Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Caramuru, de Santa Rita Durão


Edição de Referência:

Biblioteca Nacional

ÍNDICE

Reflexões prévias e argumentos

Canto I

Canto II

Canto III

Canto IV

Canto V

Canto VI

Canto VII

Canto VIII

Canto IX

Canto X

Reflexões prévias e argumentos


Os sucessos do Brasil não mereciam menos um Poema que os da Índia. Incitou-me a escrever este o amor da Pátria. Sei que a minha profissão exigiria de mim outros estudos; mas estes não são indignos de um religioso, porque o não foram de bispos, e bispos santos; e, o que mais é, de Santos Padres, como S. Gregório Nazianzeno, S. Paulino, e outros; maiormente, sendo este poema ordenado a pôr diante dos olhos aos libertinos o que a natureza inspirou a homens que viviam tão remotos das que eles chamam preocupações de espírito débeis. Oportunamente o insinuamos em algumas notas; usamos sem escrúpulo de nomes tão bárbaros; os alemães, ingleses, e semelhantes, não parecem menos duros aos nossos ouvidos, e os nossos aos seus. Não faço mais apologias da obra, porque espero as repreensões, para, se for possível, emendar os defeitos, que me envergonho menos de cometer que de desculpar.

A ação do poema é o descobrimento da Bahia, feito quase no meio do século XVI por Diogo Álvares Correia, nobre Vianês, compreendendo em vários episódios a história do Brasil, os ritos, tradições, milícias dos seus indígenas, como também a natural, e política das colônias.

Diogo Álvares passava ao novo descobrimento da capitania de São Vicente, quando naufragou nos baixos de Boipebá, vizinhos à Bahia. Salvaram-se com ele seis dos seus companheiros, e foram devorados pelos gentios antropófagos, e ele esperado, por vir enfermo, para melhor nutrido servir-lhes de mais gostoso pasto. Encalhada a nau, deixaram-no tirar dela pólvora, bala, armas, e outras espécies, de que ignoravam o uso. Com uma espingarda matou ele caçando certa ave, de que espantados, os bárbaros o aclamaram Filho do trovão, e Caramuru, isto é, Dragão do mar. Combatendo com os gentios do sertão, venceu-os, e fez-se dar obediência daquelas nações bárbaras. Ofereceram-lhe os principais do Brasil as suas filhas por mulheres; mas de todas escolheu Paraguassu, que depois conduziu consigo à França, ocasião em que outras cinco Brasilianas, seguiram a nau francesa a nado, por acompanhá-lo, até que uma se afogou, e, intimidadas, as outras se retiraram.

Salvou um navio de Espanhóis, que naufragaram, com o que mereceu que lho agradecesse o Imperador Carlos V com uma honrosa carta. Passou à França em nau que ali abordou daquele reino, e foi ouvido com admiração de Henrique II, que o convidava para em seu nome fazer aquela conquista. Repugnou ele, dando aviso ao Senhor D. João III por meio de Pero Fernandes Sardinha, primeiro bispo da Bahia. Cometeu o Monarca a empresa a Francisco Pereira Coutinho, fazendo-o donatário daquela Capitania. Mas este, não podendo amansar os Tupinambás, que habitavam o Recôncavo, retirou-se à Capitania dos ilhéus; e, pacificando depois com os Tupinambás, tornava à Bahia, quando ali infaustamente pereceu em um naufrágio. Entanto Diogo Álvares assistiu em Paris ao batismo de Paraguassu sua esposa, nomeada nele Catarina, por Catarina de Médicis, Rainha Cristianíssima, que lhe foi madrinha, e tornou com ela para a Bahia, onde foi reconhecida dos Tupinambás como herdeira do seu Principal, e Diogo recebido com o antigo respeito. Teve Catarina Álvares uma visão famosa, em que a Virgem Santíssima, manifestando-se lhe cheia de glória, lhe disse que fizesse restituir uma imagem sua roubada por um Selvagem. Achou-se esta nas mãos de um Bárbaro; e Catarina Álvares com exclamações de júbilo se lançou a abraçá-la, clamando ser aquela a imagem mesma que lhe aparecera: foi colocada com o título de Virgem Santíssima da Graça em uma igreja, que é hoje Mosteiro de S. Bento, celebre por esta tradição. Chegou entanto de Portugal Tomé de Sousa com algumas naus, famílias e tropas para povoar a Bahia. Sebastião da Rocha Pita, Autor da Historia Brasílica, e natural da mesma cidade, assevera que Catarina Alvares renunciara no Senhor D. João III os direitos que tinha sobre os Tupinambás, como herdeira dos seus maiores Principais; ele mesmo atesta que aquele Monarca mandara aos seus Governadores que honrassem e atendessem Diogo Álvares Correia, Caramuru pelos referidos serviços; e foi com efeito ele o tronco da nobilíssima casa da Torre na Bahia; e Catarina Álvares sua mulher foi honrada por aquela metrópole com um seu retrato sobre a porta da casa da pólvora, ao lado das armas reais. Leia-se Vasconcelos na História do Brasil, Francisco de Brito Freire, e Sebastião da Rocha Pita.

O AUTOR.

CARAMURU POEMA ÉPICO DO DESCOBRIMENTO DA BAHIA

CANTO I

I

De um varão em mil casos agitados,

Que as praias discorrendo do Ocidente,

Descobriu recôncavo afamado

Da capital brasílica potente;

Do Filho do Trovão denominado,

Que o peito domar soube à fera gente,

O valor cantarei na adversa sorte,

Pois só conheço herói quem nela é forte.

II

Santo Esplendor, que do Grão Padre manas

Ao seio intacto de uma Virgem bela,

Se da enchente de luzes soberanas

Tudo dispensas pela Mãe donzela;

Rompendo as sombras de ilusões humanas,

Tudo do grão caso a pura luz revela;

Faze que em ti comece e em ti conclua

Esta grande obra, que por fim foi tua.

III

E vós, Príncipe excelso, do Céu dado

Para base imortal do luso trono;

Vós, que do áureo Brasil no principado

Da real sucessão sois alto abono;

Enquanto o império tendes descansado

Sobre o seio da paz com doce sono,

Não queirais designar-vos no meu metro

De pôr os olhos e admiti-lo ao cetro.

IV

Nele vereis nasce es desconhecidas,

Que em meio dos sertões a fé não doma

E que puderam ser-vos convertidas

Maior império que houve em Grécia ou Roma!

Gentes vereis e terras escondidas,

Onde, se um raio da verdade assoma,

Amansando-as, tereis na turba imensa,

Outro reino maior que a Europa extensa.

V

Devora-se a infeliz, mísera gente;

E, sempre reduzida a menos terra,

Virá toda a extinguir-se, infelizmente,

Sendo, em campo menor, maior a guerra;

Olhai, senhor, com reflexão clemente

Para tantos mortais, que a brenha encerra,

E que, livrando desse abismo fundo,

Vireis a ser monarca de outro mundo.

VI

Príncipe, do Brasil futuro dono,

À mãe da Pátria, que administra o mando,

Ponde, excelso senhor, aos pés do trono

As desgraças do povo miserando;

Para tanta esperança é o justo abono

Vosso título e nome, que invocando,

Chamará, como a outro o egípcio povo,

D. José salvador de um mundo novo.

VII

Nem podereis temer que ao santo intento

Não se nutram heróis no luso povo,

Que o antigo Portugal vos apresento

No Brasil renascido, como em novo.

Vereis do domador do Índico assento

Nas guerras do Brasil alto renovo,

E que os seguem nas bélicas idéias

Os Vieiras, Barretos e os Correias.

VIII

Daí, portanto, Senhor, potente impulso,

Com que possa entoar sonoro o metro

Da brasílica gente o invicto pulso,

Que aumenta tanto império ao vosso cetro;

E, enquanto o povo do Brasil convulso (1)

Em nova lira canto, em novo pletro,

Fazei que fidelíssimo se veja

O vosso trono em propagar-se a Igreja.

IX

Da nova Lusitânia o vasto espaço

Ia a povoar Diogo, a quem bisonho,

Chama o Brasil, temendo o forte braço,

Horrível filho do trovão medonho;

Quando do abismo por cortar-lhe o passo

Essa fúria saiu como suponho,

A quem do inferno o paganismo aluno,

Dando o Império das águas, fez Netuno.

X

O grão tridente, com que o mar comove,

Cravou dos Órgãos na montanha horrenda (2)

E na escura caverna, adonde Jove

(Outro espírito) espalha a luz tremenda,

Relâmpagos mil faz, coriscos chove;

Bate-se o vento em hórrida contenda,

Arde o céu, zune o ar, treme a montanha,

E ergue-lhe o mar em frente outra tamanha.

XI

O filho do trovão, que em baixel ia,

Por passadas tormentas ruinoso,

Vê que do grosso mar na travessia

Se serve o lenho pelo pego undoso.

Bem que, constante, a morte não temia;

Invoca no perigo o Céu piedoso,

Ao ver que a fúria horrível da procela

Rompe a nau, quebra o leme e arranca a vela.

XII

Lança-se ao fundo o ignívomo instrumento,

Todo o peso se alija; o passageiro,

Para nadar no túmido elemento,

A tábua abraça que encontrou primeiro;

Quem se arroja no mar temendo o vento,

Qual se fia a um batel, quem a um madeiro,

Até que sobre a penha, que a embaraça,

A quilha bate e a nau de despedaça.

XIII

Sete somente do batel perdido

Vem à praia cruel, lutando a nado;

Oferece-lhes socorro fementido

Bárbara multidão, que acode ao brado;

E, ao ver na praia o benfeitor fingido,

Rende-lhe as mãos o náufrago enganado.

Tristes! que a ver algum qual fim o espera

Com quanta sede a morte não bebera!

XIV

Já estava em terra o infausto naufragante,

Rodeado da turba americana;

Vem-se com pasmo ao porem-se diante,

E uns aos outros não crêem da espécie humana;

Os cabelos, a cor, barba e semblante

Faziam crer aquela gente insana

Que alguma espécie de animal seria,

Desses que no seu seio o mar trazia.

XV

Algum, chegando aos míseros, que à areia

O mar arroja extintos, nota o vulto;

Ora o tenta despir e ora receia,

Não seja astúcia com que o assalte, oculto.

Outros, do jacaré, tornando a idéia, (3)

Temem que acorde com violento insulto

Ou, que o sono fingindo, os arrebate

E entre presas cruéis no fundo os mate.

XVI

Mas, vendo a Sancho, um náufrago que expira,

Rota a cabeça numa penha aguda,

Que ia trêmulo a erguer-se e que caíra,

Que com voz lastimosa implora ajuda;

E vendo os olhos, que ele em branco vira,

Cadavérica a face, a boca muda,

Pela experiência da comua sorte,

Reconhecem também que aquilo é morte.

XVII

Correm, depois de crê-lo, ao pasto horrendo,

E, retalhando o corpo em mil pedaços,

Vai cada um famélico trazendo,

Qual um pé, qual a mão, qual outros os braços:

Outro na crua carne iam comendo,

Tanto na infame gula eram devassos.

Tais há que as assam nos ardentes fossos;

Alguns torrando estão na chama os ossos.

XVIII

Que horror da humanidade! ver tragada

Da própria espécie a carne já corrupta!

Quando não deve a Europa abençoada

A fé do Redentor, que humilde escuta?

Não era aquela infâmia praticada

Só dessa gente miseranda e bruta:

Roma e Cartago o sabe no noturno,

Horrível sacrifício de Saturno. (4)

XIX

Os sete, entanto, que do mar com vida

Chegaram a tocar na infame areia,

Pasmam de ver na turba recrescida,

A brutal catadura, hórrida e feia;

A cor vermelha em si mostram tingida

De outra cor diferente, que os afeia;

Pedras e paus de embirras enfiados, (5)

Que na face e nariz trazem furados.

XX

Na boca, em carne humana ensangüentada,

Anda o beiço inferior todo caído,

Porque a têm toda em roda esburacada,

E o labro de vis pedras embutido;

Os dentes (que é beleza que lhe agrada)

Um sobre outro desponta recrescido;

Nem se lhe vê nascer na barba o pêlo,

Chata a cara e nariz, rijo o cabelo.

XXI

Vê-se no sexo recatado o pejo,

Sem mais que antiga gala que Eva usava,

Quando por pena de um voraz desejo,

Da feia desnudez se envergonhava;

Vão sem pudor com bárbaro despejo,

Os homens, como Adão sem culpa andava;

Mas vê-se, alma Natura, o que lhe ordenas,

porque no sacrifício usam de penas.

XXII

Qual das belas araras traz vistosas,

Louras, brancas, purpúreas, verdes plumas;

Outros põem, como túnicas lustrosas,

Um verniz de balsâmicas escumas.

Nem temem nele as chuvas procelosas,

Nem o frio rigor de ásperas brumas;

Nem se receiam do mordaz besouro,

Qual anta ou qual tatu dentro em seu couro. (6)

XXIII

Por armas frechas, arcos pedras, bestas,

A espada do pau ferro; e por escudo,

As redes de algodão, nada molestas,

Onde a ponta se embace ao dardo agudo;

Por capacete nas guerreiras testas,

Cintos de penas com galhardo estudo;

Mas o vulgo no bélico ameaço,

Não tem mais que unha ou dente, ou punho ou braço.

XXIV

Desta arte armada, a multidão confusa

Investe o naufragante enfraquecido,

Que, ao ver-se despojar, nada recusa,

Porque se enxugue o mádido vestido;

Tanto mais pelo mimo, que se lhe usa,

Quando a bárbara gente o vê rendido

Trouxeram-lhe a batata, o coco, o inhame; (7)

Mas o que crêem piedade é gula infame.

XXV

Cevavam desta forma os desditosos,

Das fadigas marítimas desfeitos,

Por pingues ter os pastos horrorosos,

Sendo nas carnes míseras refeitos.

Feras! mas feras não, que mais monstruosos

São da nossa alma os bárbaros efeitos,

E em corruta razão mais furor cabe,

Que tanto um bruto imaginar não sabe.

XXVI

Não mui longe do mar, na penha dura,

A boca está de um antro mal aberta,

Que, horrível dentro pela sombra escura,

Toda é fora de rama encoberta.

Ali com guarda à vista se clausura

A infeliz companhia, estando alerta;

E, por cevá-los mais, dão-lhe o recreio

De ir pela praia em plácido passeio.

XXVII

Diogo então, que à gente miseranda,

Por ser de nobre sangue precedia,

Vendo que nada entende a turba infanda,

Nem do férreo mosquete usar sabia;

Da rota nau, que se descobre à banda,

Pólvora e bala em copia recolhia;

E, como enfermo que no passo tarda,

Serviu-se por bastão de uma espingarda.

XXVIII

Forte sim, mas de têmpera delicada,

Aguda febre traz desde a tormenta;

Pálido o rosto, e a cor toda mudada,

A carne sobre os ossos macilenta.

Mas foi-lhe aquela doença afortunada,

Porque a gente cruel guardá-lo intenta,

Até que, sendo a si restituído,

Como os mais vão comer, seja comido.

XXIX

Barbária foi (se crê) da antiga idade

A própria prole devorar nascida,

Desde que essa cruel voracidade

Fora ao velho Saturno atribuída;

Fingimento por fim, mas é em verdade,

Invenção do diabólico homicida,

Que uns cá se matam, e outros lá se comem:

Tanto aborrece aquela fúria ao homem.

XXX

Mas já três vezes tinha a lua enchido

Do vasto globo o luminoso aspecto,

Quando o chefe dos bárbaros temido

Fulmina contra os seis o atroz decreto.

Ordena que no altar seja oferecido

O brutal sacrifício em sangue infecto, (8)

Sendo a cabeça às vítimas quebrada

E a gula infanda de os comer saciada.

XXXI

Entanto que se ordena a brutal festa,

Nada sabiam na marinha gruta

Os habitantes da prisão funesta,

Que ardilosa lho esconde a gente bruta;

E, enquanto a feral pompa já se apresta,

Toda a pena em favor se lhe comuta.

Nem parecem ter dado a menor ordem,

Senão que comam e comendo engordem.

XXXII

Mimosas carnes mandam, doces frutas,

O araçá, o caju, coco e mangaba;

Do bom maracujá lhe enchem as grutas,

Sobre rimas e rimas de goiaba;

Vasilhas põem de vinho nunca enxutas, (9)

E a imunda catimpoeira, que da baba (10)

Fazer costuma a bárbara patrulha,

Que só de ouvi-lo o estômago se embrulha.

XXXIII

Um dia, pois, que à sombra desejada

Se repousam, passando a calma ardente,

Por dar alívio à dor reconcentrada

De ver-se escravos de tão fera gente,

Fernando, um deles, diz, que aos mais agrada

Por cantigas que entoa docemente,

Que em cítara, que o mar na terra lança,

Se divirtam da fúnebre lembrança.

XXXIV

Mancebo era Fernando mui polido,

Douto em letras e em prendas celebrado,

Que, nas ilhas do Atlântico nascido,

Tinha muito coas musas conversado;

Tinha ele os rumos do Brasil seguido

Por ver o monumento celebrado

De uma estátua famosa que num pico (11)

Aponta do Brasil ao país rico.

XXXV

Pedira-lhe Luís, que isto escutara,

De profética estátua o conto inteiro,

Se foi verdade, se invenção foi clara

De gente rude ou povo noveleiro.

Fernando então, que em metro já cantara

O sucesso, que atesta verdadeiro,

Toma nas mãos a cítara suave

E, entoando, começa em canto grave.

XXXVI

Oculto o tempo foi, incerta a era,

Em que o grão-caso contam sucedido;

Mas em parte é sem dúvida sincera

A bela história, que a escutar convido.

Feliz foi o ditoso, e feliz era

Quem tanto foi do céu favorecido,

Pois em meio ao corruto gentilismo

Merecer soube a Deus o seu batismo.

XXXVII

Incerto pelas brenhas caminhava

Um varão santo, que perdera a via,

Quando pelos cabelos o elevava

O anjo a onde o sol já se escondia;

E um selvagem lhe mostra, que se achava (12)

Quase lutando em última agonia:

Ouve (lhe diz) o justo agonizante,

E uma estrada de luz tomou brilhante.

XXXVIII

Auréo (que assim se chama o sacro enviado),

Encostando-se ao velho titubeante,

Por ignorar-lhe o idioma não falado,

No seu diz, de que o enfermo era ignorante;

E ouve-se responder (caso admirado!)

Numa língua de todo extravagante,

Que, sendo em tudo extraordinária e bruta,

Faz-se entender, e entende-o no que escuta.

XXXIX

Do grande Criador por mensageiro

A bênção (diz) te ofereço, homem ditoso;

Neste mundo ignorado em o primeiro

Quer que o seu nome escutes glorioso;

Do Eterno pai, de um filho Verdadeiro,

Do Espírito também, laço amoroso,

Quer que o mistério saibas da verdade

São três pessoas numa só Unidade.

XL

Um só Senhor, que todo o ser governa,

Que só com dizer seja o fez de nada,

Que à natureza desde a idade eterna

Certa época fixou de ser criada;

Que, abrindo liberal a mão paterna,

Toda a coisa abençoa que é animada;

Que sua imagem nos fez, e, sem segundo,

Quer que o homem reine sobre o vasto mundo;

XLI

Que, havendo em mil delícias colocado

Nossos primeiros pais num paraíso,

Por homenagem desse império dado,

Privou de um pomo com severo aviso;

Que, vendo o seu respeito profanado

E igual satisfação sendo preciso,

No duro lenho a pôs, no férreo cravo,

E deu o filho por salvar o escravo:

XLII

Este no seio, pois, de Virgem pura,

Invocada no nome de Maria,

Redentor, mestre, e luz da criatura,

Nasceu, pregou, morreu na cruz ímpia;

Rompeu do abismo a imóvel fechadura;

Depois ressurge no terceiro dia;

E, ao céu subindo enfim, donde comanda,

Aos fins da terra os mensageiros manda.

XLIII

Um destes vendo a ti: lavar-te intento,

Se queres aceitar meu catecismo;

E, servindo de porta o sacramento,

Incorporar-te ao cristianismo.

Purga o teu coração, teu pensamento,

Por chegar puro às águas do batismo,

Onde, se entras com dor do mal primeiro,

De Jesus Cristo morrerás co-herdeiro.

XLIV

Aos primeiros acentos que escutara,

Guaçu (que este é seu nome) a frente empena;

Atenda ao que ouve a orelha e fixa a cara,

Senão que coa cabeça a tudo acena;

Dos olhos mal se serve, que cegara,

Bem que a vista pareça ter serena;

As mãos de quando em quando estende, e toca,

E pende atento da sagrada boca.

XLV

"Bom ministro (responde) do Piedoso,

Excelso grão-Tupá, que o céu modera, (13)

ao me vens novo, não, que tive o gosto

De ouvir-te em sonho já, quem ver pudera!

Se a imagem tens, que o sono fabuloso

Há muito que de ti na mente gera!

Serás, disse (e na barba o vai tocando),

Homens com barbas, branco e venerando.

XLVI

Louvores a Tupá, que enfim chegaste;

Que o caminho me ensinas, donde elejo

Buscar logo o grão-Deus, que me anunciaste,

Que desde a infância com ardor desejo.

Nunca soube, assim é, quanto contaste;

Mas, não sei como, o que ouço e quase vejo

Sentia, como em sombra mal formada;

Não que o cresse ainda assim, mas por toada.

XLVII

Vendo desse universo a mole imensa,

Sem ser de ainda maior entendimento,

Fabricada a não cri; que ele o dispensa,

Tem, rege e guarda, infere o pensamento.

Que repugna à criatura estar suspensa,

Sem ultimo fim ter, notava atento.

E este ente, que me fez um Deus segundo,

O grão-Tupá, fabricador do mundo.

XLVIII

Vi as chagas da própria natureza,

A ignorância, a malícia, a variedade,

E bem reconheci que esta torpeza

Nascer não pode da eternal bondade,

Onde, sem o saber, cri que era acesa

Neste incêndio comum da humanidade

Antiga chama, donde o mal nos veio:

Crer que tais nos fez Deus... eu tal não creio.

XLIX

Também vi que o grão-Deus, que o mundo cria,

Deixar nunca quisera em tanto estrago

A humana natureza; e que a mão pia

De tais misérias ao profundo lago

Havia de estender: como o faria?

Suspenso fiquei sempre incerto e vago;

Mas nunca duvidei que alguém se visse

Que de tantas misérias nos remisse.

L

E como era a maior que experimentava

O ver que livremente o mal seguia;

Que a suprema Bondade se agravava

Donde um homem de bem se agravaria;

Vendo que a afronta, que esta ação causava,

Só se houvera outro Deus, se pagaria;

E impossível mais de um reconhecendo...

Daqui não passo, e cego me suspendo. (14)

LI

Agora sim, que entendo a grã-verdade,

Que um só Deus se fez homem sem defeito;

E, sendo três pessoas na Unidade,

Do Filho ao Pai podia haver respeito.

A pessoa segunda da Trindade,

Novo homem, como nós, de terra feito,

A paz do homem com Deus fundar procura,

Redentor pio da mortal criatura.

LII

Este creio, este adoro, este confesso;

E esta santa mensagem venerando

Por meu Deus e Senhor firme o conheço,

A quem da terra e céu pertence o mando.

Deste o batismo santo hoje te peço,

Onde, na porta celestial entrando,

Suba o espírito à glória que deseja

E com estes meus olhos ainda o veja."

LIII

Disse o ditoso velho; e, acompanhando

Com devoto suspiro a voz que exprime,

Bem mostra que no peito o está tocando

A oculta unção do Espírito sublime,

As mãos ao céu levanta lagrimando;

E tanto ardor na face se lhe imprime,

Que acompanhar parece o humilde rogo

Um dilúvio de água, outro de fogo.

LIV

Então o bom ministro: "É justo, amigo,

Que chores (lhe dizia) o teu pecado,

Por não amar a Deus; ser-lhe inimigo,

Se o blasfemaste: de o não ter honrado;

De não servir teus pais; de um ódio antigo;

E se não foste honesto, ou tens roubado;

Se em mulher, bens ou fama em caso feio

Fizeste dano, ou cobiçaste o alheio.

LV

Esta a lei santa é, que em nós impressa

Ninguém ofende que mereça escusa,

Onde no que faltaste a Deus confessa,

Que tanto deve quem pecando abusa.

Quer se a satisfação com a promessa

De melhor vida, no que a lei te acusa;

Pois quem quer que pecou, que assim não faça,

Recebe o sacramento, mas não graça."

LVI

"Eu, disse o americano, antes de tudo,

Amei do coração quem ser me dera:

Seu nome ignoro, mas honrá-lo estudo,

E com fé o adorei sempre sincera;

Em certos dias, recolhido e mudo,

Cuidava em venerar quem tudo impera;

Matar não quis, nem morto algum comia,

Pois que a mim mo fizessem não queria.

LVII

Mulher tive, mas uma, persuadido

Que com uma se pode; ação impura

Meteu-me sempre horror, tendo entendido

Que só no matrimônio era segura;

Qualquer outro prazer fora proibido,

Porque, se entanto abuso se conjura,

Quem, seguindo esse instinto do demônio,

Se pudera lembrar do matrimônio?

LVIII

Nunca roubei, temendo ser roubado;

Por conservar a fama, honrei a alheia;

Não me lembra de ter caluniado,

Nem de outrem disse mal, que é coisa feia:

E quem houvesse de outro murmurado

Que outro tanto lhe façam certo creia;

Não tive inveja do que alguém consiga,

Por ver que quem a tem seu mal castiga.

LIX

Enfim, corri meus anos desde a infância

Sem ofender (que eu saiba) esta lei justa,

Sem ter à coisa boa repugnância,

Tudo mercê da mão de Deus augusta.

Nos meus males somente a tolerância

Mos fazia passar a menor custa:

Esta a minha ânsia foi, este o meu zelo,

Saber quem era Deus, tratá-lo e vê-lo."

LX

Dizendo o velho assim, tanto se acende,

Como se n'alma se lhe ateara um fogo.

Reclina a humilde fronte e a voz suspende,

E, caindo em delíquio neste afogo,

Corre o ministro, que ao sucesso atende,

E buscando água que o batize logo;

Apenas "Félix, diz, eu te batizo,"

Partiu feliz dum vôo ao paraíso.

LXI

Cuidava em sepultá-lo Auréo saudoso;

Porém de espessa névoa, que o ar condensa,

Ouve um coro entoando harmonioso

Louvor eterno majestade imensa;

E na atmosfera ali do ar nebuloso

Luz arraiando, que a alumia intensa

Viu Félix, que na glória que o vestia

A graça batismal lhe agradecia.

LXII

"Que te conceda Deus, ministro justo,

(Diz-lhe a alma venturosa) o prêmio eterno;

Pois vens do antigo mundo a tanto custo

A libertar-me do poder do inferno.

Dos céus entanto o Dominante augusto

Que tornes manda ao ninho teu paterno,

E sobre a névoa em nuvem levantada

Vás navegando pela aérea estrada.

LXIII

E quer na nuvem própria, que te indico

Que esse cadáver meu vá transportado,

E na ilha do Corvo, de alto pico

O vejam numa ponta colocado.

Onde acene ao país do metal rico,

Que o ambicioso europeu vendo indicado

Dará lugar que ouvida nele seja

A doutrina do céu e a voz da igreja."

LXIV

Disse, e, cessando a voz e a visão bela,

Viu da nuvem Auréo, que o rodeava,

Transformar-se a bela alma em clara estrela,

E viu, que a nuvem sobre o mar voava;

O cadáver também sublime nela

Ao cume do grão-pico já chegava,

Onde a névoa, que no alto se sublima,

Depõe como uma estátua o corpo em cima.

LXV

Ali batido do nevado vento,

De sol, de gelo e chuva penetrado,

Efeito natural, e não portento,

É vê-lo, qual se vê, petrificado.

Um arco tem por bélico instrumento, (15)

De pluma um cinto sobre a frente ornado,

Outro onde era decente, em cor vermelho,

Sem pêlo a barba tem, no aspecto é velho.

LXVI

Voltado estava às partes do ocidente,

Donde o áureo Brasil mostrava a dedo,

Como ensinando à lusitana gente

Que ali devia navegar bem cedo.

Destino foi do Céu onipotente,

A fim que sem receio, ou torpe medo,

A piedosa empresa o povo corra,

E que quem morrer nela alegre morra."

LXVII

Calou então Fernando, mas não cala

Na cítara dourada outra harmonia,

Onde parece a mão que também fala,

E que quanto a voz disse repetia.

Saíra entanto um bárbaro a escutá-la,

Que, encantado da doce melodia,

Toma nas mãos o músico instrumento,

Toca-o sem arte e salta de contento.

LXVIII

Não pode ver dos nossos o congresso

Tanta rudeza sem tentar-se a riso,

Que, por mais que um pesar se tenha impresso,

Não da lugar a prevenção ao siso;

E, sendo inopinado algum sucesso,

Onde é nos homens quase o rir preciso,

Tal pessoa há que chora apaixonada

E passa do gemido a uma risada.

LXIX

Diogo então, que dentro em si media

Da cruel gente a condição danosa,

Não sossega de noite nem de dia,

Antevendo a desgraça lastimosa;

E, vendo rir os mais com alegria,

Pela ação do selvagem graciosa,

Estranhou-lhe o prazer mal concebido,

Arrancando do peito este gemido:

LXX

"Oh triste condição da humana vida,

Que tanto em breve do seu mal se esquece!

Pois vendo a liberdade enfim perdida,

Sentimos menos quando a dor mais cresce!

Vemos desde a água às praias despedida

A Infeliz gente que no mar perece,

E que o brutal gentio na mesm’hora,

Ainda bem os não vê, logo os devora.

LXXI

Quem sabe se o cuidado que destina

Pôr-nos assim mimosos de sustento

Não é por ter de nós grata chacina

Nesse horrível, barbárico alimento?

Tanta atenção que têm mal se combina,

Sem mostrar-se o maligno pensamento;

Que quem os próprios mortos brutal come

Como é crível que aos vivos mate à fome?

LXXII

Tempo fora, afligidos companheiros,

De levantar dos céus ao Rei supremo

Humildes vozes, votos verdadeiros,

Como quem luta no perigo extremo.

Mas vós que agora rides prazenteiros,

Oh quanto, amigos meus, oh quanto temo

Que essa gente cruel só nos namore,

Por cevar mais a presa que devore!

LXXIII

Voltemos antes com fervor piedoso

Os tristes olhos ao etéreo espaço,

Esperando de Deus um fim ditoso,

Onde a morte se avista a cada passo.

Contrito o peito, o coração choroso,

Implore a proteção do excelso braço;

Que o coração me diz que, por desdita,

O cruel sacrifício se medita."

LXXIV

Enquanto assim dizia, o herói prudente,

Comovido qualquer do temor justo,

Levanta humilde as mãos ao céu clemente,

Vendo o futuro com pressago susto:

Já cuida a cruel morte ver presente;

Já vê sobre a cabeça o golpe injusto;

Batem no peito e, levantando as palmas,

Fazem vítima a Deus das próprias almas.

LXXV

Já numerosa turba às praias vinha

E os seis levam ao corro miserando,

Onde a plebe cruel formada tinha

A pompa do espetáculo execrando;

E mal a gente bruta se continha,

Que, enquanto as tristes mãos lhe vão ligando,

No humano corpo pelo susto exangue,

Não vão vivo sorvendo o infeliz sangue.

LXXVI

Qual se da Líbia pelo campo estende

O mouro caçador um leão vasto,

Em longa nuvem devorá-lo emprende

O sagaz corvo, sempre atento ao pasto;

Negro parece o chão, negro, onde pende

A planta, em que do sangue explora o rasto;

Até que avista a presa e em chusma voa,

Nem deixa parte que voraz não roa:

LXXVII

Tal do caboclo foi a fúria infanda;

E o fanatismo, que na mente o cega,

Faz que, tendo esta ação por veneranda,

Invoque o grão-Tupá que o raio emprega.

No meio vê-se que em mil voltas anda

O eleito matador, como quem prega

A brados, exortando o povo insano

A ensopar toda a mão no sangue humano.

LXXVIII

A roda, à roda! a multidão fremente

Com gritos corresponde à infame idéia;

Enquanto o fero em gesto de valente

Bate o pé, fere o ar e um pau maneia,

Ergue-se um e outro lenho, onde o paciente

Entre prisões de embira se encadeia;

Fogo se acende nos profundos fossos,

Em que se torrem com a carne os ossos.

LXXIX

Dentro de uma estacada extensa e vasta,

Que a numerosa plebe em torno borda,

Entram os principais de cada casta

Com belas plumas, onde a cor discorda;

Outros, que a grenha têm com feral pasta

Do sangue humano, que ao matar transborda.

Os nigromantes são, que em. vão conjuro,

Chamam as sombras desde o Averno escuro.

LXXX

Companheiras de ofício tão nefando,

Seguem de um cabo a turma e de outro cabo,

Seis torpíssimas velhas, aparando

O sangue sem um leve menoscabo.

Tão feias são, que a face está pintando

A imagem propriíssima do diabo;

Tinto o corpo em verniz todo amarelo,

Rosto tal, que a Medusa o faz ter belo.

LXXXI

Têm no colo as cruéis sacerdotisas,

Por conta dos funestos sacrifícios,

Fios de dentes, que lhes são divisas

De mais ou menos tempo em tais ofícios.

Gratas ao céu se crêem de que indivisas

Se inculcam por tartáreos malefícios

E um testemunho do mister nefando,

Nos seus cocos com facas vêm tocando.

LXXXII

Quem pode reputar que dor trespassa

A miseranda infausta companhia,

Vendo tais feras rodear a praça,

Que o sangue com os olhos lhe bebia?

Ver que os dentes lhe range por negaça,

Senão é que os agita a fome ímpia,

E dizer la consigo. "Em poucas horas

Sou pasto destas feras tragadoras".

LXXXIII

Mas põe-lhe a vista o Padre Onipotente,

Da desgraça cruel compadecido,

E envia um anjo desde o Céu clemente,

Que deixe tanto horror desvanecido

E faça que o espetáculo presente

Venha por fim a ser sonho fingido;

Que quem recorre ao céu no mal que geme,

Logo que teme a Deus, nada mais teme.

LXXXIV

Seis então dos infames Nigromantes

Lançaram mão das vítimas pacientes,

E a seis lenhos fatais, que ergueram d’antes,

Atam cruéis as mãos dos inocentes:

Postos no céu os olhos lacrimantes,

Com lembrar-se das penas veementes

Que sofreu Deus na cruz, nele fiados

Pediam-lhe o perdão dos seus pecados.

LXXXV

Fernando ali, que em discrição precede,

Com voz sonora a companhia anima,

Cheio de viva fé, socorro pede;

E, quando a dor permite que se exprima:

"Grão-Senhor (diz) de quem tudo procede,

A glória, a pena, a confusão e a estima,

Que justo dás as graças e os castigos,

Na dor alívio, amparo nos perigos;

LXXXVI

Vida não peço aqui, morte não temo,

Nem menos choro o caso desgraçado.

O que me dói, que sinto, o que só gemo

É, piedoso Deus, o meu pecado!

Feliz serei, Grão-Padre, se no extremo

For da tua bondade perdoado,

Pelo cálix amargo que aqui bebo,

Pela morte cruel que hoje recebo.

LXXXVII

Mas, grande Deus, que vês nossa fraqueza

No duro transe desta cruel hora,

Não sofras que essas feras com crueza

Hajam de devorar a quem te adora;

Porque estremece a frágil natureza

Vendo a gula brutal, que emprende agora

Sacrifício fazer ao torpe abismo

Destas carnes tingidas no batismo!"

LXXXVIII

Ouviu o céu piedoso a infeliz gente;

E, quando o fero a maça já levanta,

Que esmaga a fronte ao mísero paciente,

Trovão se ouve fatal, que tudo espanta.

Treme a montanha e cai a roca ingente

E na ruína as árvores quebranta;

Mas o que mais os brutos confundia,

Era o rumor marcial que se então ouvia.

LXXXIX

Pedras, frechas e dardos de arremesso

Cobriam tudo o ar; porque o inimigo,

Que atrás se pôs de am próximo cabeço,

Aguarda expressamente aquele artigo.

De um lado e outro deste um mato espesso

Ameaça o furor, cerca o perigo;

E a gente crua, transformada a sorte,

Quanto cuidou matar, padece a morte.

XC

Era Sergipe, o príncipe valente,

Na esquadra valorosa, que atacava;

Verão entre os seus bom, manso e prudente,

Que com justiça os povos comandava.

Armava o forte chefe de presente

Contra Gupeva, que cruel reinava

Sobre as aldeias, que em tal tempo havia

No recôncavo ameno, da Bahia.

XCI

Por toda a parte o baiense é preso;

É trucidado o bruto nigromante;

Muitos lançados são no fogo aceso,

Rendem-se os mais ao vencedor possante.

Ficara em vida, todavia ileso

O mísero europeu, que ali em flagrante

Fez desatar o bom Sergipe e manda

À escravidão no seu país mais branda.

XCII

Mas a gente infeliz, no sertão vasto,

Por matos e montanhas dividida,

É fama que uns de tigres foram pasto,

Outra parte dos bárbaros comida.

Nem mais houve notícia ou leve rasto

Como houvessem perdido a amada vida;

Mas há boa suspeita e firme indício

Que evadiram o infame sacrifício.

(1) Povo convulso. — Epíteto que dá Isaías aos Americanos, como conjeturam os melhores intérpretes.

(2) Serra dos órgãos. — Ramo da célebre cordilheira que discorre pelo Brasil, saindo das suas cavernas névoas tempestuosas.

(3) Jacaré. — Uma espécie de crocodilo brasílico.

(4) Saturno. — Os antigos italianos foram, como se colige de Homero, antropófagos; tais eram os Lestrigões e os Liparitanos. Os Fenícios e os Cartagineses usaram de vítimas humanas, e Roma própria nos seus maiores apertos. São espécies vulgares na história.

(5) Embiras. — Espécie de cordão feito da casca interior de algumas árvores.

(6) Tatu. — Espécie de animal coberto de uma concha duríssima e impenetrável. Os selvagens tingem-se com várias resinas, senão com o fim, ao menos com o efeito de os livrar das mordeduras dos insetos, ainda que alguns se tinjam com ervas inúteis para esse uso.

(7) Batata, Coco, Inhame. — Frutos bem conhecidos ainda na nossa Europa.

(8) Sacrifício. — é certo que os brasilienses não tinham forma alguma expressa de sacrifício; mas a solene função e ritos com que matavam os seus prisioneiros, parece com razão ao padre Simão de Vasconcelos na sua História do Brasil que eram um vestígio dos antigos sacrifícios usados dos Fenícios de que acima falamos em outra nota.

(9) Vinho. — Vêm da América debaixo deste nome vários extratos de caju, coco, e de outros frutos conhecidos, que podem competir com os nossos vinhos.

(10) Catimpoeira. — Imunda bebida dos selvagens, que, mastigando o milho, fazem da saliva e do suco mesmo do grão uma potagem abominável.

(11) Estátua. — É estimada por prodigiosa a estátua que se vê ainda na ilha do Corvo, uma dos Açores, achada no descobrimento daquela ilha sobre um pico, apontando para a América. Foi achada sem vestígio de que jamais ali habitasse pessoa humana. Devo a um grande do nosso reino, fidalgo eruditíssimo, a espécie de que se conserva uma história desta estátua manuscrita, obra do nosso imortal João de Barros.

(12) Selvagem. — Não supomos único o selvagem, que o padre Anchieta achou em o estado que aqui se descreve. Muitos teólogos se persuadem que Deus por meios extraordinários instruíra a quem vivesse na observância da lei natural.

(13) Tupá. — Os selvagens do Brasil têm expressa noção de Deus na palavra Tupá, que vale entre eles excelência superior, coisa grande que nos domina.

(14) Suspendo. — Até aqui são os limites do lume natural, e como ele somente o alcança a filosofia; porém o remédio de natureza humana, ferida pela culpa, não pode constar-nos senão pela revelação.

(15) Um arco. — As memórias desta estátua concordam em ser o seu trajo desconhecido; toma daqui ocasião o poeta para o representar arbitrariamente.

 

CANTO II

I

Era a hora em que o sol na grã-carreira

De tórrido zênite vibra igualmente,

E que a sombra dos corpos companheira

Na terra extingue com o raio ardente,

Quando, ao partir a turba carniceira,

Se viu Diogo só na praia ingente,

Entre mil pensamentos, mil terrores,

Que a dor fez grandes e o temor maiores.

II

Parecia-lhe ver de gente insana

O bárbaro furor, a fome crua,

A agonia dos seus na ação tirana,

E, temendo a dos mais, presume a sua.

Quisera opor-se à empresa desumana,

Pensa em arbítrios mil com que o conclua.

Se fugirá? mas donde? se os invada?

Porém, enfermo e só, não vale a nada.

III

"Oh! mil vezes (dizia) afortunados

Os que entregues à fúria do elemento

Acabaram seus dias sossegados,

Nem viram tanta dor, como experimento!

Que estavam finalmente a mim guardados

Este espanto, este horror, este tormento!

Que escapei (Santos Céus!) desse mar vasto

Para a feras servir de horrível pasto!

IV

E hei de agora (infeliz!) ver fraco e inerme

Que dos meus vá fazer um pasto horrendo

Essa patrulha vil, que agora enferme!

Que me veja sem força em febre ardendo!

Ah! Se pudera em meu vigor já ver-me!

Que ardor sinto em meu peito de ir rompendo

E turba vil fazendo em mil pedaços,

Truncar pescoços, mãos, cabeças, braços!

V

Não pode (é certo) a débil natureza;

Porém que esperas mais, mísero Diogo?

Que pode resultar da forte empresa?

Será mal morrer já, se há de ser logo?

Faltam-me as forças; sim, sinto a fraqueza;

Mas o espírito o supre e neste afogo

Tira forças ocultas da nossa alma,

Que ela não mostra ter, vivendo em calma.

VI

E como quer enfim que o mande a sorte,

Morra-se, que talvez se não desuna

O sucesso feliz uma ação forte,

Que acaso um temerário achou fortuna;

E quando irado o céu me envie a morte,

E que a mão do Senhor meus erros puna,

Recebo o golpe, que me for mandado,

Morrerei, assim é, porém vingado.

VII

Nem deixo de esperar que a gente bruta,

Vendo o estrago da espada e do mosquete,

Não se encha de pavor na estranha luta

E força maior creia que a acomete:

Se tomo as armas, que salvei na gruta,

Escudo, cota, malha e capacete,

Posso esperar que um só me não resista,

E, antes que o ferro, mos someta a vista."

VIII

Disse; e, entrando na sólita caverna,

Cobre de ferro a valorosa fronte;

Um peito de aço de firmeza eterna

E o escudo, onde a frecha se desponte,

Dispõe de modo em forma tal governa,

Que nada teme já que em campo o afronte

Nas mãos de ferro tinha uma alabarda,

A espada à cinta, aos ombros a espingarda;

IX

Saía assim da gruta, quando o monte

Coberto vê da bárbara caterva;

E no que infere da turbada fronte,

Sinais de fuga de derrota observa.

A algum obriga o medo a que transmonte,

Outros se escondem pelo mato ou erva,

Muitos fugindo vêem com medo à morte,

Crendo achar na caverna um lugar forte.

X

Mas o prudente Diogo, que entendia

Não pouca parte do idioma escuro,

Por alguns meses em que atento o ouvia,

Elege um posto a combater seguro.

Atento a toda voz que ouvir podia,

Por escutar dos seus o caso duro,

Entre esperanças e receio intenso,

Sem susto estava, sim, porém suspenso.

XI

Gupeva então, que os mais se adiantava,

Vendo das armas o medonho vulto,

Incerto do que vê, suspenso estava,

Nem mais se lembra do inimigo insulto

Alguns dos anhangás imaginava (1)

Que dentro o grão-fantasma vinha oculto,

E à vista do espetáculo estupendo,

Caiu por terra o mísero tremendo.

XII

Caiu com ele junta a brutal gente;

Nem sabe o que imagine da figura,

Vendo-a brandir com a alabarda ingente

E olhando ao morrião, que o transfigura.

Ouve-se um rouco tom de voz fremente,

Com que espantá-los mais o herói procura;

E porque temem da maior ruína,

Faz-lhe a voz mais horrenda uma buzina.

XIII

Entanto a gente bárbara, prostrada,

Tão fora de si está por cobardia,

Que sem sentido, estúpida, assombrada,

Só mostra viva estar porque tremia.

Quais verdes varas de árvore copada,

Se assopra a viração do meio-dia,

De uma parte à outra parte se meneiam,

Assim de medo os vis no chão perneiam.

XIV

Mas Diogo naqueles intervalos,

Suspendendo o furor do duro Marte,

Esperança concebe de amansá-los

Uma vez com terror, outra com arte.

A viseira levanta e vai buscá-los,

Mostrando-se risonho em toda a parte:

"Levantai-vos" (lhes diz), e, assim dizendo,

Ia-os co’a própria mão na terra erguendo.

XV

Gupeva, que no trajo mais distinto

Parecia na turba do seu povo,

O principal no mando, meio extinto

Pelo horror do espetáculo tão novo,

Tremendo em pé ficou, sem voz e instinto.

E caíra sem dúvida de novo,

Se nos braços Diogo o não tomara

E de água ali corrente o borrifara.

XVI

"Não temas (disse afável), cobra alento."

E, suprindo-lhe acenos o idioma,

Dá-lhe a entender que todo esse armamento

Protege amigos, se inimigos doma;

Que os não ofende o bélico instrumento,

Quando de humana carne algum não coma.

“— Que, se a comerdes, tudo em cinza ponho..."

E, isto dizendo, bate o pé, medonho.

XVII

"Toma nas mãos (lhe diz), verás que nada

Te hão de fazer de mal." E, assim falando,

Põe-lhe na mão a partasana e espada,

E vai-lhe à frente o morrião lançando.

Diminui-se o horror na alma assombrada

E vai-se pouco a pouco recobrando.

Até que a si tornando reconhece

Donde está, com quem fala e o que lhe of’rece.

XVIII

"Se dalém das montanhas cá te envia (2)

O grão-Tupá (lhe diz), que em nuvem negra

Escurece com sobra o claro dia,

E manda o claro sol, que o mundo alegra;

Se vens donde o sol dorme e se à Bahia

De alguma nova lei trazes a regra,

Acharás, se gostares, na cabana

Mulheres, caça, peixe e carne humana."

XIX

“— A carne humana! (replicou Diogo,

E como pode, explica em voz e aceno).

Se vir que come algum, botarei fogo,

Farei que inunde em sangue esse terreno;

“— Pois, se os bichos nos devem comer logo,

(O bárbaro lhe opõe com desempeno)

A nós faz-nos horror, se eles nos comem,

E é menos triste que nos trague um homem.

XX

"O corpo humano (disse o herói prudente) (3)

Como o brutal não é: desde que nasce,

É morada do espírito eminente,

Em quem do grão-Tupá se imita a face.

Sepulta-se na terra, qual semente

Que, se não apodrece, não renasce.

Tempo virá, que aos corpos reunida,

Torne a noss'alma a respirar com vida.

XXI

O lume da razão condena a empresa;

Pois, se o infando apetite o gosto adula,

Para extinguir a humana natureza,

Sem mais contrários, bastaria a gula.

Que se a malícia em vós ou se a rudeza

O instinto universal de todo anula,

É contudo entre os mais coisa temida

Que outrem, por vos conter, vos tire a vida."

XXII

Disse Diogo, e conduzia à gruta

O principal da bárbara caterva,

Que ali seguido pela gente bruta,

O lugar conhecido atento observa.

Gupeva a tudo atende e tudo escuta,

Mas sempre o horror, que concebeu, conserva;

E, olhando às armas, sem que a mais se arroje,

Chega com mão furtiva, apalpa e foge.

XXIII

Vinha a noite já então seu negro manto

Despregando na lúcida atmosfera,

Quando buscam sossego ao seu quebranto

No ninho as aves e na toca a fera,

E quando o sono com suave encanto,

Aos míseros mortais a dor modera;

Mas não modere em Diogo a mordaz cura

De amansar o furor da gente dura.

XXIV

Por dissipar na gruta a sombra fria,

Toma o férreo fuzil que, o fogo ateia,

E, vendo a rude gente que o acendia

E brilhar de improviso uma candeia,

Notando a pronta luz, que no óleo ardia,

Não acaba de o crer de assombro cheia.

Crêem, portanto, que o fogo do céu nasça

Ou que Diogo nas mãos nascê-lo faça.

XXV

Era o costume do selvagem rude,

Roçar um lenho noutro com tal jeito,

Que vinha por elétrica virtude,

A acender lume, mas com tardo efeito.

Mas, observando, sem que o lenho o ajude,

Em menos de um momento o fogo feito,

O menino imaginou que a Grécia creu,

Quando viu ferir fogo a Prometeu.

XXVI

Acesa a luz na lôbrega caverna,

Vê-se o que Diogo ali da nau levara:

Roupas, armas, e em parte mais interna,

A pólvora em barris, que transportara.

Tudo vão vendo à luz de uma lanterna,

Sem que o apeteça a gente nada avara,

Ouro e prata, que a inveja não lhe atiça,

Nação feliz, que ignora o que é cobiça!

XXVII

Mas entre objetos vários a que atende

Nota Gupeva extático a pintura

Que num precioso quadro, que ali pende,

Representava a Mãe da formosura:

Se seja coisa viva não entende,

Mas suspeitava bem pela figura

Digna a pessoa, de que a imagem era,

De ser mãe de Tupá, se ele a tivera.

XXVIII

“— Esta (pergunta o bárbaro) tão bela,

Tão linda face, acaso representa

Alguma formosíssima donzela,

Que esposa o grão-Tupá fazer intenta?

Ou porventura que nascesse dela

Esse que sobre os céus no sol se assenta?

Quem pode geração saber tão alta?

Mas se há mãe, que o gerasse, esta é sem falta."

XXIX

Encantado está o pio lusitano

De ouvir em rude boca tal verdade;

E adorando o mistério soberano,

“Mãe ter não pode (disse) a divindade,

Mas, sendo Deus eterno, fez-se humano;

E sem lesão da própria virgindade

A donzela o gerou, que pisa a lua,

Digna mãe de Tupá, mãe minha e tua.

XXX

Peçamos, pois que é mãe, que nos defenda,

Que te dê para ouvir dócil orelha

E contigo o teu povo recomenda."

Dizendo o herói assim, devoto ajoelha.

Gupeva o mesmo faz com fé estupenda

E pendente de Diogo, que o aconselha,

Levanta as mãos, como ele levantava,

E, vendo-o lacrimar, também chorava.

XXXI

Mas crendo rude, como então vivia,

Que fosse coisa vive a imagem santa,

Que por mãe de Tupá tudo saía,

Tendo poder conforme a glória tanta,

Repete o que ouve a Diogo com voz pia

E à mãe de Deus o coração levanta.

E encostando entre os rogos a cabeça,

Faz a noite e o desvelo que adormeça.

XXXII

Já o purpúreo, trêmulo horizonte,

Rosas parece que espalhava a aurora;

E o sol que nasce sobre o oposto monte,

A bela luz derrama criadora.

Ouvem-se as avezinhas junto à fonte,

Saudando a manhã com voz sonora;

E os mortais, já o sono desatados,

Tornavam novamente aos seus cuidados.

XXXIII

Quando Gupeva, manso e diferente

Do que antes fora na fereza bruta,

Convoca a ouvi-lo a multidão fremente,

Que à roda estava da profunda gruta.

Pasto no meio da confusa gente,

Que toda dele pende e atenta escuta:

"Valentes paiaiás (diz desta sorte) (4)

Que herdais o brio da prosápia forte:

XXXIV

Se ontem, do vil Sergipe surprendidos,

Vimos o grão-terreiro posto a saco,

Fomos cercados sim, mas não vencidos;

Não foi vitória, foi traição de um fraco;

Sabia bem por golpes repetidos,

Com quanto esforço na peleja ataco

E como sem traição faria nada,

Não tendo eu armas, vêm com mão armada.

XXXV

Sombra do grão-Tatu, de quem me ferve

Nestas veias o sangue, de quem trago

A invicta geração, que em guerra serve

De espanto a todos, de terror, de estrago;

Por que a glória a teu nome se conserve

E por que a cante da Bahia o lago,

Mandas de lá de donde o mundo acaba

Para o nosso socorro este Imboaba. (5)

XXXVI

Tu lhe mudaste em ferro a carne branda,

Tu fazes que na mão se acenda e lhe arda

A viva chama que Tupá nos manda,

Tupá, que rege o céu, que o mundo guarda.

Com ele hei de vencer por qualquer banda,

Com ele em campo armado, já me tarda

O cobarde inimigo, que a encontrá-lo

Vivo, vivo me animo a devorá-lo.

XXXVII

Sabeis, tapuias meus, como morrendo

Nossos irmãos e pais, que eles matavam,

Postos debaixo já o golpe horrendo,

Vosso nome a os vingar tristes chamavam;

Também vistes na guerra combatendo

Que estrago neles estas mãos causavam;

E as vezes que vos dei no campo vasto

Mil e mil deles por sab'roso pasto.

XXXVIII

Mas não come o estrangeiro, nem consente

Comer-se carne humana; e só teria

Outra carne qualquer por inocente,

Aves, feras, tatus, paca ou cotia.

Receba, pois, de nós grato presente

De quanto houver nos matos da Bahia:

Saia-se à caça; e, como lhe compete,

Prepare-se a hospedagem de um banquete."

XXXIX

Separa-se o congresso em breve espaço,

Dispõe-se em alas numerosa tropa:

Quem com taquaras donde pende o laço

Onde a avezinha cai, se incauta o topa;

Quem dos ombros suspende e quem do braço

Armadilhas diferentes; outro ensopa

Em visgo as longes ramas do palmito,

Onde impróvido caia o periquito.

XL

Os mais com frechas vão, que a um tempo seja

Tiro, que ofenda a fugitiva caça,

Ou armas (se ocorresse) na peleja,

Quando o inimigo de emboscada a faça.

E porque aos mais presida e tudo veja,

À frente do esquadrão Gupeva passa;

Nem fica Diogo só, que tudo via,

Mas segue armado a forte companhia.

XLI

Mais arma não levou que uma espingarda;

E, posto ao lado de Gupeva amigo,

Pronto a todo o acidente e posto em guarda,

Traz na cautela o escudo ao seu perigo.

Entanto a destra gente a caça aguarda,

E algum se afoita a penetrar no abrigo

Onde esconde a pantera os seus cachorros,

Outro a segue por brenhas e por morros;

XLII

Até que de Gupeva comandada,

Em círculo se forma a linha unido,

Onde quanto há de caça já espantada

Fique no meio de um cordão cingido.

A rês ali, do estrondo amedrontada,

Num centro está de espaço reduzido;

À mão mesmo se colhe: coisa bela!

Que dá mais gosto ver, do que comê-la.

XLIII

Não era assim nas aves fugitivas,

Que umas frechava no ar, e outras em laços

Com arte o caçador tomava vivas;

Uma, porém, nos líquidos espaços

Faz com a pluma as setas pouco ativas,

Deixando a lisa pena os golpes laços,

Toma-a de mira Diogo e o ponto aguarda:

Dá-lhe um tiro e derriba-a coa espingarda.

XLIV

Estando a turba longe de cuidá-lo,

Fica o bárbaro ao golpe estremecido,

E cai por terra no tremendo abalo

Da chama do fracasso e do estampido;

Qual do hórrido trovão com raio e estalo

Algum junto aquém cai, fica aturdido,

Tal Gupeva ficou, crendo formada

Nu arcabuz de Diogo uma trovoada.

XLV

Toda em terra prostrada, exclama a grita

A turba rude em mísero desmaio,

E faz o horror que estúpida repita

Tupá Caramuru! temendo um raio.

Pretendem ter por Deus, quando o permita

O que estão vendo em pavoroso ensaio,

Entre horríveis trovões do márcio jogo,

Vomitar chamas a abrasar com fogo.

XLVI

Desde esse dia, é fama que por nome

Do grão Caramuru foi celebrado

O forte Diogo; e que escutado dome

Este apelido o bárbaro espantado.

Indicava o Brasil no sobrenome,

Que era um dragão dos mares vomitado:

Nem doutra arte entre nós a antiga idade

Tem Jove, Apolo e Marte por deidade.

XLVII

Foram qual hoje o rude Americano,

O valente romano, o sábio argivo;

Nem foi de Salmoneu mais torpe o engano, (6)

Do que outro rei fizera em Creta altivo.

Nós que zombamos deste povo insano,

Se bem cavarmos no solar nativo,

Dos antigos heróis dentro às imagens

Não acharemos mais que outros selvagens.

XLVIII

E fácil propensão na brutal gente,

Quando em vida ferina admira uma arte,

Chamar um fabro a Deus da forja ingente,

Dar ao guerreiro a fama de um deus Marte.

Ou talvez por sulfúreo fogo ardente,

Tanto Jove se ouviu por toda a parte,

Hércules e Teseus, Jasões no Ponto (7)

Seriam coisas tais, como as que eu conto.

XLIX

Quanto merece mais que em douta lira

Se canto por herói quem, pio e justo,

Onde a cega nação tanto delira,

Reduz à humanidade uni povo injusto?

Se por herói no mundo só se admira

Quem tirano ganhava um nome Augusto,

Quando o será maior que o vil tirano,

Quem nas feras infunde um peito humano?

L

Tal pensamento então n'alma volvia

O grão Caramuru, vendo prostrada

A rude multidão, que Deus o cria

E que espera desta arte achar domada.

Política infeliz da idolatria,

Donde a antiga cegueira foi causada; (8)

Mas Diogo, que abomina o feio insulto,

Quando aumenta o terror, recusa o culto.

LI

"De Tupá sou (lhe disse) onipotente

Humilde escravo e como vós me humilho;

Mas do horrendo trovão, que arrojo ardente,

Este raio vos mostra que eu sou filho.

(Disse e outra vez dispara incontinente)

“— Do meio do relâmpago, em que brilho,

Abrasarei qualquer que ainda se atreva

A negar a obediência ao grão Gupeva."

LII

Deu logo a amiga mão com grato aspecto

Ao mísero Gupeva, que, convulso

No horror daquele ignívomo prospeto,

Jazia sem sentido e já sem pulso.

“Não temas (diz-lhe), amigo, que eu prometo

Que do meu braço se não mova impulso

Senão contra quem for tão temerário

Que sendo-te eu amigo, é teu contrário."

LIII

Recebera o bom Gupeva um novo alento,

Sentindo a grata mão que à vida o chama;

Nem pode duvidar pelo exprimento

De quando Diogo com fineza o ama.

Mas, sempre com receio do instrumento,

Teme que outra vez lance, a horrível chama;

E deixa-o no erro Diogo, a fim que incerto,

Nenhum pelo pavor se chegue ao perto.

LIV

Mas, por deixar incerta a gente infida,

Dá-lhe astuto o arcabuz que não tem carga:

“E quem (diz) é fiel pode com vida

Tê-lo na mão sem hórrida descarga;

Porém, se algum faltasse à fé devida,

Sentirá da traição por pena amarga,

Com próprio dano seu, cola mortal risco,

Relâmpago e trovão, fogo e corisco.

LV

Que eu, acordado esteja ou que adormeça,

Vigia em guarda minha o fogo oculto,

E a traição pagará com a cabeça

Quem tentasse fazer-me um leve insulto;

Porém, se eu mal não quero que aconteça,

Pode um menino, como pode o adulto,

E o mais fraco que houver na vossa gente,

Ter o trovão nas mãos sem que arrebente.

LVI

Porém guardai-vos, vós, que só no peito,

Só n'alma que tenhais tenção malina,

Vereis que trovão faz por meu respeito

E que vem no estampido a vossa ruína."

Treme Gupeva, ouvindo este conceito,

E humilde a fronte ao grão Diogo inclina,

Certo de não faltar na fé que rende,

Donde o raio e trovão crê que depende.

LVII

Convoca entanto o principal temido

As esquadras da turba, então dispersa,

E ao grão Caramuru pede rendido

Que eleja casa no país diversa,

E que a gruta deixando, suba unido

Onde em vasta cabana o povo versa;

Nem duvide que a gente fera e brava

O sirva humilde e se sujeite escrava.

LVIII

Do recôncavo ameno um posto havia,

De troncos imortais cercado à roda,

Trincheira natural, com que impedia

A quem quer penetrá-lo a entrada toda;

Um plano vasto no seu centro abria (9)

Aonde, edificando à pátria moda,

De troncos, varas, ramos, vimes, canas

Formaram, como em quadro, oito cabanas.

LIX

Qualquer delas com mole volumosa

Corre direita em linhas paralelas;

E mais comprida aos lados que espaçosa,

Não tem paredes ou colunas belas.

Um ângulo no cume a faz vistosa,

E coberta de palmas amarelas,

Sobre árvores se estriba, altas e boas,

De seiscentas capaz ou mil pessoas.

LX

Qual o velho Noé na imensa barca,

Que a bárbara cabana em tudo imita,

Ferozes animais próvido embarca,

Onde a turba brutal tranqüila habita,

Tal o rude tapuia na grande arca;

Ali dorme, ali come, ali medita,

Ali se faz humano e, de amor mole,

Alimenta a mulher e afaga a prole.

LXI

Dentro da grã-choupana a cada passo (10)

Pende de lenho a lenho a rede extensa;

Ali descanso toma o corpo lasso,

Ali se esconde a marital licença.

Repousa a filha no materno abraço

Em rede especial que tem suspensa,

Nenhum se vê (que é raro) em tal vivenda

Que a mulher de outrem nem que a filha ofenda.

LXII

Ali chegando a esposa fecundada

A termo já feliz, nunca se omite

De pôr na rede o pai a prole amada,

Onde o amigo e parente o felicite;

E, como se a mulher sofrera nada,

Tudo ao pai reclinado então se admite,

Qual fora tendo sido em modo sério

Seu próprio, e não das mães, o puerpério.

LXII

Quando na rede encosta o tenro infante,

Pinta-o de negro todo e de vermelho;

Um pequeno arco põe, frecha volante,

E um bom cutelo ao lado; e em tom de velho,

Com discurso patético e zelante,

Vai-lhe inspirando o paternal conselho:

Que seja forte, diz, (como se o ouvisse)

Que se saiba vingar, que não fugisse.

LXIV

Dá-lhe depois o nome, que apropria,

Por semelhança que ao infante iguala,

Ou com que o espera célebre algum dia,

Senão é por defeito que o assinala.

A algum na fronte o nome se imprimia,

Ou pintam no verniz, que tem por gala;

E, segundo a figura se lhe observa,

Dão-lhe o nome de fera, fruto ou erva.

LXV

Trabalho entanto a mãe sem nova cura,

Quando o parto conclui e em tempo breve,

Sem mais arte que a próvida natura,

Sente-se lesta e sã, robusta e leve:

Feliz gente, se unisse com fé pura

A sóbria educação que simples teve!

Que o que a nós nos faz fracos sempre estimo,

Que é mais que pena ou dor, melindre e mimo.

LXVI

Vai com o adulto filho a caça ou pesca

O solícito pai pelo alimento;

O peixe à mulher traz e a carne fresca

E à tenra prole a fruta por sustento.

A nova provisão sempre refresca

E dá nesta fadiga um documento,

Que quem nega o sustento a quem deu vida,

Quis ser pai, por fazer-se um parricida.

LXVII

Que se acontece que a enfermar se venha,

Concorre com piedade a turba amiga,

E por dar-lhe um remédio que convenha,

Consultam-no entre si com gente antiga;

Buscam quem de erva saiba ou cura tenha,

Que possa dar alívio ao que periga

Ou talvez sangram numa febre ardente,

Servindo de lanceta um fino dente.

LXVIII

Mas, vendo-se o mortal já na agonia,

Sem ter para o remédio outra esperança,

Estima a bruta gente ação mui pia,

Tirar-lhe a vida com a maça ou lança.

Se morre o tenro filho, a mãe seria

Estimada cruel quando a criança,

Que pouco antes ao mundo dela veio,

Não torna ao seu lugar no próprio seio.

LXIX

Tal era o povo rude, e tal usança

Se lhe vê praticar no vício iluso:

Tudo nota Diogo, na esperança

De corrigir por fim tão cego abuso.

No lugar da cabana, em que descansa

Menos da gente e multidão confuso,

Põe-lhe a rede Gupeva que o convida

De rica e mole pluma entretecida.

LXX

Mas eis que um grande número o rodeia

De emplumados, feíssimos selvagens;

Ouve-se a casa de clamores cheia,

Costume antigo seu nas hospedagens.

Qualquer chegar-se a Diogo ainda receia,

Por ter visto as horríficas passagens;

Mas mair ma apadu de longe explicam, (11)

E Bem vindo o estrangeiro! significam.

LXXI

Por costumado obséquio os mais luzidos

Tomam Diogo nos braços, e no peito

A frente lhe apertavam comedidos,

Sinal entre eles do hospital respeito.

Tiram-lhe em pressa as roupas e vestidos,

E, pondo-o sobre a rede, como em leito,

Sem mais dizer-lhe nada e sem ouvi-lo,

Tudo se afasta e deixam-no tranqüilo.

LXXII

Com maior cerimônia outra visita

Festiva celebrava o seu cortejo;

Femínea turba, que o costume incita

A oferecer-se honesta ao seu desejo.

Senta-se sobre os pés e felicita,

Cobrindo o rosto a mão, como por pejo;

Vestidas vêm de folhas tão brilhantes,

Que o que falta ao valor têm de galantes.

LXXIII

Parece ser da mesa o despenseiro

Um selvagem, que o nome lhe pergunta:

Se tem fome, lhe diz; ou se primeiro

Quereria beber? e logo ajunta,

Sem mais resposta ouvir, sobre o terreiro

A comida que trouxe em cópia munta:

Põe-se-lhe uiçu de peixe e carne crua (12)

E o mimoso cauim, que é paixão sua.

LXXIV

Todos com gula comem furiosa,

Sem olhar, sem falar, nem distrair-se;

Tanto se observem na paixão gulosa,

Que mal pudera ao vê-los distinguir-se

Se são feras ou homens. Vergonhosa,

Triste miséria humana! confundir-se

Um peito racional c’o um bruto feio

No horrendo vício donde o mal nos veio!

LXXV

Acabada a comida, a turba bruta

O Estrangeiro bem-vindo outra vez grita;

E a tropa feminina, que isto escuta,

Cobre a face com as mãos e o pranto imita.

Gupeva, pois, que o hóspede reputa

Causa do seu prazer e autor da dita,

O sacro fogo a roda lhe ateava,

Cerimônia hospital, que o povo usava. (13)

LXXVI

Bem presumia Diogo, no que explora,

Que algum mistério se ocultava interno;

Lembra lhe a chama que o Caldeu adora,

O fogo das vestais recorda, eterno.

Nem duvidava que de origem fora

Costume da nação, rito paterno,

Trazida, se é possível que se creia,

Na dispersão das gentes, da Caldéia.

LXXVII

Perguntá-lo dos bárbaros quisera;

Mas, como o aceno e língua muito engana,

Acaso soube que a Gupeva viera

Certa dama gentil brasiliana;

Que em Taparica um dia compreendera

Boa parte da língua lusitana,

Que português escravo ali tratara, (14)

De quem a língua, pelo ouvir, tomara.

LXXVII

Paraguassu gentil (tal nome teve),

Bem diversa de gente tão nojosa,

De cor tão alva como a branca neve,

E donde não é neve, era de rosa;

O nariz natural, boca mui breve,

Olhos de bela luz, testa espaçosa;

De algodão tudo o mais, com manto espesso,

Quanto honesta encobriu, fez ver lhe o preço.

LXXIX

Um principal das terras do contorno

A bela americana tem por filha;

Nobre sem fasto, amável sem adorno,

Sem gala encanta e sem concerto brilha

Servia aos carijós, que tinha em torno,

Mais que de amor, de objetos a maravilha;

De um desdém tão gentil, que a quem olhava,

Se mirava imodesto, horror causava.

LXXX

Foi destinada de seus pais valentes

Esposa de Gupeva; mas a dama

Fugia de seus olhos impacientes,

Nem prenda lhe aceitou, porque o não ama.

Nada sabem de amor bárbaras gentes,

Nem arde em peito rude a amante chama;

(Gupeva, que não sente o seu despeito,

Tratava a sem amor, mas com respeito.

LXXXI

Deseja vê-lo o forte lusitano,

Por que interprete a língua que entendia,

E toma por mercê do céu sob'rano

Ter como enteada o idioma da Bahia.

Mas, quando esse prodígio avista humano,

Contempla no semblante a louçania,

Pára um, vendo o outro, mudo e quedo,

Qual junto de um penedo outro penedo.

LXXXII

Só tu, tutelar anjo, que o acompanhas,

Sabes quando a virtude ali se arrisca

E as fúrias da paixão, que acende estranhas,

Essa de insano amor doce faísca

Ânsias no coração sentiu tamanhas

(Ânsias que nem na morte o tempo risca),

Que houvera de perder-se naquel’hora,

Se não fora cristão, se herói não fora.

LXXXIII

Mas desde o céu a santa inteligência

Com doce inspiração mitiga a chama,

Onde a amante paixão ceda à prudência

E a razão pode mais que a ardente flama.

Em Deus, na natureza e na consciência

Conhece que quer mal quem assim ama,

E que fora sacrílego episódio

Chamar à culpa amor, não chamar-lhe ódio.

LXXXIV

No raio deste heróico pensamento,

Entanto Diogo refletiu consigo,

Ser para a língua um cômodo instrumento

Do céu mandado na donzela amigo.

E, por ser necessário ao santo intento,

Estuda no remédio do perigo:

“— Que pode ser? sou fraco; ela é formosa...

Eu livre... ela donzela... Será esposa."

LXXXV

“— Bela (lhe disse então), gentil menina,

(Tornando a si do pasmo, em que estivera)

Sorte humana não é, mas é divina,

Ver-me a mim, ver-te a ti na nova esfera.

Ela a frase, em que falo aqui te ensina;

Ela, se não me engana o que alma espera,

Um fogo em nos acende, que de resto

Eterno haja de arder, se arder honesto.

LXXXVI

Desde hoje se a meus olhos corresponde

O meigo olhar das lúcidas pupilas,

Se amor é... porque amor quem é que o esconde?

Se por ele essas lagrimas destilas,

Com que chamas meu peito te responde,

Com mão de esposa poderás senti-las."

Disse; estendendo a mão, ofereceu-lha;

Ela, que nada diz, sorriu-se e deu-lha.

LXXXVII

Põe-lhe de fuga os olhos, que abaixara;

E, ou de amante ou também de vergonhosa

Um tão belo rubor lhe tinge a cara,

Como quando entre os lírios nasce a rosa:

Três vezes quis falar, três se calara;

E ficou do sossobro tão formosa,

Quanto ele ficou cego; e em tal porfia,

Nem um, nem outro então de si sabia.

LXXXVIII

Mas, refletindo logo, o herói prudente,

Fixou no coração com fé segura,

Não cumprir as promessas de presente,

Antes que lhe entre n'alma a formosura.

Rende-lhe o seu amor, mas inocente;

E faz lhe prometer que com fé pura,

Enquanto se não lava e regenera,

Em continência viverão sincera.

LXXXIX

"E esta fé (diz-lhe), esposa em Deus querida,

Guardar-te hoje prometo em laço eterno,

Até banhar-te n'água prometida,

Por cândida afeição de amor fraterno.

Amor, que sobreviva à própria vida,

Amor, que preso em laço sempiterno,

Arda depois da morte em maior chama,

Que assim trata de amor quem por Deus ama."

XC

"Esposo (a bela diz), teu nome ignoro;

Mas não teu coração, que no meu peito,

Desde o momento em que te vi, que o adoro.

Não sei se era amor já, se era respeito,

Mas sei do que então vi, do que hoje exploro,

Que de dois corações um só foi feito.

Quero o batismo teu, quero a tua Igreja,

Meu povo seja o teu, teu Deus meu seja.

XCI

Ter-me-ás, caro, ter-me-ás sempre a teu lado;

Vigia tua, se te ocupa o sono;

Armada sairei, vendo-te armado,

Tão fiel nas prisões como num trono.

Outrem não temas que me seja amado;

Tu só serás senhor, tu só meu dono".

Tanto lhe diz Diogo, e ambos juraram,

E em fé do juramento as mãos tocaram.

(1) Anhangá. — Nome do demônio, em língua brasílica, conhecido daqueles bárbaros pelo uso da nigromancia.

(2) Montanhas. — Persuadem-se os Brasilienses que, alem das montanhas que dividem o Brasil do Peru, seja o Paraíso. Vide Martinière, Dicionário Geográfico, verb. Brasil, onde se lerá a maior parte da história dos ritos e costumes do Brasil, que aqui e na serie do Poema escrevemos.

(3) O corpo humano. — Razão suficiente, porque é ilícito comer a carne humana por princípios teológicos na presente oitava e na seguinte pelos naturais.

(4) Paiaiás. — Nome honorífico em língua brasílica, equivalente a Nobre ou Senhores . O poeta conforma-se ao costume destas gentes, entre as quais os príncipes fazem longas falas aos seus compatriotas, exortando-os pelos princípios que aqui se tocam.

(5) Imboaba. — Vos com o que os bárbaros nomeiam os Europeus.

(6) Salmoneu. — Este príncipe pretendia imitar o raio para espantar os gregos, então bárbaros e semelhantes aos nossos Brasilienses . Tanto se pode crer no Rei de Creta, que aqueles Insulares chamaram Júpiter.

(7) Hércules. — Os heróis dos tempos fabulares foram sem duvida semelhantes aos nossos primeiros descobridores, feitos celebres pela rudeza e ignorância dos seus tempos. Observamos este paralelo para preocupar a censura de quem acaso estimasse a matéria e objeto desta epopéia, digna de comparar-se à que escolheram os antigos poetas épicos.

(8) Causada. — É certo que a idolatria dos Gregos teve grande ocasião nos inventores das artes; e vimos outro tanto nos Americanos, dispostos a crer imortais os Europeus.

(9) Um plano. — Descrição das tabas, ou aldeias brasílicas.

(10) Dentro. — O padre Martinière, célebre crítico, e testemunha ocular, atesta parte destes costumes; e outros Osório, Vasconcelos, Pita, que não citamos, por serem espécies vulgares.

(11) Mais mair. — Nas hospedagens costumam assim os brasilianos; e do padre Martinière copiamos as palavras que então proferem e a sua interpretação.

(12) Uiçu — Farinha a que reduzem a carne torrada, ou o peixe. Cauim, bebida semelhante à que já dissemos de Catimpoeira.

(13) Cerimônia — Tinha esta cerimônia como religiosa, persuadidos que faz fugir o demônio.

(14) Português escravo. — Ficção poética sobre o verossímil, não sendo difícil que algum dos portugueses, deixados por Cabral, ou por outros capitães, nas costas para aprenderem a língua, comunicassem parte dela aos habitantes.

 

CANTO III

I

Já nos confins extremos do horizonte

Dourava o sol no ocaso rubicundo

Com tíbio raio acima do alto monte,

E as sombras caem sobre o vale fundo;

Ia morrendo a cor no prado e fonte;

E a noite, que voava ao novo mundo,

Nas asas traz com viração suave

O descanso aos mortais no sono grave.

II

Só com Gupeva a dama e com Diogo,

Gostosa aos dois de intérprete servia;

E, perguntado sobre o sacro fogo,

A qual fim se inventara, a que servia,

Deu-lhe simples razão Gupeva logo:

“— Supre de noite (disse) a luz do dia;

E como Tupá ao mundo a luz acende,

Tanto fazer-se aos hóspedes emprende.

III

Se pecando o mau espirito solevas,

Sucede que talvez cruel se enoje;

E como é pai da noite e autor das trevas,

Tanto aborrece a luz, que, em vendo-a, foge.

Porém, se a luz eterna o peito elevas,

Não há Fúria do Averno que se arroje;

Talvez por lhe excitar tristes idéias,

Das chamas que tiveram por cadeias".

IV

Admira o pio herói que assim conheça

A nação rude as legiões do Averno; (1)

Nem já duvida que do céu lhe desça

Clara luz de um principio sempiterno.

“— Diz-me, hóspede amigo, se professa

Este teu povo, diz, com culto externo

Adorar algum Deus? qual é? onde ande?

Se seja um Deus somente, ou que outros mande?" (2)

V

“— Um Deus (diz), um Tupá, um ser possante

Quem poderá negar que reja o mundo,

Ou vendo a nuvem fulminar tonante,

Ou vendo enfurecer-se o mar profundo?

Quem enche o céu de tanta luz brilhante?

Quem borda a terra de um matiz fecundo?

E aquela sala azul, vasta, infinita,

Se não está lá Tupá, quem é que a habita?

VI

A chuva, a neve, o vento, a tempestade

Quem a rege? a quem segue? ou quem a move?

Quem nos derrama a bela claridade?

Quem tantas trevas sobre o mundo chove?

E este espírito amante da verdade,

Inimigo do mal, que o bem promove,

Coisa tão grande, como fora obrada,

Se não lhe dera o ser, quem vence o nada?

VII

Quem seja este grande ente, e qual seu nome,

(Feliz quem saber pode) eu cego o ignoro;

E, sem que a empresa de sabê-lo tome,

Sei que é quem tudo faz e humilde o adoro.

Nem duvido que os céus e terra dome,

Quando nas nuvens com terror o exploro,

Deixando o mortal peito em vil desmaio,

Ameaçar no trovão, punir no raio.

VIII

Só pasmo se nos fez como não veio,

Devendo amar o que obra de mão sua,

Ao mundo de anhangás cercado e cheio

A livrar o homem dessa besta crua!

Como é possível que não desse um meio,

Com que a mente ignorante, enferma e nua

Tratar com ele possa, quando é claro

Que o pai não deixa o filho em desamparo?

IX

Sinto bem remorder dentro em meu peito

Lembrança, que me acusa: por mim fica,

Se mais bem do que faz, me não tem feito,

Que é néscio quem o ingrato benéfica.

Outro povo talvez mereça eleito

A assistência dos céus de graças rica;

Nem contra Deus se justifica a queixa,

Que costume deixar quem o não deixa.

X

Mas, se do trono celestial e eterno,

Apesar da malícia, nos visita,

Quem sabe se por zelo hoje paterno,

A nosso bem mandar-te aqui medita?

Pois creio bem que contra o fogo Averno

Trazes a chama que a do raio imita,

Ou que vens como luz, de etéreo assento,

Por levar-nos contigo ao firmamento".

XI

Pasmava o lusitano da eloqüência

Com tão alto pensar numa alma rude,

Notando como a eterna sapiência

A face a todos mostra da virtude.

E reputava por maior clemência,

Que a quem, se a fé conhece, ingrato a ilude,

Negasse Deus a luz, que os outros viam,

Porque, tendo-a maior, mais cegariam".

XII

"Não deixa nunca os seus o céu piedoso

(Diogo respondeu) que à terra indigna

Manda o seu Unigênito glorioso

Que ofereça, a quem o invoca, a mão benigna;

Mas, se antevisse no homem pernicioso (3)

Uma livre eleição sempre maligna,

Por dar-lhe menos pena em menor falta

Em sombra, como a voz, deixa tão alta.

XIII

Tendes entanto um claro sentimento,

Que espírito imortal se nos concede..." (4)

"Sim, diz Gupeva, que o decide atento

Quem tudo quanto sente parte ou mede.

Mas mirando ao seu próprio pensamento,

Vê que a medida sempre intato excede;

E sendo Indivisível desta sorte,

Como pode a razão sofrer a morte?

XIV

Quantas vezes em mim, se ser pudesse,

Um pensamento d'alma eu dividira!

Que todo o mal enfim que o homem padece

Vem da imagem cruel, que dentro gera.

mas a interna impressão tanto mais cresce

Quanto o peito ansiado mais suspira;

E vejo que há em mim mesmo oculto e interno

Entre a mente e a verdade um laço eterno. (5)

XV

Sendo a mente mortal, tornara ao nada,

Ao apagar-se a luz no extremo dia.

E antes de ser punida ou premiada,

Uma alma justa ou ré pereceria.

sempre em desejos, nunca saciada.

Má sem castigo e sem fortuna pia,

Sem chegar ao seu fim perder a essência...

Como é crível que Deus tem providência? (6)

XVI

Se o fim do inerte bruto se inquirisse,

No contexto das obras respondera

Que fora leito porque nos servisse

E que eterno destino não tivera, (7)

Onde era bem que a morte destruísse

Quem para imortal fim nunca nascera;

Porque lhe dera, a tê-lo, o céu divino

Outro corpo, outra forma, outro destino.

XVII

Que o bruto elege, pensa, que discorre

Do que o vemos obrar fica evidente;

mas cada espécie a um curto fim concorre,

Sem órgão e aptidão com que outro intente.

O homem tudo quer, por tudo corre,

Tem órgãos para tudo e tudo sente;

Infinito em pensar e no que vejo

Maior que no pensar no seu desejo.

XVIII

Tudo domina só, tudo governa,

Sem que a outro animal servir costume;

Toda outra espécie à sua, é subalterna,

E, se imortal nascera, fora um nome; (8)

Arbítrio universal, razão eterna,

Capaz de receber o imenso lume,

E fora mais, se a morte o dissipara,

Que se céu, terra e inferno aniquilara."

XIX

Pasmado Diogo do que atento escuta,

Não crê que a singular filosofia

possa ser da invenção da gente bruta,

Mas a intérprete bela lhe advertia

que a antiga tradição o nunca interrupta,

Em cantigas, que o povo repetia,

Desde a idade infantil todos compreendem

E que dos pais e mães cantando o aprendem.

XX

Que eram pedaços das canções, que entoam (9)

As que ouvia a Gupeva (e talvez tudo)

Que poético estilo doces soam

Feitas por sábios de sublime estudo.

Que alguns entre eles com tal estro voam,

Que envolvendo-se o harmônico no agudo,

Parece que lhe inflama a fantasia

Algum nume, se o há, da poesia.

XXI

Tendo Paraguassu dito discreta,

Prossegue então Gupeva os seus assuntos

Que, se as almas morressem, que indiscreta

A memória seria dos defuntos ?

A que servira a lei que nos decreta (10)

Que no sepulcro se lhe ponham juntos

Comidas, arcos, frechas? quem resista

A quem depois da morte não subsiste?

XXII

O inimigo anhanhá, logo que deixa

A nossa alma esta carne, em fúria a invade,

E do mal, que cá fez, cruel se queixa,

Até que em sombras entre ou claridade;

O rito do sepulcro expresso deixa,

Que, enterrando-se em pé, na eternidade

O fim buscamos, a que Deus nos cria

E que antes de o alcançar se segue a via.

XXIII

Deste princípio nasce que com prantos

Noite e dia se chora o seu decesso.

Louvam-se nos congressos como santos,

E põe-se no sepulcro um marco expresso;

Tantas memórias, pois, ofícios tantos,

A que fim, se a alma acaba, eu não conheço.

A expiação e obséquio era frustrado,

Se ela não vive ou purga algum pecado.

XXIV

Costumes são da oculta antiguidade

Que o grão-Tamandaré desde alta origem (11)

As gentes ensinou, com que à piedade

Todas no mundo as almas se dirigem;

E quando algum conteste esta verdade,

Provam-na os anhangás que nos afligem,

Pedindo aos nigromantes que a alma vendam

No que uma alma imortal nos recomendam.

XXV

Que é desde nossos pais fama constante

Que aonde o sol se pule fama montanhas (12)

Há um fundo lugar de que é habitante

O pérfido anhangá com cruéis sanhas:

Ali de enxofre a escuridão fumante

Com portas encerrou Tupá tamanhas,

Que as não pode forçar nem todo o inferno:

A morte é a chave, e o cadeado é eterno.

XXVI

Dentro nada se vê na sombra escura;

Mas no vislumbre fúnebre e tremendo

Distingue-se com vista mal segura

Um antro vasto, tenebroso e horrendo;

Ordem nenhuma tem; tudo conjura

Ao sempiterno horror, que ali compreendo:

Mutuamente mordendo-se de envolta,

Um noutro agarra, se o primeiro o solta.

XXVII

Se viste onda sobre onda procelosa,

Quando bate escumando a areia funda,

Como esta aquela engola, e mais furiosa

Montanha d'água vem, que ambas afunda,

Tal na caverna lôbrega horrorosa

Onda e onda de fogo os maus imunda:

Este sobe; Este desce; e um cataclismo

Alaga as nuvens e descobre o abismo.

XXVIII

Aqui o fero anhangá caiu (se conta),

Quando do grão-Tupá rompia o jugo;

E vem dos astros, que soberbo monta,

A ser em pena vil do homem verdugo.

Ali com mão cruel, com fúria pronta

Pune da nossa espécie o vil refugo;

E, em vez de mãos, as miserandas gentes

Enrosca em laços de cruéis serpentes.

XXIX

Ali, do grão-Tupá por lei severa,

No incêndio está, que o tempo não apaga,

Quem torpe incesto faz, quem adultera,

Quem 6 réu da lascívia infame e vaga.

Cada um, como a culpa cometera,

Tanto e no próprio membro o crime paga:

Fere-se a quem feriu; mas o homicida,

Só porque morra mais, não perde a vida.

XXX

Sentada em meio da morada horrenda,

Branca de cãs e imóvel na manobra,

Imensa sombra faz que a cauda prenda

Dentro na boca horrível uma cobra:

Com rouca(a voz e intimação tremenda

Ao tempo preso na vipérea dobra

Diz, retumbando eco a cavidade:

Oh vida! oh tempo! oh morte! oh eternidade!

XXXI

Além da grã-montanha, em que se oculta (13)

O cárcere das sombras horroroso,

De mil delicias num terreno exulta

Quem vive justo ou quem morreu piedoso.

Não se acha imagem nesta terra inculta

Que seja sombra do país ditoso.

O tempo ali da paz foi levantado,

Sempre aberto ao prazer e à dor fechado.

XXXII

Há do ameno jardim na vasta entrada

Uma grã-porta de safiras belas,

Onde da etérea luz reverberada

Se pinta em vasto fundo um mar de estrelas;

Toda ela em torno, em torno decorada

De flóridas belíssimas capelas.

Junto voragem há de um precipício,

Que sorve a quem se encosta infecto em vício.

XXXIII

Vêem-se dentro campinas deleitosas,

Geladas fontes, árvores copadas,

Outeiros de cristal, campos de rosas,

Mil frutíferas plantas delicadas;

Coberto o chão das frutas mais mimosas,

Com mil formosas cores matizadas;

E, à maneira, entre as flores, de serpentes,

Vão volteando as líquidas correntes.

XXXIV

Latadas de martírios há sombrias,

Que com a rama e flor formam passeios,

Onde passam sem calma os claros dias

Gozando sem temor de mil recreios.

Chuvas ali não há, nem brumas frias,

Nem das procelas hórridas receios;

Nem há na primavera e verdes maios

Quem receie o trovão, nem tema os raios.

XXXV

Entre o sussurro ali das fontezinhas,

Harmônica se escuta a voz sonora,

Com que mil inocentes avezinhas

Entoam a alvorada à fresca aurora;

Muitas com vôos vão ao céu vizinhas,

Outra segue o consorte, a quem namora,

E mil doces requebros gorjeando,

De raminho em raminho vai saltando.

XXXVI

Uma ave entre outras há que se discorre, (14)

Ou fama certa seja ou voz fingida,

Que do jardim a nós, de nós a corre,

Como fiel correio da outra vida;

Dizem que voa, quando algum lá morre,

E exprime no seu canto enternecida

O que alma passa nas eternidades,

E que nos leva e traz doces saudades.

XXXVII

Neste ameno jardim virem contentes

As almas que no mundo valorosas

A santa lei guardaram diligentes,

Obrando ações na vida gloriosas;

Os que foram na guerra mais valentes,

E a pátria com ações guardam honrosas

E os que em bélico horror com peito forte

Temem mais uma afronta do que a morte.

XXXVIII

Aqui do grão-Tupá no amado seio

Conversam, dançam, jogam sem fastio;

Uns dos males passados sem receio

Cantam da crua guerra o caso ímpio,

Outros da própria morte o golpe feio

Recordam sem pavor, contam com brio,

Que o recordar um mal que ó já passado

Dá depois mais prazer que então cuidado.

XXXIX

Ali dos pais as almas venturosas

Unidas sempre estão ao filho amado;

E o prêmio das fadigas laboriosas

Cozam no seio um doutro sem cuidado.

A mãe abraça as filhas amorosas,

Como o esposo a consorte em puro agrado;

Sem guerra, sem contenda, sem porfia

Passam tranqüila a noite e alegre o dia.

XL

Mas o que é mais suave, o que é mais doce,

É gozar-se entre tanta amenidade

De todo o bom desejo a inteira posse,

Nem ter de coisa vá necessidade.

Oh quem do tanto bem possessor fosse!

Grato país! amável liberdade!

Onde por graça de Tupá infinita

Ninguém padece, teme ou necessita!

XLI

Dizendo assim, Gupeva enterneceu-se,

Sentindo a força que o mortal levanta

A bem-aventurança. Comoveu-se

Também Diogo, vendo que em luz tanta

Tão pouco de Deus sabe; a todos deu-se

O eterno lume, cópia da lei santa;

Mas bem que de esplendor inunde um pego,

Quem é indigno de Deus fica mais cego.

XLII

“Que valem (disse ao bárbaro ignorante)

Jardins, flores, delicias e prazeres,

Faltando o objeto enfim mais importante,

Que é a face de Tupá? pois de a não veres,

Todo outro bem, que gozes por brilhante,

Por belo, por maior que o conceberes,

Para a nossa cobiça mal saciada

É vil, é vão, é pouco, é fumo, é nada.

XLIII

Finge que possa o homem gozar junto

Destes bens cá da terra um vasto rio,

Quanto Deus criar pode, tudo e munto;

Quem dele não gozar fica vazio;

Se o mundo a uma alma basta eu não pergunto:

Que ela goze infinitos sempre eu fio

Que. qual hidropisia verdadeira,

Quantos mais possuir, tanto mais queira.

XLIV

Toda essa glória, que me tens pintado,

Sem mais que um bem do mundo circunscrito,

Não é, Gupeva meu, mais que um bocado

Para quem só se farta do infinito;

E quando tudo o mais se haja logrado,

Se é um bem transitório, se é finito,

Em breve hás de sentir, e sem remédio,

Do futuro ânsia e do parado tédio.

XLV

Deus, caro amigo meu é Deus somente

Quem pode saciar nossa vontade;

Chegar a parte aonde o ver contente,

E vê-lo ali por toda a eternidade;

Todo o bem nele esta sumo e eminente,

Honra, gloria, grandeza, majestade,

Esta é, se discorreres em bom siso,

A idéia que hás de ter de um Paraíso.

XLVI

Porém narra-me entanto o que se pensa

Entre vós princípios deste mundo:

Quando? como? por quem na idéia imensa

Se tomou a medida ao céu profundo?

Qual foi o homem primeiro e de qual crença?

Ou se noticias tens do Adão segundo?

De qual origem sois ou de qual gente?

Ou quem veio a povoar tal continente?"

XLVII

“Memória nunca ouvi (Gupeva disse) (15)

Onde o homem nascesse; mas comprendo

Que houve princípio enfim que o produzisse;

Que sem fim e princípio eu nada entendo;

Como o criou não sei; e, bem que o visse,

Não pudera entendê-lo, conhecendo

Que entre o nada e o ser há tal distância,

que a ti te creio igual nesta ignorância.

XLVIII

O primeiro homem na geral lembrança,

A tradição dos velhos mais antigos,

Antes do grão-dilúvio não alcança;

Sabemos 80 que uns homens inimigos,

Do forte braço na falaz confiança,

Encheram todo o mundo de perigos

E deram causa que o dilúvio extenso

Num pego sepultasse a terra imenso.

XLIX

Do renovado mundo o patriarca

Desde o alto monte, onde escapou, descendo,

Depois que a grã-canoa e imensa barca,

Em que ao alto subiu, foi fundo tendo,

Na prole imensa dominou monarca,

E as várias tribos dividiu havendo

Por continentes e ilhas no mar fundo,

De toda a gente é pai que habita o mundo.

L

Predisse o justo velho o grão-castigo,

E, os homens exortando à penitência,

Nem à vista do próximo perigo

Chamá-los pode à justa obediência.

Cansado então Tupá da paz amigo

Do cruel latrocínio e da violência,

Quis por vingar-se o Padre onipotente

Com águas apagar a chama ardente.

LI

Faz que se abram do céu, que água encerra,

A catadupas, como imensos rios,

E, que a face inundando-se da terra,

Se afoguem bons e maus, justos e ímpios.

Os elementos em desfeita guerra

Confundem-se em medonhos desafios;

Cai um mar desde o céu, e na mesma hora

Manda a terra do centro outro mar fora.

LII

Já rota a margem, que nas brancas praias

Às ondas posto tinha o grão-sob'rano,

Passam as águas das extremas raias

Onde se ajunta com o monte o plano;

O peixe nadador, nas altas faias,

No ninho esta do alígero tucano;

E em seios as baleias ver puderas,

Covis dos tigres e antros de panteras.

LIII

Iam entanto os homens miserandos

De um monte a outro por fugir das águas,

E seu destino algum bandos e bandos

Correndo gritam com piedosas; magoas,

E os cegos deprecam, que os escutem brandos;

Mas a ira de Tupá com justas frágoas

Fulminando centelhas e coriscos,

Faz maiores os danos do que os riscos.

LIV

Via-se em longa tábua mal segura

Nadar sobre água a mãe desventurada,

E, tendo ao colo apensa a criatura,

Ora é n’água abatida, ora elevada.

Quem desde o alto das casas se pendura,

Quem fabrica de lentos a jangada,

Qual da fome mortal horror concebe,

E crê que é menos mal, se a morte bebe.

LV

Tamandaré, porém, de Tupá amigo,

Enquanto grã-procela horrível soa,

Salva o naufrago mundo pelo abrigo

Que aos filhos procurou na grã-canoa;

E a barca, por memória do castigo,

Elevada deixou sobre a coroa

Das altas serras, que, na fama claras,

Têm nome semelhante ao das araras. (16)

LVI

Daqui por várias terras espalhados

Os homens foram que seus netos cremos;

Uns que a fronte de nós deixou queimados,

O claro sol que nasce em seus extremos, (17)

Outros, que habitam climas apartados,

Dessa cor branca que em teu rosto vemos,

Divididos do mar, por onde as proas

Endireitam a nós vossas canoas.

LVII

Se sois de nós, se nós das vossas gentes,

São coisas que nós todos ignoramos,

Pois de paterno chão sempre contentes,

Doutras terras e tempos não cuidamos;

Mas vós, que os mares passeais ingentes,

Podereis inferir se os que aqui estamos,

Depois que de um pai só todos nascemos,

Com alguns entre vós nos parecemos,

LVIII

Que, se em vós houve ou há quem assim trate, (18)

Quem se governe assim, quem edifique,

Ou quem com armas, como nós combate,

Quem todo à caça, como nós se aplique;

Sé há quem devore os homens quando os mate,

A quem o feroz vulto imberbe fique,

Desde Tamandaré, que é pai das gentes,

Podemos crer que são nossos parentes.

LIX

Conserva-se num povo o antigo rito,

Se o não altera o rito do estrangeiro,

E sempre algum vestígio fica escrito

Por tradição do século primeiro

Vós sabereis, se a história tenha dito,

Que houve tempo em que o mundo quase inteiro,

Sem sabermos uns dos outros se habitasse,

E, como nós erramos, tudo errasse.

LX

Se os mares nunca dantes navegados

Discorrestes por climas diferentes,

Sabereis doutros homens separados,

Descobertos talvez das vossas gentes,

Que por estreitos, pode ser, gelados,

Transitaram nos nossos continentes;

Vos direis se homem há na roxa aurora

Nua e pintados, como nós agora.

LXI

E por que saibas mais nosso costume,

Onde julgues melhor da antiga origem,

Dir-te-ei como, seguindo o impresso lume,

As prudentes nações cá se dirigem;

Nem do vício de muitas se presume

Contra aquelas que sabias se corrigem;

Que também entre vós, creio, se escuta,

Quem tem boas leis, tem má conduta.

LXII

De Tupá, que o trovão com fogo manda,

Trememos, como vês, espavoridos;

Mas, quando vemos que a procela abranda,

Ficam os homens de Tupá esquecidos:

E bem suspeito que nessoutra banda

Suceda assim, se o horror vem dos sentidos;

E que entre vós também gente se veja

Que não temem Tupá e não troveja.

LXIII

Quem o blasfeme, afronte, ou quem o chame

A ser-lhe testemunha quando mente,

Nunca se ouve entre nós com fúria infame (19)

E só de o imaginar se assombra a gente.

Raro quem o adore ou quem o ame;

Mas mais raro será quem, insolente,

Tenha do sumo Ser tão cega incúria

Que trate o nome seu com tanta injúria.

LXIV

De externo culto a Deus há pouco indício;

Se não é no que estimas bruto engano

De fazermos cruento sacrifício,

Não do sangue brutal, porém do humano. (20)

Vejo à luz da razão que é feio vício

Que ao instinto repugna por tirano;

Mas matar quem nos mais o crime atiça

Não é vitima digna da justiça?

LXV

Justiça do céu reconhecemos

Contra quem delinqüente a profanasse;

Pondo suplícios contra os maus extremos,

E em justo sacrifício a pena dá-se.

O malfeitor, o réu, quando o prendemos,

Com sacro rito a cerimônia faz-se;

Que quem no sangue ímpio a Deus vindica,

Este o aplaca somente e sacrifica. (21)

LXVI

A forma do governo por abuso

Anárquico entre nós sem lei se oferece;

Mas nos que fazem da razão bom uso

Justa legislação reinar parece.

Nem nos tomes por povo tão confuso,

Que um público poder não conhecesse:

Ha senado entre nós, sábio e prudente, (22)

A quem o nobre cede e a humilde gente.

LXVII

Vagamos sempre e nunca um firme assento

Nos deixam ter da caça os exercícios;

Buscamos nela os próprios alimentos,

E habitamos onde a há ou dela indícios.

E estes são de ordinário os fundamentos

De ocupar-nos em bélicos ofícios.

Verás as gentes em contínuo choque

Sobre a quem o terreno ou prata toque.

LXVIII

Em várias castas e nações diversas

Dividido o sertão vagar costuma;

E, bem que vagabundas e dispersas,

Confederam-se as tabas de cada uma. (23)

Em guerra e paz e em sedições perversas

Ao pátrio nome não se nega alguma;

E, se o senado o quer, por justos modos

Põem-se todos em paz e armam-se todos.

LXIX

São nos senados membros e cabeças

Os velhos sábios capitães valentes,

Os que têm socorrido em grandes pressas

Com conselhos à pátria mais prudentes:

Destes as ordens dimanando expressas,

Um só se não verá nas nossas gentes

Que rompa, não cedendo a potestade,

Este laço da humana sociedade.

LXX

Destes uns da suprema divindade

Ministros são, que nos festivos dias, (24)

Fazendo-se qualquer solenidade,

O povo exortam com lembranças pias:

Honram cantando a eterna majestade,

Com sons, que para nós são melodias;

Coisas, que se Anhanhá corrompeu tanto,

Vê-se que nascem de princípio santo.

LXXI

Estes chefes do culto venerando

Mantém-nos a oblação do povo crente;

São mestres santos e, por nos orando,

O lume da razão mostra evidente

Que, em tão sublime ofício ministrando,

Têm direito a que o público os sustente;

Pois neles é mais justo que a lei valha

De comer cada um donde trabalha.

LXXII

Punimos o homicídio; quem mutila,

Quem bate ou fere não evite a pena:

A sentença ele a dá. Deve subi-la, (25)

Qual foi a culpa, com justiça plena:

Quem matou morrer deve: assim se estila,

Por lei sagrada, que a eqüidade ordena.

Quem cortou pé ou mão, braço ou cabeça,

No pé, no braço e mão tanto padeça.

LXXIII

A fé do matrimônio bem declara (26)

Que o vago amor a lei ofenderia;

Se se pudera usar sem que um casara,

Quem é que neste mundo casaria?

Deve morrer quem quer que adulterara;

Sem isso quem seu pai conheceria?

E o que extermina a pátria potestade

Quem não vê que repugna a humanidade?

LXXIV

Quem pai ou mãe conhece com incesto,

Ou quem corrompe a irmã, padece a morte:

Nos ofícios dos pais é manifesto (27)

Que confusão nascera desta sorte.

Ser a filha mulher não fora honesto,

Dominando em seu pai como consorte:

Se o irmão no matrimonio à irmã seguira,

Sempre o gênero humano mal se unira.

LXXV

Deve a humana geral sociedade,

Para gozar da paz com doce laço,

Vincular dos mortais a variedade (28)

De um consórcio feliz no caro abraço.

Deu-nos o céu por órgão da amizade,

Deu-nos como outra mão, como outro braço,

A consorte, em que o amor com fé excite,

Não por pasto brutal de um apetite.

LXXVI

E houvera sem prisão que tão suave,

Dominando entre os homens desde o Averno

A discórdia cruel e a inveja grave,

A conter-se o himeneu no amor fraterno.

Nasce do amor a paz: o amor é a chave,

É o doce grilhão, vínculo eterno,

Que, se o vil interesse algum desune,

Os peitos abre e os corações nos une.

LXXVII

Movidos deste fim por são costume,

Julgaram nossos pais na antiga idade

Que se ofende no incesto o impresso lume,

Como contrário à paz da sociedade.

E, se do céu preside o santo Nume

Ao sossego da triste humanidade,

Quem duvida que estime pouco honesto

Conhecer-se os irmãos com feio incesto?

LXXVIII

Entre nós, quem elege a esposa amada

Pede ao pai ou parente; e, sem pedi-la,

Não se julgara a fêmea desposada,

Por deixar a família assim tranqüila;

Que, se órfã fosse acaso abandonada,

Só pertence ao vizinho o permiti-la

E, convindo ou seu pai ou seu parente,

É sem mais matrimônio de presente.

LXXIX

Furto entre nós não há: de que há de havê-lo?

O que há, come-se logo; e, sem que o enfade,

Um tira doutro o que acha, por comê-lo;

E anda ao pé da pobreza a caridade.

A calúnia, a traição, o amargo zelo

Tem por pena a comum inimizade:

Nem há, se o entendo bem, maior castigo

Que o mundo todo ter por inimigo.

LXXX

Outra lei depois desta é fama antiga,

Que observada já foi das nossas gentes;

Mas ignoramos hoje a que ela obriga,

Porque os nossos maiores, pouco crentes,

Achando-a de seus vícios inimiga,

Recusaram guardá-la, mal contentes.

Alas da memória o tempo não acaba,

Que pregara Sumé, santo emboaba. (29)

LXXXI

Homem foi, de semblante reverendo,

Branco de cor, e, como tu, barbado,

Que desde onde o sol nos vem nascendo,

De um filho de Tupá vinha mandado;

A pé sem afundar (caso estupendo!)

Por esse vasto mar tinha chegado;

E na santa doutrina, que ensinava,

Ao caminho dos céus todos chamava.

LXXXII

Com grande mágoa ignora-se o que disse,

Mas não se ignora que da santa boca

Um conselho utilíssimo se ouvisse

De plantar e moer a mandioca;

Que havia de tornar também predisse,

Desde o céu a que amigo nos convoca,

E na terra ou no céu, que ele estivera,

Eu o iria a encontrar, se ele não viera.

LXXXIII

Contam que, quando aos nossos cá pregava,

Poder mostrara tal nos elementos,

Que às ondas punha lei, se o mar se irava,

E de um aceno só domava os ventos.

Os matos se lhe abriam, quando entrava,

E os tigres feros, a seus pés atentos,

Pareciam ouvir como a outra gente,

Festejando-o coa cauda brandamente.

LXXXIV

As águas donde quer, em rio ou lago,

Se as chegava a tocar com pé ligeiro,

Não pareciam do elemento vago,

Mas pedra dura, ou sólido terreiro,

Só com chamar seu nome, cessa o estrago,

Se o furacão com hórrido chuveiro,

Quando na nuvem, negra se levanta,

Ou derriba a cabana, ou quebra a planta.

LXXXV

Porém, negando às pregações o ouvido,

Vinha o caboclo do sertão mais bruto

Contra o justo Sumé, de Deus querido,

A matá-lo comê-lo resoluto.

Pudera ele fazer, sendo ofendido,

Que eles colhessem da cegueira o fruto;

Mas pede só prostrado a Deus que o c'roe,

E que a ignorância aos míseros perdoe.

LXXXVI

Os feros, pois, na fúria contumazes,

Tomam as frechas, e bramindo atiram;

Mas (quanto pelos teus, Tupá, não fazes!)

Contra quem atirou pelo ar se viram.

E nem assim se mostram mais capazes

Dos anúncios de paz que entanto ouviram.

Deixa-os Sumé, e um rio aborda cheio,

E só com pôr-lhe um pé partiu-o ao meio.

LXXXVII

Contam (e a vista faz que a gente o creia)

Que, onde as correntes d’água arrebatadas,

Se vão bordando com a branca areia,

Ficaram de seus pés quatro pegadas;

Vêem-se claras, patentes, sem que a veia

As tenha d'água no seu ser mudadas;

E enxerga se mui bem sobre os penedos,

Toda a forma do pé com planta e dedos."

LXXXVIII

Assim Gupeva concluiu, dizendo,

Nem mais tempo ao discurso haver podia,

Por aviso, que os campos vem batendo

Turba inimiga em vasta companhia:

- Às armas, grita, às armas! E o céu horrendo,

Retumbando nas árvores sombrias,

Fez que as mães, escutando os murmurinhos,

Apertassem no peito os seus filhinhos.

LXXXIX

“Não te espantes, diz Diogo; não alteres

A paz dentro as cabanas belicosas;

Enquanto novas certas não souberes,

Basta pôr guardas nos confins forçosas.

De noite não te empenhes, se temeres

Que te invadam com tropas numerosas,

Põe-te na defensiva, e bem que treme,

Quem te busca de noite e quem te teme.

XC

Quanto mais que o trovão nas mãos preparo

Contra teus inimigos neste afogo;

Nem duvides que logo que o disparo,

Tudo em chamas não vá, tudo arda em fogo."

Disse, e ao favor saiu de um luar claro,

Disparando o mosquete em márcio jogo;

E enquanto atira todo o bosque atroa

Pelo horror da buzina com que soa.

XCI

Qual dos monos talvez tropa nojosa,

Saiu do int’rior mato em negro bando;

E, se a frecha um derriba, vai medrosa,

Em fuga pelas árvores saltando:

Tal, ouvindo a buzina pavorosa,

E o arcabuz com trovão relampagueando,

Correm, caem, despenham-se na e estima

De que o céu todo lhes caía em cima.

(1) Legiões do Averno — É constante o conhecimento que têm os bárbaros da América dos espíritos infernais. De quem o apreenderam? Quem lhes inspirou estes sentimentos? Respondam os materialistas e libertinos Como era possível que concordassem com as outras gentes estas nações ferinas e sem algum comércio? Como era factível que conservassem depois de tantos séculos, tão clara noção de espíritos separados?

(2) Um Deus — É injúria que se faz por alguns autores aos brasilienses, supondo-os sem conhecimento de Deus, lei e rei. Eles têm a voz Tupã com a especial significação de um ente supremo, como sabemos dos missionários e dos peritos dos seus idiomas.

(3) Mas, se antevisse —Não admitimos em Deus ciência condicionada e exploratória; mas é certo que com determinado conhecimento conhece nos objetos as suas condições, e que na execução ao menos priva da sua graça alguns que antevê que abusaram livremente dela.

(4) Espírito imortal. — Os bárbaros americanos têm distinta idéia da imortalidade da alma, do paraíso, do inferno, da lei, etc. Veja-se Martinière, Osório de rebus Emmanuelis, e outros. Grande argumento contra os libertinos e materialistas. Pois quem lhes transfundiu estes conhecimentos, senão a antiga tradição dos tempos diluvianos, e a harmonia que estas tradições têm com a natureza!

(5) Laço eterno — A verdade e indelével impressão que dela sentimos no espírito é um grande argumento da imortalidade, a que recorreram maiormente Platão, Santo Agostinho, etc. Convence dos costumes e ritos dos brasilienses a antiga persuasão que têm da imortalidade da alma.

(6) Providência. — O argumento da pena e castigo que se deve aos injustos, e do prêmio que se concede aos bons é prova inegável da imortalidade da alma, suposta a Divina Providência, porque vemos morrer sem prêmio a piedade de muitos e sem castigo a injustiça.

(7) Destino — É esta a invencível e universal prova de ser mortal a alma do bruto porque, por experiência, e pela sua organização, vemos que têm um fim limitado, temporal e ordenado a servir o homem na vida mortal. Tudo ao contrário do homem mesmo.

(8) E se imortal nascera. —A imortalidade por natureza e essência é privilégio da divindade. Adão nasceu imortal por graça.

(9) Canções. — Sei que Martinière afirma não ter ouvido nas canções brasilienses indícios do religião. Mas suponho bem que não veria todas; e creio que seja impossível terem eles conservado as tradições que o mesmo autor confessa. sem este, ou igual meio.

(10) Que nos decreta. - Todos estes ritos, que subsistem nos americanos, convencem que as almas sobrevivem aos corpos, e que são, portanto, imortais.

(11) Tamandaré. — Noé, segundo as noções do dilúvio, que depois veremos.

(12) Montanha. — Crêem os brasilienses que no meio das, montanhas que dividem o Brasil do Peru há vales profundíssimos, aonde são punidos os ímpios. Idéia expressa do inferno, em que concordam com todas as gentes, e dão claro sinal nesta persuasão de saberem-no por tradição original dos

primeiros que povoaram a América. Não pode haver argumento mais convincente para encher de confusão os deístas, libertinos e materialistas. Uma tradição tão antiga, tão firme nestes bárbaros, é ela uma invenção porventura de alguns homens supersticiosos e impostores das nações da Ásia, ou da nossa Europa.

(13) Além da grã-montanha. — Os bárbaros crêem que haja lugar destinado para prêmio dos bons, e colocam-no além das montanhas do Peru.

(14) Uma ave. — Persuadem se os brasilienses haver uma ave, que chamam Colibri, a qual leva e traz noticia do outro mundo. Argumento inegável da sua crença sobre a imortalidade da alma.

(15) Memória. — Não têm os indígenas do Brasil idéia da criação, mas só de Noé e do dilúvio, e mui confusa dos homens antediluvianos. Todo argumento para convencer os incrédulos da história sagrada e do dilúvio universal nela referido. Veja-se Sebastião da Rocha Pita e Francisco de Brito Freire, na História Brasílica.

(16) Araras. —Entende o poeta os montes Ararat, onde ficou a arca.

(17) O claro sol. — Entende os africanos, que ficam ao oriente da América.

(18) Que, se em vós houve — A maior parte destes sinais se acham nos tártaros da Coréia, e em outros selvagens fronteiros à Califórnia. Nem duvidamos que estes, gelando-se ali os mares, passassem ao continente da América pela parte mais setentrional.

(19) Nunca se ouve — O juramento, blasfêmia e imprecação, são vícios ignorados entre os nossos selvagens, e raríssimos entre os tártaros.

(20) Do humano. — Não há indício de, sacrifico nos indícios brasilienses; mas, sendo as vítimas humanas praticadas no México, Peru e em outras nações da América, persuadimo-nos que a solenidade dos homicídios nos habitantes do sertão é um vestígio dos sacrifícios costumados entre os mais americanos.

(21) Sacrifício — O sacrifício é com efeito uma destruição da vítima, e, como expiatório, satisfazia à justiça com o sangue.

(22) Há senado. — Todos os que escrevem os costumes dos brasilianos confessam que presidem ao seu governo os anciãos e os príncipes das Tabas, ou aldeias: e que outra coisa é o senado.

(23) Tabus.— Assim chamam os brasilienses às suas aldeias. Veja-se o Dicionário da Gramática e língua Brasílica na sua voz Taba.

(24) Ministros são. — Espécie de sacerdócio nos brasilianos; e consta que os povos concorrem para o seu sustento com ofertas.

(25) A sentença ele a dá. — Os autores da história brasílica descobrem nos bárbaros do sertão a lei célebre de Talião. Da mesma sorte lhes atribuem leis para punir o adultério e o incesto em primeiro e o segundo grau.

(26) A fé do matrimônio. — Martinière afirma que os brasilienses Celibes guardam alguma honestidade. Será dissolução da gente bárbara; mas a constante tradição de conjugarem-se em matrimônio é argumento de que repugna aos seus costumes a Vênus vaga e sem freio.

(27) Nos ofícios dos pais. — É a razão suficiente, por onde se faz ilícito o incesto. Repugna à pátria potestade servir à esposa e entregar-lhe o poder sobre o seu corpo, sendo ela sua filha, isto é, inteiramente sujeita ao seu domínio.

(28) Dos mortais a variedade. — Razão suficiente, por onde repugna aos direitos da sociedade o incesto em segundo grau. Impediria o comércio e confederação do gênero humano o restringirem-se os matrimônios aos irmãos; e naturalmente se restringiriam pela ocasião, se fossem lícitos.

(29) Sumé. — O padre Nóbrega, primeiro e insigne missionário do Brasil, refere quanto aqui dizemos do apóstolo S. Tomé. Veja-se o padre Antônio Franco na Imagem da Virtude, escrevendo a vida do mesmo Nóbrega.

 

CANTO IV

I

Era o invasor noturno um chefe errante,

Terror do sertão vasto e da marinha,

Príncipe dos Caetés, nação possante

Que do grão-Jararaca o nome tinha.

Este de Paraguassu perdido amante,

Com ciúmes da donzela, ardendo vinha;

Ímpeto que à razão, batendo as asas,

Apaga o Caro lume e acende as brasas.

II

Dormindo estava Paraguassu formosa,

Onde um claro ribeiro à sombra corre;

Lânguido está, como ela, a branca rosa,

E nas plantas com calma o vigor morre;

Nas, buscando a frescura deleitosa

De um grão-maracujá, que ali discorre,

Recostava-se a bela sobre um posto,

Que, encobrindo-lhe o mais, descobre o rosto.

III

Respira tão tranqüila, tão serena,

E em langor tão suave adormecida,

Como quem livre de temor, ou pena,

Repousa, dando pausa à doce vida.

Ali passar a ardente sesta ordena,

O bravo Jararaca a quem convida

A frescura do sítio e sombra amada,

E dentro d'água a imagem da latada.

IV

No diáfano reflexo da onda pura

Avistou dentro d’água buliçosa,

Tremulando, a belíssima figura.

Pasma, nem crê que imagem tão formosa

Seja cópia de humana criatura.

E, remirando a face prodigiosa,

Olha de um lado e doutro, e busca atento,

Quem seja original deste portento.

V

Enquanto tudo explora com cuidado,

Vai dar cos olhos na gentil donzela

Fica sem uso d'alma arrebatado,

Que toda quanta tem se ocupa em vê-la.

Ambos fora de si, desacordado

Ele mais, de observar coisa tão bela,

Ela,absorta no sono em que pegara,

Ele, encantado, a contemplar-lhe a cara.

VI

Quisera bem falar, mas não acerta,

Por mais que dentro em si fazia estudo.

Ela de um seu suspiro olhou, desperta;

Ele daquele olhar ficou mais mudo.

Levanta-se a donzela mal coberta,

Tomando a rama por modesto escudo;

Pôs-lhe os olhos então, porém tão fera,

Como nunca a Beleza ser pudera.

VII

Voa, não corre pelo denso mato,

A buscar na cabana o seu retiro;

E, indo ele a suspirar, vê que num ato,

Em meio ela fugiu do seu suspiro.

Nem torna o triste a si por longo trato,

Até que, dando à mágoa algum respiro,

Por saber donde habite, ou quem seja ela,

Seguiu, voando, os passos da donzela.

VIII

De Taparica um príncipe possante,

Que domina e dá nome à fértil ilha,

Veio em breve a saber o cego amante

Ter nascido a formosa maravilha.

Pediu-lhe Jararaca, vendo diante,

Ao lado de seus pais, a bela filha.

Convêm todos; mas ela não consente,

Porque a mais aguardava o Céu potente.

IX

Ardendo, parte o bravo Jararaca

De ânsia, de dor, de raiva, de despeito;

E quanto encontra, embravecido, ataca,

Com sombras lia razão, fúrias no peito;

E, vendo a chama, o pai, que não se aplaca,

Por dar-lhe esposo de maior conceito.

Por consorte Gupeva lhe destina,

Com quem no sangue e estado mais confina.

X

Logo que por cem bocas vaga a fama

Do esposo eleito a condição divulga,

Irado o Caeté, raivando brama;

Arma todo o sertão, guerra promulga,

Tudo acendendo em belicosa chama,

Investir por surpresa astuto julga,

Com que a causa da guerra se conclua,

Ficando Paraguassu ou morta, ou sua.

XI

Mas, sendo de improviso em terror posto,

E ouvindo do arcabuz a fama e eleito,

Não permite que o susto assome ao rosto,

Mas reprime o temor dentro em seu peito.

Convoca um campo das nações composto,

Com quem tinha aliança em guerra feito,

E, excitando na plebe a voraz sanha,

Cobre de legiões toda a campanha.

XII

Em seis brigadas vanguardas armados,

Trinta mil Caetés vinham raivosos, (1)

Com mil talhos horrendos deformados,

No nariz, face e boca monstruosos.

Cuidava a bruta gente que, espantados,

Todos de vê-los, fugirão medrosos,

Feios como demônios nos acenos,

Que certo se o não são, são pouco menos.

XIII

Da gente fera e do brutal comando

Capitão Jararaca eleito veio;

Porque na catadura e gesto infando,

Entre outros mil horrendos é o mais feio,

Que uma horrível figura pelejando,

É nos seus bravos militar asseio

E traz entre eles gala de valente,

Quem só a cara faz fugir a gente.

XIV

Dez mil a negra cor trazem no aspecto,

Trinta de escura noite a fronte impura;

Negreja-lhe na testa em cinto preto,

Negras as armas são, negra a figura.

São os feros Margates, em que Alecto

O Averno pinta sobre a sombra escura;

Por timbre nacional cada pessoa

Rapa no meio do cabelo a coroa

XV

Cupaíba que empunha a feral maça

Guia o bruto esquadrão da crua gente;

Cupaíba que os míseros que abraça,

Devora vivos na batalha ardente,

À roda do pescoço um fio enlaça,

Onde, de quantos come, enfia um dente;

Cordão, que em tantas voltas traz cingido,

Que é já, mais que cordão, longo vestido.

XVI

Urubu monstro horrendo e cabeludo,

Vinte mil Ovecates fero doma; (2)

Por toda a parte lhe encobria tudo

Como terrível figura a hirsuta coma.

Monstro disforme, horrendo, alto e membrudo,

Que a imagem do leão rugindo toma,

Tão feio, tão horrível por extremo,

Que é formoso a par dele um Polifemo.

XVII

Fogem todo o comércio da mais gente;

Ou se se vissem a tratar forçados,

Que lhe possam chegar nenhum consente,

Senão trinta, ou mais passos apartados.

Se alguns se chegam mais, por imprudentes,

Como leões, ou tigres esfaimados,

Mordendo investem os que incautos foram,

E a carne crua, crua lhes devoram.

XVIII

Sambambaia outra turma conduzia,

Que as aves no frechar tão certa vexa,

Que nem voando pela etérea via,

Lhe erravam tiro da volante frecha.

Era de pluma o manto que o cobria;

De pluma em cinto, que ao redor se fecha;

E até grudando as plumas pela cara,

Nova espécie de monstro excogitara.

XIX

Seguem-no dez mil Marques, gente dura,

Que, em cultivar mandioca exercitada,

Não menos útil é na agricultura,

Que valente, em batalhas com a espada.

Tomaram estes, como própria cura,

De víveres prover a gente armada

Quais torravam o aipi, quem mandiocas; (3)

Outros na cinza as cândidas pipocas.

XX

O bom Sergipe, aos mais confederado,

Consigo conduzia os Petiguares,

Que havendo pouco dantes triunfado,

Têm do dente inimigo amplos colares.

Segue seu nome em guerras decantado,

De gentes valorosas dez milhares,

Que do férreo madeiro usando o estoque,

Disparavam com balas o bodoque.

XXI

Nem tu faltaste ali, grão-Pecicava

Guiando o Carijó das áureas terras;

Tu, que as folhetas de ouro que te ornava,

Nas margens do teu rio desenterras;

Torrão, que do seu ouro se nomeava,

Por criar do mais fino ao pé das serras,

Mas que, feito enfim baixo e mal prezado,

O nome teve de ouro inficionado. (4)

XXII

Muitos destes é fama que traziam,

Deste alto cerro, que habitavam dantes,

Com pedras, que nos beiços embutiam,

Formosos e belíssimos diamantes.

Outros áureos topázios lhe ingeriam;

Alguns safiras e rubis flamantes;

Pedras, que eles desprezam, nós amamos:

Nem direi quais de nós nos enganamos.

XXIII

O feroz Sabará move animoso

Dos de Agirapiranga seis mil arcos,

Homens de peito em armas valoroso,

Que de sangue em batalhas nada parcos,

Deixaram seu terreno deleitoso,

Por matos densos, pantanosos charcos,

E, ouvindo dos canhões o horrendo estouro,

Passaram desde o mar às minas de ouro.

XXIV

Seguia-se nas forças tão robusto,

Quanto no aspecto feio, e em trajo horrendo,

Um que com fogo sobre o torpe busto

Dois tigres esculpira combatendo.

Este é o bravo Tapu, que enche de susto

Tudo, co’o grão-tacape acometendo, (5)

E que, mil cutiladas dando espessas,

Derriba troncos, braços e cabeças.

XXV

Debaixo do seu mando, em dez fileiras,

Doze mil Itatis formados iam;

Surdos, porque, habitando as cachoeiras,

Com o grão-rumor da água ensurdeciam;

Pendem os seus marraques por bandeiras (6)

De longas bastes, que pelo ar batiam,

Suprindo nos incônditos rumores,

O ruído dos bélicos tambores.

XXVI

Em guerreiras colunas, feroz gente,

Que no horror da figura assombra tudo,

Trazem por armas uma massa ingente,

Tendo de duro lenho um forte escudo;

Frechas e arco no braço armipotente;

Nas mãos um dardo de pau santo agudo;

Sobre os ombros a rede, à cinta as cuias,

Tal era a imagem dos cruéis Tapuias.

XXVII

Quarenta mil de cor todos vermelha

Conduz ao campo o forte Sapucaia:

Dez mil, que têm furada a longa orelha,

São Amazonas de femínea laia.

É o amor conjugal que lhe aconselha

A descer dos sertões à vasta praia,

Por achar-se nos lances mais temidos,

Ao lado, sem temor, dos seus maridos.

XXVIII

Brava matrona de coragem cheia,

A quem o márcio jogo não perturba,

Na forma bela, mas, por arte, feia,

Vai comandando na femínea turba.

Deram-lhe o nome os seus da grã-baleia,

Nome que, ouvido, os bárbaros disturba,

De namorados uns que a têm por bela,

Mas outros com mais causa por temê-la.

XXIX

Ouve se rouco som, que o ouvido atroa,

Retumbando com eco a voz horrenda

De um grosseiro instrumento, que a arma soa,

Com que se inflama entre eles a contenda.

E, quando o horrível som mais desentoa,

Faz que no peito mais furor se acenda.

De retorcidos paus são as cornetas,

De ossos humanos frautas e trombetas.

XXX

Com batalhões e espaços separados,

Triplicando cordão se vê composto;

E em silêncio admirável ordenados,

Ao redor vão do outeiro em meio posto.

Costuma um orador falar-lhe a brados,

E, ardendo-lhe mil fúrias sobre o rosto,

O ar coa espada furibundo corta,

E a combater valente a turba exorta.

XXXI

Jararaca, no mundo então primeiro,

Ao sacro e civil rito presidia,

E no mais alto do sublime outeiro

Entre um senado ancião se distinguia.

Aos outros na estatura sobranceiro

As costas de um tapuia, que o trazia,

De um lado a outro majestoso corre,

E com geral silêncio assim discorre:

XXXII

“— Paiaiás generosos, hoje é o dia

Que aos vindouros devemos mais honrado,

Em que mostreis que a vossa valentia

Não receia o trovão, subjuga o fado.

Sabeis que a Gupeva a concórdia

Por Filho do trovão tem aclamado

Um imboaba, que do mar viera, (7)

Por um pouco de fogo que acendera.

XXXIII

Prostrado o vil aos pés desse estrangeiro,

Rende as armas com fuga vergonhosa,

E corre voz que o adora lisonjeiro,

E até lhe cede com o cetro a esposa.

E que pode nascer do erro grosseiro,

Senão que em companhia numerosa

As nossas gentes o estrangeiro aterre,

E que a uns nos devore, outros desterre?

XXXIV

Se o sacro ardor, que ferve no meu peito,

Não me deixa enganar, vereis que um dia

(Vivendo esse impostor) por seu respeito

Se encherá de Imboabas a Bahia.

Pagarão os Tupis o insano feito;

E vereis entre a bélica porfia,

Tomar-lhe esses estranhos, já vizinhos,

Escravas as mulheres cos filhinhos.

XXXV

Vereis as nossas gentes desterradas,

Entre os tigres viver no sertão fundo,

Cativa a plebe, as tabas arrombadas;

Levando, para além do mar profundo,

Nossos filhos e filhas desgraçadas,

Ou, quando as deixam cá, no nosso mundo,

Poderemos sofrer, Paiaiás bravos,

Ver filhos, mães e pais feitos escravos?

XXXVI

Mas teme o seu trovão: e tanto oprime

O medo aquele vil, que não pondera

Que por esse trovão, que não reprime,

Há de ver cheia de trovões a esfera?

Que grande mal será, se o raio imprime?

Se o mundo por um raio se perdera,

Susto pudera ter, cobrar espanto;

Porém more de medo, que é outro tanto.

XXXVII

Eu só, eu próprio, no geral desmaio,

Ao relâmpago irei sem mais socorro;

E, quando ele dispare o falso raio,

Ou descubro a impostura, ou forte morro.

Será de nigromancia um torpe ensaio,

Com que astuto pretende, ao que discorro,

Fazer que a nossa tropa desfaleça,

Antes que a causa do terror conheça.

XXXVIII

Que se for (que o não creio) o estrondo infando

Do sublime Tupá triste ameaça,

Fará como costuma, trovejando,

Que, matando um ou outro, a mais não passa.

Se eu vir que o raio horrível vai vibrando,

A um homem como eu, nada embaraça:

Se for mortal quem causa tanto abalo,

Por meio ao próprio raio irei matá-lo.

XXXIX

Su, valentes! Su, bravos companheiros!

Tomai coragem! que será no extremo?

Embora seja um raio verdadeiro,

Senão é Deus que o lança, eu nada temo.

Seja quem quer que for o autor primeiro,

Como não seja o Criador Supremo,

Não há forças criadas que nos domem:

Que sobre tudo o mais domina o homem."

XL

Disse o grão-chefe assim, e entre os furores,

Com a mão, que já tinha levantada,

Bate na espádua aos príncipes maiores,

E dá-lhes, Orsu dizendo, uma palmada; (8)

Uns nos outros as deram não menores,

Que assim se incita a multidão armada:

Vinguemo-nos, (gritando) companheiros,

Bem que foram seus raios verdadeiros.

XLI

Jararaca depois (que é sacro rito)

Lança furioso as mãos a quanto abrange,

E abrindo a enorme boca em fero grito,

E escuma e freme e ruge e os dentes range;

Como do mal hercúleo o enfermo aflito

A convulsão a retrocer constrange.

Depois, falando aos príncipes, bafeja,

E o espírito de força lhes deseja.

XLII

Cerimônia esta foi do pátio uso,

Vestígio nacional da antiga idade,

Que acaso corrompeu mágico abuso,

Tendo talvez princípio na piedade.

Retumba do marraque o som confuso,

E, pondo em alto o seu, com gravidade,

A insígnia, no chão tudo se inclina,

Como a sinal de coisa mais divina. (9)

XLIII

Corresponde o belígero instrumento

Da feral frauta ao bárbaro marraque;

E, promulgando a marcha aquele acento,

Tudo em ordem se pôs ao fero ataque.

Marcham contra Gupeva, com intento

De meter nas cabanas tudo a saque;

E porque tudo assombrem com terrores,

Rompem o ar com bélicos clamores.

XLIV

Entanto no arraial do bom Gupeva

Sendo a invasão noturna rechaçada

Convocam recrutas, fazem leva

De tropa nacional e da aliada,

Enquanto Diogo, a quem a ação releva,

Toma na gruta a pólvora guardada,

E em vários fogos, que arrojou volantes

Imita o raio em bombas fulminantes.

XLV

Era a Bahia então, donde imperava

O bom Gupeva, povoada em roda

Pelos Tupinambás, de quem contava

Trinta mil arcos brava gente toda;

Taparica seis mil valente armava;

E, por cumprir-se a prometida boda,

Mil Amazonas mais à guerra manda:

Paraguassu gentil todas comanda.

XLVI

Paraguassu, que de Diogo esposa

(Por que mais Jararaca se confunda)

Ia a seu lado a combater briosa,

Nem teme a multidão que o campo inunda:

Usa com ela a tropa belicosa

Da vulgar seta, do bodoque e funda

Leva a Amazona um rígido colete,

E coa espada de ferro o capacete.

XLVII

Com estas forças só (que mais recusa)

Sai Diogo à campanha guarnecido;

Nem sofre a forma do marchar confusa

Mas tudo tem com ordem repartido.

Outro corpo maior de que não usa

Deixa em guarda das tabas prevenido;

Tupinaquis, Viatanos, Poquiguaras, (10)

Tuminvis, Tanviás, Canucajaras.

XLVIII

Não mais de duas léguas adiantando,

O arraial se alojava de Diogo,

Quando o ardente Planeta vai queimando

A tórrida região com vivo fogo;

E, enquanto espira no ar zéfiro brando,

Buscando numa sombra desafogo,

Medita a grande ação, mede o perigo,

Nem despreza por bárbaro o inimigo.

XLIX

Vê bem que espanto causa a invenção nova,

Mais que o tempo consome a novidade.

Tem sim um peito de aço feito à prova,

Mas, vendo do inimigo a imensidade,

Por mais que balas o mosquete chova,

Reconhece em vencer dificuldade,

Tendo notado já na bruta gente

Que era tão contumaz, como valente.

L

Pensava assim com reflexão madura,

Quando à roda do outeiro divisava

Densa nuvem de pó, que em sombra escura

A multidão confusa levantava:

Não o cessa um ponto mais: tudo assegura,

E, sem temer a turba que observava,

Marcha a ganhar o alto, e, posto à fronte,

Deu à tropa em cordão por centro o monte.

LI

Já se avistava o bárbaro tumulto

Das inimigas tropas em redondo;

E,: antes; que empreendam o primeiro insulto,

Levanta- se o infernal medonho estrondo.

Os marraques, uapis e o brado inculto, (11)

Todos um só rumor, juntos compondo

Fazem tamanha bulha na esplanada,

Como faz da tormenta uma trovoada.

LII

Tu, rápido Pajé, foste o primeiro

De quem o negro sangue o campo inunda

Que, com seres no salto o mais ligeiro,

Mais ligeira te colhe a cruel funda.

Paraguassu lha atira desde o outeiro;

Chovem as pedras, de que o monte abunda

E do lado, e do cimo do cabeço,

Tudo abatem com tiros de arremesso.

LIII

Não ficou no combate entanto ociosa

A frecha do inimigo, que o ar encobre;

Começa Jararaca a ação furiosa,

Dando estímulo ousado ao valor nobre.

E a turba, de Diogo receiosa,

Foge do grão-tacape, onde o descobre

Que tanto estrago faz, que qualquer fera

Maior entre cordeiros não fizera.

LIV

Mas, quando tudo com terror fugia

O bravo Jacaré se lhe põe diante

Jacaré, que, se os tigres combatia,

Tigre não ha que lhe estivesse avante.

Treme de Jararaca a companhia

Vendo a forma do bárbaro arrogante

Que, com pele coberto de pantera,

Ruge com mais furor que a própria fera.

LV

Avista-se um co outro: a massa ardente

Deixam cair com bárbaro alarido;

Corresponde o clamor da bruta gente,

E treme a terra em roda do mugido.

Aparou Jacaré no escudo ingente

Um duro golpe, que o deixou partido;

E, enquanto Jararaca se desvia,

Quebra a massa no chão, com que o batia.

LVI

Nem mais espera o Caeté furioso,

E, qual onça no ar, quando destaca,

Arroja se ao contrário impetuoso,

E um sobre outro coas mãos peleja ataca:

Não pode discernir-se o mais forçoso;

E, sem mover-se em torno a gente fraca,

Olham lutando os dois no fero abraço,

Pé com pé, mão com mão, braço com braço.

LVII

Porém, enquanto a luta persistia,

No sangue em terra lúbrico escorrega

O infeliz Jacaré; mas na porfia

Nem assim do adversário se despega.

Sobre o chão um com outro às voltas ia,

E qual o doente, qual o punho emprega,

Até que Jararaca um golpe atira,

Com que rota a cabeça o triste expira.

LVIII

Nem mais espera de Gupeva a gente;

Porque, voltando em rápida fugida,

Deixam nas mãos do bárbaro potente

Toda a batalha numa ação vencida.

Não tarda mais Diogo já presente;

E, tendo ao lado a esposa protegida,

Do outeiro desce, donde tudo observa,

E invade armado a bárbara caterva.

LIX

Quem poderá dizer da turba imbele

Quantos a forte mão talha em pedaços?

Paraguassu valente ao lado dele,

Muitos mandava aos lúgubres espaços,

Semeando por donde o golpe impele

Troncos, bustos, cabeças, pernas, braços;

Nem um momento a fraca gente aguarda,

Vendo a brandir a lúcida alabarda.

LX

O membrudo pai com três potentes

Robustos filhos degolou coa espada,

E a dois nobres Caetés dos mais valentes,

Tendo a mão para o golpe levantada ,

Com dois reveses, que lhe atira ardentes,

Deixou pendentes no ar coa mão cortada

Bambu de um talho. que a assaltá-la veio,

Coa cabeça ficou partida ao meio.

LXI

Muitos sem nome despojou da vida.

E a quanto encontra o ferro não perdoa:

Qual se os cachorros perde embravecida,

No caçador se arroja a fera leoa

E entre mil dardos, de que a tem cingida,

Dando-lhe asas a dor, saltando voa,

E ruge e morde, e no que encontra embarra,

E onde não pode dente, imprime a garra.

LXII

Tal a forte donzela move a espada,

Ou talvez lança mão do dardo agudo,

E de mil e mil golpes fulminada,

Rebate todos no colete e escudo.

As amazonas, de que vem rodeada

Vendo sobre a heroína correr tudo,

Onde quer que os contrários se apresentam,

Acometem, degolam, e afugentam.

LXIII

Por outro lado, o valoroso Diogo

A multidão dos bárbaros subjuga,

E uns precipita no tartáreo fogo,

Outros obriga com terror à fuga.

Mas uns detém coa espada, outros com rogo

Urubu, que do sangue a fronte enxuga,

E, opondo-se entre os mais a Diogo ardente,

Restitui a batalha e anima a gente.

LXIV

Urubu, que na brenha exercitado

Um tigre, que na caça à mãe roubara,

Tendo-o junto de si domesticado,

A combater consigo acostumara,

Lança-o a Diogo: o monstro, arrebatado

Entre as presas cruéis, que arreganhara,

Ia, apesar dos férreos embaraços,

Com garra e dente a pô-lo em mil pedaços.

LXV

Mas o herói, bem que de outros investido,

Enquanto a fera no ar saltando tarda,

Tendo-se ao fero assalto prevenido,

Dispara-lhe na fronte uma espingarda;

E, qual raio da nuvem despedido,

Quando a fera que o ímpeto retarda,

Tremula ao golpe a vacilar começa,

Salta-lhe em cima e corta-lhe a cabeça.

LXVI

Ao estrépito, ao fogo, ao golpe horrendo,

À fumaça do tiro ocasionada,

Ao ver o busto sobre o chão tremendo,

E a terrível cabeça sobre a espada,

A imensa multidão, que o estava vendo,

Cai por terra sem ânimo assombrada,

E alguns, que em pé, tremendo, se suspendem,

Ao grão-Caramuru todos se rendem.

LXVII

Jararaca entretanto, que seguira

Os que fugiram no primeiro insulto,

Por encontrar Gupeva tudo gira,

Que nas cabanas se emboscara oculto.

Ia-o buscando o bárbaro, que ouvira

Daquela parte o bélico tumulto,

Com tenção de expugnar a taba ingente,

Matar Gupeva, cativar-lhe a gente.

LXVIII

Na toca algum das árvores imensas,

Algum em meio as ramas se escondia;

Muitos se emboscam pelas selvas densas,

Outro em covas profundas que sabia;

Porque, andando em contínuas desavenças,

Qualquer ao noto asilo recorria,

Onde entrando o inimigo, sem prevê-lo,

Saem de toda a parte a acometê-lo.

LXIX

Enquanto a selva passeava escura

De imortais arvoredos rodeada,

Foi Jararaca, que a cuidou segura,

Ferido sobre o pé de uma frechada;

Ficou-lhe a planta sobre a terra dura

Em tal maneira com o chão cravada,

Que por mais que arrancá-la, dali prove,

Despedaça-se o pé, mas não se move.

LXX

Corre a turba a salvá-lo, e incontinente,

Voam mil setas desde a espessa rama,

E cada árvore ali do bosque ingente

Um chuveiro de tiros lhe derrama:

Cada tronco é um castelo: ao lado e frente

A oculta multidão bramindo clama;

E o resto, que em cavernas se escondia,

Ao rumor da vitória concorria.

LXXI

Já mal resiste o Caeté cercado,

E o bom Gupeva, que ao rumor concorre,

Um corpo de reserva trouxe armado,

Que à inclinada batalha invicto corre.

Jararaca, que o pé tinha encravado,

Vendo que outro remédio o não socorre,

Por ter a vida e liberdade franca,

Deixa parte do pé e a seta arranca.

LXXII

Nos braços vai dos seus mal defendido;

Mas com a massa, que meneia horrenda,

Reprime forte o bárbaro atrevido,

Porque não haja quem se acoste e o prenda;

E, tendo a sorte o caso decidido,

Cede raivoso da cruel contenda,

E ao sertão retirado não descansa,

Maquinando em furor nova vingança.

LXXIII

Paraguassu, porém, de glória avara,

Seguia na vitória o gênio ativo;

E, incauta, de Diogo se apartara,

Cortando a retirada ao fugitivo.

Anima a multidão, que se emboscara,

Pessicava potente, por motivo,

Se prevalece a força do contrário,

De acudir ao socorro necessário

LXXIV

Este, vendo a donzela valorosa

Turbar com fúria a gente amedrontada,

Desde o alto lança de árvore frondosa

Grosso ramo que cai de uma pancada.

Debaixo dele a heroína valorosa,

Co grande peso pelo chão prostrada,

Ficou, falta de alento e semi-viva

Nas mãos do cruel bárbaro cativa.

LXXV

Corre a turba feroz contra a donzela,

Que, depois que das armas deixa o peso,

Descobre a todos a presença bela,

E fica quem a prende ainda mais preso.

Da rude multidão, que corre a vê-la,

Há quem de a ver tão linda fica aceso,

Outro que de a ter visto em guerra armada

Ainda a teme com vê-la desmaiada.

LXXVI

Logo que respirou, novo ar tomando,

Sente no coração mais desafogo,

E alento pouco a pouco vai cobrando,

Até que, entrando em si, chama o seu Diogo;

Mas, na turba que a cerca reparando,

Conhece-se cativa, e desde logo

Noutro fero desmaio fica absorta,

E cuida quem a vê que ficou morta.

LXXVII

Selvagem há que cuida de comê-la,

Nem muito se está morta se assegura;

E com fúria voraz contra a donzela

A gula acende com a chama impura.

Nem presar-se costuma a forma bela

No fero coração da gente dura;

E, em morrendo qualquer mulher, ou homem,

Choram muito e depois assam-no e comem.

LXXVIII

Paté com este intento a degolara,

Se a bela Mangarita, que isto via

Desde o mato escondida, o não frechara,

Deixando-lhe suspensa a mão que erguia.

Um troço de Amazonas volta a cara,

E a peleja de novo se acendia,

Sendo Paraguassu, que jaz no meio,

O preço da vitória neste enleio.

LXXIX

Cotia, que marchara sempre ao lado

Da desmaiada heroína em paz ou guerra,

Por vingar, ou remir o corpo amado,

Co fulmíneo tacape o campo aterra:

Piâ, Cipô, Açû, deixou prostrado,

E faz que a grã-baleia morda a terra,

Baleia, que acomete vingativa,

Por guardar a donzela semi-viva.

LXXX

Nem tu, Guarapiranga, à mão formosa

Pudeste evadir na horrível luta,

Que, enquanto a inúbia soas horrorosa, (12)

Com que às armas se acende a gente bruta,

Cotia com a espada valorosa

A música feral que se te escuta,

Nos antros retumbar te faz no averno

Melodia que é digna só do inferno.

LXXXI

Tudo cede à amazona, e já salvava

Paraguassu mortal da gente fera,

Quando o grão-Pessicava, que observava

O estrago, que a amazona ali fizera,

Acomete o esquadrão com fúria brava,

E tudo afugentando o tempo espera,

Em que a impulso do braço alcance forte

Degolar a Cotia de um só corte.

LXXXII

Espera ela sem medo, apenas vira

Do bárbaro feroz o golpe incerto,

E veloz a uma toca se retira,

Que tinha em duro tronco o tempo aberto;

Porém repete ali com maior ira

Pessicava outro golpe, e por certo

Na valorosa Paca imprime o tiro,

Que tomou com Cotia este retiro.

LXXXIII

Enquanto entrava o bárbaro, e na luta

Um e outro se abraça, o forte Diogo,

Que o caso da sua bela infausto escuta,

Toma a espingarda e parte em fúria logo,

Qual pólvora encerrada dentro à gruta,

Quando na oculta mina se deu fogo,

Arroja penha e monte, e o que tem diante,

Tal se envia em furor o aflito amante.

LXXXIV

Tinha afogado Pessicava entanto

A amazona infeliz, e a mão lançava

Já de Paraguassu, que no quebranto,

Apenas levemente respirava.

E eis que, inventando Diogo um novo espanto,

Traz um tambor, que horríssono soava;

E, logo que o arcabuz com bala atira,

Cai Pessicava e morde o chão com ira.

LXXXV

Mas não espera a tímida manada,

Ouvindo o estrondo e os hórridos efeitos:

Quem parte logo em fúria declarada;

E quem lhe rende humilde os seus respeitos,

Paraguassu, porém, desassombrada,

Sendo os contrários com terror desfeitos

Acordou num suspiro, e solta viu-se;

E, conhecendo Diogo, olhou-o e riu-se.

(1) Caeté. — Gentio ferocíssimo, que infestava o sertão da Bahia.

(2) Ovecates. — Nação feríssima.

(3) Aipi. — Raiz de que se faz uma espécie de farinha. Mandioca, outra semelhante. Pipocas chamam o milho, que, lançado na cinza quente, rebenta como em brancas flores.

(4) Inficionado. — Povo importante das Minas do Mato dentro chamado assim, porque o ouro, que tinha mui subido, perdeu os quilates mais altos, e ficou chamando-se ouro inficionado. Assim o soube o poeta dos antigos daquela paróquia, de que ele é natural.

(5) Tacape. — Espada de pau ferro, ou semelhante, de que usam os bárbaros.

(6) Morraque. — É uma haste, de que pende um cabaço, ou coco, cheio de pedras miúdas, que, sacudindo-o, fazem rumor. É insígnia sacerdotal e militar entre estes bárbaros.

(7) Imboaba. —Nome que dão aqueles bárbaros aos nossos Europeus.

(8) Palmada. — Rito militar, com que se exortam à guerra.

(9) Divina. — Usam nas suas solenidades os bárbaros de um marraque, ou haste (já em outra parte descrita) que pelas circunstâncias parece insígnia religiosa.

(10) Tupinaquis, etc. — Nomes das nações do sertão.

(11) Uapis. — Instrumento que tocam nas batalhas.

(12) Inúbia.— Espécie de corneta usada dos brasilienses.

 

CANTO V

I

Débil entanto a luz sobre o horizonte

Os seus trêmulos raios apagava,

E desde o ocidental imenso monte

A noite pelas terras se espalhava.

Morfeu, deixando os antros de Aqueronte,

No seio dos mortais se derramava.

Mas da bárbara gente que fugia,

Só se entregava ao sono a que morria.

II

Fatigado Diogo ao lado estava

E a bela esposa numa grã-floresta;

Nem ao preciso sono lugar dava

Na atenção de a guardar da gente infesta.

Um de outro os sucessos escutava,

Nutrindo em novo fogo a chama honesta;

Que, depois de um triunfo do inimigo,

Faz-se doce a memória do perigo.

III

Ao resplendor da lua que saía,

Misturava-se o horror com a piedade,

Porque em lagos de sangue só se via

Sanguinolenta, horrível mortandade.

O vale igual ao monte parecia,

E, do estrago na vasta imensidade,

O outeiro estava, donde foi o assalto,

Com montes de cadáveres mais alto.

IV

Não pôde vê-lo a bela americana,

Sem que a tocasse um triste sentimento;

E, ou fosse condição da gente humana,

Ou do seu sexo um próprio movimento,

Chorou piedosa a sorte desumana

Dos que, apartados do terreno assento,

Jaziam, como ouvira de Diogo,

Nas labaredas de um eterno fogo.

V

"E como (compassiva disse) é crível

Que o Deus, como me pintas, bom e amável

Sabendo o que há de ser e o que é possível,

Nos crie para fim tão miserável?

Antevendo um sucesso tão terrível,

Não parece crueldade inexcusável

Dar-lhe o ser, dar-lhe a vida, dar-lhe a mente,

Para vê-los arder eternamente?

VI

Quantos criar pudera que o servissem,

Deixando de criar quem o agravasse,

Onde todos a vê-lo ao céu subissem,

E as obras que produz todas salvasse?

Nossos pais, se dos filhos tal previssem,

Quanto fora cruel quem os gerasse!

E creremos da excelsa grã-bondade

Que ceda a nossos pais na humanidade?"

VII

"Segredos são (diz Diogo) da inscrutável

Majestade de Deus: que saberemos

Do seu modo de obrar sempre inefável,

Se o que somos e obramos não sabemos?

Faltando-nos razão clara e provável

Nos conselhos de Deus, que ocultos vemos,

E bem que toda a dúvida se acabe,

Porque ele pode mais, do que o homem sabe.

VIII

"Mas, se há lugar à humana conjetura

Dos possíveis na longa imensidade,

Não se podia achar uma criatura,

Que goze de impecável liberdade.

Uma firme inocência é graça pura,

É mercê liberal da Divindade,

E quem entanto a perguntar se atreve,

Por que lha não quis dar quem lha não deve?

IX

Desde a origem da imensa eternidade,

Que tudo sem princípio ordena e rege,

Devemos presumir da Divindade

Que onde o ótimo encontra em tudo o elege.

E, sendo em nós tão grande a iniqüidade,

Não temos coisa que a qualquer se inveje,

Onde se os mais possíveis vendo fores,

Nós fomos os eleitos por melhores."

X

Embora seja assim (disse a donzela);

Mas que culpa têm estes, que o ignoravam?

Não cuida acaso Deus, ou pouco zela

As almas, que entre nós se condenavam?

E senão, por que causa aos mais revela

As doutrinas que aos nossos se ocultavam?

Distava mais do céu a nossa gente,

Por que medeia o mar d'Este a Poente?"

XI

Tornai a culpa a vós, e a vós somente

(O herói responde assim). Se com estudo

Procurais sobre a terra o bem presente,

Por que não procurais o autor de tudo?

Para o mais tendes lume, instinto e mente;

Somente contra Deus buscais o escudo

Em a vossa ignorância à brutal culpa!

Essa ignorância é crime e não desculpa."

XII

Porém já da fadiga desvelada

Cerrava Paraguassu seus olhos claros,

Tendo-a Diogo na fé mais confirmada,

Com responder prudente aos seus reparos,

Enquanto a bruta gente aprisionada,

Mostrando-se da vida nada avaros,

Dançam e bebem com tripúdio forte,

E esperam, com a boda, a cruel morte.

XIII

Gupeva triunfante na grã-taba

O infausto prisioneiro à morte guia,

E, antevendo que a vida se lhe acaba,

A mulher cada um lhe oferecia:

Trazem-lhe o peixe, as carnes, a mangaba,

Brindando-lhe o licor, que a taça enchia,

Até que quando menos se recorda,

Dois selvagens o prendem numa corda.

XIV

Soltas as mãos lhe ficam, que maneia,

Nem o tem mais que em meio da cintura

A soga de algodão, como cadeia,

Que de uma parte e de outra os assegura.

Qual leoa feroz na maura areia,

Quando o laço no ventre a tem segura,

Toda da fronte a cauda se retorce,

E ruge e vibra a garra, e o corpo torce.

XV

Muitos então da furibunda gente

Dizem-lhe injúrias mil, com mil insultos

Que ele se esforça a rebater valente,

Sem que receie os bárbaros tumultos;

Algum ali chegando ao paciente

(Que tem por coisa vil morrer inultos)

Dá-lhe um cesto de pedras recalcado,

Com que, atirando aos mais, morra vingado.

XVI

Embiara e Mexira, dois possantes

Mancebos caetés de um parto vindos,

Que Ainubá dera à luz tão semelhantes,

Como tenros na idade, e em gesto lindos,

Muitas donzelas, que os amaram dantes,

Os belos dias seus choravam findos.

Mitigando o desgosto de perdê-los

Com a intenção que tinham de comê-los.

XVII

Estes na corda têm os da Bahia,

Dispostos a morrer no torpe abuso

De celebrar com sangue o fausto dia

Das vítimas triunfais ao pátrio uso.

Embiara, que com arte a pedra envia,

Muitas no povo disparou confuso,

E, apesar dos escudos, que põe diante,

Alguns feriu da turba circunstante.

XVIII

Uma grã-pedra ao ar nas mãos levanta,

E, erguendo os braços sobre a fronte atira;

Lança por terra alguns, outros quebranta,

E esmaga com o peso o grão-Tapira.

Outras três arrojou com fúria tanta,

Que, se de atorno a gente não fugira,

Com os tiros, que o bravo lhe dispara,

Em vingança cruel no chão ficara.

XIX

Mexira noutro lado era detido

Com o duro cordão; porém, sem medo,

Ao bárbaro Piri, que o tem cingido,

Esmigalha a cabeça cum penedo.

Foge o povo com pedras rebatido;

Mas Mexira, na corda atado e quedo,

Com três pedaços de uma ingente roca

Uns derriba no chão e outros provoca.

XX

Sai então Tojucane em campo ardente,

E ao som dos seus marraques aplaudido,

Um cinto tem de plumas sobre a frente,

Manto ao ombro de pluma entretecido;

Tinto de negro todo, a cor somente

Traz natural no vulto enfurecido;

E, por meter no horror maior respeito,

Com o beiço inferior varria o peito.

XXI

A cara, peito, braços (vista horrenda!)

Traz com golpes cruéis acutilados,

Golpes com que o valor se recomenda,

Feitos da própria mão com talhos dados,

Onde, se a chaga apodreceu tremenda,

Em meio do asco e horror desfigurados,

Vendo a gente brutal que um não se dói,

Este então (que ignorância!) é o seu herói.

XXII

Desta arte Tojucane armado vinha,

Posto ao vê-lo em silêncio, em pasmo tudo;

Atira-lhe Embiara (que ainda o tinha)

Um penedo, que rompe o forte escudo:

O tacape ele então desembainha,

Que de plumas ornou com belo estudo,

E, encostando-se ousado à longa corda,

Aos dois fortes irmãos falando aborda.

XXIII

"Não sois vós (disse o bárbaro), traidores,

Os que a matar-nos com furor viestes,

E sem respeito aos míseros clamores

Os nossos tenros filhos já comestes?"

"Somos (disseram) nós; os teus furores

Sem o laço, em que agora nos prendestes,

Soubéramos domar. E assim cativo,

A ver-me solto, te comera vivo."

XXIV

"Vivo, nem morto a mim me não tocaras

Porque, se braço a braço te mediras,

Ou imóvel de espanto em pé ficaras,

Ou de um só golpe (diz) no chão caíras."

"Verias bem, se agora nos soltaras,

Como logo (responde) me fugiras,

Não queira de valente ser louvado,

Quem pretende triunfar de um desarmado."

XXV

"Esse vão pensamento melhor fora

Que o tiveras, como eu, no campo, bravo;

Mas tu (diz Tojucane) na mesma hora

Te viste combatido e foste escravo.

Como te atreves a gloriar-te agora

Com vil jactância, com soberbo gavo?

A quem de resistir falta a constância

Vão fica mais lugar para a jactância."

XXVI

Dizendo assim, na fronte a espada ingente

Deixa o fero cair com golpe horrendo,

Cai por terra Embiara ainda vivente;

Mexira morto já, porém tremendo.

Mordeu aquele o chão com fúria ardente,

E em cima o matador co pé batendo:

"Morre, soberbo, diz, e serás vasto

Para nosso troféu vingança e pasto."

XXVII

Qual se diz que a Tifeu subjuga um monte,

Tal a planta cruel Embiara oprime;

E como a cobra faz-se junto à fonte,

Toda em nós quebrantada se comprime,

Retorcendo em mil voltas cauda e fronte,

Que ergue, vibrando a língua, no ar sublime,

Tal o infeliz morrendo em voltas anda,

E o espírito exalado às sombras manda.

XXVIII

Chega às cruentas vítimas chorosa

Femínea tropa, que com dor lamenta;

E, urlando todas com a voz maviosa,

Tudo vai repetindo a plebe atenta.

Depois daquela lástima enganosa,

Qualquer junto aos cadáveres se assenta,

E vão talhando pés, cabeças, braços,

E as vítimas fazendo em mil pedaços.

XXIX

Chamam moquém as carnes, que se cobrem,

E a fogo lento sepultadas assam;

Tudo em cima com terra e rama encobrem,

Onde o fogo depois com lenha façam.

Entanto as voltam, cobrem e descobrem,

Até que do calor se lhe repassam;

Detestável empresa, que escondiam

Da indignação de Diogo, a quem temiam.

XXX

Foi avisado o herói do ato execrando

Horrível pasto de nação perversa.

E a maneira oportuna meditando

Da bárbara função deixar dispersa.

Mil fogos de artifício ia espalhando,

De horrível forma, e de invenção diversa.

Treme a vil turba, e sem que a mais se arroje,

Deixa o pasto cruel e ao mato foge.

XXXI

Confusa a infame gente do sucesso,

Do grão Caramuru temia a vista.

Foge Gupeva, de terror opresso,

Nem sabe, em que maneira ao mal resista;

Mas o novo pavor na gente impresso

Mitiga Paraguassu, que o dano avista,

Se, como teme, o povo de espantado,

O terreno deixasse abandonado.

XXXII

Jararaca entretanto conduzido

Dos bravos Caetés à taba nota,

Diligente curava o pé ferido,

E em reparar cuidava a grã-derrota.

E, havendo no conselho a liga unido,

As forças representa, os meios nota,

E nigromante crê por perda tanta

O grão-Caramuru, que o fogo encanta.

XXXIII

Já na grã-taba os bárbaros se ajuntam,

Onde contra Diogo arte se estude,

E por magos famosos, que perguntam,

Recorriam de encantos à virtude:

Os nigromantes vêem que os corpos untam,

E nos sussurros do seu canto rude

Esperam que também ao forte Diogo,

Matando privem do temido fogo.

XXXIV

Um deles, que por sábio se acredita,

Não há (disse) quem possa a ardente frágoa

Apagar no trovão, que o raio excita,

Lastimosa ocasião da nossa mágoa:

Que se antídoto ao fogo se medita

Mais natural não há que lançar-lhe água:

Dentro n'água se apaga o fogo ardente:

E este é o meio, que ocorre de presente.

XXXV

Contra as vossas canoas não se atreve

O filho do trovão, se desce ao porto;

Vos o vereis sem força em tempo breve

Sair qual já saiu das águas morto:

Ninguém há que não saiba como esteve,

Quando o encontramos naufrago no porto:

Nem usou do trovão, que espanta em terra,

Nem fez com fogo n'água a horrível guerra.

XXXVI

São n’água, terra, e mar mui diferentes

Os anhangás, que reinam divididos;

Uns, que só no ar e fogo são potentes,

Causam ventos, trovões, raios temidos;

O terremoto e pestes sobre as gentes

Movem outros na terra conhecidos:

Este porém, que ao estrangeiro acode,

N'água não poderá, se em fogo pode.

XXXVII

Parece à rude gente este discurso,

Segundo os seus princípios concludente;

E ouvido com aplauso no concurso,

Votam na execução concordemente.

Toma a guerra por tanto um novo curso,

E ao mar se envia a belicosa gente;

Nem capitão há mais, nem há pessoa,

Que não embarque em rápida canoa.

XXXVIII

Chamam canoa os nossos nesses mares

Batel de um vasto lenho construído

Que escavado no meio, por dez pares

De remos, ou de mais voa impelido;

Com tropas e petrechos militares,

Vai de impulso tão rápido movido,

Que ou fuja da batalha, ou a acometa,

Parece mais ligeiro que uma seta.

XXXIX

Concorrendo as nações do sertão junto,

Trezentas, ou mais, arma Jararaca;

E, tendo escolha, porque o povo é muito,

Deixa em terra das gentes a mais fraca.

E sendo da Bahia tão conjunto

O ilhéu de Taparica, este se ataca,

Na esperança que Diogo acudiria,

Vendo o sogro em perigo, que o regia.

XL

Repousava sem susto Taparica,

E, confiado em Diogo e na vitória,

Gozava de uma paz tranqüila e rica,

Depois que a guerra terminou com glória;

E quando a rouca inúbia arma publica,

Tão longe tinha as armas da memória,

Que, ignorando em sossego os seus perigos,

Nas mãos se foi meter dos inimigos.

XLI

Prendem o inerme chefe de improviso,

Acometendo a taba descuidada;

A chama e fumo dão infausto aviso

Ao bom Diogo da bárbara assaltada.

Nem impulso maior lhe era preciso,

Vendo a ilha dos bárbaros tomada:

Ocupa em pressa as armas e as canoas,

Sem mais que Paraguassu com cem pessoas.

XLII

Vinte bombas de pólvora tem cheias,

De que uma parte já das naus salvara;

Quatro férreos canhões, que entre as areias

Por nadadores bons do mar tirara;

Metralhas, palanquetas e cadeias,

Pistolas e fuzis, que preparara;

Canoas três de pólvora e resina,

Que lançar nas contrárias determina.

XLIII

Forma-se em meia lua a vasta armada,

Cuidando de encerrar Diogo em meio,

E com nuvem de frechas condensada

A áurea luz do sol a impedir veio.

Firme estava do herói a turba irada,

E, coalhando-se o mar de lenhos cheio,

Retumba o eco na Bahia toda

Pela gente brutal que urlava em roda.

XLIV

Até que a tiro os vê do bronze horrendo

E, sem mais esperar, dispara fogo,

Que tudo com metralha ia varrendo,

E a pique dez canoas meteu logo.

Saltam muitos de horror no mar, tremendo;

Alguns, deixando o remo, as mãos de Diogo

Com bombas ardem, que feroz lhe lança,

Outros a espada de vizinho alcança.

XLV

Confusas entre si vão flutuando

As canoas, que a gente não regia,

E um vai sob'outras embarrando

Na desordem que todas confundia.

As três incendiárias arrojando,

Um dilúvio de fogo n’água ardia,

Com tal fumaça nas ardentes frágoas,

Que, cobrindo-se o ar, fervem as águas.

XLVI

Qual, se na selva densa o fogo ateia,

Em colunas de fumo voa a chama,

E a labareda, que pelo ar ondeia,

Traspassando se vai de rama em rama,

Tal na baía de canoas cheia

Um dilúvio de fogo se derrama;

E o bárbaro, de horror, de espanto e mágoa,

Foge a morte do fogo e escolhe a d’água.

XLVII

Jararaca entretanto em terra estava,

Donde prendera o incauto Taparica,

E raivoso das praias observava

Toda a frota naval, que em cinzas fica.

Foge dispersa a tropa que levava,

E, logo que a vitória se publica,

Toda a ilha, que as armas arrebata,

O tímido Caeté subjuga, ou mata.

XLVIII

Nem já dos inimigos se descobre

Uma canoa só no lago ingente,

E o mar de mil cadáveres se cobre,

Sem que saiba aonde fuja a infeliz gente,

Que Gupeva entretanto a praia encobre

Embaraçando a fuga ao continente;

Grande parte desde a água o braço estende

E a liberdade com a vida rende.

XLIX

Não assim Jararaca, que na praia

Põe por escudo o infausto Taparica;

E ameaça matá-lo, quando saia

Em terra Diogo, que suspenso fica.

Vê o transe a filha e sobre as mãos desmaia

Do caro esposo, e pelo pai suplica;

E vê-se Diogo em lance embaraçado,

Sem saber como salve o desgraçado.

L

Atirar-lhe quisera; mas duvida,

Na intenção de matá-lo vacilante,

Vendo do sogro ameaçada a vida,

E quase sem alento a esposa amante:

Três vezes pôs a mira dirigida,

Três vezes se deteve a mão constante;

E em terra e mar a um tempo a ação retarda

Jararaca ao bastão, ele à espingarda.

LI

"Que mais espero (diz)? feri-lo é incerto;

Mas é claro na mão desse inimigo

Que em qualquer caso enfim o dano é certo,

E cresce na tardança o seu perigo."

Disse e toma por alvo descoberto

A fronte do contrário, e neste artigo

Dispara o tiro e a bala lhe atravessa

De uma parte à outra parte da cabeça.

LII

Cai Jararaca em terra ao mesmo instante,

Qual penhasco que do alto se derroca,

Quando o raio, que o arroja fulminante,

Desde clima o arrancou da excelsa roca.

Num rio a terra se banhou fumante

Do negro sangue, donde pondo a boca

Morde raivoso a areia em que caíra,

E o torpe alento com a vida expira.

LIII

Já neste tempo se encontrava amigo

Taparica e Diogo em terno abraço,

Vendo por terra o pérfido inimigo,

Que, temendo, ocupava um vasto espaço.

Paraguassu, que aflita do perigo,

Sem sentido ficou no horrível passo,

Torna a si do desmaio e vê piedoso

O pai, que a tem nos braços, com o esposo.

LIV

Alegre vem do oposto continente

Em canoas Gupeva e Taparica,

Congratular-se com o herói valente

Que, morto Jararaca, em calma fica.

Pasma de ver o estrago a insana gente,

Que os arcos abatendo a paz suplica,

E, respeitando a superior potência,

Compensavam a paz com a obediência.

LV

Chegaram do sertão dez mensageiros

Em nome das nações que em guerra andavam,

Confirmando com pactos verdadeiros

A inteira sujeição que ao luso davam.

Vêm entre eles os príncipes primeiros,

E, com os ritos que na pátria usavam,

Príncipe aclamam com festivo modo

O filho do trovão do sertão todo.

LVI

Nem duvidou Diogo, imaginando

Quanto domar importa a gente bruta,

Aceitar das nações o excelso mando,

E consigo prudente os fins reputa.

Ouve-se em nome seu publico bando,

Que a bárbara caterva humilde escuta,

Em que todo o homicídio se proíbe,

E com pena de morte a culpa inibe.

LVII

Julga, porém, ao ver inveterada

A bárbara paixão na gente cega,

Que a grave pena ao crime decretada

Convém dissimular, se ao caso chega.

A tudo a gente bárbara humilhada

Só na gula cruel a emenda nega,

Por bárbara vingança carniceira,

Que tanto pode a educação primeira.

LVIII

Não tardou logo a ocasião de vê-lo,

Porque, apenas deixara a companhia,

O próprio Taparica sem temê-lo

Ao convite cruel se prevenia.

Bambu, que fora ao ponto de prendê-lo,

Quem lhe lançara as mãos com ousadia,

Preso em canoa o régulo conserva,

Por pasto infando à bárbara caterva.

LIX

Estava o desditoso encadeado,

E exposto a mil insetos que o mordiam;

Nem se lhe via o corpo ensangüentado,

Que todos os maribondos lhe cobriam. (1)

Corria o negro sangue derramado

Das cruéis picaduras que lhe abriam;

E ele, imóvel entanto em tosco assento,

Parecia insensível no tormento.

LX

Vendo Diogo o infeliz quanto padece

No modo de penar mais desumano,

Maior a tolerância lhe parece

Do que possa caber num peito humano.

E, como autor do crime reconhece

Do cruel sogro o coração tirano,

Oferece a Bambu, que a morte ameaça,

Socorro amigo na cruel desgraça.

LXI

"Perdes comigo o tempo (disse o fero); (2)

Ao que vês, e ainda a mais vivo disposto.

A liberdade, que me dás, não quero,

E da dor, que tolero, faço gosto.

Assim vingar-me do inimigo espero."

Disse; e, sem se mudar do antigo posto,

As picadas cruéis tão firme atura,

Como se penha fora, ou rocha dura.

LXII

"Se o motivo, diz Diogo, por que temes,

É porque escravo padecer receias,

E tens por menos mal este, em que gemes,

Do que uma vida em míseras cadeias,

Depõe o susto, que sem causa tremes;

Penhor te posso dar, por onde creias,

Depondo a obstinação do torpe medo,

Que a vida e liberdade te concedo."

LXIII

Aqui da fronte o bárbaro desvia

Dos insetos coa mão a espessa banda;

E a Diogo, que assim se condoía,

Um sorriso em resposta alegre manda.

"De que te admiras tu? Que serviria

Dar ao vil corpo condição mais branda?

Corpo meu não é já; se anda comigo,

Ele é corpo em verdade do inimigo.

LXIV

O espírito, a razão, o pensamento

Sou eu e nada mais; a carne imunda

Forma-se cada dia do alimento,

E faz a nutrição, que se confunda.

Vês tu a carne aqui, que mal sustento?

Não a reputes minha: só se funda

Na que tenho comido aos adversários;

Donde minha não é, mas dos contrários.

LXV

Da carne me pastei continuamente

De seus filhos e pai; dela é composto

Este corpo, que animo de presente.

Por isso dos tormentos faço gosto.

E, quando maior pena a carne sente,

Então mais me consolo, do suposto

Do me ver no inimigo bem vingado,

Neste corpo, que é seu, tão mal tratado."

LXVI

Impossível parece ao sábio herói

O que vê e o que escuta, e que assim possa,

Quando a carne mortal tanto se dói,

Vencer-se a dor da fantasia nossa.

Magoado interiormente se condói

De ver que no infeliz nada faz mossa,

Mostrando na brutal rara constância

Com tal valor tão bárbara ignorância.

LXVIII

Tinham disposto entanto no terreiro

As nações do sertão pompa festiva,

Criando Diogo principal primeiro

Com aplauso geral da comitiva.

Vê-se ornado de plumas o guerreiro;

E como em triunfo a multidão cativa,

E sobre os mais num trono levantado

Cingem de pluma o vencedor c'roado.

LXVIII

A roda, como em círculo, prostrados,

Sessenta principais das nações feras

Em nome de seus povos humilhados,

Submissões rendem com temor sinceras:

Tujucupapo, estando os mais calados,

"Grão-filho do trovão (disse) que imperas

Em terra e mar com glória combatendo,

Tudo domaste com o raio horrendo.

LXIX

Não te cedera, não, dos nossos peitos

A varonil constância em guerra humana;

Nem da morte tememos os efeitos,

Se a contenda não fora sobre-humana;

Rendemos-te fiéis nossos respeitos,

Depois que o teu valor nos desengana

Que em teus combates todo o céu te assiste;

E a quem socorre o céu quem lhe resiste?

LXX

As nações do sertão, já convencidas,

Põem a teus pés os arcos e as espadas.

Suspende o raio teu; protege as vidas

Desde hoje ao teu império sujeitadas.

E, se tens, como creio, submetidas

As procelas, as chuvas e as trovoadas,

Não espantes com fogo a humilde gente,

Mas faze-nos gozar da paz clemente.

LXXI

A teu comando estão sem replicar-te

Os povos deste vasto continente;

E farás com teu nome em qualquer parte

Que te obedeça a valorosa gente.

Faze com o favor que haja do amar-te,

Como a tens com terror feito obediente;

Que, se troveja o céu na esfera escura,

A luz manda também formosa e pura."

LXXII

"Não foi acaso (disse o herói prudente,

Respondendo ao discurso), foi destino

Querer o grão-Tupá que a vossa gente

A mão conheça do poder divino.

Do céu, que sobre vós brilha luzente,

Se receberdes o sagrado ensino,

Livres com glória do tirano averno

Sobre ele reinareis num sólio eterno.

LXXIII

Porém, por serdes na ignorância rude,

Incapazes de ouvir o mais entanto,

Buscai com razão maior virtude,

Implorando o favor do trono santo.

E, quando a vossa fé pedi-lo estude,

Vereis da antiga serpe no quebranto

Florescer nesta pátria de improviso

Uma imagem do ameno paraíso."

LXXIV

Disse o herói generoso; a turba imensa,

Em sinal de prazer com grata dança,

Vão em fileiras com a mão extensa,

Fazendo com os pés vária mudança:

Uma perna bailando tem suspensa,

E turma sobre turma em modo avança,

Que idéia dão dos bélicos ataques,

Retumbando entretanto os seus marraques.

LXXV

Os nigromantes, que o Brasil respeita,

Um marraque descobrem venerado;

Insígnia da nação, que ao povo aceita,

Consideram por símbolo sagrado.

O sacerdócio, como turma eleita

No ministério ao culto dedicado,

Pôs o bárbaro termo à função toda,

Bafejando nos príncipes à roda.

]

(1) Maribondos. — Espécie de vespa mordacíssima no Brasil.

(2) Disse o fero. — Um gravíssimo áulico da nossa corte me atravessou ter sucedido caso semelhante no Pará, em reinado do Fidelíssimo rei o Senhor D. José I, aonde ele era contemporaneamente ocupado em cargo distintíssimo do real serviço.

 

CANTO VI

I

Descansava no seio então Diogo,

Extinta a guerra, de uma paz dourada,

E o pavor do sulfúreo horrível fogo

Trazia a gente bárbara assombrada.

A remotas nações concorrem logo,

Desde a interna região mais apartada,

E, tendo-o do trovão por viva imagem,

Vinha todo o sertão dar-lhe homenagem.

II

Muitos deles, dos povos subjugados,

Que o efeito viram da terrível chama,

Outros vinham somente convocados

Das heróicas ações, que conta a fama;

Trazem plumas e bálsamos prezados,

E outra rude opulência, que o povo ama,

E com os dons da americana Ceres

Oferecem-lhe as filhas por mulheres.

III

Era antigo dos bárbaros costume,

Quando algum capitão foi bravo em guerra,

Ou se julgavam que o regia um nume,

Emparentá-lo aos principais da terra;

Qualquer que de nobreza então presume

Do grão-Caramuru que tudo aterra,

Procura, como nobre preminência,

Ter na sua prosápia a descendência.

IV

Tuibaé, dos Tapuias chefe antigo,

Tiapira lhe oferece celebrada;

E com a mão da filha deixa amigo

Uma ilustre aliança confirmada.

Xerenimbó trazia-lhe consigo

A formosa Moema já negada

A muitos principais, por dar-lhe esposo

Digno do trono de seus pais famoso.

V

Muitas outras donzelas brasilianas

A mão do claro Diogo pretendiam,

Ou por prendas, que notam soberanas,

Ou por grandes ações, que dele ouviam:

A todas ele deu mostras humanas

Sem a fé lhe obrigar que pretendiam;

Mas, por não ofender as brutas gentes;

Trata os pais e os irmãos como parentes.

VI

Paraguassu, porém, com fé de esposo

Parecia estimar distintamente,

Mostrando-lhe no afeto carinhoso

A sincera afeição que n'alma sente:

Amava nela o peito valoroso,

E o gênio dócil, com que à fé consente;

Amor que ocasionou, como é costume,

Em algumas inveja e noutras ciúme.

VII

Todas, à bela dama aborrecendo,

Conspiram feras em tirar-lhe a vida;

Mas ela, que o projeto alcança horrendo,

Deixar pretende a pátria aborrecida;

E, na viagem de Europa discorrendo,

Deseja renascer à melhor vida:

Impulso santo, que com justa idéia

Move Diogo a deixar aquela areia.

VIII

Agitado do vário pensamento,

Na margem se entranhou do vasto rio,

Que, invocando o Seráfico portento,

Chama de S. Francisco o Luso pio.

E, estando o sol no seu maior aumento,

Quanto sítio no ardor busca sombrio,

Numa lapa, que esconde alto mistério, (1)

Foi achar para a calma o refrigério.

IX

Por mil passo a penha milagrosa

Estende em roda o giro dilatado;

Obra da natureza prodigiosa,

Quando o globo terráqueo foi criado.

Concavidade há ali vasta, espaçosa,

Onde tinha o Criador delineado,

Com capela maior, nave e cruzeiro,

Um templo, como os nossos, verdadeiro.

X

Largo trinta e três passos se estendia

O grão-cruzeiro; a longitude da mole

Por mais de outros oitenta discorria,

Lugar que não pisara humana prole.

O prospeto exterior de pedraria,

O interior pavimento é terra mole;

De jaspe se levanta a grã-portada,

Entre torres marmóreas fabricada.

XI

Dentro vêem-se magníficas capelas,

Sustentadas de esplêndidas colunas;

Pelo teto entre nuvens giram estrelas,

E sobre o rio a um lado tem tribunas,

Que, servindo-lhe a um tempo de janelas,

Dão luz a todo o templo; e, quando lhe unas

Quantos prodígios o lugar encerra,

Maravilha maior não cobre a terra.

XII

Capela ali se vê de entalho nobre,

Obrado com desenho estranho e vário,

Onde, efigiado em mármore, se cobre

Um natural belíssimo Calvário;

Vê-se a base da cruz, mas nada sobre,

De jaspe ainda melhor que Egízio, ou Pário,

E ao lado um posto em proporção distinta,

Onde a mãe e discípulo se pinta.

XIII

Chegado Diogo a ver prodígio tanto,

Pelo estranho espetáculo suspenso,

Penetra-se no peito de horror santo,

Por não sei quê sagrado oculto senso.

Depois, rompendo num devoto pranto,

Prostrado em terra, adora o Deus imenso,

Que, quando ser ao mar e à terra dava,

O alicerce à grã-fábrica lançava.

XIV

"Eis aqui preparado (disse) o templo,

Falta a fé, falta o culto necessário;

E quanto era de Deus, feito contemplo

Tudo o que é de salvar meio ordinário.

Desta intenção parece ser exemplo

Este insigne prodígio extraordinário,

Onde parece que no templo oculto

Tem disposto o lugar e espera o culto.

XV

Quis mostrar nesta imagem porventura

Que esta gente brutal não desampara,

E que a qualquer humana criatura

O remédio da cruz justo prepara;

Que a estes do seu sangue dera a cura,

Se aos instintos, que têm, não repugnara;

Que advogada nos deu de empresa tanta,

Preparando o lugar à Virgem Santa.

XVI

Oh queira, grão-Senhor, vossa bondade

Suprir neles e em mim tanta miséria!

Pois de todo salvar tendes vontade,

Que por este sinal mostrais tão séria;

Que, se olhais para a nossa iniqüidade,

Achareis de punir tanta matéria,

Que a antiga culpa pelos seus abrolhos

A ninguém deixa justo aos vossos olhos."

XVII

Dali, sulcando o rio caudaloso,

Vai o noto recôncavo buscando,

Por ver se inchada vela o pego undoso

A rumo oriental vai navegando.

Nem temeria o pélago espaçoso

Ir na leve canoa atravessando,

Se o perigo, que imenso considera,

Pelo dano da esposa não temera.

XVIII

Ergue-se sobre o mar alto penedo,

Que uma angra à raiz tem, das naus amparo,

Onde das ramas do entrechado enredo

Causa o verde prospeto um gosto raro.

Ali, morro coberto de arvoredo

A quem passeia o mar serve de faro;

Dão-lhe nome da costa os experientes

Do glorioso apóstolo das gentes.

XIX

Aqui vê Diogo um casco, que encalhara,

Onde n'água se oculta hórrida penha,

Porque, ignorando a costa, se arrojara,

Sem que esperança de socorro tenha.

Vê, como a chusma em terra se salvara,

Que a brutal gente cativar se empenha;

E, presumindo o que era, na canoa

A defender os seus remando voa.

XX

E, temendo que cedam enganados

Ao bárbaro cruel os naufragantes,

Ou que fiquem sem armas cativados

Nas mãos desses penhascos ambulantes,

Faz-lhes sinais e deixa-os avisados,

Fazendo ver as armas rutilantes,

Da areia infinda e do cruel perigo,

E o seu socorro lhes of’rece amigo.

XXI

E, quando a tiro de canhão se via,

Fez que se ouvisse a formidável tromba,

E ao eco do tambor que lhe batia

Dispara ao tempo mesmo a horrível bomba.

Treme de espanto o bárbaro, que ouvia;

E este pasma, outro foge, aquele tomba;

E, o grão-Caramuru já divisando,

Correm todos humildes ao seu mando.

XXII

Unidos do bom Diogo à comitiva

Socorrem com presteza a vela rota,

Onde a gente das águas semi-viva

Vão leves conduzindo à praia nota.

Salvou-se-lhe a equipagem toda viva;

E, para os preparar à grã-derrota,

Faz que a bárbara gente, dando ajuda,

A aflita multidão piedosa acuda.

XXIII

Paraguassu, porém, com pio aviso

Cuida em prover de roupas e sustento,

E, quanto lhe é possível, de improviso

Restab'lece-lhe as forças co alimento,

Depois que se saciaram do preciso,

Diogo, que o caso seu recorda atento,

Logo que a turba vê contente e junta,

Donde vêm? aonde vão? quem são? pergunta.

XXIV

Um entre outros, que o Chefe parecia,

E sobre os mais da chusma dominava,

Depois de agradecer-lhe a cortesia

Na castelhana língua em que falava,

"Somos (disse) da nobre Andaluzia,

Onde o chão Hispalense o Bétis lava,

Sócios, se ouviste o nome, de Arelhano,

E desde o reino viemos Peruano.

XXV

Se a fama a vós chegou do valoroso

Domador das províncias peruanas,

E se Pizarro no orbe tão famoso

Não se ignora das gentes lusitanas,

Fomos dele mandados pelo undoso

Grão-rio, que em correntes desce insanas,

Desde a grã-cordilheira, que iminente

Aqui separa o ocaso do oriente.

XXVI

Novas ilhas buscando e novos mares,

Depois de longos dias navegamos;

Já com procelas, já com brandos ares,

Ao conhecido oceano alfim chegamos.

Os perigos, os casos singulares,

Que por mais de mil léguas toleramos,

Não contara, depois que no mar erro,

A ter o peito de aço e a voz de ferro.

XXVII

De sessenta e mais línguas diferentes

Vimos, descendo rio, em curso imenso,

Incógnitas nações, bárbaras gentes,

E um povo inumerável, vasto e denso.

Montanhas vimos, campos mil patentes,

E um terreno nas margens tão extenso,

Que poderá ele só neste hemisfério

Formar com tanto povo um vasto império.

XXVIII

Mil vezes com canoas belicosas

Combatemos no rio e mil em terra,

Perseguidos de tropas numerosas,

Que ocupavam talvez o vale e a serra.

Nem cessava nas margens perigosas

De mil bravas nações a dura guerra,

Até que, entrando nas ardentes zonas,

Chegamos à região das Amazonas.

XXIX

Discorre com furor pela ribeira

Vasto esquadrão de tropa feminina,

Que, em postura e contenho de guerreira,

Assaltar nossa frota determina.

Sobre o sexo viril, turba grosseira,

O feminino sexo ali domina,

Onde no rio, por que a fama o conte,

Recordamos o antigo Termodonte.

XXX

E já o hispano leão domado houvera

Das Amazonas o terreno infausto,

Se do clima infeliz nos não morrera

De mil fadigas Arelhano exausto.

A gente, pois, que o capitão perdera,

Não podendo esperar sucesso fausto,

Sobre este bergantim, que ali se adorna,

Ao solar pátrio, navegando, torna."

XXXI

"Não duvideis, responde o herói clemente,

De achar em mim socorro poderoso;

Que achais quem como vós do mar fremente

Aprendeu na desgraça a ser piedoso.

Tendes amiga mão, madeira e gente,

Com que o casco, que vedes ruinoso,

Reformando-se, torne do céu nosso

À desejada Espanha e Bétis vosso."

XXXII

Disse; e, ordenando a turba americana,

Assiste ao fabro na naval fadiga;

E, quanto lhe permite a força humana,

Faz que em breve o baixel seu rumo siga.

Nem se demora mais a gente hispana,

Que a convida a monção e o vento obriga:

Soltam a branca vela ao fresco vento,

E vão raspando o líquido elemento.

XXXIII

"Felizes vós, diz Diogo, afortunados,

A quem da cara pátria é concedido

Tornar hoje aos abraços desejados,

Depois de tanto tempo a ter perdido,

Enquanto eu nestes climas apartados

Me vejo de seguir-vos impedido;

Que fiar temo de tão débil lenho

Outra vida que em mais que a própria tenho."

XXXIV

Dizendo assim, com calma vê lutando

Formosa nau de gálica bandeira,

Que a terra ao parecer vinha buscando,

E a proa mete sobre a própria esteira.

Vem seguindo a canoa, e sinais dando,

Até que aborda a embarcação veleira,

E, de paz dando a mostra conhecida,

Às praias da Bahia a nau convida.

XXXV

A Gupeva entretanto e Taparica

Dava o último abraço, e à forte esposa

A intenção de levá-la significa,

A ver de Europa a região famosa.

Suspensa entre alvoroço e pena fica

Paraguassu contente, mas saudosa:

E, quanto o pranto na sentida fuga

Começava a saudade, amor lho enxuga.

XXXVI

É fama então que a multidão formosa

Das damas, que Diogo pretendiam,

Vendo avançar-se a nau na via undosa,

E que a esperança de o alcançar perdiam

Entre as ondas com ânsia furiosa,

Nadando, o esposo pelo mar seguiam,

E nem tanta água que flutua vaga,

O ardor que o peito tem, banhando apaga.

XXXVII

Copiosa multidão da nau francesa

Corre a ver o espetáculo assombrada;

E, ignorando a ocasião de estranha empresa,

Pasma da turba feminil que nada.

Uma, que às mais precede em gentileza,

Não vinha menos bela do que irada;

Era Moema, que de inveja geme,

E já vizinha à nau se apega ao leme.

XXXVIII

“— Bárbaro (a bela diz), tigre e não homem...

Porém o tigre, por cruel que brame,

Acha forças amor que enfim o domem;

Só a ti não domou, por mais que eu te ame.

Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem.

Como não consumis aquele infame?

Mas apagar tanto amor com tédio e asco...

Ah que o corisco és tu... raio... penhasco?

XXXIX

Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,

Quando eu a fé rendia ao teu engano;

Nem me ofenderas a escutar-me altivo,

Que é favor, dado a tempo, um desengano;

Porém, deixando o coração cativo,

Com fazer-te a meus rogos sempre humano,

Fugiste-me, traidor, e desta sorte

Paga meu fino amor tão crua morte?

XL

Tão dura ingratidão menos sentira

E esse fado cruel doce me fora,

Se a meu despeito triunfar não vira

Essa indigna, essa infame, essa traidora.

Por serva, por escrava, te seguira.

Se não temera de chamar senhora

A vil Paraguassu, que, sem que o creia,

Sobre ser-me inferior, é néscia e feia.

XLI

Enfim, tens coração de ver-me aflita,

Flutuar moribunda entre estas ondas;

Nem o passado amor teu peito incita

A um ai somente com que aos meus respondas!

Bárbaro, se esta fé teu peito irrita,

(Disse, vendo-o fugir), ah não te escondas!

Dispara sobre mim teu cruel raio..."

E indo a dizer o mais, cai num desmaio.

XLII

Perde o lume dos olhos, pasma e treme,

Pálida a cor, o aspecto moribundo;

Com mão já sem vigor, soltando o leme,

Entre as salsas escumas desce ao fundo.

Mas na onda do mar, que irado freme,

Tornando a aparecer desde o profundo,

- Ah! Diogo cruel! - disse com mágoa,

E, sem mais vista ser, sorveu-se n’água.

XLIII

Choraram da Bahia as ninfas belas,

Que, nadando, a Moema acompanhavam;

E, vendo que sem dor navegam delas,

A branca praia com furor tornavam.

Nem pode o claro herói sem pena vê-las,

Com tantas provas que de amor lhe davam;

Nem mais lhe lembra o nome de Moema,

Sem que ou amante a chore, ou grato gema.

XLIV

Voava entanto a nau na azul corrente,

Impelida de um zéfiro sereno,

E do brilhante mar o espaço ingente

Um campo parecia igual e ameno.

Encrespava-se a onda docemente,

Qual aura leve, quando move o feno,

E, como o prado ameno ris costuma,

Imitava as boninas com a escuma.

XLV

Du-Plessis, que os franceses governava,

Em uma noite clara à popa estando,

Os casos de Diogo, que escutava,

Admira no naufrágio memorando.

Depois do herói prudente perguntava

Quem achará o Brasil, o como e quando

Ganhara no recôndito hemisfério

Tanto tesouro o lusitano império?

XLVI

"Dois monarcas (responde o lusitano)

Já sabes que no ocaso e no oriente

Novos mundos buscaram pelo oceano,

Depois de haver domado a Líbia ardente;

E que onde não chegou grego, ou romano,

Passeia o forte Hispano e a lusa gente,

Que, instruídos na náutica com arte,

Descobriram do mundo outra grã parte.

XLVII

Do Tejo ao China o Português impera,

De um pólo ao outro o castelhano voa,

E os dois extremos da redonda esfera

Dependem de Sevilha e de Lisboa. (2)

Mas, depois que Colon sinais trouxera

(Colon, de quem no mundo a fama voa)

Deste novo admirável continente,

Discorda com Castela o luso ardente.

XLVIII

Já se dispunha a guerra sanguinosa,

Porém o comum pai aos dois intima

Arbítrio na contenda duvidosa,

Que a parte competente aos reis estima.

Desde Roma Alexandre imperiosa,

Deixando ambos em paz à empresa anima,

E uma linha lançando ao céu profundo,

Por Fernando e João reparte o mundo.

XLIX

Na vasta divisão que ao luso veio,

O precioso Brasil contido fica,

País de gentes e prodígios cheio,

Da América feliz porção mais rica.

Aqui do vasto oceano no meio

Por horrível tormenta a proa aplica

O ilustre Cabral com fausto acaso,

Sobre graus dezesseis do nosso ocaso.

L

Da nova região, que atento observa,

Admira o clima doce, o campo ameno,

E, entre arvoredo imenso, a fértil erva

Na viçosa extensão do áureo terreno.

Coberta a praia está de grã-caterva

De incógnita nação, que com o aceno,

Porque a língua ignorava, à paz convida,

Erguendo lhe o troféu do autor da vida.

LI

Era o tempo em que alegre ressuscita

A verde planta, que murchou no inverno,

E quando a solar meta o tempo excita,

Em que o rei triunfou da morte eterno.

Tão sagrada memória a frota incita

A celebrar ao vencedor do inferno

O sacrifício, dando a fé venera,

A paixão, que em tal tempo sucedera.

LII

Em frondosa ramada o lusitano

Um altar fabricou no prado extenso,

Donde assista ao mistério soberano

Da lusitana esquadra o povo imenso.

Ao rei triunfante do infernal tirano

Odorífero fuma o sacro incenso,

E a vítima do céu, que a paz indica

A gente e nova terra santifica.

LIII

Notar o americano ali contende

Do sacrossanto altar o ato sublime;

E, tanto a simples gente o aceno entende,

Que parece que a ação por santa estime.

Algum, que olhava ao celebrante, emprende

O gesto arremedar, que orando exprime,

E as mãos une e levanta, e talvez solta,

E quando o vê voltar também se volta.

LIV

Como as nossas ações talvez espia

O peloso animal, que o mato hospeda

E quanto vê fazer, como à porfia,

Tudo posto a observar, logo arremeda,

Tal o gentio simples parecia,

Quem nem um pé, nem passo dali arreda,

E, ao santo sacrifício atento e mudo,

O que aos mais viu fazer, fazia-o tudo.

LV

Aqui, depois que às turbas eloqüente

Dita o sacro orador pelo conceito,

E a fé dispensa no ânimo valente

Do nobre povo a propagá-la eleito,

Participa da veia a cristã gente,

E o dom recebem com fiel respeito;

E é fama que Cabral que os convocara,

Montando sobre um alto, assim falara:

LVI

"Gloriosa nação, que a terra vasta

Vais a livrar do paganismo imundo,

A quem esse orbe antigo já não basta,

Nem a imensa extensão do mar profundo!

Neste oculto país, que o mar afasta,

Tem teu zelo por campo um novo mundo;

E quando tanta fé seus termos sonde,

Outro mundo acharás, se outro se esconde.

LVII

Oh profundo conselho! Abismo imenso

Do poder e saber do Onipotente!

Que estivesse escondida no orbe extenso

Tanta parte do mundo à sábia gente!

Cinqüenta e cinco séculos sem senso

Das nações deste vasto continente,

E em tanta indagação dos sábios feita,

Não cair-nos na mente nem suspeita!

LVIII

Mas combine-se o dia, o tempo, a hora,

Em que a alta providência aqui nos guia,

Quando à ignorância Cristo o perdão ora,

Quando morre na cruz, no próprio dia:

Na bandeira do mar triunfadora

Tremulamos as chagas com fé pia,

E nelas quis à grei, que em sombras langue,

Vir neste dia a oferecer seu sangue.

LIX

Goza de tanto bem, terra bendita.

E da cruz do Senhor teu nome seja!

E quanto à luz mais tarde te visita,

Tanto mais abundante em ti se veja!

Terra de Santa Cruz tu sejas dita,

Maduro fruto da Paixão na igreja,

Da fé renovo pelo fruto nobre,

Que o dia nos mostrou, que te descobre."

LX

Dizendo assim, ajoelha, e cruz entanto

Sublime num outeiro se coloca;

O exército formado ao sinal santo

Se prostra humilde, pondo em terra a boca.

Pasma o gentio, e admira com espanto

A melodia com que céu se invoca,

Hino entoando à cruz pios cantores,

E respondendo as trompas e os tambores.

LXI

Terra, porém depois chamou a gente

Do Brasil, não da Cruz; porque, atraída

Doutro lenho nas tintas excelente,

Se lembre menos dos que o foi da vida.

Assim ama o mortal o bem presente,

Assim o nome esquece, que o convida

Aos interesses da futura glória,

Aos bens atento só da transitória.

LXII

Observa o bom Cabral todo o prospeto

Da imensa costa; e pelo clima puro,

Pelo abordo tranqüilo e mar quieto,

Chama o seio em que entrou Porto Seguro.

E, olhando com saudade o doce objeto,

Do seu destino, se lamenta escuro,

Que pela empresa a que mandado fora

Não permite na armada outra demora.

LXIII

Manda depois ao luso dominante

Um aviso do clima descoberto;

Nem tarda Manuel, então reinante

A enviar um cosmógrafo, que experto

Da escola fora que o famoso infante (3)

Para a náutica ciência tinha aberto,

E Américo dispõe que o Brasil parta,

De quem deu nome ao continente a carta.

LXIV

E por ter quem aos nossos interprete

Do ignorado idioma a escura sorte,

Alguns em terra condenados mete,

Devidos por delito à crua morte;

A vida como prêmio lhes promete,

Quando com peito se atravessem forte

A esperar no sertão nova viagem,

Aprendendo os rodeios da linguagem.

LXV

Com acenos depois à gente bruta

Os seus, que lhe deixava, recomenda,

E no claro perigo, em que os reputa,

Arma lhe deixa que na guerra ofenda.

Dá-lhe a espécie, que ali bem se comuta,

Em que possam tratar por compra e venda:

Espelhos, cascavéis, anzóis, cutelos,

Campainhas, fuzis, serra, martelos.

LXVI

Nem se demora mais a forte armada;

E, convidando o vento, estende a vela.

Corre a bárbara gente amontoada

Ao embarque das naus da tropa bela;

E, ao que pode entender-se, magoada

Por saudade, que tem de mais não vê-la,

Com acenos e voz enternecida

Faziam a seu modo a despedida.

LXVII

Mais saudosos os tristes desterrados,

Correndo imenso risco a língua aprendem,

Recebendo alimentos comutados

Pelas espécies que ao gentio vendem;

Talvez os têm coa cítara encantados,

Talvez com cascavéis todos suspendem;

Mas o objeto que a vista mais lhe assombra

É ver dentro do espelho a própria sombra:

LXVIII

Extático qualquer notando admira

Dentro ao Cristal a horrível cara;

Pergunta-lhe quem é, como se ouvira,

E, crendo estar no inverso o que enxergara,

De uma parte a outra parte o espelho vira

E, não topando o vulto na luz clara,

Tal há que o vidro quebra, por ver dentro

Se a imagem acha que observou no centro.

LXIX

Mas, enquanto estes erram vagabundos,

Américo Vespucci e o forte Coelho

A longa costa e os seios mais profundos

Demarcavam no náutico conselho;

Descobridor também dos novos mundos

Foi Jacques, na marinha experto e velho,

De quem já demarcado em carta ouvimos

Esse ameno recôncavo que vimos.

LXX

Eu depois destes na ocasião presente,

Quando o vasto sertão nos encobria,

Descobri, pondo em fuga a bruta gente,

O recôncavo interno da Bahia:

Notei na vasta terra a turba ingente

Que mais Europa toda não teria,

Se, da grã-cordilheira ao mar baixando,

Desde o Prata ao Pará se for contando.

LXXI

Dá principio na América opulenta

Às províncias do império lusitano

O Grã-Pará, que um mar nos representa,

Êmulo em meio à terra do oceano;

Foi descoberto já (como se intenta),

Por ordem de Pizarro, de Arelhano,

País que a linha equinocial tem dentro,

Onde a tórrida zona estende o centro.

LXXII

Em nove léguas só de comprimento,

Vinte seis de circuito, se espraia

No vasto Maranhão, de água opulento,

Uma ilha bela que se estende à praia;

Regam-lhe quinze rios o áureo assento,

E um breve estreito, que lhe forma a raia,

Pode passar por istmo, que a encadeia

À terra firme por mui breve areia.

LXXIII

O Ceará depois, província vasta,

Sem portos e comércio, jaz inculta.

Gentio imenso, que em seus campos pasta,

Mais fero que outros o estrangeiro insulta,

Com violento curso ao mar se arrasta

De um lago do sertão, de que resulta,

Rio, onde pescam nas profundas minas

As brasílicas pérolas mais finas.

LXXIV

Da fértil Paraíba não ocorre

Que informe a gente vossa, sendo empresa

Do comércio francês, que ali concorre

A lenhos carregar que a Europa presa.

Não mui longe da costa, que ali corre,

Uma ilha vedes de menor grandeza,

Que amena, fértil, rica, e povoada,

É de Itamaracá de nós chamada.

LXXV

A oito graus do equinócio se dilata

Pernambuco, província deliciosa,

A pingue caça, a pesca, a fruta grata,

A madeira entre as outras mais preciosa.

O prospeto, que os olhos arrebata

Na verdura das árvores frondosa,

Faz que o erro se escuse a meu aviso

De crer que fora um dia o paraíso.

LXXVI

Sergipe, então del-rei, logo o terreno

De que viste a beleza e perspectiva;

Nem cuido que outro visses mais ameno,

Nem donde com mais gosto a gente viva.

Clima saudável, céu sempre sereno,

Mitigada na névoa a calma ativa;

Palmas, mangues, mil plantas na espessura,

Não há depois do céu mais formosura.

LXXVII

A quinze graus do sul, na foz extensa

De um vasto rio, por ilhéus cortado,

Outra província de cultura imensa

Tem dos próprios ilhéus nome tomado:

Depois Porto Seguro, a quem compensa

O espaço da província limitado,

Outra de âmbito vasto, que se assoma,

E do Espírito Santo o nome toma.

LXXVIII

Niterói, dos tamoios habitada,

Por largas terras seu domínio estende,

Famosa região pela enseada

Que uma grã-barra dentro em si comprende.

Esta praia dos vossos freqüentada,

Que pomo de discórdia entre nós pende,

Custará, se pressago não me engano,

Muito sangue ao francês e ao lusitano.

LXXIX

S. Vicente e S. Paulo os nomes deram

Às extremas províncias que ocupamos;

Bem que ao Rio da Prata se estenderam

As que com próprio marco assinalamos,

E, por memória de que nossos eram,

De Marco o nome no lugar deixamos,

Povoação que aos vindouros significa

Onde o termo espanhol e o luso fica.

(1) Lapa. — Esta é a grande igreja da Lapa, em que parece que a natureza preparou à graça um admirável edifício. Veja-se

Sebastião da Rocha Pita.

(2) Sevilha. — Então corte de Espanha.

(3) Do famoso infante. — A escola náutica e matemática, fundada em Sagres pelo senhor Infante D. Henrique, deu os últimos lumes a Colon, Américo Vespúcio, e outros cosmógrafos estranhos, que em nenhuma outra região da terra podiam achar estudos àquele tempo tão célebres como os de Portugal.

CANTO VII

I

Era o tempo em que o sol na vasta esfera

O claro dia com a noite iguala,

E o velho outono, que o calor modera,

De seus pâmpanos tece a verde gala;

E quando todo monte Baco altera,

E os capazes tonéis na adega abala,

Tocava a franca nau do claro Sena

Na deliciosa foz a praia amena.

II

Na grã-Lutécia, capital do estado,

A ligeira falua dava fundo,

E esse orbe na cidade abreviado

Enchia Diogo de um prazer jocundo;

Templos, torres, palácios, casas, prados,

O famoso Ateneu mestre do mundo,

A corte mais augusta, que se avista,

Enche-lhe o coração e assombra a vista.

III

Paraguassu, porém, que jamais vira

Espetáculo igual, suspensa pára:

Nem fala, nem se volta, nem respira,

Imóvel a pestana e fixa a cara

E cheia a fantasia do que admira,

Causa lhe tanto pasmo a visão rara,

Que estúpida parece ter perdido

O discurso, a memória, a voz e o ouvido.

IV

Qual pende o terno infante ao colo da ama,

Se um novo e belo objeto tem presente,

Que nem a doce mãe, que ao peito o chama,

Nem os mimos do pai pasmado sente,

Toda alma no que vê fixo derrama,

E só parece pelo olhar vivente,

Não foi da americana o ar diverso,

Vendo em Paris a suma do universo.

V

Por fama que se ouviu da novidade,

A admirar o espetáculo se ajunta

Curiosa do sucesso a grã-cidade,

E um se admira, outro o conta, algum pergunta.

Cresce o vago rumor sobre a verdade;

E a plebe, que a Diogo acode junta,

Dele e da esposa divulgada tinha

Que era o rei do Brasil e ela a rainha.

VI

E já avistavam do palácio augusto

Em bela perspectiva o régio espaço,

E o átrio vendo de troféus onusto,

Entram do franco rei no excelso paço.

Cinge as portas exército robusto,

Brilhante guarda, de que o invicto braço

Ao lado sempre da real pessoa,

Sustenta as lises e defende a cr’oa.

VII

Era ali cristianíssimo reinante

Entre os franceses o segundo Henrique,

Meta então do germano fulminante,

Que opôs de Carlos às vitórias dique:

Ortodoxo monarca, da fé amante,

Que faz que em toda a França imóvel fique

O antigo culto e religião paterna,

Que invadiu de Calvino a fúria averna.

VIII

Senta se ao régio lado a grã-princesa,

Formosa Lis, que do Arno florentino

Trouxe à França um tesouro de beleza,

E outro maior no engenho peregrino:

Formoso par, que a sábia natureza

Não sem instinto conjugou divino;

Por que, roubando Henrique a dura morte,

Sustente França Catarina a forte.

IX

Ao trono cristianíssimo prostrado,

A régia mão dos dois monarcas beija

O bom Diogo, tendo a esposa ao lado,

E faz que atenta toda a corte esteja;

E, havendo por três vezes humilhado,

A fronte aos reis, que respeitar deseja,

É fama que com gesto reverente

Falara deste modo ao rei potente:

X

"Tendes a vossos pés, Sire, invocando

No trono da grandeza a majestade,

Estes dois peregrinos, que, sulcando

Do poderoso mar a imensidade,

No império, que regeis com sábio mando,

Buscam asilo na real piedade;

E a vós e ao vosso reino se dirigem,

Donde tem Portugal o nome e a origem.

XI

O Brasil, Sire, infunde-me a confiança

Que ali renasça o português império,

Que, estendendo-se ao Cabo da Esperança,

Tem descoberto ao mundo outro hemisfério.

Tempo virá, se o vaticínio o alcança,

Que o cadente esplendor do nome hespério

O século, em que está, recobre de ouro,

E lhe cinja o Brasil mais nobre louro.

XII

E tu, que ao luso reino um germe augusto

No grão-Burgundo a propagar mandaste,

Contempla, ó França heróica, o império justo

Como ramo do teu, que ali plantaste;

E, se o inculto Brasil, se o Cafre adusto

Por teus famosos netos subjugaste,

Admite ao trono do Solar primeiro

Este teu não indigno aventureiro.

XIII

E esta, que ao lado meu teu cetro beija,

Princesa do Brasil, que um tempo fora,

No seio da cristã piedosa Igreja,

Como mãe pia regenera agora.

É bem que a mãe primeira o Brasil veja,

Donde a gente nasceu, que lhe é senhora;

E, quando Lusitânia lhe é rainha,

Tome o Brasil a França por madrinha."

XIV

Disse o herói generoso, e o rei potente,

Recordando os anais de antiga história,

Com vista majestosa, mas clemente,

Deu sinal de agradar-lhe esta memória.

Com sussurro entretanto a áulica gente

Celebra, como própria, a lusa glória;

E, impondo-lhe silêncio alto respeito,

Respondem com os olhos e co peito.

XV

Mongoméry, que serve na assembléia

De intérprete do rei, falou benigno,

Conforme na resposta à justa idéia,

De que o bom Diogo se mostrou tão digno,

Nem vendo a Lísia de conquistas cheia

Lhe inspira o impulso da ambição maligno,

A invejar-lhe já mais troféus tamanhos,

Que em prole sua não reputa estranhos.

XVI

"Ide, disse a rainha, ó par ditoso,

Que o banho santo, donde a culpa amara

Se apague nesse peito generoso,

Comigo a França apadrinhar prepara.

E, quando o sol seu curso luminoso

Três vezes repetir na esfera clara,

Será das nódoas do tartáreo abismo

Lavada a bela dama no batismo."

XVII

Era o dia em que é fama que o homem feito

De terra foi na estátua preciosa,

Em que Deus lhe infundira no seu peito

Do soberano ser cópia formosa.

Dia do nosso rito ao culto eleito

De Simão e Tadeu, quando formosa

Entrou Paraguassu com feliz sorte

No banho santo, rodeando-a a corte.

XVIII

À roda o real clero e grão-Jerarca

Forma em meio à capela a augusta linha;

Entre os pares seguia o bom monarca,

E ao lado da neófita a rainha.

Vê-se cópia de lumes nada parca,

E a turba imensa que das guardas vinha,

E, dando o nome a augusta à nobre dama,

Põe-lhe o seu próprio e Catarina a chama.

XIX

Banhada a formosíssima donzela

No santo Crisma, que os cristãos confirma,

Os desposórios na real capela

Com o valente Diogo amante firma.

Catarina Alves se nomeia a bela,

De quem a glória no troféu se afirma, (1)

Com que a Bahia, que lhe foi senhora,

Noutro tempo, a confessa, e fundadora.

XX

Prepara-se um banquete com grandeza,

Em que a cópia compita coa elegância,

E aos dois consortes se dispõe a mesa

No magnífico paço em régia estância.

Nem se dedigna a Soberana Alteza,

Depois de os regalar com abundância,

De dar rainha e rei, de ouvir curiosos,

Uma audiência privada aos dois esposos.

XXI

"Depois (disse o monarca) que informado

De meus ministros tenho a história ouvido,

Como foste das ondas agitado,

Como da gente bárbara temido,

Sabendo que os sertões tens visitado,

E o centro do Brasil reconhecido,

Quero das terras, dos viventes, plantas,

Que a história contes de províncias tantas."

XXII

"Mandas-me, rei augusto, que te exponha

(Diz cheio de respeito o herói prudente),

E aos olhos teus em um compêndio ponha

A história natural da oculta gente;

Se esperas de mim, Sire, que componha

Exata narração de cópia ingente,

Empresa tanta é, quando obedeça,

Que faz que o tempo falte e a voz faleça.

XXIII

Mil e cinqüenta e seis léguas de costa,

De vales e arvoredos revestida,

Tem a terra brasílica composta

De montes de grandeza desmedida.

Os Guararapes Borborema posta

Sobre as nuvens na cima recrescida,

A serra de Aimorés, que ao pólo é raia,

As de Ibo-ti-catu e Itatiaia.

XXIV

Nos vastos rios e altas alagoas

Alares dentro das terras representa;

Coberto o Grão-Pará de mil canoas,

Tem na espantosa foz léguas oitenta.

Por dezessete se deságua boas

O vasto Maranhão; léguas quarenta

O Jaguaribe dista; outro se engrossa

De S. Francisco, com que o mar se adoça.

XXV

O Sergipe, o real de licor puro,

Que com vinte o sertão regando correm,

Santa Cruz, que no porto entra seguro,

Depois de trinta, que no mar concorrem;

Logo o das Contas, o Taigipe impuro,

Que, abrindo a vasta foz, no oceano morrem.

O Rio Doce, a Cananéia, a Prata,

E outros cinqüenta mais, com que arremata.

XXVI

O mais rico e importante vegetável

É a doce cana, donde o açúcar brota,

Em pouco às nossas canas comparável;

Mas nas do milho proporção se nota:

Com manobra expedita e praticável,

Espremido em moenda, o suco bota,

Que acaso a antiguidade imaginava,

Quando o néctar e ambrósia celebrava.

XXVII

Outra planta de muitos desejada,

Por fragrância que o olfato ativa sente,

Erva santa dos nossos foi chamada,

Mas tabaco depois da espana gente,

Pelo franco Nicot manipulada,

Expele a bile, e o cérebro cadente

Socorre em modo tal, que em quem o tome

Parece o impulso de o tomar que é fome.

XXVIII

É sustento comum raiz presada,

Donde se extrai com arte útil farinha,

Que, saudável ao corpo, ao gosto agrada,

E por delícia dos Brasis se tinha.

Depois que em bolandeiras foi ralada, (2)

No Tapiti se espreme e se convinha;

Fazem a puba então e a tapioca,

Que é todo o mimo e flor da mandioca.

XXIX

Chama o agricultor raiz gostosa

Aipi por nome, e em gosto se parece

Com a mole castanha saborosa,

De que tira o país vário interesse,

Ótimo arroz em cópia prodigiosa

Sem cultura nos campos aparece,

No Pará, Cuiabá, por modo feito,

Que iguala na bondade o mais perfeito.

XXX

Ervilha, feijão, favas, milho e trigo,

Tudo a terra produz, se se transplanta;

Fruta também, o pomo, a pera, o figo

Com bífera colheita e em cópia tanta,

Que mais que no país que o dera antigo

No Brasil frutifica qualquer planta;

Assim nos deu a Pérsia e Líbia ardente

Os que a nós transplantamos de outra gente.

XXXI

Nas comestíveis ervas, é louvada

O quiabo, o jiló, os maxixeres,

A maniçoba peitoral presada,

A taioba agradável nos comeres,

O palmito de folha delicada,

E outras mil ervas, que, se usar quiseres,

Acharás na opulenta natureza

Sempre com mimo preparada a mesa.

XXXII

Sensível chama-se erva pudibunda,

Que, quando a mão chegando, alguém lhe ponha,

Parece que do tato se confunda

E que fuja o que o toca por vergonha.

Nem torna a si da confusão profunda,

Quando ausente o agressor se lhe não ponha,

Documento à alma casta, que lhe indica

Que quem cauta não foi nunca é pudica.

XXXIII

De ervas medicinais cópia tão rara

Tem no mato o Brasil e na campina,

Que quem toda a virtude lhe explorara

Por demais recorrera a Medicina.

Nasce a gelapa ali, a sene amara,

O filopódio, a malva, o pau da China,

A caroba, a capeba, e mil que agora

Conhece a bruta gente e a nossa ignora.

XXXIV

Tem mimosos legumes, que não cedem

Aos que usamos na Europa mais presados:

Gingibre, gergelim, que os mais excedem,

Mendubim, mangaló, que usam guisados;

Alguns medicinais, com que despedem

Do peito estilicídios radicados;

Tem o cará, o inhame, e em cópia grata

Mangarás, mangaritos e batata.

XXXV

Das flores naturais pelo ar brilhante

É com causa entre as mais rainha a rosa,

Branca saindo a aurora rutilante,

E ao meio-dia tinta em cor lustrosa;

Porém, crescendo a chama rutilante,

É purpúrea de tarde a cor formosa;

Maravilha que a Clície competira,

Vendo que muda a cor, quando o sol gira.

XXXVI

Outra engraçada flor, que em ramos pende

(Chamam de S. João), por bela passa

Mais que quantas o prado ali comprende,

Seja na bela cor, seja na graça:

Entre a copada rama, que se estende

Em vistosa aparência, a flor se enlaça

Dando a ver por diante e nas espaldas

Cachos de ouro com verdes esmeraldas.

XXXVII

Nem tu me esquecerás, flor admirada.

Em quem não sei se a graça, se a natura

Fez da Paixão do Redentor Sagrada

Uma formosa e natural pintura;

Pende com pomos mil sobre a latada,

Áureos na cor, redondos na figura,

O âmago fresco, doce e rubicundo,

Que o sangue indica que salvara o mundo.

XXXVIII

Com densa cópia a folha se derrama,

Que muito à vulgar hera é parecida,

Entressachando pela verde rama

Mil quadros da Paixão de Autor da vida;

Milagre natural, que a mente chama

Com impulsos da graça, que a convida,

A pintar sobre a flor aos nossos olhos

A cruz de Cristo, as chagas e os abrolhos.

XXXIX

É na forma redonda, qual diadema,

De pontas, como espinhos, rodeada,

A coluna no meio, e um claro emblema

Das chagas santas e da cruz sagrada;

Vêem-se os três cravos e na parte extrema

Com arte a cruel lança figurada;

A cor é branca, mas de um roxo exangue,

Salpicada recorda o pio sangue.

XL

Prodígio raro, estranha maravilha,

Com que tanto mistério se retrata!

Onde em meio das trevas a fé brilha,

Que tanto desconhece a gente ingrata!

Assim, do lado seu nascendo filha

A humana espécie, Deus piedoso trata,

E faz que quando a graça em si despreza,

Lhe pregue co esta flor a natureza.

XLI

Outras flores suaves e admiráveis

Bordam com vária cor campinas belas,

E em vária multidão por agradáveis

A vista encantam, transportada em vê-las;

Jasmins vermelhos há, que inumeráveis

Cobrem paredes, tetos e janelas;

E, sendo por miúdos mal distintos,

Entretecem purpúreos labirintos.

XLII

As açucenas são talvez fragrantes,

Como as nossas na folha organizadas;

Algumas no candor lustram brilhantes,

Outras na cor reluzem nacaradas.

Os bredos namorados rutilantes,

As flores de courana celebradas,

E outras sem conto pelo prado imenso,

Que deixam quem as vê como suspenso.

XLIII

Das frutas do país a mais louvada

É o régio ananás, fruta tão boa,

Que a mesma natureza namorada

Quis como a rei cingi-la da coroa.

Tão grato cheiro dá, que uma talhada

Surprende o olfato de qualquer pessoa;

Que, a não ter do ananás distinto aviso,

Fragrância a cuidará do Paraíso.

XLIV

As fragrantes pitombas delicadas

São como gemas de ovos na figura;

As pitangas com cores golpeadas

Dão refrigério na febril secura;

As formosas goiabas nacaradas,

As bananas famosas na doçura,

Fruta, que em cachos pende e cuida a gente

Que fora o figo da cruel serpente.

XLV

Distingue-se entre as mais na forma e gosto

Pendente de alto ramo o coco duro,

Que em grande casca no exterior composto,

Enche o vaso interior de um licor puro;

Licor que, à competência sendo posto,

Do antigo néctar fora o nome escuro;

Dentro tem carne branca como a amêndoa,

Que a alguns enfermos foi vital, comendo-a.

XLVI

Não são menos que as outras saborosas

As várias frutas do Brasil campestres:

Com gala de ouro e púrpura vistosas,

Brilha a mangaba e os mocuiés silvestres;

Os mamões, morieis, e outras famosas,

De que os rudes cabelos foram mestres,

Que ensinaram os nomes, que, se estilam,

Janipo e caju vinhos distilam.

XLVII

Nas preciosas árvores se conta

O cacau, droga em Espanha tão comua,

Pouco na altura mais que arbusto monta,

E rende novo fruto em cada lua;

A baunilha nos cipós desponta,

Que tem no chocolate a parte sua,

Nasce em bainhas, como paus de lacre,

De um suco oleoso, grato o cheiro e acre.

XLVIII

Ótimo anil de planta pequenina

Entre as brenhas incultas se recolhe;

Tece-se a roupa do algodão mais fina,

Que em cópia abundantíssima se colhe;

Que, se a abundância à indústria se combina,

Cessando a inércia, que mil lucros tolhe,

Houvera no algodão, que ali se topa,

Roupa com que vestir-se toda a Europa.

XLIX

O uruçu, fruta de árvore pequena,

Como lima, em pirâmide elevada,

De que um extrato a diligência ordena,

Que a escarlata produz mais nacarada;

De imortal tronco a tarajaba amena

Rende a áurea cor dos belgas desejada,

O pau brasil, de que o engenhoso norte

Costuma extrair cor de toda a sorte.

L

Há de bálsamos árvores copadas,

Que por léguas e léguas se dilatam;

Folhas cinzentas, como a murta, obradas,

E em grato aroma os troncos se desatam,

Se neles pelas luas são sangradas;

E uso vário fazendo os que contratam,

Lavram remédios mil e obras lustrosas,

Contas de cheiro e caixas preciosas.

LI

A copaíba em curas aplaudida,

Que a médica ciência estima tanto,

A bicuíba no óleo conhecida,

A almécega, que se usa no quebranto;

A preciosa madeira apetecida,

Que o nome nos merece de pau-santo,

O salsafraz cheiroso, de que as praças

Se vêem cobertas com formosas taças.

LII

Quais ricas vegetáveis ametistas,

As águas do violete em vária casta,

O áureo pequiá com claras vistas,

Que noutros lenhos por matiz se engasta;

O vinhático pau, que quando avistas

Massa de ouro parece extensa e vasta;

O duro pau que ao ferro competira,

O angelim, tataipeva, o supopira.

LIII

Troncos vários em cor e qualidade,

Que inteiriças nos fazem as canoas,

Dando a grossura tal capacidade,

Que andam remos quarenta e cem pessoas.

E há por todo o Brasil em quantidade

Madeiras para fábricas tão boas,

Que, trazendo-as ao mar por vastos rios,

Pode encher toda a Europa de navios.

LIV

Nutre a vasta região raros viventes

Em número sem conta e em natureza

Dos nossos animais tão diferentes,

Que enchem a vista da maior surpresa.

Os que têm mais comuns as nossas gentes

Ignora esta porção de redondeza:

O boi, cavalo, a ovelha, a cabra e o cão;

Mas, levados ali, sem conta são.

LV

Todo o animal é fero ali, levado

Donde tinha o seu pasto competente;

Nem era lugar próprio ao nosso gado,

Que fora o bruto manso e fera a gente.

Como entre nós é o tigre arrebatado,

Cruel a onça, o javali fremente,

Feras as antas são americanas,

E próprias do Brasil as suraranas.

LVI

Vêem-se cobras terríveis, monstruosas,

Que afugentam coa vista a gente fraca;

As jibóias, que cingem volumosas

Na cauda um touro, quando o dente o ataca;

Voa entre outras com forças horrorosas,

Batendo a aguda cauda a jararaca,

Com veneno, a quem fere tão presente,

Que logo em convulsão morrer se sente.

LVII

Entre outros bichos de que o bosque abunda,

Vê-se o espelho da gente, que é remissa,

No animal torpe de figura imunda,

A que o nome pusemos da preguiça:

Mostra no aspecto a lentidão profunda,

E, quando mais se bate e mais se atiça,

Conserva o tardo impulso por tal modo,

Que em poucos passos mete um dia todo.

LVIII

Vê-se o cameleão, que não se observa

Que tenha, como os mais, por alimento

Ou folha, ou fruto, ou nota carne, ou erva,

Donde a plebe afirmou que pasta em vento;

Mas sendo certo que o ambiente ferva

De infinitos insetos, por sustento

Creio bem que se nutra na campanha

De quantos deles, respirando, apanha.

LIX

Gira o sareué, como pirata,

Da criação doméstica inimigo;

À canção da guariba sempre ingrata

Responde o guassinim, que o segue amigo.

Da vária caça, que o cabelo mata,

A narração por longa não prossigo,

Veados, capivaras e coatias,

Pacas, teus, periás, tatus, cotias.

LX

O mono, que a espessura habita astuto,

De um ramo noutro buliçoso salta,

E para não se crer que nasceu bruto,

Parece que o falar somente falta;

O riso imita, e contrafaz o luto,

E a tanto sobre os mais o instinto exalta,

Que onde a espécie brutal chegar lhe veda

Tem arte natural com que o arremeda.

LXI

Entre as voláteis caças mais mimosa,

A zabelé, que os francolins imita.

É de carne suave e deliciosa,

Que ao tapuia voraz a gula incita.

Logo a enha-popé, carne preciosa,

De que a titela mais o gosto irrita;

Pombas verás também nesses países,

Que em sabor, forma e gosto são perdizes.

LXII

Juritis, pararis, tenras e gordas,

A hiraponga no gosto regalada,

As marrecas, que ao rio enchem as bordas,

As jacutingas, e a aracã presada.

E, se do lago na ribeira abordas

De galeirões e patos habitada,

Verás, correndo as águas na canoa,

A turba aquátil que, nadando, voa.

LXIII

Negou às aves do ar a natureza,

Na maior parte a música harmonia;

Mas compensa-se a vista na beleza

Do que pode faltar na melodia:

A pena no tucano mais se presa,

Que feita de ouro fino se diria,

Os guarazes pelo ostro tão luzidos,

Que parecem de púrpura vestidos.

LXIV

Vão pelo ar loquazes papagaios,

Como nuvens voando em copia ingente,

Iguais na formosura aos verdes Maios,

Proferindo palavras como a gente.

Os periquitos com iguais ensaios.

O canindé, qual Íris reluzente;

Mas falam menos, da pronúncia avaras,

Gritando, as formosíssimas araras .

LXV

Como melros, são negros os bicudos,

Mais destros e agradáveis no seu canto;

Na terra os sabiás sempre são mudos,

Mas junto d'água têm a voz que encanto.

Os coleirinhos no entoar agudos,

As patativas, que o saudoso pranto

Imitam requebrando com sons vários,

Os colibris e harmônicos canários.

LXVI

Das espécies marítimas de preço

Temos pérolas nestas preciosas;

Nem melhores aljôfares conheço

Que os das ostras brasílicas famosas;

Âmbar gris do melhor, mais denso e espesso,

Nas costas do Ceará se vê espaçosas,

Madrepérolas, conchas delicadas,

Umas parecem de ouro, outras prateadas.

LXVII

Piscoso o mar de peixes mais mimosos,

Entre nós conhecidos rico abunda,

Linguados, sáveis, meros preciosos,

A agulha, de que o mar todo se inunda,

Robalos, salmonetes deliciosos,

O xerne, o voador, que na água afunda,

Pescadas, galo, arraias, e tainhas,

Carapaus, encharrocos e sardinhas.

LXVIII

Outros peixes, que próprios são do clima,

Berupiras, vermelhos, e o garopa,

Pâmpanos, corimas, que o vulgo estima,

Os dourados, que presa a nossa Europa,

Carepebas, parus, nem desestima

A grande cópia, que nos mares topa,

A multidão vulgar do charéu vasto,

Que às pobres gentes subministra o pasto.

LXIX

De junho a outubro para o mar se alarga,

Qual gigante marítimo, a baleia,

Que palmos vinte seis conta de larga,

Setenta de comprido, horrenda e feia;

Oprime as águas com a horrível carga,

E de oleosa gordura em roda cheia,

Convida o pescador que ao mar se deite,

Por fazer, derretendo-a, útil azeite.

LXX

Tem por espinhas ossos desmarcados,

O ferro as duras peles representam,

Donde pendem mil buzios apegados,

Que de quanto lhe chupam se sustentam;

Não parecem da fronte separados

Os vastos corpos que na areia assentam.

Entre os olhos medonhos se ergue a tromba,

Que ondas vomita como aquátil bomba.

LXXI

Na boca horrível, como vasta gruta,

Doze palmos comprida a língua pende.

Sem dentes, mas da boca imensa e bruta

Barbatanas quarenta ao longo estende.

Com elas para o estomago transmuta

Quanto por alimento nágua prende,

O peixe ou talvez carne, e do elemento

A fez imunda, que lhe dá sustento.

LXXII

Duas asas nos ombros tem por braços,

Que aos lados vinte palmos se difundem,

Com asa e cauda os líquidos espaços

Batendo remam, quando o mar confundem;

E excitando no pélago fracassos,

Chorros de água nas naus de longe infundem.

E, andando o monstro sobre o mar boiante,

Crê que é ilha o inexperto navegante.

LXXIII

Brilha o materno amor no monstro horrendo,

Que, vendo prevenida a gente armada,

Matar se deixa nágua combatendo,

Por dar fuga, morrendo, à prole amada.

Onde no filho o arpão caçam metendo,

Com que atraindo a mãe dentro à enseada

Desde a longa canoa se alenceia,

Ao lado de seus filho a baleia.

LXXIV

Sobre a costa o marisco apetecido

No arrecife se colhe e nas ribeiras,

As lagostas, e o polvo retorcido,

Os lagostins, santolas, sapateiras,

Ostras famosas, camarão crescido,

Caranguejos também de mil maneiras,

Por entre os mangues, donde o tino perde

A humana vista em labirinto verde."

(1) Troféu. — Alude-se à imagem de Catarina Álvares, pintada sobre a casa da pólvora na Bahia.

(2) Bolandeiras e Tapitis. — Instrumento com que se fabrica a farinha de mandioca. Puba (ou fubá) é a flor da mesma farinha.

 

CANTO VIII

I

Três vezes tinha o sol no giro oblíquo

A carreira dos trópicos voltado,

E três de Europa pelo clima aprico

Tinha as plantas o Abril ressuscitado,

Depois que do Brasil se tinha rico

À França o nobre Diogo transportado,

Buscando nas viagens meio e lume

Com que reforme o bárbaro costume.

II

Mas da mísera gente na lembrança,

Que lhe excita da esposa a cara imagem,

Meditava deixar a amiga França,

Repetindo a brasílica viagem.

Na generosa empresa não descansa

De instruir a rudeza do selvagem,

E cuida com razão que é humanidade

Amansar-lhe a cruel barbaridade.

III

Enquanto nau e embarque negoceia,

Do amigo Du-Plessis solicitado,

Foi-lhe do rei francês proposta a idéia

De erguer as lizes no país buscado.

Terás (lhe disse, e é fácil que se creia,

Que lho dizia do seu rei mandado),

Terás da França auxílio e tropa imensa,

E, maior que o serviço, a recompensa.

IV

Que, se o empenho te ocupa generoso,

De amansar do gentio a mente impia,

Trazendo a França um povo numeroso,

Melhor se amansará na companhia.

Que engano fora à Europa pernicioso,

Quando colônias derramando envia,

Extinguir sem remédio a infeliz gente,

E despovoar-se com a tropa ausente.

V

Desta arte Roma o império seu fazia,

Que, as colônias pelo orbe derramando,

Do país conquistado outras unia,

Com que ia a falta própria reparando.

Num século, que o bárbaro vivia,

Na grã-Roma romano ia ficando,

E, neste arbítrio de pensar profundo,

Foi mundo Roma e foi romano o mundo.

VI

Este meio, portanto, eu te sugiro, (1)

Que se a tua prudência hoje executa,

Verás em pouco tempo, como aspiro,

Francesa pelo trato a gente bruta.

Vive sempre brutal no seu retiro

Quem ninguém comunica e nada escuta,

Nem o selvagem tirarás da toca,

Se outro país não trata e o seu não troca.

VII

E entanto que o terreno nosso habita,

Transmigrada a infeliz gentilidade,

A gente, que perdemos infinita,

Suprirá com comua utilidade.

Assim a agricultura mais se excita,

Cresce a plebe no campo e na cidade,

E a turba inerte, que corrompe a terra,

Ou se deixa emendada, ou se desterra."

VIII

Disse o francês prudente, e o nobre Diogo,

Leal à amada pátria, respondendo,

"Sábio projeto dás (replicou logo)

Sobre a população; nada o contendo.

Mas não posso convir no exposto rogo,

Sendo fiel ao rei, português sendo,

Quando o luso monarca julgo certo

Senhor de quanto deixa descoberto.

IX

Vivendo ex lege um povo na anarquia,

Tem direito o vizinho a sujeitá-lo,

Que a natureza mesma inspiraria

Ao que fosse mais próximo a amansá-lo.

Deixo que o céu parece que o queria, (2)

Dando a Cabral o instinto de buscá-lo,

E o ser em caso tal comum conceito,

Que quem primeiro o ocupa tem direito.

X

E, sem que ofenda a França a minha escusa,

É bem que esta conquista a Lísia faça;

Mas, enquanto a Bahia o não recusa,

Ser-vos-á no comércio a melhor praça.

Cópia de drogas achareis profusa,

E o lenho precioso ali de graça;

E, durando eu na pátria obediença,

Serei francês na obrigação e agência."

XI

Admirou Du Plessis no peito nobre

O generoso ardor e o pátrio zelo,

Que a ilustre condição no obrar descobre

Novo motivo para mais querê-lo;

Sem mais receio que o contrário ele obre,

Na nova expedição quer sócio tê-lo.

Mas, antes de embarcar-se, o herói prudente

Avisa o luso rei da empresa ingente.

XII

Já pelo salso oceano navega

A franca nau, e o Cabo se divisa

Donde a Europa no oceano ao termo

Tido do antigo nauta por baliza.

A terra ali se vê que o Minho rega,

Correndo a costa da feliz Galiza;

E o rumo então seguido do ocidente

Ao meio-dia se navega ardente.

XIII

Não longe do equador, o mar cortava,

Quando Paraguassu, já Catarina,

Como era seu costume, atenta orava,

Implorando o favor da Mão Divina;

E eis que à vista da turba, que a observava,

Enquanto adora a majestade trina,

Em sono fica suspendida e absorta,

E algum cuida que dorme, outro que é morta.

XIV

Brilha no aspecto um ar do afeto interno;

Mas, em funda abstração com doce calma,

Bem se lhe vê pelo semblante externo

Que ocupa em grande objeto a feliz alma.

Vê-se nela arraiar do lume eterno,

Que no céu goza quem já logra a palma,

Admirável vislumbre, que suspende

E infunde um pio afeto em quem o atende.

XV

Assim por longas horas abstraída

Deixava o caro esposo na ansiedade,

Se era sono, em que estava suspendida,

Se era efeito da cruel enfermidade;

Ora suspeita que perigue a vida,

Ora na celestial tranqüilidade,

Crê que do claro empíreo habitadora

Imortal sobre o céu reinando mora.

XVI

Até que, a si tornada docemente,

Corre a turba coa vista em grato giro;

E, como quem esta aura ingrata sente,

Rompe os longos silêncios dum suspiro.

"Oh! doce (disse), oh! pátria permanente!

Que escuro ar parece que respiro!

Feliz quem contemplando o céu formoso,

Vive no seio do celeste esposo!"

XVII

Pasmado Diogo e a multidão que a ouvia,

Calam todos no assombro de admirados:

Nem já duvidam que visão seria

Em que ouvira os mistérios revelados.

"Quando ocultos segredos Deus confia,

Não devem ser (diz Diogo) propalados;

Mas, se em parte, como este, é manifesto,

Temerário não sou, se inquiro o resto.

XVIII

Narra-nos, feliz alma, a visão bela!

Quem sabe se por ti nos manda aviso

A Providência, que ao governo vela,

Do mortal nos seus fins sempre indeciso!

Não nos cales entanto o que revela

Por nosso lume, o excelso Paraíso,

E a nossos rogos com memória pronta,

Dizendo quanto viste, tudo conta."

XIX

Calaram todos com ouvido atento,

Pendendo da expressão de Catarina;

E, tomando na popa em roda assento,

Dão-lho sobre um canhão, que ao bordo inclina.

"Mandais-me (a dama disse) que o portento

Haja de expor-vos da impressão divina:

Quem poderá contar coisa tão alta,

Quando o lume cessou, a ciência falta?

XX

Nem inculco em meu sonho um sacro instinto,

Que tudo fingir pode a fantasia;

Porque a imagem talvez, que n'alma pinto,

Por força natural se fingiria.

Pode ser, se pressaga a idéia sinto,

Que, sem extraordinária profecia,

Anteveja o sucesso, o tempo e o prazo,

E depois não suceda, ou seja acaso.

XXI

Vi, não sei se era impulso imaginário,

Um globo de diamante claro e imenso

E nos seus fundos figurar-se vário

Um país opulento, rico e extenso;

E, aplicando o cuidado necessário,

Em nada do meu próprio o diferenço:

Era o áureo Brasil tão vasto e fundo,

Que parecia no diamante um mundo.

XXII

Fixo os olhos atenta no estupendo

Milagroso espetáculo que via,

E em três léguas de boca vi correndo

Por doze de diâmetro a Bahia.

Seis rios pelo golfo discorrendo,

Engenhos, povoações que descobria,

Eram como ornamentos da cidade,

De que se ergue no plano a majestade.

XXIII

Parecia em seis bairros dividida,

Com duas praças de extensão formosa,

Fortaleza ali vi na barra erguida,

Outra a parte de terra majestosa;

A enseada por oito defendida,

E outra em Taparica poderosa;

Duas casas de pólvora e na entrada

Vi-me a mim de uma delas retratada.

XXIV

Dentro a um templo magnífico se via

De seus prelados turma numerosa,

De que um às mãos dos bárbaros morria,

Outro a espada cingia valorosa.

Muitos da alta virtude os matos via,

Com caridade discorrer zelosa,

Sem poupar tempo, estudo, ou vida, ou gasto,

Por propagar a fé no sertão vasto.

XXV

No grão-palácio em tintas retratados

Os que o governo do Brasil tiveram,

Os Sousas na Bahia decantados,

Os nobres Costas, que depois vieram;

Mas entre outros na guerra celebrados,

Por troféus que vencendo mereceram,

Mendo de Sá de gloriosa fama,

Que pai da pátria no Brasil se aclama.

XXVI

Deste era prole o intrépido Fernando,

Que ali vi fulminando a forte espada,

E contra a feroz gente pelejando,

Deixou a morte com valor vingada.

Mas, da Bahia os olhos levantando,

Vi discorrer no mar potente armada,

Que, as ilhas ocupando e a vasta terra,

Movia no Brasil funesta guerra.

XXVII

Parecia-me a frota belicosa

Francesa gente, que o Brasil tentava

Pedro Lopes de Sousa em furiosa

Naval batalha o mar lhe contestava;

Noutra ação com esquadra numerosa

Luís de Melo e Silva pelejava;

Cristóvão Jacques, que este mar corria,

Dois navios lhe afunda na Bahia.

XXVIII

Era de França, sim, a adversa gente;

Mas por culto inimigo ao rei contrária,

E ao rito Calvinístico aderente,

Enviava ao Brasil tropa adversária.

E, protegida da facção potente

Com as forças e armada necessária,

Queriam para a infanda cerimônia

Fabricar a Calvino uma colônia.

XXIX

Cavalheiro de Malta e franco nobre

Era Villegaignon de forte peito

Soldado antigo, que o valor descobre,

E entre os huguenotes do maior respeito.

De mil promessas o partido cobre,

Havendo-o a empresa do Brasil eleito;

E, abonada de um chefe de esperança,

Dá-lhe a mão a heresia em toda a França.

XXX

Este vi navegando a Cabo Frio,

Seguido de outras naus a forte empresa;

E que, tratando afável co gentio,

Explorava do sítio a natureza;

Mostrava aos naturais animo pio;

E argüindo-lhe a gente portuguesa,

Induz a nação bruta a que lhe assista

Na empresa do comércio e da conquista.

XXXI

Voltou a França o Cabo diligente,

Tendo de ricas drogas carregado,

E, convocando às naus armada gente,

Torna de turba ingente acompanhado.

Nem tarda do sertão cópia potente

De um povo, que, nas armas aliado,

Por amigo estimava mais sincero,

Menos inculto sim, porém mais fero.

XXXII

Ali Villegaignon, que o troço aloja,

Às gentes do sertão se confedera,

E toda a costa a dominar se arroja,

De onde os nossos expulsar já espera.

De seu comércio o português despoja

Na fértil Paraíba, em que útil era;

Nem há na costa do Brasil enseada

Que o huguenote não tenha bloqueada.

XXXIII

Mendo de Sá, que adverte no perigo

Três naus que em guerra cuidadoso armara,

Com oito de comércio tem consigo,

Além das que em socorro convocara;

E por ter força igual às do inimigo,

Sobre longas canoas, que ajuntara,

Guia contra os tamoios prepotentes,

Do bravo Carijó turmas valentes.

XXXIV

Nhighe-teroi se chama a vasta enseada,

Que estreita boca, como barra encerra,

Fechando em vasto porto à grande armada,

Um lago, que em redondo cinge a terra.

Vê-se ilha penhascosa sobre a entrada,

Com fortaleza, que, disposta em guerra,

Por boca dos canhões rumor fazendo,

Fechava a barra ao valoroso Mendo.

XXXV

Era a ilha de rochas guarnecida,

Que em torno tem por natural muralha,

Donde a força das balas rebatida,

Faz inútil dos lusos a batalha.

Três dias foi dos nossos combatida,

Sem que o fogo incessante aos nossos valha,

Até que, fatigado o invicto Mendo,

Invade à escala vista o forte horrendo.

XXXVI

Entre as frechas e balas destemido

Na penha o português trepando, salta,

E, deixando o Francês esmorecido,

Degola, mata, fere, invade e assalta.

Nem do antigo valor cede esquecido

O francês animoso, até que, falta

De sangue a brava gente na contenda,

Faz a perda e cansaço que a ilha renda.

XXXVII

Nem mais demora teve o invicto Mendo

Ao ver a gente adversa dissipada,

E, a excelsa fortaleza desfazendo,

A costa visitou na forte armada.

E tudo ao nome seu sujeito havendo,

A Bahia tornou, que, iluminada,

Entre o som do clarim e alegre trompa,

Em triunfo a Mendo recebeu com pompa.

XXXVIII

Mas a facção do hugnote, enfurecida,

Villegaignon potente ao Brasil manda,

Que, a ilha recobrando já perdida,

Guerra intenta fazer por toda banda.

Vê-se a nossa marinha combatida,

E a forte esquadra, que o francês comanda,

Dominante no oceano por modo

Que impedia o comércio ao Brasil todo.

XXXIX

Mais não tolera a lusa monarquia,

Que, ao rei cristianíssimo aderente,

Contra a rebelde, herética porfia,

Armada põe na América potente.

Chefe Estácio de Sá prudente envia,

De válidos galeões com forte gente,

Que, o herege expulsando da enseada,

Deixe nova cidade ali fundada.

XL

Obsequioso abraçava o claro Mendo

O valoroso chefe seu conjunto,

As forças de Bahia unido tendo

As que trouxera sobre o mesmo assunto;

Contra os esforços do tamoio horrendo

Acomete o rebelde em liga junto,

Incorporando à armada lusitana

Vasto esquadrão da turba americana.

XLI

Chama-se Pão de Açúcar o penedo,

Em pirâmide as nuvens levantado,

Onde de um salto tinha já sem medo

A turba militar desembarcado.

Nadava pelo mar vasto arvoredo

Do gentio em canoas habitado;

E do ardente francês luzida tropa,

Que hábil na arte de guerra fez a Europa.

XLII

Destes o luso campo acometido

De dardos, frechas, balas se embaraça,

Em sombra o seio todo escurecido,

As naus ocultam nuvens de fumaça;

E ao eco dos canhões entre o ruído,

Tudo está cego e surdo em campo e praça;

E no horrível relâmpago das peças

Caem por terra os bustos sem cabeças.

XLIII

Voam as naus de chamas ocupadas,

Enchendo a enseada do infernal estrondo,

As canoas dos nossos abordadas,

E os galeões, que em linha se vão pondo.

Os golpes, que retinem das espadas,

O golfo, que arde em chamas em redondo,

Eram na terra e mar em sangue tinto

Um abismo, um inferno, um labirinto.

XLIV

Depois que largo tempo em márcio jogo

Dura a batalha com comum perigo,

Cessando o impulso do contrário fogo,

Todo o estrago aparece do inimigo:

Tinha cedido da contenda logo

Receoso o tamoio do castigo;

E os franceses, que as naus mal sustentavam,

Entre as penhas o asilo procuravam.

XLV

Não cessa o bravo Sá contra o gentio,

E a forte tropa pelo mato avança;

Porque, batendo o orgulho e insano brio,

Se apartasse o sertão da infame aliança,

Nem receia o tamoio o desafio,

Tendo no seu valor tanta confiança,

Que, fugindo da aldeia ao mato e gruta,

A liberdade ao português disputa.

XLVI

Era áspero o combate e lenta a guerra,

E sem efeito o assédio ao francês posto

E o bárbaro, embrenhado dentro a terra,

Tinha emboscada ao português disposto.

Mendo, que n'alma o grão cuidado encerra,

Tendo de Estácio socorrer proposto,

Paz levas, busca naus e a gente incita,

E em auxilio dos seus partir medita.

XLVII

Já dobra o frio Cabo a esquadra ingente,

E à vista do penhasco lança a amarra..

Pasma o rebelde, vendo a armada à frente

Ocupar numerosa a estreita barra.

Une-se a frota ali da lusa gente,

E os mútuos casos vanglorioso narra

Irmão à irmã e o filho ao pai, festivo

Por ter chegado são e achá-lo vivo.

XLVIII

Chega aos braços de Estácio o forte Mendo,

E por festiva salva estrepitosa

Faz que vomite o bronze o fogo horrendo

Contra a ilha, que avistam penhascosa;

E, largamente consultado havendo

Os dois chefes da empresa gloriosa,

Contra o penedo tentam no mais alto,

A peito descoberto, um fero assalto.

XLIX

Vêem-se entre as penhas formidáveis bocas

De canhões e mosquetes trovejando,

E nas quebradas espantosas rocas

Do bárbaro tamoio o imenso bando.

Muitos ali das ásperas barrocas

Vão os nossos fuzis precipitando,

Outros da rota penha em meio às gretas,

Cobriam contra nós todo o ar de setas.

L

Não cessava o rebelde belicoso

Com vivo fogo o assalto rebatendo,

Enquanto sobe o Luso valoroso,

Trepando em fúria no penedo horrendo.

Quem no meio do impulso impetuoso,

Cai na ruína o próximo envolvendo;

Quem, ferido da frecha, ou veloz bala,

Do mais alto da penha ao mar resvala.

LI

Todo o penhasco em fogo se fundia,

Enquanto o mar em roda em chamas ferve

Entre fracasso e fumo que saía,

De nada o ouvido vale e a vista serve.

A terra toda em roda estremecia;

E sem que a água do incêndio se preserve,

Parecia ferver do fogo insano,

Escondendo a cabeça o Padre Oceano.

LII

Qual do Vesúvio a boca pavorosa,

Quando rios de fogo ao mar derrama,

Arroja ao ar com fúria impetuosa

Parte do vasto monte envolta em chama;

A cinza cobre o céu caliginosa,

Muge o chão, treme a terra, o pego brama,

E o mortal, espantado e tremebundo,

Crê que o céu caia e que se funda o mundo.

LIII

Tal Villegagnon na penha dura,

Do horrífico trovão freme a tormenta,

E a chama entre a fumaça horrenda escura

Do infernal lago; as furnas representa.

Porem do próprio fumo na espessura,

Apontaria, que rebelde intenta.

Evita o português, que ataca, incerto,

A escala vista e a peito descoberto.

LIV

E já no grão-penedo tremulavam

As lusas quinas pelo forte Estácio,

E as lizes do penhasco se arrancavam,

Donde a Villegaignon se ergue um palácio.

Pela roca os tamoios se arrojavam,

E o valor luso dando inveja ao Lácio,

A guarnição francesa investe à espada,

E obriga em duro choque à retirada.

LV

O valente francês, que a bélica arte

Já com valor na Europa professara,

O peito à fuga opõe por toda a parte,

E faz que volte o fugitivo a cara:

E, vendo Estácio só junto ao Estandarte,

Que por Chefe dos Lusos se declara,

Cuida de um golpe terminar a empresa

No General da Gente Portuguesa.

LVI

Não desfalece o capitão valente;

E, de um e de outro lado acometido,

Rebate as balas sobre o escudo ingente,

E arroja-se ao rebelde enfurecido.

Lebrum despoja do mosquete ardente,

Com que muitos de um golpe tem ferido,

Outros do íngreme posto ao mar despenha,

E alguns expulsa da soberba penha.

LVII

E já fugia a tímida caterva,

Quando Rochefoucauld, que a pugna iguala,

Donde a viseira descoberta observa,

Lhe aponta desde longe ardente bala.

Caindo o herói, na espada, que conserva,

Adora humilde a cruz, e perde a fala.

Banha-se em sangue o chão, e em tanta glória

Regada a terra produzia vitória.

LVIII

Porque, enquanto em segui-lo divertido,

Abandona o francês a fortaleza,

Tinha parte do exército subido,

A dar fim com vitória à forte empresa.

Admira Mendo o braço esclarecido,

E, bem que do sobrinho o valor presa,

No juvenil ardor notou magoado

O tomar chefe as partes de soldado.

LIX

"A pátria (o nobre Sá diz lagrimando)

Vitima irás da fé, da liberdade,

Vigor no sangue heróico à terra dando,

Donde se erga imortal nova cidade.

O caso acerbo aos pósteros contando,

Tenham seus cidadãos da heroicidade

Cara lição no fundador primeiro,

Glória eterna do Rio de Janeiro."

LX

Tal nome deu á enseada no recordo

Do mês que ilustre foi por acaso tanto,

E a cidade deixou com justo acordo

A clara invocação de um mártir santo.

E, havendo as tropas recolhido a bordo,

Descansadas do bélico quebranto,

Faz imortais no tempo transitório

Os correias e Sás no novo empório. (3)

LXI

Entanto do tamoio a gente bruta,

Mais feroz sempre na marcial contenda,

Contra a nova cidade em fera luta

Movia guerra pelo mar tremenda.

Mas Mendo para a bárbara disputa

Faz que um chefe tapuia o mar defenda:

Ararigbóia aos seus nomeia a fama,

Martim Afonso por cristão se chama.

LXII

Príncipe foi nas tabas respeitado,

Que, ao nome português na guerra adito,

Tinha com Mendo os seus capitaneado,

Sempre contra o tamoio o campo invicto.

Quatro guerreiras naus tinha avançado

O rebelde, depois do grão-conflito,

E, em oito lanchas Ararig buscando,

Do Cabo Frio a ponta iam dobrando.

LXIII

Saltam da noite no silencio escuro

As belicosas mangas guarnecidas

De imensas chusmas do tamoio duro

Que obrar deviam na campanha unidas;

E, enquanto tem o campo por seguro,

Jaziam pelas praias estendidas,

Para investir coa luz, que já arraiava,

A aldeia Ararig, que os esperava.

LXIV

Mas o bravo tapuia belicoso,

Antevendo o descuido do inimigo,

Busca o manto da noite insidioso,

Para investi-lo no noturno abrigo.

Convoca os seus guerreiros animoso,

E, sem dizer-lhes mais do seu perigo,

Depois que um breve espaço os olhou mudo,

Disse cheio de ardor, batendo o escudo:

LXV

"Sus valorosa, intrépida caterva!

Que esperamos no nosso alojamento?

Acaso até que o campo em chusma ferva

E nos busque o francês no próprio assento?

Se por espia, que o seu campo observa,

Que dorme sobre as praias desatento,

Onde, se o surpreendermos de improviso,

Sentirão todo o dano antes do aviso.

LXVI

Basta que em marcha procedais quieta,

E que, invadindo a turba descuidada,

Não cuideis de empregar a bala, ou seta,

Mas que tudo leveis à pura espada;

E, quando o vasto campo se acometa,

Deixando-lhe às canoas livre entrada,

Antes que o ferro vibre os seus reveses,

Desarmai, se puderdes, os franceses.

LXVII

Chamam corpo da guarda onde o soldado

Costuma pôr as armas nas vigias;

Ali correi com ímpeto apressado,

Seguindo o passo sempre das espias.

Que nada o francês pode desarmado,

E, sem as chamas que derrama impias,

Ficara desde o ímpeto primeiro

Nas mãos da nossa tropa prisioneiro."

LXVIII

Disse o astuto Ararig, e a lento passo

Cada um pela brenha vai disperso,

Devendo a dado tempo e a certo espaço

Qualquer unir-se em batalhão diverso.

E, achando em sono descuidado e lasso,

Em sentinelas ter, o campo adverso,

Um a um, pé ante pé, em marcha tarda,

Assaltam juntos a sopita guarda.

LXIX

Juntas as armas de improviso apanham,

Matando as guardas meio adormecidas;

E, depois que a armaria toda ganham,

Quantos as vêm buscar perdem as vidas.

O sono com as mortes acompanham;

E outros, vendo sem armas as partidas,

Porque a causa não sabem do tumulto,

Buscam as lanchas, por fugir do insulto.

LXX

Ararigbóia, como um raio ardente,

Uns dormindo degola pela areia,

Outros sem armas, que rendidos sente,

Prisioneiros com cordas encadeia.

A fiel tropa pela praia ingente

Toda deixa a campanha de horror cheia,

Cobrindo de cadáveres o plano,

Alagado coa espada em sangue humano.

LXXI

E já nos céus risonha aparecia

A estrela d'alva as trevas apartando,

E com trêmula luz o incerto dia

No extremo do horizonte ia arraiando,

Quando o estrago da noite aparecia,

E preso ou morto o franco demonstrando,

Nem as lanchas se salvam, que a vazante

Em seco as pôs na mão do triunfante.

LXXII

Não cessava Martim contra a espantada

Multidão de tamoios, que se embrenha;

E, deixando-lhe a aldeia derribada,

Não sê-lhe esconde algum no mato ou brenha.

Muitos no averno lança com a espada,

Fugindo outros ao mar n’água despenha,

Nem fulminando a massa a algum perdoa,

Oculto na cabana ou na canoa.

LXXIII

Fez este marte do Brasil constante

A nação dos tamoios tanta guerra,

Que ele só com a espada fulminante

Lhe extingue o nome e despovoa a terra.

Mais não ousa o rebelde mariante,

Enquanto Ararigbóia no campo erra,

Desembarcar na costa, sem que o bravo

O deixe combatendo, ou morto, ou escravo.

LXXIV

Vi que do excelso trono vinha entanto

Uma augusta donzela adormecida,

De quem brilhava sobre o aspecto santo

A piedade, a abundância, a ciência, a vida.

Do seio derramava do áureo manto

A opulência no mundo apetecida,

E, logo que foi vista sobre a terra,

Submergiu-se no averno a fausta guerra.

LXXV

Era a divina paz, que o céu nos manda,

Prêmio de um cetro, que da fé zelante

Propaga o santo culto onde comanda,

E as leis defende da justiça amante.

Sem os estragos de uma guerra infanda.

Gozará o Brasil de paz constante

Por setenta anos de mm governo justo.

Tendo tranqüila a terra e o mar sem susto.

LXXVI

Nem mais a espada e bomba pavorosa

Se ouvirá na marinha e sertão vasto;

A voz só do Evangelho poderosa,

Simples, sem artifício, indústria ou fasto,

A semífera gente viciosa

No jugo conterá de um temor casto;

E às mãos dos seus apóstolos se avista

Com as armas da cruz feita a conquista.

LXXVII

Mas vi em tanto lusitano império

Na Líbia ardente em sangue submergido,

E o seu domínio no indico hemisfério

Do batavo nas águas invadido.

E, ou por descuido do governo espério,

Ou de mil contratempos combatido,

Cedeu no vasto mar por toda a banda

O império do Brasil à fria Holanda.

LXXVIII

Dezesseis longos séculos contando,

Com anos vinte quatro a vulgar era,

Vi a batava esquadra o mar sulcando,

Onde Wilhekens general modera.

Petre Petrid os mares assombrando

Por almirante aos náuticos se dera

Poder que à índia navegar fingia,

E contra a expectação veio à Bahia.

LXXIX

A fonte descobri da excelsa praça,

As armas governando o bom Furtado,

Que. antevendo os efeitos da desgraça

Tudo dispunha com valor frustrado.

Convoca quantos encontra e tudo abraça

Por opor-se ao perigo ameaçado;

Mas dissipa-se a gente sem batalha,

Por faltar não valor, mas vitualha.

LXXX

Dispunha assim o batavo experiente,

Antevendo que a turba mal unida,

Sem cauta providência que a sustente,

Esfriando no ardor toma a fugida;

E, vendo a multidão menos freqüente

E a plebe na tardança esmorecida,

Quando menos o espera a chusma fraca,

Ocupando um castelo, o povo ataca.

LXXXI

Ruiter e Duchs com legião potente

A porta invadem de S. Bento em fúria;

Mas, rebatidos de impressão valente,

Cessam, fugindo da intentada injúria.

Mas tão funesto horror concebe a gente,

Que a guerra ignora com profunda incúria,

Que. quando faz que Ruiter não se arroje,

Deixa o terreno e do vencido foge.

LXXXII

Furtado de Mendonça, que não vira

Jamais do medo vil a fronte escura,

Com setenta somente a face vira,

E sem mais que o seu peito a praça mura:

O amor da pátria, que o furor lhe inspira,

Faz que, da vida desprezando a cura,

Se arroje o luso ao batavo que o inunda,

E um fira, um despedace, outro confunda.

LXXXIII

Mas, vendo na manhã que o céu descobre

A cidade do povo abandonada,

Nem mais que o peito de Furtado nobre

Com poucos dos setenta na esplanada,

Teme que num só peito o valor sobre,

E que, deixando a empresa retardada,

Socorro venha donde bom partido

Ao bravo chefe se ofereceu rendido.

LXXXIV

Não tarda a fama a divulgar voando

Da capital brasílica o sucesso,

Enquanto o belga, que lhe ocupa o mando,

Recolhe da vitória o imenso preço.

Treme em Madrid o trono, receando

Que o bélgico leão, com tanto excesso,

Prostre o de Espanha e, como o vulgo narra,

No México e Peru lhe imprima a garra.

LXXXV

Cobre-se o mar de esquadra numerosas,

Move-se a lusa e hispana fidalguia,

Vão-se embarcando legiões famosas,

Todo em náutica chusma o mar fervia.

Fradique as naus hispanas poderosas,

Menezes as de Lísia prevenia,

Vendo-se terra e mar, no caso incerto,

De petrechos, canhões e armas coberto.

LXXXVI

Já pela barra entrava da Bahia,

Com sessenta e seis naus soberba a armada,

Doze mil homens de alta valentia

Ocupavam sobre elas a enseada,

De tanto nome em militar porfia,

Que a guarnição da praça, de assombrada,

Bem que finja valor nesta conquista,

Antes que ao ferro, se lhe abate à vista.

LXXXVII

Dispõe-se em meia lua a armada inteira,

Cerrando a fuga ao belga esmorecido;

Ocupa o forte exército a ribeira

Em dois quartéis aos lados dividido,

Mas o batavo Quif na ação primeira,

Tendo o campo a Fradique acometido,

Com sortida deixou no ardor insana

Suspensa a lusa gente e rota a hispana.

LXXXVIII

Cheio o belga de orgulho na ação brava,

Por que mais prove pela pátria o zelo,

Contra a esquadra, que os muros varejava,

Em dois baixéis arroja um mongibelo.

Crê que é fuga o Menezes, que observava,

E move toda a esquadra sem prevê-lo;

E parece que Deus o impulso inspira,

Com que do oculto incêndio as naus retira.

LXXXIX

Um giro a lua fez na azul esfera,

Enquanto os belgas, de valor já faltos,

Ceder dispunham na contenda fera

Ao furor incessante dos assaltos;

E, quando mais socorro não se espera,

Vendo que os mares se empolavam altos,

Cede o batavo humilde ao luso-hispano

A capital do império americano."

XC

Falando prosseguia Catarina,

Tendo a assembléia no discurso atenta,

Quando com fúria o bordo ao mar inclina

A nau batida de hórrida tormenta.

Tudo à manobra o capitão destina;

E, vendo que onda horrível se apresenta,

Lança-se o marinheiro à vela em pressa,

Acode o Diogo e Catarina cessa.

(1) Este meio — projeto admirável de fazer úteis as conquistas a população das nações que as fazem, pois é certo que, com esta

política se formou e cresceu a antiga republica de Roma

(2) Note-se que Colon não foi o descobridor do Brasil mas Pedro Álvares Cabral; ao mesmo Colon, então habitante na Madeira, deu os roteiros com que descobriu a América Francisco Sanches, o qual fazem uns Andalus, outros Biscainho, mas o espanhol Gomara autor coevo, e que militou entre os soldados de Colon, atesta que era português. Não é portanto ocasião de notar-se a expressão:dando a Cabral o instinto,etc.

(3) Os Corrêas e Sás. Esta é a rama nobilíssima dos condes de Penaguião, que, passando ao Brasil, deu os primeiros conquistadores àquele Estado, família que existe com a antiga glória na excelentíssima casa de Asseca e nos dois digníssimos ramos da mesma os excelentíssimos senhores Sebastião Correia de Sá e João Correia de Albuquerque, fidalgos que o Brasil deve considerar por seus perpétuos pais e protetores.

 

CANTO IX

I

Depois que o tempo torna bonançoso

E a noite vem tranqüila em branda calma,

De ouvir o mais do sonho portentoso

Se acende a todos o desejo n'alma;

E no empenho do belga belicoso,

Desejando escutar quem teve a palma,

Suplicam Catarina que prossiga

Na narração do sonho e tudo diga.

II

"Vi (prossegue a matrona) em Marte duro

Confundir-se o Brasil, vagar potente

O batavo feroz, e o reino escuro

Encher Plutão da desditosa gente.

Vi descendo as milícias do céu puro

A plebe inerme com o zelo ardente

Infundir valor tal, que conte a história

Por milagre do céu cada vitória

III

Petrid e Íolo, raios da marinha,

Com esquadra do pélago senhoras,

Qualquer do lado seu queimado tinha

Com chamas o Brasil desoladoras;

Petrid a frota que das Índias vinha

Com procelas de fogo abrasadoras,

E nas naus lavra, de tesouros cheias,

Ao infausto Brasil novas cadeias.

IV

Máquina move o belga ambiciosas,

Suprindo os gastos com a imensa prata;

E, armando em guerra esquadras numerosas,

Ocupar Pernambuco ao luso trata:

Nem As forças da Holanda poderosas

Opõe o hispano, com a nova ingrata,

Tal socorro que a praça na contenda

Do grão-poder dos batavos defenda.

V

Rege de Pernambuco a terra extensa

O intrépido Albuquerque, a tudo atento.

Guarnece a praça, os esquadrões condensa,

Dispõe ao fogo o bélico instrumento,

Quando à maneira de floresta densa

Se viu coberto o liquido elemento,

Onde proas setenta o mar rompiam,

E o Wandemburgo general seguiam.

VI

Chamam Pau amarelo um sitio ao lado

Da cidade que a frota acometia.

Cômodo ao desembarque e mal guardado

De Albuquerque, que as praias defendia:

Ali, com quatro legiões formado,

A bela Olinda o batavo se envia

Onde com turmas de inexperta gente

E opôs o luso chefe ao belga ardente.

VII

Nem muito dura ao fogo desusado

O tímido esquadrão da gente lusa,

Que, do insólito horror preocupado,

A fuga empreende em multidão confusa:

Um sobre outro, ao fugir precipitado,

Render-se ao fero belga não recusa;

E, a cidade infeliz deixando aberta

Qualquer se salva donde mais o acerta.

VIII

Entra o holandês na praça abandonada,

E quando de riqueza a cuidou cheia,

Em triste solidão desamparada,

E acha sem prêmio a cobiçosa idéia

Vingam nos templos a intenção malvada,

E o altar profanam com infâmia feia,

Tratando o pio rito e o santo culto

Com sacrílega mente e horrendo insulto.

IX

Mas não sofre da fuga o torpe medo

O valente fortíssimo Temudo;

E, tendo ao lado o intrépido Azevedo,

A espada empunha embaraçando o escudo.

Ao ser do saco no funesto enredo

A forma do holandês turbar-se em tudo,

Une alguns, que, odiando a vil fugida,

Dão por preço da glória a heróica vida.

X

"Oh, disse, honra imortal do nome luso,

Corações valorosos, que em tal sorte

Fazeis da doce vida o melhor uso,

Comprando a glória com a invicta morte!

Vedes sem forma o batavo confuso,

Da valorosa espada exposta ao corte:

Corra-se às armas, que, se os não vencemos,

Sem a pátria vingar não morreremos."

XI

Disse; e, empregando a fulminante espada,

Uma esquadra invadiu que discorria,

Com cálices da igreja profanada,

Que com insulto em derrisão metia;

De uns a fronte no chão deixou truncada,

De outros o peito com o ferro enfia,

De alguns, que insano acometendo freme,

Talhado o braço sobre a terra treme.

XII

Azevedo entre os mais, que no chão lança,

Tendo das balas empregado o impulso,

Com fero golpe de alabarda alcança

De Ruiter, que o acomete, o horrível pulso:

Despoja-o da arma e furioso avança,

Deixando-o em terra com tremor convulso,

Cornelisten derriba e o ferro emprega

Em Blá, que todo o chão com sangue rega.

XIII

Com fúria igual e impulso destemido

Invade contra o batavo a caterva,

E, bem que a legião em corpo unido,

Em roda ao luso disparando ferva,

Resiste o português nunca rendido,

Enquanto a vida com vigor conserva,

Até que sobre 08 belgas derribados

Caíram mortos sim, porém vingados.

XIV

Tem por nome Arrecife um forte posto,

Que um istmo separou do continente,

Donde o Castelo de S. Jorge oposto

Defende o passo ao transito iminente.

Ali fazia aos inimigos rosto

O bravo Lima, que do belga ardente,

Sem mais que trinta invictos defensores,

Trezentos sacrifica aos seus furores.

XV

Pasma de assombro Wandemburgo insano,

Nem pode crer, se o não convence a vista

Que com força tão pouca o lusitano

De dois mil belgas ao furor resista.

Sai com todo o poder e ocupa o plano,

E em forma regular tenta a conquista;

E nem assim o Lima ao fogo cede,

Enquanto auxilio ao general não pede.

XVI

Recobrava-se entanto valorosa

Do primeiro terror a lusa gente,

Que. inexperta da pugna belicosa,

Cedera no improviso do acidente.

E, acompanhando em tropa numerosa

Do intrépido Albuquerque o ardor valente,

O belga usurpador pelas ribeiras

Cercaram com redutos e trincheiras.

XVII

Plantam depois um forte acampamento,

Donde se insulte o batavo inimigo;

Nem deixavam que um só pudesse isento

Sair sem dano ao campo, ou sem perigo.

Cortam-lhe o passo, impedem-lhe o sustento,

Nem lhe concedem no terreno abrigo,

E, ocupando-lhe o giro dilatado,

O belga cercador deixam cercado.

XVIII

Dois mil dos seus guerreiros escolhidos

Contra Albuquerque Wandenburg avança;

Mas achavam os lusos prevenidos

Do seu valor na nobre confiança:

Caiam das trincheiras rebatidos

Do fogo os belgas, ou da espada e lança,

E, sem que combatendo a mais se arrojem,

Em desordem do campo à praça fogem.

XIX

Com quatro companhias numa armada

Socorro de Lisboa recebendo,

Foi outra vez a tropa reforçada

Com gente e munições noutra de Oquendo:

Mil mosqueteiros, tropa exercitada,

No duro jogo de Mavorte horrendo,

S. Félice conduz mestre de guerra (1)

Mas menos apto na que usava a terra.

XX

Com socorro maior de Holanda armado

Contra Itamaracá corre o inimigo;

Duas vezes, porém, foi rechaçado

Com perda o belga para o noto abrigo

A Paraíba e Rio Grande enviado,

Mudava de lugar, não de perigo;

E, já menos bisonha a lusa topa,

Põe em fuga o holandês, se em campo o topa.

XXI

A Wandemburgo no holandês império

Sucedera Rimbach em guerras noto,

Que. estimando dos belgas vitupério

Ser cada dia pelos nossos roto,

Enquanto celebrava atento e sério

A páscoa o campo em procissão devoto,

Com todo o poder batavo acomete,

E o campo em confusão, batendo, mete.

XXII

Não se interrompe a cerimônia augusta;

Orando o clero com o sexo pio,

Sai o ortodoxo conta a turma injusta,

Tomando por sagrado o desafio;

E, fundando no céu confiança justa,

Pelejam com tal fé, com tanto brio,

Que. matando Rimbach em feio estrago,

Deram aos belgas da blasfêmia o pago.

XXIII

Mas o céu, que o flagelo destinava,

Poder tão grande aos batavos concede,

Que nada a Vandescop, que os moderava,

Depois desta campanha o curso impede.

Fica Itamaracá de Holanda escrava,

Desfaz-se o campo, a Paraíba cede,

Perde-se o Rio Grande, e noutra empresa

Rende o luso o Pontal e a Fortaleza.

XXIV

Salva-se o resto, da facção perdida

Nas Alagoas, sítio defensável,

Onde, de fero belga perseguida,

Asilo busca a turba miserável.

Mas foi da Espanha em breve socorrida

Com brava tropa em frota respeitável;

Rosas de Borja, a Pernambuco enviado,

De Albuquerque o bastão tomou deixado.

XXV

Roxas, pronto no obrar, posto em batalha,

De Vandescop as tropas investia;

Mas o belga Arquichofe a marcha atalha

Com socorro que válido trazia

Com tenebrosa sombra os lutos talha

A noite, que começa, à morte impia,

Dispondo Roxas em defesa armado

Esperar o socorro convocado.

XXVI

Mas, logo que a manhã mostrou formosa

Da batalha inimiga a forma unida,

Mais não sossega a chama generosa,

E investe ardente a batava partida:

Cobre os céus a fumaça tenebrosa,

Perde o hispano e o holandês na empresa a vida,

E nem este, nem o outro ali vencera,

Se o temerário Roxas não morrera.

XXVII

S. Félice, na guerra mestre astuto,

Sucede no governo ao bravo hispano,

E brasílico Fábio entanto luto

Salvou na retirada o lusitano.

Foi das palmas batávicas produto

Governar o país pernambucano

O conde de Nassau, que o belga envia,

General das conquistas que emprendia.

XXVIII

Era Nassau nas armas celebrado,

Com que ilustrava o excelso nascimento,

Príncipe então no império respeitado,

Nutrindo igual ao sangue o pensamento

Entrou de forte armada acompanhado,

E, no Arrecife situado o assento,

Levantou fortes, e em países belos

Guarneceu as colônias com castelos.

XXIX

Mas, aspirando a empresa memorável,

Todo o exército e armada prevenia,

E, achando Pernambuco defensável,

Invadiu no recôncavo a Bahia.

S. Félice com resto miserável

Ali novo socorro ao rei pedia,

Quando ao bravo Nassau dispunha a sorte

Um chefe nele opor prudente e forte

XXX

Tudo dispunha o conde em forma e arte

De rebater do batavo a interpresa,

Dispõe pela cidade em toda a parte

Os meios e instrumentos da defesa;

Faz grossas levas e esquadrões reparte,

E, tudo preparando à forte empresa,

Nada esqueceu de quanto na milícia

Inventa a militar sábia perícia.

XXXI

Entrava entanto pela vasta enseada

Nassau, que as praias enche da Bahia

Com a terrível majestosa armada

Que com quarenta naus linha fazia;

E, ao som da trompa marcial tocada

Em gratos ecos de hórrida harmonia,

Enche a horrenda procela em tais ensaios

A enseada de trovões e o céu de raios.

XXXII

Entanto o claro Silva, que ocupava

Do supremo governo o excelso mando,

A S. Félice o posto renunciava,

Ficando por soldado ao seu comando.

Heróica ação, que pela pátria obrava,

Maior perícia em outrem confessando,

E merecendo nela em tanta empresa

Da corte aclamações, do rei grandeza. (2)

XXXIII

Desembarca Nassau com turba ingente

Junto de Tapagipe, e empreende o oiteiro

Que nomear costuma a vulgar gente

Do antigo habitador Padre Ribeiro.

Mas S. Félice, que o anteviu prudente,

De posto o bate, que ocupou primeiro;

E, depois que seiscentos destro mata,

Em grande parte o belga desbarata.

XXXIV

Largos dias Nassau bate a trincheira,

Que lhe opôs ao quartel Banholo à frente;

Mas o belga em batalha verdadeira

Por muitos dias se avançava ardente.

Cobre-se a terra em hórrida maneira

De um monte de cadáveres ingente,

Vendo os belgas cair, sem que desista

Nassau com tanto sangue da conquista.

XXXV

E já desfeito o exército se via,

Ferido o oficial, e a gente morta,

Sem que cessasse o ardor nos da Bahia,

Que o S. Félice rege e o Silva exorta.

Pede tréguas Nassau nesta porfia,

E tudo com a tropa as naus transporta,

Fugindo do perigo o infausto efeito.

Com perda igual de gente e de conceito.

XXXVI

Dois dias na enseada por vingança

Bate a esquadra a cidade sem perigo,

Com balas e granadas, que em vão lança,

Parecendo mais salva que castigo.

Sobreveio ao Brasil nova esperança

De expugnar com mais forças o inimigo;

Mas foi o efeito das promessas vário,

Impedindo o socorro o mar contrário.

XXXVII

Vi neste tempo em confusão pasmosa

A monarquia em Lísia dominante,

E a casa de Bragança gloriosa

Nos quatro impérios triunfar reinante,

A Bahia com pompa majestosa

Festejar o monarca triunfante,

E o Pernambuco, de desgraças farto,

Invocar pai da pátria D. João Quarto.

XXXVIII

Tratava o novo rei com fé provada

A batávica paz, que sem justiça

Deixava ao mesmo tempo quebrantada

O belga injusto pela vil cobiça .

Ocupa o Maranhão batava armada,

E outra esquadra em Sergipe o incêndio atiça,

Pretendendo ocupar com falso engano

Toda África e Brasil ao lusitano.

XXXIX

Cede do seu governo de afrontado

O general Nassau, tornando à Holanda,

Tendo o conselho do Arrecife armado

Mil artifícios de calúnia infanda.

Nem contra os habitantes moderado

O duro freio no governo abranda,

Onde a plebe agravada que o experimenta

O Jugo sacudir com glória intenta.

XL

João Fernandes Vieira foi na empresa

O instrumento da pátria liberdade,

Herói que soube usar da grã-riqueza,

Libertando o Brasil desta impiedade.

De amigos e parentes na defesa

Tentou furtivamente a sociedade,

E como a pedra a estátua de Nabuco.

O belga derribou de Pernambuco.

XLI

Nomeou cabos, tropas, companhias,

Pediu socorros e invocou prudente,

Expondo do holandês as tiranias,

O governo brasílico potente.

Avisa sem demora Henrique Dias, (3)

Capitão dos etíopes valente,

E o forte Camarão, que em guerra tanta (4)

Com os seus carijós o belga espanta.

XLII

Ouse o holandês com susto o movimento;

E, querendo oprimir nascente a chama,

Com dois mil homens prevenia atento

A nova guerra que o Vieira inflama.

Deixara o luso chefe o alojamento,

E os belgas, que à cilada oculto chama,

Empenhou de um lugar nas duras rocas,

A que o monte chamaram das Tabocas.

XLIII

Entre arbustos e canas de improviso

Dispara o luso sobre a incauta gente,

E, precedendo o dano antes do aviso,

Desbarata o holandês com fúria ardente.

Suspende a marcha o batavo indeciso,

E, sem ver o inimigo, o golpe sente,

Até que, vendo o estrago dos soldados,

Cedem o campo e fogem destroçados

XLIV

Holanda era potente e o luso aflito,

Onde enchendo Lisboa de ameaças,

Por ter notícia do infeliz conflito,

Meditava ao Brasil novas desgraças.

Mas, por guardar os seus, o rei invicto

Dispôs piedoso nas providências lassas

Providências que à paz chamar pudessem

O tumulto em que os nossos permanecem.

XLV

Vão com dois regimentos destacados

O moreno e o negreiros da Bahia

A dar paz (se é possível) destinados

Na guerra que o Vieira então movia.

Vieram veigas e Campos abrasados,

E o colono infeliz, que perecia,

Com lastima da tropa, que observara,

Todo o estrago que o belga ali causara.

XLVI

Avistado o Negreiros e o Vieira

"Venho (disse o primeiro) a prisão dar vos,

Por haver provocado a ira estrangeira

A uma guerra que acabe de assolar-vos."

"É justo que eu também prender-vos queira;

Mas será (disse o herói) com abraçar-vos."

E, assim dizendo, alegre move o passo,

E os dois recebe com festivo abraço.

XLVII

Outro tanto fazia a tropa unida

Ao invicto esquadrão pernambucano;

E, aplaudindo a vitória conseguida,

Detestam do holandês o enorme engano.

Nem muito tarda a gente fementida

Que não abrase ao lusitano,

Onde embarcado pela paz chegara,

Com o batavo próprio o convidara.

XLVIII

Ouvem-se entanto os míseros clamores

De turba feminina, que invocava

O socorro dos seus libertadores

Contra o belga cruel que a cativava.

Mas não cessa o Vieira e sem rumores

O engenho, aonde incauto descansava

O belga general cercado, bate,

E, rendendo-o à prisão, vence o combate.

XLIX

Henrique Huss, no Arrecife comandante,

Era o cabo dos belgas prisioneiro,

Blac rendido também, chefe importante,

Subalterno nas armas do primeiro.

Foge do luso o batavo arrogante,

Espalhando fuzis no grão-terreiro,

E a chama teme que no horrendo empenho

Lançara o Vieira pelo vasto engenho.

L

Com fama de vitória tão brilhante

Toma as armas a plebe e o belga invade;

Serenhaem tomou, vila possante,

O partido comum da liberdade.

Segue Itaramaracá com fé constante,

Porto Calvo e os contornos da cidade,

Deixando no Arrecife sem remédio

Encerrado o holandês com duro assédio,

LI

Mas não cessa na Holanda a companhia,

E ao numeroso exército que ordena,

Segismundo Van-Scop por chefe envia,

Munido em guerra de potência plena;

Do experto general, que desconfia

O prêmio valoroso, do fraco apena,

E empreendendo com forças o combate,

O inimigo Vieira ou prenda, ou mate.

LII

Abordando o Arrecife então cercado,

A inércia dos seus chefes repreende;

Nem muito tarda que no campo armado

Não saia a Olinda, que expugnar emprende.

Em assalto a acomete duplicado,

E a brava tropa, que ao presídio atende,

Com tanto alento o batavo rechaça,

Que ferido Van-Scop se acolhe à praça.

LIII

Sem que desista da passada instância,

Tenta de novo a empresa da Bahia;

Mas, notando nos lusos a constância,

Que injúria do poder lhe parecia,

Consome do Recôncavo a abundância

Com freqüentes sortidas, que emprendia,

E, porque cresça na cidade o tédio,

Ocupa Taparica e põe-lhe o assédio.

LIV

Teles entanto, que expulsar pretende

Sem igual força o batavo contrário,

Contra o comum conselho o ataque emprende,

E tudo expõe no impulso temerário

Mas, vendo o luso rei que a nada atende

O belga nos seus pactos sempre vário,

Manda armada ao Brasil, que poderosa

A batava nação dome orgulhosa.

LV

Teme o golpe Van-Scop e desampara,

Por guardar o Arrecife, Taparica,

Antevendo que a esquadra se prepara

Contra a praça, que auxílio lhe suplica.

Barreto de Menezes, que chegara

De novo general patente indica,

E em Pernambuco sublimado ao mando

Com prudência e valor foi governando.

LVI

Nove mil homens, tropa valorosa,

E com freqüentes palmas veterana,

Manda o batavo a empresa perigosa,

Que à guerra ponha fim pernambucana.

Ocupa o mar armada poderosa,

E, dominando a praia americana,

Usurpa em mar e terra alto domínio,

Ameaçando dos lusos o extermínio.

LVII

Põe-se em campanha o batavo terrível,

Com sete mil de veterana tropa;

Vão densos bandos de gentio horrível,

Com destro gastador vindo da Europa;

E, estimando a potência irresistível,

Cende ao belga a Barreta e quanto topa, (5)

Enquanto em defensiva o luso fica,

E o campo contra o belga fortifica.

LVIII

Segismundo, porém, que os bastimentos

Em Moribeca assegurar procura,

Dispunha ali tomar alojamentos,

Estimando a vitória já segura.

Mas Barreto e Vieira a tudo atentos,

Na justiça, que a causa lhe assegura,

Confiam que na empresa o céu lhe valha,

E tudo vão dispondo a uma batalha.

LIX

Nem com tanto poder Van-Scop recusa

Decidir numa ação toda a contenda,

Antevendo, se a perde a gente lusa,

Que outra força não tem que a guerra emprenda;

E já na marcha a multidão confusa

A ação começa pelo fogo horrenda,

E, turbando dos belgas toda a forma,

Combatem com valor, porém sem norma.

LX

Nos montes Guararapes se alojava

Formando o português, que o belga espera;

E a escaramuça, que emprendera brava,

Traz a sítio o holandês, que adverso lhe era;

Desde alto monte o luso fogo obrava,

Com ruína dos batavos tão fera,

Que, ou seja ao lado, ou na espaçosa fronte,

Se cobriu de cadáveres o monte.

LXI

Reúne os batalhões Van-Scop irado,

E à frente com valor da linha posto

Tenta desalojar do alto ocupado

O invicto Camarão, que lhe faz rosto;

Mas, com chuva de balas rechaçado,

Perde três vezes o ganhado posto,

E já ferido com mil mortos cede,

Em vil fuga, que a noite lhe concede.

LXII

Noventa dos seus perde o lusitano;

E enquanto o belga se retira incerto,

Descobre a aurora todo o monte e plano

De bandeiras, canhões, e armas coberto.

Muitos ali do batavo tirano,

Perdidos pela noite em campo aberto,

Deixa o dia, inexpertos nos roteiros,

Nas mãos da nossa tropa prisioneiros.

LXIII

Horroriza-se Holanda, pasma Europa,

Exalta Portugal, canta a Bahia,

Vendo-se triunfar tão pouca tropa

Da terrível potência que a invadia.

Nada de humano o pensamento topa,

Que em tudo a mão de Deus clara se via,

Pois sempre elege para os seus portentos

Os mais fracos e humildes instrumentos.

LXIV

Tinha exausta a ambição, mas não cansada

A cobiçosa Holanda em tal conquista;

E, para novo empenho aparelhada,

Escolhe os capitães e a gente alista;

Mas do Britano às armas provocada,

Sobre interesse que mais alto avista,

Suspende influxo na famosa empresa,

Deixando em Pernambuco a guerra acesa.

LXV

Brinca este tempo, coronel valente,

Impetra de Van-Scop tropa luzida,

Com petrechos e número potente,

Que em batalha cruel toda decida.

Cinco mil homens de escolhida gente,

De canhões, e petrechos guarnecida,

Põe no campo assombrado da potência,

Igualando o valor coa diligência.

LXVI

Com dois mil e seiscentos veteranos

Fez-lhe frente Barreto e o belga invade;

Correm de toda a parte os lusitanos

A sustentar a pátria liberdade.

Aloja o luso sobre os mesmos planos

Onde fora passada a mortandade;

O belga na montanha se distingue,

Um que estrago renove, outro que o vingue.

LXVII

Mas Brinc, a tudo atento desde o cume,

Com perícia guerreira ocupa o monte,

Onde, seguindo o militar costume,

Dá forma à retaguarda e ordena à fronte;

Nem tão ousado o português presume,

Que em vantajoso posto o belga afronte,

Esperando a ocasião dali oportuna

De poder atacar com mais fortuna.

LXV

Reconhece Barreto o sítio e forma,

E, vendo o ardor da lusitana gente,

Que, hábil no passo, da subida o informa,

Faz que o bravo Vieira ataque ardente;

E, cobrindo a invasão com sábia norma,

Com o fogo protege o assalto ingente,

Até que por mil casos duvidosos

Vê sobre o monte os campeões briosos.

LXIX

Nova batalha ali com fogo vivo

Move impávido o belga e firme insiste;

E, por mais que o Vieira invada ativo,

Onde um corpo vacila, outro resiste.

Tal há que ainda combate semi-vivo;

Tal que, cadáver já na morte triste,

A terra morde e em raiva enfurecida,

Blasfemando do céu, despede a vida.

LXX

A toda a parte voa o grão-Barreto,

E um anima, outro ajuda, outros exorta;

E, excitando no luso o pátrio afeto,

Incita o fone, o inválido conforta.

Bramava o fero Brinc em sangue infecto,

Entre a batava turba opressa e morta;

Assalta horrendo um batalhão potente,

E outros reprime com ferócia ardente.

LXXI

Mas o invencível Camarão, que o nota,

Um forte troço da reserva abala;

E, suspendendo a misera derrota,

Lança o belga por terra de uma bala.

Logo o almirante da soberba frota,

Vendo invadido Brinc cair sem fala,

Ocupa o mando, que já vago estima,

E o batavo à peleja altivo anima.

LXXII

Não sofre Henrique Dias, que observava

Do novo chefe a intimação constante;

E de um tiro, que fero lhe apontava,

Derriba morto o intrépido almirante.

Sem comandante, o belga trepidava,

E, de um e de outro lado vacilante,

Uma vil fuga tímido declara,

E o campo com desordem desampara.

LXXIII

O estandarte soberbo dos Estados,

Tendas, peças, bandeiras numerosas,

Mil e trezentos mortos numerados,

Prisioneiros, bagagens preciosas,

Muitos centos na fuga degolados,

A caixa militar, armas custosas,

Foram, nesta ocasião, de tanta glória,

O merecido prêmio da vitória.

LXXIV

Cinge o Arrecife de um assédio estreito

Com pronta cura o chefe lusitano;

Mas, tendo longa guerra o belga feito,

Era contínuo sim, mas mútuo o dano;

Até que Jacques ao comando eleito

No campo se avistou pernambucano.

Conduzindo em fortuita derrota

Para o luso comércio a usada frota.

LXXV

Por mar e terra sitiada a praça,

Depois do longo assédio de nove anos,

Com mil desastres fatigada e lassa,

Cedeu todo o Brasil aos lusitanos:

Mercê clara do céu, patente graça,

Que a tão poucos e míseros paisanos

Cedesse uma nação que enchia em guerra

De armadas todo o mar, de espanto a terra.

LXXVI

Assim modera o Padre Onipotente

Do ignorante mortal a incerta sorte,

Por fazer com tais casos evidente

Que não é quem mais pode o que é mais forte.

Tudo rege na terra a mão potente;

Dele a vitória pende, a vida, a morte;

E, sem o seu favor, que o distribui,

Todo o humano poder nada conclui.

LXXVII

Triunfou Portugal; mas, castigado,

Teve em tal permissão severo ensino,

Que só se logrará feliz reinado,

Honrando os reis da terra ao rei divino;

E que o Brasil aos lusos confiado

Será, cumprindo os fins do alto destino,

Instrumento talvez neste hemisfério

De recobrar no mundo o antigo império.

LXXVIII

Vi ne sonho mil casos diferentes,

Que no curso virão de outras idades.

Vi províncias notáveis e potentes,

Vi nascer no Brasil áureas cidades;

Famosos vice-reis e ilustres gentes,

Tantos sucessos, tantas variedades,

Que somente pintado, como em sombra,

Confunde o pensamento, a vista assombra.

LXXIX

Prelados vi de excelsa jerarquia,

E entre outros da maior celebridade

O claro Lemos, que enriqueça um dia

De novas ciências a universidade:

Ele ornará depois a academia

Com construções de excelsa majestade,

E em doutrina a fará com sábio modo

O Ateneu mais famoso do orbe todo."

LXXXX

Deu Catarina fim, e arrebatada

Num êxtase ficou, vibrando ardores;

Corriam pela face em luz banhada

Lágrimas belas, como orvalho em flores.

Fica a pia assembléia esperançada

De outros sucessos escutar maiores;

E, dando tempo ao sono milagroso,

No abraço a deixam do celeste esposo.

(1) S. Félice. — É o célebre conde de Banholo oficial prático, mandado de Espanha para exercitar e disciplinar as nossas milícias.

(2) Do rei grandeza. — Por esta ação generosa, que salvou a Bahia, foi criado por Felipe IV primeiro conde de S. Lourenço.

(3) Henrique Dias. —Negro valorosíssimo e comandante dos Etíopes, que tiveram grande parte na restauração do Brasil.

(4) Camarão. — D. Antônio Felipe Camarão, americano de origem e nação, bravíssimo capitão dos Carijós, que se fez terrível aos holandeses em freqüentes combates que lhes deu.

(5) Barreta. — Fortaleza importante dos nossos, junto do Arrecife.

 

CANTO X

I

Cheia de assombro a turba a dama admira

Tornada a si da suspensão pasmosa;

E da nova visão, que ali sentira,

Prossegue a ouvir-lhe a narração gostosa.

"Mais bela que esse sol que o mundo gira,

E com dor (disse) de purpúrea rosa,

Vi formar-se no céu nuvem serena,

Qual nasce a aurora em madrugada amena.

II

Vi luzeiros de chama rutilante

Sobre a esfera tecer claro diadema

Da matéria mais pura que o diamante,

Que obra parece de invenção suprema;

Luzia cada estrela tão brilhante,

Que parecia um sol, precioso emblema

De admirável, belíssima pessoa,

Que à roda da cabeça cinge a coroa.

III

De ouro fino os cabelos pareciam,

Que uma aura branda aos ares espalhava,

E uns dos outros talvez se dividiam,

E outra vez um com outro se enredava;

Frechas voando, mais não feririam,

Do que um só deles n'alma penetrava;

Cabelos tão gentis, que o esposo amado

Se queixa que de um deles foi chagado.

IV

A fronte bela, cândida, espaçosa,

Cheia de celestial serenidade,

Vislumbres dava pela luz formosa

Da imortal soberana claridade.

Vê-se ali mansidão reinar piedosa,

E envolta na modéstia a suavidade,

Com graça, a quem a olhava tão serena,

Que, excitando prazer, desterra a pena.

V

Dos dois olhos não há na terra idéia,

Que astros, flores, diamantes escurecem,

Ou na beleza de mil graças cheia,

Ou nos agrados, que brilhando of’recem,

Num olhar seu toda dama se encadeia,

E mil votos à roda lhe aparecem

Dos que a seu culto glorioso alista,

Outorgando o remédio numa vista.

VI

Das faces belas, se na terra houvera

Imagem competente que pintara,

As flores mais gentis da primavera

Pelo encarnado e branco eu comparara;

Mas flor não nasce na terrena esfera,

Não há estrela no céu tão bela e clara,

Que não seja, se a opor-se-lhe se arrisca,

Menos que à luz do sol breve faísca.

VII

Da boca formosíssima pendente

Pasma em silêncio todo o céu profundo:

Boca que um Fiat pronunciou, potente,

Com mais efeito que se criasse um mundo.

Odorífero cheiro em todo o ambiente

Do lábio se espalhava rubicundo:

Fragrância celestial, que amante e pia,

No filho com mil ósculos bebia.

VIII

Todos suspende em pasmo respeitoso

O amável formosíssimo semblante,

E mais nele se ostenta poderoso,

O soberano autor do céu brilhante:

Pois quanto tem o Empiro de formoso,

Quanto a angélica luz de rutilante,

Quanto dos serafins o ardente incêndio,

De tudo aquele rosto era um compêndio.

IX

Nas brancas mãos, que angélicas se estendem,

Um desmaiado azul nas veias tinto,

Faz parecer aos olhos, quando atendem,

Alabastros com fundos de jacinto.

Ambas com doce abraço ao seio prendem

Formosura maior, que aqui não pinto;

Porque para pincel me não bastara,

Quando Deus já criou, quanto criara.

X

Mas, se não se dedigna o verbo santo,

Por nosso amor, de um símbolo rasteiro,

Dentro parece do virgíneo manto,

Pascendo em brancos lídios um cordeiro.

Os olhos com suavíssimo quebranto

Lhe ocupa um doce sono lisonjeiro;

À roda os serafins, que o estrondo impedem,

Para o não despertar silêncio pedem.

XI

Aos pés da mãe piedosa superada

Vê-se a antiga serpente insidiosa,

De que a fronte na culpa levantada

Quebra a planta virgínea gloriosa;

E, enroscando os mortais já quebrantada,

Ao céu só da Virgem poderosa,

No mais fundo do abismo se submerge,

E o feral antro do veneno asperge.

XII

Ao ver beleza tanta, o pensamento,

Que a linda imagem surprendia absorto,

Ouve no centro d'alma um doce acento

Que o peito enchia de vital conforto.

E, como infunde às plantas novo alento

O matutino orvalho em fértil horto,

Tal dos doces influxos na abundância

Dentro d'alma eu senti nova constância.

XIII

"Catarina (me diz), verás ditosa

Outra vez do Brasil a terra amada;

Faze que a imagem minha gloriosa

Se restitua de vil mão roubada!"

E assim dizendo, nuvem luminosa,

Como véu, cobre a face desejada,

E faz que na memória firme exista

Entre amor e saudade a doce vista.

XIV

Assim conclui Catarina, enchendo

De duvidoso assombro a companhia.

Que imagem fosse aquela, iam dizendo,

Ou qual deles acaso a roubaria?

Se a Mãe de Deus, mistérios envolvendo,

Doutra cópia interior o entenderia,

Ou queria talvez que em santo trato

Se restitua n'alma o seu retrato?

XV

Mas vela em tanto apareceu boiante

Que junto da Bahia o mar cortava,

Onde em bandeira, que lançou flamante,

O leão das Espanhas tremulava.

Vem à fala com salva fulminante,

E a franca nau, que à terra velejava.

Posto à capa o espanhol, cortês visita,

E o claro Diogo a visitá-lo incita.

XVI

E, depois que em festivo amigo abordo

O bom Gonzales o hóspede festeja,

Excitou-se nos dois claro recordo

De quem o hispano foi, quem Diogo seja;

Ambos nos braços, de comum acordo,

Um a outro mil ditas se deseja,

Reconhecendo o luso o nobre hispano,

Por um dos companheiros de Arelhano.

XVII

"Carlos o grande, o imperador famoso,

Grato por mim a saudar-te envia

(Disse a Diogo o hispano generoso,

Socorrido a outro tempo na Bahia).

Ouviu o invicto César, gracioso,

O teu obséquio à espanha monarquia,

E o serviço, que grande considera,

Por mim do seu agrado remunera.

XVII

E por que possa em caso equivalente

Retribuir-te aquela ação piedosa,

Salva aqui te ofereço a infausta gente,

Perdida nessa praia desditosa,

De cativeiro bárbaro e inclemente

Vivia na opressão laboriosa,

Até que destas armas protegida

Remiu na liberdade a infausta vida."

XIX

Garcez então, da gente lusitana

O mais distinto que o discurso ouvia,

Confessa o benefício a força hispana,

E a história de seus casos principia:

"Depois que a gente abandonaste insana,

Com seu aviso, a lusa monarquia

Gente aqui mandou, naus poderosas,

Que as nações sujeitassem belicosas.

XX

Foi Pereira Coutinho o destinado

A fazer da Bahia a grã-conquista,

Herói no índico império celebrado,

Em quem nova esperança o luso avista,

Tudo tinha o bom chefe preparado,

Formosas naus ajunta e gente alista

E à grã-população que meditava

De um sexo e doutro as gentes convidava.

XXI

E, sem demora as praias ocupando,

Foi dos Tupinambás, com teu recordo,

As potentes aldeias visitando,

Com amiga aliança em firme acordo.

Do sertão vasto em numeroso bando

Desciam, festejando o nosso abordo,

Os carijós, tapuias e outras gentes,

Por fama do teu nome obedientes.

XXII

Gupeva e Taparica celebrados

Entre os tupinambás, nação que habita

Os campos da Bahia dilatados,

Antes de outros Coutinho solicita;

E, por vê-los contigo emparentados,

Povoar o Recôncavo medita

Da gente, que o teu nome reconhece,

Onde de dia a dia o povo cresce.

XXIII

Todo o fértil terreno utilizando,

Donde riqueza se oferece tanta,

Engenhos vai de açúcar fabricando,

Aldeias, casas, máquinas levanta.

E as drogas preciosas comutando,

A mandioca, arroz e a cana planta;

Nem dúvida que seja em tempo breve

A colônia melhor que Europa teve.

XXIV

Escolha faz nas tabas numerosas

Dos que acha no trabalho mais ativos;

Mas guarda para empresas belicosas

Os que em ferócia reconhece altivos.

A todos com maneiras amorosas

Propõe da fé cristã claros motivos;

E, a condição notando em cada raça.

Uns doma com terror, outros com graça.

XXV

Sabe que em gente tal nada se colhe,

Depois de endurecer na idade adulta,

Onde na puerícia os mais escolhe,

Por dar-lhe em breve a educação mais culta.

Nem dos pais violento algum recolhe;

Mas do proveito, que de alguns resulta,

Induz a gente bárbara que o segue

Que a prole à educação gostosa entregue.

XXVI

Em cuidadosa escola, o temor santo

Antes das artes a qualquer se ensina;

Dão-lhes lições de ler, contar, de canto,

E o catecismo da cristã doutrina;

Vendo-os o rude pai, concebe espanto,

E pelo filho a mãe à fé se inclina;

Nem de meio entre nós mais apto se usa

Que aquela gente bárbara reduza.

XXVII

E estes serão, se a idéia não me engana,

Meios à grande empresa necessários,

Que em breve a gente rude fora humana,

Com escolas e régios seminários.

Foge, sem se domar, a gente insana,

Se em forças e poder nos vê contrários;

Mas, educada em tenra mocidade,

Dilataria o reino e a cristandade.

XXVIII

Mas no meio das belas esperanças,

Com que a nova colônia florescia,

Move a serpe infernal desconfianças

Entre os tupinambás e os da Bahia:

Foi a causa infeliz destas mudanças

Um interesse vil de gente impia,

Que os povos ofendendo em paz amigos,

Cobriram toda a terra de inimigos.

XXIX

Gupeva foi dos seus abandonado;

Taparica foi mono; a lusa gente

Do gentio nos matos rebelado

Contínua perda nas lavouras sente.

Queimada a planta foi, perdido o gado,

E, cercado o arraial em contingente,

Viu Coutinho por bárbara violência

Perdido o seu tesouro e diligência

XXX

Na geral aflição do luso povo

A lugar se recorre mais tranqüilo;

Buscamos nos Ilhéus um sítio novo

Contra a turba feroz, seguro asilo.

E já Coutinho se dispõe de novo,

Vendo manso o gentio, a reduzi-lo,

Fabricando colônia de mais dura,

Menos fecunda, sim, mas mais segura.

XXXI

Mas os Tupinambás, melhor cuidando,

Com promessas os nossos convidavam,

Com mil amigas provas protestando

De conservar a paz que antes guardavam,

Creu o infeliz Coutinho, celebrando

Pactos que segurança a todos davam;

E, sem temor de mais, voltar queria

Ao Recôncavo antigo da Bahia.

XXXII

E já no mar a frota se equipava,

E cada um de nós na empresa absorto,

Sem temor, ou receio, só cuidava

Em fazer ao Recôncavo transporto,

Navegamos o espaço que distava,

E, tendo à vista o desejado porto,

Com fúria o mar aos astros se levanta,

Em cerração do céu que à vista espanta.

XXXIII

O ar caliginoso e em névoa impuro

Tirou-nos toda a vista, e sem destino

Batemos cegos num penhasco duro,

Sem termos do lugar notícia ou tino.

Neste momento horrível, transe escuro,

Suplicando o favor do céu divino,

Vemos a nau, com hórridos fracassos,

Desfazer-se na penha em mil pedaços.

XXXIV

Ficamos, como o entendes, alagados,

Nadando em meio da procela horrenda;

Uns das ondas se afogam devorados,

Outros na praia em confusão tremenda.

E eis que os cruéis tupis encarniçados

Com frechas se empenharam na contenda,

Por levar-nos da areia semi-vivos

À sorte dos seus míseros cativos.

XXXV

Muitos vimos dos bárbaros comidos,

Alguns dispostos ao funesto ocaso,

Aflitos todos nós e esmorecidos,

E esperando qualquer seu triste prazo;

Mas de ti sobretudo condoídos,

Triste Coutinho, que no acerbo caso,

Depois de triunfar da Ásia assombrada,

Perdeste infelizmente a vida amada.

XXXVI

Tu, que mil vezes no remoto oriente

Levantaste troféus de gloria onustos,

A quem cedera o Malabar potente

Em armadas e exércitos robustos;

Tu, que foste o terror da índica gente,

Que da Lísia humilhaste aos reis augustos,

Lá estava entanto a tua sorte escrita

De vires a acabar nesta desdita."

XXXVII

Mais prosseguir não pôde sufocado

O bom Garcez em amargoso pranto;

E condoeu-se Diogo, recordado

De ver-se em outro tempo em caso tanto;

E, havendo os naufragantes consolado:

“Não sou (diz) insensível, que sei quanto

Acerbo o caso é, cruel o artigo,

E a piedade aprendi no meu perigo.

XXXVIII

Recebei, entretanto, valorosos

Corn magnânimo peito a adversidade;

Conseguireis por transes perigosos

Fazer-vos dignos da imortalidade.

Deixareis monumentos gloriosos

A uma longa e feliz posteridade;

E ganhando obtereis com tanta glória

Um nome eterno nos padrões da história."

XXXIX

Disse o piedoso herói, reconhecendo

Ao hispano monarca pelo enviado

O distinto favor, e a mercê tendo

Achar memória no real agrado.

À nau depois os sócios recolhendo,

No Recôncavo entrava desejado,

Onde a vista formosa da Bahia

Com perspectiva amena aparecia.

XL

A ver na estranha nau que gente aporte

Desde o interior sertão turba recresce,

E, bem que diferente em trajo e porte,

Catarina dos seus se reconhece.

Entre aplausos recebe a nação forte

O grão-Caramuru, como merece,

Mostrando pelo amor e reverência

No antigo afeto a nova obediência.

X LI

Carrega entanto o lenho desejado

A nau de Du-Plessis, que Diogo estuda

Que seja em toda a terra obsequiado,

Dando-lhe ao talho da madeira ajuda.

Um carijó, porém, nisto empregado,

Enquanto a carga em toda a nau se muda,

Uma imagem roubou formosa e bela,

Que a nau venera na interior capela.

XLII

Observou-a Diogo na cabana

Tratada dos Tupis com reverência,

Estimando-a por coisa mais que humana,

Que excedia dos seus a inteligência.

Surprendeu-se da imagem soberana

O lusitano herói; e à competência

Com eles venerando a Mãe Divina

Chama a vê-la a piedosa Catarina.

XLIII

Pôs-lhe os olhos a dama, e transportada:

"Esta é (disse) , é esta a grã-senhora

Que vi no doce sonho arrebatada,

Mais que o sol pura, mais gentil que a aurora!

Eis aqui! esta é a imagem veneranda,

Este era aquele roubo, entendo agora :

Oh minha grande sorte! Oh imensa dita!

Isto me quis dizer a Mãe bendita."

XLIV

Dizendo assim, com ânsia fervorosa,

Prostrada, abraça a imagem veneranda;

Beija, aperta-a, de gosto lacrimosa

Mil saudosos ais ao céu lhe manda.

"Aqui vos venho achar, Mãe piedosa,

No meio (disse) desta gente infanda!

Infanda como eu fui, se o vosso lume

Não me emendara o bárbaro costume."

XLV

Olha entanto suspensa a gente bruta,

E os excessos que vê cuidando admira;

Nem concebe nas vozes que lhe escuta

Se prazer seja, se de dor suspira;

Mas, como a imagem celestial reputa,

Quanto à dama piedosa obrando vira

Qualquer à imitação fazer deseja,

E este a adora, outro a abraça, e aquele a beija.

XLVI

O lusitano e franco religioso

Veneraram com fé prodígio tanto,

Lembrando-se do sonho portentoso

Com claro indício do presságio santo,

Enquanto o brutal povo numeroso

Tudo nota em um êxtase de espanto,

Até que a um templo em pompa veneranda

A pia multidão a imagem manda.

XLVII

Por santa invocação foi aclamada

A senhora da Graça, e com fé pia

Foi desde aquele dia venerada

Singular Protetora da Bahia.

Igreja primitiva dedicada

Em meio às trevas dessa gente impia,

Memorável (se a fama é verdadeira)

Porque em todo o Brasil fora a primeira.

XLVIII

Neste festejo a plebe se entretinha,

E eis que uma salva se ouve estrepitosa

De grande armada, que estendendo vinha

Galhardetes e flâmulas lustrosa.

Tudo ao rumor da frota se encaminha,

Vendo a bandeira tremular famosa,

Que no brasão das quinas representa

A redenção que o céu na terra intenta.

XLIX

Era Tomé de Sousa o comandante.

Que ali governador fora mandado

Com multidão de gentes abundante,

Para dar forma ao povo começado.

Num sítio com mil mangues verdejante,

Que o grão-Caramuru tinha habitado,

Da colônia, que às tabas se assemelha,

O nome nos ficou de Vila Velha.

L

Ali por principal constituído

Foi dos Tupinambás o claro Diogo

Das tabas do sertão reconhecido,

Como dragão do mar, filho do fogo.

Catarina, por sangue esclarecido,

Herda de seus avós o império logo, (1)

Convocando à Bahia nesta idéia

Dos seus Tupinambás toda assembléia.

LI

A taba de Gupeva, já habitada,

Onde hoje é Vila Velha, a turba corre;

Das outras tabas toda a gente armada

Com os seus principais a ouvir concorre.

Toda a cidade em corpo congregada

A grande casa concorreu da torre,

Paço de Catarina, que na empresa

Presidia aos Tupis, como princesa.

LII

A seu lado Diogo, e Sousa armado,

À Câmara preside da Bahia; (2)

O clero santo a Deus tendo invocado,

Ouviu-se dos clarins doce harmonia.

A tropa portuguesa ocupa um lado,

Todo o outro espaço o bárbaro cobria,

E, em meio a cada casta ali presente,

Brilha emplumado a principal potente.

LIII

De varões apostólicos um bando

Tem de inocentes o esquadrão disposto,

Que iam na santa fé disciplinando.

Todos assistem com modesto rosto,

O catecismo em cântico entoando,

No idioma brasílico composto

Do exército, que Inácio à igreja alista,

Para emprender a bárbara conquista.

LIV

Sentiu da pátria o público proveito

O monarca piíssimo que impera,

E estes varões famosos tinha eleito

A instruir o Brasil na fé sincera.

Eles toda a conquista houveram feito,

E o imenso gentio à fé viera,

Se cuidasse fervente o santo zelo, (3)

Sem humano interesse em convertê-lo.

LV

São desta espécie os operários santos,

Que com fadiga dura, intenção reta,

Padecem pela fé trabalhos tantos,

O Nóbrega famoso, o claro Anchieta.

Por meio de perigos e de espantos,

Sem temer do gentio a cruel seta,

Todo o vasto sertão têm penetrado,

E a fé com mil trabalhos propagado.

LVI

Muitos destes ali, velando pios,

Dentro às tocas das arvores ocultos,

Sofrem riscos, trabalhos, fomes, frios,

Sem recear os bárbaros insultos;

Penetram matos, atravessam rios,

Buscando nos terrenos mais incultos

Com imensa fadiga e pio ganho

Esse perdido, mísero rebanho.

LVII

Mais de um verás pela campanha vasta

Derramar pela fé ditoso sangue:

Quem morto às chamas o gentio arrasta,

Quem deixa a seta com o tiro exangue.

Vê-los-ás discorrer de casta em casta,

Onde o rude pagão nas trevas langue,

E ao céu lucrando as miseráveis almas,

Carregados subir de ínclitas palmas.

LVIII

Com corte tanta no sublime Paço,

Que a grã-Casa da Torre se apelida,

Orando Catarina um breve espaço,

O trono ocupa e as atenções convida.

Tinha emplumada a fronte, e o forte braço,

Como insígnia de império conhecida,

Um marraque por cetro sustentava,

Que toda a turba com respeito olhava.

LIX

“Venturosos paisanos, que o céu ama,

(Disse a dama real) , povo disperso,

Que ele ao rebanho seu piedoso chama,

Desde o antigo dilúvio em sombra imerso!

Hoje vos quer livrar da averna chama,

Vendo arrastar-vos do dragão perverso,

Esse Grão-Deus que de uma crua sublime

A pena satisfaz e a culpa oprime.

LX

Da antiga Lusitânia o rei potente,

Acompanhando o sol no giro imenso,

Vai rodeando todo o globo ingente,

Desde o aurífero Tago ao China extenso.

Por ele a fé recebe todo o Oriente,

O mouro cede de pavor suspenso,

E Europa admira pelo mar profundo

Que o seu reino menor subjugue um mundo.

LXI

Deste grande monarca é tanto o império,

Que aonde a própria luz não se caminha,

Nos limites extremos do hemisfério,

O lusitano exército caminha.

A África e Ilhas, o Árabe Cimério,

Duas vezes passando a imensa linha,

Possui tantos povos, que a contá-los

São mais que os portugueses seus vassalos.

LXII

Este rei glorioso foi o eleito,

Por providência da eternal bondade,

A fazer do Brasil um povo aceito

E digno de a gozar na eternidade.

Pudera desta gente o forte peito,

Tendo na Ásia opulenta imensidade,

Estes nossos sertões trocar incultos

Por nações ricas e terrenos cultos.

LXIII

Pudera com as forças, que aqui manda,

Com pouca utilidade, ou mais que fora,

Domar o roxo mar por toda banda,

E o reino todo possuir da aurora.

Mas a piedade faz, com que comanda,

Que, antepondo o Brasil a tudo agora,

Mostre aos homens que o impulso que o domina

É propagar no mundo a fé divina.

LXIV

Generoso pensar! sagrada empresa!

Longe da vã política de Estado,

Que, se a milícia, se o comércio presa,

Não tem da Santa Fé menor cuidado.

Mas o que rege a vasta redondeza,

E a sorte dos impérios tem fixado,

La vira tempo enfim que o zelo pague,

E em ouro o Tago do Brasil se alague.

LXV

Um rei, se não me engana oculto instinto,

Quando o Quarto remir as duas quinas,

Depois do Sexto Afonso e Pedro extinto,

Abrira no sertão famosas minas.

Fará de ouro Lisboa D. João Quinto,

Altas disposições do céu divinas!

Pois no tremor e incêndio, que a ameaça,

Prepara este subsidio à grã-desgraça.

LXVI

Tempo vira que a dama majestosa

Por soberana a Lísia reconheça,

Época ilustre, insigne e venturosa,

Em que tenha uma santa por cabeça.

Descera sobre o reino a paz formosa,

E com a paz fará que a gloria desça,

Atlantes tendo de seu régio Estado

Quatro sábios e um ínclito prelado.

LXVII

E tu, monarca justo, do céu vindo,

Venha-te a palma sobre o empíreo tarda,

E pai da pátria, ao reino presidindo,

Com zelo a antiga fé nos nossos guarda!

Enche o grão-nome, as portas reprimindo

Do monstro Averno, que nos fundos arda;

Que deixe Portugal, que na fé medra,

E Cristo firma sobre a imóvel pedra.

LXVIII

Esta insigne progênie o céu promete,

Brasil agora rude, aos teus vindouros!

O colo humilde entanto ao rei submete,

E oferece-lhe contente os teus tesouros.

E entre tantas nações, que ao jugo mete

À sombra Portugal dos verdes louros,

Sem provares da guerra o furor vário,

Chega ao trono a humilhar-te voluntário.

LXIX

E, se princesa me chamais sublime

Dos vossos principais nascida herdeira,

Se ao grão-Caramuru, que o raio imprime,

Jurastes vassalagem verdadeira,

Ele da sujeição tudo hoje exime,

Cedendo ao trono luso a posse inteira,

E eu do monarca na real pessoa

Cedo todo o direito e entrego a c’roa."

LXX

Dizendo assim, a dama generosa

Desce do trono e o esplêndido diadema

Entrega ao Sousa, e toma majestosa

Um baixo assento com modéstia extrema.

Pasma o Tupinambá, vendo a formosa,

Nobre Paraguassu, de claro estema,

Que, o seu régio marra que ao Sousa dando,

Despia a pompa do real comando.

LXXI

Logo o Caramuru, na língua e estilo

Dos naturais falando ao chefe novo,

Posto tudo em silêncio para ouvi-lo,

O escudo da Bahia mostra ao povo:

A pomba de Noé, que ao noto asilo

Com ramo de oliveira vem de novo,

Dando a entender a paz, que à crua gente

Com a fé dispensava o rei clemente.

LXXII

"Este é o título (disse) verdadeiro,

Com que ocupa o Brasil nesta anarquia:

O muito alto senhor D. João Terceiro,

A fim que em paz se tenha a turba impia,

Porque ao supremo ser e ente primeiro

Reconheça o sertão, sirva a Bahia ;

E porque propagada a fé se veja

No novo império que conquista à igreja."

LXXIII

Disse Diogo, e as quinas tremulando,

“Real, Real! com voz clama expressiva,

Por D. João monarca venerando,

Príncipe do Brasil, que fausto viva.”

Responde a turba os vivas replicando,

Com tão alto clamor que o ouvido priva,

É ao rumor dos canhões e das cornetas

Correspondem as bélicas trombetas.

LXXIV

Então, sentado sobre o sólio ingente,

Que já desocupara a dama bela,

Como governador da lusa gente,

Tomé de Sousa cortejado dela,

Toma posse legítima e patente

Da Bahia e sertão, e sem querê-la

Do habitante, que os campos desocupa,

Em nome dos seus reis a terra ocupa.

LXXV

Depois ao povo e ilustre magistrado

Por leis do novo império manifesta

Que seja o nome santo venerado,

Que cesse nos sertões a guerra infesta;

Que o homicídio se veja castigado,

Que o antropófago atroz, que a lei detesta,

Que a embaixada evangélica, que envia,

Se ouça com paz, que se honre o que a anuncia.

LXXVI

Que o indígena seja ali empregado,

E que à sombra das leis tranqüilo esteja ;

Que viva em liberdade conservado,

Sem que oprimido dos colonos seja;

Que às expensas do rei seja educado

O neófito, que abraça a santa igreja,

E que na santa empresa ao missionário

Subministre subsídio o régio erário.

LXXVII

Por fim publica do monarca reto

Em favor de Diogo e Catarina

Um real honorífico decreto,

Que ao seu merecimento honras destina:

E em recompensa do leal afeto,

Com que a coroa a dama lhe consina,

Manda honrar na colônia lusitana

Diogo Álvares Correia, de Viana.

(1) De seus avós. - Vê-se ainda hoje a inscrição da sua sepultura, que a intitula Princesa do Brasil.

(2) A Câmara. - Ainda hoje por assento feito em câmara se faz na Bahia o aniversário de Catarina Álvares com esta memória.

(3) O Santo zelo. – Não referimos esta expressão aos sujeitos de que se fala, que fora uma contradição; mas vagamente a quem houvesse sido causa de decaírem aquelas ; missões.

FIM

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística