Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Dois Proveitos em um Saco, de França Junior


Obra de Referência

Biblioteca Virtual de Literatura

DOIS PROVEITOS EM UM SACO

PERSONAGENS

AMÉLIA TEIXEIRA
LUÍS TEIXEIRA, seu marido
CATARINA, criada alemã
BOAVENTURA FORTUNA DA ANUNCIAÇÃO

A cena passa-se em Petrópolis, no verão de 1873.

ATO ÚNICO

Sala regularmente mobiliada

CENA I

AMÉLIA e CATARINA

AMÉLIA (Mirando-se em um espelho.) - Como achas este vestido?

CATARINA - Vai-lhe às mil maravilhas, minha ama.

AMÉLIA - Lisonjeira.

CATARINA - Somente tenho que fazer-lhe uma observação. Permite-me?

AMÉLIA - Fala.

CATARINA - Parece-me que se a cauda fosse mais pequena...

AMÉLIA - Tola, tu não sabes o que é o chique.

CATARINA - Pois olhe, não é isto o que diz o seu Antonico Mamede.

AMÉLIA - E quem é este Senhor Antonico?

CATARINA - Seu Antonico Mamede é um moço louro, que costuma ir todos os sábados ao baile alemão. Aquilo é que é rapaz de truz Se minha ama visse com que graça e elegância ele dança a polca!...

AMÉLIA - Oh! atrevida! Tu queres fazer-me confidências amorosas?

CATARINA - Minha ama não namorou também ao Senhor Teixeira antes de se casar com ele? Ainda me lembro quando aqui chegaram em novembro do ano passado, para passarem a lua de mel. Vinham tão agarradinhos que dir-se-ia um casal de pombos batedores. E como estava este chalé! Era um brinco!

AMÉLIA - E os tais oito dias oficiais da lua de mel prolongaram-se até hoje graças ao belo clima de Petrópolis. Ser condenada a passar aqui uma vida inteira, sem ter uma distração no inverno, contemplando, saudosa, todos os anos, esses bandos de andorinhas que voam para a corte, apenas o arvoredo começa a perder o brilho de suas folhas verde-negras. Ora, diz-me uma coisa. Este seu Antonico sofre do fígado?

CATARINA - Do fígado?! Que lembrança! É um rapagão sadio como há poucos.

AMÉLIA - Olha, Catarina, quando ele te pedir a mão, manda-o examinar atentamente por um médico e se tiver a tal víscera estragada, casa-te, mas não venhas passar a lua de mel em Petrópolis. Toma a receita e não te darás mal com ela. Antes de me levar ao altar, disse-me o Senhor Teixeira: - Vamos para Petrópolis, meu anjo; lá passaremos oito dias, respirando o ar puro dos campos, embalsamado pelo perfume suave das flores, em um pitoresco chalé que mandei alugar na rua de Dona Francisca. Acordaremos ao romper da aurora, ao cântico dos passarinhos e juntos, bem juntos, como se fôramos duas almas em um só corpo, escreveremos a página a mais feliz da nossa vida naquele Éden de delícias. A perspectiva do quadro agradou-me. Passar a lua de mel no campo era um requinte do bom tom, que até certo ponto lisonjeava-me o amor próprio de moça elegante. Quando aqui chegamos, no começo do verão, Petrópolis começava a animar-se, e os oito dias correram velozes como um raio. Trazia as malas cheias de luxuosas toaletes. Escusado é dizer-te que regalei-me de arrastar sedas por estes campos. Passados os oito dias, disse-me meu marido que dava-se perfeitamente com este clima e que havia resolvido ficar mais dois meses. Aceitei a idéia. Aproximava-se o inverno, Petrópolis começava a despovoar-se e o Senhor Teixeira, que se sentia cada vez mais sadio e nutrido, foi-se deixando ficar por aqui, como se estivera no paraíso. Em um belo dia apareceu-me ele todo expansivo e batendo-me no rosto com aquela afabilidade que lhe é peculiar, cravou-me em cheio no peito esta punhalada: - Amélia, dou-te a agradável notícia de que comprei este chalé e que não sairemos mais de Petrópolis. Quero restabelecer-me para sempre destas malditas cólicas de fígado. Ah! o fígado do meu marido! O fígado do meu marido! (Levanta-se.)

