Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

Rimas, de José Albano


Edição de referência:

JOSÉ ALBANO. Rimas.

Rio de Janeiro: Pongetti, 1948.

RIMAS

DE JOSÉ ALBANO

Edição organizada, revista e prefaciada por MANUEL BANDEIRA

PONGETTI

1948

PREFÁCIO

José de Abreu Albano nasceu em Fortaleza a 12 de abril de 1882. Era filho do negociante José Albano Filho e de D. Maria de Abreu Albano; neto, pelo lado paterno, de José Francisco da Silva Albano e de D. Maria Liberalina da Silva Albano, Barões de Aratanha, e, pelo materno, de Ildefonso José de Abreu e de D. Josefa Zulmira de Abreu.

Foi aluno do Seminário Episcopal de Fortaleza em 1892 e 1893. Neste último ano mandou-o o pai para a Europa, onde completou a sua educação de humanidades na Inglaterra (Stonyhurst College, dos jesuítas, em Blackburn, 1893 e 1894), na Áustria (Colégio Stella Matutina, também dos jesuítas, em Feldkirch, 1894-1897) e na França (Colégio dos Irmãos da Doutrina Cristã, em Dreux, 1897-1898).

Voltando em 1898 para Fortaleza, trabalhou algum tempo na casa comercial do pai, deixando-a para fazer os preparatórios no Liceu do Ceará. Em 1902 embarcou para o Rio com o propósito de estudar Direito. Interrompeu, porém, o curso e durante o ano de 1904 foi professor de Latim no Liceu do Ceará. No ano seguinte veio trabalhar no Ministério das Relações Exteriores. 1906 casou-se com D. Gabriela da Rocha, filha do Coronel Manuel Antônio da Rocha e de D. Rosa Bandeira da Rocha. Cinco filhos teve do matrimônio: José Maria e Teófilo, mortos na infância, Maria José, Maria Justina e Ângelo.

Em 1908 foi o poeta transferido para o nosso consulado geral em Londres, onde serviu até 1912. Nesse ano abandonou o emprego público e viajou pela Europa (Portugal, Espanha, França, Bélgica, Holanda, Alemanha, Hungria, Suíça, Itália, Romênia, Turquia), pela Ásia (Turquia, Palestina) e pela África (Egito), regressando a Londres em 1913.

Adoecendo gravemente em 1914, veio para o Brasil e após três anos de tratamento recuperou a razão abalada. Partiu então do Estado natal para o Rio (1917) e no ano seguinte para Paris, falecendo cinco anos mais tarde, a 11 de julho, em Montauban (Haute Garonne).

Por esses breves dados biográficos, que me foram fornecidos por Ildefonso Albano, irmão do poeta, vê-se que José Albano recebeu sólida educação humanística. Tinha excepcional facilidade para as línguas: era forte no latim e no grego, falava corrente e corretamente o francês, o inglês, o alemão, o italiano e o espanhol, conhecia ainda o holandês, o provençal, o catalão, o galego... Com ser tão versado em idiomas estrangeiros, prezava como ninguém a pureza do vernáculo. Pode-se dizer que a língua portuguesa foi a grande paixão de sua vida. Indignava-se contra os que via encobrindo-a de “ornamentos estranhos”. Queria-a

naquela singeleza primitiva,

naquela verdadeira formosura

que farei que no verso meu reviva.

Fê-la de fato reviver, com todas as graças e castidade quinhentistas, e um tal acento de ingenuidade, que, ao lê-lo, não temos a menor sensação de pastiche, e é como se estivéssemos diante de um autêntico homem do grande século português. “Era um antigo”, disse dele Graça Aranha, "e desprezava a vida moderna. A sua arte inspirava-se nas raízes do espírito oriental mediterrâneo”.

***

Mário de Alencar, que durante anos privou com ele quotidianamente, assim o descreve: “Barbas densas e grandes de rabi, cenho repuxado pelo monóculo retangular, olhos incisivos que olhavam um pouco de alto e de esguelha, davam-lhe do rosto, viril e bem afeiçoado, uma expressão antipática; o molde da roupa, o chapéu luso e desabado, o andar, as maneiras, completavam a estranheza da figura, que a muitos parecia excêntrica. Conversado, sentia-se-lhe o orgulho, gerado por desdém e descontentamento dos homens e das coisas, do meio e do tempo. Criticava a todos e a tudo, mas sem inveja, sem vaidade, apenas porque todos e tudo não lhe respondiam ao gosto e ao ideal. A sua sensibilidade chocava-se com a natureza brasileira: e aborrecia-lhe o presente por falta de perspectiva”.

O retrato está exato. Assim vi eu o poeta umas duas vezes, na Livraria Garnier, de sobrecasaca preta, de uma feita retrucando sem cerimônia a João Ribeiro — a João Ribeiro! —, seu amigo e grande admirador: “Não diga asneiras, João Ribeiro! Não diga asneiras!” O que me deixou estarrecido.

***

Dos últimos anos da vida do poeta em Paris nos fala comovidamente Luís Aníbal Falcão em seu livro Do meu alforje: “Vestindo sempre um terno de veludo marrom, que me dizia ser a última moda de Londres, não dispensava as luvas, que de tão gastas mostravam todas as pontas dos dedos, nem a bengala curva, de falso junco. Um chapéu machucado e já com mais de um furo cobria-lhe a basta cabeleira. O rosto cheio, de linhas puras e finas, de nariz estreito e reto, tinha a sua palidez quase transparente realçada pela larga barba castanha. Assim, na sua majestade inata, na sua beleza desdenhosa, José Albano relembrava algum rei assírio, poderoso e displicente”.

Vivia o poeta ali, manso extravagante, da mesada que lhe enviava a família. Certa noite foi surpreendido por Graça Aranha num dos restaurantes mais caros da Rue Royale, sozinho a uma mesa, diante de uma garrafa de champanhe. À suspeita de uma censura, que aliás não lhe foi formulada, exclamou jovialmente:

— É apenas champanhe. Mas se vivêssemos numa sociedade bem organizada, nós poetas teríamos direito ao néctar!

Com Luís Aníbal Falcão ficava horas esquecidas rememorando “as suas viagens, piedosas peregrinações aos sítios mais ilustres: a Grécia, e Troia, onde fora reler a Ilíada, e Weimar, onde evocara Goethe, a velha Costela, onde refizera o itinerário de Dom Quixote, indo procurar, na obscura aldeia de Toboso, a casa da tão amada Dulcineia”.

* * *

Ocupava-o então a ideia de publicar por subscrição um volume de luxo em que reeditasse as suas obras esgotadas. Não lhe permitiram as circunstâncias pô-la jamais em efeito. Só hoje, vinte e cinco anos depois de sua morte, se vai cumprir aquele seu desejo.

Confiou-me a família de José Albano o honroso e grato mister de preparar esta edição. O material que me foi entregue compunha-se do seguinte: as edições anteriores, feitas em vida do poeta, a saber, Rimas de José Albano — Redondilhas, Oficinas de Fidel Giró, Barcelona 1912, Rimas de José Albano — Alegoria, Oficinas de Fidel Giró, Barcelona 1912, Rimas de José Albano — Canção a Camões e Ode à Língua Portuguesa, Oficinas de Fidel Giró, Barcelona 1912, Sonnets by Joseph Albano with Portuguese prose-translation, Ex Typografia Hodierna Fortalexiæ 1918, Comédia Angélica de José Albano, Tipografia Moderna, Fortaleza 1918, Antologia Poética de José Albano, Ex Typis Assis Bezerra Fortalexiæ 1918; em cópias datilografadas: várias poesias em alemão e uma em português, escritas nos anos de 1895-1897, muitas poesias em português, escritas entre 1900 e 1902, e certo número de sonetos, entre os quais os dez preferidos pelo autor.

***

O valor poético de José Albano era conhecido e foi calorosamente louvado por alguns raros espíritos que tiveram a fortuna de com ele privar: João Ribeiro, Graça Aranha, Tristão da Cunha, Mário de Alencar, Antônio Sales, o Barão de Studart, todos já falecidos. Entre os vivos, contam-se pelos dedos os que lhe conhecem os versos e sobre eles escreveram: Américo Facó, Da Costa e Silva, Múcio Leão, Sílvio Júlio, Luís Aníbal Falcão. Para a generalidade dos seus contemporâneos o poeta admirável da “Ode à Língua Portuguesa” era apenas um excêntrico que fazia versos e os publicava em “plaquettes” requintadas que hoje são raridades bibliográficas. O grande público sempre o ignorou. Para as novas gerações José Albano é apenas um nome.

Assim sendo, pareceu-me que, no momento, editar sem escolha a sua obra completa seria desservir-lhe a memória. Havia que apresentá-lo primeiro no que ele deixou de melhor — os poemas que fez imprimir em vida, os dez sonetos de sua predileção — acrescentando-lhes algumas produções que, a meu juízo, merecem incorporadas desde já ao inestimável pecúlio de uma poesia tão rica de sentimento, tão bela e tão pura de forma.

MANUEL BANDEIRA.

Rio, 8 de setembro de 1948.

 

ÍNDICE

Dedicatória das Rimas

Redondilhas

       Cantiga I

       Esparsa I

       Vilancete

       Cantiga II

       Romance

       Mote de Camões I

       Trovas com eco

       Esparsa II

       Coplas

       Mote próprio

       Trovas

       Mote de Camões II

       Esparsa III

       Cantigas

       Cântico dos Cânticos de Salomão

Canção a Camões

Ode à Língua Portuguesa

Alegoria

Endechas

4 sonnets with Portuguese prose-translation

Comédia Angélica

Triunfo

Dez sonetos escolhidos pelo autor

Outros sonetos

 

DEDICATÓRIA DAS RIMAS

A vós, meu Pai, dedico a rima e verso

Que tanto amáveis, quando eu escrevia,

Em doce riso ou pranto amargo imerso,

Nas horas de tristeza e de alegria;

Guardai os sons que espalho e que disperso

Desta cansada Musa fugidia,

Embora o fruto do meu brando enlevo

Não chegue a valer nunca o que vos devo.

 

REDONDILHAS

 

CANTIGA I

Nestes sombrios recantos,

Nestes saudosos retiros

Desliza um rio de prantos

E corre um ar de suspiros.

Volta

Tenho na alma dois moinhos,

Um é de água, outro é de vento;

Ambos juntos e vizinhos

Estão sempre em movimento.

E giros tantos e tantos

E tantos e tantos giros

Dão ao primeiro os meus prantos

E ao segundo os meus suspiros.

 

ESPARSA I

Há no meu peito uma porta

A bater continuamente;

Dentro a esperança jaz morta

E o coração jaz doente.

Em toda parte onde eu ando,

Ouço este ruído infindo:

São as tristezas entrando

E as alegrias saindo.

 

VILANCETE

Com lembranças de meu bem

Sozinho estive a chorar

Entre o sol-posto e o luar.

Voltas

Na hora mais triste que eu sei

Das horas que vêm e vão,

Saudosamente espalhei

Suspiros do coração;

Pois que me nascia, então,

Uma mágoa singular

Entre o sol-posto e o luar.

E eu dizia: “O sol morreu,

“Não me vê gemendo assim,

“A lua oculta no céu

“Não sente pena de mim.

“O dia teve o seu fim

“E a noite está por chegar

“Entre o sol-posto e o luar.

“Já chorei muito a sofrer

“Saudades longe de ti,

“Porém nunca em desprazer

“Senti o que sinto aqui!”

E destarte conheci

Quanto é mais triste — chorar

Entre o sol-posto e o luar.

 

CANTIGA II

Passarinho lisonjeiro

Cuja voz o espaço invade,

Se vives em liberdade,

Passo a vida em cativeiro.

Voltas

Vejo-te a voar nos ares

Alegre, as asas batendo,

E o motivo não entendo

De tanto me lastimares;

Pois a não ser prisioneiro

Ninguém, a mim, me persuade;

Pela tua liberdade

Não troco o meu cativeiro.

Preferes o teu estado

E o meu destino prefiro;

Voas livremente em giro,

Trazem-me em grilhões atado.

Só no dia derradeiro

Hei de me soltar, pois há-de

Ser-me morte a liberdade

E é-me vida o cativeiro.

Mas se me tens em desprezo,

Ainda assim te perdoo;

Sobe pelos céus em voo

E deixa-me à terra preso.

E isso tudo, eu te requeiro

Que no canto se traslade:

Louva a tua liberdade

Que eu louvo o meu cativeiro!

 

ROMANCE

À margem da correnteza

Sonorosa e cristalina,

Sem cuidado alegremente

A doce avena eu tangia.

E das campinas distantes

E das florestas vizinhas

Me respondiam as aves

E os ecos me respondiam.

Quando pelo verde prado

Graciosamente vinha

Da minha pequena aldeia

A mais formosa menina.

Eram de rosa os seus lábios,

As faces de neve fria,

Os cabelos noite escura

E os olhos luz matutina.

E por onde ela passava,

Namoravam as florinhas;

Beijavam-lhe os pés violetas,

Jasmins lhe à fronte caiam.

E eu, todo maravilhado

Com a aparição divina,

Via o sorriso da boca

E o brando volver da vista.

E à margem da correnteza

Sonorosa e cristalina

Triste e magoadamente

Suspirava e assim dizia:

“Linda e amorosa pastora,

“Donzela amorosa e linda,

“Se há tão pouco aqui vieste,

“Por que já vais de partida?

“A tantos mimos e encantos

“Não há peito que resista,

“Um só dos ternos olhares

“Me prendeu por toda a vida.

“Um só dos sorrisos brandos

“Tornou minha alma cativa

“E agora um só de teus beijos

“Pode curar-me a ferida.

“Ai coitado! Indo-te embora,

“Mal sabes, doce inimiga,

“A ventura que me deixa,

“A saudade que me fica.”

 

MOTE DE CAMÕES I

Um gosto que hoje se alcança,

Amanhã já o não vejo;

Assim nos traz a mudança

De esperança em esperança

E de desejo em desejo.

Glosa

Para chegar a um estado

Contente, mas fugidio,

É preciso ter chorado,

Sofrendo pena e cuidado,

Tristes lágrimas em fio.

E poucas vezes a sorte

Se torna suave e mansa;

Tortura-nos dor tão forte,

Até que lhe a vida corte

Um gosto que hoje se alcança.

Então durante um momento

O peito se nos alivia

E, de suspiros isento,

Se esquece do sofrimento,

Quando lhe vem a alegria;

Mas como não há no mundo

Contentamento sobejo,

Eu se de prazer profundo

Hoje a alma ditosa inundo,

Amanhã já o não vejo.

Tudo à morte anda sujeito,

Tudo se acaba e se passa

E deste ou daquele jeito,

Depressa o gosto é desfeito

E devagar a desgraça.

Nasce a noite, nasce a aurora,

O tempo voa e não cansa;

Um canta e ri-se, outro chora,

E desta existência em fora

Assim nos traz a mudança.

Já foste alegre e hoje és triste,

Coração brando e sincero,

Mas se nunca assim te viste,

Vê como o viver consiste

No esperar e como espero.

Destarte a dor que se sente,

Um pouco se acalma e amansa

E posto que eu me atormente,

Ando enfim continuamente

De esperança em esperança.

E como quem entre espinhos

Vai a colher uma rosa,

Busco entre danos mesquinhos,

Anelando mil carinhos,

Gozo que nunca se goza.

E quando a chorar me ponho

O destino malfazejo,

Amor sereno e risonho

Me leva de sonho em sonho

E de desejo em desejo.

 

TROVAS COM ECO

Debaixo desta alta fronde

Ninguém me ouvirá gemer

Co’a tristeza e desprazer

Que dentro da alma se esconde.

Eco

Onde?

Chorai, olhos meus, chorai,

Que eu não abafo o que sinto;

No coração quase extinto

Quanto tormento me vai!

Eco

Ai!

Eco saudoso e brando,

Que tens compaixão de mim,

Se sabes gemer assim,

Andas acaso penando?

Eco

Ando.

Dura sorte o Céu te deu,

Mas eu sou mais desgraçado,

Pois quem por ordem do fado

Tem pesar igual ao meu?

Eco

Eu.

 

ESPARSA II

Colhes rosas no jardim

E desfolhas malmequeres.

Porém se bem me quiseres,

Olha e tem pena de mim:

Quando em mim os olhos pões,

Vês que em tormentos insanos

Ando a colher desenganos

E a desfolhar ilusões.

 

COPLAS

Que me roubou o amor cego?

O sossego.

E esta vida triste e escura?

A ventura.

E o fado cruel e iroso?

O meu gozo.

Destarte vivo entre a gente

Magoado e saudoso,

Desque perdi juntamente

Sossego, ventura e gozo.

Comigo os dias quem passa?

A desgraça.

A chorar quem me condena?

Uma pena.

E quem me traz desmaiado?

Um cuidado.

Destarte, em queixas desfeito,

Contra o meu destino brado,

Trazendo dentro do peito

Desgraça, pena e cuidado.

Onde está o céu risonho?

No meu sonho.

Onde o gosto benfazejo?

No desejo.

Onde a paz serena e mansa?

Na esperança.

Destarte, já não maldigo

O bem que se não alcança,

Pois tenho ainda comigo

Sonho, desejo e esperança.

 

MOTE PRÓPRIO

Olha para os olhos meus,

Que os meus olhos te dirão

As penas do coração.

Glosa

Tu me não ouves gemer

Em tortura e desprazer,

Mas há tristezas mortais

Neste meu peito e jamais

Deixarei de padecer.

Os sonhos voando aos céus,

Já me disseram adeus —

E a escura mágoa sem fim,

Se ainda a não viste em mim,

Olha para os olhos meus.

Cuidados, tormentos vis

Que humana língua não diz,

Desassossego sem paz,

Tudo isto neles verás

E quanto sou infeliz.

Hás de conhecer então

Esta dura condição;

Talvez chegues a chorar,

Vendo o profundo pesar

Que os meus olhos te dirão.

A dor que há dentro de nós,

Às vezes é tão atroz,

Que no suplício cruel

A boca se enche de fel

E a garganta perde a voz.

Quero, pois, soltar em vão

Suspiros que na alma estão,

Porém se falar não sei,

Nos olhos te mostrarei

As penas do coração.

 

TROVAS

Tudo que eu tinha, perdi

E já não sei o que faça,

Se hei de viver na desgraça

Longe, tão longe de ti.

A esperança já morreu,

O Amor é quase acabado,

Do sonho do meu passado

Não me ficou senão eu.

Eu só, porque o meu pesar

Já me deixou livre e isento

E perdi co’o sofrimento

O consolo de chorar.

E às vezes lembrando estou

O meu primeiro desejo

Que num dia malfazejo,

Abrindo as asas, voou.

E breve tempo depois

Chorei como ninguém chora,

Quando vós fostes embora,

Ilusões que já não sois.

De vós me eu não queixo enfim,

Nem de Amor, nem da Ventura,

Senão da Tristeza escura

Que eu amava mais que a mim.

E em vão quero os olhos pôr

No que nunca mais se alcança;

Muitos perdem a esperança,

Mas eu só perdi a dor.

Eu já me não queixarei,

Porém se tu andas triste,

Se tu nunca mais te riste,

Ai que eu nunca mais chorei.

 

MOTE DE CAMÕES II

Sôbolos rios que vão

Por Babilônia, me achei,

Onde sentado chorei

As lembranças de Sião

E quanto nela passei.

Glosa

Voa do meu peito um ai

Como ninguém suspirou;

Saudoso deixando estou

Na água que passando vai,

Choro que nunca passou.

E penso naquele bem

Que já tive em minha mão

E triste recordação

De alegres memórias vem

Sôbolos rios que vão.

Subi à montanha azul

E desci ao verde val,

Co’uma mágoa sem igual

A buscar de norte a sul

Onde não houvesse mal;

A dura estrela que influi

Na minha vida, não sei,

Pois quando me desviei

E quando perdido fui,

Por Babilônia me achei.

E ali meu destino atroz

Me tornou tão infeliz

E como ficar não quis,

Vim aqui onde ergo a voz

Que os meus tormentos rediz.

Outro caminho hei de andar

Diferente do que andei

E daqui me partirei,

Bendizendo este lugar

Onde sentado chorei.

E aos pés do Senhor meu Deus

Suba este desejo e voe,

Implorando me perdoe

Os pecados e erros meus

E a culpa que minha foi.

E saudades sem fim

Dentro da alma viverão;

Apesar desta aflição,

Nunca me deixem, a mim,

As lembranças de Sião.

E eu ponho todo o querer

Onde os olhos quero pôr,

Quando enfim chegado for

O dia em que eu possa ver

A pátria do eterno Amor.

E no Céu, longe daqui,

Sujeito à divina lei,

Da vida me esquecerei,

De quanto nela sofri

E quanto nela passei.

 

ESPARSA III

Amor me faz esperar,

Esperança me faz rir,

O riso me faz chorar,

O choro me faz sentir;

O sentir me faz sofrer,

O sofrer me causa dor,

A dor me dá um prazer

E o prazer cantos d’amor.

 

CANTIGAS

I

Já quis tentar formas novas,

Foi mais ou menos em vão:

Hoje nestas velhas trovas

Falará meu coração.

II

Tudo que sinto e padeço

Posso descrever assim:

O prazer não tem começo

E a tristeza não tem fim.

III

Trago há muito no sentido,

De que vem maior cuidado?

Será dum bem já perdido

Ou dum bem nunca alcançado?

IV

Dá-me essa voz tão amena

Para cantar este enlevo,

Ave que me deste a pena

Com que os meus versos escrevo.

V

Tudo já me persuade

Que a ti me não hei de opor:

Longe matas de saudade

E perto matas de Amor.

VI

Anda a violeta chorosa

E a rosa alegre e faceta,

Só porque eu te chamei rosa

E não te chamei violeta.

VII

As estrelas no alto abrigo,

Mais alegre fico a vê-las

Todas as vezes que digo

Que os teus olhos são estrelas.

VIII

Das flores mais preciosas

O doce molho é composto:

Não trago jasmins nem rosas,

Porque já os tens no rosto.

IX

Quanto é forte o meu desejo

Nesta afeição insensata:

Morro, porque te não vejo

E sei que ver-te me mata.

X

A pensar me às vezes ponho

E não posso compreender

Por que sempre acaba o sonho,

Quando começa o prazer.

XI

Guardo penas inimigas

Nestas cantigas amenas

E quando canto as cantigas,

O coração sente as penas.

XII

Há no coração sombrio

Um eco brando e sonoro

Que adormece quando rio

E desperta quando choro.

XIII

Disto enfim já não duvido,

No mundo o maior cuidado

Vem do bem que foi perdido

Antes de ser alcançado.

XIV

Ó coração, quando choras,

Bate com arquejos lentos,

Marca o tempo, não por horas,

Mas sim por meus sofrimentos.

 

CÂNTICO DOS CÂNTICOS DE SALOMÃO (Paráfrase)

Levanta-te, ó minha amada,

Flor suave e não severa,

Vem, que a chuva é já passada.

Vem, que chega a primavera.

Esposa

Dá-me em lábios encarnados

O néctar delicioso,

Dá-me carinhos e agrados,

Que eu morra de puro gozo.

O amor me fere e tortura,

Quando de ti me avizinho;

E os beijos têm mais doçura

Do que o mais gostoso vinho.

O teu nome é tão suave,

Quando alguém o pronuncia,

Como o queixume duma ave,

Logo que aparece o dia.

E quando o rosto revelas,

Onde a beleza se pinta,

Sentem as gentis donzelas

Uma flama nunca extinta.

Vem e leva-me contigo

A algum ditoso recanto

Onde te declaro e digo

O afeto sincero e santo,

Onde uma agradável aura

Todo o espaço banha e inunda,

Onde o prazer se restaura

Em paz quieta e profunda.

Sou fascinante e formosa,

Encantadora e morena;

A minha alma geme e goza,

O coração chora e pena.

Vou contigo aonde fores

Por estes campos estranhos

Onde estão os meus amores,

Onde estão os teus rebanhos.

Esposo

Ó graciosa pastora

Que às mais belas te assemelhas,

Pelas veigas que o sol doura,

Guia as tímidas ovelhas.

Vem, segue as minhas pisadas

Pelos prados lisonjeiros,

Entre as cecéns orvalhadas

Apascenta os teus cordeiros.

A tua face é tão linda

Que vence o jasmim mais puro,

E nela nascem ainda

As flores que mais procuro.

O teu pescoço é tão raro,

E, posto que tu me escondas,

Dele, quando em ti me amparo,

Desliza o perfume em ondas.

Esposa

Colho o ramo mais viçoso,

De ricas pérolas cheio,

E desfaleço de gozo,

Quando o aconchego ao meu seio.

Tu és como um cacho d’uvas

De fragrância amena e vaga;

Choram as rosas viúvas,

Quando o amor nos embriaga.

Esposo

Tu és linda como um sonho,

Um tesouro e maravilha;

E no teu rosto risonho

O maior encanto brilha.

Esposa

Por ti mil suspiros deito,

És formoso, ó meu amado;

Olha para o nosso leito,

De flores alcatifado.

Eu sou a rosa dos montes,

Sou dos vales a açucena;

E quero que tu me contes,

Se os meus olhos causam pena.

Esposo

Amada, aos teus pés me arrasto

Nos meus tormentos mesquinhos;

Tu és como o lírio casto

Que floresce entre os espinhos.

Esposa

Tu és como a laranjeira

Que oferece os pomos d’ouro,

Deito-me à sombra fagueira

Em repouso duradouro.

Dá-me flores, dá-me frutos

Que o orvalho celeste molhe;

Dos meus lábios nunca enxutos

Um favo de beijos colhe.

Esposo

Que tudo a amor se conforme:

Vento brando e rio manso,

Da minha amada que dorme,

Não perturbeis o descanso.

Esposa

Ouço a voz do meu esposo:

Oh que doce melodia,

Oh que som mais deleitoso

Que voz d’ave fugidia!

Esposo

Levanta-te, ó minha amada,

Flor suave e não severa,

Vem que a chuva é já passada,

Vem que chega a primavera.

Olha, o céu manda que a veiga

Novos adornos adquira;

Ouve, a rola terna e meiga

Saudosamente suspira.

O figueiral benfazejo

Brota e floresce de novo,

Mas a vinha que ali vejo,

Dá os frutos que mais louvo.

Levanta-te, ó minha amiga,

Vem, escuta o meu reclamo:

Fala e a tua voz me diga,

Se amas tanto como eu amo.

Esposa

Ah como é forte este laço

No nosso prazer imenso,

Quando o meu amado abraço,

Quando toda lhe pertenço.

Desde a aurora que nos une,

Até que o dia decline

Nem sol nem lua importune

O amor que se não define.

Busquei de noite no leito

O querido da minha alma,

Mas o meu sonho é desfeito

E o coração não se acalma.

Foi-se o engano que não dura,

Foi-se o tempo desejado:

Onde estás, minha ventura?

Onde estás, meu doce amado?

Esposo

Quem é esta que vem perto,

Acompanhada dos gozos,

Subindo pelo deserto

Entre aromas deleitosos?

Se és tu, esposa querida,

Não venhas com passo tardo;

Vem voando, ó minha vida,

Há já tanto que te aguardo.

Oh como és formosa e bela

Co’esse olhar modesto e brando,

A cuja luz se revela

O cabelo rutilando:

É de marfim cada dente,

Cada lábio é d’escarlate:

Fala-me suavemente,

Que o teu gemido me mate.

O nácar da tua face

Vence a romã rubicunda,

Quando um desejo fugace

Alma e coração inunda.

No teu pescoço desponte

Fragrância das mais amenas,

Pois que o teu seio é um monte

Todo cheio d’açucenas.

Desde a clara madrugada

Até que chegue o sol-posto,

Terei a paz desejada

Ao resplendor do teu rosto.

És a minha flor do loto,

És o meu suave encanto

E nenhuma mancha noto

No teu corpo casto e santo.

Vem, amada esposa minha,

Formosa entre as mais formosas,

Já o sonho se avizinha,

Coroemo-nos de rosas.

Com um dos meigos olhares

A que peito algum resiste,

Para mais me torturares,

O meu coração feriste.

Ah como é lindo o teu seio

Bem como espumoso lago

Onde, d’alegria cheio,

Longamente me embriago.

Ah como o teu lábio é doce,

Quando o néctar se distila;

E essa voz que aqui me trouxe,

Ditoso quem pode ouvi-la.

Tu és o jardim fechado

Dos cravos mais escolhidos

Que derramam puro agrado

No aroma dos teus vestidos.

Todo eflúvio brando e ardente

No tenro peito resumes:

Sopre o vento levemente

E corram os teus perfumes.

Esposa

Vem, amado da minha alma,

Vem ao meu jardim de rosas,

Onde em paz serena e calma

Mil castos prazeres gozas.

Esposo

Dá-me o mel e dá-me o vinho

No retiro quedo e manso;

Venho sôfrego e sozinho

Procurar o meu descanso.

Esposa

Cheia d’amor e ternura,

Eu durmo e o coração vela:

Ouço uma voz que murmura

Tão melodiosa e bela.

Esposo

Abre-me, ó mimosa amiga,

Ó meu tesouro supremo;

Não desejas que eu te diga

Quanto por ti choro e gemo?

Vê como o orvalho celeste

Me cobriu os olhos lassos;

Esse amor se manifeste,

Querida, vem aos meus braços.

Esposa

Ouço o teu saudoso pranto

Que a minha alma desconforta;

Amado, já me levanto

Para abrir-te a minha porta.

Onde estás, ó meu querido?

Nenhuma voz me responde;

Ouvi um longo gemido,

Porém veio não sei donde.

Fico com tristeza e pena,

Mas aonde quer que fores,

Ouve a queixa branda e amena,

Que estou morrendo d’amores.

Meu amado, quanto és lindo

De cor branca e rubicunda

E é de ti que vem surgindo

A alegria que me inunda.

Os teus escuros cabelos

Dão um perfume fugace,

Os teus olhos são mais belos

Do que o sol, quando renasce.

As faces são uns canteiros,

Onde admiro mil encantos;

Os teus lábios lisonjeiros

São lírios roxos e santos.

As tuas mãos estão cheias

De carícias e d’afagos,

Os teus braços são cadeias

Que prendem mil sonhos vagos.

Onde estás, ó doce esposo?

Sou feliz, quando te vejo,

Quando no enlevo amoroso

Ressurge o doce desejo.

Com o peito magoado,

Penso em ti, se estás ausente;

Eu sou tua, ó meu amado,

Tu és meu eternamente.

Esposo

Ó querida minha, aplaca

As tuas suaves iras;

A alma se me torna fraca,

Quando de longe suspiras.

Os teus olhos tentadores

Destes meus tristes afasta;

Que eu desfaleço d’amores,

Doce amiga e esposa casta.

O teu cabelo tão leve

A lisa fronte descubra:

Porém nunca se descreve

Essa face linda e rubra.

Quando a manhã se levanta

Ou quando a tarde se deita,

Sei que tu somente és santa,

Maravilhosa e perfeita.

Quem é que voa e flutua

Destes espaços em fora,

Mais formosa do que a lua

E mais bela do que a aurora?

Volta, ó Sulamítis meiga,

Volta que eu te adoro e te amo

Renasce a romã na veiga

E o jasmim dá novo ramo.

Os teus passos são airosos,

É suave o teu meneio:

Caríssima, dá-me gozos,

Que enlouqueço e devaneio.

Vejo os teus seios vizinhos

E em êxtase me desfaço:

São dois gêmeos cordeirinhos,

Atados num mesmo laço.

Vejo o teu pescoço e admiro

Quanto aroma dele mana;

Vão os desejos em giro

A essa torre soberana.

Os teus olhos são dois rios

Donde corre o choro manso;

Os pensamentos sombrios

A eles vão buscar descanso.

Ah como és serena e pura,

Gentil, graciosa e calma;

A tua linda estatura

Se assemelha à duma palma.

Vejo em ti o meu repouso

Que em outra parte não acho;

Seios que beijar não ouso,

Parecem uvas em cacho.

Co’os risos da tua boca,

Co’os perfumes do teu peito

Vem, faze que em ânsia louca

Eu viva sempre desfeito.

Dá-me tristeza e alegria,

Que eu peço amparo e socorro;

O teu amor me inebria

E por ti desmaio e morro.

Esposa

Vem, amado meu, andemos

Por estes campos risonhos

Com mil prazeres supremos

E mil enganosos sonhos.

Entre lírios e boninas

A ventura nos espera;

Colhe as rosas mais divinas

Que nos traz a primavera.

Quem me dera ser ditosa,

Que nos meus braços te prenda;

O amor quanto mais se goza,

Tanto mais se recomenda.

Vem comigo à minha casa

Que eu te dou um vinho novo;

E aos céus benignos apraza

Que dure a afeição que eu louvo.

Esposo

Descansa, querida minha,

Casta açucena do vale,

Das flores todas rainha,

Que outra não há que te iguale.

Vê, que aos teus pés me prosterno

Neste chão macio e liso:

Seja o nosso amor eterno

Nos jardins do Paraíso.

Esposa

Trago o coração atento

Nos ais vagos e velozes,

Cessa todo sofrimento

Ao som d’amorosas vozes.

Ah como és formoso e lindo,

Quando docemente assomas:

Vem, amado, vem subindo

Pelo monte dos aromas.

 

CANÇÃO A CAMÕES

Co’uma espada de prata e lira de ouro,

Claríssimo Camões, me apareceste

No cimo do Parnaso alcantilado;

E eu, posto num enlevo duradouro,

Gravei na mente essa visão celeste

Que em numeroso verso aqui traslado;

Estavam ao teu lado

Duas Musas de cândido semblante,

Calíope que sopra na canora

Trombeta retumbante

Cujo clangor os ecos apavora;

E Euterpe que da rude e agreste avena

Tira uma melodia pura e amena.

Esta afina o instrumento donde parte

Um longo e suavíssimo gemido

Cuja tristeza eu também sinto e entendo,

E de improviso Amor vem a esta parte

E traz nas mãos teu coração ferido

Donde vermelhas gotas vão correndo.

Com ele vem o horrendo

E escuro fado que jamais se cansa

De atormentar um generoso peito,

Alevantando a lança

Que atravessou teu coração desfeito —

E enquanto lentamente vão passando,

Ri-se o Fado cruel, geme Amor brando.

Emudecendo a flauta, eis se derrama

O som da horrível tuba que o repouso

Subitamente rompe do ar vizinho;

E eu vejo o Capitão Vasco da Gama,

Aquele grão Lusíada famoso

Que descobriu das Índias o caminho;

E (ó destino mesquinho!)

Vejo a mísera Inês tão meiga e amante,

Longe de Pedro, saudosa dele,

Lamentar-se diante

Del-rei que ao duro sacrifício a impele:

De Vasco o Tejo está lembrado ainda,

Chora o Mondego a Inês lânguida e linda.

Eis se alça Adamastor fero e iracundo,

Como uma nuvem negra aparecendo

À frota, do naufrágio ameaçada.

Treme nos fundamentos todo o mundo,

Quando ele em tom altíssimo e tremendo

Blasfema, grita, brama, ruge e brada.

Eis surge a sublimada

Vênus superna que nasceu da escuma;

De flores se matizam as campinas,

A aragem se perfuma

E serenam as ondas neptuninas:

Protege a deusa o peito lusitano,

Conquistador da terra e do oceano.

Cessa o clangor e eu vejo ainda em sonho

Descer do empíreo angélica figura,

De ouro tingindo as nuvens e de rosa.

E no semblante plácido e risonho

Leio a felicidade branda e pura

De quem muito sofreu e agora goza:

É Natércia formosa,

Ó bom Luís, exemplo de amadores,

É tua alma gentil, encanto e vida,

Amor de teus Amores,

Sempre adorada e nunca possuída,

Ei-la que vem da luminosa parte

Para de verdes mirtos coroar-te.

Da baixa terra também sobe a ver-te

Outra figura, envolta em negro luto,

Que no passado mais ditosa viste.

Do longo caminhar cansada e inerte,

De lágrimas o rosto nunca enxuto,

Suspira e nenhum peito lhe resiste:

É Lusitânia triste,

É tua ingrata mãe que ânsia secreta

De saudades sente dentro da alma,

Mas vendo-te, ó Poeta,

A mágoa se lhe um pouco abranda e acalma.

E para que o remorso menos doa,

De imarcescíveis louros te coroa.

Canção, voa ao Parnaso

E ao Mestre amado meu que lá de cima

Me ouve cantar em venturoso enlevo,

Entrega o verso e rima

Que em tributo ofereço do que devo.

E se durares qual lhe dura o nome,

Fico que nunca o tempo te consome.

 

ODE À LÍNGUA PORTUGUESA

Língua minha, se agora a voz levanto,

Pedindo à Musa que me inspire e ajude,

Somente soe em teu louvor o canto,

Inda que a lira seja fraca e rude;

E tudo quanto sinto na alma, e digo,

Já que na alma não cabe,

Contigo viva e acabe — só contigo.

Língua minha dulcíssona e canora,

Em que mel com aroma se mistura,

Agora leda, lastimosa agora,

Mas não isenta nunca de brandura;

Língua em que o afeto santo influi e ensina

E derrama e prepara

A música mais rara — e mais divina.

Língua na qual eu suspirei primeiro,

Confessando que amava, às auras mansas

E agora choro, à sombra do salgueiro,

Os meus passados sonhos e esperanças;

Na qual me fez ditoso em tempo breve

Aquela doce fala

Que outra nenhuma iguala — nem descreve.

Língua em que o meu amor falou d’amores,

Em que d’amores sempre andei cantando,

Em que modulo os mais encantadores

E deleitosos sons de quando em quando

E espalho acentos inda nunca ouvidos

De mágoas e de gozos,

Queixumes amorosos — e gemidos.

Sempre e sempre te eu veja meiga e pura

Naquela singeleza primitiva,

Naquela verdadeira formosura

Que farei que no verso meu reviva.

E, se apenas um pouco se revela

Desse encanto jucundo,

Há de mostrar ao mundo — quanto és bela.

Outros andam o teu sublime aspeto

D’ornamentos estranhos encobrindo

Sem saber o que tens de mais secreto,

De mais maravilhoso e de mais lindo:

Em ti já não se nota o mesmo agrado

E eu não te reconheço,

Se o teu valor e preço — é rejeitado.

Quanta e quamanha dor me surge e nasce

De nunca ouvir aquele antigo estilo,

Mas eu fiz que ele aqui se renovasse,

Para que o mundo enfim pudesse ouvi-lo.

E com todo o poder d’engenho e d’arte

Foi sempre o meu desejo

Ver-te qual te ora vejo — e celebrar-te.

Ah! como assim me enlevas e me encantas,

Ora chorando e rindo, ora gemendo;

E, se te outros ofendem vezes tantas,

Embora solitário, eu te defendo:

Eu te defenderei sem ter descanso

E em luta não inglória

Tu verás que a vitória — e a palma alcanço.

E em pago disto peço que me imprimas

Maior ternura na alma e não ma agraves;

Dá-me versos dulcíssimos e rimas

Eternas, peregrinos e suaves:

Dá-me uma voz melodiosa e amena,

Para que noite e dia

Diga a minha alegria — e a minha pena.

E não quero um som alto e retumbante

Para cantar d’amor ao mundo atento,

Pois não há língua que d’amor não cante,

Mas nenhuma traduz o meu tormento;

Nenhuma se conhece que traslade,

Afora tu somente,

Do coração doente — a saudade.

 

ALEGORIA

Eu que tangia na primeira idade

A avena tão suave e tão sonora,

Cantando agora o Amor que o peito invade,

Agora a pena que no peito mora,

Quero que pelo mundo se traslade

Nova matéria não cantada outrora

E aos espaços etéreos se levante

Alto clangor de tuba retumbante.

Calem-se os meus suspiros saudosos,

Os meus brandos gemidos magoados,

As minhas esperanças e meus gozos,

As minhas ilusões e meus cuidados;

Que em lugar de queixumes amorosos

Espalho agora sons nunca escutados

E que seguir os passos determino

Do grande Vate Grego e do Latino.

Ó Musa de Camões, tu que venceste

O difícil caminho árduo e penoso,

De novo o teu poder se manifeste,

Pois sem auxílio a voz erguer não ouso;

Dá-me a imortal inspiração celeste

E o verso mais sublime e sonoroso,

Para que este meu canto se acrescente

Ao dessa tua cítara eminente.

Olha que eu também canto Lusitanos,

Se não falece o fogo lá de cima,

Segundos Argonautas sobre-humanos

Que tu já celebraste em verso e rima:

Direi como venceram oceanos

E conquistaram glória que os sublima,

Chegando àquela parte desta esfera

Que é pátria da perpétua Primavera.

Já do áureo Tejo vinham navegando

As velas entre as vagas cristalinas,

Ao leve sopro dum suspiro brando

Que de longe enviavam as campinas;

Nos tristes corações iam entrando

Saudades suaves e ferinas,

Mas à frente voavam esperanças

Sobre as múrmuras ondas e águas mansas.

Hélios descia do alto firmamento

E pálida Selene ressurgia,

Placidamente respirava o vento,

Beijando a argêntea espuma clara e fria;

Em lânguido repouso calmo e lento

O Luso Capitão adormecia,

Quando lhe apareceu, ledo e risonho,

Hermes que lhe falou destarte em sonho:

“Ó Lusíada ilustre, que em demanda

“Vais duma terra oriental remota,

“Dos deuses o Concílio ordena e manda

“Que siga um novo rumo a tua frota:

“Há de levar-te aura serena e branda

“A região longínqua, ainda ignota,

“E quanto o Céu determinou, pretendo,

“Mensageiro do Céu, ir descrevendo.

“No Olímpico Palácio, rodeado

“De áureas nuvens formando eterno muro,

“Mora o Padre imortal, c’a Esposa ao lado,

“Em rico sólio reluzente e puro;

“Ali, quando o Concílio é convocado

“A decidir os casos do futuro,

“O onipotente Zeus, co’a gentil Hera,

“Dos outros numes a chegada espera.

“O deus da Poesia lindo e louro

“Faz ressoar a cítara suave,

“As nove Musas, modulando em coro,

“Erguem a branda voz aguda e grave;

“As Horas vão abrindo as portas de ouro

“De que trazem e guardam sempre a chave

“E copas de uva Hebe oferece, enquanto

“Os deuses vêm chegando ao monte santo:

“Palas Atena bela, sábia e forte,

“Artêmis casta com a seta e aljava,

“Hades, senhor do Tártaro e da Morte,

“E Poseidon que as praias banha e lava;

“Ares que faz que o som terrível corte

“O ambiente onde a Paz dantes reinava,

“Dioniso em saltos lépidos e logo

“Pesadamente atrás o deus do fogo.

“Eis reunida a excelsa companhia

“No níveo cume do cerúleo monte,

“Donde o Padre imortal ora me envia

“Para que tudo enfim te diga e conte:

“Já vai cessando a mansa melodia

“Das que beberam da Parnásia fonte

“E quanto ouvi no Empíreo alto e infinito,

“Aqui te rememoro e aqui repito.

“Primeiro Poseidon se alça e levanta,

“Pedindo para vós cruel castigo,

“Pois que nunca se viu audácia tanta

“Nem no moderno tempo nem no antigo;

“Diz que não quer que se perturbe a santa

“Paz do seu vasto reino e calmo abrigo

“Nem o repouso da húmida morada,

“A Tritões e Oceânides sagrada.

“Já se escutam sussurros e clamores

“Contra os de Luso, a tal empresa afeitos,

“Quando aparece a deusa dos Amores

“Que traz em laços corações e peitos;

“E olhando aqueles dons encantadores,

"Os numes imortais ficam sujeitos

“E o próprio Zeus se espanta e maravilha

“Da formosura que lhe mostra a filha.

“Como abelhas em voo diligente

“Saem da colmeia, cheia d’áureos favos,

“De madrugada, quando no Oriente

“Eos derrama os seus cabelos flavos:

“Pousam aqui e ali suavemente

“Em brancas rosas e vermelhos cravos:

“Destarte beijos vão subindo em torno

“Ao colo ebúrneo, palpitante e morno.

“E como pombos, revoando à tarde,

“Quando a noite começa e o dia finda,

“Descem co’a luz do último raio que arde,

“Pela celeste altura etérea e linda;

“E o doce ninho que os proteja e guarde,

“Este acha logo e aquele busca ainda:

“Assim de toda parte ao seio brando

“Suspiros amorosos vão chegando.

“E qual o caminhante no deserto

“Que ouve os múrmuros sons dalguma flauta,

“Ou qual o pescador que leva perto

“Dos cantos da sereia a barca incauta;

“Parece o mundo um paraíso aberto

“Ao viajor cansado e ao triste nauta:

“Destarte Citereia nos fascina,

“Erguendo a voz em súplica divina:

“Ó grande Padre Zeus, é bem notório

“O amor que tenho ao peito Lusitano

“Que ousadamente dobra o promontório,

“Sem medo a tempestade, morte ou dano;

“E agora quero, em prêmio não inglório

“Do seu atrevimento mais que humano,

“Levá-los longe da estação severa,

“À pátria da perpétua Primavera.

“Já fiz surgir uma ilha nunca vista

“Em meio do oceano, amena e doce,

“Onde o audaz coração, dado à conquista,

“Pelos amores conquistado fosse;

“E aí, longe de tudo que contrista,

“Guiei as invencíveis naus, e trouxe,

“Onde se repousassem das fadigas

“De mares e de terras inimigas.

“Mas, se lhes dei lugar tão benfazejo,

“Para que enfim um pouco descansassem,

“Mais merecem, segundo entendo e vejo,

“E peço que sem guerra avante passem;

“Pois agora é meu único desejo

“Que vivam onde eternos gozos nascem,

“Em deleitosos sonhos duradouros

“Mirtos verdes juntando aos verdes louros.

“E a ti, sublime Padre Zeus, entrego

“O futuro da minha gente amada,

“Faze que pelo tormentoso pego

“Mansamente navegue a Lusa armada.

“E se alguém com furor maligno e cego

“Contra os nautas levanta a voz e brada,

“Não lhe creias, pois tudo te assegura

“Que é fruto só de inveja baixa e escura”.

“Cala-se, erguendo os olhos suplicantes

“Que vencem qualquer peito adamantino;

“E o Padre Zeus, cuidando alguns instantes,

“Pelos ares derrama o som divino:

“Moradores do Céu, altos, possantes,

“Que regeis dos humanos o destino,

“Ouvi-me decidir a incerta sorte

“Da geração de Luso fera e forte.

“Estes navegadores que assim vemos

“No lago undoso abrir novo caminho,

“Correm perigos ásperos e extremos

“Longe da pátria e do materno ninho.

“É preciso que nós consideremos

“Que em trabalho duríssimo e mesquinho

“Eles a escura vida transitória

“Tornam em fonte de perpétua glória.

“E um descanso esta gente bem merece

“Após tantos tormentos e pesares,

“De Poseidon o vão lamento cesse

“E em paz sulquem as naus os vastos mares

“Que é bem razão, segundo me parece,

“Que em prêmio de seus feitos singulares

“A frota dos Lusíadas conquiste

“Um doce galardão na pena triste.”

“Destarte fala o Padre soberano

“Que a tudo manda e ordena sabiamente,

“Parte-se Poseidon irado e insano,

“E a lânguida Afrodite ri contente;

“Vai, pois, ilustre Capitão, sem dano,

“Que Zeus aos Lusos navegar consente

“Aonde a Primavera enternecida

“Há muito que te chama e te convida.

“Vai pelo mar azul à verde terra

“Tão fértil, tão fecunda e tão formosa,

“Em cujo seio a Natureza encerra

“Tudo que o coração deseja e goza;

“Em cujo bosque, vale, prado e serra

“Corre um perfume d’açucena e rosa,

“Em cujas grutas frescas e quietas

“Hão de morar as Musas e os poetas.”

Disse e qual andorinha que em procura

Voa d’ameno e deleitoso clima,

Vendo uma branca vela na água pura,

Dos céus desce e lhe vem pousar em cima

Mas em seguida pela etérea altura

Co’asa mais leve a revoar se anima:

Destarte subiu lépido e ligeiro

Pelo Caminho Lácteo o Mensageiro.

Já longo espaço a armada tem vogado

Entre o alto firmamento e o mar profundo,

Já sente o Capitão algum cuidado

Por não haver chegado ao novo mundo,

Quando no empíreo claro e constelado

Surge o esplendor puríssimo e jucundo

Da Estrela Matutina luzidia,

Mostrando terra ao longe e perto o dia.

As naus alegremente vão cortando

O cerúleo cristal da água tranquila,

A aura murmura co’um gemido brando

Que apenas o oceano pode ouvi-la;

Selene inda no céu está brilhando,

Hélios lá no horizonte já rutila

E nas vagas a um tempo se retrata

Ouro dum lado, e do outro lado prata.

Eos, deusa gentil de róseos dedos,

Que os etéreos espaços ilumina,

Os bosques atravessa ainda quedos,

Doce orvalho espargindo na campina;

E por sobre os espessos arvoredos,

Envolta em nuvem áurea e purpurina,

Rompe os serenos ares apressada

Para avisar dos Lusos a chegada.

Em toda parte onde ela surge e passa

Célere, sem descanso nem demora,

Sente-se uma fragrância não escassa,

Escuta-se uma música sonora;

E mandando que a noite se desfaça

E que o pesado sono voe embora,

Há na terra que ledo aspecto assume,

Ondas de som, de luz e de perfume.

Por um declive saudoso rio

Entre as penhas desliza lentamente,

Formando um lago claro e luzidio

No qual se espelha a selva florescente;

Vê-se ali um vergel verde e sombrio,

Banhado pela límpida corrente,

Onde colher se podem, sem embargos,

Doces laranjas e limões amargos.

E entre mil retorcidas trepadeiras,

Nos duros troncos procurando encosto,

Nascem romãs, à vista prazenteiras,

E roxos figos d’esquisito gosto;

Em cachos tintos pendem das parreiras

Os frutos de que o néctar é composto,

Enquanto as auras plácidas e calmas

Meneiam mole e mansamente as palmas.

De ramo em ramo voam beija-flores.

Abrindo as refulgentes e áureas penas,

Borboletas azuis, multicolores,

Sobem silenciosas e serenas;

Murmura em torno música d’Amores

Em contínuas e doces cantilenas,

Derramando nos ares o segredo

Da triste rola e do canário ledo.

Passa o pavão cuja beleza suma

Pincel não pinta e pena não descreve,

Ave que sempre acompanhar costuma

A alta esposa de Zeus em voo leve;

E pela água, desfeita em pura espuma,

Nadando o cisne vem, da cor da neve,

Ave sagrada à Citereia, e santa,

Que vive muda e, quando morre, canta.

Abelhas com sussurros sonorosos

Ambrosia nos campos vão colhendo;

No ninho arrulham pombos amorosos,

Suaves beijos dando e recebendo:

Quantas delícias há e quantos gozos

Que em vão co’a mente imaginar pretendo:

Olhai, do prateado arroio à margem,

Ervas e flores que fragrância espargem.

A rosa ali se vê purpúrea e bela,

Nasce-lhe a cândida açucena ao lado.

A roxa violeta se revela,

E o cravo, d’amadores estimado;

Do alto cai o jasmim qual nívea estrela,

Em redor a bonina esmalta o prado,

Cresce também (notai o estranho efeito)

Junto do malmequer o amor-perfeito.

Certo a camélia ou branca ou rubicunda

Co’o rosmaninho e a túlipa viceja,

D’olores o alecrim o espaço inunda,

Rescende a madressilva benfazeja;

E para que co’a mágoa se confunda

Algum prazer, é bem razão que esteja

Co’o triste goivo o mirto imorredouro,

A hera perpétua e o sempiterno louro.

E co’a magnólia e a passionária santa

Floresce a parasita sem aroma,

E o girassol que a vista ao céu levanta

Onde Febo dourado surge e assoma;

E aquela desejada e rara planta

Que adormece a quem dela as folhas coma,

Pintando em sonho um gozo etéreo e ignoto

Doce e maravilhosa flor do Loto.

Aqui vive uma deusa soberana,

Clóris chamada em Grega fala outrora,

Mas que a Língua Latina e Lusitana,

Esta diz Primavera e aquela Flora;

Aqui, donde abundância corre e mana,

Ela continuamente reina e mora,

Sem que nunca lhe roube o mando eterno

Estio nem Outono nem Inverno.

Já vão desembarcando os navegantes,

Desejosos de ver a doce terra,

Pois à vista aparecem deslumbrantes

Os tesouros que o novo mundo encerra;

Param, cheios de pasmo, alguns instantes,

Olhando o bosque, o rio, o vale e a serra,

E mais lhes cresce o espanto ainda, quando

A meiga Primavera vem chegando.

Desce-lhe aos pés a veste matizada

De mil flores suaves e serenas,

Da petrina um aroma se traslada

De violetas, cravos e açucenas;

Dos lábios e das faces e de cada

Mão chovem lindas pétalas amenas

E, coroando a fronte mirto e rosa,

Nunca se viu quem fosse mais formosa.

Se ergue o olhar, fica a luz do sol escura

E nova madrugada vem surgindo;

Se ri, na sua branda voz murmura

De passarinhos um gorjeio infindo;

Se fala, sai dos lábios tal doçura,

Que cítara divina se anda ouvindo:

Entra no coração da Lusa gente

O que a língua não diz e o peito sente.

Mil Amores em torno vão voando

E mil Prazeres vêm pelos espaços,

Mil Sonhos e Ilusões em leve bando

Batem as asas, lânguidos e lassos;

Zéfiro co’um suspiro doce e brando

Do trançado lhe está rompendo os laços

E brincando co’os rútilos cabelos,

Lhe beija a linda boca e os olhos belos.

A mesma Natureza se enamora

Dos mimos que pintura não iguala,

A onda sobe do mar e salta fora,

Hélios desce do céu para admirá-la;

A ave espalha harmonia mais sonora,

Mais suave fragrância a flor exala

E tudo, vendo-a agora, só deseja

Que deste modo eternamente a veja.

Bem como a nívea e prateada lua,

Não querendo que a luz se nos traslade,

Pela noturna abóbada flutua,

Entre nuvens velando a claridade,

Mas de repente surge livre e nua

E as estrelas vencendo, o espaço invade:

Tal, deslumbrando os olhos, branca e bela,

A Primavera aos nautas se revela.

E qual a moça que, tornada em ave,

Queixosa Filomela fugidia,

Com voz tão saudosa quão suave

Faz ressoar no bosque a melodia;

E por mais que a tristeza se lhe agrave,

A todos vai enchendo de alegria:

Não doutro modo a Primavera agora

Ergue a fala brandíssima e sonora:

“Claríssimos varões da Lusa armada,

“Que aqui vindes fazer nova conquista,

“Por água nunca dantes navegada

“Buscando terra nunca dantes vista;

“Contra vós Noto em vão sibila e brada,

“Que aos Lusos não há força que resista;

“Hoje enfim recebei a palma e o louro,

“De eterna glória prêmio imorredouro.

“Aqui a vossa língua bela e branda

“Que da Latina fonte se deriva,

“Há de escutar-se, pois o Fado manda

“Que novamente aqui floresça e viva;

“E quer que a doce música se expanda,

“Não alcançando fama fugitiva,

“Mas, apesar do tempo que o consome,

“Co’a vossa língua dure o vosso nome.

“E, para que o reclamo se levante,

“Em torno murmurando mansamente,

“Dalgum ditoso coração amante

“Ou magoado coração doente,

“Do Olimpo há de enviar o grão Tonante

"As Musas para o novo continente,

“Sem cujo auxílio a sonorosa lira

“Não canta, não soluça nem suspira.

“No Helicon donde surge a fonte clara

“Que do alado corcel a origem teve,

“E no Parnaso a cuja linfa rara

“A imorredoura inspiração se deve,

“O coro das donzelas se prepara

“A atravessar o mar sereno em breve

“E, se bem o futuro desenrolo,

“Há de vir-lhes à frente Febo Apolo.

“Bem como pombas assustadas, quando,

“Repousando nos ramos duma fronde,

“Ouvem o caçador que vem chegando

“E atrás dum tronco d’árvore se esconde;

“Num só momento vão partindo, em bando,

“Pelos espaços sem saber aonde:

“Destarte, um pouco esquivas e confusas,

“Irão à nova terra as nove Musas:

“Clio que os tempos idos rememora,

“Euterpe com o cálamo, Talia

“Que ri sempre, Melpómene que chora,

“Terpsícore que as leves danças guia;

“Erato, dada a Amores, a canora

“Polímnia, Urânia, dada à astronomia,

“E Calíope cujo fogo santo

“Da tuba retumbante inspira o canto.

“Da Grécia hão de trazer a alta doutrina

“Da Arte imortal, segundo vejo e espero,

“Lá donde se ouve a música divina

“Do velho Pai da Poesia, Homero,

“E o som que o magno Píndaro me ensina,

“E Ésquilo, Mestre da Tragédia austero,

“E o queixume que espalham sem repouso

“Sófocles brando e Eurípides choroso.

“Virão à Itália, assento sempiterno

“D’engenhos peregrinos, pátria santa,

“Onde co’o bom Horácio e Ovídio terno

“Virgílio sonoroso a voz levanta;

“Onde Alighieri pinta céu e inferno

“E Petrarca suspira em mágoa tanta,

“Onde canta Ariosto sorridente

“E Tasso geme dolorosamente.

“E passarão pela Provença bela,

“Terra dos amorosos trovadores,

“De cuja suavíssima querela

“Voam ainda os sons encantadores;

“Ali toda a Ciência se revela

“Da suprema Alegria e dos Amores,

“Nem se podem sentir outros cuidados

“Senão de corações enamorados.

“Verão também Castela onde Cervantes

“Tem nos lábios o riso e a dor no peito,

“Onde o grão Lope, como nunca dantes,

“Traz o fogoso Pégaso sujeito

“E Calderón em versos elegantes

“À branda influição se mostra afeito,

“Bebendo em copa d’ouro a água perene

“Das fontes de Castália e d’Hipocrene.

“Enfim chegam ao ninho Lusitano,

“Ledo berço da triste Saudade,

“Onde a alma só d’Amores sente o dano,

“Mas onde tudo a Amores persuade;

“Onde Camões sublime e soberano

“Faz que por toda parte se traslade

“O clangor da trombeta nunca ouvido

“E da avena o dulcíssimo gemido.

“Daqui no argênteo carro d’Anfitrite

“(Que Poseidon irado já descansa)

“Hão de partir, e Eolo assim permite,

“Pela vaga do mar cerúlea e mansa;

“E sem perigo extremo que se evite,

“Irão alegremente, na esperança

“De que Zéfiro brando as leve, e traga

“Ao doce porto e desejada plaga.

“Assim como o áureo sol resplandecente,

“Quando reina nos céus a noite escura,

“Ainda meio oculto, lentamente

“Vai derramando os raios pela altura

“E em seguida, surgindo de repente,

“Enche o espaço de luz serena e pura:

“Tal da treva negríssima e sombria

“Há de nascer de novo a Poesia.

“E o meu desejo faz que já desponte

“Na alma o que brevemente ver pretendo:

“Náiades murmurando em cada fonte,

“Em cada bosque Dríades gemendo,

“Oréades subindo aquele monte,

“Napeias este vale percorrendo,

“Enquanto espalha a voz suave e bela

“Dum lado Progne e do outro Filomela.

“E Pã, deitado à sombra do arvoredo,

“Os queixumes da flauta modulando,

“Faz que de longe em côncavo rochedo

“Eco repita o som, porém mais brando.

“Pelos campos um coro leve e ledo

“De semicapros deuses vai dançando

“E um bando de Centauros chega e para,

“Escutando essa música tão rara.

“E quando Hélios no céu, ao meio-dia,

“Mais ardente se torna e manifesta,

“Ao belo Adônis Afrodite envia

“Suspiros ressoando na floresta;

“E quando vem descendo a noite fria,

“A cândida Selene casta e honesta

“Cobre de beijos o semblante lindo

“De Endimião que em sonho está sorrindo.

“Narciso junto à límpida corrente,

“De si mesmo amoroso, a fronte inclina,

“Vendo a imagem pintada claramente

“Na fugitiva linfa cristalina;

“Dafne levanta o ramo viridente,

“Segundo manda e ordena o fado e a sina,

“E se tocá-la Zéfiro presume,

“Ressente Febo férvido ciúme.

“Corre Acteon pela silvestre sombra,

“Longe dos galgos, célere e fugace

“E olhando em torno já se espanta e assombra,

“Antes que a seta alígera o traspasse;

“Io, sentada em mole e verde alfombra,

“Pacífica e tranquila entre ervas pasce,

“Movendo em roda a vista doce e meiga

“Sobre as boninas da esmaltada veiga.

“Hilas incauto pisa a branca areia

“Que a onda argêntea e cerúlea lava e banha,

“E a um tempo se adianta e se receia

“Da Náiade que surge bela e estranha,

“Porém ela, de Amor ardente cheia,

“Abrindo os braços com agrado e manha

“Ao fundo leva o tímido menino

“Entre nácar, aljôfar e ouro fino.

“E Leda co’um suavíssimo sorriso,

“Os olhos alongando pela praia,

“Deixa que sobre o colo ebúrneo e liso

“Dos crespos fios o tesouro caia;

"Move-se o lago azul e de improviso

“A moça linda e lânguida desmaia,

“Vendo, sem que uma mancha as plumas tisne,

“Aparecer de longe o níveo cisne.

“Ah que ventura ver a Grécia antiga

“Com os deuses e heróis que a povoaram,

“Cujas luzes, o mundo agora diga,

“Desde os passados séculos o aclaram;

“Olhai como o Parnaso ainda abriga

“Os que em vida gemeram e cantaram;

“E o que na mente imaginar não chego,

“Dizei-me se há um nome igual ao Grego!”

Assim termina a deusa soberana

Com voz melodiosa que murmura,

E o discurso dos lábios corre e mana

Como uma fonte cristalina e pura;

Porém há na harmonia sobre-humana

Um tom de queixa, indício de amargura,

Que no peito mais ledo e mais ditoso

Alguma dor sempre acompanha o gozo.

Tal como quem, nutrindo uma esperança

Em meio desta vida triste e incerta,

Dorme, iludido na ventura mansa

Que do anelado bem lhe faz oferta;

Mas no momento mesmo em que ele o alcança,

Abrindo os olhos, súbito desperta

E, perdendo o prazer doce e risonho,

Não pode crer que tudo foi um sonho:

Destarte Clóris, quando não mais pinta

O que repete a fala tão sonora,

Um não sei quê faz que saudades sinta,

Vendo a clara visão voar embora:

E acabando cansada e meio-extinta,

Suspira sem querer e quase chora,

Porém, olhando logo a Lusa gente,

Vence o desgosto e ri serenamente.

Qual terno beija-flor que deixa o ninho

Com a cara consorte e filho implume,

De rosa em rosa no jardim vizinho

Colhendo o néctar, cheio de perfume;

Mas depois, revoando o passarinho

Aonde todo o amor se lhe resume,

Co’os seus em paz repousa benfazeja

E dali nunca mais partir deseja:

Tal a meiga alegria vai fugindo

Da alma cândida, amável e sincera

Mas logo torna em riso ao rosto

E ao coração que ardentemente a espera;

Puro contentamento está sentindo

A gentil e mimosa Primavera,

Porque da Língua Lusitana sabe

Não deixará que a Poesia acabe.

Pois nela manda o Céu que, nova e nua,

A Formosura Helênica admiremos

E o Latino Vigor se restitua

Segundo a tradição que conhecemos:

Enfim a Glória Antiga continua,

E estes maravilhosos dons supremos

A Língua para si recebe e toma

Da bela Atenas e da forte Roma.

Musas, não mais! O último som derramo

E já se apaga a flama em que me alento,

E não vos peço imarcescível ramo

Em prêmio do imortal atrevimento:

Mas dai-me sempre aquilo que eu mais amo,

Musas, nunca deixeis que viva isento

De branda Poesia um peito brando

Que anda os vossos louvores celebrando.

E tu, suave cítara canora,

De cujas cordas tiro a melodia,

Ou quando em mim uma saudade mora

Ou quando uma esperança me alivia:

Pende ao meu lado sempre como agora

Em jucundo prazer ou dor sombria,

Para que eu possa leda ou tristemente

Dizer em verso tudo que a alma sente.

E vós que vã cobiça não condena

A uma perpétua, dura e áspera luta,

Vós que a filha de Zeus, Palas Atena,

No Templo consagrou da Arte impoluta,

Vinde comigo à Arcádia doce e amena

Onde contínua música se escuta,

Vinde viver sem mágoas e sem danos,

Claríssimos engenhos soberanos.

E olha, coração meu, vê quanto gozas,

Quando o sublime canto se traslada;

Nascem louros ainda, nascem rosas

Para trazer a fronte coroada;

E por que Apolo e as Musas amorosas

Tenham sempre na terra uma morada,

Sobre colunas dóricas levanto

Um novo Pártenon eterno e santo.

 

ENDECHAS

Quantas vezes choro

Sem saber porquê

E o pranto sonoro

Se ouve e não se crê.

Em nenhuma parte

Vejo mal ou bem,

Nem prazer que parte,

Nem pesar que vem.

Mas noites e dias,

Tardes e manhãs

Voam fugidias

Estas queixas vãs.

Risos sem começo,

Lágrimas sem fim:

Se tanto padeço,

Que será de mim?

Duma pena ignota

Mágoa singular

Que se sente e nota

Pelo suspirar.

Onde tudo é gozo

Que não vejo aqui,

E serei ditoso,

Já que padeci.

Onde em brando riso

Tudo se desfaz

E a dor suavizo

Em serena paz.

Onde a primavera

É meiga e gentil

E um bem que se espera,

Se transforma em mil.

Onde num desmaio

Doce e encantador

Entre abril e maio

Nasce o eterno amor.

Onde se ouve a pura

Voz celestial,

Bem como murmura

Fonte de cristal.

Pois, se os olhos seco

E não choro mais,

Inda se ouve um eco

De saudosos ais.

E em qualquer retiro

Destes que bem sei,

Sem querer suspiro

Onde já chorei.

Onde acharei pranto

Para tanto dó?

Ai que já não canto,

Desque vivo só.

Mas para lamentos

Haverá razão?

Cuidados cruentos

Nunca tornarão.

Estas queixas mansas

Que espalhando estou,

São talvez lembranças

Do que já passou.

Mas a dor fugindo

Cessa e já não é;

Surge amor infindo

Co’esperança e fé.

A alma se traslada,

Voa para o céu,

Doce pátria amada

De quem já sofreu.

Um anjo me guia,

Me leva e conduz

Para ver MARIA,

Para ver JESUS.

E a fragrância amena

Pelo espaço azul

Vence a da açucena

Nos jardins do sul.

Onde se prepara

Ao coro fiel

A mais santa e rara

Hóstia d’Israel.

Doce manjar d’alma

Que o Senhor bendiz,

Me alenta e me acalma

E me faz feliz.

E como duma ave

Os suspiros meus

Em queixa suave

Vão aos pés de Deus.

Dos olhos sentidos

A lágrima cai,

Sobem os gemidos

Aos pés do meu Pai.

Todo me enche e invade

Lânguido prazer,

Em felicidade

Deixai-me morrer.

No mundo mesquinho

Tudo é só pesar:

Ao meu pátrio ninho

Deixai-me voar.

Onde veja o amante

E perpétuo bem

E co’os anjos cante

Glória a Deus. Amém.

 

4 SONNETS WITH PORTUGUESE PROSE-TRANSLATION

AUGUSTISSIMAE ET SERENISSIMAE

REGINAE

CORDIS MEI

DEDICO,

JOSEPHUS ALBANUS

I

The hour, the day, the year when I was born

Into this world of misery and pain,

A thousand times, although it be in vain,

I do lament with anguish night and morn.

Opress’d and burden’d, feeble and forlorn,

In arms against misfortune I would fain

Be merry, but if others do attain

Happiness, I only weep and mourn.

Ye who have seen my tears and heard my sighs,

Ye who have sorrows infinite to bear,

Fire in the heart and water in the eyes;

Ye who are sad, your woes to mine compare —

And all the grief that in your bosom lies,

Will never equal half of my despair.

II

How sweet it is after the strife of day

To rest profoundly in the arms of night,

Forgetting sorrow, dreaming of delight

That dwelled in the heavens, far away.

The winged thoughts leave this dark earth and stray

I’the sky above the stars so pure and bright,

Trying to filch one ray of golden light

Which strangely glimmers on the Milky Way.

But Time, full of fierce wrath and cruelty,

Doth hurry on each hour that comes and goes,

And swiftly do our happy moments flee.

Night fades away and with it ends repose —

And rising morning brings relentlessly

Death to my dreams and life to all my woes.

III

When I look back on days that are no more

And think of hopes and dreams that now are dead,

To my sad soul, with sorrow surfeited,

Fain would I that past happiness restore.

And whilst the cruel Fates I do implore,

Tears sweet and bitter from these eye-lids red

Rush like swift rivers in a narrow bed

Or like tempestuous waves upon the shore.

Oh memory, why dost thou make me sigh

For what once gave me joy, but now gives pain,

Those fancies and illusions born to die?

My former state I can no more regain

And if I dreamt and hoped in times gone by,

Ne’er will I dream, alas! or hope again.

IV

Methought, when bitter Sorrow came to me:

One day it will be gone and I shall rest,

One day I who am grievously opprest,

Shall be delivered from my misery.

And then, perchance, when all these dark days flee,

Sweet Joy will come and dwell within my breast,

And my sad soul no longer shall protest

‘Gainst Fate, but will exult in being free.

And as the weary, melancholy hours,

Full of strange longing, silently passed by,

No hope to earth from heaven would descend.

And when I saw that in this life of ours

Pleasure had no beginning, I did sigh,

For then I knew that Sorrow had no end.

                                    Anno Domini 1912.

I

A hora, o dia, o ano em que nasci neste mundo de miséria e sofrimento, mil vezes, apesar de ser em vão, lamento com angústia noites e manhãs.

Oprimido e atribulado, fraco e desamparado, lutando contra o mau destino, eu quisera ser contente, mas, se outros atingem à felicidade, eu choro e me queixo tão somente.

Vós que vistes as minhas lágrimas e ouvistes os meus suspiros, vós que tendes de suportar dores infinitas e trazeis fogo no coração e água nos olhos;

Vós que sois tristes, comparai as vossas penas com as minhas penas e toda a mágoa que mora no vosso peito não há de igualar nunca metade da minha desesperação.

II

Quanto é doce após a luta do dia descansar profundamente nos braços da noite, esquecendo a mágoa e imaginando o gozo que mora lá nos céus longe daqui.

Os pensamentos alados deixam esta terra escura e vagam no etéreo assento acima das estrelas tão puras e brilhantes, procurando roubar um raio de luz dourada que estranhamente fulge no caminho lácteo.

Mas o tempo, cheio de grande ira e crueldade, impele para adiante cada hora que vem e vai, e celeremente fogem os nossos momentos d’alegria.

A noite se desfaz e com ela acaba o repouso e a manhã traz impiedosamente morte aos meus sonhos e vida a todos os meus tormentos.

III

Quando olho para os dias que não são mais, e penso nas esperanças e nos sonhos que já morreram, à minha triste alma, carregada de dores, eu quisera restituir aquela felicidade passada.

E enquanto imploro os fados cruéis, lágrimas doces e amargas jorram destas pálpebras vermelhas: como rios rápidos num leito estreito ou como ondas tempestuosas sobre praia.

Ó memória, por que me fazes suspirar pelo que outrora me deu alegria e agora me dá sofrimento, por aqueles enganos e ilusões que nasceram para morrer?

Não posso mais recuperar o meu estado anterior e, se sonhei e esperei nos tempos idos, nunca sonharei, ai de mim! nem esperarei de novo.

IV

Cuidei, quando a dor amarga me nasceu, que um dia ela havia de partir e eu havia de descansar, que um dia eu de duramente oprimido havia de ser libertado da minha miséria.

E então talvez, quando estes dias escuros fugissem, doce alegria viesse a morar dentro do meu peito e a minha triste alma não mais protestasse contra o destino, mas exultasse, sentindo-se livre.

E enquanto as horas cansadas e saudosas, cheias dum estranho anseio, passavam silenciosamente, nenhuma esperança descia do céu à terra.

E quando vi que nesta vida nossa o prazer não tinha começo, pus-me a suspirar, porque então soube que a dor não tinha fim.

                                                                                                                                                                                                              Anno Domini 1918.

 

COMÉDIA ANGÉLICA

LOA PARA A COMÉDIA ANGÉLICA

       Pessoas:

CORO DE PASTORAS.

CORO DE FIÉIS.

A FÉ.

A ESPERANÇA.

A CARIDADE.

O PEREGRINO.

A DESCRENÇA.

A RAZÃO.

       A cena se passa em Lourdes.

Coro de pastoras

Violeta suave,

Santa MARIA,

O teu pranto nos lave

De noite e de dia.

Tu que em Belém nos deste

A graça suma,

Açucena celeste,

Tu nos perfuma.

Rosa d’amor primeva,

Casta e pudica,

Tu nos levanta, enleva

E glorifica.

E, até que enfim desponte

A alta ventura,

Corra a água desta fonte

Perene e pura.

Coro de fiéis

Abril, de violetas coroado,

Pinta de cores mil o verde prado

E em ledos bosques e vergéis risonhos

Voam amores, ilusões e sonhos.

Desliza o rio, duma e doutra margem

Flores fragrantes fresco aroma espargem

E surgem dentre lírios amorosos

Doces desejos e mais doces gozos.

É já passado o inverno duro e ingrato,

A primavera ostenta rico ornato

E já lá vêm chegando as três donzelas

Sábias, prudentes, ínclitas e belas

Que inspiraram o engenho peregrino

Do Angélico Doutor Tomás d’Aquino.

Eis a Fé, a Esperança e a Caridade,

Trazendo co’o prazer que nos invade,

A santa cruz luzindo eternamente,

A âncora forte e o coração ardente.

Minhas irmãs caríssimas e amáveis,

Dizei-me em que lugar remoto andáveis,

Pois quase nunca a vós me vejo unida,

Almas salvando para a eterna vida.

Porém aqui, nesta sagrada gruta,

Do mal nos livra a Virgem impoluta

E não tememos nunca força ou manha,

Quando a graça de Deus nos acompanha

E o resplendor da estrela matutina

O caminho do céu nos ilumina.

Esperança

Às vezes, Fé, contigo também ando,

Pois por todo o universo vou voando,

Porém por que tão raras vezes vejo

Da Caridade o rosto benfazejo?

Caridade

Não faltam os que creiam e que esperem,

Mas, ó tristeza, amar bem poucos querem.

E ai dos que deixam a inocência casta,

Todo o prazer do mundo não lhes basta.

A sincera afeição é quase morta

E o verdadeiro bem que nos conforta.

Mas para nós é manifesto e claro

Que na aliança se acha sempre amparo

E não há força humana que resista

Ao santo amor que as almas reconquista.

Coro de fiéis

A Fé com a Esperança e a Caridade

Há de nos defender nas lutas e há-de

Abrir as portas do celeste assento

A quem de toda mancha vive isento.

Mas triste quem não crê, quem não espera,

Quem não tem na alma uma afeição sincera,

Para que possa olhar o eterno vulto

Do sumo Deus que está nos céus oculto.

Mas vede, eis chega um pegureiro estranho

Que não parece ser do bom rebanho.

Partamos.

Caridade

Não, fiquemos. É preciso

Que lhe não falte o necessário aviso.

Esperança

Talvez, quem sabe? de caminho mude

E ande só no caminho da virtude.

Aonde vais, ó moço peregrino?

Revela-me qual seja o teu destino.

Peregrino

Em vão perguntas, vou não sei aonde,

Procurando a ventura que se esconde.

Mas, se desejo o estado mais sublime,

Vê como a sorte me persegue e oprime.

Dum brando gozo nasce um mal cruento

E dum tormento outro maior tormento

E assim de dor em dor, de dia em dia

Me vai passando a vida fugidia.

Tu vais a Babilônia, abismo fundo,

Aonde as almas precipita o mundo,

Quando o demônio mau as tenta e engana

Pela carne tão débil quão tirana.

Ó moço peregrino, foge, foge,

Antes que a cruel mão no mal te arroje.

Repousa nesta gruta santa e calma

E vencerás os inimigos da alma.

Detém-te aqui, não sigas o caminho

De Mamon miserável e mesquinho.

Foge donde em tormento duradouro

Adoram ímpios o bezerro d’ouro.

Vem adorar o cândido Cordeiro,

O Deus Messias vivo e verdadeiro.

Também venera a Virgem meiga e pura,

Cheia de graça e cheia de ternura,

Da qual para sofrer martírio acerbo

Na gruta de Belém nasceu o Verbo.

Não vás avante, mas aqui descansa,

Que eu sou a Fé, e em nome da Esperança,

Junto co’a Caridade eu te convido

Para à Igreja tornares convertido,

Porque, como desejas ser ditoso,

Somente em Deus se encontra o eterno gozo.

E o único meio d’alcançá-lo e vê-lo

É o de rezar co’o mais ardente zelo

À Virgem clara cuja estátua santa,

Pisando etéreas rosas, se levanta.

Vai deitar-te aos seus pés, ó peregrino,

Para alcançares o favor divino.

E para teres a pureza ilesa

Toma o rosário e docemente reza.

Peregrino

Virgem de Lourdes, deixa que eu me arraste

Por esse chão sagrado que pisaste.

MARIA, Mãe celeste, a quem pertenço,

Abranda um pouco o meu pesar imenso.

Abaixa os olhos lânguidos e lassos

E recebe o teu filho nos teus braços.

Coro de fiéis

Lembra-te, formosíssima Rainha, (1)

De que ninguém na vida tão mesquinha

Recorre aos teus carinhos e cuidados

Sem alcançar os dons mais desejados.

Assim também, de confiança cheio,

À gruta santa o peregrino veio

E em suave aflição geme e suspira,

Para que o teu favor obtenha e adquira

E, por ti protegido contra o inferno,

Guarde no peito o amor supremo e eterno,

Até que morra e suba pela escada

Que as almas justas para o céu traslada.

(1) Memorare de S. Bernardo.

Peregrino

Ó minha doce e meiga Mãe MARIA (2)

Cuja clemência tanto me alivia,

A ti me entrego todo e me ofereço,

Embora seja sem valor e preço:

Estes meus olhos donde o pranto nasce,

Para sempre admirar a tua face;

Os lábios meus, cheios de puros hinos,

Para louvar-te em cânticos divinos;

E o coração sempre constante e ardente

Para amar-te, Senhora, eternamente.

Já que sou teu, ó minha Mãe querida,

Tu me defende, enquanto dure a vida.

E co’a mesma afeição potente e forte

Tu me protege, quando venha a morte.

(2) O Domina Mea.

Descrença

Ó moço peregrino, deixa o abrigo

Dessa gruta onde estás, e vem comigo...

Se porventura queres provocar-me,

Farei que a tua audácia se desarme.

Descrença

Lutar é claramente o meu direito

E dele quanto posso, me aproveito.

Mas saiba o mundo todo que a Descrença,

Deus manda que a Razão também a vença.

Razão

Depois de longes terras ter corrido,

Ao puro gozo elevo o meu sentido

E a ti declaro, ó Fé, co’ alma sincera

Que um Deus reside na celeste esfera.

Descrença

Nego.

Negas em vão, que a Virgem clara

À Razão milagrosamente ampara.

Razão

Foi a serena estrela matutina

Cujo esplendor ainda me ilumina,

Que me mostrou na noite espessa e escura

A etérea luz que o coração procura.

O homem, quando primeiro os olhos deita

Na criação magnífica e perfeita,

Pergunta sempre donde vem o mundo,

Donde vem o alto céu e o mar profundo?

Descrença

A criação não conheceu começo,

Mas sempre foi.

Razão

A tal mentira avesso,

Não pode o entendimento e jamais ousa

A origem duvidar de qualquer coisa.

Descrença

De que haja Deus, jamais me persuado,

O mundo por si mesmo foi criado.

Razão

Ouve, não é possível que a confusa

Matéria antes de ser faça ou produza.

Medita, que verás como evidente

Nada pôde existir eternamente

Nem nada se criou, de tal maneira

Que uma só conjectura é verdadeira

Das três que a mente humana nota e estuda,

Que outra alguma não há que nos acuda.

Eis a verdade sempiterna e viva

Donde a santa doutrina se deriva:

Um Criador augusto e soberano

Criou o céu e a terra co’oceano.

Descrença

E quem criou o Criador?

Razão

Atende,

Para que a eterna luz se recomende

E esse vão pensamento logo passe

De que um Deus porventura doutro nasce.

E assim, parando o estéril argumento,

Sendo eu Razão que a Fé também sustento,

Aos que Esperança a Caridade impele,

Faço que um Deus supremo se revele

Sem princípio nem fim, soberbo e forte,

Mandando ao céu, à terra, à vida e à morte.

Foge, Descrença. E tu, Razão, venceste,

Auxiliada só da Mãe celeste

Que entre as sombras da dúvida nos guia

Com o suave nome de MARIA.

Razão

Se falei bem, somente peço e rogo

Que o santo amor de Deus domine logo,

Pois é mais justo e o céu assim obriga

Que o sinta a Fé, mas a Razão o diga.

Coro de pastoras

Co’amor infindo,

MARIA, escuta

Quem, dor sentindo,

Vem a esta gruta.

E docemente,

Ó Virgem mansa,

À alma doente

Saúde alcança.

Erga-se um hino

À etérea parte,

Amor divino

Há d’ajudar-te.

Nada semelha

Amor tamanho

Que chama a ovelha

Para o rebanho.

Já sem tristeza

Os laços urdes

Que a alma tem presa

Na amada Lourdes.

E o pastor brando

E carinhoso

Nos vai levando

Ao puro gozo.

Peregrino

Alma do bom Jesus, torna-me santo *

Para vencer o meu mortal quebranto.

Corpo de Cristo, pelas cinco chagas

Rogo que o eterno bálsamo me tragas.

Sangue do Salvador, tu me inebria,

Para que eu viva cheio d’alegria.

Água dos olhos de MARIA, lava

O triste coração que suspirava.

Paixão do Filho do Homem, tu conforta

Uma alma de saudades quase morta.

Dor de MARIA Virgem, tu me ensina

A suportar a pena mais ferina.

Ó bom Jesus, nesse teu peito donde

Decorre o sangue, tu me guarda e esconde.

E nunca te separes, Virgem pura,

De quem sem ti não sabe o que é ventura.

* Anima Christi de Santo Inácio.

Coro de fiéis

Bendito seja ELOA e o santo nome *

Que pelos tempos nunca se consome.

Bendito seja o Filho onisciente,

Bendito seja o Verbo eternamente.

Bendito seja o Espírito sagrado,

Cheio d’ardente amor e terno agrado.

MARIA, Mãe de Deus, bendita seja,

Protetora imortal da nossa Igreja,

E a Conceição misteriosa e doce

Cujo excelso favor aqui nos trouxe.

* Fórmula de Louvores, aprovada por Leão XIII.

Peregrino

É já passado o meu engano cego

E a ti, Virgem de Lourdes, eu me entrego,

Para que cesse o meu viver sombrio,

Que em ti somente creio e em ti confio.

Ó peregrino, já que a Virgem santa

À Católica Igreja te levanta,

Ergue o teu brando voo ao bem superno

Para venceres o poder do inferno.

E assim pelo caminho da virtude

O anjo da guarda te proteja e ajude,

Até que chegues à ciência clara

De que o desejo vão nos desampara.

E reconhecerás na sorte dura

Hão de passar a dor e a desventura

E co’a breve ilusão que nos engana,

Dura um dia e uma noite a vida humana.

Mas, antes que te vás embora, assiste

À representação alegre e triste

Que em honra de MARIA aqui se leva

Para apartar do mundo a escura treva.

Peregrino

Se me for permitido, eu te pergunto

Qual o título seja e qual o assunto.

Uma Comédia nova se traslada,

Pelo poeta Angélica chamada,

Saída da alma, em puro fogo acesa,

Nas horas d’alegria e de tristeza

E escrita em nunca ouvido verso e rima.

De sorte que o mais alto estilo exprima

O amor de Deus onipotente e santo,

Fonte d’eterna glória e eterno encanto.

Primeiro aqui verás o nascimento

Do patriarca Adão, de mágoa isento,

Depois a criação d’Eva formosa

Que só d’amores castos vive e goza,

E a aparição da Virgem Mãe, Senhora

De quanto o sol resplandecente doura.

Logo verás o mais fatal pecado

De Lúcifer subido e revoltado;

Por que o arcanjo Miguel se manifeste

Grão capitão do exército celeste.

Já lentamente se levanta o pano

E eis aparece o herói altivo e ufano.

Escuta co’atenção e co’alegria,

Que a sublime Comédia principia.

       Die Nativitatis Domini, Anno 1916.

COMÉDIA ANGÉLICA

       Pessoas:

MIGUEL

ADÃO

CORO D'ANJOS

GABRIEL

RAFAEL

EVA

LÚCIFER

       A cena se passa no Paraíso.

Miguel

Nasce entre nuvens mil de neve e rosa

A manhã sempre linda e luminosa,

Ouro espargindo no cerúleo espaço;

De novo em alegria me desfaço

E, cheio de prazer puro e profundo,

Louvo e bendigo o Criador do mundo.

Por cima da água plácida e tranquila

Ao longe a estrela trêmula cintila,

Gemem d’amor as andorinhas meigas

E as boninas derramam pelas veigas

Aromas suavíssimos que o brando

Vento vem recebendo e vai deixando

Nas ondas sossegadas e serenas

Onde alvos cisnes movem níveas penas.

Libélulas em bando errante e vago

Se espelham no cristal do manso lago

E borboletas dormem sobre lotos

Imarcescíveis, gélidos e imotos.

Pousam pombos aqui e ali, abelhas

Tiram néctar de tulipas vermelhas,

Um beija-flor voa ao vergel vizinho,

Torna outro beija-flor ao doce ninho,

E em monte, vale e bosque se mistura

Co’ar fresco e ledo som fragrância pura.

A criação quem poderá louvá-la?

Mas em todo o universo nada iguala

A humana criatura livre e imune

Que espírito e matéria em si reúne:

Adão formoso que no sexto dia,

Maravilhando o mundo, aparecia.

Mas ei-lo já do sono se desperta

Que lhe a mente sublime traz coberta,

E suspira com voz amena e calma,

Sentado à sombra duma verde palma.

Adão

Dum profundo letargo me levanto

E ainda sinto um lânguido quebranto.

Sou, não era e contudo me parece

Que sempre fui. Oh quem fará que cesse

Este mistério tão remoto e escuro

Que em vão co’o pensamento ver procuro,

Pois não sei apesar de todo empenho

Quem sou, aonde vou nem donde venho.

Miguel

Tu és humano e tens Adão por nome

E uma essência que nunca se consome.

Tu vens da mão de Deus que te governa

E um dia há de chamar-te à glória eterna.

Adão

E quem és tu?

Miguel

Eu sou Miguel arcanjo

E com a minha clara vista abranjo

A criação maravilhosa e infinda

Que não te é dado conhecer ainda.

Adão

Ínclito arcanjo, a tua voz me infunda

Uma graça inefável e jucunda

Que a mim mesmo revele o meu segredo,

Para que eu possa enfim viver mais ledo

E, conhecendo o Criador de tudo,

Em seu louvor não permaneça mudo.

Miguel

Ouve-me, Adão, aqui te darei conta

Do que desejas, se tens a alma pronta

Para nela guardar toda a verdade,

Porque nunca se aparte ou se traslade:

No princípio era Deus e Deus somente,

Pai, Filho e santo Espírito potente.

E, se destas palavras não duvidas,

Vês três Pessoas num só Deus unidas,

Mas, por mais argumentos que se tomem,

Pouco o compreende um anjo e menos o homem.

Em vão a criatura luta e pensa,

Mais do que o entendimento vale a crença,

Pois, ainda que a mente não consiga

Ver os mistérios, a razão te obriga

A aceitar os altíssimos arcanos

Incógnitos, profundos, sobre-humanos.

Dize-me, pois, agora sem receio,

Se crês em Deus onipotente?

Adão

Creio.

Miguel

Porém a fé não basta, é bem preciso,

Embora estejas neste Paraíso,

Que tenhas o ardentíssimo desejo

Daquele amor benigno e benfazejo

De quem decorrem sempre em onda pura

Mananciais de gozo e de ventura.

Fala-me, pois, com ânimo sincero,

Dize, se esperas em teu Deus?

Adão

Espero.

Miguel

Adão, além da fé tens a esperança,

Porém ainda assim nada se alcança

Sem a doce e divina caridade

Que a praticar o bem nos persuade

E, sendo meiga e mansa, branda e bela,

Todo o esplendor seráfico revela:

Eleva, pois, a Deus o teu reclamo:

Se amas a Deus, confessa que amas.

Adão

Amo.

Miguel

Oh quão ditoso és tu que na alma sentes

As virtudes sublimes e excelentes:

A fé que vivifica e fortalece

A influição dum hino ou duma prece;

A esperança que pinta os mais risonhos,

Os mais suaves e os mais lindos sonhos;

E a caridade enfim que o peito abrasa

Na pura chama da celeste casa.

Ergue, pois, a ADONAI os teus louvores,

Porque não serás digno, se não fores

Grato a quem tudo manda e determina

Na vida humana, angélica e divina.

E, por que tenhas a noção bem clara

De quanto o Criador em ti prepara,

Vê como em criatura tão pequena

Com sábia mão Ele dispõe e ordena

Na alma as três faculdades, e os sentidos

Cinco que se acham no teu corpo unidos.

Mas primeiro olha o espírito sublime

Em que a imagem de Deus se grava e imprime

Nele vês a memória que em traslado

Presenta aos olhos o prazer passado,

E logo o entendimento alto e profundo

Que nos define a natureza e o mundo,

Com a vontade livre e não sujeita

Que escolhe o bem e todo mal rejeita.

Agora atenta na matéria nua

Na qual a essência etérea continua:

Nela se encontra a vista com que notas

As coisas ou vizinhas ou remotas,

As sete cores e as mil formas várias

Em céu e terra, em plantas e alimárias.

Pelo ouvido percebes as suaves

E alegres vozes das canoras aves,

O murmúrio das ondas e o som brando

Dos zéfiros que em giro vão voando.

E pelo olfato docemente gozas

O aroma d’açucenas e de rosas

E a fragrância sutil, leve e fugace

Que de violetas e de cravos nasce.

E olha mais longe e admira aquelas frutas

Nas videiras, d’orvalho nunca enxutas,

Vê também a colmeia onde é composto

O doce mel que tanto agrada ao gosto.

E enfim, para que o tato se conheça,

De leve toca nesta relva espessa,

Nesta de flores matizada alfombra

Que frondoso arvoredo cobre e ensombra.

Bem vês, Adão, em que o viver consiste,

Desque os olhos atônitos abriste.

Dá graças, pois, a Deus, por que consagre

E confirme inda mais este milagre,

Pois um sublime espírito uniu todo

A um baixo corpo, feito só de lodo.

Adão

Ora estou claramente conhecendo

Tudo que desejava, e não pretendo

Senão glorificar o poderoso

E alto Deus a quem devo o meu repouso,

O meu contentamento, a minha vida

E esta ventura, dantes não sentida.

Miguel

Ditoso Adão, eu te bendigo e louvo

E louvo o teu amor sincero e novo.

E em prêmio dele é bem razão que tenhas

Os sete dons divinos, já que empenhas

O teu esforço em só servir Àquele

Que sempre ao bem nos leva e nos impele,

Para que enfim no empíreo recebamos

A áurea coroa e os viridentes ramos.

E, para que a ADONAI vivas sujeito,

Guarda a sabedoria no teu peito,

O intelecto e o conselho que te ampara,

A alta ciência, a fortaleza rara

E a piedade milagrosa e meiga

Que co’o temor de Deus em ti se arreiga.

Ao céu cerúleo o teu olhar levanta,

Porque é lá que verás a pátria santa

E a morada estelífera e secreta

Onde todo desejo se aquieta.

Adão

O Todo-Poderoso mande e ordene

Que este sumo prazer seja perene.

E agora, ilustre arcanjo, tu me guia,

Para que eu viva sempre na alegria

E, ouvindo sempre a tua voz suave,

A lei de Deus no peito esculpa e grave,

Pois, como entendo claramente, e alcanço,

Somente em Deus se pode achar descanso.

E, se segundo o corporal instinto

Vejo, escuto, respiro, gosto e sinto,

Mais vale da alma o afeto puro e ardente,

Pois amo, espero e creio firmemente.

Mas donde vem a música sonora

Que co’um novo prazer me encanta agora

E com ternos queixumes nunca ouvidos

Molemente arrebata os meus sentidos?

Miguel

Dos anjos ouves o celeste coro,

Cantando hosana a ELOA imorredouro.

Atenta bem, que neste mesmo instante

Hás de ver-lhes o rosto radiante.

Ei-los que chegam, uns co’a doce lira,

Outros co’a branda flauta que suspira,

E outros ainda co’a terrível tuba

Que faz que um som mais forte aos ares suba.

Ei-los, batendo as asas fugidias,

Dispostos em três altas hierarquias

Das quais cada uma co’admirável arte

Em três diversas ordens se reparte:

Na primeira da qual me ufano e abono,

Vê serafim, vê querubim e trono;

E na segunda que este espaço invade,

Dominação, virtude e potestade,

Enquanto na terceira que aparece,

Sem que o voo das outras duas cesse,

Olha conjuntamente principado,

Arcanjo e também anjo nomeado.

Adão

Oh quanto é grato ver a sempiterna

Força que estes espíritos governa,

Todos obedecendo ao mando sumo

Ao qual erguer os olhos não presumo.

E quanto é grato ouvir a melodia

Que os ânimos encanta e delicia,

E em leve ritmo as variadas vozes

Graves e agudas, lentas e velozes.

Retumbe a santa música divina

Que a suspirar e que a gemer me ensina

E tão suavemente me traslada

À deleitosa pátria desejada.

Coro

Louvemos ADONAI alto e perfeito *

E o seu nome sublime bendigamos

Ao som de tuba e lira saudosa.

E do mais fundo e mais interno peito

Erga harmoniosíssimos reclamos

Tudo que em torno sente, vive e goza.

A música chorosa

Aos etéreos espaços se levante

E, ora grave, ora aguda,

Celebre a cada instante

Aquele que do empíreo nos ajuda;

Pois virtude não há mais meritória,

Senão que se repita

Esta infinita — e sempiterna glória.

Louvem-no o sol brilhante e a branca lua,

A noite escura e o luminoso dia,

As estrelas de prata e os astros d’ouro,

O fresco orvalho, a nuvem que flutua,

A humedecente chuva, a neve fria

E o verão deleitoso e duradouro.

Dos céus se abra o tesouro

E lá da parte onde se estão formando

Da névoa os densos muros,

Venham descendo em bando

As mansas auras e os favônios puros.

E, ou quando surja a luz ou já não arda,

Seja com voz sonora

Bendito agora — e sempre quem nos guarda.

Louvem-no as fontes e águas cristalinas,

Os regatos e lagos prazenteiros,

Os caudalosos rios e oceanos,

Louvem-no os vales, montes e colinas,

Louvem-no as serras, louvem-no os outeiros,

Os campos e vergéis ledos e ufanos.

Os cedros soberanos,

Os salgueiros, carvalhos e ciprestes

Derramem mil louvores

E co’as ervas agrestes

Esparjam doce aroma as lindas flores.

E pelas moitas que entre as veigas crescem,

Das fugidias aves

Os mais suaves — hinos nunca cessem.

Louvem-no os peixes e os répteis estranhos,

Os basiliscos e os dragões daninhos,

Os tigres e os leões feros e atrozes.

Louvem-no as águias, louvem-no os rebanhos

D’ovelhas e de castos cordeirinhos,

Os bravos touros e os corcéis velozes.

Sejam as várias vozes

Da criação numa só voz unidas

E juntas espalhadas

Nas aéreas guaridas

E nas terrenas e úmidas moradas.

Desde o alto céu até o mar profundo

Tudo quanto nos ouve,

Bendiga e louve — o Criador do mundo.

Louvem-no em meigo e magoado treno

Adão sublime e os filhos da futura

Geração d’Israel soberbo e santo:

Ruben ditoso, Simeão sereno

E com Levi que só do templo cura,

Judá, coberto do purpúreo manto,

E ergam também o canto

Zabulon, Issacar e Dã, seguidos

De Gad que ao claro assento

Eleva ais e gemidos

Co’Aser e Neftali em ritmo lento;

A quem José com Benjamim responde:

Qual eco em selva ou gruta

Diz o que escuta — e não se sabe donde.

Louvem-no em diviníssimas cadências

Os serafins, em flamas abrasados,

Os querubins e os tronos gloriosos.

Dominações, virtudes e potências

Gemam e juntamente principados

Co’arcanjos e anjos digam os seus gozos.

Os sons maravilhosos

Partam e docemente irão subindo,

Contínuos e canoros,

E com prazer infindo

Suspirem sem cessar os nove coros.

E no universo soe eternamente

Uma voz sobre-humana,

Cantando hosana — a ELOA onipotente.

* Benedictus es Domine Deus, do Livro de Daniel, III 52-90.

Miguel

Anjos que com melódica doçura

Ergueis um hino à casa etérea e pura

E bendizeis em nunca ouvido canto

O nome d’ADONAI, três vezes santo,

No pensamento meu que anda indeciso,

Até que chegue algum celeste aviso,

Derramai um consolo benfazejo

Que abrande e suavize o meu desejo.

Dizei-me, quando o alado mensageiro

Pelos ares irá, ledo e ligeiro,

Ao níveo cume do sagrado monte

Onde ADONAI lhe ordene que nos conte

Os mandatos da suma Divindade,

Para que todo o coro se traslade

Àquele eterno berço e pátrio ninho

Cujas sublimes glórias adivinho.

Coro

Eis Gabriel que chega em voo brando

E Rafael o vem acompanhando.

Ele dirá melhor do que sabemos,

As ordens que em seguida cumpriremos,

E o alto mistério do celeste abrigo

Aonde desejamos ir contigo.

Miguel

Fala, arcanjo grandíloquo e facundo,

A cuja voz se rende todo o mundo.

Gabriel

Breve serei, Miguel, no que descrevo,

Porque hoje ainda um milagroso enlevo

Suavissimamente nos levanta

À presença d’ELOA e à pátria santa.

Mas, enquanto não surge o venturoso

Sonho d’etéreo e sempiterno gozo,

Nestes jardins que o Paraíso abarca,

Do homem Adão, primeiro patriarca,

Há de gerar-se nova criatura

Duma composição perfeita e pura:

Eva, a mulher sempre amorosa e branda,

Que obedece ao consorte com quem anda

E, delicada e débil, casta e honesta,

Menos força e mais graça manifesta

E, sendo semelhante e diferente,

As mesmas coisas doutro modo sente.

Esta há de ser aquela que se ufana

Duma Filha serena e soberana,

Luz e esplendor do céu, do mar, da terra

E de quanto o universo guarda e encerra,

Que, assim como da aurora nasce o dia,

D’Eva também há de nascer MARIA.

Miguel

Bendita seja a voz que nos revela

A aparição da matutina estrela

A qual, segundo vejo e profetizo,

Sempre há de cintilar no Paraíso,

Adão, eis que recebes nova graça:

Deus ordena que a mãe dos homens nasça,

Pois o ditoso tempo se avizinha,

Quando há de vir dos anjos a Rainha.

Coro

Dorme e descansa, Adão, dorme e descansa,

Porque na paz dos sonhos meiga e mansa

Vai luzir aos teus olhos a consorte

Que te ajude a viver e te conforte.

Descansa entre açucenas e boninas

E ao grato som das águas cristalinas

Dorme serenamente, até que em breve

Surja a visão suave que te enleve.

Adão

Que alegria e doçura provo e sinto,

O coração parece quase extinto;

Tudo é raro prazer novo e risonho

Nem posso imaginar se vivo ou sonho.

Coro

Ei-lo que jaz agora em paz profunda,

Esquecido de tudo que o circunda.

Ei-lo, sorrindo. Oh que sorriso brando!

Ei-lo que fala agora, suspirando.

Adão

Ó visão soberana e milagrosa,

Corpo, feito de pura neve e rosa

E todo envolto em onda de cabelos

Que, quanto mais se espargem, mais são belos.

Como posso dizer os teus encantos,

Humanos não, porém já quase santos?

Olhos serenos que prometem gozos,

Lindas faces e lábios amorosos

Que pedem beijos, alvas mãos que apenas

Devem tocar de leve em açucenas.

Braços ebúrneos e redondos seios,

Ninhos d’amor, só de perfume cheios.

Quem és, doce visão? Será acaso

Eva gentil em cujo olhar me abraso?

Eva

Quem do pesado sono me alivia?

Sinto que Eva me chamo e não sabia.

E com desejos estremeço e exulto

D’imaginar o rosto, agora oculto,

Dum varão sorridente e venturoso

Que parecia ser o meu esposo.

Anjos do céu que estais aqui comigo,

Dizei-me onde se encontra o meu amigo.

Os olhos são mais lindos que as estrelas,

As faces mostram duas rosas belas

E os seus lábios encerram tal doçura,

Que vencem qualquer flor singela e pura.

E quando o seu sorriso voa em torno,

É como aroma deleitoso e morno,

E quando a sua voz d’amores fala,

Os passarinhos vêm para escutá-la.

Anjos do céu que estais aqui comigo,

Dizei-me onde se encontra o meu amigo.

Coro

Como é formosa a criatura nova

Que o divino poder revela e prova,

Tão inocente, ingênua, tenra e branca,

Do seio saudosos ais arranca

E, em amoroso fogo toda acesa,

Sofre e não sabe ainda o que é tristeza.

Qual sol dourado sobre clara neve

Na fronte os crespos fios caem de leve.

Os olhos donde a luz raios envia,

Espalham mais fulgor que o próprio dia.

E das faces e lábios lentamente

Se derrama um aroma puro e ardente.

Bem como surge a aurora leda e grata

Ou como a lua na água se retrata:

Destarte o olhar, cheio d’amor infindo,

Entre as louras pestanas vai luzindo.

Bem como a cotovia alegre canta

E o rouxinol suspira em mágoa tanta:

Desta maneira o seu falar é doce,

Como se acaso magoado fosse.

Como as auras tranquilas e serenas

Espalham no ar fragrância d’açucenas:

Destarte os seus suspiros, revoando,

Deitam olor delicioso e brando.

Como enxame d’abelhas que prepara

Os frescos favos d’ambrosia rara:

Deste modo na boca só lhe coube

Néctar que amor não deixa que se roube.

E também como a rola meiga e mansa

D’afagar os filhinhos não se cansa:

Destarte, leve como uma asa d’ave,

Acaricia a sua mão suave.

Ditoso quem te amar, Eva formosa,

Pois nos teus braços brandamente goza

Doce prazer que nunca se define,

Por mais que nos encante e nos fascine,

E, embora dentro da alma se reserve,

Cada vez mais aumenta na alma, e ferve.

Eva

Anjos do céu que estais aqui comigo,

Dizei-me onde se encontra o meu amigo.

Em sonhos me ele veio não sei donde

Nem sei agora em que lugar se esconde.

Bem como a ovelha perde o cordeirinho

Que ao longe corre, mísero e mesquinho,

E co’uma dor e desprazer tamanho

Em busca dele deixa o seu rebanho

E não sossega na áspera peleja,

Até que novamente o encontre e veja:

Desta maneira irei por toda parte,

Ó meu amado esposo, a procurar-te.

Rafael

Eva, cessem por fim os teus cuidados,

Aqui debaixo dos jasmins nevados

Entre boninas e açucenas puras

Jaz ainda sonhando quem procuras.

Adão, o homem primeiro e teu esposo,

O qual verás mais ledo e mais ditoso

E cheio dum prazer perene e infindo,

Quando o plácido sono vai fugindo;

Porque então aos seus olhos sem engano

Há de surgir o aspecto soberano

Dessa humana visão, quase divina,

Que a mente em sonho apenas imagina:

Ei-lo que os olhos abre e em torno move,

Por que o contentamento se renove.

E como entre os verdores a áurea abelha

Pousa na rosa vivida e vermelha:

Destarte o olhar d’Adão pára e se enleva

Na milagrosa formosura d’Eva.

Adão

Eva, és tu que admirei no sono escuro?

Eva

Sou eu, Adão, sou eu que te procuro.

Adão

Amar-te eis o meu único desejo.

Eva

Presa d’eterno amor também me vejo.

Adão

Sê, pois, a mim perpetuamente unida,

Que dou pelos teus beijos alma e vida.

Eva

Adão, aqui me tens, enfim desperto

E nos teus olhos vejo o céu aberto.

Olha-me sempre assim, que eu sou escrava

Daquele firme amor com que te amava.

Eras o sonho que eu nos sonhos via,

E o que mais me alegrava na alegria,

Eras a minha aurora benfazeja,

Tudo quanto no mundo se deseja.

Adão

Amar e não viver, senão amando,

Quem pode imaginar gozo mais brando?

Quando brilha nos olhos a ternura,

Toda desfeita em luz serena e pura,

Quando nasce nos lábios a promessa

E o coração a suspirar começa,

Quando o sorriso fala e o beijo canta

Numa quietação suave e santa,

Amor não deixa mais que amor nos doa,

E alma com alma pelo espaço voa.

Vem, casta esposa minha, irmã formosa,

Aonde co’açucena cresce a rosa,

Aonde o cravo se une à violeta,

Antes que maio novos dons prometa.

Dize que me amas sempre, amiga minha,

Abril maravilhoso se avizinha

E docemente os verdes campos junca

De malmequeres que não morrem nunca.

Prendem-me os teus cabelos ao teu peito

E nunca este prazer seja desfeito.

De mil flores a vida se perfuma

E nunca cesse esta delícia suma,

Mas antes sempre noite e dia aumente

Cada vez mais constante e mais ardente,

Quando emudece a entrecortada fala

E o olhar vagos desejos assinala,

Quando amor faz que mais amor se adquira

E coração a coração suspira.

Eva

Ó para mim meiguíssimo sossego,

Quando ao corpo querido mais me achego

Com uma mansidão terna e tranquila

Que nunca diminui nem se aniquila:

Quando, buscando divinais assuntos,

Dois pensamentos sobem sempre juntos,

Quando mais estremeço e mais palpito,

Ouvindo um doce nome nunca dito,

E avivo o meu encanto e o meu agrado,

Sentindo um doce beijo nunca dado,

E quando dois espíritos unidos

Querem falar e soltam só gemidos.

Rafael

Sede no Paraíso venturosos

Entre os mais vários e inocentes gozos

E sempre o vosso amor floresça e viva,

Pois dele a humanidade se deriva.

Assim como a onda clara duma fonte

Desce rapidamente d’alto monte

E, ajuntando-se às águas d’algum rio

Que deslize entre lírios fugidio,

Vai derramar-se sem estorvo e embargo

No seio do oceano vasto e largo:

Desta maneira o afeto brando e puro

Há de ser infinito no futuro.

E quais d’antigo tronco ramos novos

Nascerão tribos e nações e povos

Que, atravessando os mares mais profundos,

Dominarão os mais longínquos mundos.

E agora o meigo e magoado salmo

Suba voando pelo empíreo calmo

E nunca os vossos corações comova,

Senão quem ADONAI bendiz e louva.

Coro

Ó glorioso dia, hora e momento,

Quando entre violetas e boninas

A mulher pareceu ao lado do homem.

No verde prado e no cerúleo assento

Não há flores mais frescas e mais finas

Nem astros que mais docemente assomem.

Os tempos não consomem

O etéreo gozo que nasceu com ela,

Nem o pudor constante

Que às vezes se revela

No súbito rubor do almo semblante.

E em nenhuma outra parte se depara

Coisa mais linda e pura

Que a formosura — milagrosa e rara.

A luz do sol lhe beija os olhos belos

E o chão que lhe sustenta o peso brando,

Disto mais alegria ainda sente.

Co’os leves e longuíssimos cabelos

O vento brinca e o rio, murmurando,

Lhe dá pérolas claras da corrente.

Porém mais fortemente

Que fogo, terra, ar e água

Adão sublime

Guarda no seio o afeto

Que entende e não exprime,

Tanto é sacro, inefável e secreto.

E mais ainda faz que ele se enleve

Cada rosa que nasce

Na lisa face — entre jasmins de neve.

Ei-los que se olham e já d’onda em onda

Soa dos ternos peitos o segredo,

Ei-lo que chega, ela, porém, se esquiva;

Ei-lo que espera em vão que ela responda,

E para quase, mas um riso ledo

Faz que o contentamento lhe reviva.

Então de fugitiva

Ela se torna mais mimosa e mansa

E assim, mole e benigna,

Enlanguesce e descansa

E a amar e a ser amada se resigna.

E, como em braços do álamo a videira,

Eva com Adão forte

Beija o consorte, — meiga e lisonjeira.

Ó ditoso himeneu, ó novo encanto

Que une dois corações num só desejo

E simultaneamente acende e acalma.

Ó momento d’amor suave e santo

E mais que todos grato e benfazejo,

Cuja eterna lembrança fica na alma.

A viridente palma

Dê sombra em horas plácidas e amenas

E deste campo infindo

Brotem mil açucenas

E do alto venham mil jasmins caindo.

E, ou seja em verde vale ou verde outeiro,

Cantem as flores todas

As castas bodas — do casal primeiro.

Gabriel

Anjos que celebrais as graças d’Eva,

Olhai, que outra mais clara luz se eleva.

E como, quando na celeste altura

Renasce a roxa aurora em noite escura,

A prateada lua afugentando

Co’as estrelas que a vão seguindo em bando

Em toda parte há cantadoras aves,

Em toda parte zéfiros suaves,

Aromas e fragrâncias fugidias,

Risos, prazeres, gozos e alegrias:

Assim ordena Deus que se levante

A imagem de MARIA radiante.

E vede a influição que nos domina

Desde que no Sinai a voz divina

Me revelou quanto vos digo agora,

Em nunca ouvida música sonora.

E é de lá que em ligeiro voo chego

Para derramar plácido sossego

Nos vossos corações que esperam tanto

A visão rara do milagre santo.

Coro

Já nos serenos horizontes brilha

A que há de ser Esposa, Mãe e Filha,

Pinta-se a etérea casa luminosa

D’ouro, d’azul, de púrpura e de rosa

E sobre nuvens mil de branca neve,

Tão sublime que a pluma a não descreve,

Surge a Flor de Judá formosa e insigne

A quem o arcanjo pede que se digne

De salvar a Israel, e eis se revela

O menino JESUS nos braços d’Ela.

Vede MARIA Virgem e admirai-a

Entre ondas de fragrância que se espraia:

Ornam estrelas doze a fronte sua,

Fulge-lhe em cima o sol e aos pés a lua.

E na alva veste e no cerúleo cinto

Cintila um novo lume nunca extinto.

E assim, das mais divinas graças cheia,

Um coro de virtudes a rodeia.

Bem como em torno duma rosa rubra

Que se abra à luz do dia, e se descubra,

E os aromas puríssimos derrame,

D’abelhas atraindo algum enxame

Que ora estejam chegando, ora partindo,

Com um sussurro sonoroso e infindo:

E bem como em redor da lua clara

Ali se ajunta e nunca se separa

O coro das estrelas rutilantes,

Para o alvo rosto erguendo os seus semblantes,

E, quando nasce o sol dourado e ardente,

Vão desaparecendo lentamente:

Desta maneira o bando luminoso

Das virtudes, sentindo etéreo gozo,

À Virgem casta acompanhar costuma

Pela áurea esfera suntuosa e suma.

Vê-se ali a prudência co’a justiça

Que tanto se deseja e se cobiça,

E a fortaleza ao lado e a temperança

Se notam juntas da humildade mansa

Que estende as mãos abertas à largueza,

Nos mais altos desejos sempre acesa.

E além se admira a castidade pura

Co’a branda paciência que segura

A caridade cujo ardor suave

Deus quer que em todo coração se grave,

Enquanto a diligência sobe e desce,

Sem que um momento o leve adejo cesse.

Bem como madressilva verde e mole

A natureza manda que se enrole

No tronco duma palma forte e esguia,

Donde o seu peso um pouco se alivia,

E, sem que nada lhe o progresso tolha,

Ajunta flor a flor e folha a folha:

Assim virtude com virtude unida,

Recebe de MARIA eterna vida.

Gabriel

Anjos, olhai agora claramente

Como já vêm surgindo no oriente,

Pisando nuvens, d’ouro jamais parcas,

Os bem-aventurados patriarcas

Co’os venerabilíssimos profetas,

Dizendo frases santas e secretas.

E olhai, a JESUS Cristo consagrado,

Dos apóstolos todos o senado.

Coro

Já vemos, revelando um novo arcano,

O triunfo superno e soberano:

Eis Abraão magnífico e sublime

Em quem a graça d’ADONAI se imprime

E a quem Isaac obediente e brando

Com Jacob forte vem acompanhando.

Eis Moisés majestoso e metuendo,

Para o seu povo a lei de Deus trazendo,

E o grande Samuel que com mão santa

Ao trono d’Israel os reis levanta.

Eis o grave Isaías altaneiro

E Ezequiel, o magno companheiro,

O justo Daniel e o saudoso

Jeremias sem paz e sem repouso.

E eis David cuja cítara canora

Melodiosamente geme e chora,

E Salomão sábio e prudente que há-de

Erguer o templo na ínclita cidade.

José co’um branco lírio ali se avista

E co’um dourado báculo o Batista.

Gaspar, o mago rei de terra ignota,

Com Melchior e Baltasar se nota,

Trazendo incenso, mirra e pedraria

Aonde a milagrosa estrela os guia.

E em luz que Deus faz que do empíreo mane,

Vêm Mateus, Lucas, Marcos e Joane.

E co’esplendor que em torno se traslada,

Traz Pedro a chave e Paulo traz a espada.

Gabriel

Anjos do céu, que nunca em vós se eclipse

Esta maravilhosa apocalipse

E nunca se redima nem desculpe

Quem o milagre na alma não esculpe.

Mas vede, em procissão solene e lenta,

Novo triunfo aos olhos se apresenta.

Coro

Cheia de claridade etérea e morna,

Toda a cerúlea abóbada se adorna.

E como pombas meigas e serenas

Batem as leves asas e alvas penas,

Volvendo mansamente ao ninho caro,

Brando refúgio e deleitoso amparo:

E também como lindas andorinhas,

Quando tu, primavera, te avizinhas,

Quando floresce o mirto e nasce a rosa,

Tornam à doce pátria venturosa:

Desta maneira pelo espaço infindo

Pulquérrimas mulheres vêm subindo.

Primeiro surge a sedutora Sara

Cuja lindeza todo o empíreo aclara,

E depois a dulcíssima Rebeca

Em que a fonte d’encantos nunca seca,

E num fulvo fulgor que as lava e inunda,

Co’a formosa Raquel, Lia fecunda.

E eis Débora e Judith firmes e fortes

Que não têm medo a guerras nem a mortes,

Susana casta co’Abisag pudica

De quem todo Israel se glorifica,

E a humilde Ruth que a nobre Ester abraça,

Ambas cheias d’amor, ternura e graça,

E numa placidez suave e amena

Com Zelfa e Bala, Marta e Madalena.

Gabriel

Anjos do céu, agora é já chegado

O momento d’ouvirdes o recado.

E, se a Deus fielmente obedecerdes,

Alcançareis as palmas sempre verdes:

Deus quer que os altos ânimos se domem

E nós, os anjos, adoremos o Homem

O qual a Virgem Mãe sublime e santa

Tão carinhosamente aos céus levanta.

Vinde e adorai co’uma afeição sincera

O Redentor que antes de ser já era

E co’o dom que do Espírito dimana,

Une a essência divina à essência humana.

Miguel

Curvo-me humilde à lei do Pai eterno,

Pois com a lei somente me governo.

Gabriel

Ledamente contigo adoro o Filho

E do seu puro amor me maravilho.

Rafael

Embora seja escuro este alto assunto,

Adorando o Homem-Deus, a vós me ajunto.

Coro

Glória a Deus nas alturas e na terra,

Que é só nele que todo o bem se encerra.

Gabriel

Anjos do céu, juntos dizei-me agora,

Erguendo a voz meiguíssima e sonora,

Dizei-me, se adorais o Deus Menino

A cujos pés aqui me curvo e inclino?

Coro

Sem que o mistério altíssimo entendamos,

Contigo todos juntos adoramos

Cristo JESUS, Filho de Deus, feito Homem,

Cuja memória os tempos não consomem.

Gabriel

E declarai, se venerais aquela

Fênix celestial, benigna e bela,

Virgem antes, durante e após o parto,

Donde Israel sedento e nunca farto

Recebe o maná vivo e verdadeiro,

Corpo e sangue do cândido Cordeiro?

Coro

Veneramos também juntos contigo

MARIA santa que no etéreo abrigo

Será no sólio raro e reluzente,

D’ouro e marfim composto ricamente,

Mais cara a Deus e d’Ele mais vizinha,

Dos anjos e dos homens a Rainha.

Gabriel

Desde o alto céu até à baixa terra

Nenhuma criatura guarda e encerra

Tanta virtude e encanto nunca visto

Como a Virgem que deu à luz o Cristo.

Filha do Pai e Mãe do Filho e Esposa

Do Espírito que nele se repousa,

Das três Pessoas derivando a graça

Que nunca diminui nem nunca passa.

Como a violeta amável e modesta

À verde alfombra os seus matizes presta

Quase que sem querer, mas um perfume

Tão suave e sutil em si resume,

Que outra cheirosa flor a não supera

De quantas faz brotar a primavera:

E como a rosa que, d’orvalho cheia,

Inclina a fronte e ainda se receia

D’olhar o sol que no cerúleo espaço

Espalha os raios d’ouro não escasso,

E, escondida entre a mole e imóvel erva,

No seio as raras pérolas conserva:

Desta maneira a Esposa, Mãe e Filha

Ante a santa Trindade surge e brilha.

Coro

E qual do girassol a flor estranha

Que, quando o louro dia as terras banha,

Os rubros resplendores vai seguindo

E à hora em que descem no oceano infindo,

Com sentimento e co’amargura chora,

Até que nasça novamente a aurora:

Destarte o coração, em mágoa posto,

Procura o brilho do formoso rosto

E a alma se torna dócil e tranquila,

Quando o sereno olhar no céu cintila.

E qual a cotovia em voo brando

Estende as asas pelo espaço, quando

O clarão da alva estrela matutina

As fugitivas nuvens ilumina,

E, toda cheia d’alegria e gozo,

Do alto derrama um som maravilhoso:

Assim a voz queixosa a cada instante

Em mansa melodia gema e cante

E o saudoso reclamo nunca cesse

Do amor ardente que no peito cresce.

E qual o beija-flor a flor deseja

Que mais mimosa e mais melíflua seja,

E errando voa entre purpúreos cravos,

Passionárias azuis e lírios flavos,

Até que chegue ao milagroso loto

Excelso, inatingível e remoto:

Não doutro modo o afeto casto e raro

À meiga Virgem pede brando amparo

E todo se desfaz, leve e risonho,

Num admirável e inocente sonho.

Gabriel

Louvado seja o nome de MARIA

E bendito de todos noite e dia,

Bendita a Conceição Imaculada

Que como linda e leda madrugada

Prepara o advento do celeste fruto,

JESUS, Menino cândido e impoluto.

E ainda mais bendito pelo Eterno

O amor virgíneo com o amor materno

Cuja suprema e altíssima virtude

Nunca as almas engana nem ilude.

Coro

Virgem humilde que do arcanjo ouviste

O anúncio venturoso e benfazejo,

Vestida de modéstia pura e santa,

O terno coração que não resiste

E põe somente em Deus o seu desejo,

Agora desce, agora se levanta.

E no semblante há tanta

Graça, inocência, amores e cuidados,

Como purpúreas rosas

Entre jasmins nevados

Vicejam nas campinas olorosas.

E como um alvo pombo, ao som dum hino,

Do céu resplandecente,

Vem mansamente — o Espírito divino.

Virgem honesta que na noite clara

O Salvador do mundo ao mundo deste,

Rodeada dos coros gloriosos;

Daquele sumo Deus que nos ampara,

Foste o vaso d’amor sacro e celeste

Que transbordava d’inefáveis gozos.

Os olhos carinhosos

Move suavemente aonde estamos

Com cítaras e avenas,

Com grinaldas e ramos

Nas horas mais alegres e serenas,

Ao Redentor JESUS e a ti, MARIA,

Louvando e celebrando

Em ritmo brando — e branda melodia.

Virgem clemente que entre aqueles doze

Apóstolos sagrados esperaste

Que do empíreo descesse o fogo e o lume,

Quem há que levantar os olhos ouse

Ou que aos teus pés formosos não se arraste,

Pedindo os bens que Deus em ti resume?

Canto, luz e perfume

E quanto se deseja e mais se admira,

O Onipotente manda

Que só por ti se adquira,

Das virgens todas a mais bela e branda;

Escuta as nossas súplicas constantes,

Dá-nos o etéreo gozo

Doce e ditoso — qual não era dantes.

Virgem amável, sobe ao claro assento

Onde o Pai com o Filho te coroa,

Enquanto no alto o Espírito descansa.

Chovam divinos dons cento e mais cento

Sobre ti, para nós benigna e boa,

Sobre ti, para Deus modesta e mansa.

Ó doçura e esperança

De quem a verdadeira paz cobiça,

Sublime e sempiterna:

Olha, aos teus pés, submissa,

A legião dos anjos se prosterna.

Salve, ó Rainha piedosa e pura,

Ó Filha, Mãe e Esposa

Em quem repousa — a glória e sempre dura.

Lúcifer

Anjos, que vejo? Sinto um dano acerbo,

Porventura adorais o novo Verbo?

JESUS, Filho de Deus e Filho do Homem,

Causa de quantas iras me consomem?

Coro

Sim, adoramos. Sem temor seremos

Fiéis aos mandos altos e supremos.

Lúcifer

O meu furor aumenta e não se extingue,

Mas quero crer, antes que em vós me vingue,

Que o sublime Miguel comigo esteja,

Forte em conselho e forte na peleja,

Com Gabriel de cujo puro lábio

Jorra o discurso altissonante e sábio,

E Rafael enfim o qual nos guia

Sem medo e sem pavor na láctea via.

Miguel

Curvo-me humilde à lei do Pai eterno,

Pois com a lei somente me governo.

Gabriel

Com Miguel ledamente adoro o Filho

E do seu puro amor me maravilho.

Rafael

Embora seja escuro este alto assunto,

Com Gabriel e com Miguel me ajunto.

Coro

Glória a Deus nas alturas e na terra,

Que é só nele que todo o bem se encerra.

E, levantando a voz clara e sonora,

Juntos diremos sempre como agora

Que adoramos JESUS, o Deus Menino,

Que a um tempo é tão humano quão divino.

E com igual ardor e graça tanta

Veneramos também a Virgem santa

Cujo olhar amoroso e meigo riso

Enchem d’almo prazer o Paraíso.

Lúcifer

E aceitais a Mulher para Rainha

Que é criatura débil e mesquinha?

Pois seja assim, que neste caso raro

Uma só coisa apenas vos declaro:

Pelejarei co’aqueles que pelejam,

Embora todos contra mim estejam,

E nunca aos pés me curvo da Criança

Que no regaço da Mulher descansa.

Nasci anjo e esquecer-me nunca posso

Da alta excelência e do alto estado nosso:

Mais vale (e o pensamento não me engana)

A angélica substância do que a humana.

Rafael

Não te deixes vencer de vãos desejos,

Funestos juntamente e malfazejos.

Que em toda coisa que parece escura,

O Criador ordena à criatura.

Rejeita, pois, toda doutrina falsa,

Que já no empíreo o novo Verbo se alça.

Isto é razão. E tudo mais te diga

A voz de Gabriel fecunda e amiga.

Lúcifer

De que me serve ouvi-lo, se o meu peito

À humilhação alguma está sujeito?

Gabriel

Mal sabes o que dizes e imaginas.

Quando tratamos de razões divinas,

Deves obedecer: eis o desejo

D’Aquele que nos foi tão benfazejo,

Tirando-nos do nada e dando tudo

A ti e a mim que d’Ele só me ajudo.

Ah como são fatais os teus assomos,

Não éramos primeiro e agora somos

E é só porque ADONAI onipotente

Nos empresta o poder que nos sustente.

Imortais e impassíveis, não tememos

De danos e de dores os extremos:

Ágeis, voamos pelo espaço infindo

E, claros, vamos na alma ressentindo

E revelando quase ao mesmo instante

Cada ideia que na alma se levante.

Vê, tudo é manifesto benefício

Do Criador magnânimo e propício

Que sempre em toda parte se revela,

Movendo o sol, a lua e cada estrela,

Na destra o cetro d’ouro e na sinistra

Tendo o globo terrestre que administra.

Cada elemento d’Ele se deriva:

O vento rapidíssimo, a luz viva,

A terra resistente, firme e dura

E a água mole e mudável que murmura.

Vê como ainda há maravilha tanta

E à semelhança da Trindade santa

A natureza tríplice se avista,

Material no mundo e no homem mista,

E espiritualmente em nós se imprime

Mais leve, mais sutil e mais sublime;

Que em toda criação excelsa e nobre

Do Artífice o retrato se descobre.

Louvemos, pois, o nome, e bendigamos,

D’Aquele cuja glória celebramos

Ao som d’harpa e d’avena noite e dia

E os nomes de JESUS e de MARIA.

Lúcifer

Vãmente da eloquência fazes uso,

Pois a adorar um Homem me recuso.

Gabriel

Vê como em perfeição tudo se move

Segundo a lei que faz que se renove

Cada dia a seu tempo, e cada noite,

Nem haja estrela que a mudar se afoite

O seu acostumado movimento,

Ou seja pressuroso ou seja lento.

Medita e, deste modo meditando,

Segue sem hesitar o sumo mando.

Somente ao Criador eterno e forte

Cabe determinar o fado e a sorte.

Desiste, pois, do teu desejo insano,

Para que enfim cessando o triste engano,

Não permaneças em soberba imerso

E não perturbes a ordem do universo.

Lúcifer

Não quero discutir serenamente

Em estilo dulcíssono e eloquente

Para em tom favorável ou contrário,

Vencer só com palavras o adversário.

Quero-vos exortar na hora oportuna,

Para que todos anjo co’anjo se una

E logo sem demora e sem repouso

Com peito altivo e braço poderoso

Conquistemos o espaço alto e infinito.

Miguel

Para trás, para trás, que eu não permito

Que passe por diante o atrevimento.

Adora ao Homem-Deus de quem me alento,

Ou pela cruz da minha boa espada

Verás a tua audácia castigada.

Lúcifer

Bem puderas chamar-me fraco e inerte.

Se me prestara acaso a obedecer-te.

Miguel

Mas eu aqui não deixo que os pecados

Toquem de leve os anjos sublimados

E, confiando em Deus alto e tremendo.

Com forte braço a lei de Deus defendo.

Gabriel

Glorifico, ó Miguel, o teu denodo,

Dos anjos tens contigo o coro todo:

E abaterás dum golpe co’a soberba

A avareza, a luxúria doce e acerba,

A ira que ferve, a gula que cobiça,

A vesga inveja e a flácida preguiça.

E, vencendo o dragão feroz e insano,

O mundo livrarás de todo dano

Que pelas suas sete fauces desce

E, se nenhum estorvo faz que cesse,

Em sete largos rios se reparte,

Espalhando veneno em toda parte.

Lúcifer

Eia, Miguel, se tens o peito fero,

Naquele verde prado é que eu te espero.

E os anjos todos lá verão se acaso

Podes lutar comigo em campo raso.

Miguel

Falas em vão. Não sinto o medo frio,

Pois que somente em ADONAI confio;

E assim verás qual maior prêmio alcança,

Se a tua audácia ou a minha confiança.

Lúcifer

Seja, pois que já me acho aparelhado

Co’o forte escudo e a fina espada ao lado.

Miguel

Soe nos espaços a terrível tuba

E o mais alto clangor se espalhe e suba,

Por todo este universo proclamando

Dos anjos o combate formidando

E que Miguel, lutando duramente,

Confia em ADONAI onipotente.

Gabriel

Aqui me espera, Rafael, co’o santo

Coro dos anjos imortais, enquanto

Durar o novo encontro nunca visto

Ao qual, segundo é o meu dever, assisto.

Rafael

Aqui te espero e espero ao mesmo instante.

Miguel vitorioso e triunfante,

Porque é justa razão que o bem supremo

Sempre domine o mal em todo extremo.

Gabriel

Assim Deus o permita e assim o mande,

Que Deus somente é poderoso e grande.

Rafael

Pelo anúncio arcangélico e jucundo,

Profetizando o Salvador do mundo

Que virá redimir de toda pena

A mesma gente indigna que o condena:

Pela visitação suave e grata,

Quando o louvor se espalha e se dilata,

Glorificando a castidade pura

Donde há de renascer toda a ventura:

Pelo natal de Cristo que prevejo,

Co’um inefabilíssimo desejo,

Quando retumbam no ar os novos hinos,

Versos d’amor e cânticos divinos:

Pela apresentação no excelso templo,

D’Aquele cuja glória já contemplo,

Quando em tons magoados o profeta

Chora e lamenta a dor longa e secreta:

Pelo encontro do qual me maravilho,

Da saudosa Mãe co’o meigo Filho,

Quando Deus faz que à terra se traslade

A etérea luz que ao bem nos persuade:

Na hora da tentação negra e sombria —

Coro

Roga por nós, ó Virgem Mãe MARIA.

Rafael

Pela agonia do Messias no horto,

Na mais profunda mágoa todo absorto,

Erguendo ao Pai a angustiosa prece,

Para que nunca a humana glória cesse:

Pela flagelação dura e importuna

Do justo Salvador, preso à coluna,

No horrendo sacrifício levantando

Os olhos para o céu sereno e brando:

Pela cruel coroação d’espinhos,

Quando os algozes feros e mesquinhos

Batem naquela fronte nobre e augusta

Que nenhum medo turva nem assusta:

Pela cruz santa que JESUS carrega,

Seguido pela gente bruta e cega,

Três vezes sopesando o lenho rude,

Sem que ninguém acaso o ampare e ajude.

Pelo momento doce e derradeiro,

Quando, pregado no áspero madeiro,

O Filho do Homem co’ânsia mansa e calma

A Deus entrega entre suspiros a alma:

Na hora da tentação negra e sombria —

Coro

Roga por nós, ó Virgem Mãe MARIA.

Rafael

Pela ressurreição de JESUS Cristo,

Dos olhos lacrimosos nunca visto,

Em alegria plácida e profunda

Transbordando de luz que os céus inunda:

Pela ascensão do Filho glorioso

Ao claro assento d’infinito gozo,

Quando o Padre celeste na áurea esfera

Entre ondas d’esplendor o aguarda e espera:

Pela vinda do Espírito sagrado

Aonde se reúne o grão senado

Dos discípulos castos e eloquentes

Os quais irão salvar nações e gentes:

Pela tua assunção maravilhosa,

Quando entre nuvens d’ouro, neve e rosa

Voas, pelos espaços transportada,

À região da eterna madrugada:

Pela coroação alta e sublime,

Quando a Trindade sacrossanta exprime

O triplo amor que se consagra e vota

A ti, Rainha egrégia e ainda ignota:

Na hora da tentação negra e sombria —

Coro

Roga por nós, ó Virgem Mãe MARIA.

Rafael

Roga por nós, Virgem MARIA, e escuta

Os contínuos suspiros de quem luta,

Em ti cuidando e só por ti gemendo

Neste combate formidando e horrendo.

Tu nos protege sempre e tu nos salva,

Ó para nós farol e estrela d’alva!

E, se no eterno pensamento vives,

Dessa visão divina não nos prives,

Mas surge como o véspero flutua

Entre o dourado sol e a argêntea lua,

Do dia marca o derradeiro instante

E co’o reflexo raro e rutilante,

Pousando aqui e ali, veloz e vago,

Treme de leve no cerúleo lago.

Coro

Deus d’Israel severo e onipotente

Que criaste e governas todo o mundo

Co’a força, co’a ciência e co’a vontade;

Tu que fazes surgir lá no oriente

Entre oceanos d’ouro o sol jucundo

E ordenas que de noite se traslade;

Agora com bondade

Põe os olhos em nós que aqui gememos,

E a nós empresta ouvido

Que soltamos extremos

Suspiros, só de peito entristecido,

ADONAI que desfazes todo dano,

Os teus servos liberta

Da fauce aberta — do dragão insano.

Senhor, bem vês agora e sempre viste

Como fomos fiéis aos teus mandatos

E sabes que o seremos no futuro;

De nós desvia essa ameaça triste

Do anjo mau que nos quis tornar ingratos

Ao sempiterno amor perfeito e puro.

Não haja nunca um muro

Que nos separe acaso um só momento,

Mas ao supremo aviso

Co’um desejo sedento

Se incline o coração nunca indeciso;

Pois que não temos mais outro cuidado,

Senão obedecer-te,

Que o bem converte — tudo em bem dobrado.

Vê como agora em áspera peleja

O herói assinalado e generoso

Contra o lobo cruento puxa a espada.

Ordena que a vitória tua seja,

Ó Deus que em sereníssimo repouso

Reges a natureza sublimada.

E chovam-lhe de cada

Mão poderosa as graças mais divinas,

O peito levantando

E a mente que iluminas

No combate medonho e formidando.

Dá-lhe desejo de perpétua glória,

Pois sem perseverança

Ninguém alcança — a palma da vitória.

Deus d’Israel, a nossa voz escuta,

Nascida dum afeto nunca extinto,

Deus vivo e verdadeiro e sempiterno.

Ajuda ao teu arcanjo em dura luta

Lá do excelso e estelífero recinto

Contra o malvado príncipe do inferno.

Ó tu que do superno

E alto assento co’as vagas iracundas

E co’as nuvens opacas

A terra e o espaço inundas

E depois toda a tempestade aplacas,

Manda que ao som do bronze que retumba,

E do aço que retine,

Miguel domine — e Lúcifer sucumba.

Rafael

Anjos, no céu se escute a nossa prece,

Até que a formidável luta cesse

E o arcanjo Gabriel notícias traga

Do triunfo que a mente vê, pressaga,

Porque, segundo creio em Deus, é certo

Que o momento esperado esteja perto.

Coro

A música murmure meiga e branda,

Conforme o amor divino ordena e manda.

E agora já com o ânimo tranquilo

Cantemos num suave e santo estilo,

Até que enfim, passando o tempo breve,

O aleluia dulcíssimo se eleve.

Rafael

Dizei-me, além por entre nuvens puras

Não vedes vós chegar duas figuras?

Coro

Dois nobres anjos vemos claramente,

Rastros de luz deixando no ambiente:

Este é Miguel co’um riso no semblante,

Na mão trazendo a espada rutilante,

Aquele é Gabriel co’alma serena,

Na mão trazendo a cândida açucena.

Glória, glória a ADONAI, três vezes glória

Pela gloriosíssima vitória!

E honra a Miguel arcanjo que sempre há-de

Guardar ao Criador fidelidade!

Gabriel

Anjos, ouvi a narração da luta

Contra a maldade e astúcia baixa e bruta

E o sublime triunfo nunca visto

Para glória e louvor de JESUS Cristo.

E que também retumbe no universo,

Depois de derrotado o arcanjo adverso,

Das armas e das tubas o ruído,

Saudando o vencedor nunca vencido,

E em toda parte celebrado seja

Miguel, invulnerável na peleja.

Já no terreno próprio e bem disposto

Estão os combatentes rosto a rosto,

Quando ao som da trombeta que se espera,

Lúcifer salta qual veloz pantera

E, andando em roda, com a fina ponta

A Miguel ameaça que traz pronta

A espada e juntamente pronto o escudo

E sem mover-se em pé, severo e mudo,

Somente os olhos do adversário fita,

Buscando ocasião que lhe permita

Dar um seguro passo mais avante,

Na mão direita o gládio rutilante.

Em vão Lúcifer tenta desarmá-lo.

Miguel do medo não conhece o abalo,

Mas antes em coragem vai crescendo,

Cada vez mais feroz e metuendo.

Qual áfrico leão soberbo e forte

Irosamente espalha em torno a morte

E, erguendo aos céus o formidável uivo,

Eriça todo o pelo crespo e ruivo

E logo se arremessa sem detença,

Até que rompa, fira, abata e vença:

Tal o arcanjo belígero e robusto

Co’ardente olhar infunde frio susto

No inimigo que, vendo força tanta,

Três vezes cai, três vezes se levanta

E por fim em letárgico repouso

Jaz aos pés de Miguel vitorioso.

Coro

Glória, glória a ADONAI, três vezes glória

Pela gloriosíssima vitória!

E honra a Miguel arcanjo que sempre há-de

Guardar ao Criador fidelidade!

Miguel

Anjos que a dura provação vencestes,

Vinde comigo às regiões celestes

Onde vejo num trono de safira

ADONAI ELOIM ao qual suspira

A criatura que não vive, enquanto

Não torna ao seu princípio eterno e santo;

Nem temos outro fim nem outro meio

Que não seja ADONAI, de glória cheio:

De Deus viemos e por Deus vivemos

E a Deus que nos ajuda, voltaremos.

Gabriel

Sigamos a Miguel, que ele nos leva

Aonde nunca se conhece treva.

Rafael

À região do sempiterno dia

Onde o etéreo esplendor nos alumia.

Coro

Que visão majestosa se apresenta,

Subindo pelo espaço lenta e lenta?

A visão da amantíssima Trindade

Cujo ardor nos inunda e nos invade:

Deus Padre, o Criador onipotente,

Deus Filho, o Salvador da humana gente,

Deus Espírito santo e sempiterno,

O Glorificador que vence o inferno.

Quem nos dará ligeiras penas e asas

Para deixarmos as campinas rasas

E como cisnes que pelo ar vizinho

Vão revoando para o doce ninho,

Antes que em duro e doloroso transe

A águia cruel e pérfida os alcance,

Pousam numa enseada mansa e curva

Cujo claro cristal nunca se turva:

E também como cervos mal feridos

Que abafam os tristíssimos gemidos

E, traspassados duma aguda seta,

Numa carreira célere e inquieta

Vão ansiosamente à fresca fonte

Onde não há perigo que os afronte:

Assim subamos para o sólio puro

Onde entre Deus e os anjos não há muro.

Então, do nosso Criador mais perto,

Veremos como num espelho aberto,

Do empíreo descerrando-se as cortinas,

Mais claramente as perfeições divinas:

A potência que cria o céu e a terra,

A sapiência que tudo abarca e encerra,

A bondade que toda mágoa abranda,

Para que dentro da alma não se expanda,

A imensidade que não tem limite,

A providência que prever permite,

A justiça que pune, sendo boa,

Com a misericórdia que perdoa,

E co’a beneficência que governa,

A infinidade e a caridade eterna.

Miguel

É dessa caridade que esperamos

A áurea coroa e os viridentes ramos.

Cantai, anjos, cantai com alegria,

Glorificai ELOA noite e dia.

E o saltério do amor maravilhoso

Exprima o nosso indefinível gozo,

Acompanhado em melodia amena

Com harpa e lira, com trombeta e avena,

Para que todos juntamente em coro

Louvemos ADONAI imorredouro.

Gabriel

Anjos, agora aos claros céus voemos

E lá nos claros céus descansaremos.

Rafael

Anjos, à alta mansão vinde comigo,

Deus nos espera no celeste abrigo.

Coro

No éter sublime

Se espalhe o canto

Que na alma imprime

Afeto santo.

A voz sonora

Como voz d’ave

Derrame agora

Amor suave.

Ao céu sereno

Se eleve e suba

Em meigo treno

Avena e tuba.

Voe o som brando

Da harpa e da lira

Que, murmurando,

Geme e suspira.

Paz benfazeja

De nós se apossa,

Louvada seja

A pátria nossa.

Ao gozo infindo

O gozo quadre:

Reine sorrindo

O eterno Padre.

Miguel

Qual íris, rutilando na áureo espaço,

Sobe num voo vagaroso e lasso:

Destarte a Virgem Mãe surge sem susto

Diante d’ADONAI soberbo e augusto.

Coro

Salve, ó Senhora,

Cheia de graça!

Luz que nos doura,

Não se desfaça;

Mas docemente,

Plácida e pura,

No peito aumente

Rara ventura.

Ó tu, mais nobre

Dentre as donzelas,

Bem que se encobre,

Tu nos revelas:

JESUS, Menino

Meigo e risonho,

Mimo divino,

Divino sonho.

Mãe sempre amada,

Sempre querida,

Na madrugada

Da nova vida;

Cesse o teu breve

Voo indeciso:

JESUS te eleve

Ao Paraíso.

Gabriel

Nasçam rosas gentis pelo caminho,

Corram brandos perfumes no ar vizinho,

Que todo o brilho já se manifesta

Da Virgem admirável e modesta.

Coro

Eis vem a Esposa

Cândida e calma

Em quem repousa

Encanto d’alma.

Rúbido pejo

O rosto inunda

Tão benfazejo

Em paz profunda.

Flor de laranja

Nas tranças cheira,

Mas não lha tanja

A aura ligeira.

E com agrados,

Tímida e inerte,

Cravos nevados

A mão aperte.

Salve, ó Rainha

Mimosa e mansa,

À alma mesquinha

Traze esperança:

Não transitória

Flor dum instante,

Mas alta glória,

Inebriante.

Rafael

Já do seio d’ELOA não se afasta

A Virgem meiga, encantadora e casta

E, como claramente vejo e advirto,

No céu mais do que o louro vale o mirto.

Coro

Juntas e unidas,

Em voos lentos

Vão duas vidas,

Dois pensamentos:

Aonde nasce

Como perfume

Bem não fugace

Que amor resume.

Ninguém na terra

Nunca se indigne

Contra o que encerra

Ânfora insigne:

Coração ledo,

Fechado cofre,

Guardas segredo

De quem não sofre.

Coração puro,

Supremo amparo

E forte muro,

Aos anjos caro:

Tu nos consomes

Em alegria

Co’os doces nomes

JESUS, MARIA.

Miguel

Anjos do céu, cantai um canto novo

À Fênix santa que bendigo e louvo.

Coro

Vaso argênteo d’amor, donde o jucundo

Aroma se derrama pelo mundo,

Donde nascem virgíneas açucenas

Olorosas, melíficas e amenas,

Os zéfiros fagueiros perfumando

Co’o eflúvio mais sutil, mais leve e brando:

Ebúrnea torre de queixosas aves,

Do frágil ninho os sons altos e graves

Suavissimamente despedindo

Com um murmúrio saudoso e infindo,

Quando entre nuvens róseas surge fora

A reluzente e rubicunda aurora:

Áurea mansão d’inúmeras abelhas,

Beijando flores níveas e vermelhas,

De jasmim em jasmim, de cravo em cravo

Colhendo o néctar esquisito e flavo

Que da corola imóvel e tranquila

Entre ondas d’ambrosia se destila;

Porta celeste e resplendente, aonde,

Quando o dia claríssimo se esconde,

Durante a noite calorosa e calma

Úmidas folhas d’amaranto e palma

Se erguem, sorvendo o orvalho deleitoso

Em puro enlevo e lânguido repouso:

De ti, MARIA, vêm as esperanças

Que para nós na láctea via alcanças,

De ti vêm os prazeres e as doçuras,

Que para nós com afeição procuras,

Cheia da graça rara que convinha

A quem da corte angélica é Rainha.

A ti sobem os sôfregos desejos

Imensos, infinitos e sobejos

E lentamente as ilusões e os sonhos

Pelos ares cerúleos e risonhos.

Ó Mãe d’EMANUEL, sempre querida

De quem ao sumo gozo nos convida:

Por ti, MARIA, os duros sofrimentos

Deixam de ser penosos e cruentos,

As longas dores e os extremos danos

Deixam de ser ferinos e tiranos,

Ó Donzela seráfica e divina,

Em ti se encontra doce medicina:

Flor de Judá, MARIA graciosa,

Lírio sem mancha e sem espinho rosa,

Salva-nos tu que és cândida e impoluta,

Os nossos hinos mansamente escuta

E com ternura meiga e benfazeja

Roga a JESUS amado que assim seja.

Miguel

Ponde os olhos na cruz que aqui levanto,

E vencereis pelo madeiro santo.

Gabriel

E, tendo o pensamento em Deus absorto,

A âncora deitareis no etéreo porto.

Rafael

Onde vereis em flama que irradia,

O coração do Filho de MARIA.

Coro

Hosana, hosana, hosana lá na altura

Desde a manhã serena à noite escura.

Glória, glória a ADONAI onipotente,

Glória a ADONAI agora e eternamente.

 

TRIUNFO

Era no tempo, quando a terra perde

O alvo manto de neve e a doce Flora

Adorna o bosque e esmalta o campo verde.

Nos ares se ouve a música sonora

De Progne que lá vai, lânguida e lenta,

Tornando aonde Filomela mora.

Eis sobre o manso e livre de tormenta

Assento das Nereidas saudosas

Um triunfo aos meus olhos se apresenta.

Coberto só de lírios e de rosas,

Aurifulgente carro vem trazido

Por mil pombinhas meigas e amorosas.

Nele co’ ledo e trêfego Cupido

Está Vênus serena e sorridente

A cujo raro encanto andei rendido.

E o seu olhar se alonga no ambiente

Como uma clara estrela matutina

Começa a cintilar suavemente.

E o seu sorriso voa na campina

Como um jasmim que docemente caia,

Quando Favônio a leve rama inclina.

E entre ondas de perfume que se espraia,

Vêm as Graças gentis em brando adejo:

Eufrosina e Talia com Aglaia.

E as Horas imortais admiro e vejo:

Diceia, Eunômia e Irene co’a formosa

Musa que ainda acende o meu desejo.

Esta é quem só d’amores vive e goza,

Esta é quem faz que eu só d’amores cante

Em melodia doce e dolorosa.

Cerúleo véu lhe cobre o almo semblante,

Porém um não sei quê me leva e obriga

A erguer a voz chorosa e suplicante:

Ó tu, minha dulcíssima inimiga

Que a toda parte aonde me traslado,

Manda que o amor eterno me persiga;

Ó tu que vais causando o meu cuidado

E fazes tanto mal, sendo tão boa,

Escuta os ais dum peito magoado.

Pois quando ordenas que este amor me doa,

Como uma ave cansada torna ao ninho,

Ao teu regaço o meu desejo voa.

Ah, não me deixes nunca andar sozinho

Mas dá-me sempre em aflição tamanha,

Um pouco de consolo e de carinho.

Ó meu sonho d’amor, tu me acompanha

Por esta vida, às vezes tão escura.

Por esta vida, às vezes tão estranha.

E com toda essa angélica doçura

Vai-me suavizando a saudade

Que tanto me atormenta e me tortura.

Porque enfim já me tudo persuade

Que onde não brilha o teu olhar sereno,

Não se pode encontrar felicidade.

Em vão corro, em vão mudo de terreno,

Em vão busco fugir aos meus pesares.

Em toda parte enfim padeço e peno.

Porém, se mansamente me guiares

Hei de vencer o duro sofrimento.

Guia-me sempre e não me desampares.

Agora sem descanso me lamento,

Andando assim no meio do perigo

Pelo caminho longo a passo lento.

Porém, se porventura vens comigo,

Como um pequeno passarinho implume

À sombra dessas asas acho abrigo.

E, da vista seguindo o brando lume,

Sentindo perto o coração suave

Onde todo o meu bem se me resume,

Tendo nas mãos desse teu peito a chave,

Nunca murmurarei contra o destino

Por mais que a saudade se me agrave.

Assim falei e em pranto cristalino

Transbordava o amaríssimo desgosto

Que nasceu do mais doce desatino.

E deste estranho modo, estando posto

No etéreo Paraíso ressentia

A influição do seu formoso rosto.

E qual aurora que do espaço envia

Ao baixo mundo o raio claro e ardente,

Afugentando a noite negra e fria:

Ela, movendo os olhos ternamente

Entre um suspiro e outro suspiro, disse

Como quem na alma só tristeza sente:

Caro amador, nunca houve quem te visse

Senão tratando só do afeto puro

Que o amor manda que sempre se cobice.

O mesmo bem procuras que procuro

E em pago do teu longo sofrimento

Aqui verás pintado o teu futuro.

Ouve-me, nunca viverás isento

D’arte ou d’engenho e sempre terás na alma

Da poesia o brando sentimento.

Terás a doce avena que te acalma,

E a belicosa tuba que te anima,

Para que alcances sempiterna palma.

E voando no espaço, lá de cima

Espalharás em sonoroso canto

O que nunca se disse em verso ou rima.

Nunca te faltará do monte santo

A proteção benigna e benfazeja

Das nove Musas a quem amas tanto;

Que eu te prometo que o Parnaso seja

Em teu favor, e desta vida escura

Evites a vulgar e vil peleja.

Sentes comigo a mesma desventura

E o mesmo gozo, e cheia de gemidos,

Na mesma língua a tua voz murmura.

Ah, nunca de mim sejam esquecidos

Os acentos da música celeste

Que vencem e arrebatam os sentidos.

E como sempre assim cantar quiseste,

Em sons ou d’amargura ou d’alegria,

Farei que o teu amor se manifeste.

E erguerás nesta vida fugidia

Um monumento como outrora os houve

Contra que o duro tempo em vão porfia.

E embora a gente humana te não louve,

Hás de viver contente, conhecendo

Que Polímnia te inspira e Apolo te ouve.

Assim falou e a flama em que me acendo

Dentro do coração ia aumentando

Enquanto a doce voz ia gemendo.

E ela, que de Cupido segue o mando,

Colheu no bosque os ramos duradouros

E co’um sorriso milagroso e brando

Me coroou de mirtos e de louros.

 

DEZ SONETOS ESCOLHIDOS PELO AUTOR

10 SONETOS

I

Poeta fui e do áspero destino

Senti bem cedo a mão pesada e dura.

Conheci mais tristeza que ventura

E sempre andei errante e peregrino.

Vivi sujeito ao doce desatino

Que tanto engana mas tão pouco dura;

E inda choro o rigor da sorte escura,

Se nas dores passadas imagino.

Porém, como me agora vejo isento

Dos sonhos que sonhava noite e dia

E só com saudades me atormento;

Entendo que não tive outra alegria

Nem nunca outro qualquer contentamento,

Senão de ter cantado o que sofria.

II

Ditoso quem foi sempre desamado

Nem nunca na alma viu pintar-se o gozo,

Que lhe promete estado venturoso

Para depois deixá-lo em triste estado.

Já me de todo agora persuado

De que não pode haver brando repouso,

E do afeto mais doce e deleitoso

Se gera às vezes o maior cuidado.

Não quero boa sorte nem sonhá-la,

Pois logo passa, apenas se revela,

Com uma dor que outra nenhuma iguala.

Mas quem desconheceu benigna estrela,

Se não teve a alegria de alcançá-la,

Nunca teve o desgosto de perdê-la.

III

Amar é desejar o sofrimento

E contentar-se só de ter sofrido,

Sem um suspiro vão, sem um gemido,

No mal mais doloroso e mais cruento.

É vagar desta vida tão isento

E deste mundo enfim tão esquecido,

É pôr o seu cuidar num só sentido

E todo o seu sentir num só tormento.

É nascer qual humilde carpinteiro,

De rudes pescadores rodeado,

Caminhando ao suplício derradeiro.

É viver sem carinho nem agrado,

É ser enfim vendido por dinheiro,

E entre ladrões morrer crucificado.

IV

Mata-me, puro Amor, mas docemente,

Para que eu sinta as dores que sentiste

Naquele dia tenebroso e triste

De suplício implacável e inclemente.

Faze que a dura pena me atormente

E de todo me vença e me conquiste,

Que o peito saudoso não resiste

E o coração cansado já consente.

E como te amei sempre e sempre te amo,

Deixa-me agora padecer contigo

E depois alcançar o eterno ramo.

E, abrindo as asas para o etéreo abrigo,

Divino Amor, escuta que eu te chamo,

Divino Amor, espera que eu te sigo.

V

Senhor, assim pregado ao duro lenho,

Não negas a ninguém o teu socorro;

A mim, pois, que de mágoa vivo e morro,

Dá-me o brando sossego que não tenho.

Em te amar sempre ponho todo o empenho,

Vendo do puro sangue o frio jorro,

E com suspiros aos teus braços corro

E ao pé da santa cruz deitar-me venho.

Olha como foi triste o meu destino,

Sem esperanças quase e sem venturas,

Apenas com os sonhos que imagino.

Lembra-te destas dores tão escuras,

De que tu és o meu Pastor divino

E de que eu sou a ovelha que procuras.

VI

Ó todos que sabeis o que é tristeza

E andais em busca da ilusão perdida,

Tende pena da mágoa sem medida

Numa alma contra as dores indefesa.

Olhai quanta aflição, quanta aspereza

A Virgem casta conheceu na vida,

Estando ao Filho eternamente unida,

Só no divino e puro amor acesa.

Vede esse piedoso sofrimento

E acompanhai MARIA no seu pranto,

Que eu mesmo os próprios males não lamento.

Ouvi-lhe a doce voz no templo santo,

Pois nunca houve martírio tão cruento

Nem coração que padecesse tanto.

VII

Não quero mais viver sem sofrimento,

Mas a chorar me entrego e me decido

E em toda parte seja conhecido

Quanto n’alma me dói o mal cruento.

Se é grande a mágoa, se o martírio é lento,

Se é longo e doloroso o meu gemido,

De todo transformado e convertido,

Só das mais duras penas me contento.

Aqui, Senhor, ao pé do lenho santo,

Ordena que a tristeza escura cresça,

Manda que aumente o saudoso pranto;

Que, embora a dor me seja estranha e avessa,

Se no Calvário padecias tanto,

Há mais razão para que eu mais padeça.

VIII

Eu não sabia que me amavas tanto,

Ó meu Deus, o meu Pai brando e bondoso,

Senão quando perdi ventura e gozo,

Esperança, alegria, sonho e encanto.

Então no meio de mortal quebranto,

Sem achar um momento de repouso,

Conheci quanto o amor é poderoso,

Quanto é puro e profundo, meigo e santo.

E se de castigar-me não desistes,

E mandas que a tortura mais me aperte,

Rogo-te que de todo me conquistes;

Para, quando a alma às dores se converte,

Erguer ao claro céu os olhos tristes

E com maior ternura bendizer-te.

IX

Bom Jesus, amador das almas puras,

Bom Jesus, amador das almas mansas,

De ti vêm as serenas esperanças,

De ti vêm as angélicas doçuras.

Em toda parte vejo que procuras

O pecador ingrato e não descansas,

Para lhe dar as bem-aventuranças

Que os espíritos gozam nas alturas.

A mim, pois, que de mágoa desatino

E, noite e dia, em lágrimas me banho,

Vem abrandar o meu cruel destino.

E, terminado este degredo estranho,

Tem compaixão de mim, Pastor Divino,

Que não falte uma ovelha ao teu rebanho!

X

Se amar é procurar a coisa amada

E unir duas vontades num desejo,

Se é ressentir um mal tão benfazejo

Que quanto mais tortura, mais agrada;

Se amar é sofrer tudo por um nada

E a um tempo achar que é pouco e que é sobejo,

Já claramente agora entendo e vejo

Que não há quem de amor me dissuada.

Ó doce inquietação e doce engano,

Doce padecimento e desatino

De que não me envergonho, antes me ufano!

Comigo quantas vezes imagino:

Se é tão doce na terra o amor humano,

Que não será no Céu o amor divino?!

 

OUTROS SONETOS

(Não publicados pelo autor)

I

O cisne naquela hora extrema, quando

Vem caindo a perpétua noite escura,

Do espesso bosque a solidão procura,

Saudosissimamente suspirando.

E o novo som melodioso e brando,

Cheio só de desgosto e mágoa pura,

Os piedosos peitos sem ventura

Ao longe e ao perto vai dilacerando.

Assim também, sujeito à dura sorte,

Espalho o meu queixume no ambiente,

Para que me alivie e me conforte.

Sinto a mesma tristeza que a ave sente.

Pois Amor torna a vida numa morte,

Que me tortura e mata lentamente.

II

Já não vejo, senão na fantasia,

Aquele meigo olhar e riso brando,

Riso que me ia o próprio céu mostrando,

Olhar que o próprio sol escurecia.

Já não ouço a cadência fugidia

Daquela terna voz, de quando em quando,

Amorosos acentos modulando

Na mais suave e doce melodia.

Ó triste saudade, ó mágoa escura!

Como pode viver quem geme e chora

Pelo bem que deseja e em vão procura?

Ai de mim, que me tudo falta agora:

Aos meus olhos serena formosura

E aos meus ouvidos música sonora.

III

Depois que do farpão cruel e agudo

Trago o meu brando coração ferido,

D’Amor não mais descreio nem duvido,

Co’Amor não mais me engano nem me iludo.

Pois era cego e vejo, estava mudo

E a voz espalho em canto nunca ouvido,

Vivia surdo e ouço o menor gemido,

Nada sentia e sinto agora tudo.

Sinto arder fogo e resfriar-se gelo,

Pesar-me mágoa e aliviar-me gozo,

E um bem ando buscando sem querê-lo.

Desejo e não desejo, ouso e não ouso,

E, só porque fitei um rosto belo,

Rio, padeço, choro e sou ditoso.

IV

Aos outros hei de parecer contente,

Guardando na alma a dor, fingindo o gozo,

Mas não é de verdade venturoso

Quem tantas mágoas, como sinto, sente.

E embora viva rindo alegremente,

Iludir a mim mesmo já não ouso,

Que para um coração tão saudoso

Não há nenhum engano que se invente.

Fica em tudo vencido o meu desejo

E pouco a pouco já me persuado

Da dura condição em que me vejo.

E só resta um consolo neste estado:

Pode tornar-se Amor mais malfazejo

Mas eu não posso ser mais desgraçado.

V

Desejo ser ditoso e vivo triste.

Continuamente entregue à desventura,

Enquanto o coração um bem procura,

Mas ao mal, que o persegue, não resiste.

A vida para mim em dor consiste,

Donde mais cresce a pena e me tortura:

Sofrendo, como sofro, sorte escura,

Dize-me, Amor, se acaso alguém já viste?

E é tal o meu tormento e o meu cuidado,

Que faz que dia e noite eu me lamente,

Da causa dos meus danos não lembrado;

Pois nem sei, quando corre o pranto ardente,

Se choro mais os gostos do passado,

Se choro mais as mágoas do presente.

VI

Se dum tormento vem maior tormento,

Se, duma mágoa, maior mágoa nasce,

Quem na vida tristíssima e fugace

De penas pode acaso andar isento?

Destarte, inexorável e cruento,

Nunca o fado deixou que se abrandasse

A minha dor, nem deixa que se passe

Sem pranto e sem gemido um só momento.

E em vão os meus cuidados suavizo,

As lágrimas me correm pelo rosto

E o coração é tímido e indeciso.

Numa saudade eterna vivo posto:

Acabou-se o meu sonho d’improviso,

Nunca mais se acabou o meu desgosto.

VII

Eu, que continuamente andei chorando,

Sem paz, sem alegria e sem repouso,

Ter esperanças e ilusões não ouso,

Assim desconsolado e miserando.

E corro e fujo para longe, quando

Imagino que vem surgindo um gozo,

E, nunca desejando ser ditoso,

Este meu duro estado não abrando.

Enfim, prefiro um dia de desgraça

A um momento enganoso de ventura,

Donde uma maior pena e mágoa nasça.

A vida me parece triste e escura

E na minha alma um bem, que logo passa,

Dói muito mais que um mal, que sempre dura.

VIII

Quando alguém, padecendo dor sombria

Em meio de constante desalento,

Move o olhar não de lágrimas isento,

Mas cheio de tristeza e d’agonia;

Então, vendo que aos outros cada dia

O destino igualmente foi cruento,

Já cessa um pouco e abafa o seu lamento

E um pouco se consola e se alivia.

Mas eu, que trago esta alma quase extinta

E ao Céu sereno os braços ergo e estendo,

Olhando o bem que a fantasia pinta,

Para abrandar o meu tormento horrendo,

Pelo mundo procuro em vão quem sinta

A metade do mal que estou sofrendo.

IX

Doce me foi viver, quando sonhava

E entre esperanças e ilusões sorria,

Antes de conhecer a dor sombria

Cuja lembrança na alma inda se grava.

Naquele tempo não adivinhava

A pena sem igual que dura um dia

Mas sempre faz surgir a fonte fria

Que os saudosos olhos banha e lava.

Cansado coração, tu nunca viste

Outro que tanto gozo e mágoa sente,

Outro que a tanto bem e mal resiste.

Amor te castigou severamente,

Pois foste, uma só vez apenas, triste

E nunca mais tornaste a ser contente.

X

Trato só da perpétua saudade

Que mora neste peito desditoso,

Mas o queixume derramar não ouso

Com medo de que aos outros desagrade.

Se entanto de gemer me dissuade

O coração, tão cedo desgostoso,

Ordena e manda Amor que sem repouso

Tudo que sofro em canto se traslade.

Oh! triste verso meu, pois vais partindo

Por este baixo e escuro mundo em que ando

Para espalhar o meu tormento infindo:

Ah! seja o teu destino manso e brando.

Porém, se te alguém ler acaso rindo,

Dize-lhe então que te escrevi chorando!

XI

Se ponho os tristes olhos no passado

E no futuro emprego o meu sentido,

Lamento o longo tempo mal vivido

E o breve esforço mal recompensado.

E não levanto queixas contra o fado,

Mas, entre mil suspiros, um gemido

De brando coração arrependido,

De brando coração desenganado.

Já reconheço agora o vão desejo:

O que procuro mais, menos alcanço;

O que mais imagino, menos vejo.

E quero enfim subir em voo manso,

Para deixar o mundo malfazejo

E lá no Céu achar o meu descanso.

XII

Se deito para trás o pensamento

Pelo caminho das passadas horas,

A causa reconheço por que choras,

Ó coração de mágoa nunca isento.

Vejo o lugar de cada sofrimento,

Onde espalhaste queixas tão sonoras,

Onde imploraste o bem que ainda imploras,

E lamentaste o mal duro e cruento.

Aqui primeiro foste desgraçado,

Ali deste um languíssimo gemido,

Aqui nasceu tristeza, ali cuidado.

Do teu destino triste não duvido.

Pois que não vejo em todo teu passado,

Um dia em que não tenhas padecido.

XIII

Aquele Amor tão brando e tão sereno

Que me tornou ditoso e desgraçado,

Por ele só piedosamente brado

E a um longo sofrimento me condeno.

Por ele só mudei o canto ameno

Para espalhar no mundo o meu cuidado,

Por ele só fui bem-aventurado,

Por ele só enfim padeço e peno.

Por ele andei chorando e andei gemendo

Com a vã esperança de que um dia

Passasse o meu tormento duro e horrendo.

Por ele vi quanto a alma me doía

E tristemente suspirei, sabendo

Que a mágoa nunca mais acabaria.

XIV

Amor que imaginei, mas nunca tive.

Tão doce enlevo e tão cruel tormento,

Por tua causa choro e me lamento,

Sem que às dores duríssimas me esquive.

Aquele antigo sonho ainda vive

Neste meu coração triste e sedento

E, posto que me seja sofrimento,

Imploro ao Céu que dele me não prive.

Bem, que a males perpétuos me condenas,

Sem a tua presença pura e mansa

As horas vão e vêm, mas não serenas.

De tanto padecer o peito cansa.

Mas entre mil torturas e mil penas

Ainda permanece uma esperança.

XV

Amar é ter no peito uma esperança,

Uma ilusão dulcíssima e um desejo

Dalgum sonho ditoso e benfazejo,

O qual, por ser um sonho, não se alcança.

A sentir uma dor suave e mansa

Que não se acaba, um gozo tão sobejo,

Que desatina, uma ousadia e um pejo,

Um descuido e um cuidado sem mudança.

Amar é bendizer o sofrimento

Que cresce dentro da alma e se dilata,

Sem nunca lamentar o mal cruento.

É bendizer a sorte dura e ingrata,

É bendizer o dia, hora e momento

Em que nasceu a mágoa que nos mata.

                                    LAUS DEO