Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Dispersos, de Cruz e Sousa


Texto-fonte:

João da Cruz e Sousa, Obra Completa,

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995

 

ÍNDICE

Da Bahia

Interjeições da lágrima

Victor Hugo

Perfis a vapor

Victor Hugo

Major Camilo

O espectro do rei

Perfis a vapor

Virgílio Várzea e Cruz e Sousa

Abolicionismo

Biologia e sociologia do casamento

Um novo livro

Émile Zola

Guilherme I

O "El-Dorado"

Carta a Gonzaga Duque

Horácio de Carvalho

O pequeno Boldrini

Signos

A Virgílio Várzea

 

 

Da Bahia

Sobre os poetas catarinenses Santos Lostada e Virgílio Várzea

ACABO DE RECEBER jornais com o espírito hors ligne de ambos. Maravilhoso! Único!

Li, reli, treli os versos e "quinquili" o folhetim.

Admirável! O Lostada, com a sua palavra toda irisada de florões levantinos, arquitetando uma fraseologia própria, original, levada nas claridões aurorais, cinzelando um pedaço de marfim, cheio de salpicações multicores de azul, rouge, e ouro, traçou um dos folhetins mais cheios de verve que eu tenho lido.

Brilhante de concepção, intuitivo, vibrante como um tímpano de metal ou um anafil mourisco.

Parece uma filigrana de Alencar, uma página da Dama das Camélias de Dumas Filho, ou uma frase perfumada, de luva gris-perle de Théophile Gautier, o delicado inspirador de Mademoiselle de Maupin.

É um belo trabalho, e, direi mesmo, un chef-d'oeuvre. Completo, artístico, palpitar de almas, cânticos à liberdade...

É galantemente espirituoso e espirituosamente galante, Lostada, o teu folhetim pschutt, é vivo como uma alvorada ou uma orquestração de aves que rouxinolizam através das fulgurações ensanguentadas de sol no seu plaustro iluminado e triunfante, quando sobe a escadaria longa e suntuosa do Levante!

Ainda bem! Principiam eles a ter as imponências de águia condoreira, nessa infeliz terra que eu tanto amo, que defendo sempre que o senso mo manda fazer, e que lhes tem sido ingrata!

Oxalá saibam os catarinenses, como os dois bandeirantes, compreender o evolucionismo do século e agitar o cérebro pensante do Desterro.

Eu cá estou de longe para guardar no sacrário de minha admiração convicta e séria, as pérolas e as flores de luz e ouro, do ideal desses combatentes moços que se chamam Virgílio Várzea e Santos Lostada e que, como uns intrépidos soldados da Idade Média, sabem na luta do talento, na batalha do livro e do estudo, atirar o seu cartel, a sua luva de desafio à ignorância e à insensatez que não ousa dar um passo na vanguarda do Belo filosófico, do Belo estético de que fala Eugène Véron no admirável livro L'Esthétique.

Não posso ir mais além.

Estou ainda sob a impressão daquelas linhas, cheias de rendilhados, belas, luzidias. Abraço-os, num fervor explosivo de entusiasmo e brado-lhes da sombra onde estou, intimamente saudoso, por não os ver: Avante, amigos!

Na grande cruzada da luz são os heróis, aqueles que se erguem da treva, do obscurantismo, da democracia, e de luta em luta, de lágrima em lágrima, de fel em fel, de desespero em desespero. São aqueles que riem... quando choram e que choram.., quando riem.

São esses que de Tântalo passam a ser glorificados como Voltaire ou Dumas. Salve!

E como paráfrase àqueles versos do másculo cantor da Abolição, Castro Alves, quando diz — "Bravo quem salva o futuro fecundando a multidão" — eu, em completa síntese de aplausos, dir-lhes-ei: — A perfectibilidade moral e intelectual de um povo depende da mocidade, essa vigorosa e audaz fundidora do porvir. Salve!

Que a minha alma adeje nas asas policromas da inspiração, para saudar os dois talentos mais amplos e os dois poetas mais perfeitos da nova idade literária catarinense.

 

Interjeições da lágrima

(Artur Rocha)

AINDA FUNÂMBULO DO IDEAL, Moleque, vamos, reticência de soluços os períodos de tuas colunas, vírgula de lágrimas essenciais e austeras a tua fraseologia, corta, rasga, espedaça, destrói a tua vestidura multicor, alegre como os guizos sonoros, vibrados à música da pandeireta; para as tuas cambalhotas atrevidas, no trapézio da crítica, apostrofa a gargalhada vermelha do ditirambo cortante como a navalha, sacode os teus nervos, acorda a tua animalidade, o teu humor que ri e que chora — e, vamos, Moleque — fazendo explosir os gritos da matéria, as impetuosidades pantéricas da carne, afoga o teu organismo, mergulha-o na sombra do não ser, — do eterno problema trágico de Shakespeare.

Morreu Artur Rocha.

O que quer dizer isto?!

O que se deduz destas três frases, ali acima desta preposição, enfileiradas, alinhadas, perfiladas, na solenidade fúnebre dos ciprestes inteligentes, graves, circunspetos?

O que significa aquela afirmativa, que tem a tristeza, a unção religiosa dos soluços indefiníveis do órgão, espalhando-se, derramando-se pelas abóbadas de um templo enorme e majestosíssimo?

O que quer dizer isto?!

Quer dizer que desapareceu na noite metafísica um dos mais valorosos espíritos da geração deste país.

Quer dizer que entregou-se ao conúbio do verme, no conceito de um talento forte, uma das mais radiantes, uma das mais ousadas e selvagens imaginações que conheço.

Artur Rocha tinha um magnífico cabedal literário, o seu espírito compreendia a força intuitiva das coisas e às vezes, varado por uma loucura que se poderia qualificar de genial, a sua pena coruscava, relampejava, fuzilava na escrita, com as nuances sulfúreas dos fenômenos que se observam nas marés.

Sua inteligência fina, penetrante e superior, dum atilamento de filósofo, alargava-se pelos mundos da ciência, a fora, como uma águia gloriosa e imponente na fartura das penas e na rijeza das asas.

O estilo saía-lhe terso e animado por uma chama sempre nova, viva e ardente.

Parece que ele bebia, pelos órgãos visuais e pelos órgãos auditivos, toda a seiva, toda a fecundidade natural, porque os seus artigos tinham raízes boas, alcances magníficos, fundos didáticos e evolucionistas.

Não se compreendia o Arthur Rocha, sem o seu lenço ao pescoço, nem o Rio Grande, sem o senso jornalístico de Artur Rocha.

Se Artur de Oliveira era um desespero de talento, doido e tresloucado, que enveredou no antro surdo da dúvida, Artur Rocha era um cérebro sadio, — cuja natureza urgia, com a sua preponderância animal e inevitável, mais horizontes para viver, mais céus estrelados de sóis para alargar e fortalecer o sangue vital das células intelectivas.

Vamos, Moleque, retesa os músculos e, embora pareça que ris sempre como o Ghwinplaine sombrio, nas eternas cabriolas da dor, no sarcasmo epilético da agonia, pontua isto, com a lágrima franca e sincera, em consideração ao talento que cai.

 

Victor Hugo

LA GLOIRE t'a donné la jeunesse immortelle.

Isto, escreveram-te no teu octogésimo terceiro aniversário natalício. Hoje, depois do teu eclipse no mundo animal, mas da tua transformação, da tua entrada majestática pelos sóis das ideias, pelos corações valentes das gênesis dos povos — eu, mandando a palavra musculizada, enfibrada, palpitar como um organismo, sintetizando as tuas obras, arremesso, pelo teu túmulo a dentro, isto:

Morreste em todas aquelas mortes.

Viveste em todas aquelas vidas.

*

O poeta d'Os miseráveis, aquele que tinha uma consolação imaculada e profunda para todos os miseráveis; o poeta da PIEDADE SUPREMA, aquele que tinha uma suprema piedade por todos os desgraçados desabou como um sol triunfante e glorioso e, agora, como numas pequeninas visões de oftalmia, causadas pela luz excessiva, todas as raças hão de sentir os olhares ofuscados nos clarões estupendos que o Cristo da Liberdade universal espalhou pelos séculos afora; esse Cristo extraordinário, esse poeta do HOMEM QUE RI, que ria dos nababos da treva e chorava pelos mendigos da lama numa loucura genial, esse poeta de l'ombre et de l'abîme.

E agora, a sombra e o abismo riem-se por lhe sorverem a matéria, mas a luz folga, acariciando a substância espiritual do vulto.

 

Perfis a vapor

Carlos Schimidt

O CARLOS, o Schimidt!...

O Schimidt, o Carlos!...

Duas pessoas, distintas e... uma só individualidade verdadeira.

Magnífico, o Carlos Schimidt!...

Quem o não conhece; aquele invólucro simpático, guardando um coração valentemente democrata e digno, como o cálice de uma flor delicada guarda o perfume que é o espírito da natureza vegetal; como o crânio guarda o espírito, que é o perfume da natureza animal.

Quem enfrentou ainda com esse caráter em linha reta pelos escombros e anfractuosidades da vida, que não sentisse vibrar dele a nota da adorabilidade e da magnitude?...

Carlos Schimidt faz da honradez uma couraça temível contra as marteladas e os golpes adestrados da luta sociocrática.

Podem atirá-lo aos empurrões, aos solavancos, aos embates fortes por despenhadeiros compactos de treva, esses numes invisíveis que formam os destinos do ser, que o bom do homem, o esplêndido coração, cairá sempre, mas sempre em terreno plano, luminoso, suave.

Talvez desarranje um músculo, mas o caráter, olhem bem para ele e... vê-lo-ão em todo o vigor, com toda a correção do estado primitivo...

Faz bem, no meio de um materialismo que cega, duma indiferença que regela, dum egoísmo e mesquinhez de sentimentos, sentir palpitar ainda, surgir do caos da podridão moral, almas decentes e profundamente boas e úteis, com verdadeiro direito à vida, como a deste adorável catarinense.

Não conheço ninguém mais atilado para as ocasiões do trabalho, com mais competência de senso para o encargo superior de pai de família.

Carlos Schimidt, conhece as meias-tintas do lar, sabe esbater na tela doméstica as cores das circunstâncias da existência, distribui com arte o colorido da felicidade de suas filhas e... encara, rindo, a gradação das sombras do pesar.

Pode-se dizer que no centro harmonioso da família e da sociedade ele é, como diz Guerra Junqueiro — Um gigante nu contra um gigante d'aço.

A atividade do Schimidt espelha-se partícula por partícula, em todas as coisas, como o orvalho gota a gota em cada pistilo das magnólias.

Na arte plástica, nas ligeiras cinzeluras arquitetônicas do desenho, por intuição, por gosto, por estética, nos fanfreluches do espírito fino, carnavalesco, no humor caricatural, pronto, claro, preciso, espontâneo — observa-se no Carlos uma adivinhação de tudo o que é belo, grande, primoroso.

Possui uma perfeita organização de artista, onde há muita seiva, muita coragem bonita, muita compreensão do difícil e do bom, mas pouco, muito pouco horizonte, muito estreito campo, acanhados limites...

Ele é como os objetos em cujas facetas a luz reflete-se em prismas.

Apresente, por isso, e só por isso, o excelente Schimidt — que é, dentre as personalidades que apodrecem no vulgo — como que um grito alegre da terra — no tropo de Ramalho Ortigão.

Gosto do Carlos, porque ele afinal de contas... é mesmo assim...

 

Victor Hugo

Ne dites pas mourir; dites vivre, croyez.

É O APOTEGMA GLORIOSO do mestre, que sintetiza toda a valentia, toda a força superior do seu atilamento espiritual.

Nunca morrem os homens de cérebro, aqueles que têm a penetração filosófica das grandes causas, que sobem, pela ideia, às maiores alturas, de onde, se caem, é pela vertigem que lhes causa a luz, a zona infinita do éter.

Quem viveu como Victor Hugo, dentro destes três preceitos grandiosíssimos da mais simpática e revolucionária figura da História, o Cristo, o filósofo supremo, esses preceitos racionais da Liberdade, Igualdade, e Fraternidade — há de cair humanizado na dúvida sinistra do túmulo, mas há de entrar em essência, em vigor intelectual pelos corações de todos os povos.

Pensar, educar e combater.

Ele o fez.

Ninguém mais franca e lealmente se colocou do lado dos pequenos da sombra para ferir os miseráveis da luz, ninguém tanto abençoou os pequenos da luz para estigmatizar os miseráveis da sombra.

Victor Hugo foi mais do que um revolucionário, foi uma revolução.

A indomabilidade selvagem do seu organismo, os seus elementos de combate, a sua argúcia pronta e assombrosa no desenvolvimento das evoluções morais e sociais, deram um cunho fantástico na escala extraordinária dos seus assuntos verbalizados ou expostos em caracteres.

Esse operário do bem, esse bem do operário ou antes: esse próprio bem que existiu pela sua animalidade quase um século, concluiu as obras monumentais de cem séculos.

Representou em oitenta e três anos, uma porção de paixões, uma porção de lutas, um milhão de sentimentos.

Viveu a fase do homem e a fase do leão.

Bebeu inspirações maravilhosas, mergulhando a cabeça no infinito e trazendo-a ensopada em luz.

Viu quedas de reis e de estados, de usos, de costumes, atravessou os mares de todas as tempestades, viu morrer Gambetta, viu morrer Littré e Girardin, sentiu as maiores vibrações e estremecimentos de triunfo, viu, em pé, no trono de seus livros, aureolado pelo arco-íris da sua palavra doida, nervosa, desesperada, passar toda a enorme imponência que pode admitir o pensamento e o olhar: Viu Paris, fartamente alegre e alegremente farta de glórias, ajoelhar-se, beijar, vitoriar num bombardeamento pelos sóis das intelectualidades universais.

 

Major Camilo

É UMA GARGALHADA de sessenta e tantos anos, sempre cristalina e vibrante.

É o homem que ri... Não "o homem que ri" do Pater oceanus na frase de Théophile Gautier, mas o homem que ri, de Santa Catarina.

É um patusco, a gente diz ao enfrentar com o Camilo.

É um caráter limpo e honesto, a gente diz ao enfrentar com o Major.

E Camilo e Major e Major e Camilo formam um Major Camilo muito direito, muito reto, muito respeitável.

Dentro do seu organismo, chocalham, tilintam, todos os guizos do prazer e da alegria franca.

O seu espírito não se preocupa com os enevoamentos do ser.

Sabe o que são lutas porque tem vivido o tempo preciso para elas, mas, ao contrário dos espelhos, não reproduz, não reflete sempre as sombras melancólicas que por acaso cruzam-se dentro de si.

Tem a preocupação da arte, a inteligência, a finura.

É um magnífico conquéreur do ideal, metido na tebaida da indiferença.

Nos teatros, pelo carnaval, com a hábil direção do seu pincel, tem pintado o sete, a manta, ...e... não sei se, sobretudo, algum xale... ou sobretudo...

Pinta também... o diabo na "Diabo a quatro" sem mesmo pintar nenhum diabo.

E é um diabo dos diabos.

Quando ele está entre os seus amigos e que de repente, explodem em risadas, todos eles, não há que ver — Estourou por ali a bomba de alguma anedota do Major.

Todos cercam o precioso cidadão de afabilidades e gabos, porque ele no sacrário da família, guarda, acaricia e afaga a hóstia de luz, a lembrança do amor imaculado e supremo de sua mãe que vivia para estender-lhe, sobre a cabeça, como um manto estrelado de consolações e de bondades, o seu olhar piedoso e santo.

O Major Camilo representa, na atividade humana, o humorismo alegre de Júlio César Machado.

Ri, ri nervosamente, funambulescamente, talvez para tapar, com risos, os escombros, os vácuos da sua felicidade.

Ri, talvez para dar mais claros aos escuros da sua existência.

Ri, porque é uma necessidade dos seus músculos, dos seus órgãos vitais...

O seu coração expande-se pelas coisas dignas, bate ainda com força, nas palpitações fortes da mocidade, porque o Major recorda o seu tempo, o seu bem estar de moço, pelo país dos sonhos a dentro, vendo o cosmorama simpático da sua ventura de rapaz, sentindo cantar-lhe no peito os gloriosos voos em busca das aprazíveis esferas infinitas da infinita luz.

E ele ri, ri, como um doido do prazer; porque assim como a atmosfera, por um princípio fisiológico, influi no sangue, o riso influi no temperamento do Major.

E, nos momentos dos entusiasmos justos, toda a aurora eterna da sua alma sobe, aflui-lhe ao rosto, como o colorido rubro da virtude e da dignidade.

Espectro do Rei

Versos de Moreira de Vasconcelos

(Maranhão, 1884)

“QUEM DIZ POESIA, diz Emoção, quem diz Emoção subentende sinceridade”, escreveu — Oliveira Martins, perlongando as Odes e canções, de Luís de Magalhães.

O trabalho de que nos vamos ocupar um tanto detalhadamente, merece esse apotegma do ilustre escritor português.

Há duas coisas no Brasil que são como que homogêneas: a política e a poesia, por não serem tomadas convenientemente a sério, por serem entregues a muitos espíritos pueris, duma penetração frívola e vulgar.

Falar em poesia é, neste país, para a compreensão fácil e leviana de indivíduos inconscientes da verdade filosófica das grandes coisas tangíveis, uma imbecilidade, um entretenimento inútil, uma aspiração vazia de senso e de critério.

Mas não se pense assim; não.

Se a poesia é uma banalidade, uma questão de rimas e de amores romanescos, de tolices doiradas, rasguem-se para sempre, lancem-se ao fogo Os Lusíadas, a Divina Comédia, o Fausto, as tragédias de Shakespeare, o D. Juan, de Byron, a Jerusalém libertada, de Tasso, e tantas revelações geniais que não só levantaram homens na grandiosa comunhão das ideias, mas que celebrizaram nações imortalmente.

A poesia é uma arte poderosa e positivamente séria; tais sejam a força intuitiva dos poetas e a sua unção religiosamente estética e afetiva.

Todos os assuntos são valorosos e grandes, uma vez que sejam descritos e tratados com observação analítica.

Se em todos os países civilizados a poesia segue na vanguarda de todas as altas criações do espírito humano, por que não há de ser assim no Brasil? Independência e ideias, consciência ao largo deixemos estrugir lá fora, na sociedade que arrota o seu bom vinho ao almoço, que vai pelos clubes passear a sua dispepsia, deixemos estrugir, sim, os ditirambos crus, e as ironias entrecortadas de risadinhas vaidosas, insufladas de pedanteria e bílis.

Agitar a alma a todas as sensações capazes de robustecer o espírito, ter a penetração do "Grande Meio" na frase de Cocote, ser grande com os grandes, e pequeno com os pequenos, trazer sempre no organismo a harmonia vital do exuberante empório das maravilhas, a natureza criadora, adivinhar todos os fenômenos, ser artista, valentemente artista, inspiradamente cinzelador, conhecer as meias-tintas e os claros-escuros, as meias-sombras da vida, soluçar de pé como um colosso, rir como um desvairado de luz, compreender as largas mutações cósmicas, os nimbos crespusculares das amplitudes do éter, rasgadas em coloridos undiflavados, em tonalidades supremas de melancolias suaves e cândidas — sentir, ver tudo isto com o eloquente olhar do raciocínio, com a indomabilidade selvagem da crença animal — eis o que é ser poeta.

Poesia quer dizer emoção, quer dizer sinceridade, quer dizer alma e consciência. Todos os dias criam-se trovadores mas não se criam poetas; criam-se máquinas mas não se criam corações.

Da fecundidade espontânea e livremente franca do espírito, do estudo superior e particular de todas as coisas da existência, das frases pequeninas, das minuciosidades notáveis do ser, dos compridos voos de aspiração, firmados em claros alicerces de verdade, deve nascer o poeta, boêmio eterno das incomensuráveis estâncias do Ideal.

O Evolucionismo, que tende a aperfeiçoar, completar, dar razoabilidade a tudo, exige da poesia uma transfiguração natural da forma, uma regularidade matemática no metro e uma selva brilhante de concepções elevadas e límpidas.

Pela forma ser nítida, clara como os cristais a cintilarem batidos pelas arestas do gás; pelo metro ser correto como Angelo Buonarotti na admirável arte da escultura; pela concepção ser elevada, grande como a frase de Girardin, delicada como o espírito das flores — o perfume.

Se tivéssemos de caracterizar uma poesia brasileira, genuinamente nossa, seria a lírica, porque é essa a nossa índole e afeição poética, porque os nossos primeiros cantores foram líricos, porque a mor parte de todos os elementos e princípios de vitalidade intelectual, dão em resultado a poesia lírica.

No meu modo de pensar, calmo e refletido, acho que a transformação absoluta e normal que alguns sérios poetas brasileiros têm dado à poesia, é indiscutivelmente superior e de resultados mais seguros e mais dignos.

*

Para mim coisa alguma deve estacionar; fazer poesia relativamente às necessidades congênitas da nossa natureza letárgica e mole, parece-me de mau gosto e não condigno das proporções, que, à luz dos conhecimentos do século, tem tomado a inteligência humana.

Essas vantagens de transformação universal nas artes, nas ciências, nas letras e que a crítica sensata estuda e compara com a máxima argúcia, são o triunfo verdadeiro dos direitos de vida que o homem deve ter sobre a terra.

Com a acentuação do estudo e do progresso, a inteligência cria frutos mais sazonados e bons.

Incontestavelmente a literatura moderna é mais revolucionária, mais conscienciosa, mais firme e mais inspirada do que a antiga.

O romance positivamente sem força experimental, era escrito de um fôlego, sobre a perna, sem uma única preocupação estética, sem um cuidado de forma, todo ele cheio de situações de cordel, falso, imprestável, inútil.

Hoje é um corpo sólido, sentindo todos os agitamentos, todas as palpitações dos nervos; hoje o romance é um pedaço tirado à vida social, analiticamente psicológico e fisiológico; contendo a seriedade lógica dos fatos, a irrepreensível escola da verdade; doutrinando, argumentando, influindo nos costumes e nos vícios como a atmosfera influi no sangue.

Hoje a forma amplia-se à largueza dos sentimentos, a largueza dos sentimentos à força da imaginação, a força da imaginação aos materiais do bom senso, cujos produtos são perfeitamente distintos dos produtos banais e estéreis.

Antigamente parecia um pieguismo indecifrável ver-se um homem educado, convenientemente instruído, a ler um romance; hoje é fato que honra e distingue, quando esse romance tem na sua lombada os nomes aureolados de Zola, Flaubert, Daudet, Manzoni, Eça de Queirós e Teixeira de Queirós (Bento Moreno).

A poesia, como o romance, é fora de dúvida que tem a seguir o mesmo caminho, colocar-se na mesma esfera, isto é, dizer alguma coisa de novo sem incompatibilizar-se com o sentimento expansivo da inspiração e da verdade.

— O verso deverá ser fluente, o metro inteiro, a rima perfeita.

"Um verso frouxo ou manco e uma rima equívoca ou violenta, hão de ser perpetuamente defeitos.

Quem disser o contrário — ou é tolo ou tem ouvidos de cortiça."

Afirma o Sr. Alexandre da Conceição.

No Brasil ninguém lê versos ou se alguém os lê é por distração, por hábito, para fazer disposição a alguma cena postiçamente dramática com a sua loira ou a sua morena, para acender a pólvora da paixão que há de explodir aos pés de uma "ela".

Quem lê versos na acepção mais inteira e clara da frase, é quem faz versos; é o poeta e até aí se acentua a máxima de — poetas por poetas sejam lidos.

Este meu — ler versos — não quer dizer recitá-los, repeti-los automaticamente, decorá-los; quer dizer, senti-los, pensar neles com madureza, compreender-lhes a origem, o gérmen que os fecunda, a grandeza que os inspira e anima.

Sem dúvida, a tarefa de sentir propriamente, cada um por si, não é tão difícil nem tão religiosamente fenomenal, como a de compreender e sentir, por assim dizer, o sentimento alheio.

Nas diversas fases de sensações, aquelas que damos a outrem pelos produtos artísticos, pelas criações do gênio, pelo esforço da inteligência e da razão, são mais admiráveis e grandes do que aquelas que recebemos!...

Isto é uma questão toda intuitiva, natural, uma questão de mais ou menos sangue nos glóbulos cerebrais; não se argumenta, afirma-se; não se debate, raciocina-se; não se exemplifica, pesa-se no senso.

Toda a fonte de vida e de reflexão que rebenta de um bom verso ou mesmo de um bom livro de versos, necessita outras dezenas de fontes de sentimento, de critério artístico — grande segredo racional — para que esse ou esses versos possam ser julgados competentemente, com a maior fartura de sagacidade e atilamento.

Muita gente há que ouve estas coisas mas teima em não querer compreender, em ficar numa ignorância por hábito, por uma falta de importância dada a si mesma, por um ódio surdo e inabalável ao seu semelhante. E essa gente envelhece sob as mesmas impressões, olha para os mesmos horizontes, pensa as mesmas ideias, chora as mesmas lágrimas e ri os mesmos risos, sem ver que tudo isso acontece porque essa gente vive dentro do seu eu, e só para ele.

Eterna preponderância, a majestade eterna da miséria no instinto do homem.

— E daí, dessa rebeldia moral, o aplauso por cálculo, por convenção; e daí, desse fato que é uma anomalia monstruosa, perante o século, a indiferença de gelo por sucessos literários reais, o desconceito pelo estudo e pelo trabalho das nossas mais belas individualidades literárias, o desleixo mais cabal pelos elementos de luz que nos pertencem.

Não comparam, não analisam, não anatomizam o nosso centro de letras, não estabelecem exemplos comparativos, de épocas, de meio, de índoles, de adiantamento; não entram com interesse, com paixão sincera de quem luta desenvolto, franco, livre, num exame de consciência, pela porta do dever e da verdade, apoteosando o mérito, não; mas quando se fala da nossa ainda nova literatura brasileira, perguntam o que é, parvamente, com um gestozinho de deboche de mulheres avinhadas, cofiando a barba, com a importância imbecil de um fiscal de teatro de feira.

Mas entretanto, se se falar na literatura de um outro país, acham afirmativamente Victor Hugo o maior sábio deste mundo e do outro.

São esses os críticos, são esses os entendidos, são esses os capazes, os didáticos; se nos atrevemos a dizer verdades como estas, somos parlapatões, ridículos, esmagam-nos com epigramas e piparotes de diabretes.

Não obstante não querem enxergar nunca o direito, muito embora esteja ele de pé, à vista de todos; não podem fitar nunca o sol da justiça porque são míopes de... raciocínio; vegeta nesses cérebros a dúvida do ser ou não ser — do príncipe da Dinamarca; isto é, não tendo confiança no valor da sua existência, não compreendem como podem acreditar que os outros existam para a vitalidade da matéria, fracos eles, para a vitalidade do espírito.

E no meio da espontaneidade, da lisura com que dizem analisar os produtos racionais, sempre surge o despeito, lá cresce ele, — cresce, avoluma-se, toma corpo, enfibra-se, muscula-se e faz sombra à sinceridade e aos bons sentimentos da crítica imparcial e reta.

A força consciente cede lugar à pequenez de uma paixão animal qualquer e aquele que se critica, que se observa, tendo as dificuldades, plenas e essenciais para ser colocado em superiores vantagens literárias, ferido na sua consciência, aviltado na sua justa proporção intelectual, amaldiçoa o trabalho e atira para a rua como uns objetos imprestáveis, o livro e a pena, causas primordiais da desorganização de seu futuro triunfante e de aspirações honestas.

Caem então sobre o inspirado da luz, sobre o herói da ideia, mais tarde, quando o seu talento mergulhou de todo no profundo túmulo do esquecimento, quando o seu gênio deixou de bater as asas como um pássaro vitorioso e alegre, pelas distâncias intermináveis do Azul amplíssimo e doce; caem sobre ele, sim, as interjeições extravagantes e sombriamente irônicas da própria crítica que diz: — Fulano era um jovem esperançoso; por que não trabalha, não produz, não cria? Por Deus, como aquele talento, com aquela hilaridade!... Que bonito futuro lhe estava aberto!... Ah! esta mocidade é indolente, não é enérgica, não é vigorosa; tem as armas na mão e lança-as fora sem nada haver produzido. Lamentamos que Fulano desaparecesse da arena da inteligência. É uma perda notável para o seu país.

Entretanto essa crítica não se lembra que ela foi quem o esmagou com a sua indiferença, quem o desanimou com a sua presunção, quem o estigmatizou com o seu despeito.

Quando o pensamento humano fundir-se no crisol da verdade e da justiça, nesta bela terra brasileira ver-se-á que tais coisas, ditas aqui com a dignidade da retidão e da lhaneza, não são simplesmente para fazer esticar os nervos dos mal-intencionados, dos prevenidos como se diz, nem para levantar rigorosidades de estilo inflamado, mas sim para estereotipar, clara e concisamente, o modo de ver dos que pesam o juízo coletivo de uma literatura!

*

Ocupemo-nos mais de perto do nosso assunto geral: O espectro do rei, síntese político-sociocrática, por Moreira de Vasconcelos.

Esse livro vigoroso e robusto, por si só bastaria para formar uma reputação superior; revolucionar mesmo.

Moreira de Vasconcelos escreveu-o de um fôlego, sem pausa, quase, diremos, sem refletir pesadamente, no acanhado espaço de dois meses em que nós que lhe sentimos a vertigem do cérebro, a pulsação das veias, o glorificávamos satisfeito, à vista de tanta pujança de talento, de tanta facilidade de concepção, de tão extraordinária abastança de ideias e assuntos originais.

É preciso que se diga alto e altivamente estas verdades de bronze:

Poucos têm a felicidade de, reunindo a forma à arte, a rima ao metro, o fino e delicado espírito à sátira valente e mordaz, acumulando fato sobre fato, originalidade sobre originalidade, passagens históricas, variando de ritmo, de tons, de propriedade de ação, de propriedade de estilo, ampliando figuras nítidas e completas, imagens claras e soberbas, harmonia superior e rimas não vulgares, algumas, muitas, únicas e brilhantíssimas, poucos têm a felicidade de preparar em dois únicos meses de um trabalho nervoso, um livro de versos tão magnífico, tão bem acabado, o mais exigentemente possível, para quem quer enxergar as coisas direitas.

Não têm aparecido a meu ver, no Brasil, muitos livros de versos superiores ao Espectro do rei; consultemos o nosso tesouro poético, estabeleçamos paralelos entre os livros da moderna geração e esse de que trato.

Moreira de Vasconcelos é um talento perfeito, audacioso, revolucionário e que, abominando as velharias, burila no seu gabinete de trabalho, com a paciência de um artista de raça, com a coragem forte de uma organização na qual o sentimento estético se difunde, as mais belas estrofes selvagens e inspiradas, grandes e imponentes como as eternas estrofes da criação.

A gente lê todos os versos desse livro encantador sob uma impressão estranha e agradável.

Parecem-se a uma quantidade ilimitada de pedras preciosas, de berilos, de topázios, de esmeraldas, de ônixes, de diamantes, de prásios, de pérolas, de corais, de safiras, de brilhantes, de turquesas — tudo isso rutilando, fulgindo, brilhando muito, aceso numa claridade espontânea e límpida, pelas línguas de fogo de um sol cintilador e rubro.

O poeta apanhou na sua síntese toda a gestão do rei, a figura legendária a quem todos os fatores do movimento político superior exprobram e invectivam.

Como no fenômeno da Luz, os raios refratores do talento do poeta iluminam todas as fases da história político-social da Nação.

*

É preciso ler-se o livro e acompanhar com o gosto e com a observação as particularidades do sentimento e do estudo.

Moreira de Vasconcelos, com o seu engenho esplêndido, com as suas convicções literárias e profundas, com os seus ideais novos, com a sua filosofia grandiosa, fez revolução com O espectro do rei, como o prodigioso e inimitável maior poeta português Guerra Junqueiro, com o seu estupendo e divino D. João.

No D. João há prodigalidade de ideias, esbanjamento de imagens infinitas; n'O espectro do rei, de Moreira de Vasconcelos, há a impetuosidade nevrálgica de poesia vibrante, a seiva de uma mocidade musculosa e rija de saúde.

Por vezes parece que sente a gente aquelas estrofes boas, de um cheiro ativo de sangue de um corpo de artista, de um rapaz de alma simpática e adorável.

A segunda parte, a "Visão de César", que é o desfilar solene e majestático dos titãs da Liberdade e do Direito, em versos gloriosamente heroicos e fluentíssimos; a terceira, que é o "Tribunal supremo" onde imperam juízes soberanos; a quarta, que é o — "Orfeão terrestre", umas preciosas quadras corretas, das quais ressumbra ovante a lei do transformismo; a quinta, a "Agonia nacional", onde a sátira, o ridículo e o espírito genuinamente notável e elegante se consorciam, a sexta, o "Drama psíquico", onde a História, a grande mãe da humanidade exerce o seu poder inabalável, traçando na fronte do Réprobo o estigma da ignomínia, a sétima, o "Espectro do rei"; a nona "Fases diversas"; a décima, "Dissolução moral" e a décima primeira, o "Sonho doloroso", — formam em torno da inspiradora cabeça do poeta moderno uma sinfonia wagneriana de gritos, de soluços, de risos, de beijos, de explosões de dignidade, de epopeia de sentimentos e de luz.

"O Fundibulário d'O espectro do rei", para estar com a frase sisuda e larga do autor das Visões de hoje, da Poesia científica e dos Retalhos, o conceituado Dr. Martins Júnior; o Fundibulário d'O espectro do rei, repetimos, não necessita dos encômios nem dos elogios ad hoc preparados para alarmar uns reclames falsos e bombásticos.

O que ele é, o que ele vale, o que ele estuda, o que ele inova e aperfeiçoa aí está para os que leem, aí fica provado para os que criticam sem paixões, para os que aplaudem sem ficelles.

É natural que no valor vivíssimo da inspiração o sal da arte não convergisse todos os seus venábulos para um ou outro verso, mas isso será uma circunstância, uma falha tão diminuta como uma mancha no sol físico.

Para um nababo, que gasta, a mãos cheias, os tesouros de sua bonita intelectualidade, que esperdiça com profusão, com exuberância, como um perdulário, as moedas fortes do seu talento sadio, isso não pode ser defeito, não é, nunca o será.

Demais, até hoje não se tem dado à luz da publicidade um livro de versos modernos com tanta originalidade de forma, com tanta beleza de rima e de imagens, tão completo e tão opulento.

*

A crítica que o desminta, a crítica que o prove, pronunciando a última palavra do senso e da verdade.

E depois, Moreira de Vasconcelos conhece a construção do verso e tem sobrevantagem sobre todos os poetas brasileiros e portugueses: os acentos tônicos, a partir do princípio de todos os versos, o que observou muito em algumas partes do seu livro, na maior porção de estrofes.

Isto, que desde O espectro do rei ele pode constituir uma regra no Brasil, especialmente sua, pelo menos ante os processos dos versos publicados em volume, e que ele os analisa, — ficará perfeita e claramente assentado nas Manhãs sonoras, produto da escola lírico-parnasiana e que se deverá seguir à aparição d'O espectro do rei.

O que sai da pena assim, vertiginosamente, é tudo quanto me merece a importância artística do autor; são os sufrágios da minha admiração convicta e francamente livre, por um talento nosso, original, despido das crenças caducas e aparelhado para o augusto congresso das ideias e reformas literárias.

O que é O espectro do rei, sente-se em cada página que se lê, em cada rima que se nota, em cada figura que se observa.

Desta allure febricitante do livro, desta maneira de vibrar os seus sentimentos, deste jeito todo particular, das múltiplas faces da expressão, — o poeta abre com a sua síntese político-sociocrática uma exceção de valor, entre os mais seletos cultores da poesia nacional.

A sua observância, a sua experiência natural, a sua prática absoluta de todas as coisas e fatos da vida, reunindo tudo isso à fecundidade do seu pensar, colocam-no em lugar especial e distinto no nosso pequeno mundo de letras.

Moreira de Vasconcelos não esperdiça a sua atividade, não faz parar as funções ordinárias do seu cérebro, e cede ao impulso vigoroso duma vontade enérgica, ao movimento propulsor das suas ativas disposições mentais.

Enquanto faz sair dos prelos O espectro do rei, constrói um outro belo edifício poético — as Manhãs sonoras, escreve crônicas artístico-literárias, conclui uma comédia original — O pato, revê provas da Luz da pampa, novo trabalho da escola sensualista, e prepara os instrumentos de combate para a síntese religiosa A família.

Dessa efervescência de luta apresenta-se a crítica, com as suas convicções, com os seus exemplos num livro republicano de ideias resolutas e firmes, moldando o seu ideal pelos seus confrontos.

Seja teimosia, seja extravagância no gosto, o que é certo é que O espectro do rei, de Moreira de Vasconcelos, é um livro decente e adiantado, novo e original, e que se não interessa, se não impressiona agradavelmente, de uma forma elevada e boa, as divindades literárias de lhama e papelão, do grande templo mitológico do júri artístico brasileiro, tem para mim o valor intrínseco de uma obra escrita inspiradamente, baseada em fatos históricos da maior gravidade social.

É um perfeito poeta que vibra a teoria gigantesca dos assuntos necessários, coletivos, no presente, para fazer acordar o brio, a dignidade nacional no futuro; com a coragem cívica de Gambetta e a verve incomparável de Voltaire.

Merece muito da justiça, da imparcialidade da crítica e esta que o considere, que o receba como é do seu dever restrito fazê-lo, não por ostentação banal, por uma vaidade imbecil, mas pela força consciente dos espíritos varonis e sensatos que são obrigados a fitar a luz em todas as suas mais amplas manifestações e em qualquer círculo que ela abranja.

 

Perfis a Vapor

Ele

UMA ATIVIDADE!

Uma locomotiva, deitando nove milhas por hora e ainda puxada por doze touros briosos e corpudos...

É a síntese d'Ele...

Sempre o vi andar e rir...

Nunca parar, nem chorar...

O quanto anda, ri, e gargalha...

Lembra um vapor... às risadas...

Parece que direito ao seu fim, pela estrada tortuosa da vida, calcando os enrugamentos do chão, quando há sol causticante e nervoso, quando a chuva abre, fundamente, estrelas na face polida do mar, nunca dão encontrões na desgraça; ao menos se ela o viu, passou de largo, num marche-marche acelerado, batida pelo olhar d'Ele, olhar de baioneta calada...

Pode ser talvez que se esqueça, um dia, de rir e chorar por engano, para experimentar, de brincadeira, como diz a rapaziada juvenilizante, leve, nas travessuras douradas, do jogo da bola...

Mas isso, tão rápido, tão ligeiramente acontecerá, que nem mesmo Ele há de observar a transformação...

De resto, tem uma cabeça curada para receber o eletrismo psíquico, as células desenvolvidas de modo a fazer o que não supõe ou imagina.

Mergulhador perfeito das dificuldades que desolam, não precisa descer ao mar profundo de todas elas, na altitude fantástica, involucrado como os mergulhadores dos mares do Norte; leva consigo, unicamente, o grande facho da coragem que o ilumina e transparentiza todo, deixando-lhe a descoberto a sua alma forte e a sua pujança viril...

Sabe ler o D. João, do Guerra Junqueiro, esses versos que parecem milhões de espadas luzidias, cada uma com um sol espetado na ponta, entrando pela Imortalidade a dentro, e já me disse que sentia um bombardeio de assombros lendo Zola, o mestre dos mestres supremos...

É um enveredador do futuro, absorvido, engolido pelo esôfago de um meio ignorante, onde influenciam mal os elementos climatológicos e etnográficos...

 

Virgílio Várzea e Cruz e Sousa

TEMOS A ELEVADA honra de transladar para as nossas colunas um notabilíssimo e superior artigo crítico sobre os Tropos e fantasias daqueles nossos amigos, inserto na Semana, da Corte, — a primeira revista crítica, científica e literária do país.

O artigo é escrito, ou antes, admiravelmente burilado por Araripe Júnior, o profundo espírito literário, o conceituado crítico do Germinal, de Zola, e incontestavelmente um dos mais fortes talentos de combate.

É isso um sério triunfo para os nossos amigos e uma esporada, um vibrante coup de balai na obtusidade córnea dos invejosos que queiram ou não queiram, gostem ou não gostem, apreciem-nos ou deixem de os apreciar, nunca conseguirão enfraquecer ou desvirtuar o seu inabalável merecimento.

Morda-se, pois, toda a cáfila dos invejosos:

"Os Nossos LIVROS - TROPOS E FANTASIAS"

É o título de um pequeno livro escrito com estilo em Santa Catarina, por dois moços que nunca de lá saíram: Virgílio Várzea e Cruz e Sousa.

Nesse fato está o seu maior elogio. Em verdade, publicar um trabalho literário em uma terra onde a imprensa mal serve para o escoamento do expediente das repartições públicas e da intriga, já significa alguma coisa, muito mais ainda se esse trabalho tem colorido e recomenda-se por uma forma até certo ponto nova, cuidadosamente rebuscada.

Os Srs. Virgílio Várzea e Cruz e Sousa deram, pois, uma prova de vitalidade não sucumbindo à ação de um meio tão ingrato como é aquele dentro do qual acham-se mergulhados; mostram talento pondo-se, através de tantas dificuldades físicas e morais, em contato ou em relações de simpatia com os espíritos que dominam o nosso século literário.

Os Tropos e fantasias quando outra qualidade não tivessem, seriam objeto de curiosidade pela audácia que revelam. Seus autores, filiando-se à escola naturalista, atiram-se às formas literárias cultivadas por E. Zola e Eça de Queirós, com um entusiasmo frenético só comparável à ansiedade e aos deslumbramentos do pioneer que pela primeira vez penetra em uma jazida aurífera.

Daí uma consequência. O estilo ressente-se das irregularidades e incongruências que se encontram na primeira fase de todo o desenvolvimento orgânico. Atrofias e hipertrofias, que só virão a desaparecer com a integração final.

Completamente despreocupados das radicais do pensamento, os Srs. Várzea e Cruz e Sousa fazem com a frase, com o período o mesmo que os miniaturistas com os seus artefatos. Pouco se importam que a lâmina da espada brilhe ou corte, contanto que os copos ofereçam aos olhos de quem a empunha uma obra de buril cheia de mágicos rendilhados.

As páginas, os pequenos contos do livrinho que tenho em cima da pasta, não passam, portanto, de fragmentos de talentos que ainda não tiveram tempo de compor-se. A palavra, o período está completo, perfeitamente afinado pelo diapasão da escola; mas sente-se que no meio de todo aquele jogo de expressões, de imagens, de ideias esfuziadas, falta alguma coisa essencial.

Essa coisa é o complemento da vida na frase; é a certeza ou o isocronismo da função resultante do perfeito acordo entre o pensamento e a palavra, de modo que esta não seja mais intensa do que aquele, e vice-versa.

O tempo se encarregará de corrigir esse defeito. Quando amadurecido o espírito dos autores pelo exercício e pela observação dos fatos exteriores, não lhes custará substituir a ênfase pela expressão exata e profunda.

Há uma verdadeira e real classificação para o estilo desses moços: um ensaio de coloridos, de tintas acres, em uma palheta empunhada por mão nervosa.

Percebe-se, à primeira vista, que os dois pintores ainda não dispõem do segredo da união dos grupos ou partes diversas que compõem a paisagem.

ARARIPE JÚNIOR.

Depois disto, após esse juízo espontâneo e observador, após esta vergalhada mestra, todos os imbecis que morram na noite da sua vulgaridade, embrulhados nos farrapos das suas ideias, ficando sabendo que, quer leiam os escritos dos nossos amigos, quer não leiam, eles com isso nada têm a perder, nem a ganhar, porque esses imbecis não formam tribunal julgador, por não terem competência intelectual, nem nome que lhes faculte o direito para isso.

É verdade que os imbecis encontram sempre outros imbecis que os aplaudam — mas isso é natural — porque, quando não entendem uma coisa, dizem que não presta, unicamente por não terem a coragem precisa de dizer frase de mais senso.

São assim todas as nulidades cínicas.

O brilhantíssimo escrito de Araripe Júnior chama-se a justiça, o dever da crítica literária, não se chama egoísmo, não se chama ignorância.

 

Abolicionismo

A ESCRAVATURA — escrevia o Correio Brasiliense em Londres — é um mal para o indivíduo que a sofre e para o estado onde ela se admite, lemos no O Brasil e a Inglaterra ou o tráfico dos africanos.

No intuito de esboroar, derruir a montanha negra da escravidão no Brasil, ergueram-se em toda a parte apóstolos decididos, patriotas sinceros que pregam o avançamento da luz redentora, isto é, a abolição completa.

O Ceará, que foi o berço da literatura que deu Alencar, quis também ser a cabeça libertadora da raça escrava deste país e, a golpes de direito e a vergastadas de clarões, conseguiu este Aleluia supremo:

— Não há mais escravo no Ceará!

Não obstante o desenvolvimento gradual, acessivo da grande ideia da democracia sociocrática que prepara os homens, fá-los cidadãos para o trabalho moderno, educado por uma filosofia mais spenceriana, mais na razão do século evolucionador, aparece a lei do Sr. Saraiva, desmentindo todo o brio patriótico, toda a dignidade cívica da nação do Sr. Pedro Segundo.

Uma lei de fancaria, essa; uma lei que escraviza os escravos e documenta, com a morte, a liberdade dos mais velhos.

Uma lei que faria rir o próprio Voltaire, numa daquelas suas explosões tremendas de ironia fantástica e diabólica.

Entretanto, para organizar, por assim dizer, mais exata e mais verdadeira a ideia abolicionista nesta terra de Oliveira Paiva, O moleque, que sempre alargou todos os seus sentimentos altruístas pela causa da humanidade servil, que é a causa do futuro, começa a publicar hoje alguns fragmentos de uma brilhante conferência abolicionista do seu pujantíssimo redator, sobre esse assunto, feita na sala da redação da Gazeta da Tarde da Bahia.

Concluída que seja esta, publicará um discurso do mesmo, pronunciado no Teatro S. João, por ocasião da libertação total do luminoso Ceará, e assim, sucessivamente, O moleque prestará o seu humanitário auxílio para movimentar de certa forma mais inteira, mais entusiasta, a abolição entre nós:

“Estamos em face de um acontecimento estupendo, cidadãos:

A abolição da escravatura no Brasil.”

Neste momento, do alto desta tribuna, onde se tem derramado, em ondas de inspiração, o verbo vigoroso e másculo de diversos outros oradores, eu vou tentar vibrar nas vossas almas, cidadãos, no fundo de vossos corações irmanados na Abolição; eu vou apelar para vossas mães, para vossos filhos, para vossas esposas.

A Abolição, a grande obra do progresso, é uma torrente que se despenca; não há mais por-lhe embaraços à sua carreira vertiginosa.

As consciências compenetram-se dos seus altos deveres e caminham pela vereda da luz, pela vereda da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, essa trilogia enorme, pregada pelo filósofo do Cristianismo e ampliada pelo autor dos — Châtiments, — o velho Hugo.

Já é tempo, cidadãos, de empunharmos o archote incendiário das revoluções da ideia, e lançarmos a luz onde houver treva, o riso onde houver pranto, e abundância onde houver fome.

Basta de gargalhadas!

Este século, se tem rido muito, e se o riso é um cáustico para a dor física, é um veneno para a dor moral, e o século ri-se à porta da dor, ri-se como um Voltaire, ri-se como Polichinelo.

O riso, cidadãos, torna-se a síntese de todos os tempos.

Mas, há ocasiões, em que se observam as palavras da Escritura: "Quem com ferro fere, com ferro será ferido".

E então, o riso, esse riso secular, que zombou da lágrima, levanta-se a favor dela e a seu turno convence, vinga-se também.

É aí que desaparecem, na noite da história, os Carlos I e Luís XVI, as Maria Antonieta e Rainha Isabel, é aí que desaparece o cetro, para dar lugar à República, a única forma de governo compatível com a dignidade humana, na frase de Assis Brasil, no seu belo livro República Federal.

[continua]

 

Biologia e sociologia do casamento

(PELO DR. GAMA ROSA)

ENTRE AS OBRAS de Herbert Spencer e as produções do ilustre Sr. Dr. Gama Rosa encontramos o mesmo tom de conjunto, os mesmos traços gerais, os mesmos golpes de observação e de crítica científica, a mesma serenidade idealizadora.

Na verdade, ter calma filosófica num país equatorial e intertropical, de um sol cáustico, é uma qualidade verdadeiramente e seriamente admirável, tanto mais se essa calma, se essa tranquilidade de análise, se esse esforço mental paciente são completados por uma notável orientação e abstração de cérebro, fazendo lembrar o caráter pacificamente frio e pensador da raça anglo-saxônica.

O Dr. Gama Rosa identificou-se, compenetrou-se profundamente das teorias, dos princípios de doutrina do sábio bretão. Discute e amplia de frente os assuntos. Essa sua nova obra, Biologia e sociologia do casamento, exata nos processos críticos e filosóficos como está, parece-nos uma grande obra extraordinária que há de ficar viva e triunfante para a sociologia brasileira. [*]

A complexidade de espírito, a forte chama imaterial de talento e o elevado poder técnico do filósofo brasileiro, solidificados por um largo critério indestrutível e por um vastíssimo cabedal de conhecimentos teóricos das questões e problemas que esclarece com a sua ininterruptível onda psíquica de saber e de luz, não estão ao nível das capacidades inferiores, nem podem ser medidos pelas conformações débeis, que não pairam como os pensadores, como os filósofos nos altos ares soberanos da crítica científica.

Os documentos, os dados, e todo o material ativo e regularizado da sua obra, a ferramenta de que ele se serve para poli-la, para dar-lhe convicção, sinceridade e verdade, estabelecem um ponto de partida geral dominante, utilitário, e prático. Daí partem, então, as poderosas razões, caras, iluminadas e puras, deduzidas das diferentes fórmulas de casamento, como a monogamia, a poligamia, etc., em uso nas diversas tribos de raças indo-europeias. O casamento civil com divórcio está biologicamente, sociologicamente demonstrado na obra de que tratamos, que é uma necessidade coletiva da família brasileira. No estado de evolução e ampliação de raciocinamentos práticos e positivos, lógicos e humanos a que as gerações chegaram, retardar ou embaraçar o desenvolvimento completo da família é atrasar, é puxar para trás a humanidade. A família deve ser, não uma parte dependente dos fatores sociais, mas sim um corpo unitário, complexo como um organismo, entrando, como agente principal em toda a orientação da vida moderna. Da família sairão, pela sanguinidade, pelos meios, pelos temperamentos, pelas influências e relações sexuais, pelo cruzamento de elementos de raças melhores, as bases e uma sociedade nova que há de garantir e aperfeiçoar a atividade material e intelectual futuras, definindo e acentuando a estética do tipo. E, para chegarmos a esse complemento radical, integral, dos direitos da felicidade humana, é o casamento civil com divórcio a única força preparadora e naturalmente estabelecida no nosso centro, mesclado de tipos desencontrados e opostos ao progredimento deste ramo sul da raça latina.

Entre nós, brasileiros, há uma defectiva tendência etnológica, comparada com a de todos os outros povos, como um cachet especial, para a exterioridade nas aspirações. Não se vê o caráter nacional de investigação e generalização no desdobrar dos fenômenos que os próprios fatos biológicos nos apresentam.

O caráter exterior, tão pujantemente explicado e tão sabiamente desenvolvido por Spencer na Educação intelectual e física, documentado pelo testemunho de Humboldt, nos índios orenoques, tem servido até hoje de embaraço às faculdades criadoras de longa reforma social do individualismo da nação. Por ora, no Brasil, toda a integração de crítica, toda a aplicação sintética de filosofia é flutuante e vaga como as névoas que nascem dos lagos silenciosos, adormecidos na nitidez e na transparente brancura das manhãs.

O Dr. Gama Rosa, portanto, trazendo à luz da ciência as causas que a matrimonialidade católica obrigatória produz, não concorrendo para a seleção natural, não protegendo nem dignificando os destinos nem os [ilegível] aos quais a humanidade se propõe — para engrandecer-se — presta um distintíssimo e o mais real e franco serviço à sociologia, honrando-a com a amplidão do seu espírito superiormente alimentado de ideias evolutivas.

Para explanação da cor dos princípios da obra Biologia e sociologia do casamento, basta-nos tirar à página 169 o seguinte:

O progresso, que é uma conquista sobre o indeterminado e o incerto, tende justamente a instituir a previsão, a exatidão, eliminando o acaso nas condições da vida; mas presentemente o arbitrário e o fortuito encerram ainda importância capital.

Ninguém ignora que as mais brilhantes situações sociais são perfeitamente compatíveis com a incapacidade. As condições dessa seleção artificial encontram-se mais comumente no privilégio por direito de nascimento, na postergação da justiça, no favoritismo, na amplitude, deixada ao azar no curso da vida humana e leis econômicas do mundo.

Vê-se, por este último corolário de argumentos práticos, que o livro em questão não implica em consequências graves para o país, mas sim traz desenvolvimentos mais latos. São circunstâncias, — ainda mais, — são leis extremamente variadas, essenciais, [ilegível] e permanentes, tiradas dos próprios casos biológicos e tendentes à personalização e assimilação de uma raça.

 

Um novo livro

(Desterro, abr. 1887)

Ao Eminente Filósofo Dr. Gama Rosa

DA EVOLUÇÃO, da luta, da tenacidade, da força e da vontade foi que se fez o homem moderno. É isto que está ampla e indiscutivelmente comprovado pelas vastas teorias do século.

Oliveira Martins, o poderoso filósofo da Biblioteca das ciências sociais, e, ao que nos parece, a maior força pensante de Portugal, um homem cujo espírito extraordinário, investigador, paciente e infatigável, coloca-o no mesmo paralelo de Spencer e Haeckel, diz, na sua criteriosa e exatíssima História da República Romana: "A antiguidade clássica foi equilibrada e por isso feliz, mas por falta de filosofia, caiu de um lado na depravação abjeta, do outro no naturalismo desenfreado; e, gregos e latinos, sepultados na cova cristã, deram de si o homem moderno — mais fraco, mais atormentado, acaso porém maior, por isso mesmo que sofreu mais".

Mais fraco, mais atormentado! exclama o filósofo. Mais fraco sim, porque a luta tem sido desfibradora, os meios terríveis e arestosos, e o organismo cada vez mais perfeito.

E o homem quanto mais se afasta das formas rudimentares, primitivas da natureza, mais frágil, menos resistente vai ficando sempre, além de que a falta de crenças e a perda constante de forças morais o depauperam e atrasam. Mais atormentado, porque a verdade adquirida pelo conhecimento dos fatos positivos o torna cada vez mais responsável; porque a sua individualidade está sempre no embate de todas as brutalidades, de todas as contestações; porque precisa ter cotovelos de bronze para rasgar a crosta do anônimo, como bem pensa o ilustre literato italiano, o Sr. Edmundo de Amicis; porque, finalmente, traz a sua cabeça alta, acima daqueles que são ainda retardatários, e que a não podem trazer erguida na esfera azul das ideias.

O homem moderno não é o homem superficial, o homem visionário, o homem triste. A tristeza é uma condição de moléstia, está no organismo como a filoxera nas vinhas; e o homem moderno tem de ser alegre, porque tem de ser higiênico, e não há melhor higiene do que a da alegria. É da saúde que vem a força e a força é a luz, a vitalidade, a cor, o tom e a juventude eterna da natureza. Devemos cuidar, por isso, em sermos saudáveis, fortes e higiênicos. Tem-se falado, dito e escrito tanto sobre a direção que os espíritos têm tomado nestes últimos tempos, que parecerá ocioso e fútil demorarmo-nos no assunto.

Mas há verdades que precisam ser bem elucidadas, bem combatidas, bem esclarecidas, gritadas a largos pulmões de touro, ao ouvido de muita gente atrapalhada, pessimista e fóssil, que ainda, nos pequeninos centros, ri, cancaneia arruaçante, com chufas e pedradas anônimas de garoto, das teorias resplandecentes e triunfantes, dos homens da Ciência. E o nosso caso não é outro senão o de fazer desfraldar, bem claro nos ares, o branco estandarte dessas teorias que são verdadeiras descobertas, irrefutáveis verdades, incontraditáveis fatos.

As correntes influenciadoras que definiram e acertaram o pensamento novo são mais proveitosas, mais positivas, mais práticas. Podemos recebê-las como leis, não como gosto, nem como imitação ou moda. Nem o verdadeiro espírito de hoje tem moda ou imitação. O que ele tem unicamente é ação, é vontade, é força. Ele está dentro de uma evolução, se quiserem, do seu momento, do seu estado de elaboração psíquica, e daí é que sai, inteiro, fiel e nítido, para o jornal ou para o livro, o seu esforço mental, como um produto fotográfico das coisas. Não tem mais o pedantismo acadêmico, nem a retórica nem a gramática da convenção. Só admitiremos que ele receba ideias da realidade dos acontecimentos, das impressões poéticas e fecundíssimas da Natureza.

A sua disciplina de homem, os seus modos de observar, o seu jeito de ter a dedução e a indução dos fatos são aprendidos, naturalmente, por meio de reiterados estudos e observações no mundo social. Homem moderno não quer dizer homem da moda. Modernismo de desenvolvimento, aperfeiçoamento, convicção, verdade, natureza, processos de exatidão num dado assunto crítico, literário, artístico ou científico. Modernismo é aproveitamento, utilidade, vantagem de uma época sociológica sobre outra, etc., etc.

Émile Zola é um sociologista. E o que é o Germinal senão o clamor, o clarim atroante de uma grande crise social, que o notável psicólogo descreve admiravelmente, pedindo a justificação dos princípios liberais e humanos dos indivíduos das classes inferiores e ignorados? O que é Estêvão Lantier? O que é Suvarine? O "romance" Germinal, diz toda a gente! Mas nós não entendemos os livros literários especiais de observação e de análise sob esse título. Ficou desde Balzac, desde os Goncourt, sem propriedade, sem significação. O público os lê como se viessem da fábrica cerebral de Montepin, ou de qualquer outro. Não se importa, não lhe dá que fazer o estudo, a faturação, o estilo. Um livro literariamente escrito com a mesma proficiência científica e com a mesma certeza de técnica, com que Oliveira Martins trata das ciências sociais, não deveria ter na sua lombada o título, já hoje gasto e romântico, de romance. É por demais escuro e insignificante para exprimir todas as colorações, todo o límpido cristal do espírito contemporâneo.

É a nossa opinião.

Depois desta rápida exposição da doutrina filosófica e literária de hoje, ou como pensem, vamos tratar de apreciar, ligeiramente, os fundos traços cavados de sinceridade, de lealdade e de justiça, como os traços de um colorido rubro e acre de Rubens, o caráter literário do belo provinciano, que tanto nos impressiona e preocupa. É uma banalidade e uma falta de senso prático, — uma inaptidão mesmo para adiantar outra coisa, dizer-se que há elogio mútuo, superficial, quando um amigo trata dos merecimentos intelectuais de um outro amigo. É infundado e mesquinho tal modo de pensar. Neste século de luta, em que cada hora passa como um raio, em que o homem não tem quase tempo de lançar os olhos sobre os acontecimentos da véspera, mais detidamente, com mais pausa, com mais vagar, porque tem de ocupar-se com o que vem adiante, enflorescendo e estrelando o firmamento das ideias, não quer dizer nada, nem importa, que um amigo escreva sobre um outro amigo.

E isto pela razão única, intuitiva e lógica, de que é esse amigo, por todos os modos, o mais competente para fazer crítica sobre o outro, por estar em contato com a sua personalidade, o seu temperamento, os seus tics, as suas emoções, a sua impressionabilidade, a sua feição particular de escritor. Pela crítica, pela justiça que lhe faz é que o público lê os seus artigos, compra os seus livros e aceita os seus preceitos. Nem pode ser de outro modo. Victor Hugo, por exemplo, documenta e comprova o que pensamos. Ele teve Lamartine, teve Sainte-Beuve, teve Théophile Gautier, etc., etc., que o elogiaram quando despontou na literatura. E esses indivíduos, esses escritores, eram os afeiçoados de Hugo. E se assim não for, como qualquer talento superior, entalado no círculo estreito da sua terra natal, onde não há aspirações nobres e os espíritos apenas têm voos galináceos, há de ficar no domínio dos homens que sabem? Pois se ele não tem quem o encoraje, quem o estimule senão os seus amigos, uma vez que o egoísmo, a inveja, a indiferença e outros sentimentos tristemente hipócritas tentam combatê-lo, consterná-lo, dizei-nos, dizei-nos de que forma há de ele dar vazão ao seu talento, às nevroses mordentes que lhe queimam o cérebro, às ideias, senão permitindo que algum amigo os apregoe e os faça vibrar ao longe e ao largo dos Congressos das inteligências mais imperantes e mais disciplinadas — por um ato de fineza, e, principalmente, por um ato de justiça.

Digamos, pois, o que se deve dizer, tranquilos e seguros de nosso feito, com a retidão e a verdade, que é a filosofia de todas as eras.

O que nos sugeriu as ideias acima e as que se vão seguir foi o ter sido enviado, há dias, para Portugal, a fim de ser publicado ali, pela notável casa editora do Porto, de Eduardo da Costa dos Santos, o livro das Miudezas.

Virgílio Várzea é um provinciano e um meridional. Nasceu sob a impressão simpática e colorida da paisagem, na atmosfera clara e vibrante deste pedaço da Sul-América — em Canasvieiras, um sítio de província, sossegado, discreto e verdejante, cheio de floridas várzeas, risonho e casto, onde a vida calma, singela e simples, saturada do bom ar sadio e fresco dos vegetais, corre livre, virtuosa, independente e não tem os aparatosos realces das lindas cidades elegantes, onde as donairosas mulheres amorenadas usam na tournure os mais exagerados tics, e os flaneurs vão, de rosa jalde na lapela, fazer estourar o líquido opalino do Champagne Cliquot, rotulado a prata e a ouro, em garrafas galantes, dentro de taças que tinem à noite, pelos cafés relampejantes e ruidosos.

É uma natureza, esse moço; e daí o tom acentuado e muito colorido do aspecto de suas paisagens, dos seus contos. O seu temperamento tem várias modalidades. Como, porém, os raios refratores de uma luz, essas modalidades, podendo multiplicarem-se, espalharem-se em estrias na verificação dos objetos e das coisas, reúnem-se, coligam-se, justapõem-se e formam um só foco luminoso e forte a que chamamos ordem. Virgílio Várzea tem ordem, tem exercício e disciplina literária. A sua educação de artista fez-se naturalmente, sob a influência dos bons mestres, tendo o preciso critério de conhecê-los bem e muito, de compará-los, de não se munir de Larousses, postiçamente sábios, que são como que Cartilhas de algibeiras, de onde sai logo uma legião de ilustrações feitas com muita manuseação do conhecido dicionário francês, verdadeira biblioteca dos que gastam literatura por mania de didatismo ou de ecletismo artificial e fácil. Talento de assimilação, sabendo apropriar-se e compenetrar-se dos assuntos, com a percepção viva do semblante animado das coisas, Virgílio Várzea não é um principiante ou um medíocre que não mereça a análise franca da crítica. É mais do que uma esperança da pátria, e menos do que um jovem hábil, porque é mais do que essas duas comparativas. Discípulo digno e direito de uma Escola hoje completamente predominante — o Naturalismo, ele tem todos os detalhes, todas essas circunstâncias, todas essas finas e delicadíssimas originalidades que a compõem, e muito de inteira afinidade com os talentos espontâneos, sinceros e firmes. Tudo quanto dizemos sobre esse moço catarinense não é nenhum entusiasmo pueril. Nem nós temos aqui à mão uma pilha Volta que nos comunique eletrismo de entusiasmo e de aplausos fáceis. Se há pilha, é das nossas convicções, da nossa alma franca, serena e justa de combatente. Os que conhecerem Virgílio Várzea e lerem os trabalhos de que nos ocupamos aqui adiante acharão, por certo, que ele é um talento firme, original, trabalhador, afinado pelos maiores espíritos do seu tempo; mas nós, que o conhecemos pessoalmente, momento por momento, instante por instante, dia por dia, que assistimos muitas vezes à confecção dos seus contos e que sabemos onde ele se adiantou, como lutou, como conheceu os golpes do estilo e a maneira de ver, como produziu sem elementos influentes para isso, como se destacou dos outros, como se especializou, afirmamos que ele é extraordinário. Nem este escrito quer dizer nada diante da aprovação ou desaprovação da crítica sobre o livro do nosso constituinte. Porque também Émile Zola, quando começou a publicar o Mon salon, no Figaro, foi apedrejado pela pulha literária e sevandija dos cafés cantantes. Também os Goncourt foram contestados e só se ergueram em toda a culminância gloriosa dos seus espíritos depois, muito mais tarde, e isto em Paris, em Paris! a grande apoteosadora dos espíritos. Quanto mais numa cidade onde não se cuida de literatura, onde os velhos letrados, dos antigos periódicos obscuros, não deram mais um passo além do latim, e onde os novos, os moços que surgem agora, continuam na lição dos provectos mestres, como eles os chamam, sempre discípulos, sempre escolares, de braço dado com a rotina, caducos já na mocidade, como os velhos letrados de que ali acima falamos, sem tomarem um caráter mais saliente e mais elevado na Arte, na Política e na Literatura.

Poderão dizer-nos que Virgílio Várzea não é nenhum Zola nem nenhum Goncourt. De acordo. Mas nós também poderemos objetar, muito logicamente, muito racionalmente, que o Brasil não é a França e que não conhecemos, por ora, prosador literário mais original, mais imaginoso, não dizemos retórico, palavroso. A imaginação, principalmente num escrito moderno, participa da verdade e da observação. Imaginação, como o nosso Ideal a representar num pressuposto fenômeno. Imaginação relativa àquilo e àquele indivíduo ou àquele fato social que, como se mete em pauta qualquer loucura genial de Wagner ou qualquer admirável sinfonia de Beethoven, a gente mete em estilo, em vocábulos brilhantes ou ásperos, secos ou úmidos, conforme a pressão onomatopaica e o efeito de impressionismo que passou pela retina do escritor, do artista e do estilista. Neste ruído de teorias e de ideias gerais naturalistas que ainda não se confirmaram neste País, aparece o vigoroso provinciano com Miudezas. Não se escreveu ainda, pensamos, nem mesmo em língua portuguesa, um livro de contos tão pitoresco, tão "pintado", tão musical e tão cantante. E nós dizemos: um livro de contos, sem indagarmos se ele tem o todo necessário, o plano que constitui o caráter de um livro, isto é, a síntese de um estudo social, artístico, político ou religioso. Mas se formos a demorar bem o olhar no merecimento das Miudezas, ver-se-á que são muitos livros dentro de um só livro, porque cada conto representa uma fisionomia particular, destacada e distinta. Assim, o "Albino", o "Morfético", "Romance de um rapaz", o "Manuel basta", "A enjeitadinha", etc., são contos profundamente humanos, paisagistas, cheios de um humor notável, vibrantes e rijos golpes de verdade, naturais, onde se observam estudos de psicologia, um conhecimento exato do estilo moderno, uma penetração de escritor consciencioso, fiel na execução de suas personagens, dos seus moldes de comunicabilidade afetiva. Os outros, a "Cabra cega", "Enterro no sítio", "A travessia", "Saudade", "Passeio no campo", etc., etc., exprimem os seus coloridos, os seus sons quentes e radiosos, as suas vibrações, os seus toques de pintura cromática de água-forte.

H. Taine, o soberano crítico francês, diz, na sua Philosophie de l'art, o que aqui damos, textual e autêntico, no próprio idioma, que “Chaque artiste a son style, un style qui se retrouve dans toutes ses œuvres. Si c'est un peintre, il a son coloris, riche ou terne, ses types préférés, nobles ou vulgaires, ses attitudes, sa façon de composer, même ses procédés d'exécution, ses empâtements, son modèle, ses couleurs, son faire. Si c'est un écrivain, il a ses personnages, violents ou paisibles, ses intrigues compliquées ou simples, ses dénouements, tragiques ou comiques, ses effets de style, ses périodes et jusqu'a son vocabulaire”.

Seus efeitos de estilo, seus períodos e até seu vocabulário, conclui o grande crítico. E é o que tem o nosso valente escritor jovem: seus efeitos de estilo, seus períodos e seu vocabulário, e o que alguns chamam neologismos, e outros, menos incompetentes e mais ousados, termos empolados ou pedantes; questão esta que ele resolve e explica no prólogo da sua obra. Neste ou em qualquer caso, as Miudezas são um livro superior, adorável, primoroso e extasiante, constelado de surpresas de imaginação, matinal e festivo como se uma eterna aurora iluminada e perfumosa cantasse e risse pelas páginas a fora. As palavras, a verve, a graça, a elegância, a gentileza e a delicadeza das imagens lembram um rio de ouro fluido, sutil e límpido, que se desenrola pelos meandros do livro em ondulações suaves; rio, em cuja face sonora um sol de vitória derrama rubis, topázios, esmeraldas e berilos da refrangibilidade dos seus venábulos cintilantes. Uma pessoa recorda-se, pela imaginação acesa desses escritos, dos suntuosos palácios do Alcorão, e vê-se numa sala oriental, toda de espelhos e púrpuras e cristais, ao lado de alguma divindade majestática, coroada de estrelas, de túnica de rosas e de lírios, tendo aos pés, num morno êxtase sensual e amoroso, qualquer paxá asiático, extravagante e faiscante de pedrarias, com as suas pantufas verdes marchetadas de pérolas e diamantes. Nas Miudezas há o goût de terroir de que falam os franceses, e sente-se o vigor, o enseivamento de uma natureza literária muito sistematizada, decidida e pertinaz no trabalho. Ninguém, com maior propriedade e unidade de ação tomou a si e desenvolveu aqueles assuntos que, pela simplicidade ingênua, pelo saudoso e grato sabor de infância que conservam, pela intimidade e pureza de que são revestidos, parecem a muitos vulgares e banais. Referimo-nos a "Cabra cega", para não citar mais, onde Virgílio Várzea pôs, tão maviosa e tão doce, uma nesga de luz da sua infância, fazendo ressuscitar aquele passado morto, tomar vida, mover-se e caminhar do fundo da tela das descrições, a mais expressiva e a mais verdadeira, com um milagre do seu talento indiscutível, pronto, decisivo na ação como um belo aparelho rotativo. É preciso ter-se um merecimento bem raro e bem real para se saber dar valor e tratar assuntos tocantes que quaisquer outros, mesmo de certa nomeada, repeliriam por supô-los indignos e sem significação alguma de toda a forma que fossem encarados. Realmente, o talento é uma coisa imperceptível, um delicadíssimo filtro de luar que poucos percebem. Uma espécie desses corpos microscópicos que estão n'água, a mais cristalina, a mais clara e a mais etérea, sem serem vistos senão através de lentes graduadas e próprias. Nesta hora em que a preguiça mental tornou-se quase geralmente uma [ilegível], é bom, é consolador ler-se um livro sincero, novo, escorrendo psiquismo, cheio de alma; faz-nos bem, tonifica-nos completamente a vida. E, deitando um olhar até a última linha extrema do horizonte, por sobre o dorso esverdinhado e nevrótico do mar, onde a luz da lua, a clorótica Ónfale do infinito, cai como um dolente beijo de amor, lembremo-nos lá, além, longe, do outro lado da montanha, e do lado ainda de um outro mar, a seara dos espíritos cada vez mais enlourece e se enflora; e, deixando os que ficam atrás de nós, caminhemos para legar aos de amanhã a bênção de nossas palmas e dos nossos triunfos.

As Miudezas não são tudo quanto se tem de esperar do magnífico e encantador talento de Virgílio Várzea. Aguardemos os acontecimentos, deixemos que a evolução se faça, e em seguida aos frutos da alvorada, aos saborosíssimos contos, morangos que ele colheu nas alamedas do parque aristocrático e azul do Ideal, hão de surgir mais ideias, tão bonitas, tão cristalinas e tão nobres como estas, armadas de dignidade e de força, como um exército de cossacos, cujos sabres e cujos capacetes, à mordedura nervosa da luz, faíscam de reflexos de aço pelos relvosos campos de batalha.

 

Émile Zola

(1887)

EM TORNO da Academia Francesa tem esvoaçado, ultimamente, num luminoso eletrismo, como um grande pássaro de ouro, o nome de Émile Zola.

Discussões sobre discussões acumularam-se de intensidade com relação à entrada do prodigioso artista na Academia, e mais especialmente depois que Pierre Loti para lá entrou agora.

Essas discussões e opiniões que se cruzam parecem, de certo modo, estranhar a entrada de Zola na casa dos imortais, e isso unicamente porque ele em tempos foi o maior combatente contra aquela casa.

Mas, por isso mesmo, a entrada de Émile Zola na Academia Francesa sugere-me, entre as diferentes opiniões que se deblateraram, uma ordem de ideias que tentarei expor, usando o mais livre exame, que é um dos acentuados característicos do mestre.

A princípio, sem uma investigação demorada e refletida, diante de um espírito tão intransigente, tão demolidor, completado por moldes tão críticos, tão profundos de analista, chefe de um sistema literário, avant-coureur de um movimento novo na Arte, como é Émile Zola, a ideia que acode a quase todos é de uma transigência de doutrinas, quando, para o caso do infatigável operário, esse vivo desejo, convertido já em resolução definitiva, constitui a força natural que faz com que os heróis se recolham triunfalmente, depois de imensas batalhas ganhas, à sombra dos seus louros flamantes, à maneira do sol que se oculta no seio dos ocasos em sangue.

Porém, quanto a mim, isso não empalidece a glória do poderoso escritor.

Desde o "Mon salon", no Figaro, que Zola estendeu pelo mundo, com o seu nome, um rastro de estrelas, uma via láctea tão estranhamente luminosa e vinculada aos corações como as intensas raízes de uma robusta árvore monumental.

Ele conhecia bem a força da sua estatura, media bem a vibração do seu pulso.

De um vigor mental extraordinário, trazendo para a escrita a corrente das teorias positivas que se firmavam no mundo culto e delas adquirindo mais essencialmente a ciência fisiológica, como base de todo o pensamento moderno, Émile Zola, com a possança dos seus músculos, cabal, necessária, equilibrada, sabendo girar com todos os elementos de que carecia, meteu-se supremamente à forja e, com um valor gigantesco foi acumulando na sociedade, no tempo, livros que outra coisa não representavam senão fatos, documentos da verdade, sob o mais rigoroso experimentalismo e uma forma naturalistamente definitiva na relatividade dos seus processos e que lhe parecia ficar como uma alta significação ou afirmação da natureza.

O egrégio observador, num impulso d'águia, conhecia, decerto, a obra que levantava, o movimento de luz que distribuía em torno do seu nome, pelo aplauso, pela admiração das nações, e, pesando o alcance de sua envergadura, estabeleceu fisiologicamente uma série de teses, isto é, de assuntos que ele os desenvolveria evolutivamente, na proporção das funções de um organismo animado.

Daí essa engrenagem de obras, todas elas obedecendo a um princípio assente, marcando uma fase, determinando uma época ou estudando um temperamento.

Numa elevada pressão de ideias ele se tinha imposto à lei de marchar direito ao seu fim, sereno sempre, na convicção dos seus admiráveis planos.

Fazia vagamente lembrar o Dr. Fausto, idealizado com a sua ciência, surdo às contestações do mundo, na análise crua dos homens e das coisas, atraído pelas profundas investigações do saber e esquecido, alheio às solicitações da carne.

O colossal edifício que Zola tem erguido firme na terra é um trabalho ainda para mais ser abrangido no futuro, quando outras gerações mais pensantes do que a nossa o sentirem de mais perto.

O incomparável artista de Germinal lembra um gerador, um enseivador de progresso, determinando, de modo singular e concreto, abrangente do que nos cerca, pela retina e por todas as expressões dos sentidos, a vida dos seres orgânicos e inorgânicos como ela se desenrola, pronunciando-se como a manifestação do ar e da luz.

Só a perfectibilidade cerebral mais delicada, mais dúctil, com mais vibração sensacional, poderá finamente perceber, em todos os minuciosos detalhes, esse excêntrico e assombroso vulto que enche a França e o mundo, embora o mundo inteiro seja ainda um academismo, esteja preso ainda, se bem que não manifestamente, à casuística da metafísica; embora por aí andem, mal percebidos e assinalados, os livros fundamentais que poderiam fazer do mundo, das sociedades, dos homens, um fio só de pensamento, dando-lhes o poder de abstração e síntese que só se adquire em virtude de condições muito probantes, e de faculdades superiores e radicais de raça.

O certo é que Zola nunca foi compreendido, genericamente, na sua alta manière, na sua prodigiosa estrutura de analista.

O que mais se percebe dele são as chamadas imoralidades, produtos do meio social, correspondendo à flor dos pântanos e terrenos charcosos que, nem por isso, deixa de viçar para os astros.

A sociedade, na sua maior parte, é obtusa e não pode penetrar, como uma luz não penetra uma parede, em sentimentos muito leves, muito fluidos, que só um vasto cultivo e aperfeiçoamento estético consegue apreender.

No Brasil, por exemplo, a seleção dos espíritos não se fez ainda totalmente porque é necessário, primeiro, para isso, que concorram elementos, principalmente étnicos, para depois se formar o tipo da nossa mentalidade. E numa raça de atributos diversos, heterogêneos, sem condensamento, dificilmente se pode determinar o objetivo psíquico. Porque, se é certo que no Brasil há um grupo ilustre de escritores com a plasticidade necessária para a adaptação de ideias gerais, uns temperamentos mais requintados, mais exóticos, mais artísticos, com penetração mais aguda, é certo, também, que estão fora da sua época, relativamente, porquanto o meio não comporta ainda todas as suas excentricidades, nervosismos e pontos de vista novos, o que os faz prevalecer pouco ou vagamente, sem tomarem a posição que lhes compete.

Nem quase se pode responsabilizar ninguém por esse fato, que depende de razões muito fundamentais.

Seria como quem quisesse responsabilizar a raça negra pela diferença do pigmento, que apenas obedece a um simples fenômeno de química biológica.

A opinião muito generalizada e superficial, que se tem de Émile Zola, é que ele é um rude e brutal trapeiro que anda remexendo os monturos só para tirar de lá os sujos e esfrangalhados farrapos, o osso descamado e frio.

Mas esse brutal trapeiro, por entre esses sujos farrapos que sentis pelo olfato, ó eunucos, bonzos do entendimento!, muitas vezes esconde turbilhões e turbilhões de brilhantes, turbilhões e turbilhões de cristais, de fino ouro, de radiantes pedrarias, constelações deslumbrantes, enfim, que o vosso duro olhar não vê, que o vosso espesso cérebro, nem os vossos rombos ouvidos percebem a harmonia sonora.

Com a provável entrada para o oficialismo da Academia Francesa, o cérebro de Zola não perde a sua organização vital, a sua disciplina, a sua função. Isso não passa de uma preocupação natural do Mestre, se atendermos à sua idade, pela aclamação do alto.

Tendo já o aplauso reverente e franco da multidão, ele quer agora o do mundo oficial: da aristocracia e da burguesia, para a completa coroação da sua obra.

Mas fica sendo o mesmo aparelho reprodutor, a mesma câmara fotográfica para receber, em clichés instantâneos, toda a movimentação da vida.

No pórtico da Academia o seu espírito será como um astro de fulgor e grandeza raros, o centro de um mundo, o sol a jorrar luz para todas as direções da terra.

Não pode aquela natureza, subordinada ao sistema, à orientação artística, ao soberano regulamentarismo de preceitos de crítica, afastar-se uma só linha da rota seguida. Pode, entretanto, terminar a sua fase guerreira, a grandiosa fase, mas não pode terminar a sua vitória, que é imortal.

Velho agora, ele se recolherá ao descanso para dar lugar a novos combatentes.

Esse batismo, que se efetuará futuramente, decerto, ou essa fé intelectual de seita, se assim se pode dizer de uma célebre individualidade que foi sempre eminentemente pagã nos princípios, não tem, contudo, a significação baroque e arcaica que se supõe.

Antes, pode-se afirmar que será a apoteose feita a uma cerebração genial, a suprema aclamação, a consagração do triunfo que, em toda a parte, se votou ao vencedor.

São as festas do leão que, com o salto das garras, conquistadoramente abateu os fósseis nas cavernas.

Ele é que jamais ficará fóssil! porque o sentimento naturalista das suas obras se perpetuará, evidenciando a tirânica força sugestiva das suas concepções literárias, como uma bandeira desfraldada na eminência de um forte evidencia a grandeza e a heroicidade de uma pátria.

Podem passar, desdobrar-se, desfilar diante dele as escolas! — o bronze inteiriço das suas criações ficará inalterável, eterno, de pé, no Tempo e no Espaço, — pela verdade, pela ação, pela luz, pela cor, pela voz e pela majestade, por tudo isso que dá às suas estupendas, maravilhosas páginas uma segunda natureza original e palpitante, que é a natureza peculiar a cada objeto e a cada ser.

 

 

Guilherme I

(1888)

O IMPERADOR GUILHERME morreu, morreu o Imperador Guilherme!

Sobre o saxão estandarte negro, branco e vermelho, esvoaça agora uma grande e dominadora águia sinistra, a mesma que nos campos de batalha pairara sobre os corpos rígidos e frios...

Ressoam orquestrações militares, clarins atroam o ar clamorosamente, passam a mil e mil os estandartes de todas as nações do mundo, passam e tornam a passar os séquitos guerreiros, os colossais esquadrões, reverentes, na pompa das tristezas solenes, d'armas em funeral, para as exéquias do Imperador, fazendo tilintar e fulgir os estrepitosos metais das espadas e dos sabres.

No céu, calado, imóvel, o sol, como um ofuscante capacete bávaro, rutila com a alva luz prateada das pontas das baionetas.

Mas, que é esse sol, deus dos poetas?

E os espíritos célebres de Goethe, Heine e Uhland, esse que cantara outrora a batalha de Leipzig, pasmam e silenciam no ar parado que a neve cobriu de um vasto e fulgente sendal branco.

Quem é, então, esse sol frio?

E dos lados da Alsácia e da Lorena levanta-se um murmúrio, como que um trêmulo rio de vozes, surdo, abafado numa noite profunda, através das altas, rochosas montanhas alpestres onde os graves castelos feudais geram as lendas e os sonhos.

E o rio das vozes, crescendo, subindo, enchendo a imensidade, assim sombriamente murmura:

Esse sol é Bismarck, que ficará, pelos tempos, como o Alerta avançado das glórias militares, das supremas conquistas da guerra, atroando o espaço de ecos metálicos de fanfarras, avassalando as forças estranhas com a técnica belicosa do transcendentalismo alemão, como o mar avassala o mundo...

E os sonhadores da jovem Germânia, os utopistas revolucionários, Laube, Gutskow, Wienberg, Mundt, palpitariam de emoção nas sepulturas se ainda pudessem ficar agindo no mecanismo da velha e austera Alemanha, nevoenta e sonora da alma de Schiller, que é a alma da balada, o prepotente chanceler de ferro.

E de lá do fundo glacial das sepulturas, todos eles dirão, sorrindo, na cortante, na ácida ironia teutônica, que a Rússia armipotente gelará vencida, na Sibéria, o fogo dos seus canhões soberanos, que aterram...

Mas, o imperador Guilherme morreu, morreu o imperador Guilherme!

E, na serena mudez das catedrais e, no luto do Império saxônio, o Protestantismo livre e de pedra aponta filosoficamente para o sol, nas flechas pontiagudas das torres góticas, como uma interjeição!

 

O "El-Dorado"

 

ESSE ENTÃO é um nunca acabar de apoteoses, de glórias.

Mal a gente sai encantada de lá uma noite e já outras noites se sucedem, num esplendor de sóis, cantantes, alegres, radiosos.

Quem uma vez entra ali sai curado de males e lavado de dúvidas. As águas lustrais do prazer lá estão.

Na boca rósea de todas aquelas mulheres ferve o champagne do amor.

 

Carta a Gonzaga Duque

Rio, 11 de abril de 1894.

NA IMPOSSIBILIDADE de falar-te calmamente, escrevo-te uma ligeira exposição sobre a Revista dos Novos.

Penso que o grupo que deve constituir os combatentes da Revista dos Novos tem de ser composto da tua individualidade, Emiliano Perneta, Oscar Rosas, Artur de Miranda, Nestor Vítor, B. Lopes, Emílio de Meneses, Lima Campos, Araújo Figueiredo, Virgílio Várzea, Santa Rita, Maurício Jubim, Cruz e Souza e Gustavo Lacerda, simplesmente, sendo que este último deverá dar escritos sintéticos, muito generalizados, sem personalismos, sobre política socialista. Penso assim porque esses foram sempre, mais ou menos, de vários modos intelectuais, e em tese, os nossos companheiros, tendo cada um deles, na proporção da sua aptidão, na esfera da sua perfectibilidade, um sentimento homogêneo do nosso sentimento comum na Arte do Pensamento escrito. Penso também que o único homem fora da nossa linha artística de seleção relativa possível, que deve ser simpaticamente admitido para críticas científicas, para artigos de caráter positivo e moderno, é o Dr. Gama Rosa, que podemos considerar, à parte toda a nossa independência e rebelião, como um austero e curioso Patriarca do Pensamento novo.

Os mais, seja quem for, que venham de fora, isto é, que se apresentem com trabalhos estéticos de tal natureza alevantados e sérios que possam ser admitidos nas colunas nobres da grande Revista, para o que basta uma análise severa, rigorosa, desses trabalhos.

Enfim, apenas esse deve ser o grupo fundador por excelência, deve constituir o corpo uno das Ideias da Revista nos seus elevados fundamentos gerais, à parte os detalhes da compreensão de cada um em particular. Entre esses fundamentos gerais acho que deve ser um dos principais, o maior e o mais firme radicalismo sobre teatro, não permitir seções, notícias, folhetins ou coisa que diga respeito a teatro, que, por princípio e integração de Ideias, não deve existir para a nossa orientação d'Arte na Revista dos Novos.

 

Horácio de Carvalho

DIANTE DESTE NOME, desenrolado como uma tapeçaria de Beauvais à frente dos nossos olhos, lembramos o Oriente, a Turquia, a Arábia, a Pérsia, — todos os povos muçulmanos, que têm a frouxidão dos nervos, a elasticidade de membros de raças decadentes em todas as suas funções fisiológicas e psíquicas. Principalmente a Pérsia lembra-nos a indolência, a languidez orgânica de Horácio de Carvalho, indolência de fantasista, de sonhador e artista intertropical, que não constitui propriamente, porém, um senão físico, uma falha ou ausência de qualidades originais de espírito; mas que antes representa uma “maneira de ser” na vida — muda abstração, na qual o pensamento é, sem dúvida, um doirado pássaro, viajando pelas mais altas regiões etéreas, inacessíveis à vontade da matéria.

Com o seu ar fidalgo, que lhe dá através dos vidros do pince-nez as linhas nítidas, a distinção e o ar douto de um sadio e forte estudante da Universidade de Bonn ou de Oxford, Horácio de Carvalho parece viver apenas numa flirtation com as ideias, numa despreocupação de touriste e num diletantismo d'Arte, a que as asperezas e arestosidades do meio emprestaram já as cores tristes e carregadas de um pessimismo pungente que se originara primeiro nas leituras intensas desse intenso e artístico Schopenhauer, conquanto, na transparência dessa despreocupação aparente, ele analise, perceba e sinta passar, como entre a difusa e doce luz do crepúsculo matinal os primeiros aspectos do dia que sobe, as formas vivas e as manifestações dos fenômenos naturais.

Na verdade, esse amargo pessimismo que os pensadores e artistas germanos, anglo-saxônios e eslavos, beberam nas obras profundas do grande filósofo de Dantzig, como numa enorme ânfora de ouro cinzelada onde houvessem purificado num vinho negro o sentir e o dolorido pensar de muitas gerações; esse pessimismo agro-doce, divino e ao mesmo passo torturante d'0 Mundo como vontade e representação, dos Aforismos sobre a sabedoria da vida e das Páginas fundamentais da ética, bem como desse outro genial Eduardo de Hartmann, especialmente nessa transcendente Filosofia do inconsciente, parece amarrar ainda mais Horácio de Carvalho ao poste do ceticismo de Murger, de Nerval e de outros tantos artistas queimados pela chama interna de grandes Sonhos e Desejos nunca corporificados ou materializados numa floração ou frutificação natural ou real...

Mas esse pessimismo, feito de névoas germanas ou eslavas, tênue, sutil, que insensivelmente inebria e transporta ao seio paradisíaco da Espiritualidade e da Ilusão, como esse venenoso e verde absinto dos Franceses e esse flamante e nevado kümmel dos russos, esse pessimismo, se Horácio de Carvalho o tem enraizado até à medula, não lhe enevoa e nem ensombra, entretanto, a garrida e fulva verve do espírito, de voo amplo e alígero, la grâce qui ouvre les ailes, colorida como asas de borboletas e dançante ao vento como galhardetes de navios festivos.

É que ele, por entre a variabilidade das circunstâncias e do tempo, não perde a "linha" luminosa e serena das atitudes mentais, acordando dessa morna indolência turca ou persa para pôr ditos d'arte faiscantes nas abstratas e transcendentes palestras literárias, porque é especialmente um causeur, sóbrio e fúlgido, que atrai e fascina sempre com o seu verbo brilhante e límpido, embora escasso e tardo mas de uma ironia que lampeja e tine aqui e ali na frase, como os guizos de Colombina e Arlequim deslocando-se em pinchos loucos e febris, ao tam-tam-tam carnavalesco e burlesco na Alegria e da Folia.

É um temperamento singular, esquisito, que tem nesses próprios qualificativos o documento positivo e autêntico da sua inteligência, da sua estesia artística.

Vivendo na província, num centro antagônico ao desenvolvimento e fulgor do seu talento; na aridez das estafadas ideias em circulação, entre muros fechados de assuntos banais, numa atmosfera onde a hematose quase não se faz, onde o sangue não circula bem, nem os nervos se tonificam convenientemente, Horácio de Carvalho lembra um cáctus ou uma flor boreal, nascida sobre a rocha ou sobre o gelo, vermelha ou alva, perdida tristemente na esterilidade, queimada por um sol de brasas ou na desolação da frigidez imensa...

O seu estado de languidez, de inércia mental na escrita se parece com certos dias pardacentos, nebulosos, sombrios, cobertos de nuvens, por detrás dos quais, entretanto, o sol brilha a pleno esplendor, e, em certos momentos admiravelmente se mostra por uma nesga aberta no Azul, iluminando por instantes um recanto do Espaço e da Terra, para logo atrás se obumbrar sob cúmulos, voltando então todo o céu ao seu primitivo estado de névoa.

Assim é Horácio de Carvalho, cérebro nevoento como esses céus da Germânia e da Rússia, ao Centro do qual, porém, rebrilha o sol do pensamento sobre a amplidão azul da inteligência, que estranhos cúmulos e nimbos encobrem perenemente, permitindo apenas raras, raríssimas vezes, revelar-se por pequenas nesgas de luz que aparecem instantaneamente, lançando frases, ditos, conceitos e observações delicados sobre todos os assuntos — modo de ser fisiológico e neuropsíquico singular e inexplicável, sob o qual arde e flameja a brasa radiante de um grande e ansioso anelar de espírito, feição quase enigmática e fenomenal de uma bela organização humana, cuja psicologia o entendimento comum dos homens não apreenderá jamais, mas que os pensadores e os artistas sentem e compreendem nas suas manifestações superiores e efêmeras, sem lhe pretenderem sondar os motivos e as origens.

 

O pequeno Boldrini

UMA JOIA o pequeno Boldrini.

Não era exatamente bem pequeno, porque fizera quinze anos já. Linda, bem linda cabeça tinha ele, redonda, leve e macia, como cabeça de ave.

Ah! Havia de encerrar lá dentro muito sonho dourado a cabeça do pequeno Boldrini.

O seu nome musical, miúdo e tímido, dizia de que pátria ele viera: do Mediterrâneo, sob um céu largo e azul sempre, sentado à Porta do Sol, em Roma, quem sabe! fazendo gemer demoradamente no ar claro do dia as notas trêmulas da sua rabeca.

Porque o pequeno Boldrini tinha a sua rabeca amiga, afetuosíssima e boa, que chorava com ele pelas praças e ruas.

E que dueto de lágrimas faziam ambos: o fanciulleto e o instrumento! Era adorável de ver o pequeno Boldrini: rosado, de uma bela cabeleira crespa caída em anéis castanhos sobre a testa morena.

Muito bom, realmente, encantadoramente bom, deliciosamente bom aquele tic nervoso das suas arcadas.

Ora o arco, vibrando rijo nas cordas, duro e retesado como um músculo distendido, tirava sons soturnos, cavernosos como regougos de condenados ao fundo de subterrâneos. Parecia então haver uma tempestade de lutas na alma do pequeno Boldrini; aquilo tinha um jeito de Wagner, e dava a toda gente que o ouvia um ar vago e dúbio de sonâmbulo.

Ora as arcadas eram solenes, majestosas, falavam de coisas transcendentais, de soberanias místicas, dando uma exaltação à ideia: era como que um desfilar heroico de procissões de rajás, de altas imponências egipcíacas, extravagantes de luz e de pompa na resplandecência viva do sol da manhã atravessando galerias e largos pátios suntuosos lajeados de mármore branco.

Ora a rabeca tinha romanas de beijos, barcarolas saudosas, idílios de balcões em flor, cantava todo o louro viver lascivo e madrigalesco de Veneza, dizia as canções do Tirol, doces e castas, prateadas como o luar, abrindo o peito às lufadas frescas das perfumosas aragens que vêm dos laranjais floridos do amor.

E, às vezes, notas mais brandas, ciciadas como brisas, desfolhavam-se no ar, semelhantes a pétalas de rosas, como se fossem os íntimos segredos imaculados dessa almazinha de artista das ruas, alma que se abria, cheia de fantasias e de quimeras, como um livro cheio de letras douradas, diante da presença de todos.

E o pequeno Vítor Boldrini, com quinze anos, que eram talvez quinze ilusões da sua existência, metido no seu jaleco de veludo preto, todo moreno e crespo, olhos repassados de doçura de mar sereno, atravessados de luz como cristal, lá ia vivendo como uma delicada flor de estufa, meridional e azul, ou como uma flor de parque aristocrático, no terreno palustre e neutral de uma cidade populosa e inclemente da América do Sul, vendo a sua Itália amada pelo cosmorama do seu coração de bambino ou nas vistas coloridas e fulgurantes dos realejos dos seus patrícios.

Então, o pequeno Boldrini, à noite, sonhava histórias interessantes: via-se no Coliseu, grande na presença dos homens, tocado duma chama divina e regendo com o arco, não aquele arco velho e vulgar, mas um outro arco novo, incrustado de ouro, uma vasta orquestra real de músicos dolentes e romantizados, falando de gôndolas sobre golfos iluminados de redondos giornos de luz verde, rubra e amarelada, pondo esmeraldas, rubis e topázios nas frias águas dormentes.

E o piccolo maestro abria muito os olhos como costumamos fazer diante de uma coisa que deslumbra, vendo através do espelho do seu sonho desenhado tudo aquilo que ele cismara acordado, crente no futuro, mas que lhe parecia, quando se levantava de dormir, ao outro dia, fugir para sempre; porque as aspirações que ele tinha, longe de horizontes italianos e sem esperanças de voltar para lá, nada mais eram do que uma sombra que se deveria esvair mais tarde, a exemplo da sombra que acompanha na frente o corpo até ao meio-dia e que depois fica para trás, como uma dúvida que nos tortura e persegue eternamente.

 

Signos

(Nestor Vitor)

  

A MISSÃO dos medíocres célebres, que em batalhões cerrados enchem os milhões de andares da Babilônia típica da história, a missão do cretinismo, notório é já nascer morta, ironicamente no ventre dos Destinos, qualquer coisa que deveriam trazer de assinalado e luminoso.

A missão dos Espíritos, dignos desse nome, entre a mascarada das classificações, é trazer uma vida dupla, é viver, em dualidade e densamente, uma vida perpétua no Espaço, fora do estreito veredictum dos homens e das suas ostentações.

Claramente que a caraça de papelão dos parvos há de opor obstáculos, com o seu sorrisozinho inócuo de "havemos de ver isso". Mas o espírito que traz força oculta, que traz em cada mão, agitada no ar, o gládio pujante da sua fé serena de conquistador; o espírito firme e temerário, que assistiu, sorrindo, a todas as hecatombes, a todas as misérias e a todas as glórias que fazem a auréola triste do mundo, esse resiste no seu polo invulnerável, esse está afeito aos tufões, experimentou bem de perto, nos ouvidos, o estrondo, o rouco estridor das tormentas, sentiu rolarem-lhe aos pés os raios inclementes e fulminadores, conserva os olhos perfeitos e serenados na confusão babélica das coisas, e bem livre e bem alta, a cabeça, para que ao menos as estrelas a vejam.

Nada pode fazer vacilar ou perder sua intensidade maior ou diminuir seu impulso mais amplo nessas naturezas, ou antes nessas afirmações fenomenais do Espírito, que quanto mais sentem a dura mossa que lhes faz a Terra, mais almejam o céu; que quanto mais sentem o vácuo que lhes querem dar por morada, mais o procuram encher das constelações e magnificências do sonho.

Nestor Vítor é o novo missionário do Espírito.

É a natureza para os largos horizontes, é a alma para as grandes e emocionantes comunhões.

Ele sente a sede inflamada e bendita de rasgar novas esferas ao pensamento, de fazê-lo girar imprevistamente nas zonas da eterna luz, de criar e fecundar prodigiosos estados sensíveis para a alma, nessa esquisita e infinita percussão de todos os sentidos refinados.

O surpreendente e curiosíssimo artista dos Signos, que agora tão soberbamente se manifesta nas páginas deste livro de uma alta significação estética, tão anunciante de segredos, tão revelador de mistérios e tão sugestivo de majestade, é um dos raros poderosos que tem o dom magnífico e mágico de violentamente arrebatar a nossa alma, de a fazer tremer e soluçar de comoção diante da sua, de a fazer dignamente humilhar-se, na curva doce, aristocrática, nobre, das profundas admirações diante da sua, de enfim despir-se, na nudez mais pura e mais franca dos sentimentos, diante da su'alma. Porque a su'alma é como um destes exóticos e deslumbrantes instrumentos que acordam toda uma série delicada e nervosa de sons que só ouvidos eleitos escutam e reconhecem. Um desses instrumentos saudosamente e egregiamente velhos que algum erradio menestrel do Oriente vibrou acaso por algum poente triste, no fundo de alguma era remota...

Só este grande amor que nos fecunda, só esta abundante seiva de Idealismo, só esta potente fé transfigurada que nos alimenta e ilumina pode responder, como a clarividente voz do Desconhecido, porque são as campanhas formidáveis em que nos empenhamos, por que são os arrebatamentos loucos em que vivemos, por que são as contemplações em que mergulhamos, porque é, enfim, toda esta poesia tocante e trágica que nos tonifica e convulsiona.

O artista dos Signos pertence à aristocracia mental dos Poetas. Na sua sensibilidade existe o cunho original da mais delicada e penetrante poesia, que não será fácil de ser sentida pelas velhas carcaças das Letras.

Porque isso de Letras não é mais do que a falsa exposição de tipos, cada qual com uma teoriazinha serôdia atrás da orelha, estafados de serem inócuos e inodoros, aparecendo aqui e ali pelos alçapões teatrais da opinião como verdadeiros marionettes de feira.

Nestor Vítor é uma alma intimorata de poeta; traz o seu ser banhado dos eflúvios raros da mais incomparável poesia. Mas dessa poesia nobilitante e purificadora que tem asas para o Infinito, ansiedades para as Esferas.

Os Signos, apesar de serem trabalhados em prosa, evidenciam extasiantes modos de ser de um curioso poeta, dão a medida de uma alma bastante elevada para não ser apenas terrestre, bastante impoluta e requintada para não deixar de embalsamar-se nas ondas fascinadoras de uma emovente poesia, que é a linguagem interpretativa do Sonho.

A maneira, os processos de Nestor Vítor, ao menos nesta obra, são simples, mas dessa simplicidade que implica complexidade, como toda a simplicidade que nasce de fundamentos superiores.

A sua estética possui a severidade de um dogma e a precisão, a eloquência de uma vontade manifesta.

O que se lê neste livro sente-se que é sentido, que é vivido, que é filtrado puro da imaginação do autor, tão claro, tão lúcido, tão percuciente e tão flagrante como se o Sentimento se movesse em torno de nós e falasse e dissesse e vivesse a sua psicose e a sua nevrose.

O seu estilo, a sua forma, ele a faz com verdadeira pompa de um desdém fidalgo. Isto é, não se preocupa de modo fatigante e rebuscado, e deixa que a forma surja, original e fascinadora no entanto, porque vem vestindo um pensamento original e fascinador. E como cada pensamento já sai naturalmente revestido da solenidade da forma, o artista deixa simplesmente que esse pensamento se manifeste, ficando então, desdenhoso, tranquilo, a sorrir da forma que tenha de vir, porque já sabe que essa forma há de ser, sem esforço, superior, desde que é uma correspondente direta de um pensamento do mesmo modo superior.

Nesse ponto Nestor Vítor recorda um pouco Villiers de L'lsle-Adam, cuja sobriedade e simplicidade de forma repousa, no entanto, num processo complexo, excelso e raro, que é o segredo de certos estilos surpreendentes, inefáveis, que de tão requintadamente simples não parecem estilos. Esses podem ser classificados os estilos brancos ou os estilos leves e finamente estrelados, que decorrem do pensamento de um cérebro superior, com o alto desdém aristocrático de quem sente que é Eleito entre os Eleitos, e não desce a prestar obediência dos seus espirituais brasões honoríficos à plebe ignara e sacrílega, que quer à força reconhecer a legitimidade da hierarquia, das linhas nobres e puras da raça ideal de onde esse Eleito procede.

A maior ambição que Nestor Vítor põe na forma é a de conduzir a sua ideia para o rumo onde ele a queira levar. É de fazer com que essa ideia, deixando o nebuloso caos da sua origem, encontre livre, espontânea, franca e ampla, a forma, para, como asas, alar a ideia para as alturas, arrebatá-la na luz, fasciná-la nos astros e deslumbrá-la nos céus.

O estilo de Nestor Vítor, forte, solene, é a evidente característica, o desdobramento especial e genuíno da sua feição grave e séria na Arte; representa bem o cunho austero e eminentemente determinado, significativo, da sua Estética elevada e nobre, rude às vezes, violenta, libérrima e sobretudo desdenhosa em certos pontos de vista.

Ele sente essa angústia, essa sede do Exprimir, do Dizer, mas do Dizer denso, intenso e legitimamente original.

Quer que o seu vocábulo sangre a vida, que o seu verbo cave fundo na natureza do seu pensamento, que imprima um movimento de convulsão e de sensação às cabeças, nos quatro pontos cardeais da Terra; quer que o seu verbo opere a luz e ilumine de uma cintilação muito clara, eletrize, faça acordar, agitar-se, palpitar, estremecer o sentimento ocioso e covarde que dormita dentro das almas.

Um espírito assim, uma eloquência assim, de tanta penetração e de tanta concentração, tem de ser uma grande tuba nervosa desconhecida, um clamor mais ardente e mais virgem, uma voz de uma vibração e de um impulso maior que projeta mais alto e mais longe o pensamento que ela enuncia e proclama.

Essa covardia e essa inépcia para afirmar os que pairam nas Transcendências da Arte e no Imprevisto do Gênio, esse eterno e capcioso Não-Sentir e esse eterno e capcioso Não-Ver dos que vivem se equilibrando em mútuas muletas de Fama; essa tendência criminosa e fatal que têm muitas vezes as almas mais bem dotadas para se deflorarem e envenenarem nos sinistros tédios culpados; todos esses esguios e escuros corredores onde se esguelham e encolhem as lesmas sutis de vagos movimentos caolhos e hipócritas da psicologia de certas naturezas; todas essas escápulas cômodas para o Silêncio e para a Sombra, essas cumplicidades mudas com a própria Consciência, essas cópulas ilícitas e sacrílegas com a Treva, este Verbo em febre do espírito dos Signos condena do alto do seu dogma dantesco e santo, fustiga com as suas ironias e a sua verve comburente, queima e fulmina com os seus jorros de raios flamejantes.

Nos Signos há um sentimento delicado de velha fidalguia estética; dessa delicadeza que é uma florescência nobre e egrégia da estesia, dessa delicadeza que é o refinamento dos nervos e do psiquismo e não dessa outra toda exterior e aparente que parece feita de óleo de oriza, de chic, de boninas do prado, de brisa e dos suspiros das onze mil virgens.

Quanto à observação de Nestor Vítor, esta ele a possui poderosa, pronta, fácil, livre e simples, quer dizer, espontânea e natural. A sua imaginação toda particular fornece-lhe um imenso cabedal para isso. Mas Nestor Vítor considera a observação, como realmente o é, um ponto de partida e não o fator máximo da sua obra.

Superiormente dotado, ele sabe que essa observação, tão aclamada pelos medíocres e pelos estacionários em Estética, não constitui a fonte, ou antes, a causa primordial da elevação maior ou menor de um espírito.

É lógico que quem tem ao seu dispor qualidades estéticas singulares, elementos seguros e radiantes para as interpretações mais belas da Arte, na observação uma preliminar, uma força elementar dessa Arte, mas nunca a sua melhor ou maior expressão.

Ter simplesmente observação, por mais vasta e completa que ela seja, é, na Região do Pensamento, estar apto para fazer alguma coisa ainda, mas não considerar já essa coisa feita pelo único fato de possuir observação.

Assim, a observação não é mais do que uma acidental nos grandes planos do Pensamento, subordinada, dependendo de outras forças muito mais complexas e abstratas.

Um livro do qual só se pode dizer — tem muita observação, mesmo muita, e exata — é, quando menos, um livro que olha e perscruta, com toda a correção, embora tenha certos lados inferiores, cheira e palpa muito as coisas, mas que não se eleva nem se projeta, profunda e emocionalmente, em esferas superiores.

Cerebração séria e serena, na mais absoluta expansão da Arte, perscrutador penetrante do coração humano, psicólogo de novas faces e de novos mundos humanos, vendo quase tudo por uma visão de hora de ocaso de outono, com certas linhas langues, mornas e mórbidas, mas desse mórbido psíquico que é soluço e que é dor na atmosfera mental, o glorioso artista dos Signos conseguiu enfeixar na sua obra os símbolos mais expressivos e belos, alguns de um fundo bem cruel e bem funesto, mas onde ressaltam, vivas e dominantes, as sensações e as ideias que uma rara fé desperta nos espíritos definitivos.

Do centro, porém, dos Signos destacam-se iluminantemente quatro singulares trabalhos que formam como que o eixo fundamental em torno ao qual se movem todos os outros.

Embora prenda admirativamente a nossa atenção, “Alegria fúnebre”, onde Nestor Vítor atesta toda a sua larga observação generalizada, sintética, que ele tem das coisas, todo o conhecimento perfeito da espécie humana, desenvolvendo com emoção e pujança extraordinárias a vida de dois seres miseráveis e shakespeareanos na sua desgraça; embora nos seduza e encante a psicologia ingrata, de uma sensação travosa de desespero sem remédio, mas firme, completa, desse outro lindíssimo trabalho “A Vitória”, e ainda o bizarrismo precioso, a fina e desdenhadora fidalguia, o soberano sarcasmo, intenso e cortante como lâminas aceradas, como peste de fogo, desse "Olivério"; embora sintamos esse esplendor de charge, impiedosa humour, caricatura de uma face inédita, descarnando muito a fundo ridículas usanças típicas, costumes incaracterísticos, macaqueados, postiços, carregando a zarcão os medalhões de uma sociedade falsa, que se julga equilibrada e correta, embora compreendamos essa excentricidade, essa firmeza perceptiva, essa segurança de observação mundana, esse mal-entendu das relações, de pessoas que se encontram num dado meio, pelas correntes do acaso e que mutuamente se impressionam e mistificam, sem, no fundo, se conhecerem com nitidez e exatidão, como no “O Máscara”; muito embora mesmo ainda vejamos a risada bárbara, selvagem, de “Hirânio e Garba”, páginas tão irônicas e tão verdes na exótica expressão, rindo, sob a égide do símbolo, de um mundo que até para o amor tem fórmula e convenção; de “Hirânio e Garba”, cujo pitoresco da forma revela preciosamente o picaresco do fundo, que a ela com uma perfeita curiosidade se adapta, o que parecerá talvez arcaico, esteticamente antipático e desgracioso aos entendimentos superficiais e frívolos que acreditam que a Arte é a elegância e o bom gosto dos assuntos; embora, enfim, tudo isso, há neste livro quatro trabalhos culminantes que são as colunatas de ouro maciço que sustentam toda a cúpula ideal dos Signos.

“Fatalidade”, símbolo amargo do Amor, o primeiro casal enleado nas ilusões do amor, casal idílico, ingênuo, querendo fugir, furtar-se loucamente e em vão ao seu destino e ao seu fim na Espécie, querendo fazer do amor um platonismo inefável, um eterno, imperecível laço sem o cumprimento das leis fatais da Natureza, até que ambos, ele e ela, rolam crua e animadamente no Irremediável do gozo carnal que é a enganadora sedução com que o amor ironicamente se oculta e tenta.

Porque mesmo, no fundo da grande Causa, todos os encantos, todas as graças e atrativos de que se reveste um casal que mutuamente se impressiona na vida, são simples e instintivamente para o efeito da função fisiológica, são seduções apenas para encobrir de vagos véus aparentes e sugestivos o sentimento sexual da procriação da espécie — triste sonho genésico que alimenta e embala, consolando, a cismadora e aflita raça humana.

“Agonias”, — miserere solene, majestoso, de uma fé que morre, sintetizada num fiel e num justo. Soluço generalizado do Requiescat in pace dos grandes esforços vãos, das lutas e dos sacrifícios seculares, das humildes propagandas, das obscuras mas veementes doutrinas, dos sublimes Vencidos ainda crentes e consolados até mesmo às portas da morte; tristes lágrimas e lancinamentos derradeiros de simpáticos e eloquentes apóstolos perdidos ao longe na poeira do infinito Saara da Ilusão e da Fé, e que apenas têm como prêmio o ponto final da cova.

“Gavita”, — o encanto culpado, esse estado de volubilidade inquieta, aparente ou latente, que reside na mulher em flor.

Qualquer coisa de volúpia do luar e da delícia do néctar e das rosas.

Curvas leves, aéreas de um sonho corporificado, alvorando em esquivas surpresas, cantando frescura e música, sorrindo e viçando graça.

Íris de virgindade, no céu azul constelado de uma beleza de melindrosos atrativos e seduções pecadoras, fazendo irradiar de si todo o delicioso cromatismo da feminilidade borboleteante, fugitiva.

Desabrochar de alvorada de frutos de ouro, que uma névoa deslumbrante de mistério envolve ainda de translucidez, de magia e de meigas suavidades aladas.

Gavita é uma dessas criaturas meio imaginadas e meio reais que formam no comovido coração de quem as ama um doce oásis consolador.

Poucos sentirão a diafaneidade daquelas linhas, os lascivos quebrantamentos daquele ser vaporoso, metade sílfide e metade áspide, graça delicada e branca de voo de anjo, mas inevitável e demoníaco travor de perfídia nos movimentos inconscientes e cúmplices do seu fenômeno de mulher e de virgem.

“Sapo” — um desespero de condenado mordendo os pulsos, terrível galé da Sibéria dos Destinos, sentindo que o mundo está para ele do avesso, que as perspectivas gangrenam, que os aspectos gangrenam, que os homens gangrenam.

Ruge e troveja nessa criação densa e monstruosa uma dor tão intensa, tão abismante, tão absurda como se o oceano crescendo e inchando para o firmamento rebentasse numa explosão de uivos pantéricos atroadores.

O “Sapo” é uma destas concepções que parecem fundidas em bronze por artistas revéis e alucinados. Por todas aquelas páginas percorre um frio soluçante e nirvânico. A vida ali ganha uma inconcebível densidade e crueza, uma irradiação, mórbida, de eclipse de morte. Secretos, os instintos da destruição moral, do aniquilamento de tudo, fazem a sua catequese feroz e sombria na já devastada alma do Bruce. E o Bruce, nesse terror de alma sangrada na mais indefinível angústia, clama e chora despedaçadamente, já até com o pânico de si mesmo, como que sentindo o próprio solo, na formidável catástrofe do mundo, recuar-lhe dos pés. A dor, então, atinge até a um grau de transcendência e de furor que parece epilético.

Nestor Vítor descobre, revela, rasga, ali, com profundidade, o infinito de uma dor pateticamente humana e misteriosa.

A vida contrai, aperta cada vez mais os seus círculos. Um estreito Teorismo pretende tomar de assalto o mundo. O mundo parece chegar à vacuidade do nada. Tudo se desloca dos eixos, se desagrega do conjunto. Como que o ritmo das coisas cessa e vai se estabelecer a confusão geral. Daí, sujeitas a esse anárquico sentimento universal, na harmonia negra desse estado social e moral, sob a lei fatal desse Momento histórico, geram-se naturezas como a do Bruce, de um fundo, no entanto, dignamente intelectual e límpido, mas que vendo para sempre partido, quebrado o maior fio de uma afetividade qualquer que as equilibra na Terra, e já trazendo mesmo, no seu íntimo, certas qualidades ingênitas de desorganização, desorientam-se de todo, desmoronam por completo, e tomam, no físico e na alma, a gravidade triste, desesperadora, de flores tóxicas de doenças patológicas.

A conclusão a que se chega no "Sapo" é cruel, desoladora, mas eloquentemente verdadeira.

A convulsão e vulcanização psíquica desta admirável concepção, o símbolo tremendo que ela representa, a mordacidade de caveira que ri cabalisticamente da Vida e que é a própria mordacidade glacial de Nestor Vítor, o fatalismo horrível que a nirvaniza e que lhe sopra tufões inquisitoriais, tudo isso enchendo malditamente aquelas páginas de belezas austeras e tristes, de luzes roxas e amargas, como que nos torna acerba e antipática a alma, tira-lhe toda a piedade e toda a misericórdia, todas as auréolas brancas da compaixão e do carinho, fazendo-a desvairada, louca, maligna, perdida por dédalos sinistros de crimes, sem fé e sem rumo, desvirginada nas suas nobres e delicadas raízes.

A grandeza perigosa e envenenada desse trabalho é de tal forma, a vastidão suprema do tema abala de tal modo a nossa Consciência, fá-la de tal modo descer, fá-la de tal modo subir, acende uma luz tão clara e tão grande, mas ao mesmo tempo tão impiedosa, tão dura, tão castigadora, que perguntamos aterrorizados a nós mesmos por que é que se foi revolver tanto sentimento estranho, por que é que se foi arrancar ao Incognoscível tanto mundo tenebroso, por que é que se foi descobrir, com tanta paixão e tanta febre, tamanha região de lancinamentos e de culpas!

Depois, essa esquisita silhouette do Pai do Bruce, assim como Nestor Vítor a sentiu, dando-lhe toda a impressionabilidade da sua natureza, traz-nos uma sugestão de diabólico, de fantástico pavor.

Esse velhinho de olhos piscos, andar apressado e miudinho — sombra, espectro na vida, sombra, espectro na morte — porque o glorioso artista dos Signos faz dele um perfil indeciso, nebuloso, do qual não se pode precisar bem as linhas e as qualidades integrais; esse velhinho ideal, lugubremente grotesco, meio sinistro, meio feiticeiro e meio profeta como surgindo do fundo cabalístico de um além-túmulo macabro; esse ignoto velhinho, sonâmbulo das Cinzas, tão sombra espectral na morte como foi sombra espectral na vida, é de um raro exotismo e de um maravilhoso segredo de imaginação genuinamente infernal!...

O próprio Ernesto é um perfil cativante, amorável. Dessas organizações lânguidas, cuja juvenilidade solitária, desabrochada na amargura e no abandono, parece provocar sempre uma simpatia imediata, um movimento de amparo e uma irresistível atração. É quase uma natureza feminina, nervosamente histérica, de um fundo tocantemente romântico, de onde mórbidas e mornas vicejam flores pálidas e lascivas de timidez, de frouxidão.

O Ernesto é o lírio magoado e doce, é a sombra acariciadora e terna daquele Vale de lágrimas, que é o Bruce; é o canto matinal e lírico daquela epopeia humana, é a água dessedentadora, ainda que nublada, daquele deserto horrível.

Lembra um ser esquecido em si mesmo, adormecendo, do fundo da sua castidade meiga e da sua melancolia, num desejo impreciso, vago de que ele mesmo não sabe explicar nem acompanhar as ondulações e as curvas.

Só quem subterraneamente e chamejantemente viver nos infernos de agonias semelhantes ou idênticas pode estremecer e chorar diante dessa concepção formidanda, na qual o trágico e estranho perfil do Bruce louco fica como um farol negro e de pedra, alto e imóvel, na solidão carregada e bárbara de uma ilha longínqua desconhecida do mundo onde um vento noturno e gemebundo glacialmente sopra e sibila.

É preciso, na verdade, ter a cabeça melancolicamente voltada para certas teses, para certos problemas da psicologia humana; vir de muito longe na peregrinação do Pensamento; trazer em si uma força majestática, uma clarividência suprema e, além de tudo, um desprendimento completo, absoluto, das frívolas vaidades mundanas, para arrancar de tão fundo essas raízes sangrentas de vida, para clamar de tão alto verdades tão augustas, tão independentes e perigosas, para rasgar, enfim, com tão violentos movimentos de ação e sensação, os longos sudários que pesadamente encobrem essas mórbidas auroras pressagas do Sentimento.

O tipo do Bruce é um dos mais intensos e profundos entre as Criações universais. Sente-se que ele desloca as correntes do ar, move-se, respira, vive, agita convulsamente os braços no Infinito.

É um louco formidável que se fez homem; um soluço que enche as Esferas com a ansiedade e a nevrose subterrânea da alma delicada, compassiva, comovida e angustiada de um russo.

Todos os desclassificados do destino, todos os vacilantes, todos os sem rumo, todos os sem objetivo certo, todos os silenciosos do orgulho nobre, todos os corações amargos e fracos, todos os dolentes e desolados do espírito, todas as vidas de meia luz e de meia sombra, todos os vencidos da Glória, todos os inacabados, todos os incompletos que aspiram um Ser, todos os que ondulam entre a Fé e a Dúvida, todos os incompreendidos, todos os irresolutos ou covardes morais, encontrarão no poderoso e sintético tipo do Bruce afinidades, diretas correspondências, secretas confissões e apelos, ritmos harmônicos e sugestivos, pontos especialíssimos e tocantes de contato, hão de senti-lo e amá-lo.

De todas essas linhas vagas que formam tantas almas indecisas, sôfregas, ansiosas e sofredoras que por aí andam, de uma fronteira a outra da Terra, esbatidas em nuances de melancolia e tédio, de desespero e de agonia; de todas essas queixas confusas e desencontradas dos Desgraçados, dos Solitários e dos Contemplativos de todo esse sensível, denso e imenso crepúsculo geral de gemidos, que é o fundo sublime e misterioso da alma humana, foi que se gerou a natureza do Bruce, foram esses os germens que constituíram tão extraordinário tipo e que assim lhe dão, por isso, clara e perfeitamente, a característica de simbólico.

Há no "Sapo" um niilismo agudo; tremendo, quase sinistro, mas ao mesmo tempo justo e consolador porque vem para purificar e punir...

Esses quatro trabalhos formam com efeito o centro do poderoso e admirável espírito de Nestor Vítor. Neles acha-se condensada a maior massa de ideias. Sintetiza-se aí a psicologia curiosa de um ser que voa no sonho das águias; sente-se aí a nervosidade mais coleante, mais voluptuosa, mais sedutora; palpita aí a gênese mais imprevista, mais original, a estesia mais delicada, a sensibilidade mais dúctil, a profundidade mais misteriosa. Por esses quatro trabalhos tem-se a medida exata da sua cerebração, toma-se a altura do seu voo, vê-se o infinito Intangível do seu espírito.

Do fundo de cada um desses Signos ou desses temas psíquicos raia uma forte, clara luz soberana de Arte.

Cada conjunto daqueles tem uma irradiação central: são focos estéticos representando o máximo da luz de uma singular natureza.

Cada um por si vive as suas linhas, traz a sua sensação especial, o seu ritmo langoroso, a sua música amarga, a sua tempestade trágica ou a sua nudez cruel.

Cada um de per si acende as suas estrelas de melancolia e de cismada dolência, as suas violáceas luas de morte ou os seus comburentes e chagados sóis de vida.

O grau supremo a que pode atingir um espírito, através de Abstrações e de Sínteses refinando-se, apurando-se, na maior contensão da alma, tocando com a alma o polo astral das Quinta-essências do Sonho fazendo da alma a nova Estrela d'alva nas Matinas da nova Fé; esse ansiar virgem, branco, nobre, claro, que é como se andássemos pelas divinas eiras celestes, sequiosos por devorar o trigo de ouro dos astros; essas asas do Inaudito, que não são asas para a Terra e que palpitam e roçam pelo peregrino fogo sagrado e sidéreo da Arte, tudo, como estranhas relíquias de um outro encantado mundo, como talismãs eternos que miraculosamente dão a vida e dão a morte, esse pálido Sonhador dos Signos traz consigo das estradas de onde vem, fazendo de algum modo emudecer, e cismar, é a palidez dolente do seu semblante, o altivo traço de austeridade, de força, da sua cabeça eleita e a magnificência, a claridade sã, acolhedora, de deus jovem, mas serenamente severo, dos seus olhos inquietadores e profundos.

Não são, essas criações dos Signos, produtos de um realista, de um observador seco, mirrado, ou de um analista de minúcias banais. Não é um fútil teorismo ronchante e metafísico querendo empolgar o mundo com as suas tentaculosas sistematizações, os seus caducos julgamentos, a sua miopia e estreiteza de microcéfalo.

Não é um frívolo bater de bigorna nos estafados e relaxados assuntos que são a eterna tela dos seculares torneiros de todas as literaturas do mundo.

O horizonte que aqui se alarga, os planos gerais que aqui se estabelecem, são outros.

Trata-se de uma natureza verdadeiramente, legitimamente natureza, cuja complexidade e fundamentos são extraordinários e assinalados.

É um grande ser, bem irmão dos grandes seres, que desperta, pálido e grave, com o seu Verbo, para dizer à Terra a grandeza do profundo Sentimento que trouxe consigo.

A Terra poderá não o ouvir, não o entender, não o escutar, não o amar; mas a sinfonia majestosa da sua alma continuará, se desdobrará pelos dias, passará os anos, encherá a atmosfera dos séculos, e, como um soluço feito de beijos, feito de músicas, feito de lágrimas e ansiedades, irá rolar, rolar, rolar, rolar na Eternidade abismante um pouco da sua sensibilidade para torná-la mais doce, um pouco da sua luz para torná-la menos abismante, um pouco do seu amor para torná-la menos tediosamente Eternidade.

Nestor Vítor traz no seu temperamento as mais radicais qualidades; ele vem para o apostolado da sua Obra, para determinar com elevação e pujança o caprichoso e extravagante fenômeno de seu ser.

Ele vem para o apostolado da sua Obra, e uma Obra é a evidência integral de uma Consciência, a cabal afirmação de um pensamento, a radical expansão de um sentimento.

Trazer uma Obra é ser capaz de todas as altas e gerais responsabilidades, de todos os ódios e antipatias, ineptos e injustos, que uma verdadeira obra provoca.

É arrostar, sem temor e sem alucinações, com as zumbaias fúteis ou com zombarias atroadoras.

Certamente que uma coleção de livros, por brilhantes e mesmo notáveis que eles sejam, não chega a constituir o que a realidade se pode chamar uma obra, desde que esses livros não tragam o cunho quase imperceptível, o selo particular que caracteriza uma obra e que forma o fundo da sua irradiação e da sua amplidão no tempo e no espaço.

A obra de um artista vem inteira e completa nos seus nervos, no seu sangue, na sua aspiração, na sua virtude, na sua moral, na sua alma, realizando o que de fato se pode chamar a natureza de um Complexo estético, um mundo novo de Intelectualismo requintado.

A obra de um artista é feita na segregação de elementos corruptores, fora das atmosferas viciadas, infectas do mundanismo, das perspectivas rasas, no isolamento do meio social banal, como uma gestação nas purificadas esferas celestes.

A obra de um artista é feita de todos os fluidos e forças da concentração, da intensidade, da fé abstrata, do amor e da mais perfeita seriedade mental.

É a ação frequente e consequente de um estado legítimo da alma, o latente e intenso palpitar de uma aspiração para o Sonho, a expressão generalizada, sintética de uma Vida, o sistema arterial de uma simples, pura e profunda Convicção.

Com todos estes atributos essenciais, com todos estes predicados rigorosos aparece agora Nestor Vítor, radiando de si uma obra, isto é, constituindo-se ele o vivo órgão, o invólucro da matéria palpitante que vem comportando a Emoção e a Sensação de uma obra.

Os movimentos do seu espírito têm qualquer coisa de avalanches que, quando passam, vão arrastando consigo tudo. Ele é a avalanche mental, arrasa tudo, devasta tudo, desola tudo com a sua fatal visão acerba e sombria de Fulminador do Espírito. Parece que uma aluvião má de demônios atravessa, por vezes, na câmara escura dos seus pensamentos e nela tragicamente proclama, escreve o Nihil, a vermelho.

No seu riso, ora de um desdém galvânico, de um sarcasmo oblíquo, ora de uma desfaçatez de belo rebelde, de divino celerado da Arte, cascalha a risada da morte.

E não estamos apenas rendilhando estilo, floriturando frases, imaginando tropos: — o Poeta dos Signos, insistimos, tem essas soberbas e raras singularidades fatais consigo, o que o faz semelhar, de certo modo e certas faces, a um desses esquisitos e flagelados Sonhadores eslavos.

Mas, entretanto, o fundo melancolicamente doentio e letal da sua natureza artística esbate-se, dilui-se logo na candidez abençoada da sua alma, na transcendentalizada bondade todo o seu ser de demônio que se fez anjo, e anjo para punir as antigas culpas do demônio.

Como, pelos requintes a que sobe, pelos raios de luz em que paira, pela perfectibilidade a que chega, o artista é o ciliciador de si próprio, o purificador de si mesmo, que anda recebendo os santos-óleos, a extrema-unção dos extremos perdões, Nestor Vítor poderá ter do demônio apenas a velha nostalgia, a triste visão do Letes; mas tem, porque com ela para sempre ficou na esfera tranquila da sua alma, no mudo mistério casto da sua alma, toda a glória e toda a celeste resplandecência dos anjos.

Mas ainda mesmo sendo anjo, tomando do anjo o resplendor e as asas vitoriosas, a olímpica divindade desse anjo foi como que aos poucos desaparecendo, se transformando; e onde era uma excelsa brancura de anjo ficou uma lividez de monge, e onde eram as níveas asas triunfais de um anjo, ficaram as vestes de um monge, e onde era o deslumbramento e o ruído apoteósico de um anjo, ficou o silêncio e a sombra de um monge.

Ele é, na sua gênese, na sublime essência do seu ser, um perfeito demônio que se fez monge, que foi cristalizando e transfigurando a alma através dessa longa vida que não é só vivida nos anos, que não é apenas escoada no tempo, mas através da vida vivida nas ideias, na intensidade e na chama das ideias, da vida que faz dos pensamentos velhos monges solitários a desfiarem o interminável rosário das sensações do mundo, quando se adquire, através de lentas e recônditas transformações, essa grave expressão refinada de espiritualidade, de dolência e melancolia antiga.

Quem nunca trouxe a cabeça docemente e pungentemente pendida para certos lados secretos do Pensamento e do Sentimento, nunca poderá entrever esses céus claros, céus e céus que se desdobram na Imensidade peregrina da alma. E elevar a alma até essas essências ignotas da Luz fazê-la pairar, bendita e branca, na paz infinita do Éter espiritual, é sagradamente mostrar ao mundo que a alma não deve ser apenas um miserável frangalho imundo, abjeto, nos círculos nervosos da Vida. Que ela, alma, quando sabe sentir e sonhar, encantando tudo, maravilhando tudo transfigurando tudo, pondo claros céus novos em tudo, é porque traz em si um toque desconhecido de graça e grandeza, qualquer coisa de tabernáculo inviolável, de venerado e abstrato que os contatos terrestres não conseguem jamais poluir.

Os Signos são a extraordinária sinfonia de abertura de obras formidáveis que aí vêm vindo e nas quais o grande espírito de Nestor Vítor há de soberanamente e fatalmente assinalar cada vez mais a sua superioridade artística entre as intelectualidades do mundo.

Ele vem para o alto objetivismo. Mas sabe, no entanto, que não há puro e perfeito objetivismo sem puro e perfeito subjetivismo, porquanto o objetivo não pode deixar de depender do subjetivo, isto é, porquanto o mundo interior do eu não se pode desprender do mundo exterior que visão abrange ou, mais claramente, porquanto o temperamento não se pode separar do documento do real e nem o fato prescindir da alma, fim de persistirem as essenciais concordâncias, baseadas na Sinceridade do ser, que formam o fundo das legítimas naturezas artísticas.

Cabeça de larga generalização, alto desdenhador de todas as fórmulas sociais e de todos os estilos literários, mesmo os mais aclamados, a completa individualidade de Nestor Vítor tem sérias afinidades com Balzac na análise, com Goethe na complexidade e na síntese, com Ibsen no serene poder pensador e filosófico e na alma vasta, perfectibilizada e cismadora, e com Villiers de L’Isle Adam no estilo, no pinturesco sarcástico lúgubre macabro, e mesmo no lado emocional sutil e penetrante de certos assuntos.

Mas, além de todas as qualidades que representam o conjunto harmônico desta natureza, há nela a faculdade maravilhosa, quase sobre-humana e quase divina, de arrancar das almas todas as mais secretas fugitivas verdades, como que vendo e sentindo-lhes as transparências íntimas do Invisível, surpreendendo-lhes o pensamento incógnito e toda; as suas curiosidades e latitudes.

Nestor Vítor é um dos raros que trazem a fé viva e superior do Pensamento, o seu Intelectualismo é uma alvorada que rebenta cheia dos mais majestosos prenúncios.

Nele não há a fé pretensa do simples métier, a atitude falsa de parecer um açodamento momentâneo, o interesse medíocre pela contemporaneidade, o que caracteriza especialmente os continuativos e os oportunistas da Arte.

Do íntimo de su'alma, de algum modo soluçantemente ritmada por nonchalances, dolências e aristocráticas melancolias hamléticas, nasce-lhe uma fé poderosa e consoladora, como uma flor mística cujo aroma purificador indefinivelmente o enleva.

Por isso, apesar de todo o seu vulcanismo revolucionário, de todas as suas faces significativas de Revelador de novos hemisférios da Emoção, a obra de Nestor Vítor é edificante, de uma grande luz simpática, levanta as almas e as impele a marchar por um cuidado claro e seguro, que é o simples, livre e sensibilizante caminho da Perfectibilidade ante as manifestações fenomenais da Natureza.

Os Signos, da forma por que estão elaborados, trazem essa propriedade secreta e característica que tem os Eleitos de confundir e mistificar o convencionalismo oficial da Opinião.

Nestor Vítor vem com a compreensão nítida e absoluta da missão livre da Arte, do ser por ser, de logicamente produzir por logicamente sentir.

Ele vem com este arrebatamento emocional, esta doce volúpia de amor de sentir uma alma, mas uma verdadeira alma, e ir espontaneamente ao encontro dela. Com esta ansiedade nervosa e transcendente, com este grande soluço para alargar, dar mais amplidão e mais ar às esferas da Vida, a fim de ficar mais sereno e mais puro diante da transformação da Morte!

Nesta hora violácea de ocaso, em que o Egoísmo tomou conta da Terra; nestas confusões, neste caos dos Espíritos e do Tempo, faz-se mister largas investigações mortais, mergulhamentos, fundas e profundas sondagens luminosas, para achar e ter a nobre coragem de levantar, clara e pura no Espaço, a Radical de um Espírito.

 

A Virgílio Várzea

EVOCANDO COM EMOÇÃO, com a mais intensa sensibilidade, a época floreal, combatente, bizarra, da saudosíssima Tribuna Popular, obscura ermida metida por entre as sombras da vegetação primitiva de uma província simples e onde uma campanha viva, chamejante, abria em messes de ouro.

À camaradagem, à febre, ao entusiasmo, ao amor daqueles intrépidos e inolvidáveis tempos, sans peur et sans reproche, tempos de gládio e facho, sob as impressionativas emulações dos belos companheiros, hoje desgarrados: Araújo Figueredo, Carlos de Faria, Horácio de Carvalho, e sob a repercutidora saudade de Santos Lostada.

A esse tocante en arrière, que neste momento me faz profundamente e recordativamente viver...

[*] Foi traduzida para o francês e publicada em França, por Max Nordau.