CATARINA - Porém, o que deseja mais, minha ama? Não vive aqui porventura tão feliz? Tem carro para passear todas as tardes ao alto da serra, mora em uma excelente casa, meu amo a adora.

AMÉLIA - No verão. (Vai ao espelho.)

CATARINA - Está bem relacionada, todos a estimam, ouve música aos domingos no passeio público...

AMÉLIA - No verão.

CATARINA - Vai às partidas do clube, aos bailes do hotel Bragança...

AMÉLIA - No verão! Mas no inverno, desgraçada, o que fico aqui fazendo?

CATARINA - Come excelente manteiga fresca, magnífico pão de cerveja, bebe bom leite e passeia.

AMÉLIA - E hei de passar aqui a minha mocidade, enquanto que outras mais felizes do que eu dançam no Cassino, vão às corridas do Jóquei Clube, divertem-se pelos teatros, gozam, enfim, de todos os prazeres da corte! Se soubesses como fico, quando neste ermo leio os jornais de maio a outubro! Nunca viste contar a história de certo sujeito que não tendo dinheiro para comer costumava colocar-se todos os dias à porta de um hotel e aí saboreava um pedaço de pão duro, aspirando o perfume das iguarias que partiam da sala de jantar? Assim sou eu quando recebo notícias da corte durante o inverno.

CATARINA - Tenha fé em Deus, minha ama. Não havemos de ficar aqui eternamente.

AMÉLIA - Que horas são?

CATARINA - Oito horas. Vosmecê não vai buscar meu amo? Hoje é domingo e os carros da serra devem chegar às dez.

AMÉLIA - Não; espero-o aqui. Antes de partir fizemos uma Philippina que vai decidir da minha sorte e não quero perder a única ocasião que tenho de mudar-me de uma vez para a corte.

CATARINA - Uma Philippina?! O que vem a ser isto, minha ama?

AMÉLIA - Eu te explico. Como sabes, Teixeira foi para o Rio a fim de tratar de um negócio importante, não querendo levar-me, sob pretexto de que a febre amarela lá está grassando com muita intensidade. Anteontem, quando jantávamos, descobri por acaso, à sobremesa, duas amêndoas unidas sob o mesmo invólucro. Comendo uma, e entregando outra a meu marido, disse-lhe J'y pense.

CATARINA - Gypança?

AMÉLIA - J'y pense é um jogo em que as mulheres ganham sempre e os homens perdem.

CATARINA - E em que consiste este jogo?

AMÉLIA - No seguinte: logo que Teixeira encontrar-me, se ao receber um objeto qualquer de minhas mãos não disser imediatamente J'y pense, terá de pagar uma prenda e o mesmo acontecerá comigo em idênticas circunstâncias.

CATARINA - Que excelente jogo! E a senhora ganha com toda a certeza, porque ele não tarda a chegar e (Dando-lhe uma carta.) pode meter-lhe logo nas mãos esta carta que há pouco vieram aqui trazer.

AMÉLIA - Magnífico! (Guarda a carta.) Aposto, porém, que não sabes quais foram as condições que estabelecemos.

CATARINA - Se meu amo perder, dá à minha ama um bonito bracelete.

AMÉLIA - Qual bracelete! Se Teixeira perder muda-se de uma vez para a corte e se eu tiver a desgraça de ser codilhada, bordo-lhe um par de chinelas.

CATARINA - E meu amo estará pelos autos?

AMÉLIA - Que remédio! Comprometeu a sua palavra de honra!

CATARINA - Então tome cuidado que ele há de fazer todo o possível por ganhar.

AMÉLIA - Veremos. Logo que o carro parar no portão, vem avisar-me. Arranja esta sala e manda preparar o almoço. (Sai.)

CENA II

CATARINA e depois BOAVENTURA

CATARINA (Arrumando a sala.) - Muito sofre esta pobre moça, coitada! Ah! Se eu tivesse a fortuna que ela possui, como não seria feliz ao lado do meu Antonico! É verdade que eu o amo e ele me adora, mas o ofício de fazer bengalas não dá para viver e não há remédio senão ir dançando polcas até que lhe sopre alguma aragem de felicidade.

BOAVENTURA (Entrando com uma mala e parasitas.) - Ora, muito bons dias.

CATARINA (Assustando-se.) - Ah! que susto!

BOAVENTURA - Não se incomode comigo. Onde está a dona da casa? Faça o favor de guardar esta mala. Eu fico em qualquer quarto. Não sou homem de cerimônias. Peço-lhe que tenha cuidado com as parasitas.

CATARINA - Mas quem é o senhor? O que quer?

BOAVENTURA - Sou um homem, como vê. Vim passar alguns dias em Petrópolis e não hei de dormir no meio da rua.

CATARINA - Mas isto aqui não é hotel.

BOAVENTURA - Já sei o que vem dizer-me. Dos hotéis venho eu, não me conta nada de novo. Que noite! Se eu lhe disser que ainda não preguei olho até agora, talvez não acredite.

CATARINA - E o que tenho eu com isto?

BOAVENTURA - O que tem a senhora com isto?! Decididamente isto é uma terra de egoístas! Onde está a dona da casa, quero me entender com ela.

CATARINA - Tome a sua mala, vá-se embora, senhor.

BOAVENTURA - Sair daqui? Nem que me rachem de meio a meio.

CATARINA (Atirando a mala e as parasitas no chão.) - Eu já lhe mostro. (Sai.)

BOAVENTURA - Não me esbandalhe as parasitas.

CENA III

BOAVENTURA e depois AMÉLIA

BOAVENTURA - E dizer-se que vem gente a esta terra para divertir-se! Pois não! Que belo divertimento, Senhor Boaventura. Sair um cidadão da corte com o sol a pino, suando por todos os poros, andar aos trambolhões da barca para o caminho de ferro, do caminho de ferro para os carros, chegar aqui quase ao cair das sombras, percorrer os hotéis um por um e ouvir da boca de todos os locandeiros esta frase consoladora: - Não há mais quartos, estão todos ocupados. Quem me mandou vir a Petrópolis! Pois eu não podia estar agora muito a gosto no beco do Cotovelo, aspirando o ar puro da praia de D. Manoel? Quem me mandou acreditar em caraminholas de febre amarela?

AMÉLIA (Entrando.) - O que deseja, senhor?

BOAVENTURA - Sente-se, minha senhora, (Dando-lhe uma cadeira.) e faça o favor de ouvir-me com toda atenção.

AMÉLIA (À parte.) - E então? Não é ele que vem oferecer-me cadeiras em minha casa?

BOAVENTURA - Tenha a bondade de sentar-se.

AMÉLIA - Estou bem.

BOAVENTURA - Uma vez que quer ouvir-me em pé, não faça cerimônias.

AMÉLIA - O seu comportamento não tem explicação.

BOAVENTURA - Explica-se da maneira a mais fácil possível.

Chamo-me Boaventura Fortuna da Anunciação, tenho cinqüenta e dois anos, sou solteiro e vim para Petrópolis passar estes três dias santos aconselhado pelos médicos.

AMÉLIA - Não tenho o prazer de conhecê-lo.

BOAVENTURA - As relações adquirem-se e é por isto que estou me apresentando.

AMÉLIA (À parte.) - É inaudito!

BOAVENTURA - Eu bem sei que deve ser até certo ponto estranhável este meu procedimento, mas estou certo de que a senhora no meu lugar faria o mesmo. Faria o mesmo, sim, não se admire; porque, enfim, não havendo mais lugares nos hotéis, é justo que se entre pela primeira porta que se encontra aberta para pedir uma pousada.

AMÉLIA - Ah! Agora compreendo. E pensa o senhor que a minha casa é estalagem?

BOAVENTURA - A senhora diz isto porque não imagina a balbúrdia que vai por aí. (Mudando de tom.) É verdade, o seu nome? Como temos de morar juntos por alguns dias, é justo que saiba desde já com quem vou ter a honra de tratar.

AMÉLIA (À parte.) - E então?

BOAVENTURA - Tem cara de que se chama Bonifácia! Aposto que acertei. Que sarilho, Dona Bonifácia! O Bragança está cheio como um ovo: dorme-se ali por toda a parte, sobre os bilhares, sobre a mesa de jantar, a de cozinha, em cima do piano, pelos corredores, na escada, até a própria sala do baile alemão já foi transformada em dormitório. O Du Jardin está que é uma lua cheia, o MacDowalis vomita gente pelas janelas e portas.

AMÉLIA - Ainda tem o recurso do hotel dos Estrangeiros, senhor.

BOAVENTURA - Pois não, fresco recurso! Cansado de andar correndo Seca e Meca, fui lá bater anteontem, às 9 horas da noite e a muito custo consegui que dois hóspedes que lá estavam e que deviam dormir na mesma cama, cedessem-me um lugar no meio, observando-me o dono da casa que nada tinha que pagar por ser aquilo um obséquio que os dois sujeitos me faziam. Instalei-me no centro e quando principiava a conciliar o sono, começaram os companheiros das extremidades a brigar por causa do lençol. O dito era na realidade um pouco curto! Um puxava daqui, outro dacolá, até que afinal um deles zangado perguntou-me: o senhor também não puxa? Eu que me achava bem acomodado e que estava gostando do fresco, disse-lhe: - Meu caro senhor, eu não puxo porque não paguei. Não acha que respondi bem?

AMÉLIA - Esta resposta define-o.

BOAVENTURA - Os tais companheiros não quiseram mais me receber. Ontem dormi ao relento nos bancos da porta do hotel de

Bragança. Sabe a Senhora Dona Bonifácia o que é dormir aqui ao relento, alumiado pelos pirilampos, ouvindo uma orquestra diabólica de sapos? Hoje não estou disposto a passar a mesma noite e portanto instalo-me aqui. A casa convém-me, é bastante espaçosa, arejada, está em um belo sítio.

AMÉLIA - Ou eu estou sonhando ou o senhor é de um desfaçamento sem igual!

BOAVENTURA - Nem uma nem outra coisa.

AMÉLIA - Quer então instalar-se aqui?

BOAVENTURA - Se não lhe der isto grande incômodo...

AMÉLIA - Ah! Essa é boa! Provavelmente há de querer também que lhe dê carro para ir ao bois todas as tardes, um ginete para ir à Cascatinha.

BOAVENTURA - Não, eu cá dispenso essas coisas; prefiro boa mesa e boa cama. Mas, agora reparo, a senhora tem um vestido chibante.

AMÉLIA - Acha?

BOAVENTURA - Gosto de ver como anda esta gente por aqui! Caudas de seda e de veludo a varrerem a lama das ruas, os homens todos enluvados com enormes catimplórias na cabeça e alguns até de casaca com luvas cor de papo de canário. Gosto disto. Assim é que eu entendo viver em campo. Porém, eu estou tomando-lhe o tempo. Vá tratar de arranjo da casa. Provavelmente ainda não almoçou e enquanto se prepara o almoço, há de permitir-me que me entregue por alguns momentos à leitura.

AMÉLIA (À parte.) - Estou pasma. (Boaventura senta-se, tira um livro do bolso e lê.) O que está lendo?

BOAVENTURA - Um livro precioso.

AMÉLIA - Deveras?

BOAVENTURA - Preciosíssimo!

AMÉLIA - O que vem a ser então esse livro?

BOAVENTURA - Intitula-se: Manual prático do celibatário. É a vigésima edição.

AMÉLIA - Deve ser uma obra interessante.

BOAVENTURA - Interessantíssima. Este livro jamais me abandona. É o meu breviário, o meu evangelho, a cartilha por onde rezo...

AMÉLIA - Sim? Estou curiosa por saber o que ele contém.

BOAVENTURA - Nada mais nada menos que todos os meios de que uma mulher pode lançar mão para enganar um homem.

AMÉLIA - E estão aí todos esses meios?

BOAVENTURA - Todos, todos, um por um. A este filantrópico livrinho devo a liberdade de que gozo. Leio-o todos os dias pela manhã, em jejum, ao meio-dia e à noite antes de me deitar.

AMÉLIA - Acho-o pequeno demais para a vastidão do assunto.

BOAVENTURA - Oh! mas isto é essência e essência muito fina.

AMÉLIA - De maneira que não há mulher que possa hoje enganá-lo.

BOAVENTURA - Desafio a mais pintada.

AMÉLIA (À parte.) - Este homem é um original! Oh! Que idéia! Não há dúvida, é um presente que o céu me envia para realizar o que pretendo. Mãos à obra. (Alto com meiguice.) Senhor Boaventura?

BOAVENTURA - O que é, Dona Bonifácia?

AMÉLIA - Não me trate por este nome. Eu me chamo Amélia Teixeira, a mais humilde de suas criadas.

BOAVENTURA - Oh! Minha senhora! (À parte.) Que metamorfose!

AMÉLIA - Não acha bonito o nome de Amélia?

BOAVENTURA - Encantador! Conheci uma Amélia a quem amei com todas as veras de minha alma.

AMÉLIA - Ah! Já amou?

BOAVENTURA - Muito!

AMÉLIA - Acaso poderei saber quem era essa criatura feliz, esse ente venturoso, com quem o senhor repartiu os tesouros de um afeto tão puro? (Lançando um olhar lânguido.)

BOAVENTURA - Pois não, minha senhora. Era minha avó. (À parte.) E esta! Que olhos que me deita!

AMÉLIA (Suspirando.) - Ai! Ai!

BOAVENTURA (À parte.) - Suspira para aí que comigo não arranjas nada.

AMÉLIA - Senhor Boaventura?

BOAVENTURA - Minha senhora?...

AMÉLIA - Não conhece febre?

BOAVENTURA - Todos nós mais ou menos somos médicos. Está doente?

AMÉLIA - Não me sinto boa.

BOAVENTURA - O que tem?

AMÉLIA - Uma dor aqui. (Aponta para o coração.)

BOAVENTURA - Isto é constipação. Tome um chá de sabugueiro, abafe-se bem e ponha um sinapismo na sola dos pés. (À parte.) Não me apanhas não, mas é o mesmo.

AMÉLIA - Tenha a bondade de examinar o meu pulso.

BOAVENTURA (À parte.) - E esta! (Levanta-se e examina-lhe o pulso, à parte.) Que mão, santo Deus! (Alto.) Não é nada. (À parte.) Cuidado, Senhor Boaventura. Faça-se firme e compenetre-se das verdades preciosas do seu livrinho. (Senta-se e continua a ler.)

AMÉLIA (À parte.) - Está a cair no laço. (Alto.) Chegue a sua cadeira mais para cá.

BOAVENTURA - Estou bem aqui, minha senhora.

AMÉLIA - Ora, chegue-se mais para cá, eu lhe peço.

BOAVENTURA - E que aí deste lado bate o sol...

AMÉLIA - E o senhor tem medo de queimar-se?

BOAVENTURA (À parte.) - Não há dúvida! Esta mulher está mesmo me provocando.

AMÉLIA - Chegue a sua cadeira.

BOAVENTURA (À parte.) - Sejamos forte. (Chega a cadeira.)

AMÉLIA - Feche este livro. Vamos conversar. (Fecha o livro.)

BOAVENTURA (À parte.) - Que olhos! Parecem lanternas! Estou aqui, estou perdido.

AMÉLIA - Dê-me a sua mão.

BOAVENTURA (Dando a mão, à parte.) - Santa Bárbara, São Jerônimo! Que veludo!

AMÉLIA - Diga-me uma coisa. Nunca amou a mais ninguém neste mundo, senão a sua avó?

BOAVENTURA - Se quer que lhe responda, largue-me a mão.

AMÉLIA - Por quê?

BOAVENTURA - É que estou sentindo uns arrepios como se estivesse com sezões.

AMÉLIA - Diga. Nunca amou a ninguém?

BOAVENTURA (Terno.) - Não, porém agora sinto que se opera dentro de mim uma revolução como jamais senti. Eu amo uns olhos negros que me fascinaram, mas largue a minha mão pelo amor de Deus, não me perca.

AMÉLIA (À parte, rindo-se.) - Ah! ah! ah!

BOAVENTURA - Sim, eu amo uma... amo... quero dizer... amo uma mulher, que é a estrela do meu firmamento. (À parte.) Já não sei o que digo. Atiro-me de joelhos aos pés dela, e está tudo acabado.

AMÉLIA - E quem é essa mulher?

BOAVENTURA (Atirando-se de joelhos.) - Dona Amélia, tenha pena de um desgraçado que a adora. A seus pés deposito o meu nome e a minha fortuna!

CENA IV

OS MESMOS e CATARINA

CATARINA (Entrando às pressas.) - Minha ama, minha ama, meu amo chegou. Aí vem o carro.

AMÉLIA - Jesus!

BOAVENTURA - Teu amo? Então a senhora é casada?

AMÉLIA - Sim, senhor e com um homem que é ciumento como um Otelo!

BOAVENTURA - Mas por que não me disse isto logo!

AMÉLIA - Saia, senhor: se ele pilha-o aqui, mata-o.

BOAVENTURA - Estou arranjado! (Para Catarina.) Dá cá a minha mala e as parasitas.

CATARINA - Ande, senhor, avie-se. (Boaventura vai a sair pela porta do fundo.)

AMÉLIA - Por aí não; vai esbarrar-se com ele.

BOAVENTURA - Quem me mandou vir a Petrópolis?!

AMÉLIA - Esconda-se ali, naquele quarto.

BOAVENTURA - E depois?

AMÉLIA - Esconda-se ali, já lhe disse. (Boaventura esconde-se no quarto, Amélia tranca a porta e fica com a chave.)

CENA V

AMÉLIA, CATARINA e depois LUÍS

CATARINA - O que fazia aquele sujeito a seus pés, minha ama?

AMÉLIA - Saberás daqui a pouco.

LUÍS (Entrando com uma mala e diversos embrulhos.) Querida Amélia. (Dá-lhe um beijo. Catarina toma a mala e os embrulhos.)

AMÉLIA - Que saudades, Luís! Estes dois dias que estiveste na corte pareceram-me dois séculos.

LUÍS - Foi o mesmo que me aconteceu, meu anjo. Venho cheio de abraços e beijos que te enviam tua mãe, as manas, tuas primas... É verdade, a Lulu manda-te dizer que morreu aquele celebérrimo felpudo que lhe deste.

AMÉLIA - O Jasmim? Coitadinho!

LUÍS - Lá ficou toda chorosa. Está inconsolável a pobre menina. Como vai isto por aqui?

AMÉLIA - Cada vez melhor.

LUÍS - Tem subido muita gente?

AMÉLIA - Não imaginas. Anteontem vieram vinte e dois carros, ontem outros tantos... Isto está que é um céu aberto. Que luxo, Luís!

LUÍS - Trouxe-te duas ricas túnicas que comprei na Notre Dame. Disse-me o caixeiro que eram as únicas que vieram.

AMÉLIA - E como deixaste o Rio?

LUÍS - Está que é uma fornalha do inferno, Amélia. A febre amarela de mãos dadas com o calor, a bexiga, a companhia City lmprovements e o canal do Mangue têm matado gente que é uma coisa nunca vista. Lê o obituário e verás. Ontem fui ao Alcazar...

AMÉLIA - Ah! Tu foste ao Alcazar?

LUÍS - Mas não pude aturar mais do que o primeiro ato da peça. Saí alagado! (Vendo Catarina, que deve estar inquieta olhando para à porta por onde entrou Boaventura.) Mas que diabo tem esta rapariga que está tão assustada?

CATARINA - Não tenho nada, não, senhor.

AMÉLIA - É que...

LUÍS - É que o quê?

AMÉLIA - É que na tua ausência deu-se aqui uma cena um pouco desagradável...

LUÍS - Uma cena desagradável?!

AMÉLIA - Sim...

LUÍS - Mas que cena foi esta?

AMÉLIA - Não te amofines, eu te peço.

LUÍS - Fala... que estou sobre brasas.

AMÉLIA - Prometes-me que não darás escândalo?

LUÍS - Amélia, eu tremo de adivinhar.

AMÉLIA - Adeus, adeus: se começas deste modo não conseguirás coisa alguma.

LUÍS - Anda, fala.

AMÉLIA - Introduziu-se há pouco um sedutor em minha casa...

LUÍS - Um sedutor?! Onde está ele?! Onde está este miserável?

AMÉLIA - Ajudada por Catarina e pelos escravos consegui prendê-lo naquele quarto, a fim de que pudesse receber de tuas mãos o castigo que merece.

LUÍS - Tu me pagarás já, patife. (Vai à porta do quarto.)

AMÉLIA - Onde vais?

LUÍS - Sufocar o bigorrilhas.

AMÉLIA - Queres arrombar a porta?... Espera. Toma a chave.

LUÍS - Dá cá; dá cá. (Recebe a chave.)

AMÉLIA (Rindo-se.) - Ah! ah! ah!

LUÍS - E tu te ris?

AMÉLIA - J'y pense, j'y pense.

CATARINA - Ah! ah! É boa, é boa. Foi o primeiro objeto que meu amo recebeu e portanto perdeu o jogo.

LUÍS - Ah! velhaca! Lograste-me.

AMÉLIA - Ah! ah! ah! Confessa que perdeste e que foi uma maneira engenhosa de eu ganhar a Philippina.

LUÍS - És mulher e basta.

AMÉLIA - Lembras-te do que convencionamos?

LUÍS - Sim, levar-te-ei para a corte todos os invernos. Mas olha que me meteste um susto!...

AMÉLIA (Para Catarina.) - Apronta o almoço. (Para Luís.) Vai mudar de roupa.

LUÍS - Velhaca... (Sai.)

CENA VI

AMÉLIA e BOAVENTURA

AMÉLIA (Abrindo a porta.) - Saia, senhor.

BOAVENTURA - Já se foi?

AMÉLIA - Já.

BOAVENTURA - Não me meto em outra. Parto para a corte e não me apanham tão cedo.

AMÉLIA - Antes de sair diga uma coisa.

BOAVENTURA - O que é, minha senhora?

AMÉLIA - Ouviu o que se acaba de passar entre mim e meu marido?

BOAVENTURA - Ouvi tudo, mas não compreendo coisa alguma.

AMÉLIA - Não me disse há pouco que naquele livro encontram-se todos os recursos de que uma mulher pode servir-se para enganar um homem?

BOAVENTURA - Sim, senhora.

AMÉLIA - Pois acrescente lá esse meio de que uma mulher lançou mão para enganar a dois homens. Ah! ah! ah! Boa viagem.

(Boaventura sai.)

(Cai o pano.)

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística