com as borboletas tão vivas de ha pouco. Parou o cavallo; evocou as mulheres que por alli entraram, outras galas, outros rostos, outras maneiras. Porventura as proprias sombras das pessoas felizes e extinctas vinham agora cumprimental-o tambem, dizendo-lhe pela bocca invisível todas as cousas sublimes que pensavam delle. Chegou a ouvil-as e sorrir. Mas uma voz estridula veiu mesclar-se ao concerto: — um papagaio, em gaiola pendente da parede externa da casa: "Papagaio real, para Portugal; quem passa? Curruspá, cupapá, Grrrr... Grrrrr..." As sombras fugiram, cavallo foi andando. Carlos Maria aborrecia o papagaio, como aborrecia o macaco, duas contrafacções da pessoa humana, dizia elle.

— A felicldade que eu lhe der será assim tambem interrompida? reflexionou elle andando.

Cambaxirras voaram de um para outro lado da rua, e pousaram cantando a sua falla propria; foi uma reparação. Essa lingua sem palavras era intelligivel, dizia uma porção de cousas claras e bellas. Carlos Maria chegou a ver naquillo um symbolo de si mesmo. Quando a mulher, aturdida dos papagaios do mundo, viesse caindo de fastio, elle a faria erguer aos trillos da passarada divina, que trazia em si, idéias de ouro ditas por uma voz de ouro. Oh! como a tornaria feliz! Já a antevia ajoelhada, com os braços postos nos seus joelhos, a cabeça nas mãos e os olhos nelle, gratos, devotos, amorosos, toda implorativa, toda nada.

CXXIII

Ora bem, aquelle quadro, na mesma hora em que apparecia aos olhos da imaginação do noivo, reproduzia-se no espirito da noiva, tal qual. Maria Benedicta, posta á janella, fitando as ondas que se quebravam ao sopé da fortaleza de Villeganon, via-se a si mesma, ajoelhada aos pés do marido, quieta, contricta, como á mesa da communhão para receber a hostia da felicidade. E dizia comsigo: "Oh! como elle me fará feliz!" Phrase e pensamento eram outros, mas a attitude e a hora eram as mesmas.

CXXIV

Casaram-se: tres mezes depois foram para a Europa. Ao despedir-se delles, D. Fernanda estava tão alegre como se viesse recebel-os de volta; não chorava. O prazer de os ver felizes era maior que o desgosto da separação.

— Você é feliz? perguntou a Maria Benedicta, pela ultima vez, junto á amurada do paquete.

— Oh! muito!

A alma de D. Fernanda debruçou-se-lhe dos olhos, fresca, ingenua, cantando um trecho italiano, — porque a suberba guasca preferia a musica italiana, — talvez esta aria da Lucia: O'bell'alma innamorata. Ou este pedaço do Barbeiro:

Ecco rilente in cielo

Già spunta la bella aurora.

CXXV

Sophia não foi a bordo, adoeceu e mandou o marido. Não vão crer que era pezar nem dor; por occasião do casamento, houve-se com grande discrição, cuidou do enxoval da noiva e despediu se della com muitos beijos chorados. Mas ir a bordo pareceu-lhe vergonha. Adoeceu; e, para não desmentir do pretexto, deixou-se estar no quarto. Pegou de um romance recente; fora lhe dado pelo Rubião; era tambem delle o peignoir que trazia. Outras cousas alli lhe lembravam o mesmo homem, bibelots de toda a sorte sem contar joias guardadas, e um castiçalzinho de bronze, posto no toucador para enfeite. Finalmente, uma singular palavra que lhe ouvira, na noite do casamento da prima, até essa veiu alli para o inventario das recordações do nosso amigo.

— A senhora é já a rainha de todas, disse-lhe elle em voz baixa; espere que ainda a farei imperatriz.

Sophia não pode entender esta phrase enigmatica. Quis suppor que era uma alliciação de grandeza para tornal-a sua amante; mas a vaidade que essa ideia trazia fel-a excluir desde logo. Rubião, posto não fosse agora o mesmo homem encolhido e timido de outros tempos, não se mostrava tão cheio de si que lhe pudesse attribuir tão alta presumpção. Mas que era então a phrase? Talvez um modo incorrecto de dizer que a amaria ainda mais, ou, quem sabe? que se sacrificaria por ella. Sophia acreditava possivel tudo. Não lhe faltavam galanteios; chegou a ter aquella declaração positiva de Carlos Maria nos proprios e claros termos de amador resoluto. Todos esses bens, como simples folhas de antanho, foram-se com o seu trimestre de sazão, que era muita vez uma semana ou uma noite. Rubião ficára igual a si mesmo. Tinha pausas, filhas de suspeitas; mas as suspeitas iam como vinham.

"Il mérite d'être aimé" leu Sonhia na pagina aberta do romance, quando ia continuar a leitura; fechou o livro, fechou os olhos, e perdeu-se em si mesma. A escrava que entrou d'ahi a pouco, trazendo-lhe um caldo, suppoz que a senhora dormia e retirou-se pé ante pé.

(Continúa.)

CXXVII

Entretanto, Rubião e Palha desciam do paquete para a lancha e tornavam ao cáes Pharoux. Vinham cuidosos e calados Palha foi o primeiro que abriu a bocca:

            — Ando ha tempos para dizer-lhe uma cousa importante, Rubião.

CXXVIII

Rubião accordou. Era a primeira vez que ia a um paquete. Voltava com a alma cheia dos rumores de bordo, a lufa-lufa das gentes que entravam e sahiam, nacionaes, estrangeiros, estes de varia casta, francezes, inglezes, allemães, argentinos, italianos uma confusão de linguas, um capharnaum de chapéos, de malas, cordoalha, sophás, binoculos a tira-collo, homens que desciam ou subiam por escadas para dentro do navio, mulheres chorosas, outras curiosas, outras cheias de riso, e muitas que traziam de terra flores ou frutas, — tudo aspectos novos. Ao longe, a barra por onde tinha de ir o paquete. Para lá da barra, o mar immenso, o céo fechado e a solidão. Rubião renovou os sonhos do mundo antigo, creou uma Atlantida, sem nada saber da tradicção. Não tendo noções de geografia, formava uma idéa confusa dos outros paizes, e a imaginação rodeava-os de um nimbo mysterioso. Como não lhe custava viajar assim, navegou de cór algum tempo, n'aquelle vapor alto e comprido, sem enjôo, sem vagas, sem ventos, sem nuvens.

CXXIX

— A mim? perguntou Rubião de alguns segundos.

— A você, confirmou o Palha. Devia tel-a dito ha mais tempo, mas estas historias de casamento, de commissão das Alagôas, etc., atrapalharam-me, e não tive occasião; agora, porém, antes do almoço... Você almoça commigo.

— Sim, mas que é?

— Uma cousa importante.

Dizendo isto, tirou um cigarro, abriu-o, desfiou o fumo com os dedos, enrolou a palha outra vez, e riscou um phosphoro, mas o vento apagou o phosphoro. Então pediu ao Rubião que lhe fizesse o favor de segurar o chapéo, para poder accender outro. Rubião obedeceu impaciente. Era isto mesmo que o socio queria. Pelo tempo decorrido entre o annuncio e a noticia, mettia-lhe susto, fal-o-hia esperar uma revellação mui diversa da realidade, de geito que a realidade seria um beneficio. Puxadas duas fumaças:

— Estou com meu plano de liquidar o negocio; fallaram-me ahi para uma casa bancaria logar de diretor, e creio que acceito.

— Pois sim; liquidar já?

— Não, lá para o fim do anno que vem.

— E é preciso liquidar?

— Cá para mim, é. Se a historia do banco não fosse segura, não me animaria a perder o certo pelo duvidoso; mas é segurissima.

— Então no fim do anno que vem soltamos os laços que nos prendem...

Palha tossiu.

— Não, antes, no fim deste anno.

Rubião não entendeu; mas o socio explicou-lhe que era util desligarem já a sociedade, afim de que elle sósinho liquidasse a casa. O banco podia organizar-se mais cedo ou mais tarde; e para que sujeitar o outro as exigencias da occasião? Demais, o Dr. Camacho affirmava que, em breve, Rubião estaria na camara, e que a quéda do Itaborahy era certa.

— Seja o que fôr, concluiu; é sempre melhor desligarmos a sociedade com tempo. Você não vive do commercio; entrou com o capital necessario ao negocio, — como podia dal-o a outro ou guardal-o.

— Pois sim, não tenho duvida, concordou o Rubião.

E depois de alguns instantes:

— Mas diga-me uma cousa, essa proposta traz algum motivo occulto? é rompimento de pessoas, de amizade... Seja franco, diga tudo...

— Que caraminhola é essa? redarguiu o Palha. Separação de amizade, de pessoas... Mas você está tonto isto é do balanço do mar. Pois eu, que tenho trabalhado tanto por você, eu que o faço amigo dos meus amigos, que trato como um parente, como um irmão, havia de brigar á tôa? Aquelle mesmo casamento de Maria Benedicta com o Carlos Maria devia ser com você, bem sabe, se não fosse a sua recusa. A gente póde romper um laço sem romper os outros. O contrario seria desproposito. Então todos os amigos de sociedade ou de familia são socios de commercio? E os que não forem commerciantes?

Rubião achou excellente a razão, e quiz abraçar o Palha. Este apertou-lhe a mão satisfeitissimo; ia vêr-se livre de um socio, cuja prodigalidade crescente podia trazer-lhe algum perigo. A casa estava solida; era facil entregar ao Rubião a parte que lhe pertencesse, menos as dividas pessoaes e anteriores. Restavam ainda algumas daquellas que o Palha confessou á mulher, na noite de Santa Thereza, cap. L. Pouco tinha pago; geralmente era o Rubião que abanava as orelhas ao assumpto. Um dia, o Palha, querendo dar-lhe á fôrça algum dinheiro, repetiu o velho proverbio: "Paga o que deves, vê o que te fica". Mas o Rubião, gracejando:

— Pois não pagues, e vê se te não fica ainda mais.

— É bôa! redarguiu o Palha rindo e guardando o dinheiro no bolso.

CXXX

Não havia banco, nem logar de diretor. nem liquidação; mas, como justificaria o Palha a proposta de separação, dizendo a pura veverdade? Dahi a invenção, tanto mais prompta, quanto o Palha tinha amor aos bancos, e morria por um. A carreira daquelle homem era agora, mais do que nunca, prospera e vistosa. O negocio corria-lhe largo; um dos motivos da separação era justamente não ter que dividir com outro os lucros futuros. Palha, além do mais, possuia ações de toda a parte, apólices de ouro do emprestimo Itaborahy, e fizera uns dons fornecimentos para a guerra, de sociedade com um poderoso, nos quaes ganhou muito. Já trazia apalavrado um architecto para lhe construir um palacete. Vagamente pensava em baronato.

CXXXI

— Quem diria que a gente do Palha nos trataria deste modo? Já não valemos nada. Excusa de os defender...

— Mas não defendo, explico; ha de ter havido confusão.

— Fazer annos, casar a prima, e nem um triste convite ao major, ao grande major, ao impagavel major, ao velho amigo major. Eram os nomes que me davam; eu era impagavel, amigo velho, grande e outros nomes. Agora, nada, nem um triste convite, um recado de boca, ao menos, por um moleque: "Nhanhá faz annos, ou casa a prima, diz que a casa está ás suas ordens, e que vão com luxo." Não iriamos: luxo não é para nós. Mas era alguma cousa, era recado, um moleque, ao impagavel major...

— Papae!

Rubião, vendo a intervenção de D. Tonica, animou-se a defender longamente a familia Palha. Era em casa do major, não já na rua Dous de Dezembro, mas na dos Barbonos, modesto sobradinho. Rubião passava, elle estava á janella, e chamou-o. D. Tonica não teve tempo de sair da sala, para dar, ao menos, uma vista d'olhos ao espelho; mal pôde passar a mão pelo cabello, compôr o lenço ao pescoço e descer o vestido para cobrir os sapatos, que não eram novos.

— Digo-lhe que póde ter havido confusão, insistiu Rubião; tudo anda por lá muito atrapalhado com esta commissão das Alagoas.

— Lembra bem, interrompeu o major Sequeira; porque não metter na minha filha na commissão das Alagoas? Qual! já muito que reparo nisto; antigamente não se fazia festa sem nós. Nós eramos a alma de tudo. De certo tempo para cá começou a mudança; entraram a receber-nos friamente, e o marido, se pode esquivar-se, não me falla na rua. Isto começou ha tempos; mas antes disso sem nós é que não se fazia nada. Que está o senhor a fallar de confusão? Pois se na vespera dos annos della, já desconfiando que não nos convidariam, fui ter com elle ao armazem. Poucas palavras, por mais que lhe perguntasse por D. Sophia; disfarçava. Afinal disse-lhe assim: "Hontem, lá em casa, eu e Tonica estivemos discutindo sobre a data dos annos de D. Sophia; ella dizia que tinha passado, eu disse que não, que era hoje ou amanhã." Não me respondeu, fingiu que estava absorvido em uma conta, chamou o guarda-livros, e pediu explicacões. Eu entendi o bicho, e repeti a historia; fez a mesma cousa. Sahi.

Ora o Palha, um pé-rapado! Já o envergonho. Antigamente: major, um brinde. Eu fazia muitos brindes, tinha certo desembaraço. Jogavamos o voltarete. Agora está nas grandezas; anda com gente fina. Ah! vaidades deste mundo! Pois não vi outro dia a mulher delle, n'um coupé, com outra? A Sophia de coupé!

Fingiu que me não via, mas arranjou os olhos de modo que percebesse se eu a via, se a admirava. Vaidades desta vida! Quem nunca comeu azeite, quando come se lambusa.

— Perdão, mas os trabalhos da commisão exigem certo apparato.

— Sim, acudiu Sequeira, é por isso que minha filha não entrou na commissão; é para não estragar as carruagens...

— Demais, o coupé podia ser da outra senhora que ia com ella.

O major deu dous passos, com as mãos atraz e parou deante de Rubião.

— Da outra... ou do padre Mendes. Como vae o padre? Boa vida, naturalmente.

— Mas, papae, póde não haver nada, interrompeu D. Tonica. Ella sempre me trata bem, e quando estive doente no mez passado, mandou saber pelo moleque, duas vezes...

— Pelo moleque! bradou o pae. Pelo moleque. Grande favor! "Moleque, vae alli á casa daquelle reformado e pergunta lhe se a filha tem passado melhor; não vou, porque estou lustrando as unhas!" Grande favor! Tu não lustras as unhas! tu trabalhas! Tu és digna filha minha! pobre, mas honesta!

Aqui o major chorou, mas suspendeu de repente as lagrimas. A filha, commovida, sentiu-se tambem vexada. Certo, a casa dizia a pobreza da família, poucas cadeiras, uma meza redonda velha, um canapé gasto; nas paredes duas litographias encaixilhadas em pinho pintado de preto, um era o retrato do major em 1857, a outra representava o Veronez em Veneza, comprado na rua do Senhor dos Passos. Mas o trabalho da filha transparecia em tudo; os moveis reluziam de asseio, a meza tinha um panno de crivo, feito por ella, o canapé urna almofada. E era falso que D. Tonica não lustrasse as unhas; não teria o pó nem a escova, mas acudia-lhes com um retalho de panno todas as manhãs.

(Continúa.)

CXXXII

Rubião tratou-os com sympathia. Não continuou a defender a gente Palha, para não desesperar o major, e fallou do exercito. Pouco depois, despediu se, promettendo, sem convite, que lá iria jantar "um dia destes".

— Jantar de pobre, acudiu o major; se puder avisar, avise,

— Não quero banquetes; virei quando me der na cabeça.

Despediu-se. D. Tonica, depois de ir até o patamar, sem chegar á frente por causa dos sapatos, foi á janella para vel-o sair, e acompanhal-o com os olhos.

CXXXII

Logo que Rubião dobrou a esquina da rua das Mangueiras, D. Tonica entrou e foi ao pae, que se estendera no canapé, para reler o velho Saint-Clair das ilhas ou os desterrados da ilha da Barra. Foi o primeiro romance que conheceu; o exemplar tinha mais de vinte annos; era toda a bibliotheca do pae e da filha. Siqueira abriu o primeiro volume, e deitou os olhos ao começo do cap. II, que já trazia de cór. Achava-lhe agora um sabor particular, por motivo dos seus recentes desgostos: "Enchei bem os vossos copos, exclamou Saint-Clair, e bebamos de uma vez; eis o brinde que vos proponho. Á saude dos bons e valentes opprimidos, e ao castigo dos seus oppressores. Todos acompanharam Saint-Clair, e foi de roda a saude."

— Sabe de uma cousa, papae? Papae compra amanhã latas de conserva, petit-pois, peixe, etc. e ficam guardadas. No dia em que elle apparecer para jantar, põe-se no fogo, aquillo cosinha depressa, e daremos um jantarzinho melhor.

— Mas eu só tenho o dinheiro do teu vestido.

— O meu vestido? Compra-se no mez que vem, ou no outro. Eu espero.

— Mas não ficou ajustado?

— Desajusta-se; eu espero.

— E se não houver outro do mesmo preço?

— Hade haver; eu espero, papae.

CXXXIII

Ainda não disse, — porque os capitulos atropellam-se debaixo da penna, — mas aqui está um para dizer que, por aquelle tempo, as relações de Rubião tinham crescido em numero. Camacho puzera-o em contacto com alguns homens politicos, a commissão das Alagoas com varias senhoras, os bancos e companhias com pessoas do commercio e da praça, os theatros com muitos frequentadores e a rua do Ouvidor com toda a gente. Já então era um nome repetido. Conhecia-se o homem. Quando appareciam as barbas e o par de bigodes longos, uma subrecasaca bem justa, um peito largo, bengala de unicornio, e um andar firme e senhor, dizia-se logo que era o Rubião, — um ricaço de Minas.

Tinham-lhe feito uma lenda. Diziam-n'o discipulo de um grande philosopho, que lhe legára immensos bens, — um, tres, cinco mil contos. Extranhavam alguns que elle não fallasse nunca de philosophia, mas a lenda explicava esse silencio pelo proprio methodo philosophico do mestre, que consistia em estudar e ensinar aos homens de boa vontade. Onde estavam esses discipulos? Iam á casa delle, todos os dias, — alguns duas vezes, de manhã e de tarde; e assim ficavam definidos os comensaes. Não seriam discipulos, mas eram de boa vontade. Roiam fome, á espera, e ouviam calados e risonhos os discursos do amphytrião. Entre os antigos e os novos (cresciam em numero), houve tal ou qual rivalidade, que os antigos accentuaram bem, mostrando maior intimidade, dando ordens aos criados, pedindo charutos, indo ao interior, assobiando, etc. Mas o costume os fez supportaveis entre si, e todos acabaram na doce e commum confissão das qualidades do dono da casa. Ao cabo de algum tempo, tambem os novos lhe deviam dinheiro, ou em especie, — ou em fiança no alfaiate, ou endosso de lettras, que elle pagava ás escondidas, para não vexar os devedores.

Quincas Borba andava ao collo de todos. Davam estalinhos, para vel-o saltar, alguns iam até a beijar-lhe a testa; um delles, mais habil, achou modo de o ter á mesa, ao jantar ou almoço, sobre as pernas, para lhe dar migalhas de pão.

— Ah! isso não! protestou Rubião á primeira vez.

— Que tem? retorquiu o comensal. Não ha pessoas extranhas.

Rubião reflectiu um instante.

— Verdade é que está ahi dentro um grande homem, disse elle.

— O philosopho, o outro Quincas Borba, continuou o conviva, circulando o olhar pelos novatos, para mostrar a antiguidade das relações entre elle e Rubião; mas, não logrou sosinho a vantagem, porque os outros amigos da mesma éra, repetiram, em coro:

— É verdade, o philosopho.

E Rubião explicou aos novatos a allusão ao philosopho, e a razão do nome do cão, que todos lhe attribuiam. Quincas Borba (o defuncto) foi descripto e narrado como um dos maiores homens do tempo, — superior aos seus patricios. Grande philosopho, grande alma, grande amigo. E no fim, depois de algum silencio, batendo com os dedos do rebordo da meza, Rubião exclamou:

— Eu o faria ministro de Estado!

Um dos convivas exclamou, sem convicção, por simples officio:

— Oh! sem duvida!

Nenhum daquelles homens sabia, entretanto, o sacrificio que lhes fazia o Rubião. Recusava jantares, passeios, interrompia conversações apraziveis, só para correr a casa e jantar com elles. Um dia achou meio de conciliar tudo. Não estando elle em casa ás seis horas em ponto, os criados deviam pôr o jantar para os amigos. Houve protestos; não, senhor, esperariam até sete ou oito horas. Um jantar sem elle não tinha graça.

— Mas é que posso não vir, explicou Rubião.

Assim se cumpriu. Os convivas ajustaram bem os relogios pelos da casa de Botafogo. Davam seis horas, todos á mesa. Nos dous primeiros dias houve tal ou qual hesitação; mas os criados tinham ordens severas. Ás vezes, Rubião chegava pouco depois. Eram então risos, ditos, intrigas alegres. Um queria esperar, mas os outros... Os outros desmentiam o primeiro; ao contrario foi este que os arrastou, tal fome trazia, — a ponto que, se alguma cousa restava, eram os pratos. E Rubião ria com todos

CXXXIV

Fazer um capitulo só para dizer que, a principio, os convivas, ausente o Rubião, fumavam os proprios charutos, depois do jantar, -— parecerá frivolo aos frivolos; mas os considerados dirão que algum interesse haverá nesta circumstancia em apperencia minima.

De feito, uma noite, um dos mais antigos lembrou-se de ir ao gabinete de Rubião; lá fôra algumas vezes, alli se guardavam as caixas de charutos, não quatro nem cinco, mas vinte e trinta de varias fabricas e tamanhos, muitas abertas. Um criado (o espanhol) accendeu o gaz. Os outros convivas seguiram o primeiro, escolheram charutos e os que ainda não conheciam o gabinete admiraram os moveis bem feitos e bem dispostos. A secretária captou as admirações geraes; era de ebano, um primor de talha, obra severa e forte. Uma novidade os esperava: dous bustos de marmore, postos sobre ella, os dous Napoleões, o primeiro e o terceiro.

— Quando veiu isto?

— Hoje ao meio dia, respondeu o criado.

Dous bustos magnificos. Ao pé do olhar aquilino do tio, perdia-se no vago o olhar scismatico do sobrinho. Contou o criado que o amo, apenas recebidos e collocados os bustos, deixara-se estar grande espaço em admiração, tão deslembrado do mais, que elle pode miral-os tambem, sem admiral-os. — No me dicem nada estos dos pícaros, concluiu o criado fazendo um gesto largo e nobre.

CXXXV

Rubião fazia emprestimos anonymos. Livros que lhe eram dedicados, entravam para o prelo com a garantia de duzentos e trezentos exemplares, porque o nosso amigo, senão sabia a arte, não a desestimava. Tinha diplomas e diplomas de sociedades litterarias, coreographicas, pias, e era juntamente socio de uma Congregação Catholica e de um Gremio Protestante, sem se lembrar de um quando lhe fallaram do outro; o que fazia era pagar regularmente as mensalidades de ambos. Assignava jornaes sem os ler. Um dia, ao pagar o semestre de um, que lhe haviam mandado, é que soube, pelo cobrador, que a folha, defendia o governo; mandou o cobrador ao diabo.

CXXXVI

O cobrador não foi ao diabo; recebeu o preço do semestre, e, como possuia a observação natural dos cobradores, resmungou na rua:

— Ora aqui está um homem que detesta a folha e paga. Quantos a adoram e não pagam!

(Continúa.)

CXXXVII

Mas — ó lance da fortuna! ó equidade da natureza! — os desperdícios do nosso amigo, se não tinham remedio, tinham compensação. Já o tempo não passava por elle como por um vadio sem ideias. Rubião, á falta de ideias, tinha agora imaginação. Outr'ora vivia mais dos outros que de si, não achava equilibrio interior, e o ocio esticava as horas, que não acabavam mais. Tudo ia mudando; agora a imaginação, que, a relampagos, lhe apparecia ultimamente, tendia a pousar um pouco. Sentado na loja do Bernardo, gastava toda uma manhã, sem que o tempo lhe trouxesse fadiga, nem a estreiteza da rua do Ouvidor lhe tapasse o espaço. Repetiam-se as visões deliciosas, como as das bodas (Cap. LXXXI) em termos a que a grandeza não tirava a graça. Houve quem o visse, mais de uma vez, saltar da cadeira e ir até á porta ver bem pelas costas alguma pessoa que passava. Conhecel-a-hia? Ou seria alguem que, casualmente, tinha as feições da creatura imaginaria que elle estivera mirando? São perguntas de mais para um só capitulo; basta dizer que uma dessas vezes nem passou ninguem, elle proprio reconheceu a illusão, voltou para dentro, comprou uma teteia de bronze para dar á filha do Camacho, que fazia annos, e ia casar em breve, e saiu.

CXXXVIII

E Sophia? interroga impaciente a leitora, tal qual Orgon: Et Tartuff? Ai, amiga minha, a resposta é naturalmente a mesma, — tambem ella comia bem, dormia largo e fofo, — cousas que, aliás, não impedem que uma pessoa ame, quando quer amar. Se esta ultima reflexão é o motivo secreto da vossa pergunta, deixai que vos diga que sois muito indiscreta, e que eu não me quero senão com dissimulados.

Repito, comia bem, dormia largo e fofo. Chegára ao fim da commissão das Alagoas, com elogios da imprensa; a Atalaia chamou-lhe "o anjo da consolação". E não se pense que este nome a alegrou, posto que a lisongeasse; ao contrario, resumindo em Sophia toda a acção da caridade, podia mortificar as novas amigas, e fazer-lhe perder em um dia o trabalho de longos mezes. Assim se explica o artigo que a mesma folha trouxe no numero seguinte, nomeando, particularmente e glorificando as outras commissarias — "estrellas de primeira grandeza".

Nem todas as relações subsistiram, mas a maior parte dellas estavam atadas, e não faltava á nossa dona o talento de as tornar definitivas. O marido é que peccava por turbulento, excessivo, derramado, dando bem a ver que o cumulavam de favores, que recebia finezas inesperadas e quasi immerecidas. Sophia, para emendal-o, vexava-o com censuras e conselhos, rindo:

— "Você esteve hoje insuportavel; parecia um criado".

— "Christiano, fique mais senhor de si, quando tivermos gente de fora, não se ponha com os olhos fóra da cara, saltando de um lado para outro, assim com ar de criança que recebe doce..."

Elle negava, explicava ou justificava-se; afinal, concluia que sim, que era preciso não parecer estar abaixo dos obsequios; cortezia, affabilidade, mais nada...

— Justo, mas não vas cahir no extremo opposto, acudiu Sophia; não vás ficar casmurro...

Palha era então as duas cousas; casmurro, a principio, frio, quasi desdenhoso, fallando pouco, apenas respondendo. Mas, ou a reflexão, ou o impulso inconsciente, restituia ao nosso homem a onimação habitual, e com ella, segundo o momento, a demasia e o estrepito. Sophia é que, em verdade, corrigia tudo. Observava, imitava. Necessidade e vocação fizeram-lhe adquirir, aos poucos, o que não trouxera do nascimento nem da fortuna. E tanto assimilava como attrahia. Ao demais, estava naquella edade média em que as mulheres inspiram egual confiança ás sinhásinhas de vinte e ás sinhás de quarenta. Algumas morriam por ella; muitas a cumulavam de louvores.

Foi assim que a nossa amiga, pouco a pouco, trocou de atmosphera. Cortou as relações antigas, familiares, algumas tão intimas que difficilmente se poderiam dissolver; mas a arte de receber sem calor, ouvir sem interesse e despedir-se sem saudade, não era das suas menores prendas; e uma por uma, se foram indo as pobres creaturas modestas, sem maneiras, nem vestidos, amizades de pequena monta, de pagodes caseiros, de habitos singelos e sem elevação. Com os homens das velhas relações, fazia exactamente o que o major contara, quando elles a viam passar de carruagem, — que era sua, — entre parenthesis. A differença é que já nem os espreitava para descobrir se a viam e se a invejavam. Passára a lua de mel da grandeza; agora torcia os olhos duramente para outro lado, conjurando, de um gesto definitivo, o perigo de alguma hesitação. Punha assim os velhos amigos na obrigação de lhe não tirarem o chapéo. Como eram poucos, foi breve a empreza.

(Continúa.)

CXXXIX

Rubião ainda quiz valer ao major, major o ar de fastio com que Sophia o interrompeu foi tal, que o nosso amigo preferiu perguntar-lhe se, não chovendo na seguinte manhã, iriam sempre passear á Tijuca.

— Já fallei a Christiano; disse-me que tem um negocio, que fique para domingo que vem.

Rubião, depois de um instante:

— Vamos nós dous. Sahimos cedo, passeamos, almoçamos lá; ás tres ou quatro horas estamos de volta...

Sophia olhou para elle, com tamanha vontade de acceitar o convite, que Rubião não esperou resposta verbal.

— Está assentado, vamos, disse elle.

— Não.

— Como não?

E repetiu a pergunta, porque Sophia não lhe quiz explicar a negativa, aliás, tão obvia. Obrigada a fazel-a, ponderou que o marido ficaria com inveja, e era capaz de adiar o negócio só para ir tambem Não queria atrapalhar os negócios delle, e podiam esperar oito dias. O olhar de Sophia acompanhava essa explicação, como um clarim acompanharia um padre-nosso. Vontade tinha, oh! se tinha vontade de ir na manhã seguinte, com Rubião, estrada acima, bem posta no cavallo, não scismando á toa, nem poetica, mas valente, fogo na cara, toda deste mundo, galopando, trotando, parando. Lá no alto, desmontaria algum tempo; tudo só; a cidade ao longe e o ceu por cima. Encostada ao cavallo, penteando-lhe as crinas com os dedos, ouviria Rubião louvar-lhe a affonteza e o garbo... Chegou a sentir um beijo na nuca... Estremeceu; tinha as faces encarnadas.

CXL

Pois que se trata de cavallos, não fica mal dizer que a imaginação de Sophia era agora um corsel brioso e petulante, capaz de galgar morros e desbravar mattos. Outra seria a comparação, se a masião fosse differente; mas corsel é o que vae melhor. Traz a ideia do impeto, do sangue, da disparada, ao mesmo tempo que a da serenidade com que torna ao caminho recto, e por fim á cavallariça.

CXLI

— Está dito, vamos amanhã, repetiu Rubião, que espreitava o rosto acceso de Sophia.

Mas o corsel tornára fatigado da carreira, e deixou-se estar somnolento na cavallariça. Sophia era já outra; passára a vertigem da corrida o ardor sonhado, o imaginado gesto de galgar com elle a estrada da Tijuca. Dizendo-lhe Rubião que fallaria ao marido para que a deixasse ir ao passeio, redarguiu sem alma:

— Está tonto! Fica para o domingo que vem!

E fixou os olhos no trabalho de linha que fazia, — frioleira é o nome, — emquanto Rubião voltava os seus para um trechosinho de jardim mofino, ao pé da saleta de trabalho onde estavam. Sophia, sentada no angulo da janella, trancou-se em si mesma. Rubião viu em duas rosas vulgares uma festa imperial, e esqueceu a sala, a mulher e a si. Não se póde dizer, ao certo, que tempo estiveram assim calados, alheios e remotos um do outro. Foi uma criada que os accordou, trazendo-lhes café; eram duas horas da tarde. Bebido o café, Rubião concertou as barbas, tirou o relogio e despediu-se. Sophia, que cogitava no modo de vel o sair, ficou satisfeita, mas encobriu n gosto com o espanto.

— Já!

— Preciso de fallar a um sujeito antes das tres horas, explicou Rubião Estamos entendidos; passeio de amanhã gorado Vou mandar desavisar os cavallos. Mas será certo no domingo que vem?

— Certo, certo, não posso affirmar; mas resolvendo-se em tempo o Christiano, creio que sim. Sabe que meu marido é o homem dos impedimentos.

Sophia acompanhou-o até á porta; estendeu-lhe a mão indifferente, respondeu sorrindo alguma cousa chocha, tornou á salinha em que trabalhava, — ao mesmo angulo, — da mesma janella. Não continuou logo o trabalho, poz uma perna sobre outra, fazendo descer, por habito, a saia do vestido, e lançou uma olhada ao jardim, onde as duas rosas tinham dado ao nosso amigo uma visão imperial. Sophia não viu mas que duas rosas mudas. Fitou-as não obstante, algum tempo; em seguida, pegou da frioleira, trabalhou um pouco, deteve-se outro pouco, deixando as mãos no regaço; e voltou á obra, outra vez, para tornar a deixal-a. De repente, levantou-se e atirou linhas e agulhas á cestinha de junco, onde guardava outros pretextos de trabalho. A cesta era ainda uma lembrança de Rubião!

— Que homem aborrecido!

Dalli foi encostar-se á janella, que dava para o jardim mofino, onde iam murchando as duas rosas vulgares. Rosas, quando recentes, importam-se pouco ou nada com as coleras dos outros; mas se definham, tudo lhes serve para vexar a alma humana. Quero crer que este costume nasce da brevidade da vida. "Para as rosas, escreveu Fontenelle, o jardineiro é eterno." E que melhor maneira de ferir o eterno que mofar das suas iras? Eu passo, tu ficas; mas eu não fiz mais que florir e aromar, servi a donas e a donzellas, fui lettra de amor, ornei a botoeira dos homens, ou expiro no proprio arbusto, e todas as mãos, e todos os olhos-me trataram e me viram com admiração e affecto. Tu não, ó eterno? tu zangas te, tu padeces, tu choras, tu affliges-te; a tua eternidade não vale um só dos meus minutos.

Assim quando Sophia chegou á janella que dava para o jardim, ambas as rosas riram-se a petalas despregadas. Uma dellas disse que era bem feito! bem feito! bem feito!

— Tens razão em te zangares, formosa creatura, acrescentou, mas hade ser comtigo, não com elle. Elle que vale? Um triste homem sem encantos, póde ser que bom amigo, e talvez genéroso, mas repugnante, não? E tu, requestada de outros, que demonio te leva a dar ouvidos a esse intruso da vida? Humilha-te, ó suberba creatura, porque és tu mesma a causa do teu mal Tu juras esquecel-o, e não o esqueces. E é preciso esquecel-o? Não te basta fital-o, escutal-o, para desprezal-o? Esse homem não diz cousa nenhuma, ó singular creatura, e tu...

— Não é tanto assim, interrompeu a outra rosa, com a voz ironica e descançada; elle diz alguma cousa, e dil-a desde muito, sem desapprendel-a, nem trocal-a; é firme, esquece a dor, crê na esperança. Toda a sua vida amorosa é como o passeio á Tijuca, de que vocês fallavam ha pouco: "Fica para o domingo que vem!" Eia, piedade ao menos; sê piedosa, ó bonissima Sophia! Se hasde amar a alguem, fóra do matrimonio, ama o a elle, que te ama e é discreto. Anda, arrepende-te do gesto de ha pouco. Que mal te fez elle, e que culpa lhe cabe se ás bonita? E quando haja culpa, a cesta é que a não tem, só porque elle a comprou, e menos ainda as linhas e as agulhas que tu mesma mandaste comprar pela criada. Tu és má, Sophia, és injusta. Carlos Maria...

(Continúa.)

CXLII

Sophia estremeceu. Mas então as rosas fallavam alto? Não, senhor; ella á que ia fazendo de si para si os mesmos discursos das duas flores pallidas. Há desses acertos maravilhosos. Quem conhece o solo e o subsolo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, são ricos de ideais ou de sentimentos, quando nós tambem o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as cousas compõem um dos mais bellos phenomenos da terra. A expressão: "Conversar com os seus botões", parecendo simples metaphora, é phrase de sentido real e directo. Os botões operam synchronicamente comnosco, e, sendo numerosos, formam uma especie de senado, commodo e barato, que vota sempre as nossas moções.

Assim se combina, meu rico senhor, a inveja senil das rosas e o echo da alma de Sophia. Coincidencia de conceitos.

CXLIII

Durante a seguinte semana, Rubião deixou de ir ao Flamengo, Sophia resolveu tratal-o mal, como nos peores dias, — ou para vencer-se a si propria, e acabar de uma vez com tal preoccupação, — ou para castigal-o da ausencia. Os dous motivos destroem-se, mas por isso mesno é que são della e da situação.

CXLIV

Tempo houve em que, sem acceitar o homem, não o cedia Maria Benedicta; agora a prima e ella faziam uma só creatura. Já cedia, já recuava. Tal hora havia de peccado; batia depois a da virtude, ou da abstenção, ou da repugnancia, — e a mulher mudava com ella. Se chegava a fazer parar o ponteiro na hora da virtude, vinha o diabo e punha a andar a pendula. Que havia naquelle homem que assim a aturdia? Não era mais attrahente que outros que a resquestavam, não tinna a familia de uns, nem as maneiras de outros, nem o renome, nem a edade de muitos. Tinha o passado, a intimidade, o amor constante e discreto; eram algumas partes de caminho andadas. O caminho é que parecia eterno.

CXLV

A hora do domingo proximo devia ser de abstenção, de seccura, senão de despreso. Rubião, que nem pensava nisso, apeou-se do cavallo, entregou o ao escravo que segurava os outros dous, defrontte da casa do Palha, e caminhou para a porta, onde estava Sophia, sosinha, calçando as luvas de camurça. Estendeu-lhe a mão e sentiu quebrarem-se-lhe os dedos; levantou os olhos para os de Sophia, como a pedir-lhes misericordia, achou-os fitos nele, serios e escancarados. Estava mais linda que nunca. Desde muitos annos não cavalgava; ficava-lhe bem o vestido de cavalleira, mormente o corpinho, tentador de justeza — o chapéo alto e masculo, e o chicote. Othelo exclamaria: "Oh! minha bella guerreira!" Rubião, menos mouro, menos general, menos Shakspeare, limitou-se a isto: "A senhora é um anjo!"

— Que tal acha a cavalleira? perguntou de repente o Palha, vindo de dentro.

— Por ora não digo nada, respondeu Rubião, mas se corresponder ao que parece, deve ser magnifica.

— Bravo! retorquiu o outro; eis o que se chama combinar a consciencia com o elogio previo. Pois digo-lhe que vae ver como se domina um cavallo. Referia-me, entretanto, á figura. Creio que não lhe fica mal a amazona.

— Ao contrario!

— Excellente é a minha opinião, continuou o Palha. Desde a copa do chapéo até á ponta da bota; porque escondes os pés Sophia? Veja toda esta figura. Dá vontade de acclamal-a rainha ou imperatriz.

Rubião mudou inteiramente de rosto. Porta, cavallos, praia, o amigo, a amiga, os criados, os visinhos que espiavam das janelas a sahida dos cavalleiros, tudo deeappareceu repentinamente para dar logar a um expectaculo sumptuoso e diverso, mal definido. Se ficou algum cavallo não era para ir á Tijuca, nem para receber uma simples plebéa. Rainha ou imperatriz? Imperatriz é o que lhe cabia. E Rubião deu-lhe logo o nome; — não podia ser senão Eugenia; imperatriz Eugenia.

— Justo, disse o Palha.

E voltando-se para a mulher:

— Estou ás ordens de Vossa Majestade.

— Vamos, é tarde: ordenou Sophia.

Quando a realidade tornou ao seu primeiro aspecto, Rubião esquecera o incidente da praia do Flamengo; cavalgavam ainda perto, rua dos Arcos, Sophia adeante, porque o seu cavallo sahira da linha, a meio galope. A dama conseguiu sofreal-o, e pôl-o a passo curto, á espera que os outros se lhe chegassem. A culpa foi naturalmente do cavallo; mas trouxe duas vantagens á cavaleira, mostrar o meneio do corpo, a distancia, durante alguns minutos, — e a arte de equitação que possuia. Rubião não occultou o seu enthusiasmo ao marido:

— É uma perfeição!

— Monta muito hem, assentiu o Palha. E depois veja aquella linha do corpo; repare no movimento gracioso com que vae jogando...

(Continúa.)

CXLVI

Rubião ouviu sem alvoroço as palavras do marido de Sophia, que não foram só aquellas, mas muitas outras, todas crescendo em admiração e vaidade. Tambem elle contemplava a cavalleira, mas espiritualmente. Não lhe lembrava a terra nem os seus deleites; não tinha aquelle furor com que um dia lhe beijara a palma da mão. Sophia era agora uma figura de sonho, diaphana, feita de luz electrica, não dessa electricidade grosseira e inferior, que serve para lampeões e outros misteres, mas de uma muito mais fina e branca, purissima e inapplicavel, que a sciencia não achará tão cedo, e póde ser que não ache nunca. Não cuideis que isto seja poesia. Crede antes que, achando se muito acima dos homens, Rubião tinha o olhar espiritual das estrellas.

CXLVII

Quando Sophia se deixou alcançar por elles, o marido quiz imital-a, largou a redea, e picou o cavallo, que deitou a correr. Sophia e Rubião foram seguindo a passo; mas a primeira sentia-se mal, quasi não ouvia os louvores que o outro fazia aos seus talentos equestres. Recordava-se da Palavra de Rubião á porta de casa: "A senhora é um anjo" e temia que elle a repetisse ou commentasse. Que faria então? Reprehendel-o? Absolvel-o? Uma cousa que pudesse valer por ambas, — ou nada, que era melhor; fingiria não ouvir, como podia dizer que nada ouvira na praia do Flamengo.

Todas essas ideias gastaram tres minutos em nascer, viver e         morrer. Sophia, vendo que elle se calára, deu-se pressa em fallar de assumpto alheio e remoto.

— Conhece o noivo da filha do Dr. Camacho?

— É um engenheiro, Tobias Carlos Ramalho, moço distincto.

— Recebemos o convite hontem; o Dr. Camacho disse a meu marido de manhã, que ia casar Nicota, e á noite recebemos o convite official.

Meu marido em logar de Christiano, que era a referencia habitual, devia causar algum espanto ao Rubião, se elle não elle estivesse pensando justamente no noivado.

— Sabe que estive para casar com ella?

— O senhor?

— É verdade. O Dr. Camacho, confessou-me que casava a filha contra a vontade, porque o seu gosto e o seu plano era que eu fosse seu genro. Não fallou mal do noivo; ao contrário, disse-me que era pessoa muito de bem, mas preferia-me. Quando menos esperava, surgiu a candidatura do engenheiro. Elle ainda quiz dissuadir a filha, mas a menina teve um attaque.

Sophia lembrou-se de Maria Benedicta e dos projectos do marido para casal-a com Rubião. Teria tido o Dr. Camacho egual projecto, agora que os bens de Rubião se iam consumindo todos os dias? Não pode explicar este ponto. A recordação da prima trouxe-lhe a de Carlos Maria, e fel-a estremecer toda. Amor não era nem ciumes; mas sempre que lhe acontecia pensar nelle, sentia um singular abalo, — como se dissesse-mos os movimentos de um feto no utero do peccado, ou por outros termos naturaes, uma simples e forte curiosidade do mal, fosse elle judeu ou gentio. Pedro ou Paulo. Estremeceu e olhou para o Rubião.

— A senhora sabe, continuou elle, depois de affagar o pescoço do cavallo, que aquelle homem é meu amigo, grande amigo, grande sabio, e grande orador. Canta um pouco quando faz discurso, — já o ouvi em brindes de jantar, — mas é um cantar engraçado, e depois tem uma doçura na voz que parece mel. Quando me contou o negocio, e o attaque da filha, disse-lhe que não consentia em estar acabrunhando a pobre moça por causa de uma ideia, que eu agradecia, — mas que podia ser dispensada. Antes de tudo, o amor, não acha?

Sophia respondeu que sim. Durante esse tempo, o marido, sempre a trote largo, tinha dobrado a esquina da primeira rua, e Sophia achou-se sosinha com o Rubião. A principio, teve ideia de convidal-o a galopar, até alcançarem o Palha; mas a voz morreu lhe na garganta. Não fazia mal, pensava ella; e deixou ir o cavallo a passo. Um cavallo! um cavallo! meu reino por um cavallo! A differença entre Ricardo III e a Virtude é que esta não daria nunca o reino por um cavallo, — ou não seria a Virtude; e foi o cavallo que lhe salvou o reino. Minutos depois, Sophia tornava á par interior, e perguntava sem interesse ao Rubião!

— Parece-lhe então que esse Dr. Camacho é um grande homem?

Rubião reflectiu um instante.

— Ha maiores, respondeu; mas é sempre um grande homem.

— A filha é que não me parece lá muito bonita..

— Não, de certo; mas é engraçada. Afinal, todas se casam, bonitas ou feias. Questão de sympathia. Veja que o proprio engenheiro, embora seja moço de talento, não é um Adonis... Creio que é Adonis que se diz, quando se quer fallar de um moço de talento? E porque é que se diz este nome?

Sophia, não sabendo a origem do nome, chicoteou o cavallo, que deu tres pulos adeante. Depois tornando ao passo:

— O cavallo ia cochilando, disse ella; era preciso espertal-lo. Mas é bom como ouro. Onde é que descobriu essa prenda?

— Não lhe digo; mas gosta delle?

Sophia viu a imminencia de uma offerta, e quiz arredal-a. Em verdade, o cavallo era hom. Sentia-o debaixo de si, cheio de calor, repleto de força, mimoso de graça...

— Belleza não lhe falta, disse ella alto ao Rubião. E logo, apressadamente: mas tem grandes defeitos.

Que defeitos? ia dizer Rubião, mas já a cavalleira espertava o animal e chegava ao marido, que, a pequena distancia, os esperava. Rubião ainda uma vez admirou o garbo da figura, rija, erecta, dominadora e bem fallante. Um cavallo! um cavallo! meu reino por um cavallo!

CXLVIII

Para que ensanguentar esta pagina? Não, deixemol-a assim, alva, com algumas linhas de tinta, para dizer apenas que na subida da Tijuca, Sophia deu uma quéda. Não se sabe como aquillo foi Iam ouvindo as reminiscencias do Palha, que contava os passeios dados alli, em solteiro, quando o cavallo de Sophia empinou; ella quiz soffreal-o, depois castigal-o, para mostrar que não tinha medo; foi peor. O animal deu quatro ou cinco saltos; Palha, sabendo que a mulher montava bem, deteve-se ante o expectaculo, mas Rubião, receiando algum desastre, apeou-se rapidamente.

— Deixe, não seja medroso, bradou o Palha; ella é valente como trinta diabos.

Rubião chegou a lançar a mão ao freio, mas já então o cavallo enraivecido, cuspira de si a cavalleira. Correu a ella. Não lhe deu a mão, para ajudal-a a erguer-se; ajoelhou-se, abarcou-a com o braço, roçou-lhe quasi as barbas pelo rosto, emquanto Sophia, com uma das mãos em terra, buscava sentar-se. Sentou-se; mas, quando viu a cara do Rubião, recuou e empurrou-o. Já então o Palha estava alli; agarrou-se-lhe ao braço, poz-se em pé.

— Machucaste-te?

— No joelho, disse ella baixo ao marido; não sei se o esfolei; está-me doendo. Mas vamos; onde está o cavallo?

(Continúa.)

CXLVI

— Fiquei com o joelho dorido, disse ella entrando e coxeando.

— Deixe ver.

No quarto de vestir, Sophia levantou o pé sobre um banquinho e mostrou ao marido o joelho pisado; inchára um pouco, muito pouco, mas tocando-lhe, fazia-a gemer. Palha, não querendo machucal-a, chegou-lhe a pontinha dos beiços apenas.

— Fiquei descomposta quando cahi?

— Não. Pois com um vestido tão comprido... Mal se pôde ver o bico do pé. Não houve nada, acredita; que diabo de receio, á toa, quando te digo a verdade?

— Jura que não?

— Que desconfiada que você é, Sophia! Juro por tudo o que ha mais sagrado, pela luz que me allummia, por Deus Nosso Senhor. Estás satisfeita?

Sophia ia cobrindo o joelho.

— Deixa ver outra vez. Creio que não será nada de maior; bota um pouco de qualquer cousa. Manda perguntar á botica.

— Está bom, deixa-me ir despir, disse ella forcejando por descer o vestido.

Mas o Palha baixara os olhos do joelho até ao resto da perna, onde pegava com o cano da bota. De feito, era um bello trecho da natureza. Palha, com uma das mãos, impedia que a mulher se compuzesse. Jurou, ainda uma vez, que ella cahira perfeitamente composta; mas, accrescentou que, se a queda fosse tal que decobrisse aquelle pedachinho da perna, as arvores e o ceu ficariam assombrados; não havia estrellas nem flores que se pudessem dizer mais bellas. Sophia conseguiu tirar o pé do banco, e abanou a cabeça, rindo:

— Estrellas e flores, é possível, já que você anda sempre com essas poesias na bocca, mas os olhos do Rubião?

— Ora, o Rubião! É verdade; elle nunca mais teve aquellas ideias de Santa Thereza?

— Nunca; mas, emfim, é um homem, e não me agradaria... Jura de verdade, Christiano?

— Que massada! O que você quer é que eu vá subindo de sagrado em sagrado, até á cousa mais sagrada. Jurei por Deus: não bastou. Juro por você; está satisfeita?

Pieguices de lascivo. Sahiu finalmente do quarto da mulher e foi para o seu. Aquelle pudor medroso e incredulo de Sophia fazia-lhe bem. Mostrava que ella era sua, totalmente sua; mas, por isso mesmo que elle a possuia, considerava que era de grande senhor não se affligir com a vista casual e instantanea de um pedaço occulto do seu reino E sentia que o casual tivesse parado na ponta da bota. Era apenas a fronteira; as primeiras villas do territorio, antes da cidade machucada pela queda, dariam ideia de uma civilização sublime e perfeita. E ensaboando-se, esfregando a cara, o collo e a cabeça na vasta bacia de prata, escovando-se, enxugando-se, aromando-se, Palha imaginava o pasmo e a inveja da unica testemunha do desastre, que seriam profundos, se este fosse menos incompleto. Perna de nympha, perna do diabo.

CXLVII

Foi por esse tempo que Rubião poz em espanto a todos os seus amigos. Na terça-feira seguinte ao domingo do passeio (era então Janeiro de 1870) avisou a um barbeiro e cabelleireiro da rua do Ouvidor que o mandasse barbear a casa, no outro dia, ás nove horas da manhã. Lá foi um official francez, — chamado Lucien, creio eu — que entrou para o gabinete de Rubião, segundo as ordens dadas ao criado.

— Uhm!... rosnou Quincas Borba, de cima dos joelhos de Rubião.

Lucien parou á porta do gabinete, e comprimentou o dono da casa; este, porem, não viu a cortezia, como não ouvira o signal do Quincas Borba. Estava em uma longa cadeira de extensão, ermo do espirito, que rompera o tecto e se perdera no ar. A quantas leguas iria? Nem condor nem aguia o poderia dizer. Em marcha para a lua, — não via cá em baixo mais que as felicidades perennes, chovidas sobre elle, desde o berço, onde o embalaram fadas, até á praia de Botafogo, aonde elles o trouxerem, por um chão de rosas e bogaris. Nenhum revez, nenhum mallogro, nenhuma pobresa; — vida placida, cosida de gozo, com rendas de superfluos. Em marcha para a lua!

Lucien relanceou os olhos pelo gabinete, onde fazia principal figura a secretária, e sobre ella os dous bustos de Napoleão e Luiz Napoleão. Relativamente a este ultimo, havia ainda, pendentes da parede, uma gravura ou lithographia representando a Batalha de Solferino, e um retrato da imperatriz Eugenia.

— Adeus, Eugenia!

Rubião tinha nos pés um par de chinellas de damasco, borbadas a ouro, — já usadas, mas ouro. Na cabeça, um gorro com borla de seda preta. Na bocca, um riso azul claro.

CXLVIII

— Monsieur...

— Uhm! repetiu Quincas Borba, pondo-se em pé nos joelhos do senhor.

Rubião voltou a si e deu com o barbeiro. Conhecia o por tel-o visto ultimamente na loja; ergueu-se da cadeira. Quincas Borba latia, como a defendel-o contra o intruso.

— Socega! cala a boca! disse-lhe Rubião, e o cachorro foi, de orelha baixa, metter-se por traz da cesta de papeis. Durante esse tempo, como Lucien desembrulhava os seus apparelhos.

— Monsieur veut se faire raser, n'est-ce pas? Pourquoi done a-t-il laisser croitre cette belle barbe? Apparemment que c'est un voeu d'amour? J'en connais qui ont fait de pareils sacrifices: j'ai méme été confident de quelques personnes aimables...

— Justamente! interrompeu Rubião.

Não entendera nada: posto soubesse algum francez, mal o comprehendia lido — como sabemos, — e não o entendia fallado. Mas, phenomeno curioso, não respondeu por impostura: se não percebeu o sentido das palavras, ouviu-as como se fossem um comprimento ou uma reclamação; e, ainda mais curioso phenomeno, respondendo-lhe em portuguez, cuidava fallar francez.

— Justamente! repetiu. Quero restituir a cara ao typo anterior; é o mais conhecido, assim comecei, assim acabo.

E, como apontasse para o busto de Napoleão III, respondeu-lhe o barbeiro pela nossa lingua:

— Ah! o imperador! Bonito busto, em verdade. Obra fina. O senhor comprou isto aqui ou mandou vir de Paris? São magnificos. Lá está o primeiro, o grande; este era um genio. Se não fosse a traição, oh! os traidores, vê o senhor? os traidores são peiores que as bombas de Orsini.

— Orsini! um coitado!

— Pagou caro.

— Pagou o que devia. Mas não ha bombas nem Orsini contra o destino de um grande homem, continuou Rubião. Quando a fortuna de uma nação pôe na cabeça de um grande homem a coroa imperial, não ha maldades que valham... Orsini! um bobo!

Em poucos minutos, começou o barbeiro a deitar abaixo as barbas do Rubião, para lhe deixar somente a pera e os bigodes de Napoleão III; encarecia-lhe o trabalho; affirmava que era difficil compor exactamente uma cousa como a outra. O barbeiro, — dizia elle, tesourando o freguez, — precisava de liberdade para dar á obra da navalha o cunho da inspiração. Nem todos sentiriam isso; a caterva dos raspadores de barba era indifferente aos grandes pensamentos. Mas ha barbeiro e barbeiro, como ha poeta e poeta. E depois, a questão de estylo. Conhece-se a mão de um official pela unidade do estylo; o bom official fará muitas caras e diversas, mas o estylo hade ser o mesmo. Ao vulgo parece que a differença entre as soiças do defunto principe Alberto, por exemplo, e as do rei Guilherme da Prussia está no tamanho, que era curto no primeiro, e é longo no segundo; mas para os que conhecem a esthetica do officio e a philosophia do rosto humano, a differença resulta do pensamento incutido pela navalha na cara de um e de outro. Percebe-se nos retratos do principe Alberto o constitucionalismo, como se sente o absolutismo nos do rei Guilherme...

— Seu barbeiro, você é pernostico, interrompeu Rubião. Já lhe disse o que quero; ponha-me a cara como estava. Alli tem o busto para guial-o.

— Sim, senhor, cumprirei as suas ordens, e verá que semelhança que vae sair. Mas, quando eu pedia a liberdade, era para dar o cunho formal da inspiração. Façamos esta copia.

E zás, zás, deu os últimos golpes ás barbas de Rubião, e começou a rapar-lhe as faces e os queixos. Durou longo tempo a operação, interrompida a miudo, porque o freguez tinha um pequenino espelho na mão para ver como ia andando o serviço. O barbeiro, em certo ponto, disse que era melhor esperar a obra feita; posto se tratasse de uma simples copia, as interrupções fariam mal ao trabalho. No fim, veria espantado a semelhança. Rubião concordou, e o official foi adeante, rapando, comparando, dividindo os olhos entre o busto e o homem. Ás vezes, para melhor cotejal-os, recuava dous passos, olhava-os alternadamente, inclinava-se, pedia ao homem que se virasse de um lado ou de outro, e ia ver o lado correspondente do busto.

— Vae bem? perguntava Rubião.

Lucien pedia-lhe com um gesto que se calasse, e proseguia. Recortou a pera, deixou os bigodes, e escanhoou á vontade, lentamente, amigamente, aborrecidamente, adivinhando com os dedos alguma pontinha imperceptivel de cabello no queixo ou na face para não o consentir, nem por suspeita. Ás vezes Rubião, cançado de estar a olhar para o tecto, emquanto o outro lhe aperfeiçoava os queixos, pedia para descançar. Descançando, apalpava o rosto e sentia pelo tacto a mudança.

— Os bigodes é que não estão muito compridos, observava.

— Falta arranjar-lhe as guias; aqui trago os ferrinhos para encurval os bem sobre o labio, e depois faremos as guias. Ah! eu prefiro compor dez trabalhos originaes a uma só copia. Custa muito mais, e que satisfação póde deixar á consciencia? O senhor tem o rosto muito apropriado a certa ideia que anda commigo ha algumas semanas. Prometta-me que, se mudar de gosto, e abandonar esse aspecto, dar-me-ha a liberdade de o compor, sim? Se o fizer, não applicarei a ideia a outro freguez.

— Não, isso não, não póde ser.

Volveram ainda dez minutos, antes que os bigodes e a pera fossem bem retocados. Emfim, prompto. Rubião deu um salto, e pegou do espelhinho; era elle, era o outro, eram ambos, era elle mesmo, em summa. Foi ao quarto de vestir, que ficava ao pé, mirou-se no espelho grande; tal qual.

CXLIX

— Perfeitamente! exclamou Rubião tornando ao gabinete, onde o barbeiro, tendo arrecadado os apparelhos, fazia festas ao Quincas Borba.

E indo á secretaria, abriu uma gaveta, tirou uma nota de vinte mil réis, e deu-lh'a.

— Não tenho troco, disse o outro.

— Não precisa dar troco, acudiu Rubião com um gesto soberano; tire o que houver de pagar á casa, e o resto é seu.

(Continúa.)

CXLIX

(Continuação)

— Oh! senhor! exclamou o barbeiro pasmado e agradecido. Antes de guardar o dinheiro, deitou uma vista de olhos ao rosto de Rubião, e novamente o comparou ao busto.

— Perfeito!

Na rua, contemplando a nota, e advertindo na teima de Rubião em ser copiado de Napoleão III, não pôde ter-se que não exclamasse:

— Voila un homme très original.

CL

Ficando só, Rubião atirou-se a uma poltrona, e, sem fechar os olhos, sem dormir, sem sonhar, viu passar deante de si e em si muitas cousas explendidas. Estava em Biarritz ou Compiègne, não se sabe bem; Compiègne, parece. Governou um grande Estado, ouviu ministros e embaixadores, dansou sorriu, passou revista ás tropas, — e assim outras acções narradas em correspondencias de jornaes, que elle lera e lhe ficaram de memoria. Nem os ganidos de Quincas Borba lograram espertal-o. Estava longe e alto. Compiègne era no caminho da lua. Em marcha para a lua!

CLI

Desceu rapido. Gastou um instante de Compiègne a Botafogo. Ouviu então os ganidos do cachorro, viu os trastes, achou-se, Rubião recordou o barbeiro, apalpou a cara, em que sentiu frio. Teve receio de haver ficado exquisito, e correu ao espelho, onde reconheceu que a differença era grande entre si mesmo e si, como diria Camões; mas não estava mal. Os comensaes chegaram á mesma conclusão.

— Está perfeitamente bem! Há muito que devia ter feito isso. Não é que as barbas grandes lhe tirassem a nobreza do rosto; ao contrario, davam-lhe nobreza e grande; mas assim como está agora, tem o que tinha, e mais um tom moderno

Moderno, repetiu o amphytrião.

Fóra, egual espanto. Mas, como acontece a todas as cousas deste mundo, o costume matou a novidade, e ninguem mais se lembrou das antigas barbas do Rubião. Todos achavam sinceramente que este outro aspecto lhe ia melhor que o anterior. Uma só pessoa, o Dr. Camacho, posto julgasse que os bigodes e a pera ficavam muito bem no amigo, ponderou que era de bom aviso não alterar o rosto, verdadeiro espelho da alma, cuja firmeza e constancia devia reproduzir.

— Não é por lhe fallar de mim, concluiu; mas, nunca me hade ver a cara de outro modo. É uma necessidade moral da minha pessoa. Minha vida, sacrificada, aos principios, — porque eu nunca tentei conciliar principios, mas homens, e dahi vem o esforço com que ajudei o grande Paraná, — minha vida, digo, é uma imagem fiel da minha cara, e vice-versa.

Rubião ouvia com seriedade; dentro de si ria á larga, pela razão de que naquelle instante sentia-se incognito, de passeio pela America, em quanto Eugenia sustinha as redeas do governo. Ria da confusão do Camacho; mas tão serio e tão credulo, que este julgou dever pedir-lhe emprestados dous contos de réis; pagar-lh'os-ia no fim do mez, quando recebesse os honorarios de um banco e os de certa casa ingleza. Nunca pensára, que as bodas de uma filha custassem tanto dinheiro; tinha gasto todas as suas economias; — aliás, sem pena, porque a menina era um anjo e o noivo um dos moços de grande futuro; era engenheiro civil, e fizera brilhante figura na Escola. De repente:

— E sabe que, talvez, vá bater á sua porta para ser padrinho della?

— Estou ás ordens.

— É verdade. Se o conselheiro Borges ainda estiver de cama, o padrinho hade ser o senhor. Ella quiz o conselheiro por motivos de familia; uma filha delle e ella andaram juntas no collegio, e são duas amigas, como não ha. Cedi; mas as circumstancias podem fazer vingar a minha ideia. Nossas relações permittem-me consideral-o de casa

CLII

Rubião prometteu mandar-lhe um cheque de dous contos, — ou trazer-Ih'o em pessoa. Já então não se sentia imperador incognito, mas o proprio e lidimo Rubião. Não me perguntem porque. São milagres secretos. Dante, que viu tantas cousas extraordinarias, affirma ter assistido no inferno ao castigo de um espirito florentino, ladrão que foi, e que uma serpente de seis pés abraçou de tal modo, e com tal egualdade, se foram confundindo, que afinal já se não podia distinguir bem se era um ente unico, se dous. Rubião era ainda dous. Não se misturavam nelle a propria pessoa com o imperador dos francezes. Revesavam-se; chegavam a esquecer-se um do outro. Quando era só Rubião, não passava do sumptuoso homem do costume; faltava-lhe a coroa e o destino napoleonico. Quando subia a imperador, não era outra pessoa, e muito menos o antigo enfermeiro de Barbacena. Assim é que se equilibravam os dous, — um sem outro, ambos integraes.

Algumas vezes o imperador não se manifestava por actos externos, vivia em si mesmo, calado, ruminando a grandeza. A realidade exterior trocava a mascara, e não havia carroça nem loja de charutos que não parecesse coche ou salão. Cores sombrias e desmaiadas faziam-se vivas e alegres. Caso houve em que os chapéos, sem se deslocarem, tinham o geito de descobrir as cabeças, para comprimental-o. Elle tocava então com a ponta dos dedos no seu. Ouvia fallar francez em torno de si. E não sei que voz enorme, como de multidão, — mas ao longe, muito longe, bradava: Imperador! viva! imperador! Napoleão!

CLIII

— Que mudança é essa? perguntou Sophia, quando elle lhe appareceu no fim da semana.

— Vim saber do seu joelho; está bom?

— Obrigada, respondeu ella, estendendo-lhe os dedos.

Os dedos, apenas. Mas elle deu lhe a mão espalmada, e ambas as mãos se apertaram com vigor. Eram duas horas da tarde. Sophia acabava de vestir-se para sair, quando a criada lhe fora dizer que estava alli Rubião, — tão mudado de cara que parecia outro. Desceu a vel-o curiosa; achara-o na sala, de pé, lendo os cartões de visita.

— Mas que mudança é essa? repetiu ella.

Rubião, sem nenhuma ideia imperial, respondeu que suppunha ficarem-lhe melhor os bigodes e a pera.

— Ou estou mais feio? concluiu.

— Está melhor, muito melhor.

E Sophia disse consigo que a causa da mudança podia ser ella mesma. Reclinou-se toda no sophá, e começou a enfiar os dedos nas lavas.

— Vai sahir?

— Vou, mas o carro ainda não veiu.

Calaram-se. Os olhos de Rubião tiveram então uma ideia que não se póde dizer nova nem gasta. Estavam fitos na boca risonha de Sophia, e emprehenderam uma viagem desde alli até o tapete. Era quasi um despenhadeiro. Ao passarem pelos joelhos della não se lembraram de parar um instante e investigar qual delles tinha sido o molesto. Pararam no tapete; depois, tratando de regressar, um obstaculo os deteve. Era um dos pés de Sophia. Não puderam explicar como é que, tão depressa pousaram no pé, este começou a mover-se brincando, nem porque razão se esgueirou de subito. Elles dispararam então pela encosta acima, até pousar no ponto de partida, onde os labios ridentes de ha pouco lhe diziam:

— A carruagem chegou.

CLIV

Teso, descoberto, o lacaio abriu a portinhola do coupé, quando Sophia assomou á porta. A senhora ia a despedir-se do nosso amigo, mas, como elle lhe offerecesse a mão para ajudal-a a entrar, acceitou o obsequio e entrou.

— Agora, até...

Não pôde acabar a phrase; Rubião entrara após ella e sentára-se-lhe ao lado; o lacaio fechou a portinhola, trepou á almofada, e o carro partiu.

(Continúa.)

CLII

Tão rapido foi tudo, que Sophia perdeu a voz e o movimento; mas, ao cabo de alguns segundos:

— Que é isto?... Senhor Rubião, mande parar o carro.

— Parar o carro? Mas a senhora não me disse que ia sair e esperava por elle?

— Não ia sair com o senhor... Não vê que... Mande parar o carro...

Desatinada ia a erguer-se para dar ordem ao cocheiro; mas a ideia de um possivel escandalo fel-a deter-se a meio caminho. O coupé entrára na rua Bella da Princeza. Sophia novamente pediu a Rubião que reparasse na inconveniencia de irem assim de carro, á vista de Deus e de todo mundo. Rubião respeitou o escrupulo, e acabou propondo que descessem as cortinas.

— Eu acho que não faz mal que nos vejam, explicou Rubião; mas, fechando as cortinas, ninguem nos vê. Se quer?

Sem aguardar resposta, desceu as cortinas de um e outro lado, e ficaram os dous a sós, porque, se de dentro podiam ver uma ou outra pessoa que passasse, de fóra ninguem os via. Estavam sós. Sophia recordou-se de repente, d'aquelle dia em que ás mesmas duas horas da tarde, em casa d'ella, ausente a prima, Rubião lhe lançou em rosto os seus desesperos. Lá, ao menos, estava livre; aqui dentro do carro fechado, não podia calcular as consequencias. Certamente, este ia dizer as mesmas cousas; mas a audacia e a violencia seriam maiores.

Rubião, entretanto, accommodára as pernas e não dizia nada.

CLIII

Sophia encolhera-se muito ao canto. Podia ser extranheza da situação, podia ser medo; mas era principalmente repugnancia. Nunca esse homem lhe fez sentir tanta aversão, asco, ou outra cousa menos dura, se querem, mas que se reduzia á incompatibilidade, — como direi que não aggrave os ouvidos? — á incompatibilidade da epiderme. Onde iam os sonhos de ha poucos dias? Ao simples convite de um passeio, a sós, á Tijuca, subiu com elle a montanha, a galope, desmontou, ouviu palavras de adoração, e sentiu um beijo na nuca. Onde iam essas imaginações? Onde iam os olhos fixos e grandes, as mãos amigas e longas, os pés inquietos, as palavras meigas e os ouvidos cheios de misericordia? Tudo esqueceu, tudo desappareceu, agora que ambos se achavam devéras sós, ilhados pelo carro e pelo escandalo.

E os cavallos seguiam, sacudindo as patas, arrastando lentamente o carro, pelas pedras da rua Bella da Princeza. Que faria ella chegando no Cattete? iria á cidade com elle? Pensou em seguir para a casa de alguma amiga; deixal-o-ia no carro, diria ao cocheiro que se fosse embora. Contaria tudo... Tudo o que? Pensou naturalmente no marido; e vieram assim de assalto uma porção de ideias, nem todas opportunas, como a noticia de um roubo de joias, dada pelas folhas do dia, o vento da vespera, um relogio, Carlos Maria... Esta rerniniscencia veiu duas vezes, e passou como os rotulos das casas iam passando pela fresta da cortina, — vagarosamente.

Afinal fixou-se em um só cuidado. Que lhe ia dizer o Rubião? Olhou para elle de esguelha, viu que continuava a olhar para a frente, calado, com o castão da bengala no queixo. Não lhe ficava mal a attitude, tranquilla, séria, quasi indifferente; mas então para que se metteu no carro? Sophia quiz romper o silencio; por duas vezes moveu nervosamente as mãos; quasi que a irritou a quietação do homem, cuja acção só podia ser explicada pela paixão antiga e violenta. Depois, imaginou que elle proprio estaria arrependido, e disse-lh'o em bons termos.

— Não vejo que me possa arrepender de cousa nenhuma, acudiu elle, voltando-se para ella. Quando a senhora disse que era máu irmos assim, á vista do publico, abaixei as cortinas. Não concordei, mas obedeci.

— Chegamos ao Cattete, atalhou ella; quer que o leve a casa? Não podemos ir juntos para a cidade.

— Podemos andar á tôa.

— Como?

— A toa, o carro vai andando e nós vamos conversando, sem que nos ouçam nem adivinhem...

— Pelo amor de Deus! não me falle assim, deixe-me, saia do carro, ou eu saio aqui mesmo, e o senhor toma conta d'elle. Que é que quer dizer? Bastam poucos minutos... Olhe o carro já voltou para o lado da cidade; mande ir para Botafogo, vou deixal-o á porta de casa...

— Mas se eu sahi ha pouco de casa, vou para a cidade. Que mal ha em levar-me até lá? Se é para que não nos vejam, como foi com as cortinas, apeio-me, em qualquer logar, do caminho, — na praia de Santa Luzia, por exemplo, — do lado do mar... Mas é ainda peor; apeiando-me na praia, — na praia deserta...

Na praia deserta que a lua branqueia,

 Que mimo! que rosa! que filha de Deus!

Conhece estes versos? São de um poeta da Corte, que morreu moço. Eu, logo depois de nosso conhecimento, li muitos versos. E mesmo gósto de poesia; lá em Minas temos os nossos poetas, — o Bernardo, não sei se conhece, Bernardo Guimarães, o padre Correa...

Sophia mal o escutava.

— O melhor é descer aqui mesmo disse.

— Mas porque não iremos até a cidade?

— Não, não póde ser. Peço-lhe por tudo que lhe fôr mais sagrado! Não faça escandalo, vamos, diga-me o que é preciso para obter uma cousa tão simples? Quer que me ajoelhe aqui mesmo?

Apezar da estreiteza do espaço, ia dobrando os joelhos; mas Rubião deu se pressa em fazel-a sentar-se outra vez

— Não é preciso que se ajoelhe, disse com brandura.

— Obrigada; peço-lhe então por Deus, por sua mãi, que está no ceu...

— Deve estar no ceu, confirmou Rubião. Era uma santa mineira! As mães são sempre boas; mas daquella ninguem que a conheceu poderá dizer outra cousa senão que era um anjo. E prendada, como poucas. Que dona de casa! Hospedes, para ella tanto fazia cinco como cincoenta, era a mesma cousa, cuidava de tudo a tempo e a hora, e criou fama. Os escravos davam lhe o nome de Sinhá Mãe, porque era, realmente, mãe para todos. Deve estar no céu!

— Bem, bem, atalhou Sophia. Pois faça-me isto por amor de sua mãe; faz?

— Isto que?

— Apeiar-se aqui mesmo?

— E ir a pé para a cidade? Não posso. É scisma sua; ninguem nos vê. E depois estes seus cavalos são magnifico. Já reparou como atiram as patas, lentamente, plás... plás... plás...

Cançada de pedir, Sophia calou-se, cruzou os braços e coseu-se ainda mais, se era possivel, ao cantinho do carro, espreitando os gestos do Rubião e disposta ao escandalo.

— É melhor o escandalo, pensava. Agora me lembro, mando parar á porta do armazem do Christiano; digo-lhe o modo por que este homem se introduziu no coupé, os pedidos que lhe fiz e as respostas que me deu. Antes isso que fazel-o apear mysteriosamente em qualquer rua.

A resolução deu-lhe animo, e restituiu-lhe a paz interior. Paz ou armisticio, porque a cabeça trabalhou um pouco, e a hypothese de alguma violencia, em que Rubião lhe roubasse um beijo... Sophia teve aqui um gesto de asco. Segunda vez a ideia do contacto daquelle homem vinha fazer-lhe sentir que entre um e outro não havia espaço para amor. Já lhe beijára a mão um dia, quando ella lhe tapava a boca para que não gritasse;

mas não era o caso da mão homicida de lady Macbeth. A boca, sim, é que nenhum aroma da Arabia podia laval-a da corrupção, se elle pousasse nella os seus labios.

Entretanto, Rubião prosseguia quieto, volvendo no dedo o annel de brilhante, — um solitario explendido; depois, consultou o relogio, sacudiu com a unha um pouco de pó da manga, e voltou-se para Sophia.

— Poeira é cousa insupportavel, disse.

Nada mais; nem se lhe chegava, nem a fitava com os olhos compridos de outros dias, não tentava pegar-lhe na mão, não pedia, não intimava. Iam como um casal de aborrecidos. Sophia não chegava a entender que razão o teria levado a entrar no carro. Não podia ser a necessidade de transporte. Vaidade, porque o vissem com ella, tambem não; fechára as cortinas, á sua primeira queixa de publicidade; e não o fez se não por isso, uma vez que não lhe dizia a minima palavra amorosa, — uma allusão remota que fosse, a medo, cheia de veneração e supplica. Era um inexplicavel, um monstro.

(Continúa.)

CLII

(Continuação)

— Sophia... disse de repente Rubião; e continuou com pausa: — Sophia, os dias passam, mas nenhum homem esquece a mulher que verdadeiramente o amou, ou então não merece o nome de homem. Os nossos amores não serão esquecidos nunca, — por mim, está claro, mas estou certo que nem por ti. Tudo me déste, Sophia; a tua propria vida correu perigo. Verdade é que eu te vingaria, minha bella. Se a vingança póde alegrar os mortos, terias o maior prazer possivel. Felizmente, o meu destino protegeu-nos, e pudemos amar sem peias nem sangue...

A moça olhava espantada.

— Não te espantes, continuou elle; não nos vamos separar; não, não te fallo de separação. Não me digas que morrerias; sei que havias de verter muitas lagrymas. Eu não, — que não vim ao mundo para chorar, — mas nem por isso a dor seria menor; ao contrario, as dores guardádas no coração doem mais que as outras. Lagrymas são boas porque a pessoa desabafa. Querida amiga, fallo-te assim, porque é preciso termos cautella: a nossa insaciavel paixão póde esquecer esta necessidade. Não a esquecemos a principio: o medo fazia de sentinella. Mas, temos facilitado muito, Sophia: como nascemos um para o outro, parece-nos que estamos casados perante o mundo, e facilitamos. Ouve, querida, ouve, alma da minha alma... A vida é bella! a vida é grande! a vida é sublime! Comtigo, porém, que nome haverá que lhe possa dar? Lembras-te da nossa primeira entrevista?

Rubião disse esta ultima palavra, querendo pegar-lhe na mão. Sophia recuou a tempo; estava desorientada, não entendia e tinha medo. A voz delle crescia, o cocheiro podia ouvir alguma cousa... E aqui uma ideia terrivel a abalou: talvez o intento de Rubião fosse justamente fazer-se ouvir, para obrigal-a pelo terror, — ou então para que a abocanhassem. Teve impeto de atirar-se a elle, gritar que lhe acudissem, e salvar-se pelo escandalo.

— Que peste! pensou ella.

Elle, baixinho, depois de certa pausa:

— A mim lembra-me, como se fosse hontem. Tu chegaste de carro, não era este; era um carro de praça, uma caleça. Desceste medrosa, com o veu pela cara; tremias como varas verdes... Mas os meus braços te ampararam... Sol daquelle dia, tu devias ter parado, como quando obedeceste a Josué. E comtudo, minha flor, aquellas horas foram longas, longas, longas, não sei porque; a rigor, deviam ser curtas. Era talvez porque tinhamos em nós uma paixão que não acabava mais, que não acabou, que não hade acabar nunca... Em compensação, sol sem amores, não te vimos mais; tas cahindo para o outro lado das montanhas, quando a minha Sophia, ainda medrosa, sahiu para a rua, e pegou de outro carro. Outro ou o mesmo? Creio que foi o mesmo. Não imaginas como fiquei; parecia tonto, beijei tudo em que havias tocado; cheguei a beijar a soleira da porta. Creio que já te contei isto. A soleira da porta. E estive quasi, quasi a ir de rastos, beijar os degráos da escada... Não o fiz, recolhi-me, fechei-me para que se não perdesse o teu cheiro; violeta, se bem me recordo...

Não, não era possivel que o intuito de Rubião fosse fazer crer ao cocheiro uma aventura mentirosa. A voz era tão sumida que Sophia mal podia escutal-a; mas, se lhe custava a entender as palavras, não chegava a comprehender o sentido dellas. A que vinha aquella historia não succedida? Quem quer que a ouvisse, aceitaria tudo por verdade, tal era a nota sincera, a meiguice dos termos e a verosimilhança dos pormenores. E elle continuou suspirando as bellas reminiscencias...

— Mas que caçoada é essa? atalhou finalmente Sophia.

Não lhe respondeu o nosso amigo; — tinha a imagem deante dos olhos, não ouviu a pergunta, e foi andando. Citou-lhe um lance medonho, em um dos concertos de Gotschalk. O divino pianista melodiava ao piano; elles ouviam, mas o demonio da musica levou os olhos de um para outro, e ambos esqueceram-se do resto. Quando a musica cessou, as palmas romperam, e elles accordaram. Ai tristes! accordaram com a alma do Palha em cima delles, uma alma de onça brava, uns olhos capazes de os engulir a ambos. Nessa noite cuidou que elle a matasse.

— Senhor Rubião...

— Napoleão, não; chama-me Luiz. Sou o teu Luiz, não é verdade, galante creatura? Teu, teu... Chama-me teu: — o teu Luiz, o teu querido Luiz. Ai, se tu soubesses o gosto que me dás quando te ouço essas duas palavras: "Meu Luiz!" Tu és a minha Sophia, — a doce, a mimosa Sophia da minha alma. Não percamos estes momentos: digamos os nomes ternos; mas, baixo, baixinho, que nos não ouçam os malandros da almofada do carro. Para que hade haver cocheiros neste mundo? Se o carro andasse por si, fallariamos á vontade, e iriamos ao fim da terra...

Já então o carro ia costeando o Passeio Publico; Sophia não deu por isso. Olhava fixamente para Rubião; não podia ser calculo de perverso, nem lhe attribuia mofa... Delirio, sim, é o que era, tinha a sinceridade da palavra, como pessoa que vê ou viu realmente as cousas que relata. Esta hypothese trouxe á alma da moça outra especie de terror, a de ser esganada por elle, quando menos cuidasse; e, mysterio interessante, a ideia de um beijo furtado, passando-lhe segunda vez pelo espirito, não lhe deixou o asco da primeira, não obstante ser o mesmo gesto e o mesmo homem.

— É preciso pol-o fóra do carro, pensou a moça. E, apparelhando-se de coragem: — Onde estaremos nós? perguntou-lhe. É occasião de separar-nos. Veja do lado de lá; onde estamos? Parece que é o convento; estamos no largo da Ajuda. Diga ao cocheiro que páre; ou, se quer, pode apear-se no largo da Carioca. Meu marido...

— Vou nomeal-o embaixador, disse Rubião. Ou senador, se quizer. Senador é melhor; ficam os dous aqui. Embaixador que fosse, não consentiria que tu o acompanhasses, e as más línguas... Tu sabes a opposição que soffro, as columnias... Ah! ruim gente! Convento da A juda, disseste? Que tens tu com elle? Queres ser freira?

— Não; digo que já passamos o convento da Ajuda. Vou deixal-o no largo da Carioca. Ou vamos até o armazem de meu marido?

Sophia tornou a apegar-se ao segundo alvitre; não se faria suspeita ao cocheiro, provaria melhor a sua innocencia ao Palha, narrando-lhe tudo, desde a entrada inesperada no carro até o delirio. E que delirio era esse? Sophia pensou que o motivo podia ser ella mesma, e esta ideia fel-a sorrir de piedade.

— Para que? disse Rubião. Vou apeiar-me aqui mesmo, é mais seguro. Para que hade elle desconfiar de nós e maltratar-te? Posso castigal-o, mas sempre me ficaria o remorso do mal que elle te causaria. Não, linda flor amiga; o vento que ousasse tocar-te, crê que eu o faria expellir do espaço, como um vento indigno. Tu ainda não conheces bem o meu poder, Sophia; tanto melhor para mim, é prova que o teu amor não tem outro motivo, além de si mesmo. Confessa.

CLIII

(Continuação)

Como Sophia não confessasse nada, Rubião chamou-lhe de bonita, e offereceu-lhe o solitario que tinha ao dedo; ella, porém, comquanto amasse as joias e tivesse a intuição dos solitarios, recusou medrosamente a offerta.

— Comprehendo o escrúpulo, disse elle; mas não perdes isso, porque hasde receber outra pedra ainda mais bella, e por mão de teu marido. Farte-hei duqueza. Ouviste? O titulo é dado a elle, mas tu é que és a causa.

Duque... Duque de que? Vou ver um titulo bonito; ou então escolhe tu mesma, porque é para ti, não é para elle, é para ti, minha mimosa. Não precisas escolher já, vae para casa e pensa. Não te vexes; manda-me dizer o que achares mais bonito, e faço lavrar immediatamente o decreto. Tambem podes fazer outra cousa: escolhe, e leva-o na cabeça ao nosso primeiro encontro, no logar do costume. Quero ser o primeiro a chamar-te duqueza. Querida duqueza... O decreto virá depois. Duqueza da minha alma!

— Sim, sim, disse ella desvairamente, mas avisemos o cocheiro que nos leve até a casa de Christiano.

— Não, apeio-me aqui... Pára! pára!

Rubião ergueu as cortinas, e o lacaio veiu abrir a partinhola. Sophia para tirar toda a suspeita ao lacaio, pediu novamente ao Rubião que fosse com ella á casa do marido; disse-lhe que este precisava fallar-lhe, com urgencia. Rubião olhou um pouco espantado para ella, para o lacaio e para a rua; e respondeu que não, que iria depois. Ella estendeu-lhe familiarmente a mão esquerda, que elle aceitou sem ternura nem ceremonia.

CLIII

Apenas separados, deu-se em ambos um curioso phenomeno.

Rubião, na rua, voltou a cabeça para todos os lados, a realidade apossava-se delle e o delirio esvaia-se. Entrou a andar, a parar deante das lojas, a atravessar a rua para ir saudar alguem, pedindo-lhe noticias e opiniões; esforço inconsciente para sacudir de si a personalidade emprestada.

Ao contrario, Sophia, passado o susto, e o espanto mergulhou no devaneio; todas as referencias e histórias mentirosas de Rubião como que lhe davam saudades, — saudades de que? — "saudades do ceu", que é o que dizia o padre Bernardes do sentimento de um bom christão. Nomes diversos relampejavam pelo azul daquella possibilidade. Quanto pormenor interessante! Sophia reconstruiu a cabeça velha, onde entrou rapida, donde desceu tremula, para esgueirar-se pelo corredor dentro, subir a escada, e achar um homem, — que lhe disse cousas mais appetitosas deste mundo, e as repetiu agora, ao pé della, no carro, mas não era, não podia ser o Rubião. Quem então? Nomes diversos relampejavam pelo azul daquella possibilidade. Tudo sonhos!

Sonhos não eram, entretanto, as palavras ouvidas por ella, mais de uma vez, entre uma polka e uma quadrilha, ao canto da janella ou passeando; palavras finas e bellas, aladas de ouro, que entravam agora pela carruagem, vindas de diversos pontos do tempo e do espaço. Lepidas muitas, outras melancolicas, outras nervosas ou sanguineas, e cada uma com o proprio som da bocca que a proferiu. Leitora da minh'alma, perdoa-lhe se até vieram palavras de Carlos Maria, — que lá andava longe, por terras européas, com a esposa ao lado. E com as ouvidas, chegaram tambem as palavras lidas, as de novella, que espertam o temperamento, formando todas um coro vibrante, um coro que não acabava mais.

CLIV

Emquanto ella escutava todas aquellas vozes sonoras e amigas, Rubião tomava pé na realidade, e ia ter com o Palha, a quem disse meia duzia de cousas justas. Assim que, quando Sophia á tarde, contou o lance da carruagem ao marido, este ouviu-a incredulo e desconfiado.

— Rubião esteve hoje commigo, disse elle fincando os olhos na mulher e achei-o em seu perfeito juizo. Conversamos pouco, mas fallou bem. Palavras, modos, nada fazia suspeitar a menor turvação de cabeça.

— A que horas?

— Quasi tres.

— Não sei; commigo foi assim.

O Palha deixou-se estar com os olhos nella. Pegava-se-lhe a suspeita de que eram amantes, e que a mulher, vista por alguem na carruagem com o outro, explicava daquelle modo a aventura. Quando a ideia se lhe pegou de todo, teve um impeto: saltar á mulher, fazel-a ajoelhar e obrigal-a a confessar tudo. Ajoelhar era de mais. Uma senhora póde confessar os seus erros, sentada ou de pé; mas a imaginação daquelle homem tinha particular amor ás cousas apparatosas, e bem póde ser que lhe houvesse ficado de memoria algum lance theatral. Sim, a paixão não destróe o caracter, nem a dor impede que uma reminiscencia collabore com ella.

Afinal, não a fez ajoelhar, nem lhe pediu confissão. Jantou calado e mal; á noite disse que tinha de ir a Botafogo fallar a alguem sobre um negocio. Sophia quiz detel-o, rindo, mas um gesto delle fel-a recuar. Não lhe ocorreu que o Palha podia ir á casa do pobre Rubião, a desaffrontar-se; e deixou o sair.

CLV

Não foi a Botafogo o Palha; foi para o lado da cidade, até a rua Sete de Setembro. Desceu a rua da Assembléia, subiu pela de S. José e enfiou pela de Uruguayana até o Alcazar Lyrico.

Naquelle trajecto, levou sempre ante os olhos os dous suppostos culpados. Não os insultava, não tinha um nome ruim para os enxovalhar, á meia voz ou de cabeça. Todo elle era pouco para imaginar. Ouvia os carinhos de ambos, inventava os quadros, coloria-os, dava-lhes vida, e a raiva crescia e a dôr ficava mais lancinante. Tinha estremeções, vertigens, á medida que a probabilidade da posse ia-se-lhe enterrando no cerebro, e a imaginação a tornava real. Vinham-lhe desejos de pegar de um ferro,e correr a matal-o; — a ella, não, porque o adulterio não lhe trazia incompatibilidade moral. Talvez não o matasse, se a condição fosse perdel-a. Toda a sua paixão era physica, e nem por isso menos cruel.

Ás vezes, duvidava. O Rubião? Que diabo de extravagancia! O Rubião? Que feitiço acharia ella naquelle homem sem graça? Recordava-se que, mais de uma vez, havia mofado delle a sós; e que ella notava sempre algum dito ou gesto, que movia ao riso de ambos, posto que a lembrança dos mimos e larguezas do amigo promptamente os fizesse emendar a mão.

— Seja como fôr, tem-se mostrado nosso amigo.

— Isso é verdade.

— Nunca o achamos em falta, etc.

Mas essa mesma recordação aggravava a suspeita; a mulher fallaria para adormecer a vigilancia do marido, e as dadivas do homem podiam ter por objecto intimo captar a gratidão deste. Já a bonhomia do Rubião lhe parecia simulada; achava-lhe agora um olhar empanado e fraudulento. Que importa que lhe faltasse graça?

Deu comsigo no Alcazar Lyrico. Precisava de vêr outras cousas, para arredar os quadros que a imaginação lhe trazia vivos e animados. Representava-se uma peça qualquer; alegre, de certo, e toda gente ria. No fim do acto, viu dous comensaes da casa do Rubião e foi ter com elles. Pediu-lhes noticias do amigo; confiou-lhes o receio que alguem lhe comunicara de estar meio doente da cabeça. Um dos comensaes, alto e magro — Magalhães por nome — confirmou promptamente o receio; mas o outro negou tal cousa.

— Perdão, Sr. Gama, tornou o primeiro, ha de lembrar-se que outro dia, á sobremesa...

— Que foi, á sobremesa? perguntou o Gama, olhando de cima, fulminante.

— Quando elle nos disse que era imperador, — não se lembra? — por signal que chamou ao Pimentel marechal...

— Sim? Que tem isso? disse o Gama.

E virando se para o Palha:

— Foi um gracejo delle — porque elle comprou ha pouco um busto de Napoleão III e como é grande enthusiasta fallou assim, dizendo que o imperador era elle. Faça-me favor de dizer em que é que ha nisto signal de loucura?

— Eu não disse loucura, atalhou Magalhães.

— Tambem não me fallaram em loucura propriamente dita, obtemperou o Palha.

— Nem propria nem impropria. Meio doente da cabeça é que lhe disseram, não foi? Pois não ha nada disto.

Magalhães puxava os bigodes, sem achar meio de desmentir-se; assim estivesse arrependido dos seus peccados como de haver lembrado o episodio. Afinal, concordou que podia ser engano...

— Ainda póde ser engano, accentuou o Gama, sorrindo e olhando para o marido de Sophia.

— Foi effectivamente engano.

— Mas então porque affirmou? Sabe que este senhor foi socio delle, é amigo, naturalmente havia de receber um golpe grande com tal noticia. Ás vezes é de uma impressão errada, como esta do Sr. Magalhães, que nascem os boatos.

— Isso é verdade, acudiu Magalhães para não parecer que dava pela insinuação; e continuou, dirigindo-se ao Palha: — Ainda não viu os bustos? Vá vêr, que são lindos. Napoleão III até se parece com o nosso amigo...

— E foi tambem por isso que elle disse ser o imperador dos francezes, affirrnou o Gama. Um gracejo, sabe?

CLVI

Quando ouviu o signal de levantar o panno, o Palha despediu-se e sahiu. Não sabia a quem désse credito, e a possibilidade do peior é que o affrontava. O peior era a sanidade mental do Rubião. Entretanto a versão de Magalhães, coincidindo com a de Sophia, dava-lhe força e probabilidade.

— Se fosse verdade! suspirou elle interiormente.

Resolveu ir de manhã á casa do Rubião, e voltou tarde para o Flamengo. A mulher dormia profundamente. Tinha attitudes elegantes e como que affectadas, quando dormia; naquella occasião parecia estar de proposito, a espera delle, com os braços voltados para cima, cruzando os dedos sobre a cabeça. Os cabellos, mal atados, achavam-se desfeitos em parte. Mas essa mesma attitude, e o desalinho natural do somno, em noite de verão, ainda mais o affligiram e irritaram. A visão fez-se outra vez intensa; o somno chegou tarde e curto. Antes do sol, estava o Palha de pé; e o sol, que se deu pressa em vir, o expectaculo do mar e do ceu, a promessa de um bello dia, a vida usual, e as lembrança do escriptorio até certo ponto o aquietaram. A cabeça, affeita ao meneio do negocio, cuidou em algumas cousas daquella data, umas letras do Banco do Brasil, facturas, contas, descargas.

Quando o Palha tornou ao caso da vespera, não estava inteiramente desassombrado; mas a hypothese do transtorno mental do Rubião fez-se-lhe mais verosimil. Só então lhe occorreu que a mulher não attribuiria ao Rubião uma doença daquella, que se desmentiria desde logo. Podia inventar outra cousa que explicasse a aventura da carruagem, a audacia delle, ou um impulso leviano seu, — qualquer cousa, menos o delirio. Não obstante, foi á casa do Rubião, eram oito horas da manhã; a mulher levantava-se ás nove.

(Continúa.)

CLV

Palha reconheceu, poucas horas depois, a veracidade da mulher. Na manhã seguinte foi a Botafogo, achou Rubião, que a primeira cousa que lhe perguntou foi se já tinha visto o seu busto; e, sabendo que não, correu a mostrar-lh'o: era o de Napoleão III.

— Que tal?

— Está bom.

— Parecido?

— Sim, parecido.

Rubião fitou por alguns instantes o Palha; depois, bateu-lhe no hombro com enthusiasmo:

— Christiano Palha, estás nomeado duque.

Na alma do Palha houve um minuto em que a pena e o gosto se misturavam de tal maneira, que era difficil distinguir qual dos dous sentimentos prevaleceria; mas os outros minutos vieram trazendo a solução. Desde que a certeza do delirio restituia ao espirito do Palha a paz e a felicidade, o gosto cedeu o passo á pena, que ficou só, deante do nosso homem. Pobre Rubião! murmurava elle. Sim, era verdade que, na vespera, esse enfermo andara de carro com Sophia, e, accordada a paixão antiga, proferira aquellas palavras desattentas.

Na volta, em vez de seguir para a cidade, Palha correu ao Flamengo. A mulher acabára de levantar-se, e lia as folhas do dia, sentada á janella, defronte do mar. Palha chegou-se a ella, inclinou-se e deu-lhe um beijo.

— Perdoa-me, disse, venho de Botafogo; achei o delirando. Fui um grosseirão hontem...

— Não, senhor, apenas um ingrato, respondeu ella sorrindo.

— Mas, perdoas-me?

Sophia, sem se levantar, esticou os beiços e perdoou-lhe.

— O mesmo delirio? perguntou ella.

— Nomeou-me duque. Cre-se imperador, Napoleão III. Coitado! Fez-me pena! Quando ia a sair encontrei dous sugeitos que costumam almoçar e jantar com elle; fallei-lhes do Rubião; um disse que nunca vira nada, mas o outro confessou que havia alguma cousa. Já notára certas palavras enigmaticas; e tinha visto o busto de Napoleão III, que elle apresentava como seu. Accrescentou, porém, que não era nada, um pequeno transtorno de ideias...

Sophia acompanhou o marido até á porta, fez-lhe umas encommendas, e tornou aos jornaes. Ia justamente em meio de um folhetim, traduzido do francez, cuja acção era passada grande parte em um castello. Não gostava de outros romances; trazia a cabeça cheia de marquezas, condessas e duquezas...

— Duqueza! rutilou-lhe agora uma grande mosca de ouro pelo cerebro, ou zumbiu-lhe ao ouvido; não se sabe bem. Mas não se demorou muito, calou-se ou desappareceu. Alas, poor Yorick! pobre Rubião! um doudo, um simples doudo!

CLVI

Mal acabára de sair, tornou o Palha á sala, com uma carta do correio, que recebera á porta, e quiz entregar a Sophia por sua mão, quando podia mandar pelo criado; o remorso é obsequioso. A carta era de Maria Luiza, annunciando á prima que interrompiam a viagem, porque o marido, Carlos Maria, tinha de accudir em pessoa a um negocio de bens, que estavam em perigo. Cá estariam em Abril. Datava de Paris.

Sophia leu a carta com fastio, deu-a ao marido, que tambem a leu, e despediram-se outra vez. Ella reflexionou um instante, tentou reler a carta, mas limitou-se a amarrotal-a. Depois continuou o folhetim:

"... Quando Henrique de Thouars entrou no salão, já alli estava a marqueza de Larochette, que lhe disse:

"— Conde, vindes muito tarde.

"— A culpa não é minha, senhora marqueza, retorquiu o mancebo; estive muito tempo com o Sr. de Fervacques...

"— Ah! e os papeis?

"— Trago-os aqui...

"— Todos?

"— Não; falta a carta de 12 de Outubro.

"— Ai, conde! é o principal documento...

CLVII

Espalhou-se a nova da mania de Rubião. Alguns, não o encontrando nas horas do delirio, faziam experiencias, a ver se era verdadeiro o boato; encaminhavam a conversação para as cousas de França e do imperador. Rubião resvalava ao abysmo, e convencia-os. Podemos comparal-o a um piano magico, donde uma sonata sabia inteira, só com tirar-lhe a primeira nota. Um dedo bastava, um dedo e uma tecla. O resto vinha da alma do instrumento, — por ventura, um aranha.

Occasião houve, por esse tempo, em que Rubião teve uma crise que lhe durou mais que de costume. Foi em Março, quando aqui chegou o primeiro batalhão, de volta da campanha do Paraguay. Rubião assistiu á passagem dos soldados, na rua, entre dous corredores, no meio da multidão. Subito, imaginou que eram as tropas francezas que tornavam da campanha da Italia; postoque com os pés no chão, cuidou tel-os nos estribos, elle a cavallo, e os chapéos das mulheres e dos homens, que o rodeavam, deram-lhe a imagem dos pennachos do seu estado-maior. Oh! com que alma applaudiu a bizarria dos soldados, — não em grita, mas grave e solemne! Esse unico batalhão eram cem brigadas, tudo se multiplicava, e a consciencia de emprestimo occupou por longo tempo o logar da propria.

Entretanto, conhecidos e amigos continuavam a recebel-o. Camacho, quando casou a filha, não deixou de o convidar, nem elle de comparecer. Ao jantar, fez Rubião um brinde bem dedusido e curto, que foi applaudido, principalmente por não haver discrepado um instante do assumpto e da razão. Camacho agradeceu commovido. "As alegrias da amisade e da familia, — concluiu o pae da noiva. — consolam do ostracismo e das injurias do poder".

(Continúa.)

CLVI

Passaram-se alguns mezes, veiu a guerra franco-prussiana, e as crises de Rubião tornaram-se mais intensas e menos espaçadas. Quando as malas da Europa chegavam cedo, Rubião sahia de Botafogo, antes do almoço, e corria a esperar os jornaes; comprava a Correspondencia de Portugal, e ia lel-a no Carceler. Quaesquer que fossem as noticias, dava-lhes o sentido da victoria Fazia a conta dos mortos e feridos, e achava sempre um grande saldo a seu favor. A quéda de Napoleão foi para elle a captura do rei Guilherme, a revolução de 4 de Setembro um banquete de bonapartistas. Nada o enthusiasmou tanto como a proclamação do imperio germanico, em Versalhes.

— Estou satisfeito com os principes allemães, disse elle em casa, quando aquella noticia chegou ao Rio de Janeiro; fizeram-me hoje uma apotheose, e entregaram-me a Allemanha. Agradeci, mas vou dal-a ao rei Guilherme. Para que quero eu outro imperio? Já dei Veneza aos italianos.

Em casa, os amigos do jantar não se mettiam a dissuadil-o. Tambem não confirmavam nada, por vergonha uns dos outros; sorriam e desconversavam. Todos, entretanto, tinham as suas patentes militares, o marechal Torres, o marechal Pio, o marechal Ribeiro, e acudiam pelo titulo. Rubião via-os fardados; ordenava um reconhecimento, um ataque, e não era necessario que elles sahissem a obedecer; o cerebro do amphytrião cumpria tudo. Quando Rubião deixava o campo de batalha para tornar á mesa, esta era outra. Já sem prataria, quasi sem porcellana nem crystaes, ainda assim apparecia aos olhos de Rubião régiamente esplendida. E a comida tinha o mesmo caracter. Pobres gallinhas magras eram graduadas em faisões; picados triviaes, assados de má morte traziam o sabor das mais finas iguarias do céo e da terra. Lá os comensaes faziam algum reparo, entre si, — ou ao cosinheiro. — mas Lucullo ceiava sempre com Lucullo. Toda a mais casa, gasta pelo tempo e pela incuria, tapetes desbotados, mobilias truncadas e descompostas, albuns rotos, cortinas enxovalhadas, nada tinha o seu actual aspecto, mas outro, lustroso e magnifico. E a linguagem era tambem diversa, rotunda e copiosa, e assim, as idéas, algumas extraordinarias, como as do finado amigo Quincas Borba, — theorias que elle não entendera, quando lh'as ouvira outr'ora, em Barbacena, e que ora repetia com lucidez, com alma, — ás vezes, empregando as mesmas phrases do philosopho. Como explicar essa repetição do obscuro, esse conhecimento do inextricavel, quando as idéas e as palavras pareciam ter ido com os ventos de outros dias? E porque todas essas reminiscencias desappareciam com a volta da razão?

CLVII

A compaixão de Sophia, — explicado o mal do Rubião pelo amor que elle lhe tinha, — era um sentimento medio, não sympathia pura nem egoismo ferrenho, mas participando de ambos. Uma vez que evitasse alguma situação identica á do coupé, tudo ia bem. Nas horas em que Rubião estava lucido, escutava-o e fallava-lhe com interesse, — até porque a doença, dando-lhe audacia nos momentos de crise, dobrava-lhe a timidez nas horas normaes. Não sorria, como o Palha, quando Rubião subia ao throno ou commandava um exercito. Crendo-se autora do mal, perdoava-lh'o; a idéa de ter sido amada até á loucura, sagrava-lhe o homem.

CLVIII

— Porque não o tratam? perguntou uma noite D. Fernanda, que alli o conhecera no anno anterior; pode ser que se cure.

— Parece que não é cousa grave, acudiu o Palha; tem desses accessos, mas assim mansos, como viu, ideias de grandeza, que passam logo; e repare que fóra daquillo, conversa perfeitamente. Comtudo, póde ser... Que acha V. Ex.?

Theophilo o marido de D. Fernanaa, respondeu que sim, que era possivel.

— Que fazia elle, ou que faz agora? continuou o deputado.

— Nada, nem agora nem antes. Era rico, — mas gastador. Conhecemol-o quando veiu de Minas, e fomos, por assim dizer, o seu guia no Rio de Janeiro, aonde não voltara desde longos annos. Bom homem. Sempre com luxo, lembra-se? Mas, não ha riqueza inexgotavel, quando se entra pelo capital; foi o que elle fez. Hoje creio que tenha pouco...

— Podia salvar-lhe esse pouco, fazendo-se nomear curador, em quanto elle se trata. Não sou medico, mas póde ser que esse seu amigo fique bom.

— Não digo que não. Realmente, é pena... Dá-se com todos e presta seus serviços. Sabe que esteve para ser nosso parente? Andou com ideias de casar com Maria Benedicta.

— A proposito de Maria Benedicta, interrompeu D. Fernanda, ia-me esquecendo que trago uma carta della para mostrar á senhora; recebi-a hontem. Já ha de saber que em breve estão de volta? Está aqui.

Entregou a carta a Sophia, que a abriu sem enthusiasmo, e a leu com tedio. Era mais que uma vulgar carta transatlantica, era um deposito moral, uma confissão intima e completa de pessoa feliz e agradecida. Contava os mais recentes episodios da viagem, desordenadamente, porque os viajantes eram sobrepostos a tudo, e as mais bellas obras do homem ou da natureza valiam menos que os olhos que as miravam. Valiam ainda menos; ás vezes, um incidente de hospedaria ou de rua comia mais papel e trazia mais interesse que outros, pela razão de pôr em relevo as qualidades do marido. Maria Benedicta amava tanto ou ainda mais que no primeiro dia. No fim, a medo, em post-scriptum, pedindo que o não dissesse a ninguem, confessava que era mãe.

Sophia dobrou o papel, não já com tedio, senão com azedume, e por dous motivos que se contradizem; mas a contradicção é deste mundo. A expansão da prima com uma estranha era o primeiro Cotejada aquella carta com as que recebera de Maria Benedicta, dir-se-hia que ella era apenas uma conhecida, sem outro laço de sangue ou de affecto; e, principalmente, não havia na ultima, chegada na vespera, a confissão final daquella, aggravada pela recommendação de não a transmittir a ninguem. O segundo motivo era essa felicidade cochichada do outro lado do oceano, cheia de minucias, de adjectivos de exclamações era o atropello com que interrompia uma historia para fallar de Carlos Maria do olhar de Carlos Maria, de um dito de Carlos Maria, dos passeios longos e solitarios com Carlos Maria, e finalmente do filho de Carlos Maria. Parecia acinte, e quasi fazia crer na cumplicidade de D. Fernanda.

Habil, sabendo domar-se a tempo Sophia dissimulou o azedume, e restituiu sorrindo a carta da prima. Quiz dizer que, pelo texto, a felicidade de Maria Benedicta devia estar intacta como a levara daqui, mas a voz não lhe passou da garganta D. Fernanda é que se incumbiu de conclusão:

— Vê-se bem que é feliz!

— Parece que sim.

— Creia que eu teria remorsos, se acontecesse o contrario; mas, alcançando o que alcancei, sinto-me ainda mais feliz que ella, se é possivel. A verdade é que sua prima merece tudo: é um anjo. Nós, ainda que não tivessemos de ficar no Rio de Janeiro, este anno, por outros motivos ficariamos para recebel-a e ouvil-a, para que eu lhe désse muitos beijos, muitos...

Sophia concordou que a prima tinha jus á affeição da amiga; e já agora poz algum calor na palavra, para não desmerecer de D. Fernanda, personagem alta, brevemente (quem sabe?) esposa de ministro. Egual cuidado animava o marido, que fallava ao deputado em materias economicas, — a pretexto de um discurso de Theophilo, na camara, — "um discurso que o indicava para substituir o ministro da fazenda."

(Continúa.)

CLIX

Se a manhã seguinte não fosse chuvosa, Sophia, que dormira mal a noite, poderia ter tido outra ordem de ideias. O sol nem sempre é official de boas ideias; mas, ao menos, — que é o nosso ponto, — permitte sahir, de casa. A chuva cahia grossa e continua, e o céo e o mar era tudo um, tão baixas estavam as nuvens e tão espessa era a cerração, que não consentia ver nem suspeitar as montanhas do outro lado da bahia.

Tudo aborrecido fóra, tudo aborrecido dentro. Não havia horizonte em que espraiasse a vista e descançasse a alma. Chuva, chuva, chuva, nada mais que chuva, e um nevoeiro de todos os diabos Sophia metteu a alma em um caixão de cedro, o qual ficou dentro do caixão de chumbo do dia, — metaphora funebre, mas não ha outra que melhor quadre á situação moral da nossa amiga. Dir-se-ha que, além de funebre, a metaphora é mal ajustada, porque, se ella metteu a alma no feretro, aconteceu a esta o que acontece aos defunctos, que não pensam. Esse é o erro dos seculos. Todo defuncto, por estar encerrado no feretro, não deixa de pensar alguma cousa, — um resto de ideias, — as ultimas notas do banco intelectual. Que elle é inutil levar dinheiro para o outro mundo, meu caro senhor: lá, como no Eldorado de Voltaire, todas as despezas de hospedagens são pagas pelo governo.

As ideias da alma de Sophia não eram ultimas, — eis a differença entre ella e os defunctos de verdade. Nem ultimas, nem claras, e tantas que não caberiam em um capitulo, mas tão irmãs que poderiam formar uma só, e talvez fosse isso mesmo, — uma unica, scintillando no fundo da consciencia, em tal maneira que pareciam muitas, e até contrarias. Convenho que entramos no mysterio. E tudo nasceu da maldita carta da vespera, e das recordações que lhe trouxe de Carlos Maria, um homem que era agora seu primo. Sinceramente, cuidára ter arrancado de si a herva ruim que alli brotara, em certa noite fatidica. Verificava que não; ainda lá estavam raizes, que deram de si mesma herva do demonio, tomando o espaço ás bellas assucenas, ás rosas puras, candidas e cheirosas. Tudo matto, agora, e da peior especie. E foi elle que deitou alli a semente fecunda e damninha. Foi esse vadio enfatuado e egoista que a convidou um dia ao passo do adulterio, e a deixou sósinha no meio do salão.

Depois, visto que o pão do odio póde ser pão de familia, Sophia partiu aquelle com a prima, dissimulada e perfida creatura, um caco de gente, que ella foi buscar á roça para lhe dar lustre de cidade, e que esqueceu o beneficio um dia, para só se lembrar das suas ambições. Neste ponto estava tão desvairada que chegou a profanar, — imaginação, — a maternidade da prima; mas recuou logo, — ou retida pelo respeito, ou animada de outro sentimento menos puro. Que sentimento? Cosei o gosto da vingança ao impulso da curiosidade, e tereis alguma solução explicativa. Sim, podia levar-lhe o desespero á alma, — ou, pelo menos, a desillusão de uma felicidade que devia parecer-lhe eterna e unica.

Como pensasse em D. Fernanda, a proposito da felicidade dos dous, attribuiu a communicação da carta de Maria Benedicta ao gosto gratuito e perverso de lhe fazer ler o pos-scriptum, confidencia intima e exclusiva. Não advertiu que o prazer da felicidade da amiga bastava a explicar o esquecimento da parte reservada da carta; menos ainda indagou se a natureza moral de D. Fernanda comportava essa supposição. Achou-a possivel; e, não querendo lançar-lh'a em rosto, porque a mulher do deputado fazia parte da sociedade que lhe abrira as portas, entender-se-ha a amargura que tal supposição trouxe á nossa dama. Entretanto, o despeito accordou-lhe na alma uma recordação da vespera, por occasião da visita de D. Fernanda, a saber, o longo olhar de admiração em que o marido desta a envolveu. Em verdade, estava nos seus melhores dias; o vestido que trazia sublinhava admiravelmente a gentileza do busto, o estreito da cintura e o relevo delicado das cadeiras; — era foulard, côr de palha.

— Côr de palha, accentuou Sophia rindo, quando D. Fernanda o elogiou, pouco depois de entrar. Côr de palha, como uma lembrança deste senhor.

Não é facil dissimular o prazer da lisonja; o marido sorriu cheio de agradecimento, procurando ler nos olhos dos outros o effeito daquella prova minuciosa de amor. Theophilo elogiou tambem o vestido, mas era ainda menos facil contemplal-o sem contemplar tambem o corpo da dona; d'alli os olhos compridos que lhe deitou, sem concupiscencia, é certo, e quasi sem reincidencia. Pois esse incidente da vespera, um gesto sem convite, uma admiração sem desejo, veiu metter-se de permeio agora, quando Sophia cuidava na maldade da outra.

Carlos Maria, Theophilo... Outros nomes relampejavam no céo daquella possibilidade, como ficou expresso no cap. CLIV. E vieram todos agora, porque a chuva continuava a cair e o céo e o mar estavam ainda unidos pela mesma cerração. Vieram todos esses nomes, com os proprios sujeitos correspondentes, e até vieram sujeitos sem nomes, — os adventicios e ignorados, — que uma só vez passaram por ella, cantaram o hymno da admiração e receberam o obolo da boa vontade. Porque não reteve algum de tantos, para ouvil-o cantar e enriquecel-o? Não é que os obolos enriqueçam a ninguem, mas ha outras moedas de maior valia ha drachmas, ha talentos. Porque não reteve um de tantos nomes elegantes, e até egregios? Essa pergunta sem palavras correu-lhe assim muitas vezes pelas veias, pelos nervos, pelo cerebro, sem outra resposta mais que a agitação e a curiosidade. A disposição latente, — nativa ou adquirida, — era agora vontade imperiosa. A imaginação dourava tudo.

CLX

Nisto, a chuva cessou um pouco, e um raio de sol logrou romper o nevoeiro, — um desses raios humidos que parecem vir de olhos que choraram. Sophia cuidou que ainda podia sair, estava inquieta por vêr, por andar, por sacudir aquelle torpor, e esperou que o sol varresse a chuva e tomasse conta do ceu e da terra; mas o grande astro percebeu que a intenção della era constitui-lo lanterna de Diogenes, para achar um homem, e disse ao raio humido: "Volta, volta ao meu seio, raio casto e virtuoso; não vás tu conduzil-a aonde o seu desejo a quer levar. Que ame, se lhe parece; que responda aos bilhetes namorados, — se os recebe e não queima, — não lhe sirvas tu de archote, luz do meu seio, raio, irmão dos meus raios..."

E o raio obedeceu, recolhendo-se ao foco central, um pouco espantado do temor do sol, que tem visto tantas cousas ordinarias e extra-ordinarias. Então o veu de nuvens fez-se outra vez espesso, e mais escuro, e a chuva tornou a cahir em grandes bategas.

CLXI

Sophia resignou-se á reclusão. Sentou-se á janella para fartar-se de enfado com o expectaculo do tempo; mas esse expectaculo ia já agora com a situação moral da moça, e não tardou que ella esquecesse o tedio e a rua. De facto, a cerração, não permittindo distinguir nada, navio ou montanha, reproduziu-se dentro della, relativamente aos homens. Tendo recordado muitos delles, e os seus nomes e as suas figuras, perdia-os a todos para ver somente uma grande massa confusa, incoercivel. Não tinha agora mais que um desejo sem eleição, uma curiosidade em designada pessoa. Queria amar, amar, amar. Tanto melhor se fosse ao melhor dos homens; mas, o mais insignificante delles, o mais banal ou vão, era ainda assim um homem, — tão legitimo como outro qualquer, uma vez que lhe viesse dar a mão no meio da sala, onde Carlos Maria a deixára sem parceiro.

(Continúa.)

CLXI

(Continuação)

Naturalmente, não reflectia essas cousas, — sentia as apenas, — e taes estados de consciencia, vagos e obscuros, não deixavam memoria integral, nem clara. Assim, quando ella tornava á realidade local e presente, mal podia restaurar as sensações anteriores; ficava-lhe, porém, o bastante para reconhecel-as e tentar fugir-lhes. Baldado esforço; não tardava a escorregar de um estado em outro, como os olhos somnolentos se fecham de cada vez que espertam, e tornam a espertar para se fecharem outra vez. Afinal, Sophia deixou a vista da chuva e do nevoeiro; estava cançada, e para repousar, foi abrir as folhas do ultimo numero da Revista dos Dous Mundos. Um dia, no melhor dos trabalhos da commissão das Alagôas, perguntára-lhe uma das elegantes do tempo, casada com um senador.

— Está lendo o romance de Feuillet, na Revista dos Dous Mundos?

— Estou, acudiu Sophia; é muito interessante.

Não estava lendo, nem conhecia a Revista; mas, no dia seguinte, pediu ao marido que a assignasse; leu o romance, leu os que sahiram depois, e fallava de todos os que lêra ou ia lendo. Abertas as folhas d'aquelle numero, e acabada uma novella, Sophia recolheu-se ao quarto e atirou se á cama. Passára mal a noite, não lhe custou pegar no somno, — profundo, largo e sem sonhos, — excepto para o fim, em que teve um pesadelo. Estava deante da mesma parede de cerração daquelle dia, mas no mar, á prôa de uma lancha, deitada de bruços, escrevendo com o dedo na agua um nome — Carlos Maria E as lettras ficavam gravadas, e para maior nitidez, tinham ou sulcos de espuma. Até aqui nada havia que espantasse, a não ser o mysterio; mas é sabido que os mysterios dos sonhos parecem factos naturaes. Eis que a parede da cerração se rasga, e nada menos que o proprio dono do nome apparece aos olhos de Sophia. Caminha para ella, entra na lancha, toma-a nos braços e diz-lhe muitas palavras de ternura, analogas ás que ella, pouco tempo antes, ouvira ao Rubião. E não a affligiram, como as d'este; ao contrario, escutou-as com ternura, meia cahida para trás, como se desmaiasse. Já não era lancha, mas carruagem, onde ella se ia com o primo, mãos presas, namorada de uma linguagem de ouro e sandalo. Tambem aqui não ha que atterre. O terror veiu quando a carruagem parou, muitos vultos mascarados a cercaram um delles matou o cocheiro, dous arrancaram as portinholas, apunhalaram Carlos Maria e deitaram o cadaver ao chão. Depois, um delles, que parecia ser o cabo de todos, tomou o lugar do defunto, tirou a mascara e disse a Sophia que se não assustasse, que elle a amava cem mil vezes mais que o outro. Logo em seguida, pegou-lhe nos pulsos e deu-lhe um beijo, mas um beijo humido de sangue, cheio de sangue, inteiramente sangue. Sophia soltou um grito de horror e acordou. Tinha ao pé do leito o marido.

— Que foi? perguntou elle.

— Ah! respirou Sophia. Gritei, não gritei?

Palha não respondeu nada; olhava á tôa, pensava em negocios. Então um receio assaltou a mulher, o de haver effectivamente fallado, murmurado alguma palavra, um nome qualquer, — o mesmo que escrevera na agua. E logo, espreguiçando os braços para o ar, fel-os cahir sobre os hombros do marido, cruzou as pontas dos dedos na nuca, e murmurou meia alegre, meia triste:

— Sonhei que estavam matando você.

Palha ficou enternecido. Havel-a feito padecer por elle, ainda que em sonhos, encheu-o de piedade, mas de uma piedade gostosa, um sentimento particular, intimo, profundo, — que o faria desejar outros pesadelos, para que o assassinassem aos olhos della, e para que ella gritasse angustiada, convulsa, cheia de dor e de pavor.

CLXII

No dia seguinte o sol appareceu claro e quente, o ceu limpido, e o ar fresco. Sophia metteu-se no carro e saiu a visitas e a passeio para desforrar-se da reclusão. Já o proprio dia lhe fez bem. Vestiu-se cantarolando O trato das senhoras que a receberam em sua casa, — e das que achou na rua do Ouvidor, a agitação externa, as noticias da sociedade, a boa feição de tanta gente fina e amiga, bastaram a espancar-lhe da alma os cuidados da vespera.

CLXIII

Assim, pois, o que parecia vontade imperiosa reduzia-se a velleidade pura, e, com algumas horas de intervallo, todos os maos pensamentos se recolheram ás suas alcovas. Sahiram mais tarde naturalmente, — ao menos, por hygiene, — mas nenhum se apparelhou para deixar a hospedaria e vir cá fóra guerrear os pensamentos contrarios. Se me perguntardes por algum remorso de Sophia, não sei que vos diga. Ha uma escala de ressentimento e de reprovação. Não é só nas acções que a consciencia passa lentamente da novidade ao costume, e do temor á indifferença. Os simples peccados de pensamento, offerecem essa mesma alteração, e o uso de pensar nas cousas affeiçoa tanto o espirito a ellas, — que este, afinal, não as extranha, nem as repelle. Ha sempre um refugio moral na isenção exterior, que é, por outros termos mais explicativos, o corpo sem macula.

CLXIV

Um só incidente affligiu Sophia naquelle dia puro e brilhante, — foi um encontro com Rubião. Tinha entrado em uma livraria da rua do Ouvidor para comprar um romance; em quanto esperava o troco, viu entrar o amigo. Rapidamente voltou o rosto e percorreu com os olhos os livros da pratelheira, — uns livros de anatomia e de estatisca; — recebeu o dinheiro, guardou-o e, de cabeça baixa, rapida como uma flexa, saiu á rua, e enfiou para cima. O sangue só lhe socegou, quando a rua dos Ourives ficou para traz. Não podia adivinhar que elle a não tinha visto sequer; nem podia saber que, não a vendo embora, não sahisse logo, não a conhecesse, não corresse a aggarral-a, a dizer-lhe algum desvario.

 E novamente a assaltou igual receio dias depois, entrando na sala de D. Fernanda, e achando alli Rubião, — eram tres horas da tarde. Rubião não a viu chegar; estava mettido n'uma poltrona, na angulo da sala, perto da janella, inclinado sobre um album de retratos, que ia folheando. Não ouviu tambem as palavras de recepção entre as duas senhoras Mas, ao fechar o album, ergueu a cabeça e viu Sophia; deu-se pressa em ir ter com ella, apertar-lhe a mão, pedir-lhe que a desculpasse, não a vira entrar; e perguntou-lhe pelo marido.

— Está bom.

— Dê-lhe lembranças. Agora as senhoras hão de querer conversar sosinhas, dispensem-me. D. Fernanda, amanhã mando-lhe o meu retrato.

— Pois sim; sem falta.

— Sem falta.

D. Fernanda levantou-se para acompanhal-o até a porta da sala.

— Elle vem aqui muitas vezes? perguntou Sophia, quando a outra tornou a sentar-se.

— Esta é a quarta vez, quarta ou quinta; mas só da segunda vez appareceu com o delirio. Das outras é como viu agora, socegado, e até conversador. Ha nelle sempre alguma cousa que mostra não estar completamente bem. Não reparou nos olhos, um pouco vagos? É isso; no mais, conversa bem. Creia, D. Sophia; aquelle homem pode sarar. O nosso medico já me disse que ainda é tempo. Por que não faz com que seu marido tome isto a peito?

— Christiano tem ideia de o mandar examinar e tratar; mas, deixe estar que eu o apresso.

— Sim, falle-lhe. Elle parece ser muito amigo da senhora e do Sr. Palha.

— Ter-lhe-ha dito alguma inconveniencia no delirio, a meu respeito? pensou Sophia. Convirá revellar-lhe a verdade?

Concluiu que não; o proprio mal do Rubião explicaria as inconveniencias. Prometteu que apressaria o marido, e, nessa mesma tarde expoz o negocio ao Palha, approvando a ideia de tentar a cura. "Era uma grande amolação," redarguiu elle. E perguntou que interesse tinha D. Fernanda em tornar áquelle negocio. Que o tratasse ella mesma! Era uma atrapalhação ter de cuidar do outro, de o acompanhar, e, provavelmente, de recolher e gerir algum resto de dinheiro que ainda houvesse, fazendo-se curador, como dissera o Dr. Theophilo. Um aborrecimento de todos os diabos.

— Já ando com grande carga sobre mim, Sophia. E depois como hade ser? Havemos de trazel-o para casa? Parece que não. Mettel-o onde? Em alguma casa de saude... Sim, mas se não quizerem acceital-o? Não heide mandal-o para a Praia Vermelha... E as responsabilidades? Você prometteu que me falaria?

— Prometti, e affirmei que você faria isto, respondeu Sophia sorrindo. Talvez não custe tanto como parece.

Sophia insistiu ainda, n'aquelle e nos outros dias, mas com grande tento para não enfadal-o. A compaixão de D. Fernanda tinha-a impressionado muito; achou-lhe um quê distincto e nobre, e advertiu que se a outra, sem relações estreitas nem antigas com Rubião, tinha aquelle sentimento desinteressado era de bom gosto não ser menos generosa.

(Continúa.)

CLXV

Tudo se fez socegadamente. Palha arranjou uma casinha na rua do Principe, cerca do mar, onde metteu o nosso Rubião, alguns trastes e o cachorro amigo. Rubião acceitou a mudança sem desgosto, e, desde que lhe tornou o delirio, com enthusiasmo. Estava nos seus paços de S. Cloud.

Não sucedeu assim aos amigos da casa, que receberam a noticia da mudança como um decreto de exilio. Tudo na antiga habitação fazia parte delles, o jardim, a grade, os canteiros, os degráus de pedra, a sala, a enseada. Traziam tudo de cór; eram capazes de transpor o portão com os olhos fechados, e ir direitinhos, sem encontrões, sem desvio de uma linha, até á cadeira do costume, á mesa do jantar, e estender a mão ao vinho, á fructa, á compota, aos palitos. E não fallo da differença entre as duas habitações, posto ninguem ignore ser mais aprasivel entrar em casa grande que em casa pequena, — não só por dar mais na vista, como por elevar muito mais o proprio espirito e a consideração de si mesmo. Acrescente-se o sentimento de dominio, espertado e fortalecido pelo costume de entrar ali todos os dias, sem bater, porque o portão vivia escancarado, e a porta da casa abria-se, dando volta á maçaneta. Era entrar, pendurar o chapeu, e ir esperar na sala. Tinha perdido a noção da cousa alheia e do obsequio recebido; tudo era de todos e de cada um. Depois, a visinhança. Cada um daquelles amigos do Rubião estava affeito a ver as pessoas do logar, as caras da manhã e as da tarde, alguns chegavam a comprimental-as, como aos seus proprios visinhos.

Não obstante, iriam todos para Babylonia, como os desterrados de Sião. Onde quer que estivesse o Euphrates, achariam salgueiros em que pendurassem as harpas saudosas, — ou mais propriamente, cabides em que puzessem os chapéos. A differença entre elles e os prophetas é que, ao cabo de uma semana, pegariam outra vez dos instrumentos, e os tangeriam com a mesma graça e força; cantariam os velhos hymnos, tão novos como no primeiro dia, e Babel acabaria por ser a mesma Sião, perdida e resgatada.

— O nosso amigo precisa de repouso por algum tempo, disse-lhes o Palha, em Botafogo, na vespera da mudança. Hão de ter reparado que não anda bom; tem suas horas de esquecimento, de transtorno, de confusão, vae tratar-se, hade ficar bom; mas, por emquanto é preciso que descanse. Arranjei-lhe uma casa pequena, mas póde ser que, ainda assim, passe para um estabelecimento de saude.

Ouviram attonitos Um delles, o Pio, voltando a si mais depressa que os outros, respondeu que ha mais tempo se devia ter feito aquillo; mas, para fazel-o, era preciso ter influencia decisiva no animo de Rubião.

— Muitas vezes lhe disse, por boas maneiras, que era indispensavel consultar um medico, por me parecer que tinha alguma cousa no estomago... Era um modo de desviar o sentido, comprehende? Mas elle respondia sempre que não tinha nada, diggeria bem... — "Mas come menos, dizia-lhe eu; ha dias em que não come quasi nada; está mais magro, um pouco amarello..." Comprehende que não podia dizer-lhe a verdade. Cheguei a fallar a um medico, meu amigo; mas o nosso bom Rubião não o quiz receber.

Os outros quatro iam confirmando com a cabeça toda aquella invenção; era o mais que se lhes podia pedir e tudo o que lhes consentia o atordoamento do golpe. Acabaram perguntando o numero da nova casa, para irem saber delle. Pobre amigo! Quando se arrancaram dalli, e se despediram uns dos outros, deu se um phenomeno com que não contavam; é que elles mesmos mal podiam separar-se. Não que os ligasse amizade nem estima; o proprio interesse os fazia antipathicos. Mas o costume de se verem todos os dias, ao almoço e ao jantar, — á mesma mesa, como que os tinha fundido uns nos outros; a necessidade os fez supportaveis, o tempo os tornou mutuamente precisos. Em resumo, eram os olhos de cada um que iam padecer com a ausencia das caras de uso, do gesto conhecido, das suiças, dos bigodes, dos olhos, da calva, dos sestros particulares, do modo de comer, de fallar e de estar dos companheiros. Reciprocamente, valiam a fructeira costumada, o saleiro, a quina do apparador; cousas e pessoas já incrustadas no cerebro de cada um delles. Era mais que separação, era desarticulação.

CLXVI

Rubião notou que elles não o acompanharam á casa nova, e mandou-os chamar; nenhum veiu, e a ausencia encheu de tristeza o nosso amigo, — durante as primeiras semanas. Era a familia que o abandonava. Rubião procurou recordar se lhes fizera algum mal, por obra ou por palavra, e não achou nada.

Da antiga casa vieram só um criado e o cão. Este não sentiu a mudança, e entrou pela habitação nova como se fosse a mesma anterior, sem extranheza nem diminuição. A casa era o amigo. Não deu pela falta do jardim, nem pela escassez de luz. Vivia ao pé de Rubião, diante delle, em volta delle. Nos primeiros dias do delirio, o cão espantára-se de o ouvir fallar só, algumas vezes, olhava, não via ninguem; acabou persuadindo-se que o discurso era para elle, e quedava-se a escutal-o. De quando em quando, erguia-se, dava dous pulos, corria em volta, agitando, a cauda, para mostrar que entendia. Vendo que o amigo continuava a fallar, tornava á primeira posição, sentado sobre as patas trazeiras, com os olhos fitos e attentos. Se Rubião andava de um lado para outro, elle acompanhava o com os olhos, — e se o via parar diante da parede, fallando sempre, ia farejal-a a ver se era uma pessoa.

— ... E alli está Morny, que me não deixa mentir, disse um dia Rubião apontando para o cachorro.

Quincas Borba, ao ver-se designado, remecheu-se todo de contente, correu ao amigo, trepou-lhe aos joelhos, lançou-lhe as patas sobre os hombros, e lambeu-lhe o queixo; depois, enrolou-se-lhe sobre as pernas para dormir. Não dormiu cinco minutos: Rubião ergueu-se subitamente para ir fallar a uma sombra, deixou-o cahir, pisou-lhe uma das pernas, e não ouviu os gemidos do pobre diabo. Tambem não duraram muito; a dôr morreu discretamente para que o cão continuasse a fitar o dono e amal-o.

CLXVII

— Conversei com o homem; achei-lhe ideias delirantes. Comquanto não seja alienista, acho que póde ficar bom... Mas quer saber uma ideia interessante?

— Crê que fique bom? disse D. Fernanda, sem attender á pergunta do Dr. Falcão.

Era deputado o Dr. Falcão, deputado e medico, amigo da casa, varão sabedor, sceptico e frio. D. Fernanda tinha-lhe pedido o favor de examinar o Rubião, pouco depois que este se transportou para a casa da rua do Principe.

— Sim, creio que fique bom, desde que seja regularmente tratado. Póde ser que a doença não tenha antecedentes na familia. Mande vêr um especialista. Mas não quer saber a minha interessante descoberta?

— Qual é?

— Talvez tenha parte na molestia uma pessoa sua conhecida, respondeu elle rindo.

— Quem?

— D. Sophia.

— Como assim?

— Elle fallou-me della com enthusiasmo, disse-me que era a mais esplendida mulher do mundo, e que a nomeára duqueza, por não poder nomeal-a imperatriz; mas que não brincassem com elle que era capaz de fazer como o tio, divorciar-se e casar com ella. Conclui que terá tido paixão pela moça; mas póde ser alguma cousa mais. Falla della com tal intimidade, Sophia para aqui, Sophia para alli... Desculpe-me, mas eu creio que os dois se amaram...

— Oh! não!

— D. Fernanda, creio que se amaram. Que admira? Eu mal a conheço; a senhora mesma parece que não a conhece ha muito tempo, nem viveu na intimidade della. Póde ser que se tivessem amado, e que alguma paixão violenta... Supponhamos que ella o mandasse pôr fóra de casa... É verdade que tem a mania das grandezas; mas tudo se pode juntar...

D. Fernanda não olhava para o outro, vexada de lhe ouvir aquella supposição; evitava discutil-a pelo melindre do assumpto. Achava a suspeita sem fundamento, absurda, inverosimil; não chegaria a crer naquelle amor espurio, ainda que o ouvisse ao proprio Rubião. Um desvairado, em summa. Quando o não fosse, é ainda provavel que lhe não désse fé. Sim, não lhe daria fé. Não podia crer que Sophia houvesse amado aquelle homem, não por elle, mas por ella, tão correcta e pura. Era impossivel. Quiz defendel-a; mas, apezar da intimidade do Dr. Falcão, recuou segunda vez do assumpo, e repetiu a pergunta de ha pouco:

Parece-lhe então que elle póde ficar bom?

— Póde, mas não basta o meu exame. A senhora sabe que, nestas cousas, é melhor um especialista.

Pouco depois, saindo á rua, Falcão sorria da resistencia de D. Fernanda em aceitar a sua hypothese. "Com certeza, houve alguma cousa, dizia elle comsigo; sujeito rico, e si não é um petimetre, é apessoado, e tem fogo nos olhos. Com certeza..." E repetia algumas phrases de Rubião, evocava o gesto e a modulação terna da voz com que fallava de Sophia, e cada vez mais se lhe ia aggravando a suspeita. "Com certeza..." Era já impossivel que se não tivesse amado; a opposição de D. Fernanda parecia-lhe ingenua, — se não era antes um recurso para desconversar e não tocar na materia. Havia de ser isso, não queria opinar de boca...

Neste ponto, sem querer, o deputado estacou o passo. Uma suspeita nova assaltara-lhe o espirito. Apoz alguns instantes rapidos, deu de hombros, voluntariamente, como a desmentir-se, como a achar-se absurdo, e foi andando. Mas a suspeita era teimosa, e a que occupa deveras o interior do homem, não faz caso de hombros nem dos seus gestos. "Quem sabe se D. Fernanda não suspirou tambem por aquelle doente? E essa dedicação não era um prolongamento de amor, etc.?" E assim se foi desfiando um rosario de perguntas, que achavam no intimo do Dr. Falcão resposta affirmativa. Elle ainda resistiu, era amigo da casa, tinha respeito a D. Fernanda, conhecia-a honesta; mas, ia elle pensando, bem podia ser que um sentimento occulto, recatado, — quem sabe até se provocado pela mesma paixão da outra...? Ha dessas tentações. O contagio da lepra corrompe o mais puro sangue; um triste bacillo destróe o mais robusto organismo.

Pouco a pouco, as velleidades de resistencia foram cedendo á noção da possibilidade, da probabilidade e da certeza. Em verdade, tinha noticia de algumas obras de caridade de D. Fernanda; mas aquelle caso era novo. Essa dedicação especial a um homem que não era familiar da casa, nem velho amigo, nem parente, adherente, collega do marido, qualquer cousa que o fizesse participe da vida domestica, pelas relações pelo sangue ou pelo costume não era explicavel sem algum motivo secreto. Amor, seguramente; curiosidade de mulher honesta, que póde descambar no vicio e no remorso. Aquella teria recuado a tempo; ficou-lhe a sympathia morbida... E d'ahi, quem sabe?

(Continúa.)

CLXVIII

E d'ahi, quem sabe? repetiu o Dr. Falcão na manhã seguinte. A noite não apagára a desconfiança do homem. E d'ahi quem sabe? Sim, não seria só sympathia morbida. Sem conhecer Shakspeare, elle emendou Hamlet: "Ha entre o céo e a terra, Horacio, muitas cousas mais do que sonha a vossa vã philanthropia". Alli andou dedo de amor. E não chasqueava nem lastimava nada. Já disse que era sceptico; mas, como era tambem discreto, não transmitiu a ninguem a sua conclusão.

CLXIX

A volta de Carlos Maria e da mulher interrompeu as preoccupações de D. Fernanda, relativamente a Rubião. Esta foi a bordo recebel-os, conduziu-os á Tijuca, onde um velho amigo da familia de Carlos Maria alugára e trastejára uma casa, por ordem delle. Sophia não foi a bordo; mandou o coupé esperal-os no caes Pharoux, mas D. Fernanda já alli tinha uma caleça, que os levou, e mais a ella e ao Palha. De tarde, Sophia foi visitar os recem-chegados.

D. Fernanda não cabia em si de contente. As cartas de Maria Benedicta os davam por felizes; ella não poude ler desde logo nos olhos e nas maneiras do casal a confirmação do escripto. Pareciam satisfeitos. Maria Benedicta não reteve as lagrimas, quando abraçou a amiga, nem esta as suas, e ambas se apertaram como duas irmãs de sangue. Na Tijuca, quando puderam fallar a sós, D. Fernanda perguntou a Maria Benedicta se ella e o marido eram felizes, e, sabendo que sim, pegou-lhe nas mãos e fitou-a longamente sem achar palavra. Não logrou mais que repetir a pergunta:

— Vocês são felizes?

— Somos, respondia, Maria Benedicta.

— Não sabe que bem me faz a sua resposta. Não é só porque eu teria remorso, se vocês não tivessem a felicidade que eu imaginei dar-lhes, mas tambem por que é bem bom ver os outros felizes. Elle gosta de você como no primeiro dia?

— Creio que mais, porque eu o adoro.

D. Fernanda não entendeu esta palavra. Creio que mais, por que eu o adoro! Em verdade, a conclusão não parecia estar nas premissas; mas era o caso de emendar Hamlet: "Ha entre o céo e a terra, Horacio, muitas cousas mais do que sonha a vossa vã dialectica". Pobre D. Fernanda! Não conhecia o poeta, e provavelmente não se conhecia a si, — que era ainda o meio mais seguro de decifrar a palavra obscura de Maria Benedicta. Esta começou a contar-lhe a viagem, a desfiar as suas impressões e reminiscencias; e, como o marido viesse ter com ellas, pouco depois, recorria á memoria delle para preencher as lacunas.

— Como foi, Carlos Maria?

Carlos Maria lembrava, explicava, ou rectificava, mas sem interesse, quasi impaciente. Adivinhára que Maria Benedicta acabava de confiar á outra as suas venturas, e mal podia encobrir o effeito desagradavel que isto lhe trazia. Era um deus, mas á maneira do sermão da montanha: "Quando quizeres orar não faças como os phariseus que vão orar em pé nas synagogas e nos cantos das ruas, para que os vejam; mas entra no teu aposento, fecha a porta, e ora a teu pae em secreto; e teu pae, que está no céo, te dará a paga". E elle não estava no céo, mas alli mesmo, presente, visivel, palpavel, adoravel, cheio de recompensa e de favor. Para que dizer que era feliz com elle, se não podia ser outra cousa? E porque divulgar os seus carinhos e palavras, as suas misericordias de deus meigo e amigo?

A volta ao Rio de Janeiro foi uma condescendencia sua. Maria Benedicta queria ter aqui o filho; o marido cedeu, — a custa, mas cedeu. A custo, por que? É difficil explical-o, não menos que entendel-o. Relativamente á maternidade. Carlos Maria tinha ideias pessoaes e singulares, reconditas, não confiadas a ninguem. Achava impudica a natureza em fazer da gestação humana um phenomeno publico, franco ás vistas, crescente até ao aleijão, suggestivo até ao desrespeito D'ahi vinha o desejo da solidão, do mysterio e da ausencia. Viveria de boamente os ultimos tempos no interior de uma casa unica, posta no alto de um morro, vedada ao mundo, donde a mulher baixasse um dia com o filho nos braços e a divindade nos olhos.

Não fez sobre isto nenhuma proposta á mulher. Teria de discutir, e elle não gostava de discutir preferia ceder. Maria Benedicta tinha naturalmente o sentimento contrario; considerava-se a si mesma um templo divino e recatado, em que vivia um deus, filho de outro deus. A gestação ia cheia de tedios, de dores, de incommodos que ella occultava o mais que podia ao marido; mas tudo isso dava maior preço á creaturinha futura. Acolhia o mal com resignação, — se não é que o agasalhava com alegria, — uma vez que era a condição da vinda do fructo. Fazia cordialmente o officio da especie. E repetia sem palavras a resposta de Maria de Nazareth: "Eu sou a serva do senhor; faça-se em mim a sua vontade".

CLXX

— Você que tem? perguntou Maria Benedicla ao marido, logo que ficaram sós

— Eu? Nada. Porque?

— Parecia estar aborrecido.

— Não, não estava aborrecido.

— Estava, sim, insistiu ella.

Carlos Maria sorriu, sem responder Maria Benedicta já lhe conhecia esse sorriso especial, inexpressivo, sem ternura nem censura, superficial e pallido. Não teimou em querer saber, mordeu os beiços e retirou-se.

No quarto, durante algum tempo, não cuidou de outra cousa que não fosse aquelle sorriso descorado e mudo, signal de algum aborrecimento, cuja culpa não podia ser senão ella. E percorria toda a conversação, todos os gestos que fizera, e não achava nada que explicasse a frieza, ou o que quer que era de Carlos Maria. Talvez ella se mostrasse excessiva nas palavras; era seu costume, se estava contente, pôr o coração nas mãos e distribuil-o a amigos e a extranhos. Carlos Maria reprovava essa generosidade, porque dava um ar de sorte grande no seu estado moral e domestico, e porque lhe parecia banal e inferior. Maria Benedicta recordava-se que, em Paris, na colonia brazileira, sentira mais de uma vez esse effeito de suas expansões, e reprimira-se. Mas D. Fernanda estaria no mesmo caso? Não era a autora da felicidade de ambos? Rejeitou essa hypothese, e tratou de ver outra. Não a achando, — voltou á primeira, e, segundo lhe succedia sempre, deu razão ao marido. Em verdade, por mais intima e grata que fosse, não devia contar á boa amiga as minucias da vida; era leviandade sua, elle tinha muita razão...

Nauseas vieram interrompel-a neste ponto das reflexões. A natureza lembrava-lhe uma razão de Estado — a razão da especie, — mais instante e superior ao tedios do marido. Ella cedeu á necessidade; mas, poucos minutos depois, estava ao pé de Carlos Maria, contornando-lhe o pescoço com o braço direito. Elle, sentado, lia uma revista ingleza; pegou-lhe na mão direita, pendente sobre o peito, e acabou a pagina.

— Você me perdoa? perguntou a mulher, quando o viu fechar o folheto. Daqui em diante vou ser menos tagarella.

Carlos Maria pegou-lhe nas duas mãos, sorrindo e respondeu com a cabeça que sim. Foi como se lançasse uma onda de luz sobre ella; a alegria penetrou-lhe a alma. Dir-se-hia que o proprio feto repercutiu a sensação e abençoou o pai.

(Continúa.)

CLXXI

— Perfeitamente! Assim é que eu os quero ver! bradou uma voz do lado da varanda.

Maria Benedicta affastou-se rapidamente do marido. A varanda, que communicava para a sala, por tres portas, tinha uma destas aberta. Dalli viera a voz; dalli espiava e ria a cabeça de Rubião. Era a primeira vez que o viam. Carlos Maria sem se levantar, olhava para elle, serio, esperando. E a cabeça ria, com os seus fartos bigodes de ponta de agulha, mirando um e outro, e repetindo:

— Perfeitamente! assim é que eu os quero ver!

Rubião entrou, estendeu-lhes a mão, que elles acceitaram sem carinho, disse muitas phrases de admiração e louvor a Maria Benedicta, ella tão galante, elle tão galhardo; notou que ambos tivessem o nome de Maria, especie de predestinação, e acabou noticiando a quéda do ministerio.

— Caiu o ministerio? perguntou involuntariamente Carlos Maria.

— Não se falla em outra cousa na cidade. Vou abancar-me, sem pedir licença, já que não me offerecem cadeira, continuou elle, sentando-se, tirando a bengala que trazia debaixo do braço e firmando as mãos sobre ella. Pois é verdade, o ministerio pediu demissão. Vou organisar outro. Ha de entrar o Palha, o nosso Palha, — seu primo Palha, — e o senhor tambem, se lhe dá gosto, será ministro. Preciso de um bom gabinete, todo gente amiga e forte, capaz de dar a vida por mim. Hei de chamar o Morny, o Pio, o Camacho, o Rouher, o major Sequeira. A senhora lembra-se do major? Creio que fica com a guerra; não conheço homem mais apto para os negocios militares.

Maria Benedicta, aborrecida e impaciente, andava pela sala, á espera que o marido mandasse alguma cousa; este disse-lhe com os olhos que se fosse embora; ella não aguardou outro gesto, pediu licença ao hospede e retirou se Rubião, depois que ella sahiu, elogiou a novamente, — uma flor, disse elle; e emendou-se rindo: duas flores, creio que ha alli duas flores. Nosso Senhor as abençoe! Carlos Maria estendeu-lhe a mão em ar de despedida.

— Meu caro senhor...

Posso incluil-o no ministerio? perguntou Rubião.

Não ouvindo resposta, entendeu que sim e prometteu-lhe uma boa pasta. O major iria para a guerra, e o Camacho para a justiça. Não os conhecia acaso? "Dous grandes homens, Camacho ainda maior que o outro." E obedecendo a Carlos Maria, que ia andando na direcção da porta, Rubião retirava-se sem se sentir; mas não sahiu tão prompto. Na varanda, antes de descer os degráos, referiu varios factos da guerra. Por exemplo, tinha restituido a Allemanha aos allemães; era bonito e politico. Já havia dado Veneza aos italianos. Não precisava mais territorio; as provicias do Rheno, sim, mas havia tempo de as ir buscar.

— Meu caro senhor... insistiu Carlos Maria estendendo-lhe a mão.

Despediu-o e fechou a porta; Rubião proferiu ainda algumas palavras e desceu os degráos. Maria Benedicta, que os espreitava do fundo, veiu ter com o marido, reteve-o pela mão, e ficou a ver o Rubião que atravessava o jardim... Não ia direito nem appressado, nem calado; detinha-se, gesticulava, apanhava um galho secco, vendo mil cousas no ar, mais galantes que a dona da casa, mais galhardas que o dono. Da vidraça miravam o nosso amigo, e, em certo lance grotesco, Maria Benedicta não pôde suster o riso; Carlos Maria olhava placido.

— Mas se a quéda do ministerio é verdadeira, disse ella, sabe você quem está ministro?

— Quem? perguntou Carlos Maria com os olhos.

— Seu primo Theophilo. A prima contou-me que elle andava com suas esperanças, e foi por isso que ficou este anno na Corte. Desconfiou, ou já se fallava na sahida do ministerio; talvez desconfiasse. Não me lembra bem o que ella me disse; mas parece que entra.

— Pode ser.

— Prima Fernanda diz que elle continua a almoçar, jantar e ceiar politica. Eu bem via lá em casa delles, antes de nos casarmos. Reuniões de deputados, á noite, falando e fumando muito... olha, lá sahiu Rubião, continuou Maria Benedicta; mas não, parou, está olhando para cima, espera talvez a diligencia ou o carro. Elle tinha carro. Lá vae andando...

— Com quê, o Theophilo está ministro! exclamou Carlos Maria.

E, depois de um instante:

— Creio que dará um bom ministro. Você queria ver-me tambem ministro?

— Se você gostasse, que remedio?

— De maneira que por teu voto, não o era, perguntou Carlos Maria.

— Que heide responder? pensou ella, escrutando o rosto do marido.

Elle, rindo:

— Confessa que me adorarias, ainda que eu fosse um simples ordenança de ministro.

— Justamente! exclamou a moça, lançando-lhe os braços aos hombros.

Carlos Maria affagou-lhe os cabellos, e murmurou serio: — Bernadotte foi rei, e Bonaparte imperador. Você queria ser a rainha mãe da Suecia?

Maria Benedicta não entendeu a pergunta nem elle a explicou. Para explical-a seria mister dizer que possivelmente trazia ella no seio um Bernadotte; mas esta supposição significava um desejo, e desejo uma confissão de inferioridade. Carlos Maria espalmou outra vez as mãos sobre a cabeça da mulher, com um gesto que parecia dizer: "Maria, tu escolheste a melhor parte..." E ella pareceu entender o sentido d'aquelle gesto.

Sim! sim!

O marido sorriu e tornou á revista ingleza. Ella, encostada á poltrona, passava-lhe os dedos pelos cabellos, muito ao de leve e caladinha para não perturbal-o. Elle ia lendo, lendo, lendo. Maria Benedicta foi attenuando a caricia, retirando os dedos aos poucos, e pé ante pé, sahiu da sala, onde Carlos Maria continuou a ler um estudo de Sir Charles Little, M. P., sobre a famosa estatueta de Narciso.

(Continúa.)

CLXXII

Quando Rubião foi á casa de D. Fernanda, á tardinha ouviu do criado que não podia subir. A senhora estava incommodada; o senhor estava com ella; parece que esperava o medico. O nosso amigo não teimou, e sahiu.

Era o contrario; era o senhor que estava doente, e a senhora que o acompanhava; mas o criado não podia trocar o recado que lhe deram. Outro criado desconfiou, é certo que o doente fosse elle e não ella, porque o vira entrar abatido. Em cima, no quarto delles, havia algum rumor de vozes, ora alto, ora baixo, com intervallo de silencio. Uma criadinha, que subira pé ante pé, desceu dizendo que ouvira lastimar-se o amo; provavelmente a senhora estava perdida. Em baixo, um palavrear surdo, ouvidos compridos, conjecturas; notavam que de cima não pedissem agua, qualquer remedio, um caldo, ao menos. A meza posta, o criado engravatado, o cozinheiro orgulhoso e ancioso... Justamente, um dos melhores jantares!

Que era? Theophilo tinha o gesto abatido com que entrou; estava sentado em um canapé, sem collete, olhos fixos. Ao pé delle, sentada tambem, segurando-lhe uma das mãos. D. Fernanda pedia-lhe que socegasse, que não valia a pena. E inclinava-se para ver-lhe o rosto, chamava-o para si, queria que elle encostasse a cabeça ao hombro della...

— Deixa, deixa, murmurava o marido.

— Não vale a pena, Theophilo! Pois agora um ministerio...? Valerá tanto um cargo de pouco tempo, cheio de desgostos, insultos, trabalhos, para que? Não é melhor a vida tranquilla? Vá que haja injustiça; creio que sim, você tem serviços; mas será tamanha perda assim? Anda, querido, socega; vamos jantar.

Theophilo mordia o beiço, olhando para o cysne do tapete, e puxando uma das soiças. Não ouvira nada do que a mulher dissera, nem exhortações nem consolações. Ouvia as conversas da noite anterior e daquella manhã, as combinações politicas, os nomes lembrados, os recusados e os acceitos. Nenhuma combinação o incluiu, posto que elle fallasse com muita gente ácerca de verdadeiro aspecto da situação. Era ouvido com attencão por uns, com impaciencia por outros. Uma vez, os oculos do organisador pareceram interrogal-o, — mas foi rapido o gesto e illusorio. Theophilo recompunha agora a agitação de tantas horas e logares, — lembrava os que o olhavam de esguelha, os que sorriam, os que trariam a mesma cara que elle. Para o fim já não fallava; as ultimas esperanças estalavam-lhe nos olhos como lamparina de madrugada. Ouvira os nomes dos ministros, fôra obrigado a achal-os bons; mas que força não lhe era precisa para articular alguma palavra! Receiava que lhe descobrissem o abatimento ou despeito, e todos os seus esforços concluiam por accentual-os ainda mais. Empallidecia, tremiam-lhe os dedos.

—O Theophilo está damnado, dizia um rindo.

—Com razão, acudia outro que sabia estar condemnado a nunca ser ministro; não se póde negar que elle tem mais direito que outros; trabalha ha bastante annos, e é orador de pulso.

— Orador de estatisticas, de algarismos, interveiu desdenhosamente um terceiro, não se póde dizer que seja orador de pulso.

Este era um velho deputado, feito para receber ministerios e interpellal-os. Não conhecia de politica senão o que trouxe dos tempos de estudante de direito, um pouco de Toqueville, outro pouco de Guizot, e, não sei porque affeição particular, algumas paginas de Donoso Cortez, que citava a miudo pela suspeita de que ninguem na camara o tinha lido. Suppria, porém, todas as lacunas com a voz potente, com o asco, a ironia, a indignação simulada. Suas imagens, posto que velhas e insipidas, produziam extraordinario effeito, tal era a arte de as recompor e colorir. Era tambem anecdotico e alegre. Physicamente, podia subir, baixar, atirar-se pela balustrada fóra ou recuar até ás costas da cadeira, cruzando os braços, interrogando, calando, esperando que o senhor ministro explicasse se era capaz, que dissesse ao paiz, á opinião, á nação anciosa...

— Mas Thiers tambem sabe manejar algarismos e é grande orador, ponderou o outro.

— Mas Thiers!... Ora essa, Thiers! Que comparação! Vocês ouviram? continuou parando, porque iam em grupo pela rua; — o Pacheco compara o Theophilo ao Thiers! Pacheco, você é capaz de comparar um boi com uma pulga...

— Não comparei nada! Você é que embrulha tudo. Pois alguem acredita que eu ache no Theophilo nada que se pareça com Thiers?

— Então para que fallou em Thiers?

Theophilo jamais soube que havia sido objecto daquella conversação. Se soubesse, não podia consolal-o a idea de haver exercido o mesmo officio critico a respeito de terceiro, e particularmente daquelle deputado que apenas o julgava apto para menear algarismos. Não gostava da oratoria delle, e não hesitava em confessal-o aos amigos; mas, como era affavel, e fiel aos costumes, não foi jamais dos ultimos em cumprimental-o depois de uma oração. Quando a furia ou a conveniencia da occasião aconselhava o abraço, elle o abraçava. Tambem o outro o abraçava a elle, nos grandes discursos, e dizia-lhe regularmente que nunca estivera mais demonstrativo.

CLXXIII

— Anda, vamos jantar, repetia D. Fernanda.

Theophilo accordou daquellas reminiscencias tristes; mas, não accordou-se não para enfurecer-se. Deu um golpe no joelho, com a mão aberta, e levantou-se, dizendo palavras soltas e raivosas, que não teriam sentido para quem não soubesse das circumstancias ou não conhecesse o temperamento da pessoa. D. Fernanda conhecia-o, e o leitor tambem, se não esqueceu aquelle lance de dor e desespero, quando um erro typographico lhe desfigurou uma citação. Calcule agora a distancia que vae da phrase incorrecta á ambição mallograda, e não se admire de o ver andar de um lado para outro, indignado, batendo o pé, ameaçando.

D. Fernanda não pôde vencer a violencia daquelle novo accesso, esperou que fosse curto, e foi curto; Theophilo chegou-se a uma poltrona, sacudiu a cabeça e cahiu outra vez prostrado. D. Fernanda pegou de uma cadeira e sentou-se ao pé delle. Os olhos com que lhe fallou não tinha a doçura captiva e dependente de Maria Benedicta, para quem o marido era tudo debaixo do sol. Não era bem a esposa que fallava, mas uma creatura humana que via padecer outra.

— Tens razão, Theophilo; mas é preciso ser homem. És moço e forte, tens ainda futuro, e talvez grande futuro. Quem sabe se, entrando agora no ministerio, não perderias mais tarde? Entrarás em outro. Ás vezes, o que parece desgraça é felicidade.

Theophilo apertou-lhe a mão agradecido.

— É perfidia, é intriga, murmurava elle, olhando para ella, eu conheço toda essa canalha. Si eu contasse a você tudo, tudo... Mas para que? Prefiro esquecer... Não é por causa de uma miseravel pasta que estou aborrecido, continuou elle depois de alguns instantes. Pastas não valem nada. Quem sabe trabalhar e tem talento póde zombar das pastas, e mostrar que é superior a ellas. A maior parte dessa gente, Nanan, não me chega aos calcanhares. Disso estou certo e elles tambem. Sucia de intrigantes! Onde acharão mais sinceridade, mais fidelidade, mais ardor para a luta? Quem trabalhou mais na imprensa, no tempo do ostracismo? Desculpam-se; dizem que os gabinetes já vem organisados de S. Christovão... Ah! eu quizera fallar ao Imperador!

— Theophilo!

— Eu diria ao Imperador: "Senhor, Vossa Magestade não sabe o que é essa politica de corredores, esses arranjos de camarilha. Vossa Magestade quer que os melhores trabalhem nos seus conselhos, mas os mediocres é que se arranjam... O merecimento fica para o lado." É o que lhe heide dizer um dia; póde ser até que amanhã...

(Continúa.)

CLXXIII

(Continuação)

Calou-se, tornou a falar e a calar-se. Depoiss de longa pausa, ergueu-se e foi ao gabinete de trabalho, que ficava ao pé do quarto e aonde a mulher o acompanhou.

Era já escuro, accendeu o bico de gaz, e circulou pelo gabinete os olhos velados de melancholia. Havia alli quatro largas estantes cheias de livros, de relatorios, de orçamentos, de balanços do Thesouro. A secretaria estava em ordem. Tres etagères altos guardavam os manuscriptos notas, lembranças calculos, apontamentos, tudo empilhado e rotulado methodicamente; — creditos extraordinarios, — creditos supplementares, — creditos de guerra — creditos de marinha, — emprestimo de 1868, — estradas de ferro, — divida interna, — exercício de 61 — 62, — de 62 — 63, — de 63 — 64, etc. Era alli que trabalhava de manhã e de noite, sommando, calculando, recolhendo os elementos dos seus discursos e pareceres, porque era membro de tres commissões parlamentares, e trabalhava geralmente por si e pelos seis collegas; estes ouviam e assignavam. Um delles, quando os pareceres eram extensos, assignava-os sem ouvir.

— Homem, você é mestre e basta, dizia-lhe, de cá a penna.

Tudo alli respirava attenção, cuidado, trabalho assiduo, meticuloso e util. Da parede, em ganchos, pendiam os jornaes da semana, que eram depois tirados, guardados e finalmente encadernados semestralmente, para consultas. Os discursos do deputado, impressos e brochados em-4.° enfileiravam-se em uma estante. Nenhum quadro ou busto, adereço, nada para recrear, nada posso admirar; — tudo secco, exacto, administrativo.

— De que vale tudo isto? perguntou Theophilo á mulher, após alguns instantes de contemplação triste. Horas cançadas, longas horas da noite até madrugada, ás vezes... Não se dirá que este gabinete é de homem vadio; aqui trabalha-se. Você é testemunha que eu trabalho. Tudo para que?

— Consala-te trabalhando, murmurou ella.

Elle, acerbo:

— Ruim consolação! Não, não, acabo com isto. Trabalhar para o bispo? Não; passo agora a ignorar tudo. Olha, na camara, todos me consultam, até os ministros — porque sabem que eu applico-me deveras ás causas da administração. Que premio? Vir para cá, em maio, applaudir os novos senhores?

— Pois não applaudas nada, disse-lhe mansamente a mulher. Queres fazer-me um obsequio? Vamos á Europa, em março ou abril, e voltamos d'aqui a um anno. Pede licença á camara, d'onde quer que estejamos, — de Varsovia, por exemplo; Tenho muita vontade de ir a Varsovia, continuou sorrindo e fechando-lhe graciosamente a cara entre as mãos. Diga que sim; responda que é para eu escrever hoje mesmo para o Rio Grande, o vapor sae amanhã. Está dito; vamos a Varsovia?

— Não brinques, Nanan, que isto não é objecto de brincadeira.

— Fal-o seriamente. Já ha muito tempo que ando para propor a você uma viagem a ver se descança desta papelada infernal. É demais, Theophilo! Você mal se pode arrumar depois para uma visita. Passeio, é raro. Quasi não conversa. Os nossos filhos mal veem seu pae, porque aqui não se entra quando você trabalha... É preciso descançar; peço-lhe um anno de repouso. Olhe que é serio. Vamos para a Europa em março.

— Não pode ser, balbuciou elle.

— Porque não?

Não podia ser. Era convidal-o a sahir do proprio corpo. Politica valia tudo. Que tambem houvesse politica lá fora, sim; mas que tinha elle com ella? Theophilo não sabia nada do que ia por fora, excepto a nossa divida em Londres, e meia duzia de economistas. Comtudo, agradeceu á mulher a intenção da proposta, agora com palavras:

— Tu és bôa.

E um sentimento vago de esperança restituia á voz do deputado a brandura que perdera naquella grande crise moral. Os papeis sopravam-lhe animo. Toda aquella massa de estudos apparecia-lhe como a terra adubada e semeada aos olhos do lavrador. Não tardaria a grelar; o trabalho teria a recompensa; um dia mais tarde ou mais cedo, o grelo seria arvore, e a arvore daria fructos. Era justamente o que a mulher havia dito por outras palavras directas e proprias; mas só agora é que elle via a possibilidade da colheita. Ao tempo em que esta consolação levantava a alma do homem, o vexame o abatia. Lembrou-se das explosões de colera, de indignação, de desespero, das queixas de ha pouco, e sentiu-se inferior ou fraco. Teve vergonha da mulher. Quiz rir, quiz mofar de si mesmo, e fel-o mal. Aquietou-se, procurou esquecer fallando de outros assumptos alheios e diversos, ao jantar, ao café, como os filhos, que naquella noite estiveram com elle até mais tarde. Nuno, que já andava no collegio, onde ouvira falar da mudança de gabinete, disse ao pai que queria ser ministro.

Theophilo ficou serio.

— Meu filho, disse elle, escolhe outra cousa, menos ministro.

— Diz que é bonito, papae; diz que anda de carro com soldado atraz.

— Pois eu te dou um carro.

— Papae já foi ministro?

Theophilo tentou sorrir e olhou para a mulher, que aproveitou a occasião para mandar deitar os filhos.

— Já, já fui ministro, respondeu o pai beijando a testa ao Nuno; mas não quero mais, é muito feio, dá trabalho. Tu has de ser capellão.

— Que é capellão?

— Capellão é cama, respondeu D. Fernanda; vae dormir, Nuno

CLXXIV

Ao almoço, no dia seguinte, Theophilo recebeu uma carta por uma ordenança.

— Ordenança?

— Sim, senhor, diz que vem da parte do Sr. presidente do conselho.

Theophilo abriu a carta, com a mão tremula. Que podia ser? Tinha lido nos jornaes a relação dos novos ministros: o gabinete estava completo. Não havia divergencia de nomes. Que podia ser? D. Fernanda, defronte do marido, procurava ler-lhe no rosto o texto da carta. Via uma claridade; percebeu que a boca soffreava um riso de satisfação — de esperança, ao menos.

— Diga que espere, ordenou Theophilo ao creado.

Foi ao gabinete, e tornou minutos depois com a resposta. Sentou-se á mesa, calado, dando tempo a que o creado entregasse a carta á ordenança. Desta vez, como estava prevenido, ouviu as patas do cavallo, e logo depois o galope, rua fôrça e sentiu-se bem.

— Lê, disse elle á mulher.

D. Fernanda leu a carta do presidente do conselho; era um pedido para ir fallar-lhe ás duas horas da tarde, se fosse possivel.

— Mas então o ministerio...?

— Está completo, deu-se pressa em dizer o deputado; os ministros estão nomeados.

Não acreditava de todo o que dizia. Imaginava alguma vaga da ultima hora, e a necessidade urgente de a preencher, mas não o disse a mulher.

— Hade ser alguma conferencia politica ou talvez queira conversar sobre o orçamento, — ou incumbir-me algum estudo.

Dizendo isto, para illudir a mulher, sentiu a probabilidade das hypotheses, e outra vez se abateu; mas, tres minutos depois, as borboletas da esperança vieram novamente bailar deante delle, não duas, nem quatro, mas um turbilhão, que cegava o ar.

CLXXV

D. Fernanda esperou, esperou, esperou, cheia de ancias, como se o ministerio fosse para ella, e lhe viesse dar qualquer gosto, que não fosse amargo e complicado. Uma vez, porém, que satisfizesse o marido tudo iria pelo melhor. Theophilo tornou ás cinco horas e meia. Pelo aspecto reconheceu logo que vinha satisfeito. Correu a apertar-lhe as mãos.

— Que ha?

Pobre Nanan! Ahi vamos com a trouxa ás costas. O marquez pediu-me instantemente que acceitasse uma presidencia de primeira ordem. Não podendo metter-me no gabinete, onde tinha logar marcado, desejava, queria e pedia que eu partilhasse a responsabilidade politica e administrativa do governo, assumindo uma presidencia. Não podia, em nenhum caso, dispensar o meu prestigio (são palavras delle), e espera que na camara acceite o logar de chefe de maioria. Que dizes?

— Que arranjemos a trouxa, respondeu D. Fernanda. 

— Achas que podia recusar?

— Não.

— Não podia. Você sabe, não se podem negar pedidos destes a um governo; ou então deixa-se a politica. Tratou-me muito bem o marquez; eu já sabia que era homem superior; mas que risonho e affavel! não imaginas. Quer tambem que compareça a uma reunião intima, os ministros e alguns amigos, poucos, meia duzia. Confiou-me já o programma do gabinete em conversa...

— Quando sahimos?

— Não sei; heide estar com elle amanhã, á noite. A reunião é amanhã ás oito horas... Mas não te parece que fiz bem, acceitando?

— De certo.

— Sim; se recusasse censurar-me-hiam, e com razão. Em politica, a primeira cousa que se perde é a liberdade. Agora você é que se quizesse, podia ficar daqui a cinco mezes, — ou quatro, — abrem-se as camaras; mal terei tempo de chegar e olhar.

(Continúa.)

CLXXVI

D. Fernanda acceitou a proposta; não interrompia a educação do filho era uma separação de quatro mezes. Theophilo partiu d'ahi a dias, um dos ministros foi a bordo despedir-se d'elle, em nome de todos.

— Adeus, disse-lhe no fim. Olhe que nós temos que emprehender grandes cousas. O governo conta com o senhor.

— Não faltarei á confiança do governo.

D. Fernanda não chorava; ao dar, porém, o ultimo abraço, sentiu os olhos molhados e o coração bater-lhe muito. Palha, que elles não esperavam a bordo do paquete, louvava o presidente com palavras de enthusiasmo, as mesmas que lhe dissera quando lhe fôra dar os parabens, em casa, a pedido de Sophia.

CLXXVII

— Você é um esquecido, dissera Sophia ao Palha; deixe escrever no livro de lembranças. Vá, tome, não se esqueça. Se se esquecer de ir dar os parabens ao Dr. Theophilo não acha jantar. Eu já lá fui hontem.

Palha cumprira á risca a promessa; visitou o novo presidente, que o recebeu com aquella cordialidade derramada e egual para todos que distingue uma alma satisfeita. "Porque não ia com elle ao norte?" Palha confessou que tinha grande desejo de ir ao norte; mas, infelizmente, não podia fazel-o desde já, os negocios o prendiam, e cuidava da casa nova...

— Sabem que estou fazendo um palacete?

— Não, disse D. Fernanda.

— Em Botafogo. Digo palacete, porque assim lhe chama o architecto na planta que me deu. Realmente, é obra bonita. Havemos de inaugural-o, quando o nosso presidente vier para a camara, e se quizer inaugurar o palacete de um barão, é só arranjar-me o titulo; não me nego ao titulo, concluiu rindo.

— Póde ser muito bem; Theophilo agora é todo-poderoso.

D. Fernanda satisfazia assim ao hospede e ao marido; ambos sorriram, e o Palha accrescentou com seriedade que era mais pela mulher que por elle. No dia em que visse Sophia baroneza, teria immenso gosto, já porque ella o merecia, já porque estava certo de que o desejava. Era a sua unica ambição.

— Não digo unica, emendou-se; mas com certeza a maior. E olhe que não lhe ficava mal. Sempre teve assim um ar de nobreza... Não lhe direi o que se passou agora entre nós; V. Ex. ha de sorprehender-nos; eu prometto ficar sorprehendido, continuou rindo muito. Quando vir o decreto... É decreto? Seja o que fôr. Quando vir o papel, ou a noticia nos jornaes, prometto dar um pulo: "Sophia, Sophia, lê aqui uma cousa." — "Que é?" — "Lê, vê o teu nome..."

— Mas não será o nome d'ella, interrompeu Theophilo é o seu. O titulo é dado ao marido.

— Ah! é verdade... Mas eu digo assim para chamar a attenção. Creia que ha de ficar contente.

CLXXVIII

Não era o unico pedido. Desde a nomeação, recebera Theophilo uma chuva d'elles, — verdade é que de politica provincial, e recommendações de funccionarios ou pretendentes pelos amigos d'aqui, não contando as outras cartas de parabens, os bilhetes, as visitas em pessoa. Theophilo rejubilava. Por mais que se queixasse de fastio e cançaço em receber e abrir tanto papel, a mulher não acreditava, porque a inquietação que havia n'elle quando era grande o intervalo entre duas cartas, denunciava a alegria da recepção d'ellas. Entretanto, ella propoz-se a abril-as e lel-as.

— Aqui está mais uma...

— Que é? perguntava elle.

D. Fernanda lia-lhe a carta em voz alta; ele ouvia e lia depois. Tinha já uma centena d'ellas. As visitas eram todas graciosas, diziam-lhe as mesmas palavras, que elle escutava satisfeito e benevolo. Cria em tudo o que lhe annunciavam. Não era ministro, mas era alguma cousa grande, que chamava a attenção dos outros, que o fazia por algum tempo centro da consideração, do applauso, e não sei se diga da inveja. De feito, não faltavam candidatos a presidencias, —  muitos sem esperança, mas desejosos de se apegarem a alguem. Relações de familia, parentes, ahi estavam tambem, para abraçal-os até á volta.

CLXXIX

A tristeza começou na manhã do embarque, logo cedo, quando Theophilo se foi despedir do gabinete de trabalho. Deitou os ultimos olhos aos livros, aos relatorios, aos orçamentos, aos manuscriptos, a toda essa parte da familia, que só tinha lingua e interesse para elle. Havia amarrado os papéis e os folhetos para evitar extravio pelo vento, pelos meninos ou pelos criados, embora fizesse á mulher grandes recommendações. Via tudo; parado no centro, circulou os olhos pelas estantes, e dispersou a alma por todas ellas. Trazia os logares de cór. Sabia onde estava Capefiguè, onde Guizot. Despedia-se assim dos seus santos e amigos, com saudades D. Fernanda, que estava ao pé delle, não viveu ali mais que os dez minutos da despedida. Theophilo viveu um, dous, tres annos.

CLXXX

— Deixa estar, eu cuidarei delles, eu mesma os espanarei todos os dias.

Theophilo deu-lhe um beijo... Outra mulher recebel-o-hia, meia triste, por ver que elle amava tanto os livros que parecia amal-os mais que a ella. Mas D. Fernanda sentiu-se feliz. Uma vez que a separação dos livros lhe doia, e que a promessa o consolava, a consolação vinha reflexamente a ella, e d'ahi o beijo com que replicou ao do marido. Este segundo beijo ha de ser menos entendido que o primeiro, porque há acções humanas que parecem extra-humanas á maior parte dos espiritos. Tambem póde acontecer que a maior parte dos espiritos em plique ambos os beijos pela frigidez do amôr do casal; explicação erronea, porque elles amavam-se, e muito.

CLXXXI

— Bem, obrigado, obrigado. E, assim uma vez olhando para os livros, sahiu arrastado do gabinete. Francisco Manoel do Nascimento despediu-se dos seus com lagrimas. Cito este homem, suppondo que o conhece, — ao menos, pelo nome arcadico, que era Filinto Elysio. Despediu-se dos livros, como o nosso presidente de provincia, com uma diferença, e até com duas. A primeira é que, tendo de ir para Haya, mandou-os adiante: encaixotou-os para ir logo atrás d'elles, e a ausencia foi curta. Assim mesmo curta, escreveu-lhe uns versos, que são os mais sentidos de toda bagagem do poeta: é a segunda differença, porque Theophilo não fez versos nenhuns, salvo o beijo, que só indirectamente alludiu aos livros e, ainda assim, é preciso que o acceites como um verso, — ou como um poema, se quizeres emendar Boileau: Un baiser sans défaut vaut seul un long poéme. Filinto Elysio beijou directamente os livros, os proprios livros, — velhos e poucos, — poucos e pobres, — mas com taes osculo

que sobresahem de todos os milheiros de versos que escreveu, no sentimento e na saudade.

CLXXXI

A separação custou naturalmente a D. Fernanda. Aos filhos custou menos ou nada; ella disse-lhes que papae tinha ido buscar um brinquedo, a França, que voltaria dalli a poucas semanas, e elles esperavam tranquillamente.

— Brinquedo grande?

— Um grande e outro pequeno.

Elles bateram palmas: ella sorria de prazer. Em substancia, não promettia aos filhos mais do que o marido aos eleitores, com a differença de que o marido, provavelmente, traria os dous brinquedos e novos impostos.

Maria Benedicta foi ter com ella, e pediu-lhe que, durante a ausencia de Theophilo, fosse residir na Tijuca; já tinha faltado ao marido. D. Fernanda agradeceu e recusou; precisava cuidar dos filhos, um estava no collegio, e accrescentou rindo que não era criança, não tinha medo de dormir só. Pode ser que Carlos Maria contasse já com essa resposta. Quando Maria Benedicta lhe narrou a offerta e a recusa, ouviu-as sem interesse.

— Iremos visital-a a miudo, concluiu a mulher.

— A miudo?

— Sim, para distrahil-a.

— Até quando?

Maria Benedicta comprehendeu o sentido da pergunta, o obstaculo, a sua gravidez; propoz que fossem á noite. Mas Carlos Maria ponderou que era longe, o carro far-lhe-hia mal. Já não era tempo de visitas nem de noitadas.

— Não quero que meu filho nasça coxo, concluiu.

Maria Benedicta estremeceu de alegria.

— Pois não saio mais de casa.

Carlos Maria arrependera-se, não da expressão da vontade, mas da fórma que lhe deu; pareceu-lhe chula. A acquiescencia da mulher depressa lhe desfez a impressão. Ella contou-lhe o que achara em D. Fernanda; nunca imaginou que, separada do marido, pudesse estar tão senhora de si, tão sem lagrimas. Como é que alguem podia vêr partir o marido e não morrer?

— Morrer é muito, observou Carlos Maria sorrindo.

— Não digo morrer de verdade, explicou a mulher; mas padecer tanto que valha, mais ou menos, a morte. Não pense que fallo assim para que você nunca se separe de mim; estou certa de que não nos separaremos nunca. Mas prima Fernanda! Realmente, está tão dona de casa como sempre a vi, dava ordens, recebia recados, não esquecia cousa nenhuma. Não se lembrava, ao menos, que o marido podia estar naufragando... Oh! concluiu tapando os olhos com a mão.

Carlos Maria advertiu á mulher que os presidentes não naufragam; pelo menos não se conhecia um só caso na historia naval do Brazil. Contou, a proposito, o lance de Cezar e sua fortuna. Entretanto, não negava que o mar tinha suas perfidias, e narrou o naufragio de Ullysses, e o de Sepulveda; fallou em Scylla e Charybdes; e, como estava no estreito:

— Passemos á ilha, disse elle. Vamos a ver se tens memoria. Lembras te daquella nossa ceia de figos, na Sicilia, com vinho da Toscana?

Maria Benedicta franziu um pouco a testa, para lembrar-se, e lembrou-se.

— Você estava com um barrete de velludo azul, disse ella: aquelle de borla de ouro...

— Sim? perguntou elle vagamente.

Não sabia nada mais do barrete nem da borla; mas, estas duas palavras, — Toscana e Sicilia — resoavam-lhe no cerebro com a bella harmonia de suas syllabas italianas. Ellas é que lhe traziam á boca o sabor dos figos e do vinho. Maria Benedicta deixou a sala; elle, depois de alguns instantes, passou á varanda e desceu ao jardim. O céo não lembrava o da Italia, estava brusco; fazia calor, eram trez horas da tarde. Antes de dez minutos, appareceu Maria Benedicta, e, desceu as escadas ás pressas; trazia na mão um barrete de velludo.

— Está aqui, disse ella; era este; as borlas perderam o brilho, mas ainda estão boas; o velludo parece novo. Você estava assim. Abaixa a cabeça.

Carlos Maria obedeceu complacente. Maria Benedicta enfiou-lhe o barrete na cabeça, com a borla para a direita.

— Era assim, disse ella, afastando se um pouco.

Nisto parou um carro, e uma cabeça de mulher sahiu pela portinhola, olhando para o jardim.

CLXXXII

Era Sophia. A prima foi recebel-a ao portão; abraçaram-se e beijaram-se. Carlos Maria que viera a passo mais lento, estendeu-lhe a mão, inclinando-se.

— Estavamos longe de esperar esta boa fortuna, disse elle. Como vae o nosso amigo Palha?

— Bem, respondeu Sophia, levantando apenas os olhos para elle, e tornando a Sophia para lhe dizer que ainda de manhã não sabia se viria visital-a ou não. Resolvi de repente e vim. Você como tem passado? Parece que bem. Um bocadinho pallida...

Foram para dentro; detiveram-se um instante na varanda, para que Sophia gosasse o expectaculo do jardim e da montanha; depois passaram á sala. Maria Benedicta mostrava-se obsequiosa; queria que a prima jantasse com elles.

— Não posso; virei outro dia.

— Tire, ao menos, o chapeo; ainda é cedo.

Sophia descalçava as luvas, emquanto Carlos Maria lhe pedia negligentemente noticias da cidade. Ella respondia o que sabia. A prima insistia que tirasse o chapéo e tirou lh'o ella mesma, gabando a fórma e a côr. Sophia arranjou os cabellos com um gesto rapido das mãos, e abriu o leque.

— Está quente, disse.

— Não jantará comnosco, acudiu Carlos Maria; mas fará comnosco o seu luncheon.

Como ficassem sós os dous, por alguns instantes, Sophia correu os olhos pela sala, acabando por dizer que a achava agora mais completa. Carlos Maria respondeu que sim. E faltava ainda alguma cousa. Nem tudo o que alli havia era do seu gosto; preferia maior severidade e pouca modernidade...

— Queria então uma casa de antigalhas? perguntou ella rindo.

— Tambem não; é difficil explicar-me. Não gosto das cousas da moda, que vem e vão com o dia. Tudo é mais ou menos caduco, é verdade; mas entre a antigalha e a moda, ha um meio termo, que persiste por mais tempo... Não sei se me entende?

— Perfeitamente, respondeu Sophia erguendo-se e indo ver umas tetéas japonezas:

Sentia-se lisonjeada com a confidencia de Carlos Maria, mas o facto de ir ver aquelles adornos pareceria um protesto, quando não era mais que mostrar-lhe a gentileza do corpo. Deixou depressa os japonezes para fitar uma aquarella.

— Que é isto?

— Porto-Vecchio, na Corsega.

Sophia não ficou mais esclarecida com a resposta, mas fez um gesto de haver entendido, e sentou-se outra vez. Fallaram então do sol e da chuva, da cidade e dos arrabaldes, do Cassino, do Theatro Lyrico, de Petropolis. Sophia accentuava bem todos os pontos dessa outra geographia, que trazia de cór. Porque não iam passar a estação com ella em Petropolis, este anno? Carlos Maria abanou a cabeça, e disse que este anno não podia ser. Em geral, mostrou-se indiferente aos enthusiasmos elegantes de Sophia. Porque não ia á Europa? perguntou-lhe no meio da descripção de um baile?

— Este anno não; depois que inaugurarmos a casa nova.

E referiu-lhe que o marido estava construindo uma casa em Botafogo. Maria Benedicta, que voltava á sala, ouviu o resto da conversação e a promessa de um grande baile, em honra do primo vindouro. A prima disse-lhe isto batendo com as luvas na mão esquerda, tão naturalmente que parecia adorar a felicidade dos dous.

— Olhe, está chovendo; jante comnosco, disse Maria Benedicta.

— Não posso; um dia destes. Chovia com effeito, ainda que miudo. Pouco depois foram ao luncheon. Sophia estava cada vez mais expansiva, e agora quasi que só ella falava. Carlos Maria mirava aquella bella pessoa, que parecia vender saude, ao lado da mulher abatida, magra e pallida, e achava a mulher mais bonita.

(Continúa.)

CLXXXIII

Rubião, desde o dia da crise ministerial, não tornou á casa de D. Fernanda; nada soube, nem da precidencia, nem do embarque de Theophilo. Vivia entre o cão e o creado, sem grandes crises, nem longos repousos.

Não queria outro amo o creado; fazia-lhe o serviço irregularmente, comia-lhe gratificações, e recebia, a miudo, o titulo de marquez. Ao demais, divertia-se. Quando lhe dava ao amo para conversar com as paredes, o creado corria a espial-o; assistia ao dialogo, porque o Rubião incumbia-se das palavras dellas, respondendo  como se houvesse feito alguma pergunta. De noite, ia á palestra com os amigos da visinhança.

— Como vae o gira?

— O gira vae bem. Hoje convidou o cachorro para cantar; o cachorro ladrou muito, e elle gostou que se pellou, mas assim um gosto de figurão. Elle, quando está de pancada, parece que é como quem governa o mundo. Ainda hontem, almoçando, fallou para mim: "Marquez Raymundo quero que tu." e embrulhou o resto, que não entendi nada. No fim deu-me dez tostões.

— Você guardou logo...

— Ora!

Quando Rubião voltava do delirio, toda aquella fantasmagoria palavrosa tornava-se, por instantes, uma tristeza calada. A consciencia, onde ficavam rastos do estado anterior, forcejava por despegal-os de si. Era como a ascensão dolorosa que um homem fizesse do abysmo, trepando pelas paredes, arrancando a pelle, deixando as unhas, para chegar a cima, para não cahir outra vez e perder-se. Ia então á visita dos amigos, uns novos, outros velhos, como a gente do major e a do Fialho, por exemplo.

Este, desde algum tempo, era menos conversado. A mesma politica não lhe dava materia aos discursos de outr'ora. No escriptorio, quando via Rubião assomar á porta, fazia um gesto de impaciencia, que soffreava logo; o outro notava essa mudança, e perdia-se em conjecturas, se lhe fizera alguma offensa, por descuido — ou se começava a aborrecel-o. E para desfazer o tedio, se o era, ou ressentimento, se o havia fallava brando, risonho, supportava callado as pausas. Em vão appellava para o marquez de Paraná, cujo retrato continuava a pender da parede; repetia os nomes que lhe ouvira, — o grande marquez! o estadista consumado! Camacho ia apoiando de cabeça, e escrevendo sem parar, consultando os autos e os praxistas. Lobão, Coelho da Rocha, citando, riscando, pedindo-lhe desculpa. Tinha um libello que dar naquelle dia. Interrompia-se para ir á estante.

— Com licença...

Rubião arredava as pernas para deixal-o passar; elle tirava um volume das Ordenações do Reino, e folheava, folheava, pulando adiante, voltando atraz, átoa, sem buscar nada, unicamente para o fim de despedir o importuno; mas o importuno ia ficando, por isso mesmo, e entreolhavam-se disfarçados. Camacho tornava ao libello. Para ler, sentado, inclinava-se muito á esquerda, donde lhe vinha a luz, dando as costas ao Rubião.

— Aqui é escuro, aventurou Rubião um dia.

E não ouviu resposta, tão attento parecia o advogado na letiura dos autos. Realmente, póde ser importunação, pensou o nosso homem. Espreitava-lhe o rosto duro e serio, o gesto com que pegava da penna para continuar o interminavel libello. Vinte minutos mais de silencio absoluto. No fim desse prazo, Rubião viu-o deixar a penna, retesar o busto, esticar os braços e passar as mãos pelos olhos. Disse-lhe com interesse:

— Cançado, não?

Camacho fez um gesto affirmativo, e preparou-se para continuar; então o nosso homem levantou-se e aproveitou o intervallo para dizer adeus.

— Voltarei, quando estiver menos atarefado.

Estendeu-lhe a mão; Camargo segurou-lha ao de leve, e tornou ao papel. Rubião desceu a escada, aturdido, magoado com a frieza do seu illustre amigo. Que lhe teria feito?

CLXXXIV

Daquella vez, teve a fortuna de encontrar o major Sequeira.

— Ia agora mesmo á sua casa, disse-lhe; vae para lá?

— Vou; mas já não estamos na mesma casa: mudamo-nos para os Cajueiros, rua da Princeza...

— Seja onde for, vamos.

Rubião precisava de um pedaço de corda que o atasse á realidade, porque o espirito sentia-se outra vez presa da vertigem. Entretanto, fallou com tanto acerto e propriedade, que o major o achou em pleno juizo, e disse-lhe:

— Sabe que tenho uma grande noticia que lhe dar?

— Vamos a ella.

— Ha de ser quando chegarmos.

Chegaram. Era unta casa assobradada; D. Tonica veiu abrir-lhes a cancella. Trazia um vestido novo, collete, brincos.

— Olhe bem para ella, disse o major pegando na filha pelo queixo.

D.Tonica recuou envergonhada.

— Estou olhando, respondeu Rubião.

— Não se vê logo que é uma pessoa que vae casar?

— Ah! parabens!

— É verdade, vae casar. Custou, mas acertou. Achou por ahi um noivo, que a adora, como todos elles; quando fui noivo, adorei a minha defuncta, que foi uma cousa nunca vista... Vae casar. Arranjou um noivo. Custou, mas acertou. Pessoa seria, meia edade; vem aqui passar as noites. De manhã, quando passa para a repartição; creio que bate na janella, ou ella já o espera; eu finjo que não percebo...

D. Tonica dizia com a cabeça que não, mas sorrindo de modo que parecia dizer que sim. Estava tão buliçosa! Nem se lembrava já que requestára o Rubião, que se fora uma das ultimas, e por fim a ultima das suas esperanças. Tinham entrado na sala; D. Tonica foi á janella, entrou, de cabeça alta, andando á toa, reconciliada com a vida.

— Boa pessoa, repetiu o major, boa creatura... Tonica, vae buscar o retrato... anda, vai buscar o teu noivo...

D. Tonica foi buscar o retrato. Era uma photographia; representava um homem de meia edade, cabello curto, raro, olhando espantado para a gente, cara chupada, pescoço fino e paletot abotoado.

— Que lhe parece?

— Muito bem.

D. Tonica recebeu o retrato e fitou-o alguns instantes; mas, tirou logo os olhos, e deixou-se estar sentada, emquanto a imaginação saiu a esperar o Rodrigues. Chamava-se Rodrigues. Era mais baixo que ella, — cousa que o retrato não dava, — e empregado em uma repartição do ministerio da guerra. Viuvo, com dous filhos, um que estava no batalhão dos menores, outro que era tuberculoso, — doze annos, — condemnado á morte. Que importa? Era o noivo; todas as noites, ao recolher-se, D. Tonica ajoelhava se ante a imagem de Nossa Senhora, sua madrinha, agradecia-lhe o favor e pedia-lhe que a fizesse feliz. Sonhava já com um filho; havia de chamar-lhe Alvaro.

(Continúa.)

CLXXXV

Rubião escutou calado um discurso do major relativamente ao noivo e ao casamento. Tinham de esperar mez e meio, contra a vontade da filha, que achava bastante duas semanas; mas o noivo tinha que perfazer os arranjos da casa, não era capitalista, vivia do ordenado e recorria a emprestimos. A casa era a mesma e não exigia trastes novos nem riscos; mas, ha sempre algumas necessidades... Em summa, dalli a mez e meio, ou pelo menos, cinco semanas, estariam unidos pelos santos laços do matrimonio.

— E fico eu livre do trambolho, concluiu o major.

— Oh! protestou Rubião.

A filha ria-se; estava acostumada ás graças do pae, e tão disposta á alegria que nada a vexava; ainda mesmo que o pae se referisse aos seus quarenta annos passados não lhe daria grande golpe. Toda a noiva tem quinze annos.

— Verá como elle hade procural-a depois, com saudades, disse Rubião a D. Tonica.

— Qual! Talvez eu me case tambem!

Rubião levantou-se repentino, e deu alguns passos passos; o major não viu a expressão do rosto, não percebeu que o espirito do homem ia talvez descarrilhar, e que elle mesmo o presentia. Disse lhe que se sentasse, e contou-lhe os seus tempos de casado e de campanha. Quando chegou á narração da batalha de Monte-Caseros, com as marchas e contramarchas proprias do seu discurso, tinha deante de si Napoleão III. Calado a principio, Rubião proferiu algumas palavras de applauso, fallou de Solferino, de Magenta, prometteu ao Sequeira uma condecoração. Pae e filha entre-olharam-se: o major disse que vinha muita chuva. Com effeito, escurécera um pouco. Era melhor que Rubião fosse, antes de cahir agua; não trouxera guarda-chuva, o delle era velho, e unico...

— Ahi vem o meu coche, redargui Rubião tranquilamente.

— Não vem, foi esperal-o no Campo. Não vês dahi o coche, Tonica?

D. Tonica fez um gesto vago e sem vontade. Não queria mentir, mas tinha medo, e desejava que Rubião sahisse. Da casa era impossivel ver o Campo da Acclamação. Já então o pae pegava no Rubião pelo braço e o encaminhava para a porta.

— Volte amanhã, depois, quando quizer.

— Mas porque não heide esperar aqui até que venha coche? perguntou Rubião. A imperatriz não póde apanhar chuva...

— A imperatriz já foi.

— Fez mal. Eugenia fez muito mal. General... Para que hade o senhor ficar sempre em major? General, vi o retrato do seu genro; quero dar-lhe o meu. Mande ás Tulherias. Onde está o coche?

— Está no Campo esperando.

— Mande chamal-o.

D. Tonica, que estava á janella, disse para dentro:

— Lá vem Rodrigues.

E tornou a olhar para a rua, inclinando-se, sorrindo, emquanto na sala o pae continuava a guiar o Rubião para a porta, sem violencia, mas tenaz. Este parava, reprehendia:

— General, sou seu imperador!

— De certo, mas acompanhe-me Vossa Majestade...

Tinham chegado á porta; o major abriu a cancella, justamente quando o Rodrigues punha o pé na soleira. D. Tonica saiu da janella para receber o noivo, mas a porta estava atravancada com o pae e Rubião. Rodrigues tirou o chapeo, era exactamente o retrato, menos o acabado do retrato. O cabello, com as duas marcas fundas que lhe deixára o chapéo, era aspero e tirava a grisalho; tinha nas faces chupadas umas pintinhas de sarda, mas o riso era bom e humilde, — mais humilde ainda que bom, — e, não obstante a trivialidade do gesto e da pessoa, era agradavel. Os olhos não mostravam o espanto da photographia; este effeito do retrato provinha da emphasis que elle poz em todo o corpo afim de que o retrato saisse bonito.

— Este senhor é o meu futuro genro, disse o major a Rubião. Não é verdade que viu no Campo um coche e um esquadrão de cavallaria? perguntou ao Rodrigues, piscando um olho.

— Parece que sim, senhor.

— Pois então? continuou Sequeira, voltando-se para Rubião. Vá, vá, dobre a rua de S. Lourenço, e caminhe direito para o Campo. Adeus, até amanhã.

Rubião desceu tres degráos, — eram cinco — e parou deante do recem-chegado, fitou-o alguns instantes e declarou que estimava muito conhecel-o, que fosse bom esposo e bom genro. Como se chamava?

— Rodrigues.

— Rodrigues. Heide mandar-lhe uma fitinha aqui para a casaca. É o meu presente de nupcias. Lembre-me, Sequeira.

Sequeira pegou-lhe no braço para fazel-o descer os dous ultimos degráos, e pol-o na rua.

— No Campo, dizes tu?

— No Campo.

— Adeus.

Da rua, ainda Rubião olhou para cima, com os dedos no chapéo, afim de despedir-se de D. Tonica; mas D. Tonica estava na sala, onde Rodrigues acabava de entrar, fresco e delicioso, como a primeira rosa de verão.

CLXXXVI

Rubião não cuidou mais do coche nem do esquadrão de cavallaria. Foi dar comsigo abaixo, andou por varias ruas, até que subiu pela de S. José. Desde o paço imperial, vinha gesticulando e fallando a alguem que suppunha trazer pelo braço, e era a imperatriz. Eugenia ou Sophia? Ambas em uma só creatura, — ou antes a segunda com o nome da primeira. Pessoas que iam andando, paravam alguns instantes; do interior das lojas vinha gente ás portas. Uns riam-se, outros ficavam indifferentes; alguns, depois de verem o que era, desviavam os olhos para poupal-os á afflicção que lhes dava o espectaculo do delirio. Uma turba de moleques acompanhava o Rubião, alguns tão proximos, que lhe ouviam as palavras. Creanças de toda a sorte vinham juntar-se ao grupo. Quando elles viram a curiosidade geral, entenderam dar voz á multidão, e começou a surriada:

— Ó gira! ó gira!

Esse vozear chamou a attenção de outras pessoas; muitas janelas dos sobrados começaram a abrir-se, viram-se apparecer curiosos de ambos os sexos e todas as edades, um photographo, um estofador, tres e quatro figuras juntas, cabeças por cima de outras, todas inclinadas, espiando, acompanhando o homem, que fallava á parede, com o seu gesto cheio de grandeza e de obsequio.

— Ó gira! ó gira! berravam os pequenos.

Um delles, muito menor que todos, apegava se ás calças de outro, taludo. Era já na parte em que a rua se chamou do Parto. Rubião continuava a não ouvir nada; mas, de uma vez que ouviu, suppoz que eram acclamações, e fez uma cortezia de agradecimento. A surriada augmentava, crescia o rumor, um cão latia; uma mulher chegou á porta da loja, bradando para fóra:

— Deolindo! vem para casa, Deolindo!

Deolindo, a creança, que se aggarrava ás calças da outra mais velha, não obedeceu; pode ser que nem ouvisse, tamanha era a grita, e tal a alegria do pecurrucho clamando com a vozinha miuda: — Ó gira! ó gira!

— Deolindo!

Deolindo tratou de esconder-se entre os outros, para escapar ás vistas da mulher que o chamava; esta, porém, correra ao grupo, e arrancou-o de lá. Em verdade, era pequeno de mais para andar em tumultos de rua.

— Mamãe, deixa eu vêr...

— Qual vêr! anda!

Metteu-o em casa, e ficou á porta, olhando para a scena da rua. Rubião estacara o passo; ella pôde vel-o bem, com os seus gestos e fallares, o peito alto, e uma barretada que deu em volta.

— Os malucos teem graça, ás vezes, disse ella sorrindo a uma visinha, que chegava á janella da rotula.

Os rapazes continuavam a bradar e a rir, e Rubião foi andando, com o mesmo côro atraz de si. Deolindo, á porta da loja, vendo o          grupo alongar-se para o lado da Carioca, pedia chorosamente á mãe que o deixasse ir tambem, ou então que o levasse. O pecurrucho esticava o pescocinho, pesaroso de não ver da porta. Quando perdeu as esperanças, enfeixou todas as energias em um só gritosinho esganiçado:

— Ó gira!

— Menino, socega, vae para dentro, anda, disse-lhe a mãe.

CLXXXVII

Quando tornou á porta, achou a visinha a rir-se, e riu-se tambem com ella. Confessou que era uma pestesinha o filho, um endiabrado, que não socegava; não podia perdel-o de vista. Qualquer distracção, estava na rua. E isto desde pequenino; tinha ainda dous annos, quando escapou de morrer em baixo de um carro, que passava alli mesmo; esteve por um fio. Se não fosse um homem que passava, um senhor bem vestido, que acudiu depressa, até com perigo de vida, estaria morto e bem morto. Nisto o marido, que vinha pela calçada opposta, atravessou a rua, e interrompeu a conversação. Trazia o senho carregado, mal comprimentou a visinha, e entrou; a mulher foi ter com elle. Que era? O marido contou-lhe a surriada.

— Passou por aqui, disse ella.

— Não conheceste o homem?

— Olhei para elle. Não me lembra quem possa ser.

O marido cruzou os braços e ficou a olhar, fixo, calado. A mulher perguntou-lhe quem era.

— É aquelle homem que nos salvou o Deolindo da morte.

A mulher teve um calefrio.

— Viste bem?

— Perfeitamente. Se eu já o tinha encontrado outras vezes, mas então não estava assim. Coitado! E a molecada berrava atroz delle. Qual! não ha policia nesta terra.

O que lhe doia á mulher não era tanto o mal do homem, nem ainda a surriada; mas a parte que teve nesta o filho, — a mesma creança que o homem salvara da morte. Realmente, como podia o menino reconhecel-o, nem saber que lhe devia a vida? Doia-lhe o encontro, a coincidencia. Afinal, contentou-se de pôr todas as culpas em si. Se tivesse tido mais cuidado, o pequeno não haveria sahido, e não entraria no troça. Tremia de quando em quando, e estava inquieta. O marido pegou na cabeça do filho, e deu-lhe dous beijos.

— Você viu a scena toda? perguntou a mulher.

— Vi.

— Eu ainda quiz dar o braço ao homem, e trazel-o para aqui; mas, tive vergonha; os moleques eram capazes de dar-me uma vaia. Desviei o rosto, porque elle podia conhecer-me. Coitado! Nota que não parecia ouvir nada, e seguia satisfeito, creio que até ria... Que triste cousa que é perder o juizo!

A mulher pensava no caso do filho; não o referia ao marido, pediu a visinha que não alludisse a elle, e, de noite, só pregou olho depois das duas horas. Sonhou que, annos depois, o filho era castigado pela troça, ficando doudo tambem, e que ella cuspia para o céu, indignada blasphemando.

CLXXXVIII

Duas horas depois da scena da rua da Ajuda chegou Rubião á casa de D. Fernanda. Já não levava a garotada atraz de si. Os vadios foram-se dispersando, a pouco e pouco, e os claros não se preenchiam; os tres ultimos juntaram os seus adeoses em um berro unico e formidavel. Rubião continuou sosinho, mal percebido pelos moradores das casas, porque a gesticulação diminuia ou mudava de feitio. Não fallava para o lado da parede, á supposta imperatriz; mas era ainda imperador. Caminhava, parava, murmurava, sem grandes gestos, sonhando sempre, sempre, sempre, envolvido naquelle veo, atravez do qual todas as cousas eram outras, contrarias e melhores; cada lampião tinha um aspecto de camarista, cada esquina uma feição de reposteiro. Rubião seguia direito a sala do throno, para receber um embaixador qualquer, mas o paço era interminavel, tinha de atravessar muitas salas e galerias, verdade é que sobre tapetes, — e por entre alabardeiros, altos e robustos. Das gentes que o viam, e paravam na rua, ou se debruçavam das janellas, muitas suspendiam por instantes os seus pensamentos tristes ou enfastiados, as preocupações do dia, os tedios, os resentimentos, este uma divida, outro uma doença, outro a fome, despresos de amor, vilanias de amigo. Cada miseria esquecia-se, o que era melhor que consolar-se; mas o esquecimento durava um relampago. Passado o enfermo, a realidade empolgava-os outra vez, as ruas eram ruas, porque os paços sumptuosos iam com Rubião. E mais de um tinha pena do pobre diabo; comparando as duas fortunas, mais de um agradecia ao ceo a parte que lhe coube, — amarga, mas consciente. Preferiam o seu casebre real ao alcaçar phantasmagorico. Era de outro sentir o doutor Falcão.

CLXXXIX

— Quer que lhe dê a minha opinião em confiança? disse elle a D. Fernanda, dous dias depois dos tres capítulos anteriores, quando ella lhe escreveu, pedindo o favor de lhe fallar a casa.

— Quero.

— A mania do Rubião não é das que devam ser curadas... Não se espante; ouça-me. Elle pensa ser imperador, crê que dispõe de uma nação, de um exercito, e, por quebra, de uma esposa bonita. Que beneficio lhe quer a senhora dar, arrancando-lhe essa ilusão? O pobre homem, tornado ao que era, sentir-se-ha desgraçado. Quem sabe se elle não terá padecido a serio, por simples ilusões? Agora é feliz, por outra illusão. Tudo se compensa neste mundo. Ao meu ver, o melhor é deixal-o Bonaparte. A personalidade alheia vae consumindo a propria, até substituil-a de todo.

— Consumindo? interrompeu D. Fernanda. Então não ha remedio?

— Pode haver; mas que lucra elle com isso?

— O senhor é cruel, disse ella sorrindo.

E contou-lhe, ainda uma vez, a impressão que teve, quando viu o Rubião entrar delirante, na antevespera. Appareceu á porta da sala, perguntando pela imperatriz. Onde está a imperatriz? Ao ver D. Fernanda, titubiou um pouco; pareceu que ia ficar bom. Mas não: deu com uma poltrona, disse que era o throno, e sentou-se, respirando como cançado de andar; referiu depois uma porção de incidentes confusos, com palavras mal articuladas. D. Fernanda confessou que ficára attonita, por suppol-o recolhido a uma casa de saude; a noticia que lhe dera Sophia, desde muito, era que o marido cuidava dos ultimos arranjos. Escrevera-lhe na vespera; ella prometteu que, dentro de dous dias, o negocio estaria concluido.

— Bem; que quer a senhora de mim? perguntou Falcão.

— Que intervenha como medico, recommendando, e, se fôr preciso, acompanhando o doente á casa de saude. Elle tem ainda recursos, em poder do Palha; mas, se faltar algum dinheiro, respondo pelo resto.

— Estou prompto a servil-a; mas, não me dirá que lhe merece aquelle pobre diabo para tamanha tristeza?

— Tenha pena delle.

— É natural, mas porque não tem pena de si?

E, com palavras discretas, cosidas laboriosamente, a ponto de reticencia e de attenuação, ponderou-lhe que os seus desvellos podiam ser mal interpretados. A bella guasca ouviu as primeiras phrases, quasi sem as entender bem; quando as penetrou de todo, soltou uma risada.

— Cruel e poltrão! exclamou. É muita cousa junta. Quem é que lhe ensinou esses terrores para impedir que eu cuide de uma creatura de Deus? Ah! meu caro doutor, se, a cada passo que a gente dá, tivesse de consultar a opinião, acabava ficando no mesmo lugar; e, para não ir mais longe, que estaria o senhor fazendo aqui? Não, doutor, nem toda a gente é suspeitosa; ha alguns máos, naturalmente, mas a maior parte tem boa indole e espirito justo. Isto que eu faço, qualquer pessoa o faria, sem bulha nem matinada. Demais a mais, Rubião é um bom homem, liberal, affavel; adoeceu tristemente, e de moletia que o senhor mesmo acha curavel. Tratemos de cural-o: façamos, ao menos, o possivel. Se não quizer acompanhal-o, acompanhal-o-hei eu, e apresental-o-hei á administração e aos medicos... Que mal nos virá disto?

— A mim nenhum. Vamos arrancar-lhe a coroa e fazel-o subdito.

— Poltrão e cruel! exclamou D. Fernanda sorrindo. (Continúa.)

CXC

Dous dias depois, foi Rubião recolhido a uma casa de saude. Palha esquecera a obrigação que Sophia lhe impoz, e Sophia não se lembrou mais da promessa feita á rio-grandense. Cuidavam ambos de outra casa, um palacete em Botafogo, cuja reconstrucção estava prestes a acabar, e que elles queriam inaugurar, no inverno, quando as camaras trabalhassem, e toda a gente houvesse descido de Petropolis. Mas a nova promessa foi cumprida: Rubião deu entrada no estabelecimento, onde ficou occupando uma sala e um quarto especiaes, recommendado pelo Dr. Falcão e pelo Palha. Não resistiu a nada; acompanhou-os com satisfação, e entrou nos seus aposentos, como se os conhecesse desde muito... Quando elles se despediram, dizendo que já voltavam, Rubião convidou-os para uma revista militar, no sabbado.

— Pois sim, sabbado, assentiu Falcão.

— Sabbado é bom dia, continuou Rubião; a lua cheia, quando cae em sabbado é mais cheia que nos outros dias da semana; naturalmente por ser o dia usual dos casamentos. A lua ama os noivos; e, em paga, os noivos amam a lua. Viva a lua e vivam os noivos. Tu já fostes noivo, duque de Palha?

— Vamos embora, disse Palha baixinho, ao Dr. Falcão.

— Já foste. Pergunta á duqueza, tua mulher, se não é verdade que me ama, e que eu a amo, e que ella será imperatriz, pelo meu divorcio e pela tua morte. Adeus, até sabbado; mandar-te-hei um dos meus coches... Aquelle que chegou hontem, disse a um criado do estabelecimento, que alli estava; e continuou, tornando ao Palha: É novo, nunca foi usado, porque é preciso que tua mulher pouse o seu lindo corpo, onde ninguem ainda ousou sentar-se. Almofadas de damasco e velludo, arreios de prata e rodas de ouro; os cavallos descendem do proprio cavallo que meu tio montava em Marengo, e sabem fallar, — apenas o bastante para dizer: "Gloria a Sophia! Gloria á bem amada do nosso magnifico imperador!"Magnifico, ouviste? Adeus, duque de Palha.

CXCI

— Para mim, é claro, sahiu pensando o Dr. Falcão, aquelle homem foi amante da mulher deste sujeito.

CXCII

Lá ficou o homem. Quincas Borba tentára entrar na carruagem que levou o amigo, e porfiou em acompanhal-a, correndo; foi necessaria toda a força do criado para aggarral-o, contel-o e trancal-o em casa. Era a mesma situação de Barbacena; mas a vida, meu rico senhor, compõe-se rigorosamente de quatro ou cinco situações, que as circumstancias variam e multiplicam aos olhos. Aqui, por exemplo, faltava ao cão o trato que Rubião lhe deu, quando o primeiro amigo e senhor desceu de Barbacena. Outra differença: Rubião, d'alli a dias, pediu instantemente que lh'o mandassem, D. Fernanda, alcançado o consentimento do director, cuidou de satisfazer o desejo do doente. Quiz escrever a Sophia, mas foi ella propria ao Flamengo e convidou a outra a irem á casa do Rubião para ver o estado do animal; podia ter morrido.

— Mando ver, é aqui perto, propôz Sophia.

— Vamos nós mesmas. Que tem? Já pensei em uma cousa. Valerá a pena conservar a casa prompta e alugada, quando a cura póde prolongar-se? Melhor é deixal-a, vender os trastes e apurar o que houver.

Foram a pé do Flamengo á rua do Principe; tres a quatro minutos. Raymundo estava na rua, mas viu gente á porta e veiu abril-a. O interior da casa tinha a feição do abandono, sem a fixidez e regularidade das cousas, que parecem conservar um resto da vida interrompida; era o abandono do desmazel-o. Mas, por outro lado, o transtorno dos moveis da sala, exprimiam bem o delirio do morador, suas ideias tortas e confusas.

— Elle foi muito rico? perguntou D. Fernanda a Sophia.

— Tinha alguma cousa, respondeu esta, quando chegou de Minas; mas parece que estragou tudo. Olhe, levante o vestido que o chão parece que não se varre ha um seculo.

Não era só o chão; os trastes tinham a crosta da incuria. Nem por isso o creado explicava nada: olhava, escutava, e, baixinho, assobiava uma polka do dia. Sophia não lhe perguntou pelo asseio; estava morta por sahir "daquella immundice", dezia a si mesma, e tinha vontade de fallar no cão, que era o principal motivo da visita; mas, não queria mostrar interesse por elle nem pelo resto. A trivialidade daquillo tudo não lhe dizia nada ao espirito nem ao coração; a lembrança do alienado não a ajudava a supportar o tempo. De si para si achava a companheira singularmente romantica ou affectada. "Que bobagem!" ia pensando, sem desconcertar o sorriso approvador com que acudia a todas as observações de D. Fernanda.

— Abra aquella janella, disse esta ao creado; tudo cheira a mofo.

— Oh! insupportavel! acudia Sophia. Mas, apesar da exclamação, D. Fernanda não se resolveu a sahir. Sem que nenhuma recordação pessoal lhe viesse daquella miseravel estancia, sentia-se presa de uma sensação particular e profunda, — talvez a que dá a ruina das cousas e a versatilidade da fortuna, — talvez a que recebe uma grande natureza sympathica a toda a natureza. Vamos por esta segunda hypothese; a primeira suppõe certa disposição moral, uma feição de espirito, tal resignação e tal inercia, que inteiramente faltavam a esta senhora. Aquelle expectaculo não lhe trazia um thema de reflexões geraes, não lhe ensinava a fragilidade dos tempos, nem a tristeza do mundo; dizia-lhe tão sómente a historia de um homem. Sophia não ousava articular nada, com receio de ser desagradavel a tão conspicua dama. Tinham ambas os vestidos apanhados, para evitar a macula da poeira; mas Sophia accrescentou a essa precaução a agitação viva, continua e impaciente da ventarola, como pessoa que suffocasse naquella atmosphera. Chegou a tossir algumas vezes, poucas.

— E o cachorro? perguntou D. Fernanda ao creado.

— Está preso no quarto, lá dentro.

— Vá buscal-o.

Quincas Borba appareceu. Magro, abatido, parou á porta da sala, extranhando as duas senhoras, mas sem latir; mal erguia os olhos apagados. Chegou a dar meia volta ao corpo na direcção do interior da casa, quando D. Fernanda fez uns estalinhos com os dedos; elle parou, agitando a cauda.

— Como é mesmo que se chama? perguntou a D. Fernanda.

— Quincas Borba, respondeu o criado, rindo, com a voz arrastada. Tem nome de gente. Eh! Quincas Borba! vae lá! a senhora está chamando.

— Quincas Borba! vem cá! Quincas Borba! repetiu D. Fernanda.

Quincas Borba acudiu ao chamado, não pulando, nem alegre; lento, sim, e agitando a cauda. D. Fernanda inclinou-se, fallou lhe, perguntou-lhe pelo amigo, se estava longe, se queria ir vel-o. Assim mesmo inclinada, interrogava o creado, sobre o trato do cão.

— Agora come, sim, senhora; logo que meu amo sahiu, não queria comer nem beber; — eu até pensei que estivesse damnado.

— Come bem?

— Come pouco.

— Procura pelo senhor?

— Parece que procura, respondeu Raymundo tapando o riso com a mão; mas eu tranquei elle no quarto, para não fugir. Já não chora; a principio chorava muito, que até me accordava... Era preciso eu bater com um cacete na porta e gritar, para elle socegar...

D. Fernanda coçava a cabeça do animal, cujos olhos, de mortos que eram tornaram-se languidos. Era o primeiro affago depois de longos dias de solidão e desprezo. Quando D. Fernanda cessou de acaricial-a, e levantou o corpo, elle ficou a olhar para ella, e ella para elle, tão fixos e tão profundos, que pareciam penetrar no intimo um do outro. A sympathia universal, que era a calma desta senhora, esquecia toda a consideração humana deante daquella miseria obscura e prosaica, e estendia ao animal uma parte de si mesma, que o envolvia, que o fascinava, que o atava aos pés della. Assim, a pena, que lhe dava o delirio do senhor, dava-lhe agora o proprio cão, como se ambos representassem a mesma especie. E sentindo que a sua presença levava ao animal uma sensação boa, não queria prival-o do beneficio.

A senhora está-se enchendo de pulgas, observou Sophia.

D. Fernanda não a ouviu. Continuou a mirar os olhos meigos e bons do animal, até que este deixou cahir a cabeça e entrou a farejar a sala. Sentira o cheiro do senhor. A porta da rua estava aberta: elle teria fugido por ella se Raymundo não acudisse a prendel-o. D. Fernanda deu algum dinheiro ao creado para que o fosse lavar e conduzir á Casa de Saude, recommendando-lhe o maior cuidado, que o levasse ao collo, ou preso por um cordão. Nessa parte acudiu tambem Sophia, e, ordenando que a procurasse antes, em casa.

CXCIII

Sahiram, Sophia, antes de por o pé na rua, olhou para um e outro lado, verificando se vinha alguem, ou com receio de ser vista sahir da habitação de um homem, ou com vexame de sahir de uma casa tão pequena. São mysterios intimos. Vexame e receio parecem-se muito. Vestido bonito tambem tem o seu pudor. Felizmente, a rua estava deserta. Ao ver se livre da possilga, Sophia readquiriu o uso das boas palavras, a arte maviosa e delicada de captar os outros, e enfiou amorosamente o braço no de D. Fernanda. Fallou-lhe de Rubião e da grande desgraça da loucura; fallou tambem do palacete de Botafogo. Porque não ia com ella ver as obras? Era só lanchar um pouco, e partiriam immediatamente. O coupé já devia estar á porta.

CXCIV

Chegaram á casa. Sophia recebeu uma carta que acabavam de trazer da Tijuca. Para que negar que a abriu, com grande curiosidade, quando vira que a letra era de Carlos Maria? Abriu-a; era uma communicação de nascimento.

— Minha prima teve hontem, á noite, uma filhinha, disse ella dando a carta a D. Fernanda.

D. Fernanda ficou alvoroçadamente, e cuidou logo de ir á Tijuca. Convidou a outra, e foram. A carta dizia que tudo ia bem; mas, em poucas horas, podiam vir transtornos, pensava a rio-grandense, e a ancia de chegar quasi que lhe não dava disposição para ouvir e responder o que a outra lhe dizia.

— Mas porque é que elle não nos avisou hontem? perguntou ella depois de um grande scilencio.

— Não esperavam, talvez...

— Sim, é verdade.

Podiam ter sido avisadas; mas o pae mandaria antes destruir todas as conduções. Não teve em casa mais que o pessoal do officio. Elle mesmo veio recebel-as ao pé da varanda, á descida do carro; confirmou os termos da communicação, com respostas breves, e conduziu-as ao quarto da recente mãi. A creança estava ao pé, em um berçozinho forrado de seda e de cambraia. Era um nada de gente, mas já Maria Benedicta lhe achava os olhos superiores. D. Fernanda comprehendeu tudo, e concordou com tudo; beijou a menina, uma e muitas vezes; dar-se-hia que a filha era della, ou que ella era mãe da mãe. Interrogava, e logo pedia a Maria Benedicta que não fallasse muito, nem pouco; ouvisse apenas. E pedia informações a Carlos Maria; este dava apenas noticias geraes e arrancadas.

— Tudo correu bem?

— Muito bem.

— As dores começaram cedo?

— Não.

— A que horas nasceu?

— Oito.

Sophia fazia as mesmas perguntas à prima, baixinho, apertando-lhe a mão entre as suas. Não teria grande interesse, mas tambem não era hypocrisia, nem meio termo, um costume de momento, um persignar distrahido de dama, que entra na egreja pensando em outra cousa. Os dedos vão por si mesmos fazendo as cruzes. Maria Benedicta estava tão satisfeita de a ver assim! D. Fernanda acabou dizendo que ficava com ella; mas Carlos Maria agradeceu e recusou o obsequio.

— Quer ficar só com a sua felicidade, redarguio ella sorrindo. Eterno egoista!

E beijou a creança e a mãe despedindo-se até breve. A Carlos Maria, que as esperava á porta do quarto, deu a mão a beijar, em castigo da recusa; elle agradeceu galantemente, e conduziu-as ao carro.

(Continúa.)

CXCII

"Conto restituil-o á razão no fim de seis ou oito mezes. Vae muito bem."

D. Fernanda mandou a Sophia esta resposta do director da casa de saude, e convidou-a a irem ver o enfermo, se achasse que não lhes ficava mal. "Que mal póde haver? respondeu Sophia em um bilhete. Mas eu é que não teria animo de vel-o; foi tão nosso amigo, que não sei se poderia supportar a vista e a conversação do pobre homem. Mostrei a carta a Christiano, que me declarou ter liquidado os bens do Sr. Rubião: apurou tres contos e duzentos."

CXCIII

— Seis mezes, oito mezes passam depressa, reflexionou D. Fernanda.

E elles vieram vindo, com os successos ás costas, — a queda do ministério, a subida de outro em março, a volta do marido, a discussão da lei dos ingenuos, a morte do noivo de D. Tonica, tres dias antes de casar.

D. Tonica chorou todas as lagrymas, — umas de affeição, outras de desesperança, — e ficou com os olhos tão vermelhos, que o sol, no dia seguinte, ao vel-a no quintal, não pode distinguir se era effeito de angustia ou conjunctivite.

Theophilo, que merecera do novo gabinete a mesma confiança do antigo, teve parte copiosa nos debates da sessão parlamentar. Camacho declarou pela sua folha que a lei dos ingenuos absolvia a esterilidade e os crimes da situação. Em Outubro, Sophia inaugurou os seus salões de Botafogo, com um baile, que foi o mais celebre do tempo. Estava deslumbrante. Ostentava, sem orgulho, todos os seus braços e espaduas. Ricas joias; o colar era ainda um dos primeiros presentes do Rubião, tão certo é que, neste genero de atavios, as modas conservam-se mais. Toda a gente admirava a gentileza daquella trintona fresca e robusta; os homens fallavam das suas virtudes domesticas, da adoração que ella tinha ao marido.

CXCIV

No dia seguinte ao baile, D. Fernanda accordou tarde. Foi ao gabinete do marido, que já devorara cinco ou seis jornaes, escrevera dez cartas e rectificava a posição de alguns livros nas estantes.

— Recebi esta carta, ha pouco, disse elle.

D. Fernanda leu-a; era do director da casa de saude; noticiava que Rubião, desde tres dias, desapparecera, não tendo podido ser encontrado por mais esforços que tivessem empregado a policia e elle. "Tanto mais me espanta esta fuga, concluia a carta, quanto que as melhoras eram grandes, e podia contar que, em dous mezes, o poria inteiramente bom."

D. Fernanda ficou consternada; alcançou do marido que escrevesse ao chefe de policia e ao ministerio da justiça, pedindo-lhes que ordenassem as mais severas pesquizas. Theophilo não tinha o menor interesse no achado nem na cara de Rubião; mas quiz servir á mulher, cuja bondade conhecia, e, porventura, gostava de cartear-se com os homens da alta administração.

CXCV

Como achar, porém, o nosso Rubião nem o cachorro, se ambos, haviam partido para Barbacena? Rubião escrevera ao Palha que lhe fosse fallar; este acudiu á casa de saude, viu que elle raciocinava claramente, correctamente, sem a menor sombra de delirio.

Tive uma crise mental, disse-lhe Rubião; agora estou bom, perfeitamente bom. Peço-lhe que me ponha fóra daqui. Creio que o director não se opporá. Entretanto, como quero deixar algumas lembranças á gente que me tem servido, e servido tambem ao Quincas Borba, veja se me póde adiantar cem mil réis.

Palha abriu a carteira sem hesitação, e deu-lhe o dinheiro.

— Vou tratar de o fazer sair, disse elle; mas, provavelmente são precisos alguns dias (estava em vesperas do baile); não se afflija por isso; daqui a uma semana está na rua.

Antes de sair, fallou ao director, que lhe deu boas noticias do enfermo. Uma semana é pouco, disse elle; para pôl-o bom, bom, preciso ainda uns dous mezes. Palha confessou que o achára são; em todo caso, mandava quem sabia, e se fossem necessarios seis ou sete mezes mais, não precipitasse a cura.

Dada a fuga, o director não a participou logo aos amigos do enfermo; foi só depois que a policia desistiu de o capturar, que o Palha e o marido de D. Fernanda receberam communicação do facto. Palha deu-se pressa em saldar as contas da casa de saude, e depositou o resto do dinheiro. Das novas investigações nada se pode colher; cão e homem estavam em Barbacena, como ficou dito.

CXCVI

Rubião, logo que chegou a Barbacena e começou a subir a rua que ora se chama de Tiradentes, exclamou parando:

— Ao vencedor, as batatas!

Tinha-as esquecido de todo, a formula e a allegoria. De repente, como se as syllabas houvessem ficado no ar, intactas, aguardando alguem que as podesse entender, uniu-as, recompoz a formula, e proferiu-a com a mesma emphasis daquelle dia em que a tomou por lei da vida e da verdade. Integralmente, não se lembrava da allegoria; mas, a palavra deu-lhe o sentido vago da luta e da victoria.

Subiu, acompanhado do cão, e foi parar defronte da egreja. Ninguem lhe abriu a porta; não viu sombra de gente. Quincas Borba, que não comia desde muitas horas, collava-se-lhe ás pernas, cabisbaixo, esperando. Rubião voltou-se, e do alto da rua estendeu os olhos abaixo e ao longe. Era ella, era Barbacena; a velha cidade natal ia-se-lhe desentranhando das profundas camadas da memoria. Era ella; aqui estava a egreja, alli a cadeia, acolá a pharmacia, donde vinham os medicamentos para o outro Quincas Borba. Sabia que era ella, quando chegou; mas, á medida que os olhos se derramavam, as reminiscencias vinham vindo, escassas, mais numerosas, em bando, cousas e pessoas. Não via ninguem; uma janella, á esquerda, parecia ter alguem que espiava. Tudo o mais deserto.

— Talvez não saibam que cheguei, pensou Rubião.

CXCVII

Subito, relampejou; as nuvens amontoavam-se ás pressas. Relampejou mais forte, e estalou um trovão. Começou a choviscar grosso, mais grosso, até que desabou a tempestade. Rubião, que aos primeiros pingos, deixara a egreja, picou o passo, rua abaixo, seguido sempre do cão, faminto e fiel, ambos tontos, debaixo do aguaceiro, sem destino, sem esperança de pouso ou de comida... A chuva batia-lhe sem misericordia. Não podiam correr, porque Rubião temia escorregar e cahir, e o cão não queria perdel-o. A meia rua, acudiu á memoria do Rubião a pharmacia, voltou para traz, subindo contra o vento, que lhe dava de cara; mas ao fim de vinte passos, varreu-se-lhe a idéa da cabeça; adeus, pharmacia! adeus, pouso! Já se não lembrava do motivo que o fizera mudar de rumo, e desceu outra vez, e o cão atraz, sem entender nem fugir, um e outro alagados, confusos, ao som da trovoada rija e continua.

CXCVIII

Vagaram sem destino. O estomago de Rubião interrogava, exclamava, intimava; por fortuna, o delirio vinha enganar a necessidade com os seus banquetes das Tulherias. Quincas Borba é que não tinha egual recurso. E toca a andar acima e abaixo. Rubião, de quando em quando, sentava-se no lagedo, e o cão trepava-lhe ás pernas, para dormir a fome; achava as calças molhadas, e descia; mas tornava logo a subir, tão frio era o ar da noite, já noite alta, já noite morta. Rubião passava-lhe as mãos por cima, resmungando, discursando, algumas vezes, rindo.

Se, apesar de tudo, Quincas Borba conseguia adormecer, accordava logo, porque Rubião levantava-se e punha-se outra vez a descer e subir ladeiras. Soprava um triste vento, que parecia faca, e dava arrepios aos dois vagabundos. Rubião andava de vagar; o proprio cançaço não lhe permittia as grandes pernadas do principio, quando a chuva cahia em bategas. As paradas eram agora mais frequentes. O cão, morto de fome e de fadiga, não entendia aquella odysséa, ignorava o motivo, esquecera o logar não ouvia nada, senão as vozes surdas do senhor. Não podia ver as estrellas, que já então rutilavam, livres de nuvens. Rubião descobriu-as; chegára a porta da egreja, como quando entrou na cidade; acabava de sentar-se e deu com ellas. Estavam tão bonitas, reconheceu que eram os lustres do grande salão e ordenou que os apagassem. Não pôde ver a execução da ordem; adormeceu alli mesmo, com o cão ao pé de si. Quando accordaram de manhã, estavam tão juntinhos que pareciam pegados.

CXCIX

— Ao vencedor, as batatas! exclamou Rubião emphaticamente, quando deu com os olhos na rua, sem noite, sem agua, beijada do sol.

(Continúa.)

CC

(Conclusão)

Foi a comadre do Rubião, que o agasalhou e mais ao cachorro, vendo-os passar defronte da porta, mal dormidos, tiritando. Rubião conheceu-a, aceitou o abrigo e o almoço.

— Mas que é isso, seu compadre? Como foi que chegou assim? Sua roupa está toda molhada. Vou dar-lhe umas calças de meu sobrinho.

Rubião tinha febre. Comeu pouco e sem vontade. A comadre pediu-lhe contas da vida que tivera na Côrte, ao que elle respondeu que levaria muito tempo, e só a posteridade a acabaria. Os sobrinhos de seu sobrinho, concluiu elle magnificamente, é que hão de ver-me em toda a minha gloria. Começou, porém, um resumo. No fim de dez minutos, a comadre não entendia nada, tão desconcertados eram os factos e os conceitos; mais cinco minutos, entrou a sentir medo. Quando os minutos chegaram a vinte, pediu licença e foi a uma visinha dizer que Rubião parecia ter virado o juizo. Voltou com ella e um irmão, que se demorou pouco tempo e saiu a espalhar a nova. Vieram vindo outras pessoas, ás duas e ás quatro, e, antes de uma hora, muita gente espiava da rua, para dentro de casa.

— Ao vencedor, as batatas! bradava Rubião para os curiosos. Aqui estou imperador! Ao vencedor, as batatas!

Esta palavra obscura e incompleta era repetida na rua examinada, sem que lhe dessem com o sentido. Alguns antigos desaffectos de Rubião iam entrando, sem ceremonia, para gosal-o melhor; e diziam a comadre que não lhe convinha ficar com um doudo em casa, era perigoso devia mandal-o para a cadeia, até que a autoridade o remettesse para outra parte. Pessoa mais compassiva lembrou a conveniencia de chamar o doutor.

— Doutor para que? acudiu um dos primeiros. Este homem está maluco.

— Talvez seja delirio de febre; já viu como está quente?

Angelica, animada por tantas pessoas, tomou-lhe o pulso, e achou-o febril. Mandou vir o medico, —  o mesmo que tratara o finado Quincas Borba. Rubião conheceu-o tambem; respondeu-lhe que não era nada. Vinha da ultima batalha, capturára o rei da Prussia, não sabendo ainda se o mandaria fusilar ou não; era certo, porém, que exigiria uma indemnisação pecuniaria enorme, — cinco billiões de francos.

— Ao vencedor, as batatas! concluiu, rindo.

CCI

Poucos dias depois morreu... Não morreu subdito nem vencido. Antes de principiar a agonia, que foi curta, poz a coroa na cabeça, — uma coroa que não era, ao menos, um chapeo velho ou uma bacia, onde os expectadores palpassem a illusão. Não, senhor; elle pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só elle via a insignia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas. O esforço que fizera para erguer meio corpo não durou muito; o corpo cahiu outra vez; o rosto conservou porventura uma expressão gloriosa.

— Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor...

A cara ficou séria, porque a morte é séria; dous minutos de agonia, um tregeito horrivel, e estava assignada a eterna abdicação.

CCII

Queria dizer aqui o fim do Quincas Borba, que adoeceu tambem, ganiu infinitamente, fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, tres dias depois. Mas vendo a morte do cão narrada em capitulo especial, é provavel que me perguntes se elle se o seu defuncto homonymo e que dá titulo ao livro, e porque antes um que outro, — questão prenhe de questões, que nos levariam longe... Eia, chora os dous recentes mortos, se tens lagrimas! Se só tens risos, ri-te! É a mesma cousa. O Cruzeiro, que a bella Sophia não quiz fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lagrimas dos homens: alto e quasi eterno.

FIM



[1] Segundo trabalho de Ana Cláudia Suriani da Silva, os capítulos LVIII, LIX, LX, LXI e o início do capítulo LXII, da edição do Quincas Borba em folhetins, n’A Estação, publicados em 15 de abril de 1887, não foram registrados na edição preparada pela Comissão Machado de Assis, em virtude de a coleção da revista, na Biblioteca Nacional, não estar completa. Somente pudemos publicar esta obra de Machado, em sua integridade, graças à gentileza de Ana Cláudia em nos ceder o material, além da boa vontade de João Cezar de Castro Rocha, organizador de um livro em que tais capítulos já apareceram: O plágio como criação: o caso Machado de Assis. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2007 (já publicado em The Author as Plagiarist: The Case of Machado de Assis. Portuguese Literary & Cultural Studies, 13/14. Massachusetts: Center for Portuguese Studies and Culture, Dartmouth, 2006). A eles, nossos sinceros agradecimentos.