Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Um Credor da Fazenda Nacional, de Qorpo Santo


Edição de Referência:

Biblioteca Virtual da Escola do Futuro

 PERSONAGENS Credor

Porteiro

Um Major

Um Contínuo

Empregados da repartição

Outros credor

Leopoldino ,Contador

Chefe de secção

Sr. Barbosa

ATO PRIMEIRO

UM CREDOR - (entrando em uma repartição pública; para o Porteiro) - Está o Sr. Inspetor?

PORTEIRO - Está; mas não se lhe pode agora falar.

CREDOR - Por quê?

PORTEIRO - Está muito ocupado!

CREDOR - Em quê?

PORTEIRO - Tem gente aí com ele.

CREDOR - Quem é?

PORTEIRO - Um Major!

CREDOR - Demorar-se-á muito?

PORTEIRO - Ignoro.

CREDOR - Pois diga-lhe que lhe quero falar!

PORTEIRO - Não posso ir lá agora.

CREDOR - Quantas horas estarei eu aqui à espera que o Sr. Major saia para que eu entre! (Passeia) .(O MAJOR, saindo e encontrando-se com o Credor.) CREDOR (para o MAJOR) - Oh! O Sr. por aqui! Julgava-o quem sabe onde! Disseram-me que tinha ido para Rio Pardo há dias!

MAJOR - Tenho tido aqui numerosos afazeres, por isso não sei quando irei.

CREDOR - Fique certo que sinto o mais vivo prazer em vê-lo no gozo da mais perfeita saúde.

MAJOR - Onde é aqui a tesouraria?

CREDOR - Na Tesouraria estamos; mas o Tesoureiro está lá embaixo.

PORTEIRO - Lá, não; lá está o pagador!

CREDOR - Ah! Então é cá em cima; porém nos fundos; creio que na última sala.

MAJOR - Então para lá vou. (Segue.)

CREDOR - Agora entro eu. (Dirigindo-se à repartição.)

PORTEIRO - Está lá o Sr. Leopoldino Contador!

CREDOR - Ë célebre! Então vou à secção respectiva saber se foi informado o meu requerimento! (Caminha, e entra.)

PORTEIRO - Que diabo de homem este! Tem vindo mais de um cento de vezes à repartição... se há de...

CONTÍNUO - Faz ele muito bem [em] vir cá ! Deve-se lhe, por que não se lhe há de pagar?

CONTÍNUO - Homem; isso é verdade! Qual a razão por que esta repartição há de paliar meses e anos!?

PORTEIRO - Custa a crer a retardação de pagamento ou a preguinha, segundo dizem alguns empregados!

CONTÍNUO - O caso é que ele tem procedido sempre com a maior prudência!

PORTEIRO - Isso é verdade. Mas quantos terão sofrido pela falta de cumprimento de deveres de alguns funcionários públicos?

CONTÍNUO - Ë verdade! Tem havido tantos males, que enumerá-los talvez fosse impossível.

PORTEIRO - Mas tu sabes o que os empregados querem? Talvez não saibas. Pois eu te digo: 1º - Acabar com a Monarquia Constitucional e Representativa!

2º - Pôr termo às repartições públicas; isto é, acabarem com todas estas imposturas!

3º- Mudar a forma de governo para República.

4º- Fazerem uma liga entre todos que...

CONTÍNUO - (pondo as mãos na cabeça e puxando as orelhas) - Estás louco! Homem! D'onde vieram-te esses pensamentos!? Se não mudas de modo de pensar, vais parar à Caridade. PORTEIRO - Ah! Tu não ouves! És surdo! Não vês. Tens olhos e não enxergas! Ouvidos, e não ouves! Só falas! Tu verás a revolução que em breve se há de operar! Olha; eu estou vendo o dia em que entra por aqui uma força armada; vai aos cofres, papéis. e rouba quanto neles se acha. Acende um facho, e laça fogo em tudo quanto é papéis.

CONTÍNUO - (a correr) - Ih! Ih! Ih! Parece que já estou ouvindo o tinir das espadas! A voz do canhão troar. Deus meu! Acudi-me! Ai! Que eu morro! (Cai sentado.)Ai! Ai! Estou cansado! Fadigado! Quase... Meu Deus! Quantas mortes vos aprazerá ainda fazer!? Quando vos compadecereis de vossos entes ainda que maus!? Quando se aplacará a vossa ira!? Quando se saciará a vossa vingança! Céus! Que vejo! (Como amparado com as mãos; pondo o corpo de lado; ao ouvir o som da trovoada que em cima se faz.) Ah!...

PORTEIRO - (querendo acudi-lo) - Não é nada, companheiro e amigo! São os primeiros preparativos para a estralada que logo mais terá de ver e ouvir. Tranqüiliza o teu coração. Ainda não desceram raios, fogo, e tudo o mais que se há preparando para grande revolução! Começará de cima; e descerá à terra, como a saraiva em certos dias chuvosos. (Ouve-se nova trovoada; relâmpagos.)

CONTÍNUO - (melhorando pouco; e levantado-se)- Acho-me um pouco mais animado? Parece-me que isto não é comigo. Que dizes? Hem? (batendo no ombro do porteiro.) Que diabo, pois eu nada fiz, o que devo temer!? Sou muito pusilânime.

PORTEIRO - Tu sempre foste um poltrão. De tudo te assustas; de tudo tens medo! Diabo! (Empurra-o) Toma juízo! Deixa-te de...

CONTÍNUO - Ora, ora! E não entendo o que é ter juízo, pelo que vejo, e pelo que ouço. Vivo em minha casa. Trabalho incessantemente em proveito meu, e da minha família. Não ofendo a pessoa alguma! Sucede-me isto! Dizei-me: - O que é ter juízo?

PORTEIRO - Ter juízo é cometer... e... ai!ai! (pondo as mãos no rosto) que também estou ficando doente!

CREDOR (voltando) - Ainda hoje não recebo dinheiro! Prometeu-me um Empregado, e a mais um indivíduo que espera... Como de... (Sai.) Veremos se se pode receber segunda-feira!

UM DOS EMPREGADOS - Por que razão não se há de pagar a este homem!?

OUTRO - Eu sei disso!?

CREDOR -(voltando) - Não tenho melhor resolução a tomar, que a de sentar-me em uma das cadeiras desta repartição e nela esperar até que se me pague.

CERTO INDIVÍDUO - Então, por quê?

CREDOR - Ora, porque!? Porque não dou um passo que não encontre um ,que não

me peça o aluguel da casa. Outro, que não me peça... que não me fale!...

O INDIVÍDUO - Tudo isso é bom!

CREDOR - É ; é; para certos indivíduos; para mim é péssimo! Nunca gostei de ser atacado em casa, quanto mais pelas ruas da cidade! Todos os que compelem a honra, ou aos que desejam viver com seriedade, - a essas cenas, - deveriam em minha opinião ficar condenados a idênticos; ou a outros procederes piores, contrários à sua vontade, ou desejos.

O INDIVÍDUO (com a mão querendo fazer uma cruz) - Resquié d'impace! Resquié d'impassere; Amem! Amem! N'amem! N'amem! (Saindo). E vou m'embora (Sai)

ATO SEGUNDO

Salão em que trabalham diversas secções

CREDOR (entrando) - É a vigésima... não me lembro se quinta ou sétima vez que venho a esta casa haver aluguéis de casa! E talvez ainda hoje saia sem dinheiro! (À parte: ) Mas eles hão de se arranjar! (A um dos empregados, o Contador: )Vossa Senhoria faz-me o obséquio de dizer se está despachando o conteúdo, ou quer que seja, quando a um requerimento que aqui tenho?

CONTADOR - Será... (lendo) Castro... Car... Cirilo, Dilermando!?

CREDOR - Não! É um requerimento meu, assinado - José Joaqim de Qampos Leão, Qorpo-Santo.

CONTADOR - Ah! Esse está no chefe da quarta secção.

CREDOR - Bem, então lá irei.(Dirigindo-se ao chefe: )Faz-me o obséquio de dizer se já está despachado um requerimento que aqui tenho?

CHEFE (apontado) - Fale ali com o Sr. Barbosa.

CREDOR (dirigindo-se a este) - Ainda não encontrou o que procurava a meu respeito?

BARBOSA - Ainda não! Há aqui tantos papéis!

CREDOR - Ora, com efeito! Pois tanto custa ver um ofício da Presidência, ou ver o assentamento que em virtude desse ofício deve existir no livro competente? Isto é, no mesmo em que se acham debitados tais aluguéis!? (Senta-se.)

CHEFE - V. Exa. Não adianta nada em esperar aqui! Antes atrasa o serviço para conseguir o que quer; deixe estar que está se trabalhando!

CREDOR - Eu, nem venho interromper, nem venho adiantar! Mas apenas saber! Parece-

me cousa tão simples; tão fácil...

BARBOSA - São três ofícios da Presidência que o Sr. Inspetor quer ver! Não é um só.

CREDOR - Srs., eu já sei o que hei de fazer, o que os Srs. querem! Voltarei em tempo! (Ao sair, encontra-se com outro.) O OUTRO - Então, não!? (Dá-lhe uma caixa de fósforos.)

CREDOR - Estou doente; e assim fico todas as vezes que venho a esta casa, e dela saio sem dinheiro!

O OUTRO - Então fico eu pelo Sr.! (O Credor sai; e o Outro entra.)

O OUTRO - Muito custa esta casa pagar a quem deve! Faz-se uma dúzia de requerimentos para se obter um despacho! Cada requerimento leva outra dúzia de informações! O despacho definitivo obtém-se por milagre! E a paga ou dinheiro que a alguém se deve - quase à força, ou pela força!

UM DOS EMPREGADOS - (para esse Indivíduo) - Com efeito! O Sr. é audaz de mais!

O OUTRO - Não! Não é por audácia! É apenas referir o que se passa... o que é verídico!

EMPREGADO - Sim; mas nós não temos culpa!

O OUTRO- Nem eu inculpo a alguém! Mas receio, Srs., que os numerosos incômodos que tenho sofrimento, pelo procedimento que esta repartição para comigo - vai tendo; os vexames; as faltas; as privações; e até as enfermidades que tem me causado e numerosos outros transtornos, farão de repente com que se espalhe fogo nestes papéis - e tudo se incendie (Toca uma caixa de fósforos numa mesa; esta incendeia-se; ele a atira para as mesas de um dos lados; faz o mesmo à outra, e atira para outro lado; enquanto os empregados trabalham para apagar o fogo em alguns papéis que começam a incendiar-se, ele sai.)

(Já se vê que há descompostura; repreensões; atropelamento, carreiras em busca d' água; ligeireza para se-apagar; aparecimento de alguns outros empregados, ao ouvirem o grito de fogo, etc. Pode acabar assim; ou com a cena da entrada do Inspector, repreendendo a todos pelo mal que cumprem seus deveres; e terminando por atirarem com livros e penas; atracações e descomposturas etc.)

Por José Joaquim de Campos Leão Qorpo-Santo.

Em Porto Alegre, de 26 a 27 de Maio de 1866.

FIM

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