Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A Declamação Trágica, de Basílio da Gama


Edição de referência:

Obras Poéticas de Basílio da Gama, São Paulo: Edusp, 1996.

A DECLAMAÇÃO TRÁGICA

POEMA DEDICADO ÀS BELAS-ARTES

......................................................theatris

fundamenta locanta, scenis decora alta futuris.

VIRG. ÆNEID. I.

Tu, que os costumes nossos melhor que ninguém pintas,

Ensina-me o segredo, com que dás alma às tintas.

Empresta-me as imagens, a quem dão vida as cores,

Quadros, que a tua mão quis semear de flores.

Tu nos deixaste as leis dos números diversos,

Despréaux, eu canto a Arte de recitar os versos.

A Dama, que em teus muros, magnífica Lisboa,

Espera ornar a frente co'a trágica coroa,

Se quer que em seus louvores o povo se desvele,

Estude o que é Teatro antes de dar-se a ele.

Aprenda a magoar os insensíveis peitos,

E saiba da sua arte as regras, e os preceitos.

Deve pensar, sentir; ou a balança justa

Do povo há de ensinar-lho um dia à sua custa.

A Corte lhe promete conquistas de mil almas,

E para a nobre testa pronta lhe oferece as palmas.

Do público o bom gosto segura-lhe a vitória,

E abre-lhe um caminho mais fácil para a glória.

Lê nos turbados olhos do seu triunfo efeitos.

Tem no teatro um trono, reina nos nossos peitos.

Vós, que buscais a glória, não procureis atalhos:

O plácido descanso é filho de trabalhos.

Pisai o ócio vil, que flores tem por leito:

Exercitai a voz, e cultivai o peito.

Lede no coração, sondai a Natureza.

Sabei as doces frases da língua Portuguesa.

Luzir não pode a Dama, que a sua língua ignora,

Apesar dos tesoiros, que espalha quem a adora.

O povo, assim que a vê, começa a assobiar:

Para falar em verso convém saber falar.

Julgai a sangue frio, e examinai por gosto

Que paixões, que caráter exprime o vosso rosto.

Nele hão de respirar as iras, o furor,

E por seu turno a raiva, o ódio, a ambição, o amor.

Talvez a enternecer-nos vosso desejo aspira?

Fazei com esses olhos que eu na infeliz Zaíra

Veja a cruel batalha de um peito generoso,

Que perde as esperanças de vir a ser ditoso:

Quando banhando as mãos do Pai, a quem adora,

Prefere ao seu Amante um Deus, que ainda ignora.

Nos papéis furiosos quereis levar a palma?

Pinte o terror dos olhos toda a desordem d'alma.

Seja funesta a voz, horrendo, e incerto o passo.

De vosso rosto o povo leia no breve espaço

Projetos horrorosos, que forma um'alma impia;

E, apenas vós saís, em vós veja Atalia,

Que sobre si já sente a mão que chove os raios.

Cercada de remorsos, entre cruéis desmaios,

Uni, se é que quereis arrebatar-nos logo,

A um medonho aspecto um coração de fogo.

O público embebido c'oa trágica grandeza

Olha pra o vosso estado, não olha pra beleza.

Estátuas, sobretudo, Melpômene aborrece,

Em cujos frios rostos paixão não aparece.

Cheias de afetação, seus insensíveis peitos

Com arte dão suspiros, chorando fazem jeitos.

A Dama presumida estuda o dia inteiro

Um brando mover de olhos, ao vidro lisonjeiro.

Vai, um por um, dispondo por simetria os passos,

E aplaude ao movimento dos vagarosos braços.

Do vidro, que te engana, não sigas o conselho.

Busca, que dentro d'alma tens o melhor espelho.

Defronte dos cristais, que adulam a vaidade,

Não, a razão não julga: quem julga é a vontade.

Porque feições alheias, por obra do artifício,

Vos formam da beleza o mágico edifício,

C'oa roupa flutuante azul, e cor-de-rosa,

Cuidais que fingis Vênus, ou Palas majestosa?

Não vedes que a soberba vos alucina, e cega?

Voss'alma porventura toda jamais se entrega?

Os vossos olhos mortos nunca disseram nada?

Moveis-me ao pranto, ainda de lágrimas banhada?

Mas vós continuais com um doce sorriso!

Assim, assim na fonte se contemplou Narciso.

Dentro do vosso peito é que podeis achar

A arte de enternecer, e o modo de agradar.

Depois de um longo estudo de um dia, e outro dia,

Saí: o vosso gênio vos servirá de guia.

Já o Casquilho louco, que é de si mesmo amante,

Chega, desaparece, torna no mesmo instante,

Inficionando o ar c'o almíscar que em si deita.

O sério Magistrado se entesa, e se endireita.

O grosso Negociante, que o ler tem por desdoiro,

Todos os seus desejos comprando a peso de oiro,

Pende de vossa boca no curvo anfiteatro.

Fica a platéia atenta c'os olhos no teatro.

Por vós é que se espera: está tudo em segredo:

Olhai pra multidão sem enfiar de medo.

Mas nunca os vossos olhos doces, e encantadores

Pareça que mendigam do público os louvores.

Desdenha esse artifício o público arrogante.

Zomba da namorada, honra a representante.

Entrando, o vosso andar simples, e majestoso

Ofreça aos nossos olhos um ar imperioso.

Conforme a agitação seja também diverso:

Rápido, ou vagaroso, como o pedir o verso.

Que sem afetação, na encantadora sala,

Imitem as ações tudo o que a língua fala.

Cuidai em reprimir-lhe o excesso tão-somente.

Que sirvam as paixões de intérprete eloqüente.

Não posso ver as mãos, que de seu sítio saem,

Erguem-se por engonços, e por engonços caem.

Por isso as cenas mudas querem estudo à parte.

Nelas é que consiste todo o triunfo d'arte.

Então é que o talento chega à maior altura.

A glória das ações é toda da figura.

As vossas narrações mostrem o interno fogo:

O público impaciente quer tudo saber logo.

Perca-se embora o verso, mas vagaroso, e lento

Da tímida platéia não canse o sofrimento.

Quem quer que um doce engano cause o maior deleite,

Ao severo costume convém que se sujeite.

Rio-me da figura, que indigna do seu posto

Sacode o jugo, e traja como lhe pede o gosto;

E que é tão atrevida, que por empresa toma

Varrer com um donaire o pó da antiga Roma.

Fora de seu lugar não afeteis riqueza:

Olhai para o papel, segui a Natureza.

Representais Electra nos criminosos lares?

Lembrai-vos que é cativa, que vive entre pesares.

Não brilhe a sua testa, não resplandeça o manto,

Não sofre alegres cores rosto, que ofusca o pranto.

O povo, que vos julga, e que examina os erros,

Não quer de vós rubins, quer tão-somente ferros.

Abri a antiga História, ali vereis dispersas

Pelos diversos climas trinta nações diversas.

Examinai-lhe os gostos, a inclinação, os Numes,

Quais eram seus vestidos, as artes, os costumes.

A Fábula engenhosa, que úteis enganos tece,

Todos os seus tesouros liberalmente ofrece.

Ali é que a Verdade, que ornatos vãos reprova,

Sendo no fundo a mesma, sempre parece nova.

Aqui encontrais Dido, que à pena não resiste:

Seu rosto descorado cobre uma nuvem triste.

Forceja o roto peito lutando com a morte:

Levanta-se três vezes, e cai da mesma sorte.

Seus olhos, que expirando guardam de Amor a chama,

Parece que inda pedem aos Céus o Herói que el'ama.

Chora de dor, e de ira: só com suspiros fala.

Procura a luz do dia: geme depois de achá-la.

Niobe mais além, mulher soberba, e ousada,

A Mãe mais atrevida, e a Mãe mais desgraçada.

Os filhos uns sobre outros, os filhos seus amados,

Que vista dolorosa! de setas trespassados.

À força de sentir parece que não sente.

O rosto descaído, olhando fixamente,

Muda ficou. As mágoas nela puderam tanto,

Que se secou nos olhos a fonte do seu pranto.

Àquele seu silêncio nenhuma voz iguala.

A voz da natureza no seu silêncio fala.

Quereis que uma Rainha, que tem consigo guerra,

Que traz no rosto os crimes, que vê rasgar-se a terra,

Que a roupa, e todo chão vê de seu sangue asperso,

No último suspiro dê a pancada ao verso?

Quereis que uma Donzela, que creu em fé perjura,

Aflita, abandonada no horror da noite escura,

Gritando se resolva ao temerário efeito,

E que se lembre da arte quando trespassa o peito?

Rainha, que o teatro por breve tempo adora,

Esse orgulhoso fasto não conserveis cá fora.

Deixai na cena o cetro, a raça ilustre, e nobre,

E a pompa, que a meus olhos vos rouba, e vos encobre.

Tirou dentre ruínas Ferreira a Apolo aceito

A pálida Tragédia com um punhal no peito.

Os velhos seus altares junto do Tejo erguidos

Cobriu areia, e erva. Ainda mal cingidos

(Séculos infelices, e tanto enfim pudestes!)

Murcharam sobre a frente os fúnebres ciprestes.

Apareceu C*** à voz, que move, e encanta,

O corpo sobre o braço Melpômene levanta.

A ignorância, a inveja chorem de dor, e de ira.

É ela, eu ouço, eu vejo a tímida Palmira,

Que aos pés do velho Pai, inda constante, e forte,

De um crime involuntário pede em castigo a morte.

Ah! quando, ao ver o Irmão nos últimos desmaios,

Lança do peito fogo, lança dos olhos raios,

Ó alma grande, e rara, eu mesmo, eu mesmo o vi,

O Gênio de Voltaire erra ao redor de ti.

Mas eu dou-vos lições inúteis, e infiéis,

E a minha Musa irada arroja os seus pincéis,

Se eles vos não infundem soberba que se estima,

Soberba criadora, fogo que nos anima.

Não, não temais a afronta do público insolente.

Abriu, abriu os olhos a Lusitana gente.

Se já vos chamou vis, cora de tê-lo feito.

Não, não despreza as artes, que adora no seu peito.

Eu sei que um Sábio ilustre, a quem venera a Fama,

Um, que aborrece o mundo, e o mundo todo o ama,

Do seu retiro, adonde mora a verdade nua,

Troveja sobre vós com a eloqüência sua:

E no seu ócio triste cercado de desgostos

Quis corromper com fel todos os nossos gostos.

Eu tremo, e a minha Musa, por mais que se desvele,

Respeita este Demóstenes inda queixosa dele.

Mas contra as suas iras vos devo consolar.

Um Sábio enfim é homem, podia-se enganar.

Se ele de todo o mundo forma uma imagem feia,

Nós por que não faremos uma formosa idéia?

Dos crédulos humanos, Censores rigorosos,

Para que é ter invejado que nos faz ditosos?

Deixai-nos esta ao menos fantástica beleza:

Um engenhoso engano adorna a Natureza.

Roubar-nos dos talentos os dons encantadores

É despojar a terra de frutos, e de flores.

Sabei pois rechaçar seus frívolos intentos:

Lá vão os seus queixumes levados pelos ventos.

Ele, assim mesmo austero, bem pode ser vencido.

Fazei-vos estimar, e tendes respondido.

Lá numa região a nós desconhecida,

Sobre uma nuvem alta de púrpura vestida,

Levanta aos Céus um templo a soberba fachada.

Com temerosa mão proíbe o gênio a entrada

A críticos pedantes, estúpidos autores,

Que em vão forçar pertendem do século os louvores.

Mostra-se ali sem véu a cândida Verdade.

Neste palácio habita a Imortalidade.

A Preocupação, a quem o vulgo incensa,

Sem máscara bramindo foge da sua presença.

As palmas, que das artes são prêmios verdadeiros,

Se enlaçam orgulhosas co'as palmas dos guerreiros.

Neste lugar Virgílio passeia igual a Augusto,

Homero, ao pé de Aquiles não sente horror, nem susto.

Mistura a terna Safo ornada de mil flores

As murtas amorosas aos loiros vencedores.

Ovídio ali parece que a Júlia a amar ensine.

Chapemélé inda chora nos braços de Racine.

A irada de Couvreur desgrenha a trança bela.

Pára Corneille atento, e fixa os olhos nela.

Vós outras, a quem cinge Melpômene de flores,

Tendes assento ao pé dos imortais autores.

Da horrível Dumesnil o tempo não consome,

Junto ao de Crébillon, com sangue escrito o nome.

Clairon, a quem nenhuma se pode comparar,

Pôs junto de Voltaire a Glória o seu lugar.

Preparam lá triunfos para C... bela.

Assim não se resolva a recebê-los ela.

Que mágoas causaria o caso seu fatal!

Perdiam muito os homens, se a vissem imortal.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística