Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Relação abreviada, de Basílio da Gama


Texto-fonte:

 Relação abreviada. Rio de Janeiro:

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1842, PP. 265-317. 

ÍNDICE

Relação abreviada...

Documento I

Documento II

Documento III

Documento IV

 

REVISTA TRIMENSAL

DE

HISTORIA E GEOGRAFIA,

ou

JORNAL DO INSTITUTO HISTORICO GEOGRAFICO

BRASILEIRO.

_______________________________________

N.º 15. OUTUBRO DE 1842.

_______________________________________

RELAÇÃO ABREVIADA

DA

REPÚBLICA,

QUE OS RELIGIOSOS JESUÍTAS DAS PROVINCIAS

DE

PORTUGAL E ESPANHA

ESTABELECERAM

NOS DOMINIOS ULTRAMARINOS DAS DUAS MONARCHIAS,

E DA GUERRA QUE NELES TEM MOVIDO E SUSTENTADO CONTRA OS EXÉRCITOS

ESPANHOES E PORTUGUESES:

Formada pelos registos das Secretarias dos dois respectivos principaes Com-

missarios e Plenipotenciários, e por outros documentos aulhenticos.

Ao tempo em que se negociava sobre a execução do Tratado de limites das conquistas, celebrado a 16 de janeiro de 1750, se romperam na torre de Lisboa (da qual passaram logo a de Madri) as informações de que os Religiosos Jesuítas se tinham feito, de muitos anos a esta parte, de tal sorte poderosos na América Espanhola e Portuguesa, que seria necessário romper com eles uma guerra difícil, para a referida execução ter o seu devido efeito.

Toda a certeza daqueles certos e permanentes fatos não bastou para que os mesmos Religiosos se não atrevessem a procurar encobri-los aos dois respectivos monarcas: sugerindo em ambas as cartas por si, e pelos seus fautores, diferentes prejuízos e impossibilidades tendentes a invalidar o Tratado; e trabalhando ao mesmo tempo em Madri e Lisboa por alienar com o mesmo fim as ditas cartas da boa inteligência em que se conservaram sempre, para que a execução do mesmo Tratado não descobrisse os seus vastíssimos e perniciosíssimos projetos, que já na maior parte tinham posto por obra.

Prevalecendo porém contra todos aqueles reprovados artifícios a religiosíssima boa fé dos dois respectivos monarcas, logo que os seus exércitos chegaram aos lugares vizinhos das demarcações, se foi manifestando pelos fatos, tão estranha como notoriamente, assim da parte do Sul, ou dos rios Paraguai e Uruguai, como da parte do Norte, ou dos rios Negro e da Madeira, o mesmo que os Padres haviam inutilmente procurado encobrir aos olhos do mundo.

Nos sertões dos referidos rios Uruguai e Paraguai se achou estabelecida uma poderosa república, a qual só nas margens e territórios daqueles dois rios tinha fundado não menos de 31 grandes povoações, habitadas de quase 100.000 almas, e tão ri­cas e opulentas em frutos e cabedais para os ditos Padres, como pobres e infelizes para os desgraçados Índios, que nelas fechavam como escravos.

Para assim o conseguirem, debaixo do santo pretexto da conversão das almas, depois de se valerem de muitos, muito artificiosos e muito plausíveis meios diretos e oblíquos, estabeleceram antes de tudo, como fundamentos essenciais daquela clandestina usurpação, as máximas seguintes.

Por uma parte proibiram (e tiveram arte para nunca se lhes embaraçar) que naqueles sertões entrassem não só Bispos, Governadores, ou quaisquer outros ministros, e oficiais eclesiásticos ou seculares; mas nem ainda os mesmos particulares Espanhóis, fazendo sempre de um impenetrável segredo tudo o que passava dentro nos tais sert6es, cujo governo e interesses da república, que neles se ocultava, eram só revelados aos Religiosos da sua profissão, que se faziam necessários para se sustentar aquela grande máquina.

Por outra parte proibiram, também (com fraude ainda mais estranha) que na mesma república, e dos limites dela para den­tro, se usasse do idioma espanhol, permitindo somente o usa da língua que eles denominam Guarani, para assim impossi­bilitarem toda a comunicação entre os Índios e os Espanhóis, e conservarem oculto ao conhecimento dos segundos o que passavam os primeiros naqueles miseráveis sertões.

Por outra parte catequizando os Índios a seu modo, e im­primindo na inocência de todos, como um dos mais invioláveis princípios da religião cristã, a que os agregavam, a ilimitada e cega obediência a todos os preceitos dos seus respectivos missionários, sendo tão duros e intoleráveis, como logo direi, conse­guiram conservar por tantos anos aqueles infelizes racionais na mais extraordinária ignorância, e no mais duro e insofrível cativeiro que se viu até agora.

Pois que ignorando os miseráveis Índios que havia na terra poder, que fosse superior ao poder dos Padres, criam que estes eram soberanos despóticos dos seus corpos e almas: ignorando que tinham Rei a quem obedecer, criam que no mundo não havia vassalagem, mas que tudo nele era escravidão: e ignorando enfim que havia leis, que não fossem as da vontade dos seus Santos Padres (assim os denominam), tinham por certo e infalível que tudo o que eles lhes mandavam era indispensável para logo obedecerem sem a menor hesitação.

Mediante este absoluto monopólio de corpos e de almas, esta­beleceram entre os Índios axiomas tão opostos à sociedade ci­vil e caridade cristã, como são os que vou referir.

Primeiramente lhes fizeram crer, que todos os homens brancos seculares eram gentes sem lei e sem religião, que adoravam o ouro como Deus, e traziam o demônio no corpo: sendo inimigos necessários não só dos Índios, mas das sagradas imagens que eles veneravam; de sorte que se uma vez entrassem naquele território, o poriam a ferro e a fogo, destruindo primeiro os al­tares, e sacrificando depois mulheres e meninos.*

Consequentemente estabeleceram por princípios gerais entre os mesmos Índios o ódio implacável contra os brancos secula­res, a ansiosa diligência em os buscar para os destruir, e as barbaridades de os matarem sem quartel onde os encontrassem, e de lhes tirarem as cabeças para não reviverem, porque de ou­tra sorte lhes faziam crer que tornariam a vida por arte diabólica.

Ao mesmo tempo os foram exercitando nas armas, a no manejo delas: introduzindo-lhes peças de artilharia com pólvora e bala, e engenheiros disfarçados com a mesma roupeta, que lhes formassem campos, e lhes fortificassem os passos mais difíceis, da mesma sorte que se pratica nas guerras da Europa; resultando de todas estas perniciosíssimas prevenções as consequências de uma guerra promovida, e sustentada pelos mesmos Padres contra dois monarcas com os sucessos que vou substanciar.

Quando as tropas dos mesmos dois monarcas se achavam no ano de 1752 nos termos de marcharem, ao fim de se fazerem as mútuas entregas das aldeias da margem oriental do rio Uruguai, e da Colônia do Santíssimo Sacramento, surpreenderam os Padres a boa fé das duas cortes, pedindo nelas a suspensão necessária para os Índios das referidas aldeias colherem os seus frutos, que estavam pendentes, e se transmigrarem mais comodamente às outras habitações, que lhes haviam prevenido. E conseguindo da religiosíssima piedade dos respectivos monarcas a dilação pedida, mostraram logo os fatos subsequentes que debaixo daqueles pretextos haviam procurado os Padres ganhar tempo para melhor se armarem, e mais endurecerem os Índios na rebelião, em que os haviam criado, e de que ultimamente procuravam servir-se para se conservarem na usurpação daqueles territórios, e dos seus habitantes.

Logo que cessaram aqueles pretextos, e que os Comissários das duas cortes intentaram avançar-se no país, supondo-o de boa fé, para fazerem as mútuas entregas, descobriram tais e tão fortes oposições, que toda a consumada prudência do Ge­neral Gomes Freire de Andrade se não pôde já dispensar de se explicar, escrevendo ao Marquês de Valdelirios, em 24 de março de 1753, nas palavras seguintes:

“V. Excelência com as cartas que recebe, com os avisos ou chegada do Padre Altamirano, entendo acabará de persuadir-se que os Padres da Companhia são os sublevados. Se lhes não tirarem das aldeias os seus Santos Padres (como eles os denominam) não experimentaremos mais do que rebeliões, insolências e desprezos............................................. Isto que nos fazia horror, depois da experiência da campanha o temos já por indubitável.”

Ao tempo em que Gomes Freire escrevia neste sentido, se achava a rebelião já formalmente declarada desde o mês de fe­vereiro próximo precedente, tendo-se sublevado todos os povos daquela parte, de sorte que havendo chegado alguns oficiais militares ao posto de Santa Tecla, para fazerem as demarcações, na consideração de que achariam tudo de paz; e achando que os Índios lhes impediam a passagem, quando no dia 28 de fe­vereiro lhes cominaram a indignação do seu Soberano, respon­deram:

“Que El-Rei estava muito longe, e que eles só conheciam o seu Bendito Padre.”

Obrigando enfim os destacamentos, que seguiam os ditos Comissários, a se retirarem à Colônia e a Montevidéu.

Sobre aquele manifesto desengano deliberaram nos meses de setembro, outubro, e nos mais que decorreram até o fim daquele ano de 1753, e princípios do seguinte, nas conferências de Castellos e de Martim Garcia, os dois principais Comissários Gomes Freire de Andrade e o Marquês de Valdelirios, marcha­rem com dois exércitos a evacuar aquele território pela força das armas, como com efeito executaram pouco tempo depois daquelas conferências.

E assim veio logo a manifestar-se tanto mais necessário, que enquanto os ditos exércitos se preparavam a marchar foram os Índios em grande número atacar duas vezes a fortaleza que os Portugueses têm sobre o Rio Pardo, levando quatro peças de artilharia para baterem a dita fortaleza.

Sendo porém rechaçados e desfeitos pela guarnição dela, e fazendo esta cinquenta prisioneiros, avisaram o Comandante da mesma fortaleza, e Gomes Freire de Andrade, nas datas de 20 de abril, e de 21 de junho de 1754, que quando foram pergun­tados os mesmos Índios sobre os motivos das crueldades que ti­nham praticado, assim naqueles ataques, como depois de se acharem feitos prisioneiros, responderam estas formais pala­vras:

“Os Índios prisioneiros declaram, que os Padres vieram em sua companhia até o Rio Pardo, e que nele ficaram da outra banda. Dizem que são das quatro aldeias de S. Luiz, S. Miguel, S. Lourenço e S. João. Um deles diz que na aldeia de S. Miguel ainda há quinze peças.

"Perguntando-se-lhe a razão com que em matando algum português lhe cortam logo a cabeça, disseram que os seus beatos padres lhe seguravam, que os Portugueses, posto se lhes dessem muitas feridas, muitos deles ressuscitavam, e que o mais seguro era cortar-lhes a cabeça.

O General Português saindo do Rio Grande de S. Pedro, em 28 de junho daquele ano, e chegando no dia 30 de julho à for­taleza do Rio Pardo, logo que a passou se lhe começaram a apre­sentar os Índios rebeldes em um grande número, para o incomodarem na marcha. Nela foi porém continuando sempre com o inimigo à vista e as armas na mão, até que escreveu o mesmo General por palavras formais:

"No dia 7 (de setembro) chegando ao principal posto, que o dito Jacuí tem, e que não dá vão, os encontrei nele fortificados com duas trincheiras:........ mandei-lhes falar, e me declararam o que consta do termo número 1., &c.”

Sendo em substância:

Responderam que ali se achava o seu Mestre de campo chamado Andrés, o qual tinha ordem dos seus superiores para não consentir que sem licença sua pudessem os Portugueses passar adiante.”

Assim se passou em guerra viva até o dia 16 de novembro do mesmo ano de 1754, em que o dito General foi forçado a convir com os Índios de uma trégua até nova determinação de Sua Majestade Católica; sendo entretanto proibido ao General Português adiantar-se no terreno, e aos Índios infestarem o que o mesmo General havia ocupado, passando-se atos nesta confor­midade.**

O exército espanhol, que marchava ao mesmo tempo pela outra parte de Santa Teda, foi igualmente obrigado a retirar-se para as margens do Rio da Prata, em razão de achar também por aquela parte sublevadas as povoações dos Índios, com forças muito superiores às suas, e de haverem os mesmos Índios este­rilizado a campanha de tudo o necessário para a subsistência das tropas, com disciplina militar, que certamente não cabia na sua ignorância.

Chegando as informações destes estranhos fatos às respec­tivas cortes, se expediram pela de Madri ao Marquês de Valde­lirios as ordens, que ele referiu a Gomes Freire de Andrade em carta de 9 de fevereiro de 1756, nas palavras seguintes[1]:

“En la carta de officio, que escribo a V. Exc., verá que Su Magestad ha descubierto y assegurado-se de que los Jesuitas de esta Provincia son la causa total de la rebeldia de los Indios. Y a mas de las providencias, que digo en ella haber tomado, dispidiendo a su confessor, y mandando que se embien mil hombres, me há escripto una carta (propria de un Soberano) para que yó exhorte al Provincial hechando-le en cara el delicto de infidelidad, y diciendo-le, que si luego luego nó entrega los Pueblos pacificamente sin que se derrame una gota de sangre, tendrá Su Magestad esta prueba mas relevante; procederá contra el y los de mas Padres por todas las leyes de los derechos canonico y civil; los tratará como réos de leza Magestad, y los hará responsables a Dios de todas las vidas innocentes que se sacrificassen; &c.”

A corte de Lisboa mandou instruir na mesma conformidade a Gomes Freire de Andrade: ordenando-lhe Sua Majestade Fi­delíssima que, na conformidade do que se havia estipulado no Tratado de limites, auxiliasse com todo o vigor possível o Ge­neral espanhol para reduzir à sujeição aquela escandalosa re­beldia.

Quando chegaram as referidas ordens já tinham concordado novamente os dois respectivos Generais juntarem-se os seus exércitos em Santo Antônio o Velho, para entrarem por Santa Tecla a sujeitar os povos rebelados. E com efeito se havia feito a junção dos ditos dois exércitos no dia 16 de janeiro do ano próximo passado de 1756.

Saindo daquele porto de Santo Antônio continuavam os dois Generais a sua marcha no 1.° de fevereiro próximo se­guinte, a tempo em que se notou que faltava uma partida de dezesseis soldados castelhanos, que se haviam avançado a desco­brir o campo. Cuidando-se que havia desertado, se soube porém logo, que havendo topado outra partida mais numerosa de Índios, que pareceram de paz, e convidando-os estes com bandeira branca para os refrescarem, apenas os viram apeados, quando os assassinaram cruelmente, despojando-os, depois de mortos, de tudo o que levavam.

Prosseguindo os mesmos dois exércitos unidos a referida mar­cha, sempre incomodados pelos rebeldes, até o dia 10 daquele mês de fevereiro, os foram nele achar entrincheirados e fortifi­cados em uma colina, que lhes dava vantagem. Nela foram porém atacados e desfeitos depois de um renhido combate, deixando no campo da batalha 1.200 mortos, diferentes peças de artilharia, e outros despojos de armas e bandeiras.

Aquele grande estrago fez com que os Índios se não atreves­sem a tentar outra batalha até o dia 22 de marco, em que os exér­citos acamparam na entrada de uma altíssima montanha quase inacessível.

Logo porém que pretenderam montá-la para passarem aos povos, que estavam vizinhos, acharam outra trincheira formada com regularidade para defender aquele passo, e guarnecida com algumas peças de artilharia, e com outro grande número de Índios armados.

Sendo estes porém batidos nos seus entrincheiramentos pela artilharia de campanha dos dois exércitos, e logo atacados nos flancos pelas tropas regulares com todo o vigor, foram desalo­jados, e postos em fuga, deixando livre o referido monte. Nele foi contudo necessário que os exércitos fizessem alto, para abri­rem caminho, até o dia 3 de maio do referido ano.

Logo que o exército tornou a continuar a sua marcha, desco­briu sobre ela outro grosso de mais de 3.000 Índios, que trava­ram diferentes escaramuças com as guardas e corpos avançados, perdendo sempre gente, até o dia 10 do sobredito mês.

Nele se avançavam os exércitos para passar o rio Churiebi, quando tornaram a encontrar na passagem fortificados os rebeldes. Sendo porém atacados com o mesmo vigor, foram outra vez derrotados com perda, concluindo o General Gomes Freire a relação do sucesso deste dia nas palavras seguintes:

“A planta bem dá a ver a defesa como estava própria. E se ela é feita por Índios, devemos persuadir-nos que em lugar da doutrina se lhes tem ensinado a arquitetura militar.”

Chegando enfim ao Povo de S. Miguel os dois exércitos no dia 18 do referido mês de maio, acharam nele (com horror da religião e da humanidade) o que Gomes Freire referiu à corte de Lisboa em carta de 26 de junho do mesmo ano de 1756 nas palavras seguintes:

“Os dias 13 e 14 estiveram muito mais chuvosos; mas, não foi bastante a apagar o fogo, em que já víamos arder aquele Povo: no dia 16, que a ele chegamos, se mandou a mestrança acudir ao incêndio, que tendo já devorado as casas estimáveis, prendia com força na sacristia; conseguiu-se livrar o templo, que certo é magnífico; mas não se pôde indultar dos desacatos, que os rebeldes já nele haviam feito, tanto a algumas imagens, como na barbaridade com que reduziram a pequenas partes o mesmo sacrário, do qual soubemos que os Padres haviam já retirado os sagrados vasos; e sendo o templo tão magnífico, como mostrará a planta de que agora vai o plano e o prospecto, se não podia entrar nele sem enternecer-se o coração, pasmados os olhos nos insultos que viam.

“Nesta noite determinou o General fosse surpreender-se o Povo de S. Lourenço, que está distante duas léguas: comandou esta ação o Governador de Montevidéu, e o destacamento de quatro peças pequenas de artilharia e 800 homens; 600 castelhanos e 200 Portugueses; e destes comandante o Tenente-coronel de dragões Jose Inácio de Almeida: felizmente ao raiar do dia entraram o Povo sem serem sentidos, donde encontraram ainda bastantes famílias e três Padres, o Cura que é o Padre Francisco Xavier Lamp, e o Coadjutor o célebre Padre Tedeo (certo espírito muito ativo), e um leigo: tudo cedeu logo, e os dois primeiros Padres foram remetidos ao exército, donde o General mandou para o Povo o primeiro, e me pediu quisesse hospedar na minha tenda o segundo, onde se conservou até chegarmos ao Povo de S. João, e nele o deixei na companhia do General, que depois de alguns dias, me seguram, lhe permitira passar à outra parte do Uruguai, e é certo que o Governador de Montevidéu achou no seu cubículo papéis, que davam a ver muito esta revolução. O Padre Lourenço Balda, que se diz era uma das cabeças mais tenazes, e que mais animava os Índios à defesa, se havia retirado para os montes com os de S. Miguel, de que era Cura.

“Os Padres hoje, como no primeiro dia, sentem perder, e os Índios vivem a estes em uma obediência tão cega, que ao presente em este Povo estou vendo mandar o Padre Cura aos Índios que se lancem per terra, e sem mais prisão, que o respeito, levam 25 açoutes, e levantando-se vão dar-lhe as graças e beijar-lhe a mão. Estas pobríssimas famílias vivem na mais rígida obediência, e em maior escravidão que os negros dos mineiros.”

Estabelecendo o mesmo General Português o seu quartel no dito Povo de S. Miguel, e o Espanhol no outro Povo de S. João, se acabaram de manifestar, pela residência que as tropas fize­ram nas referidas aldeias, todas as ideias dos Padres que as administravam: achando-se recopilados os enganos, com que suble­varam os Índios, e com que os sustentam na rebelião, a que os provocaram, por três papéis, que nos seus mesmos originais vieram à mão do quem os fez traduzir fielmente da língua Guarani, em que foram escritos, na língua Portuguesa, em que se acha­rão no fim deste compendio.*

Consistem os ditos papéis em uma instrução, que os chefes das aldeias sublevadas deram aos seus respectivos capitães quan­do os mandaram incorporar no exército da rebelião, e em duas cartas para ele escritas, no mês de fevereiro do mesmo ano de 1758, pelos referidos chefes da sedição: radicando mais com estes sacrílegos e sediciosos papéis nos corações dos miseráveis Índios os enganos com que os haviam educado, e o ódio implacável contra todos os Portugueses e Espanhóis, sem se reparar nos meios e nos modos, contanto que se conseguissem tão de­testáveis fins.

Depois que os dois respectivos Generais entraram nas sete aldeias da margem oriental do Uruguai, pela força das armas, não podendo os Padres que nelas dominavam negar-lhe a força da obediência, a que os constrangeram, achavam ainda assim outros meios e modos de a invalidar com dolo temerário.

Quando só devia esperar, que vendo-se rendidos se lembrassem de que desde os princípios haviam representado que o tempo da demora, que pediram, fora com os declarados motivos de transmigrarem os Índios para os sertões da parte ocidental do rio Uruguai, e de lhes fazerem neles os seus novos estabelecimen­tos, para se desculparem ao menos fingindo que os haviam feito; o praticaram muito pelo contrário do que em tais circunstâncias se podia crer.

Pois que obstinando-se ainda na ousadia e na rebelião se atre­veu o Povo de S. Nicolau, nos fins do ano próximo precedente de 1756, a sublevar-se novamente, surpreendendo e apresando uma cavalhada, que ia para o exército do General espanhol. Mandou este um grosso de trezentos soldados de cavalo castigar aqueles rebeldes. Achou-os porém tão atrevidos, que obrigaram o comandante do dito destacamento a um choque, no qual lhe mata­ram ainda um capitão, e alguns soldados.

Passou ainda a ousadia a outro excesso tanto maior, e tanto mais repreensível, que, esquecendo-se de tudo o que tinha pas­sado, fizeram refugiar os Índios, que escaparam do referido cho­que, nos bosques desta parte oriental do rio Uruguai, e lhes fo­ram agregando tantos outros, que no mês de maio deste pre­sente ano se achavam já mais de quatorze mil Índios internados naqueles sertões, para onde os tinham dirigido de todas as al­deias; obrigando assim os dois respectivos Monarcas a conti­nuarem ainda a guerra em que se acham para os debelar.

Na outra parte do norte da América portuguesa e espanhola, ou dos rios Negro e da Madeira, não foram os referidos Pa­dres no dito respeito nada mais moderados, enquanto as suas forças lhes permitiram que pudessem exceder as leis eclesiásticas e régias.

Achando-se a corte de Lisboa apartada, pelas simulações dos mesmos Padres, de toda a informação daqueles vastos projetos de conquista, que eles por tantos anos paliaram com o sagrado véu do zelo da propagação do Evangelho, e da dilatação da fé católica; lhes não foi difícil obterem dela diferentes privilégios, e conseguirem muitas mais tolerâncias, com que nos Estados do Grão-Pará e Maranhão, acumulando abusos a abusos, vieram a fazer-se absolutos senhores do governo espiritual e temporal dos Índios, pondo-os no mais rígido cativeiro a título de zelarem a sua liberdade, e usurpando-lhes não só todas as terras e fru­tos, que delas extraíam, mas também até o próprio trabalho cor­poral, de sorte que nem tempo lhes permitiam para lavrarem o pouco a que se reduz o seu miserabilíssimo sustento; nem lhes ministravam a pouca e insignificante roupa, que bastaria para co­brirem a desnudez com que estes infelizes racionais se expunham indecentissimamente aos olhos do povo.

Para sustentarem um tão desumano e intolerável despotismo, estabeleceram as mesmas máximas que haviam praticado na ou­tra parte do Sul, proibindo todo o ingresso dos Portugueses nas aldeias dos Índios, que os seus Religiosos administravam, debaixo do pretexto de que os seculares iriam perverter a inocência dos costumes dos referidos Índios: e defendendo nas mesmas aldeias o uso da língua Portuguesa, para melhor segurarem que não hou­vesse comunicação entre os referidos Índios e os brancos vas­salos de Sua Majestade Fidelíssima.

Por estes e muitos outros meios da mesma natureza, que ficam referidos, se arrogaram os ditos Religiosos a ímpia usurpação da liberdade daqueles miseráveis racionais, sem que se embaraçassem das censuras fulminadas nas Bulas dos Santíssimos Pa­dres Paulo III e Urbano VIII, e muito menos das muitas leis que foram promulgadas no reinado d’El-Rei D. Sebastião, e em todos os mais que seguiram, para defenderem a escravidão dos Índios.

Daquela usurpação da liberdade dos Índios passaram à da agricultura e do comércio daqueles dois Estados, contra a outra resistência de direito canônico, e das tremendas constituições apostólicas estabelecidas contra os Regulares, e muito mais contra os Missionários negociantes. Ultimamente absorveram em si todo o referido comércio, apropriando-se com uma absoluta violência não só o de todos os gêneros de negócios, mas até o dos mantimentos da primeira necessidade da vida humana, com muitos monopólios, também reprovados por direito natural e divino.

As muitas e sucessivas queixas, que vieram em necessárias consequências daquelas extorsões, clamaram tanto e tão incessantemente desde a extrema miséria, a que os mesmos Religiosos tinham reduzido aqueles povos, privando-os dos obreiros, e con­sequentemente da agricultura e do comércio, que, não obstan­te que sempre houvessem conseguido os ditos Padres desviá-los do trono dos Monarcas de Portugal, soando contudo nele no ano de 1741, desde a eminência do Sólio Pontifício aos ouvidos de um Príncipe tão zeloso da Religião, como o foi El-Rei D. João o V. de gloriosa memória, segurou logo aquele Fidelíssimo Rei ao Santíssimo Padre Benedito XIV, ora Presidente na Uni­versal Igreja de Deus, que cooperaria para a liberdade dos Índios (causa essencial de todas as misérias espirituais e temporais daqueles povos) com toda a eficácia do seu ardentíssimo e exemplaríssimo zelo da propagação da fé católica, e do bem comum dos seus vassalos.

Sobre esta concordata se expediu a verdadeiramente apostólica e tremenda Bula de 20 de dezembro do mesmo ano de 1741, com a exabundância da providência pontifícia, que se manifesta da sua contextura.

Na conformidade dela fez o mesma monarca expedir para aqueles Estados as mais urgentes e apertadas ordens, para neles se executar em tudo e por tudo a decisão de Sua Santidade. Nada bastou porém, porque, quando o notório e exemplar zelo do Bispo atual do Grão-Pará D. Fr. Miguel de Bulhões, digno filho da sagrada ordem dos Pregadores, depois de haver feito mui­tas diligências prévias, tratou de executar a mesma Bula, se con­citou contra ele uma sublevação, que impediu por então o efeito daquela providência apostólica; porque, ao mesmo Prelado não pareceu participar à corte de Lisboa uma tão estranha desordem, em tempo no qual a notícia de um tão escandaloso fato, temeu que alterasse a tranquilidade do ânimo do dito monarca, que já se achava com a grave enfermidade, de que veio a falecer em 31 de julho de 1750.

Este era o estado em que os ditos Religiosos se achavam no Grão-Pará e Maranhão, quando El-Rei Fidelíssimo felizmente reinante ordenou ao Governador e Capitão General das mesmas Capitanias, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, por despacho de 30 de abril de 1753, em que o nomeou seu Principal Comissário e Plenipotenciário para as conferências da demarcação dos limites daquela parte, que passasse logo a prevenir na fron­teira do Rio Negro os alojamentos e os víveres que eram neces­sários para ali hospedar os Comissários de Sua Majestade Católica, e se proceder com elas às demarcações na forma do Tratado de limites.

Porque já então era bem notório na corte de Lisboa que os re­feridos Padres se tinham feito absolutos senhores da liberdade, do trabalho e da comunicação dos Índios, sem os quais nada se podia fazer em termos competentes, e que também se tinham arrogado a agricultura e o comércio: mandou Sua Majestade Fidelíssima escrever nos termos mais urgentes ao Vice-Provincial da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que pela sua parte con­tribuísse com todos os Índios de serviço, com o mais que nele estivesse, para que o dito seu Principal Comissário e Plenipotenciário se transportasse pronta e decorosamente ao lugar das conferências.

As execuções que àquelas ordens Régias deram os ditos Reli­giosos foram: uma, sublevarem os Índios das vizinhanças daquele lugar destinado para as conferências, fazendo-os desertar dele pelas induções dos Padres Antônio José, Português, e Roque Hunderfund, Alemão, que antecipadamente haviam com o dito mau fim feito estabelecer naquelas partes: outra, ir semelhan­temente outro Padre da Companhia por nome Manoel dos Santos, sobrinho do Vice-Provincial, estabelecer-se na margem do rio Javari, e declarar nela a guerra aos Religiosos de Nossa Se­nhora do Monte do Carmo, que exemplarmente estavam regendo as Missões daquela parte, para nela fazer uma geral perturba­ção, que arruinasse todo o país, e o fizesse inabitável: outra, sublevarem os Índios na mesma capital do Grão-Pará, de sorte que desertassem das obras do serviço de Sua Majestade, que se estavam fazendo para a expedição do Rio Negro: outra, insultarem por todo o interior do Estado os ministros e oficiais de Sua Majestade Fidelíssima, ameaçando-os com o poder da Religião da Companhia no Reino, e com sublevações naquele Estado para não observarem as leis a ordens de que eram executores; e alegando para assim o persuadirem que naquele Estado o haviam assim praticado sempre os seus antecessores: e a outra enfim despovoarem as aldeias do caminho do Rio Negro, e extinguirem o pão e mantimentos delas, e de muitas outras, para que na falta de remeiros e de víveres perecessem as tropas que deviam passar ao lugar das conferências, e delas às fronteiras, onde se de­viam fazer as demarcações dos limites dos Domínios dos dois Monarcas contratantes.

A certeza destes estranhos fatos, confirmados uniformemente pelas cartas do Bispo, do Governador e dos Ministros e oficiais daquele Estado, e pelos atos e papéis autênticos que as acompanharam, era digna de muito mais severas demonstrações. Prevalecendo porém ainda a clemência d'El-Rei Fidelíssimo, e espe­rando aquele piíssimo Monarca, que esta mesma exabundância da sua Real benignidade servisse de confusão e de emenda aos ditos Religiosos, se reduziu ainda a mandar advertir seriamente o Vice-Provincial do Grão-Pará sobre os referidos absurdos, para os coibir; a mandar sair daquele Estado, por Carta firmada da sua Real mão em 3 de março de 1755, os Padres Antônio José, Roque Hunderfund, Teodoro da Cruz, e Manoel Gonzaga, que nele tinham dado os maiores escândalos; e a mandar por outra Carta Régia da mesma data restituir os Religiosos de N. Senhora do Monte do Carmo a inteira administração das aldeias do rio Javari, da qual o sobrinho do Vice-Provincial da Companhia os tinha pretendido expulsar pela força das armas, com universal escândalo de todos aqueles povos.

Enquanto isto se passava em Lisboa, havendo o dito Princi­pal Comissário de Sua Majestade Fidelíssima superado as dificuldades e as dilações, que fizeram necessárias as desordens que se lhe opuseram para o embaraçarem, veio contudo a sair da Capital do Grão-Pará para o Rio Negro no dia 2 de outubro de 1754.

No decurso da viagem achou sempre coerentemente da parte dos ditos Religiosos as mesmas maquinações, e os outros maiores absurdos, que constam do diário autêntico da mesma viagem, do qual se transcreveram aqui alguns lugares, para darem uma ideia clara do que passou naquela trabalhosa navegação; assim pelo que pertence aos Índios de serviço, como aos mantimentos para a expedição se sustentar.

Pelo que toca aos referidos Índios se explica aquele diário na maneira seguinte:

“No dia dez de outubro nos levamos do dito Rio pelas seis horas da manhã a buscar a aldeia de Guaricu, onde chegamos pelas onze horas, e a achamos deserta, sendo das mais populosas do sertão; pois não estavam nela mais do que o Padre Martinho Sehuvary, que é companheiro do Padre Missionário, três Índios velhos, alguns rapazes, e poucas Índias, mulheres de alguns remeiros que vinham na tropa.

“Para se porem prontos seis Índios para esquipação de algumas canoas, que iam mal remadas, foi preciso um excessivo trabalho, e valer-se Sua Excelência de alguma força, mandando soldados pelas roças e pelos matos, onde todos estavam metidos; e os poucas que apareceram, confessaram que toda a gente tinha fugido por prática e indução que o Padre lhes tinha feito.

“No dia onze pela uma hora e meia chegamos à aldeia de Arucará, onde achamos o Padre Missionário Manoel Ribeiro, com pouca mais gente que na passada: e sendo-nos precisos alguns Índios para remarem as canoas, que iam faltas deles, foi necessário mandá-los buscar pelas roças.

“A vinte e seis pela manhã passando mostra aos Índios das canoas, se achou terem desertado na noite antecedente trinta e seis, sendo todos das aldeias que administram os Religiosos da Companhia.

“Junto à fortaleza do rio Tapajós está uma populosa aldeia da administração dos Religiosos da Companhia, de que é Missionário o Padre Joaquim de Carvalho, e também a achamos com pouca gente; de sorte que, sendo precisos Índios por fugirem aqui dezoito, foi necessário a Sua Excelência mandá-los buscar às aldeias do Cumaru, a Bobari do mesmo rio.”

Enfim por este modo diz o mesmo diário que fizeram deser­tar daquela expedição até o número de cento e sessenta e cin­co Índios; de modo que aquele Principal Comissário, referindo o que na sua viagem havia passado ao dito respeito, concluiu em carta de 6 de julho de 1755, tratando de uma das aldeias deser­tas, em que achara a gente fugida para o mato, nestas formais palavras:

“Desta aldeia passei a Arucará, que será pouco mais de três léguas de distância; e a achei, com pouca diferença, quase na mesma forma: e esta é uma regra geral de todas as aldeias, por não o estar repetindo.”

E pelo que pertence aos mantimentos, que Sua Majestade Fi­delíssima havia ordenado, bastará, para dar uma ideia do que passou ao dito respeito, transcrever da carta que o Bispo do Grão-Pará dirigiu à corte de Lisboa em 24 de julho do mesmo ano de 1755 (governando aquela capital na ausência do Ge­neral) as palavras seguintes:

“Chegou neles (Missionários) a tanto excesso a falta de obediência e caridade nesta matéria, que em todas as aldeias do rio Tapajós, só elas suficientes para prover todo o arraial do Rio Negro, houve recomendação expressa dos Padres Missionários para que não fabricassem roças de farinha, nem de qualquer outro legume, dizendo claramente aos Índios, que na ocasião da maior necessidade lhe dariam licença para irem buscar o seu sustento pelos matos.

“Este mesmo excesso de caridade praticaram os ditos Missionários quase em todas as suas aldeias; já empregando os Índios nas suas conveniências particulares, de que necessaria­mente havia de resultar o não fabricarem farinhas, já orde­nando-lhes positivamente que as não vendessem aos brancos, como sucedeu na aldeia de Arucará, da administração da Com­panhia. Achavam-se nesta aldeia alguns soldados da guarnição do Macapá com a diligência de comprarem farinhas; e assistindo à missa em dia do Espírito Santo, presenciaram que o Missionário dela, chamado o Padre Manoel Ribeiro, assen­tado naquele lugar em que se costumam explicar os sagrados dogmas da fé, e se deve persuadir a prática das virtudes, or­denava aos seus Índios (falando-lhes na sua língua) que de nenhum modo vendessem farinha aos ditos soldados, nem so­corressem a vila do Macapá, com cominação de que obran­do o contrário lhes dariam um exemplar castigo.”

Ao mesmo tempo se descobriu que os sobreditos Religiosos, com outro crime atroz de lesa Majestade, não só se tinham arrogado a autoridade de fazerem tratados com as nações bárbaras daqueles sertões dos domínios da coroa de Portugal, sem intervenção do Capitão General e Ministros de Sua Majestade Fide­líssima; mas também que deste abominável absurdo passaram ao outro ainda mais abominável, de estipularem por condições dos mesmos tratados o domínio supremo e serviço dos Índios, exclusivos da coroa, e dos vassalos de Sua Majestade; a repug­nância e ódio à comunicação e sujeição dos brancos secula­res; e o desprezo das ordens do Governador e das pessoas dos moradores do Estado; como evidentemente constou do Tratado, que o Padre David Fay, Missionário da aldeia de S. Francisco Xa­vier de Acamá, havia feito no mês de agosto do mesmo ano de 1755 com os Índios Amanajós, no qual se acham escritos os artigos seguintes:

“Art. 3.º Se querem ser filhos dos Padres, sujeitando-se ao governo deles, obedecendo-lhes; ficando os Padres Morubixabas (isto é Capitães Generais) deles, que hão de tratar deles como de seus filhos? Responderam que querem ser filhos dos Padres.

“Art. 5.º Se querem tratar também dos seus Padres como bons filhos? Responderam que querem fazer grande roça para os Padres.

Art. 8.° Se querem ser obedientes ao Morubixaba Guaçu dos brancos (isto é, o Capitão General do Estado) querendo ir para o trabalho, quando os quiserem mandar? Responderam geralmente que por nenhum modo querem nada com os brancos.

“Art. 9.° Se for alguma cousa extraordinária, v. g. inimigo, e que quando os Guajajaras (isto é, brancos) devem ir, se os Amanajós os querem ajudar? Responderam que querem fazer boa camaradagem, e que hão de ajudar os Guajajaras, porém que isso vicissim devem fazer os Guajajaras.”

De sorte que o Capitão General e brancos do Estado ficavam nestas convenções iguais em tudo com os Índios; e os Padres como Capitães Generais Eclesiásticos superiores a todos: ma­nifestando-se que destas condições, com que contratam com os Índios, é que tomam os referidos Padres pretextos para alienarem os mesmos Índios da sujeição e serviço Real, e da so­ciedade civil dos brancos seculares.

Tirando Sua Majestade Fidelíssima das claras noções de todos estes fatos a decisiva consequência de que as deploráveis enfermidades do corpo daquele Estado, sendo tão inveteradas e extremas, se não podiam já curar sem remédios maiores, aplicados com toda a eficácia: mandou avisar por uma parte ao Bispo do Grão-Pará D. Fr. Miguel de Bulhões, que sem perder mais tempo em tão meritória obra publicasse logo a Bula Ponti­fícia de 20 de dezembro de 1741, que havia declarado livres todos os referidos Índios, e condenado com pena de excomunhão Latæ Sententiæ os que praticassem, defendessem, ensinassem, ou pregassem o contrário: estabeleceu juntamente por outra parte as duas santas leis promulgadas nos dias 6 e 7 de junho do ano de 1758, excitando, a favor da mesma liberdade e do bem comum dos Índios, todas as leis e ordens de seus augustos predecesso­res: e pela outra parte enfim determinou ao mesmo tempo ao Governador e Capitão General daquele Estado, que tudo fizesse executar tão eficaz e tão exatamente como Sua Santidade e Sua Majestade em causa comum haviam ordenado.

Achando aquelas ordens Régias o dito Capitão General ausente da cidade do Grão-Pará no lugar destinado para as conferências, teve o Bispo que governava a mesma capital por necessário suspender ainda a execução delas até a chegada do Governador proprietário; em razão de que os referidos Padres, desde que viram superadas as dificuldades da expedição do Rio Negro, que antes tinham por superiores a toda a providência, haviam passado a servir-se de outros meios violentos, que o dito Prelado achou que faziam aquela sua circunspecção precisa.

O primeiro dos referidos meios foi o de procurarem incitar os oficiais daquelas tropas para se sublevarem contra o seu General, como ele tinha avisado em 7 de julho de 1755, fazendo a relação dos fatos que assim o tinham demonstrado, e con­cluindo nas palavras seguintes:

“Continuando o dito Padre Aleixo Antônio a mesma ideia, se meteu com uns poucos de oficiais, e debaixo do virtuoso pretexto de que lhe queria dar os exercícios de Santo Inácio, os pôs no colégio à sua devoção: dizendo naquele tempo aos engenheiros, que todos os provimentos, que Sua Majestade tinha mandado para se servir a mesa, que aqui (isto é no arraial do Rio Negro) mandou prover a custa da sua Real Fazenda, lhes pertenciam a eles; e na mesma forma se lhes deviam distribuir os cobres que servem na cozinha; e que se assim se não executasse, era um roubo que se fazia a cada um deles.”

“Depois passou o dito Padre e outros seus sócios a persuadir a esta gente, que eu saíra do Pará sem ordem de Sua Majestade, e por um ato voluntário os vinha meter entre estes matos, nos quais além de infinitos incômodos, que neles haviam de padecer, haviam ultimamente acabar à fome: e isto sem mais objeto que porque eu queria, quando as demarcações estavam desmanchadas, e se não haviam nunca fazer.”

O que constou de outras diferentes cartas, em que se contém a narração de muitos outros fatos e maquinações ordenadas ao mesmo mau fim de concitar a sedições as tropas.

O segundo meio foi o de haverem já passado os mesmos Re­ligiosos Jesuítas das maquinações artificiosas ao uso das armas, procurando sustentar-se naqueles sertões pela via da força, de acordo com os seus Religiosos Espanhóis, que se acham estabelecidos naquela fronteira do Norte: de modo que indo fun­dar-se no mês de janeiro de 1756 a Vila de Borba a nova, na aldeia antes chamada do Trocano, se achou nela o Padre Anselmo Eckart, Alemão, que havia chegado poucos meses antes como Missionário, armado com duas peças de artilharia, e unido com outro Padre também Alemão, chamado Antônio Meisterburgo. Ambos praticaram naquele território desordens, e ab­solutas, que necessitariam de uma difusa relação para se referi­rem, e que fizeram verossímil a suspeita de que em vez de Reli­giosos poderiam ser dois disfarçados engenheiros.

Nestas urgentes circunstâncias, e na necessidade em que o governador e Capitão General daquele Estado se achou de vir à capital buscar o remédio de algumas queixas que padecia, desceu a cidade do Pará para nela animar com a sua presença a publicação da Pastoral do Bispo para a execução da Bula Pontifícia de 20 de dezembro de 1741, e das duas Leis Régias de 6 e 7 de junho do ano próximo passado de 1756.

Ambas as referidas publicações se fizeram efetivamente com as costumadas solenidades nos dias 28 de janeiro, 28 e 29 de maio deste presente ano de 1757, com grande contentamento dos moradores da referida capital, que pelas providências ponti­fícias e Régias viram cessar naqueles três dias as calamidades, que por tantos anos haviam afligido todo aquele Estado.

Não cessaram porém contudo ainda os efeitos das maquinações sediciosas, que deixo acima referidas. Não podendo estas obrar na honra e na fidelidade dos oficiais das tropas, obraram contudo de sorte nos soldados de menos obrigações e de reprovado procedimento, que logo que o Governador e Capitão Gene­ral se apartou do arraial do Rio Negro, desertaram dele não menos que cento e vinte dos referidos soldados; roubando os ar­mazéns Reais, não só de munições de guerra, mas de muitos dos gêneros que neles havia, saqueando ao mesmo tempo algumas casas de particulares, e passando com todos estes roubos para as Missões dos Domínios de El-Rei Católico na Capitania de Omaguás, onde ficavam até as últimas notícias que chegaram ao Pará na data de 18 de junho próximo precedente, em que se termina esta Relação, por não haver notícias posteriores à data do referido dia.

 

DOCUMENTOS.

N.° I.

Cópia das instruções, que os Padres que governam os Índios lhes deram quando marcharam para o exército, es­critas na língua Guarani, e dela traduzidas fielmen­te na mesma forma em que foram achadas aos referidos Índios.

JESUS.

“Em primeiro lugar todos os dias quando acordarmos devemos manifestar que somos filhos de Deus Nosso Senhor, e da Virgem Santíssima Nossa Senhora. De todo o nosso coração nos havemos de entregar a Nosso Senhor, à Virgem Santíssima, a S. Miguel, aos Santos Anjos, e a todos os Santos da Corte celestial; fazendo orações para que, ouvindo-as, consigamos que atendam a nossas misérias, acredoras de toda a lástima, e nos livrem de espirituais e temporais danos; e também havemos de conservar o santo costume de rezar o santíssimo rosário a Nossa Senhora, devoção que tanto lhe agrada, e com a qual conseguiremos que nos veja com aquela misericórdia, que nossas misérias necessitam; e assim alcançaremos com a sua santíssima proteção ver-nos livres de tanto mal como nos ameaça.”

“Logo que se nos oponham aquelas gentes, que nos aborrecem, havemos de invocar todos juntos a proteção de Nossa Senhora a Virgem Santíssima, a de S. Miguel, de S. José, e de todos os Santos dos nossos Povos. E sendo fervorosas nossas súplicas, nos hão de atender: e os que nos aborrecem, quando nos pretendam falar, havemos de escusar sua conversação, fugindo muito da dos Castelhanos, e muito mais dos Portugueses. Por estes Portugueses se nos trazem à casa todos os presentes prejuízos: lembrai-vos que nos tempos passados mataram a vossos defuntos avós. Mataram mais milhares deles por todas as partes, sem reservar as inocentes criaturas, e também fizeram zombaria e mofa das santas imagens dos Santos, que adornavam os altares dedicados a Deus Nosso Senhor. Isto mesmo, que então passou, querem fazê-lo agora conosco, e por isso quanto mais empenho façam não nos hemos de entregar a eles.

“Se acaso nos quiserem falar, hão de ser cinco Castelhanos, nada mais. Não sejam Portugueses; porque se vierem alguns dos Portugueses, não lhes há de ir bem. Não queremos a vinda de Gomes Freire, porque ele e os seus são os que por obra do demônio nos têm tanto aborrecimento. Este Gomes Freire é o autor de tanto distúrbio, e o que obra tão mal, enganando a seu Rei, e o nosso bom Rei, por cujo motivo não o queremos receber. Deus Nosso Senhor foi quem nos deu estas terras, e ele anda maquinando para nos empobrecer, tomando-no-las. Para o que nos levanta muitos falsos testemunhos, e também aos benditos dos Padres, de quem diz que nos deixam morrer sem os Santos Sacramentos. Por estas cousas julgamos que a vinda dos ditos não é para o serviço de Deus. Nós em nada temos faltado ao serviço do nosso bom Rei. Sempre, sempre que nos há ocupado, com toda a vontade havemos cumprido seus mandados. Comprovam isto as repetidas vezes que de sua ordem temos exposto as nossas vidas, e derramado nosso sangue nos sítios, que na Colônia Portuguesa se tem feito; e isto somente por cumprir a sua vontade, sem manifestarmos senão grande gosto em que se cumpram os seus mandados: do que são boas testemunhas o Sr. Governador D. Bruno, e outro Governador que lhe sucedeu. E quando o nosso bom Rei nos necessitou no Paraguai, fomos lá; e muitos que fizeram tão sinalados serviços, assim na Colônia, como no Paraguai, se acham hoje entre estes soldados. Nosso bom Rei sempre nos há olhado com carinho em atenção a nossos serviços, porque temos cumprido seus mandados. E contudo isto, nos dizeis que deixemos nossas terras, nossas lavouras, nossas estâncias, e enfim todo o terreno inteiro. Esta ordem não é de Deus, senão do demônio. Nosso Rei sempre anda pelo caminho de Deus, e não do demônio. Isso é o que sempre ouvimos. Nosso Rei, ainda que miseráveis e desgraçados vassalos seus, sempre nos tem tido amor como a tais. Nunca o nosso bom Rei tem querido tiranizar-nos, nem prejudicar-nos, atendendo à nossa desgraça. Sabendo estas cousas não havemos de crer que o nosso bom Rei mande que uns infelizes sejam prejudicados nas suas fazendas, e desterrados, sem haver mais motivo que servi-lo sempre quando se tem oferecido. E assim não o creremos nunca, quando diga Vós outros Índios dai vossas terras e quanto tendes aos Portugueses, não o creremos nunca. Não há de ser. Se acaso as querem comprar com o seu sangue, nós outros todos os Índios assim as havemos de comprar. Vinte Povos nos temos ajuntado para sair-lhes ao encontro. E com grandíssima alegria nos entregaremos à morte, antes do que entregar as nossas terras. Porque não dá este nosso Rei aos Portugueses Buenos-Aires, Santa Fé, Corrientes, e Paraguai? há de recair esta ordem sobre os pobres Índios, a quem manda que deixem as suas casas, suas igrejas, e enfim quanto têm, e Deus lhe há dado? Nos dias passados críamos que vós outros vínheis da parte do nosso bom Rei, e assim nos acautelamos para o que havíamos de fazer. Não queremos ir aonde vós estais, porque não temos confiança de vós outros; e isto tem nascido de que haveis desprezado as nossas razões. Não queremos dar estas terras, ainda que vós tenhais dito que as queremos dar. Quando porém quiserem falar conosco, venham cinco castelhanos, que se lhes não fará nada. O Padre, que é o dos Índios, e sabe a sua língua, há de ser o que sirva de intérprete, e então se fará tudo; porque deste modo se farão as cousas como Deus manda; e porque se não irão as cousas por onde o diabo quiser. E não quereremos andar e viver por donde vós quereis que andemos e vivamos. Nós nunca pisamos vossas terras para matar-vos e empobrecer-vos, como fazem os Infiéis; e vós o praticais agora, e vindes a empobrecer-nos, como se ignorásseis o que Deus manda, e o que o nosso bom Rei tem ordenado a respeito de nós. O mesmo provam os outros documentos que adiante se seguem.”

 

N.° II.

Cópia da carta que o Povo, ou antes o Cura da aldeia de S. Francisco Xavier, escreveu em 5 de fevereiro de 1756 ao chamado Corregedor, que capitaneava a gente da mesma aldeia no exército da rebelião: escrita na língua Guarani, e dela traduzida fielmente na língua Portuguesa.

“Corregedor José Tiarayu, Deus Nosso Senhor e a Virgem Santíssima sem mancha, e nosso Padre S. Miguel te sirvam de companhia, e de todos os soldados vizinhos deste Povo. O nosso Padre Cura recebeu a tua carta no dia 5 de fevereiro nesta estância de S. Xavier. Fica inteirado de que todos estais bons. O Padre todos os dias diz aqui missa diante da santíssima imagem de Nossa Senhora do Loreto, para que intercede por vós, e vos dê acerto em tudo, e vos livre de todo o mal, e também a Deus Padre Eterno e bom. O bom do Padre Thedeo e o bom do Padre Miguel também fazem o mesmo; celebram todos os dias missas, e as aplicam por vós; e todos os Padres dos outros Povos estão com seus filhos rezando continuamente pare que Deus vos dê acerto. Por amor de Deus vos peço que tenhais união entre vós os do povo, e juntamente constância nos perigos, e sofrimento pelo que podeis experi­mentar. Invocai continuamente o doce nome de Maria Santíssima, do nosso Padre S. Miguel, e de S. José, pedindo-lhes que vos ajudem em vossas empresas, e vos alumiem para elas, e vos tirem de todo o mal e perigo. Se assim o fizerem nada é para Deus o ajudar-vos, e a Virgem Santíssima e todos os Anjos da Corte celestial serão vossos companheiros.

“Desejamos saber de que Povo distante do nosso anda gente perto de vós. Assim o avisai. Ignoramos também que Governador vem com os Espanhóis; se é o de Buenos-Aires, ou o de Montevidéu, ou os dois juntos: e também que caminho trazem as carretas dos Castelhanos; e se estas têm chegado a Santo Antônio: e os Portugueses que caminho trazem, e se estão incorporados com os Castelhanos: avisai-nos de tudo. Se os ditos vos mandarem alguma Carta, despachai-a imediatamente ao Padre Cura.

“Por amor de Deus vos pedimos que vos não deixeis enganar dessas gentes, que vos aborrecem. Se porventura lhe escreverdes alguma carta, manifestai-lhe o grande sentimento que de sua vinda tendes, e fazei-lhe conhecer o pouco medo que vos causam, e a multidão que somos; e que quando esta multidão vossa não fora tanta, não os temeríamos, por termos em nossa companhia a Santíssima Virgem e os Santos, nossos defensores. Se colherdes algum, perguntai-lhe bem tudo o que faz ao caso. O que me mandastes pedir para artilheiro agora chega do Povo, e prontamente vo-lo despacharei. Agora vos envio uma bandeira com o retrato de Nossa Senhora. No nosso Povo não há novidade alguma que vos participe. Tende grande confiança nas orações de todos os do Povo, e em especial das criaturas inocentes; pois todos se empregam em encomendar-vos a Deus. Nosso Padre Cura vos envia muitas memórias a todos, e vos encarrega que rezeis mui a miúdo a Maria San­tíssima e ao nosso Padre S. Miguel: e também diz se vos faltar alguma cousa que escrevais imediatamente ao Padre Cura; e que todos os dias escrevais o que houver de novo: e isso sem falta. Todos os Povos estão desejando saber por instantes os vossos acontecimentos. Nosso Padre, o Padre Thedeo, e o bom Padre Miguel, vos enviam muitas saudades a todos. Recebei as mesmas saudades de todos nós, tanto dos que em S. Xavier residimos, como dos que no Povo estamos. Deus Nosso Senhor, a Virgem Santíssima, e nosso Padre S. Miguel sejam vossos companheiros. Amém. Povozinho de S. Xavier 5 de fevereiro de 1756. — Mordomo Valentim Barrigua.”

 

N.° III.

Cópia da carta sediciosa e fraudulenta, que se fingiu ser escrita pelos Caciques das aldeias rebeldes ao Governa­dor de Buenos-Aires: sendo que é inverossímil que se mandasse ao dito Governador, e que o mais natural é que se compôs debaixo daquele pretexto para se es­palhar entre os Índios, ao fim de lhe fazer críveis os enganos, que nela se contém: escrita na língua Guarani, e dela traduzida fielmente na língua Portuguesa.

“Sr. Governador. Este nosso escrito o mando às vossas mãos,  para que nos digais por último o que há de ser de nós, e só para que vos acordeis bem do que haveis de fazer. Vede como o ano passado veio a esta nossa terra o Padre Comissário inquietar-nos, para que saiamos dos nossos Povos e de nossas terras, dizendo que isto era vontade do nosso Rei. E demais disto vós também nos mandastes uma carta mui rigorosa, para que destruíssemos com fogo todos os Povos, todas as chácaras, e nossa igreja, que é tão linda, e que nos havíeis de matar. Também dizeis em a carta (que, por isso o perguntamos) que isto é também vontade do nosso Rei. E se esta fosse a sua vontade, e se assim o mandasse, todos nós outros em o amor de Deus morreremos diante do Santíssimo Sacramento. Deixai, não toqueis na igreja que é de Deus, porque ainda os infiéis assim o fazem. E é esta a vontade do nosso Rei, que tomeis e arruineis tudo o que é nosso! Esta é a vontade de Deus, e segundo os seus Santos Mandamentos? Isto que temos só é do nosso trabalho pessoal, nem o nosso Rei nos tem dado cousa alguma. E pois por que razão todo o Espanhol nos aborrece tanto pelo bem que estamos. Nosso Rei sabe também que estas terras no-las deu Deus e a nossos avós, e por isso só as possuímos em o amor de Deus. O Padre Roque Gonçalves se humilhou. Todos nós outros desde os tempos passados sempre temos obedecido aos Reis de Espanha, até ao presente. E sendo isto assim, como creremos o que dizeis, julgando nós que isto nunca pode ser a vontade do nosso Rei? E ainda com isto nos humilhamos a ouvir a última vontade do nosso Rei. Os nossos papéis já foram aonde ele está, para que veja a verdade. Também haverá pouco recebemos os seus papéis. Se é que foram certos, não se assemelhavam à tua carta. O bom desejo do nosso Rei sabemos bem o que há de fazer em vendo lá os nossos papéis, e sabendo o nosso bom procedimento. Vós também já haveis visto os nossos papéis, e vos dizemos neles a suma verdade. Aqui não haveis de achar para nós terras, quanto mais para os nossos animais. Não somos nós sós os dos sete Povos, senão doze mais estão deitados a perder, quando nos queirais tirar estas terras. Sr. Governador, se não quiserdes ouvir estas nossas razões, todos nós nos pomos nas mãos de Deus, porque é quem faz todas as cousas. Ele é o que sabe nosso erro. Ao nosso Rei não lhe havemos faltado em nada, e por isso temos nele confiança. Ele é o que nos há de ajudar. Por isso mesmo havemos de mandar nossas cartas a todas as terras, e que saibam ainda os infiéis esta nossa triste vida, e que se espantem destes vossos feitos. Também vai ao nosso Rei que saiba o Padre Papa esta nossa vida, que não há quem a veja. Em vós outros já não há confiança. Isto é o mais certo diante de Deus, que a quem todo o sabe, e tudo vê. Ele vos dê vida, e a nós também, para que vos lembreis bem de nós. Naquele ano de 1742 a 11 do mês de maio chegou uma carta do nosso bom Rei e Senhor. Preparou-se de repente uma lanchinha mui brilhante, o mastro grande era de prata. Quando chegou à margem do rio pôs na ponta um papel; e ao deitá-lo em terra firme, atiraram um tiro de espingarda, e se voltou para nós correndo. E tornando esta embarcação para trás como quem ia correndo, se perdeu logo de vista dos que a viam. Isto é o que é certo, e foi no tempo do Governador D. Domingos Ortei de Roxas. Também se ouviu que foi uma embarcação levando a El-Rei quatro mil patacas de prata, que lhe deram de esmola. Deste modo o diz quem o sabe, que é o Padre Pedro Arnal na sua carta. No mês de setembro do ano de 1752 chegou o Padre Comissário, chamado Luiz Altamirano, de Buenos-Aires ao Povo de S. Tomé. Estando ali inquietou os Povos para que se mudassem. E isto não se efetuou. Sim foi só a Buenos-Aires. E depois que lá chegou, mandou outra vez ao Padre Afonso Fernandes, ao Padre Roque Ballester, ao Padre Agostinho. Este Padre tornou a chegar a S. Tomé em o ano de 1753, a 13 do mês de agosto. Cuidou entrar nestes Povos, e o atalharam os soldados. Não lhe deram caminho. Sim foi só ao Povo da Candelária. Depois pretendeu vir ao Povo da Conceição em um dia de festa que se dizia missa, e os soldados o tornaram a embaraçar, e o mandaram outra vez. Depois disto mandou às mãos do Padre Romão de Toledo, Cura de Santa Maria Maior, uma carta muito má; e a entregou a um Capitão de Santa Maria, chamado Luiz Etuairahi; e a passou às mãos dos de S. Nicolau; e a deu na       mão do Padre Carlos, e ao Padre Simão Santo a 7 de setembro. Aquele mau papel, que tratava de que se expulsassem os Padres! Então foram trinta soldados de S. Luiz ao Povo de S. Nicolau, e a 8 de setembro por fim de tudo, na igreja em presença de todos, tomaram os ditos papéis das mãos do Padre Carlos, e os queimaram na Praça. Isto é o que têm feito os de S. Luiz.

“Este é o modo com que quiseram impedir a missa do bom Padre. Quiseram quebrar o sacrário, e o atalharam. Por isso não entram nestes Povos. E quem quis fazer isto foi o Rege­dor chamado Miguel Yabatti.

“Mestre de Campo, Miguel Chepa, Secretário Ermeregildo Curupi, e os Caciques, e D. João Cumandiyu, Julião Cubuca. Isto é o que se tem feito: Servidor. Primo Ybavera de S. Miguel.

 

N.° IV.

Cópia da convenção celebrada entre Gomes Freire de Andrade e os Caciques para a suspensão de armas.

“A los quatorze dias del mez de Noviembre de mil sietecien­tos cincoenta y quatro, en este campo del rio Jacui, en donde está campado el Illustrissimo y Excellentissimo Señor Gomes Freire de Andrada, Governador y Capitan General de la Ca­pitanía del Rio de Enero y Minas Generales, con las tropas de S. M. F. para auxiliar las de S. M. C. a fin de evacuar los siete Pueblos de la margen oriental del Uruguay que se ceden a nuestra Corona en virtud del Tratado de limites de las conquistas, venieron à la presencia del dicho Excellentissimo Señor General, D. Francisco Antonio, Cacique del Pueblo de S. Angel, D. Christoval Acatú, y D. Bartolo Candiú, Caci­ques del Pueblo de S. Luis, y D. Francisco Guacú, Corrigidor, que acabó en dicho Pueblo de S. Luis, y por ellos fué dicho le permittiesse el dicho Señor quo ellos se retirassen à sus Pueblos en paz sin hazerles daño; ni tan pôco seguirles, ni aprisionarlos, y a sús mugeres y hijos, pues ellos nó querian guerra con los Portuguezes; y respondiendo-le el dicho Señor General, y mas officiales abaxo firmados, que ellos se hallavan en este exercito por orden de su Soberano, aguardando, que la cavallada e boyada del exercito, de que es General el Señor D. Joseph de Andonaigue, fuesse en estado de bolver à seguir el camino, que por falta de pastes fué obligado a retro­ceder, y que en teniendo orden del dicho Señor General, como mandante, que era de todo, se avançarian, por lo que nó de­terminavan retirarse, antes si fortificarse en el passo en que estaban: lo que oydo por los dichos Caciques, y de mas In­dios, que presientes estaban, pedieron por Dios les concediesse tiempo, para su recurso, y aguardavan que S. M. C. mas bien informado de su miserable estado y vida aplicasse su Real piedad con tal remedio, que serviese de alivio a su miseria; y que caso S. M. C. y su General nó oyessen sus ruegos, y se metiesse otra vez en campana, quedavan ciertos que los Portugueses los seguian en cumplimiento de las Reales ordenes de su Soberano: lo que oydo por el dicho Señor General, respondió nó determinava perder un passo, de lo en que se halava su exercito; pero queriendo tener con ellos la piedad, que le rogavan, le permitia de tregoas el tiempo que mediasse hasta que el exercito de S. M. C. nuevamente marchasse a la campana, siendo con las clausulas seguintes: — Que se retirarian luego los Caciques con los officiales y soldados a sus Pueblos, y el Exercito Portuguez sin hazerdes dano ó hostilidad alguna passaria el Rio Pardo, conservandose de una parte y otra en entera paz, hasta determination de los dós Soberanos, Fidelisio y Catholico, ó bien hasta que el Exército Hespanol salga à campana, porque en saliendo, el Exercito Portuguez precisamente ha de seguir las ordenes del General de Buenos Ayres; y para que se nó sucite duda alguna, se declara es la division interina del Rio de Viaman por el Guayba arriba hasta adonde le entra el Jacuhy, que es este en que nos allamos campados, seguiendole hasta su nascimiento por el braço que corre de Sudueste. A lo que en esta division de rios queda a la parte del Norte nó passará ganado, ó Indio alguno, y siendo encontrados se poderá tomar el ganado por perdido, y castigar los Indios que fueren hallados: y de la parte del Sul nó passará Portuguez, y siendo hallado alguno será castigado por los Caciques, y de mas justicias de dichos Pueblos en la misma forma, excepto los que fueren mandados con cartas de una ó otra parte, porque estos seran tratados con toda fidelidad. Y de como assi lo prometieron executar tanto el dicho Excellentissimo Señor General por su parte, como los referidos Caciques por la suya, lo firmaron todos, y juraron a los Santos Evangelios, en que pusieron sus manos derechas en mano del Reverendo Padre Thomas Clarque, y yó Manoel da Silva Neves, Secretario de la Expedicion, que lo escrevi. — Gomes Freire de Andrada — D. Martin Joseph de Echaure — D. Miguel Angelo de Blasco — Francisco Antonio Cardoso de Menezes e Souza — Thomaz Luiz Osorio — D. Christoval Acatú — Bartolomeu Candy — Francisco Antonio — Fabian Naguaeu — Santiago Pindo.”



* Consta do documento n. 1, e o provam os fatos.

** Vai copiado este ato nos documentos debaixo do n. 4.

[1] [nota do responsável pela edição digital] Os trechos em Espanhol foram mantidos segundo fielmente a edição de referência, sem qualquer

atualização ou correção ortográfica.

* Debaixo dos números I. II. III.