Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico

Poemas Irônicos, Venenosos e Sarcásticos, de Álvares de Azevedo


Edição de base:
Biblioteca Nacional – setor de obras digitalizadas

PREFÁCIO

Cuidado, leitor, ao voltar esta página!

Aqui dissipa‑se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar n’um mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Barataria de D. Quixote, onde Sancho é rei, e vivem Panúrgio, Sir John Falstaff, Bardolph, Fígaro e o Sganarello de D. João Tenório: — a pátria dos sonhos de Cervantes e Shakespeare.

Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban.

A razão é simples. É que a unidade deste livro se funda n’uma binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.

Demais, perdoem‑me os poetas do tempo, isto aqui é um tema, senão mais novo, menos esgotado ao menos que o sentimentalismo tão fashionable desde Werther e René.

Por um espírito de contradição, quando os homens se vêem inundados de páginas amorosas, preferem um conto de Boccacio, uma caricatura de Rabelais, uma cena de Falstaff no Henrique IV de Shakespeare, um provérbio fantástico daquele polisson Alfredo de Musset, a todas as ternuras elegíacas dessa poesia de arremedo que anda na moda, e reduz as moedas de oiro sem liga dos grandes poetas ao troco de cobre, divisível até ao extremo, dos liliputianos poetastros. — Antes da Quaresma há o Carnaval.

Há uma crise nos séculos como nos homens. É quando a poesia cegou deslumbrada de fitar‑se no misticismo, e caiu do céu sentindo exaustas as suas asas de oiro.

O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem. Homo sum, como dizia o célebre Romano. Vê, ouve, sente e, o que é mais, sonha de noite as belas visões palpáveis  de acordado. Tem nervos, tem fibra e tem artérias — isto é, antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo. E, digam o que quiserem, sem esses elementos, que sou o primeiro a reconhecer muito prosaicos, não há poesia.

O que acontece? Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma ainda trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta porque sua vida é amor e canto, o que pode senão fazer o poema dos amores da vida real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser erótico sem ser monótono. Digam e creiam o que quiserem. Todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos.

O poema então começa pelos últimos crepúsculos do misticismo, brilhando sobre a vida como a tarde sobre a terra. A poesia puríssima banha com seu reflexo ideal a beleza sensível e nua.

Depois a doença da vida, que não dá ao mundo objetivo cores tão azuladas como o nome britânico de blue devils, descarna e injeta de fel cada vez mais o coração. Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde.

É assim. Depois dos poemas épicos, Homero escreveu o poema irônico. Goethe depois de Werther criou o Fausto. Depois de Parisina e o Giaour, de Byron, vem o Cain e Don Juan Don Juan que começa como Cain pelo amor, e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcástica.

Agora basta.

Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não lesses essas páginas, destinadas a não ser lidas. Deus me perdoe! assim é tudo! até os prefácios!

UM CADÁVER DE POETA

Levem ao túmulo aquele que parece um cadáver!

Tu não pesaste sobre a terra: a terra te seja leve!

L. Uhland

I

De tanta inspiração e tanta vida

Que os nervos convulsivos inflamava

E ardia sem conforto.. .

O que resta? uma sombra esvaecida,

Um triste que sem mãe agonizava...

Resta um poeta morto!

Morrer! e resvalar na sepultura,

Frias na fronte as ilusões — no peito

Quebrado o coração!

Nem saudades levar da vida impura

Onde arquejou de fome... sem um leito!

Em treva e solidão!

Tu foste como o sol; tu parecias

Ter na aurora da vida a eternidade

Na larga fronte escrita. . .

Porém não voltarás como surgias!

Apagou‑se teu sol da mocidade

N’uma treva maldita!

Tua estrela mentiu. E do fadário

De tua vida a página primeira

Na tumba se rasgou...

Pobre gênio de Deus, nem um sudário!

Nem túmulo nem cruz! como a caveira

Que um lobo devorou!. . .

II

Morreu um trovador — morreu de fome.

Acharam‑n’o deitado no caminho:

Tão doce era o semblante! Sobre os lábios

Flutuava‑lhe um riso esperançoso.

E o morto parecia adormecido.

Ninguém ao peito recostou‑lhe a fronte

Nas horas da agonia! Nem um beijo

Em boca de mulher! nem mão amiga

Fechou ao trovador os tristes olhos!

Ninguém chorou por ele... No seu peito

Não havia colar nem bolsa d'oiro;

Tinha até seu punhal um férreo punho...

Pobretão! não valia a sepultura!

Todos o viam e passavam todos.

Contudo era bem morto desde a aurora.

Ninguém lançou‑lhe junto ao corpo imóvel

Um ceitil para a cova!... nem sudário!

O mundo tem razão, sisudo pensa,

E a turba tem um cérebro sublime!

De que vale um poeta — um pobre louco

Que leva os dias a sonhar — insano

Amante de utopias e virtudes

E, n’um tempo sem Deus, ainda crente?

A poesia é de certo uma loucura;

Sêneca o disse, um homem de renome.

É um defeito no cérebro... Que doudos!

É um grande favor, é muita esmola

Dizer‑lhes bravo! à inspiração divina,

E, quando tremem de miséria e fome,

Dar‑lhes um leito no hospital dos loucos...

Quando é gelada a fronte sonhadora,

Por que há de o vivo que despreza rimas

Cansar os braços arrastando um morto,

Ou pagar os salários do coveiro?

A bolsa esvaziar por um misérrimo,

Quando a emprega melhor em lodo e vício!

E que venham aí falar‑me em Tasso!

Culpar Afonso d'Este — um soberano! —

Por não lhe dar a mão da irmã fidalga!

Um poeta é um poeta — apenas isso:

Procure para amar as poetisas!

Se na França a princesa Margarida,

De Francisco Primeiro irmã formosa,

Ao poeta Alain Chartier adormecido

Deu nos lábios um beijo, é que esta moça,

Apesar de princesa, era uma douda,

E a prova é que também rondós fazia.

Se Riccio o trovador obteve amores

— Novela até bastante duvidosa —

Dessa Maria Stuart formosíssima,

É que ela — sabe‑o Deus! — fez tanta asneira,

Que não admira que a um poeta amasse!

Por isso adoro o libertino Horácio.

Namorou algum dia uma parenta

Do patrono Mecenas? Parasita,

Só pedia dinheiro — no triclinio

Bebia vinho bom — e não vivia

Fazendo versos às irmãs de Augusto.

E quem era Camões? Por ter perdido

Um olho na batalha e ser valente,

As esmolas valeu. Mas quanto ao resto,

Por fazer umas trovas de vadio,

Deveriam lhe dar, além de glória,

— E essa deram‑lhe à farta — algum bispado,

Alguma dessas gordas sinecuras

Que se davam a idiotas fidalguias?

Deixem‑se de visões, queimem‑se os versos.

O mundo não avança por cantigas.

Creiam do poviléu os trovadores

Que um poema não val meia princesa.

Um poema contudo, bem escrito,

Bem limado e bem cheio de tetéias,

Nas horas do café lido fumando,

Ou no campo, na sombra do arvoredo,

Quando se quer dormir e não há sono,

Tem o mesmo valor que a dormideira.

Mas não passe dali do vate a mente.

Tudo o mais são orgulhos, são loucuras!

Faublas tem mais leitores do que Homero. . .

Um poeta no mundo tem apenas

O valor de um canário de gaiola. . .

É prazer de um momento, é mero luxo.

Contente‑se em traçar nas folhas brancas

De um Álbum da moda umas quadrinhas.

Nem faça apelações para o futuro.

O homem é sempre o homem. Tem juízo.

Desde que o mundo é mundo assim cogita.

Nem há negá‑lo — não há doce lira

Nem sangue de poeta ou alma virgem

Que valha o talismã que no oiro vibra!

Nem músicas nem santas harmonias

Igualam o condão, esse eletrismo,

A ardente vibração do som metálico...

..............................................................

Meu Deus! e assim fizeste a criatura?

Amassaste no lodo o peito humano?

Ó poetas, silêncio! é este o homem?

A feitura de Deus! a imagem dele!

O rei da criação!. . .

                             Que verme infame!

Não Deus, porém Satã no peito vácuo

Uma corda prendeu‑te — o egoísmo!

Oh! miséria, meu Deus! e que miséria!

III

Passou El‑Rei ali com seus fidalgos.

Iam a degolar uns insolentes

Que ousaram murmurar da infâmia régia,

Das nódoas de uma vida libertina!

Iam em grande gala. O Rei cismava

Na glória de espetar no pelourinho

A cabeça de um pobre degolado.

Era um rei bon‑vivant, e rei devoto:

E, como Luís XI, ao lado tinha

O bobo, o capelão... e seu carrasco.

O cavalo do Rei, sentindo o morto,

 Trêmulo de terror parou nitrindo.

Deu d'esporas leviano o cavaleiro

E disse ao capelão:

                                          "E não enterram

Esse homem que apodrece, e no caminho

Assusta‑me o corcel?"

                                               Depois voltou-se

E disse ao camarista de semana:

"Conheces o defunto? Era inda moço.

Faria certamente um bom soldado.

A figura é esbelta! Forte pena!

Podia bem servir para um lacaio."

Descoberto o faceiro fidalgote

Responde‑lhe fazendo a cortesia:

"Pelas tripas do Papa! eu não me engano,

Leve‑me Satanás se este defunto

Ontem não era o trovador Tancredo!"

"Tancredo"! murmurou erguendo os óculos

Um anfíbio, um barbaças truanesco,

Alma de Triboulet, que além de bobo

Era o vate da corte — bem nutrido,

Farto de sangue, mas de veia pobre,

Caídos beiços, volumoso abdômen,

Grisalha cabeleira esparramada,

Tremendo narigão, mas testa curta;

Em suma um glosador de sobremesas.

"Tancredo! — repetiu imaginando —

Um asno! só cantava para o povo!

Uma língua de fel, um insolente!

Orgulho desmedido.. . e quanto aos versos

Morava como um sapo n'água doce...

Não sabia fazer um trocadilho. . ."

O rei passou — com ele a companhia.

Só ficou ressupino e macilento

Da estrada em meio o trovador defunto.

IV

Ia caindo o sol. Bem reclinado

No vagaroso coche madornando,

Depois de bem jantar fazendo a sesta,

Roncava um nédio, um barrigudo frade:

Bochechas e nariz, em cima uns óculos,

Vermelho solidéu... enfim um bispo,

E um bispo, senhor Deus! da idade média,

Em que os bispos — como hoje e mais ainda —

Sob o peso da cruz bem rubicundos,

Dormindo bem, e a regalar bebendo,

Sabiam engordar na sinecura;

Papudos santarrões, depois da Missa

Lançando ao povo a bênção — por dinheiro!

O cocheiro ia bêbado por certo;

Os cavalos tocou p'lo bom caminho

Mesmo em cima das pernas do cadáver.

Refugou a parelha, mas o sota

— Que ao sol da glória episcopal enchia

De orgulho e de insolência o couro inerte,

Cuspindo o poviléu, como um fidalgo —

Que em falta de miolo tinha vinho

Na cabeça devassa, deu de esporas:

Como passara sobre a vil carniça

Reléu de corvos negros — foi por cima. . .

Mas desgraça! maldito aquele morto!

Desgraça!... não porque pisasse o coche

Aqueles magros ossos, mas a roda

Na humana resistência deu estalo. . .

E acorda o fradalhão...

"O que sucede?

— Pergunta bocejando: — É algum bêbado?

Em que bicho pisaram?"

"Senhor bispo"

Diz o servo da Igreja, o bom cocheiro

Ao vigário de Cristo, ao santo Apóstolo

Isto é — dessa fidalga raça nova

Que não anda de pé como S. Pedro,

Nem estafa os corcéis de S. Francisco:

"Perdoe Vossa Excelência Eminentíssima;

É um pobre-diabo de poeta,

Um homem sem miolo e sem barriga

Que lembrou‑se de vir morrer na estrada!"

"Abrenúncio! — rouqueja o Santo Bispo —

Leve o Diabo essa tribo de boêmios!

Não há tanto lugar onde se morra?

Maldita gente! inda persegue os Santos

Depois que o Diabo a leva!. . ."

                                                          

                                                       E foi caminho.

Leve‑te Deus! Apóstolo da crença,

Da esperança e da santa caridade!

Tu, sim, és religioso e nos altares

Vem cada sacristão, e cada monge

Agitar a teus pés o seu turíbulo!

E o sangue do Senhor no cálix d'oiro

Da turba na oração te banha os lábios...

Leve‑te Deus, Apóstolo da crença!

Sem padres como tu que fora o mundo?

É por ti que o altar apóia o trono!

E teu olhar que fertiliza os vales

Fecunda a vinha santa do Messias!

Leve‑te Deus... ou leve‑te o Demônio!

V

Caiu a noite, do azulado manto,

Como gotas de orvalho, sacudindo

Estrelas cintilantes. — Veio a lua

Banhando de tristeza o céu noturno:

Derrama aos corações melancolia,

Derrama no ar cheiroso molente

Cerúlea chama, dia incerto e pálido

Que ao lado da floresta ajunta as sombras

E lança pelas águas da campina

Alvacentos clarões que as flores bebem.

A galope, de volta do noivado,

Passa o Conde Solfier, e a noiva Elfrida.

Seguem fidalgos que o sarau reclama.

Elfrida

— Não vês, Solfier, ali da estrada em meio

Um defunto estendido? —

Solfier

                                            — Ó minha Elfrida,

Voltemos desse lado: outro caminho

Se dirige ao castelo. É mau agouro

Por um morto passar em noites destas. —

Mas Elfrida aproxima o seu cavalo.

Elfrida

— Tancredo!... vede! é o trovador Tancredo!

Coitado! assim morrer! um pobre moço!

Sem mãe e sem irmã! E não o enterram?

Neste mundo não teve um só amigo? —

"Ninguém, senhora! — respondeu da sombra

Uma dorida voz: — Eu vim, há pouco,

Ao saber que do povo no abandono

Jazia como um cão. Eu vim, e eu mesmo

Cavei junto do lago a cova impura."

Elfrida

— Tendes um coração. Tomai, mancebo,

Tomai essa pulseira... Em oiro e jóias

Tem bastante p'ra erguer‑lhe um monumento,

E para longas missas lhe dizerem

Pelo repouso d'alma... —

                                                        O moço riu-se.

O Desconhecido

— Obrigado. Guardai as vossas jóias.

Tancredo o trovador morreu de fome;

Passaram‑lhe no corpo frio e morto,

Salpicaram de lodo a face dele,

Talvez cuspissem nesta fronte santa

Cheia outrora de eternas fantasias,

De idéias a valer um mundo inteiro!...

Por que lançar esmolas ao cadáver?

Leva‑as, fidalga — tuas jóias belas!

O orgulho do plebeu as vê sorrindo.

Missas... bem sabe Deus se neste mundo

Gemeu alma tão pura como a dele!

Foi um anjo, e murchou‑se como as flores,

Morreu sorrindo como as virgens morrem!

Alma doce que os homens enjeitaram,

Lírio que profanou a turba imunda,

Oh! não te mancharei nem a lembrança

Com o óbolo dos ricos! Pobre corpo,

És o templo deserto, onde habitava

O Deus que em ti sofreu por um momento!

Dorme, pobre Tancredo! eu tenho braços:

Na cova negra dormirás tranqüilo. . .

Tu repousas ao menos!. . .

........................................

No entanto sofreando a custo a raiva,

Mordendo os lábios de soberba e fúria,

Solfier da bainha arranca a espada,

Avança ao moço e brada‑lhe:

"Insolente!

Cala‑te, doudo! Cala‑te, mendigo!

Não vês quem te falou? Curva o joelho,

Tira o gorro, vilão!"

O Desconhecido

                                              — Tu vês: não tremo.

Tu não vales o vento que salpica

Tua fronte de pó. Porque és fidalgo,

Não sabes que um punhal vale uma espada

Dentro do coração? —

                                                      Mas logo Elfrida:

"Acalma‑te, Solfier! O triste moço

Desespera, blasfema e não me insulta.

Perdoa‑me também, mancebo triste;

Não pensei ofender tamanho orgulho.

Tua mágoa respeito. Só te imploro

Que sobre a fronte ao trovador desfolhes

Essas flores, as flores do noivado

De uma triste mulher... E quanto às jóias,

Lança‑as no lago. . . Mas quem és? teu nome?"

O Desconhecido

— Quem sou? um doudo, uma alma de insensato,

Que Deus maldisse e que Satã devora;

Um corpo moribundo em que se nutre

Uma centelha de pungente fogo,

Um raio divinal que dói e mata,

Que doira as nuvens e amortalha a terra!...

Uma alma como o pó em que se pisa;

Um bastardo de Deus, um vagabundo

A que o gênio gravou na fronte — anátema!

Desses que a turba com o dedo aponta. . .

Mas não; não hei de sê‑lo! eu juro n'alma,

Pela caveira, pelas negras cinzas

De minha mãe o juro... agora há pouco

Junto de um morto reneguei do gênio,

Quebrei a lira à pedra de um sepulcro. . .

Eu era um trovador, sou um mendigo... —

Ergueu do chão a dádiva d'Elfrida;

Roçou as flores aos trementes lábios;

Beijou‑as. Sobre o peito de Tancredo

Pousou‑as lentamente...

                                                       — Em nome dele,

Agradeço estas flores do teu seio,

Anjo que sobre um túmulo desfolhas

Tuas últimas flores de donzela! —

Depois vibrou na lira estranhas mágoas,

Carpiu à longa noite escuras nênias,

Cantou: banhou de lágrimas o morto.

De repente parou — vibrou a lira

Co'as mãos iradas trêmulas... e as cordas

Uma per uma rebentou cantando...

Tinha fogo no crânio, e sufocava.

Passou a fria mão nas fontes úmidas,

Abriu a medo os lábios convulsivos,

Sorriu de desespero — e sempre rindo

Quebrou as jóias e as lançou no abismo...

VI

No outro dia, na borda do caminho

Deitado ao pé de um fosso aberto apenas

Viu‑se um mancebo loiro que morria. . .

Semblante feminil, e formas débeis,

Mas nos palores da espaçosa fronte

Uma sombria dor cavara sulcos.

Corria sobre os lábios alvacentos

Uma leve umidez, um ló d'escuma,

E seus dentes a raiva constringira...

Tinha os punhos cerrados. . . Sobre o peito

Acharam letras de uma língua estranha. . .

E um vidro sem licor. . . fora veneno!. . .

Ninguém o conheceu; mas conta o povo

Que, ao lançá‑lo no túmulo, o coveiro

Quis roubar‑lhe o gibão — despiu o moço. . .

E viu. . . talvez é falso. . . níveos seios. . .

Um corpo de mulher de formas puras. . .

VII

Na tumba dormem os mistérios d’ambos;

Da morte o negro véu não há erguê‑lo!

Romance obscuro de paixões ignotas,

Poema d'esperança e desventura,

Quando a aurora mais bela os encantava,

Talvez rompeu‑se no sepulcro deles!

Não pode o bardo revelar segredos

Que levaram ao céu as ternas sombras;

Desfolha apenas nessas frontes puras

Da extrema inspiração as flores murchas. . .

IDÉIAS ÍNTIMAS

Fragmento

La chaise où je m'assieds, la natte où je me couche,

La table où je t'écris,...................................................

Mes gros souliers ferrés, mon bâton, mon chapeau,

                                                     Mes livres pêle‑mêle entassés sur leur planche.

...............................................................................

                                               De cet espace étroit sont tout l'ameublement.

 Jocelyn

Lamartine

I

Ossian o bardo é triste como a sombra

Que seus cantos povoa. O Lamartine

É monótono e belo como a noite,

Como a lua no mar e o som das ondas...

Mas pranteia uma eterna monodia,

Tem na lira do gênio uma só corda,

Fibra de amor e Deus que um sopro agita:

Se desmaia de amor a Deus se volta,

Se pranteia por Deus de amor suspira.

Basta de Shakespeare. Vem tu agora,

Fantástico alemão, poeta ardente

Que ilumina o clarão das gotas pálidas

Do nobre Johannisberg! Nos teus romances

Meu coração deleita‑se. . . Contudo

Parece‑me que vou perdendo o gosto,

Vou ficando blasé, passeio os dias

Pelo meu corredor, sem companheiro,

Sem ler, nem poetar. Vivo fumando.

Minha casa não tem menores névoas

Que as deste céu d'inverno. . . Solitário

Passo as noites aqui e os dias longos;

Dei‑me agora ao charuto em corpo e alma;

Debalde ali de um canto um beijo implora,

Como a beleza que o Sultão despreza,

Meu cachimbo alemão abandonado!

Não passeio a cavalo e não namoro;

Odeio o lansquenet. . . Palavra d'honra!

Se assim me continuam por dois meses

Os diabos azuis nos frouxos membros,

Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso.

II

Enchi o meu salão de mil figuras.

Aqui voa um cavalo no galope,

Um roxo dominó as costas volta

A um cavaleiro de alemães bigodes,

Um preto beberrão sobre uma pipa.

Aos grossos beiços a garrafa aperta. . .

Ao longo das paredes se derramam

Extintas inscrições de versos mortos,

E mortos ao nascer. . . Ali na alcova

Em águas negras se levanta a ilha

Romântica, sombria à flor das ondas

De um rio que se perde na floresta. . .

Um sonho de mancebo e de poeta,

El‑Dorado de amor que a mente cria

Como um Éden de noites deleitosas...

Era ali que eu podia no silêncio

Junto de um anjo. . . Além o romantismo!

Borra adiante folgaz caricatura

Com tinta de escrever e pó vermelho

A gorda face, o volumoso abdômen,

E a grossa penca do nariz purpúreo

Do alegre vendilhão entre botelhas

Metido num tonel... Na minha cômoda

Meio encetado o copo inda verbera

As águas d'oiro do Cognac fogoso.

Negreja ao pé narcótica botelha

Que da essência de flores de laranja

Guarda o licor que nectariza os nervos.

Ali mistura‑se o charuto Havano

Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo.

A mesa escura cambaleia ao peso

Do titânio Digesto, e ao lado dele

Childe-Harold entreaberto ou Lamartine

Mostra que o romantismo se descuida

E que a poesia sobrenada sempre

Ao pesadelo clássico do estudo.

III

Reina a desordem pela sala antiga,

Desce a teia de aranha as bambinelas

A estante pulvurenta. A roupa, os livros

Sobre as cadeiras poucas se confundem.

Marca a folha do Faust um colarinho

E Alfredo de Musset encobre às vezes

De Guerreiro ou Valasco um texto obscuro.

Como outr’ora do mundo os elementos

Pela treva jogando cambalhotas,

Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat!

IV

Na minha sala três retratos pendem.

Ali Victor Hugo. Na larga fronte

Erguidos luzem os cabelos loiros

Como c'roa soberba. Homem sublime,

O poeta de Deus e amores puros

Que sonhou Triboulet, Marion Delorme

E Esmeralda a Cigana... e diz a crônica

Que foi aos tribunais parar um dia

Por amar as mulheres dos amigos

E adúlteros fazer romances vivos.

V

Aquele é Lamennais — o bardo santo,

Cabeça de profeta, ungido crente,

Alma de fogo na mundana argila

Que as harpas de Sion vibrou na sombra,

Pela noite do século chamando

A Deus e à liberdade as loucas turbas.

Por ele a George Sand morreu de amores,

E dizem que. . . Defronte, aquele moço

Pálido, pensativo, a fronte erguida,

Olhar de Bonaparte em face Austríaca,

Foi do homem secular as esperanças.

No berço imperial um céu de Agosto

Nos cantos de triunfo despertou‑o. . .

As águias de Wagram e de Marengo

Abriam flamejando as longas asas

Impregnadas do fumo dos combates,

Na púrpura dos Césares, guardando‑o.

E o gênio do futuro parecia

Predestiná‑lo à glória. A história dele?...

Resta um crânio nas urnas do estrangeiro. . .

Um loureiro sem flores nem sementes. ..

E um passado de lágrimas. . . A terra

Tremeu ao sepultar‑se o Rei de Roma.

Pode o mundo chorar sua agonia

E os louros de seu pai na fronte dele

Infecundos depor... Estrela morta,

Só pode o menestrel sagrar‑te prantos!

VI

Junto a meu leito, com as mãos unidas,

Olhos fitos no céu, cabelos soltos,

Pálida sombra de mulher formosa

Entre nuvens azuis pranteia orando.

É um retrato talvez. Naquele seio

Porventura sonhei doiradas noites:

Talvez sonhando desatei sorrindo

Alguma vez nos ombros perfumados

Esses cabelos negros, e em delíquio

Nos lábios dela suspirei tremendo.

Foi‑se minha visão. E resta agora

Aquela vaga sombra na parede

— Fantasma de carvão e pó cerúleo,

Tão vaga, tão extinta e fumarenta

Como de um sonho o recordar incerto.

VII

Em frente do meu leito, em negro quadro

A minha amante dorme. É uma estampa

De bela adormecida. A rósea face

Parece em visos de um amor lascivo

De fogos vagabundos acender‑se. . .

E com a nívea mão recata o seio. . .

Oh! quantas vezes, ideal mimoso,

Não encheste minh'alma de ventura,

Quando louco, sedento e arquejante,

Meus tristes lábios imprimi ardentes

No poento vidro que te guarda o sono!

VIII

O pobre leito meu desfeito ainda

A febre aponta da noturna insônia.

Aqui lânguido a noite debati‑me

Em vãos delírios anelando um beijo...

E a donzela ideal nos róseos lábios,

No doce berço do moreno seio

Minha vida embalou estremecendo. . .

Foram sonhos contudo. A minha vida

Se esgota em ilusões. E quando a fada

Que diviniza meu pensar ardente

Um instante em seus braços me descansa

E roça a medo em meus ardentes lábios

Um beijo que de amor me turva os olhos,

Me ateia o sangue, me enlanguesce a fronte,

Um espírito negro me desperta,

O encanto do meu sonho se evapora

E das nuvens de nácar da ventura

Rolo tremendo à solidão da vida!

IX

Oh! ter vinte anos sem gozar de leve

A ventura de uma alma de donzela!

E sem na vida ter sentido nunca

Na suave atração de um róseo corpo

Meus olhos turvos se fechar de gozo!

Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas

Passam tantas visões sobre meu peito!

Palor de febre meu semblante cobre,

Bate meu coração com tanto fogo!

Um doce nome os lábios meus suspiram,

Um nome de mulher... e vejo lânguida

No véu suave de amorosas sombras

Seminua, abatida, a mão no seio,

Perfumada visão romper a nuvem,

Sentar‑se junto a mim, nas minhas pálpebras

O alento fresco e leve como a vida

Passar delicioso. . . Que delírios!

Acordo palpitante... inda a procuro;

Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas

Banham meus olhos, e suspiro e gemo. . .

Imploro uma ilusão. . . tudo é silêncio!

Só o leito deserto, a sala muda!

Amorosa visão, mulher dos sonhos,

Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!

Nunca virás iluminar meu peito

Com um raio de luz desses teus olhos?

X

Meu pobre leito! eu amo‑te contudo!

Aqui levei sonhando noites belas,

As longas horas olvidei libando

Ardentes gotas de licor doirado,

Esqueci‑as no fumo, na leitura

Das páginas lascivas do romance...

Meu leito juvenil, da minha vida

És a página d'oiro. Em teu asilo

Eu sonho‑me poeta, e sou ditoso,

E a mente errante devaneia em mundos

Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes

Do levante no sol entre odaliscas

Momentos não passei que valem vidas!

Quanta música ouvi que me encantava!

Quantas virgens amei! que Margaridas,

Que Elviras saudosas e Clarissas

Mais trêmulo que Faust eu não beijava,

Mais feliz que Don Juan e Lovelace

Não apertei ao peito desmaiando!

Ó meus sonhos de amor e mocidade,

Por que ser tão formosos, se devíeis

Me abandonar tão cedo... e eu acordava

Arquejando a beijar meu travesseiro?

XI

Junto do leito meus poetas dormem

— O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron —

Na mesa confundidos. Junto deles

Meu velho candeeiro se espreguiça

E parece pedir a formatura.

Ó meu amigo, ó velador noturno,

Tu não me abandonaste nas vigílias,

Quer eu perdesse a noite sobre os livros,

Quer, sentado no leito, pensativo

Relesse as minhas cartas de namoro!

Quero‑te muito bem, ó meu comparsa

Nas doudas cenas de meu drama obscuro!

E n’um dia de spleen, vindo a pachorra,

Hei de evocar‑te n’um poema heróico

Na rima de Camões e de Ariosto

Como padrão às lâmpadas futuras!

.................................................

XII

Aqui sobre esta mesa junto ao leito

Em caixa negra dous retratos guardo.

Não os profanem indiscretas vistas.

Eu beijo‑os cada noite: neste exílio

Venero‑os juntos e os prefiro unidos

— Meu pai e minha mãe.— Se acaso um dia

Na minha solidão me acharem morto,

Não os abra ninguém. Sobre meu peito

Lancem‑os em meu túmulo. Mais doce

Será certo o dormir da noite negra

Tendo no peito essas imagens puras.

XIII

Havia uma outra imagem que eu sonhava

No meu peito na vida e no sepulcro.

Mas ela não o quis... rompeu a tela

Onde eu pintara meus doirados sonhos.

Se posso no viver sonhar com ela,

Essa trança beijar de seus cabelos

E essas violetas inodoras, murchas,

Nos lábios frios comprimir chorando,

Não poderei na sepultura, ao menos,

Sua imagem divina ter no peito.

XIV

Parece que chorei... Sinto na face

Uma perdida lágrima rolando...

Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem,

Derrama no meu copo as gotas últimas

Dessa garrafa negra...

                                                Eia! bebamos!

És o sangue do gênio, o puro néctar

Que as almas de poeta diviniza,

O condão que abre o mundo das magias!

Vem, fogoso Cognac! É só contigo

Que sinto‑me viver. Inda palpito,

Quando os eflúvios dessas gotas áureas

Filtram no sangue meu correndo a vida,

Vibram‑me os nervos e as artérias queimam,

Os meus olhos ardentes se escurecem

E no cérebro passam delirosos

Assomos de poesia... Dentre a sombra

Vejo n’um leito d'oiro a imagem dela

Palpitante, que dorme e que suspira,

Que seus braços me estende...

Eu me esquecia:

Faz‑se noite; traz fogo e dous charutos

E na mesa do estudo acende a lâmpada...

BOÊMIOS

Ato de uma comédia não escrita

Totus mundus agit histrionem.

Provérbio do tempo de Shakespeare

A cena passa‑se na Itália no século XVI. Uma rua escura e deserta. Alta noite. N’uma esquina uma imagem de Madona em seu nicho alumiado por uma lâmpada.

Puff dorme no chão abraçando uma garrafa. Níni entra tocando guitarra. Dão 5 horas.

Níni

Olá! que fazes, Puff? dormes na rua?

Puff, acordando.

Não durmo... Penso.

Níni

                                                  Estás enamorado

E deitado na pedra acaso esperas

O abrir de uma janela? Estás cioso

E co'a botelha em vez de durindana

Aguardas o rival?

Puff

                                                   Ceiei à farta

Na taverna do Sapo e das Três‑Cobras.

Faço o quilo; ao repouso me abandono.

Como o Papa Alexandre ou como um Turco,

Me entrego ao far niente e bem a gosto

Descanso na calçada imaginando.

Níni

Embalde quis dormir. Na minha mente

Fermenta um mundo novo que desperta.

Escuta, Puff: eu sinto no meu crânio

Como em seio de mãe um feto vivo.

Na minha insônia vela o pensamento.

Os poetas passados e futuros

Vou todos ofuscar... Aqui no cérebro

Tenho um grande poema. Hei de escrevê‑lo,

É certa a glória minha!

Puff

                                                         A idéia é boa:

Toma dez bebedeiras — são dez cantos.

Quanto a mim tenho fé que a poesia

Dorme dentro do vinho. Os bons poetas

Para ser imortais beberam muito.

Níni

Não rias. Minha idéia é nova e bela.

A Musa me votou a eterna glória.

Não me engano, meu Puff, enquanto sonho:

Se aos poetas divinos Deus concede

Um céu mais glorioso, ali com Tasso,

Com Dante e Ariosto eu hei de ver‑me.

Se eu fizer um poema, certamente

No Panteon da fama cem estátuas

Cantarão aos vindouros o meu gênio!

Puff

Em estátua, meu Níni! Estás zombando!

É impossível que saias parecido.

Que mármore daria a cor vermelha

Deste imenso nariz, destas melenas?

Níni

Estás bêbado, Puff. Tresandas vinho.

Puff

O vinho! és uma besta; só um parvo

Pode a beleza desmentir do vinho.

Tu nunca leste o Cântico dos Cânticos

Onde o rei Salomão, como elogio,

Dizia à noiva: — Pulchriora sunt

Ubera tua vino!

Níni

                                                                É sempre um bobo.

Puff

E tu és sempre esse nariz vermelho

Que ainda aqui na treva desta rua

Flameja ao pé de mim. Quando te vejo,

Penso que estou na Igreja ouvindo Missa

Dita por Cardeal.

Níni

                                                                   És um devasso.

Puff

Respondo‑te somente o que dizia

Sir John Falstaff, da noite o cavaleiro:

"Se Adão pecou no estado de inocência,

Que muito é que nos dias da impureza

Peque o mísero Puff?" Tu bem o sabes:

Toda a fragilidade vem da carne,

E na carne se eu tanto excedo os outros,

Vícios não devem meus causar espanto.

Minha alma dorme em treva completíssima

Pela minha descrença... E tu, maldito,

Por que sempre não vens esclarecer‑me

Com esse teu farol aceso sempre,

Cavaleiro da lâmpada vermelha,

As trevas de minh'alma?

Níni

                                                                     Que leproso!

Puff

Sou um homem de peso. Entendo a vida;

Tenho muito miolo, e a prova disto

É que não sou poeta nem filósofo,

E gosto de beber, como Panúrgio.

Se tu fosses tonel, como pareces,

Eu te bebera agora de um só trago.

Níni

Quero‑te bem contudo. Amigos velhos

Deixemo‑nos de histórias. Meu poema…

Puff

Se falas em poema, eu logo durmo.

Níni

Uma vez era um rei…

Puff

                                                                        Não vês? eu ronco.

Níni

Quero a ti dedicar minha obra‑prima;

Irás junto comigo à eternidade.

Teu retrato porei no frontispício.

Meu poema será uma coroa

Que as nossas frontes engrinalde juntas.

Puff

Pensei‑te menos doudo. O teu poema

Seria uma sublime carapuça.

Mas, já que sonhas tanto, olha, meu Níni,

Tu precisas de um saco.

Níni

                                                           Impertinente!

Puff

Dá‑me aqui tua mão. Sabes, amigo?

Passei ontem o dia de namoro;

Minhas paixões voltei à nova esposa

Do velho Conde que ali mora em frente.

Estou adiantado nos amores.

A cozinheira, outrora minha amante,

Meus passos guia, meus suspiros leva.

Mas preciso com pressa de um soneto.

Prometes‑me fazê‑lo?

Níni

                                                        Se me ouvires

Recitar meu poema…

Puff

                                                               Eu me resigno.

Declama teu sermão, como um vigário.

Mas o sono ao rebanho se permite?

(Entra um criado correndo).

Roa‑me o diabo as tripas, se não vejo

Ali correr com pernas de cabrita

O criado do cônego Tansoni.

Níni

Onde vais, Gambioletto?

Gambioletto

                                          Vou à pressa

Ao doutor Fossuário.

Puff

                                              Acaso agora

O carrasco fugiu?

Níni

Quem agoniza?

Gambioletto

O Reverendo e Santo Sr. Cônego,

Deitando‑se a dormir depois da ceia

No colo de Madona la Zaffeta,

Umas dores sentiu pela barriga,

Caiu estrebuchando sobre a sala...

Morre de apoplexia.

Níni

                                                              O diabo o leve!

Gambioletto

E o médico, Srs.!

                         (Sai correndo).

Puff

Venturoso!

Sempre é Cônego... Níni, dulce et decus

Pro patria mori... É doce e glorioso

Morrer de apoplexia! Quem me dera

Morrer depois da ceia, de repente!

Não vem o confessor contar novelas,

Não soam cantos fúnebres em torno,

Nem se força o medroso moribundo

A rezar, quando só dormir quisera!

Venturosos os Cônegos e os Bispos,

E os papudos Abades dos conventos!

Eles podem morrer de apoplexia!

E se morre pensando — coisa nova! —

Quem nunca no viver cansou‑se nisso;

Se eles morrem pensando, ante seus olhos,

No momento final sem ter pavores,

Inda corre a visão da bela mesa!

A não morrer‑se como o velho Píndaro,

Cantando, sobre o seio amorenado

De sua amante Grega, oh! quem me dera

Cair morto no chão, beijando ainda

A botelha divina!

Níni

                                                                      Que maluco!

A estas horas da noite, assim no escuro

Não temes de lembrar‑te de defuntos?

Beijarias até uma caveira,

Se espumante o Madeira ali corresse!

Puff

Os cálices doirados são mais belos;

Inda porém mais doce é nos beicinhos

Da bela moça que sorrindo bebe

Libar mais terno o saibo dos licores...

Eu prefiro beijar a tua amante.

Níni

Tens medo de defuntos?

Puff

                                                     Um bocado.

Sinto que não nasci para coveiro.

Contudo, no domingo, à meia‑noite. . .

Pela forca passei, vi nas alturas,

Do luar sem vapor à luz formosa,

Um vilão pendurado. Era tão feio!

A língua um palmo fora, sobre o peito,

Os olhos espantados, boca lívida,

Sobre a cabeça dele estava um corvo...

O morto estava nu, pois o carrasco

Despindo os mortos dá vestido aos filhos,

E deixa à noite o padecente à fresca.

Eu senti pelo corpo uns arrepios. . .

Mas depois veio o ânimo... trepei‑me

Pela escada da forca, fui acima,

E pintei uns bigodes no enforcado.

Níni

Bravo como um Vampiro!

Puff

                                                                     Oh! antes d'ontem

Passei pelos telhados sem ter medo,

Para evitar um pátio onde velava

Um cão — que enorme cão! — subindo ao quarto

Onde dorme Rosina Belvidera.

Níni

Ousaste ao Cardeal depor na fronte

Tão pesada coroa?

Puff

                                                                       A mitra cobre.

Dizem que a santidade lava tudo:

Depois. . . o Cardeal estava bêbado…

A propósito, sabes dos amores

Do capitão Tybald? O tal maroto

Não sei de que milagres tem segredo

Que deu volta à cabeça da rainha.

Níni

Por isso o pobre Rei anda tão triste!

Puff

Spadaro, o fidalgote barba‑ruiva,

Contou‑me que espiando p'la janela

Do quarto da rainha os viu... Caluda!

Níni

E o Rei que faz? Não tem lá na cozinha

Algum pau de vassoura ou um chicote?

Puff

El‑Rei Nosso Senhor então ceava.

Níni

Santo Rei!

Puff

                                                                            E demais é bem sabido

Que El‑Rei só reina à mesa e nas caçadas.

Níni

Nunca perde um veado quando atira.

Puff

Ele caça veados! Má fortuna!

Não o cacem também pela ramagem!

Níni

Com língua tão comprida e viperina

Irás parar na forca.

Puff

                                                             Níni, escuta.

Assisti esta noite a um pagode

Na taverna do Sapo e das Três‑Cobras.

Era já lusco‑fusco e eu entrando

Dou com Frei São José e Frei Gregório,

O Prior do convento dos Bernardos

E mais uns dous ou três que só conheço

De ver pelas esquinas se encostando,

Ou dormidos na rua a sono solto...

Que soberbo painel! Faze uma idéia!

Um banquete! fartura! que presuntos!

Que tostados leitões que recendiam!

N’uma enorme caldeira enormes peixes,

Recheados capões fervendo ainda,

Perus, olhas‑podridas, costeletas...

Esgotara o talento a cozinheira!

Abertos garrafões; garrafas cheias;

Vinho em copos imensos transbordando;

Na toalha, já suja, debruçados

Aqueles religiosos cachaçudos

De boca aberta e de embotados olhos.

Gastrônomos! ali é que se via

Que é ciência o comer, e como um frade

Goza pelo nariz e pelos olhos,

Pelas mãos, pela boca, e faz focinho

E bate a língua ao paladar gostoso

Ao celeste sabor de um bom pedaço!

Depois! era bonito! Frei Gregório

Co'a boca de gordura reluzente,

Farto de vinho, esquece o reumatismo,

Esquece a erisipela já sem cura,

Canta rondós e dança a tarantela...

Arrasta‑se caindo e se babando

Aos pés da taverneira. De joelhos

Faz‑lhe a corte cantando o Miserere,

Principia sermões, engrola textos,

E a gorda mão estende ao nédio seio

Da bela mocetona... a mão lhe beija,

A mão que o cetro cinge de vassoura...

Chora, soluça e cai, estende os braços,

Ainda a chama, e cantochão entoa...

Era de rir! os velhos amorosos,

Uns de joelhos no chão, outros cantando

Estendidos na mesa entre os despojos,

Outros beijando a moça, outros dormindo.

Ela no meio deslambida e fresca

Excita‑os mutuamente e os rivaliza,

Passa‑lhes pelo queixo a mão gorducha...

Corre o Prior a soco um Barbadinho,

Atracam‑se, blasfemam, esconjuram,

Um agarra na barba do contrário,

Outro tenta apertar o papo alheio...

Abraçam‑se na luta os dous volumes

E rolam como pipas. No oceano

Assim duas baleias ciumentas

Atracam‑se na luta... Que risadas!

Que risadas, meu Deus! arrebentando

Soltou o pobre Puff vendo a comédia!

Níni

Ouve agora o poema...

Puff

                                                            Espera um pouco.

A taverna do canto não se fecha.

Está aberta. Compra uma garrafa...

Bom vinho... tu bem sabes! Tenho a goela

Fidalga como um rei. Não tenho dúvida:

Mentiu a minha mãe quando contou‑me

Que nasci de um prosaico matrimônio

Eu filho de escrivão!... Para criar‑me

Era — senão um Rei — preciso um Bispo!

Níni

(Vai à taverna e volta).

Eis aqui uma bela empada fria,

Uma garrafa e copo.

Puff

(Quebrando o copo).

                                                                 O Demo o leve!

Eu sou como Diógenes. Só quero

Aquilo sem o que viver não posso.

Deitado nesta laje, preguiçoso,

Olhando a lua, beijo esta garrafa,

E o mundo para mim é como um sonho.

Creio até que teu ventre desmedido

Como escura caverna vai abrir‑se,

Mostrando‑me no seio iluminado

Panoramas de harém, Sultanas lindas

E longas prateleiras de bom vinho!

Níni

Dou começo ao poema. Escuta um pouco.

I

“Havia um rei n’uma ilha solitária,

Um rei valente, cavaleiro e belo.

O rei tinha um irmão. — Era um mancebo

Pálido, pensativo. A sua vida

Era nas serras divagar cismando,

Sentar‑se junto ao mar, dormir no bosque

Ou vibrar no alaúde os seus gemidos.

II

Vagabundo uma vez juntos das ondas

O Príncipe encontrou na areia fria

Uma branca donzela desmaiada,

Que um naufrágio na praia arremessara.

Revelavam‑lhe as roupas gotejantes

O belo talhe níveo, o melindroso

Das bem moldadas formas. — O mancebo

Nos braços a tomou, e foi com ela

Esconder‑se no bosque.

                                                                 Quando a bela

Suspirando acordou, o belo Príncipe

Aos pés dela velava de joelhos.

Amaram‑se. É a vida. Eles viveram

Desse desmaio que dá corpo aos sonhos,

Que realiza visões e aroma a vida

Na sua primavera. A lua pálida,

As sombras da floresta, e dentre a sombra

As aves amorosas que suspiram

Viram aquelas frontes namoradas,

Ouviram sufocando‑se n’um beijo

Suspiros que o deleite evaporava.

III

O Rei tinha um truão. O caso é visto;

É muito natural. — Se reis sombrios

Gostam de bobos na doirada corte,

Não admira de certo que um risonho

Em vez de capelão tivesse um bobo.

Loriolo — o truão do Rei — acaso

Um dia atravessando p'la floresta,

Foi dar numa cabana de folhagens.

Ninguém estava ali, porém n’um leito

De brandas folhas e cheirosas flores

Ele viu estendidas roupas alvas

— E roupas de mulher! — e junto um gorro,

Que pelas jóias e flutuantes plumas

E pela firma no veludo negro

Denunciava o Príncipe.

                                                         Loriolo,

Apesar de na corte ser um Bobo,

Não era um zote. Foi‑se remoendo,

Jurou dar com a história dos namoros,

E para andar melhor em tal caminho,

Ele que adivinhava que as Américas

Sem proteção de rei ninguém descobre,

Madrugou muito cedo — inda era escuro —

E convidou El‑Rei para o passeio.

IV

Ora, por uma triste desventura,

O rei entrando na Cabana Verde

Achou só a mulher. — Adormecida

No desalinho descuidoso e belo

Com que elas dormem, soltos os cabelos,

A face sobre a mão, e os seios lindos

Batendo à solta na macia tela

Da roupa de dormir que os modelava...

Não digo mais...

                                                                  Loriolo pôs-se à espreita.

O Rei de leve despertou a bela,

Acordou‑a n’um beijo...

V

                                                             A linda moça,

Se havia ali raivosa apunhalar‑se,

Fazer espalhafato e gritaria,

Por um capricho, voluptuoso assomo,

Entregou‑se ao amor do Rei...

VI

                                                           "Maldito!"

Bradou‑lhe à porta um vulto macilento.

"Maldito! meu irmão, aquela moça

É minha, minha só, é minha amante

E minha esposa fora..."

                                                                    O Rei sorrindo

Lhe estende a régia mão e diz alegre:

"A culpa é tua. Eu disto não sabia;

Se do teu casamento me falasses,

Eu respeitara tua...."

                                                                     "Basta, infame!

Não acrescentes zombaria ao crime.

Hei de punir‑te. É solitário o bosque;

Aqui não és um rei, porém um homem,

Um vil em cujo sangue hei de lavar‑me.

Oh! sangue! quero sangue! eu tenho sede!"

VII

Despiu tremendo a reluzente espada.

O mesmo fez o Rei. — Lutaram ambos.

Feminae sacra fames, quantum pectora

Mortalia cogis! E embalde a moça,

Ajoelhando seminua e pálida,

Vinha chorando, mais gentil no pranto,

Entre as espadas se lançar gemendo.

Embalde! Longo tempo encarniçada

A peleja durou... Enfim caíram...

Rolaram ambos trespassados, frios,

E, na treva de morte que os cegava,

Inda alongando os braços convulsivos

Que avermelhava o fratricida sangue,

Procurando no sangue o inimigo!

VIII

O Bobo fez as covas. Na montanha

Enterrou os irmãos. — E quanto à moça,

Pelo braço a tomou chorosa e fria,

Foi ao paço, e na gótica varanda,

De coroa real e longo manto,

Falou à plebe, prometeu franquezas,

Impostos levantar e dar torneios.

— Falou aos guardas: prometeu‑lhes vinho.

— Falou à fidalguia, mas no ouvido,

E prometeu‑lhe consentir nos vícios

E depressa fazer uma lei nova

Pela qual, se um fidalgo assassinasse

Algum torpe vilão, ficasse impune

E nem pagasse mais a vil quantia

Que era pena do crime — e alto disse

Que havia conquistar países novos.

IX

A história infelizmente é muito vista.

Não sou original! É uma desgraça!

Mas prefiro o caráter verdadeiro

De trovador cronista. —

                                                  Loriolo

Trocou de guizos o boné sonoro

— Muito leve chapéu! — pela coroa...

Só teve uma desgraça o Rei novato:

Foi que um dia fugiu‑lhe do palácio

A tal moça volante nos amores.

X

Muitos anos passaram. Loriolo

Era um sublime rei. De rei a bobo

Já tantos têm caído! Não admira

Que um Bobo sendo Rei primasse tanto.

Governava tão bem como governam

Os reis de sangue azul e raça antiga.

Demais gastava pouco, e, se não fosse

Seu amor pelas alvas formosuras,

De certo que na lista dos monarcas

Ele ficava sendo o Rei Sovina.

Enfim era um Monarca de mão-cheia.

Tinha só um defeito — vendo sangue

Tinha frio no ventre; e desmaiava

Ao luzir de uma espada... era nervoso!

Ninguém falava nisso. — Até a giba,

A figura de anão, a pele escura,

Aquela boca negra escancarada

(E que nem dentes amarelos tinha

P'ra ser de Adamastor), as gâmbias finas,

Eram tipo dos quadros dos pintores.

Se pintavam Adônis ou Cupido,

Copiavam o Rei em corpo inteiro.

E o oiro das moedas, que trazia

A ventosa bochecha, os beiços grossos,

O porcino perfil e a cabeleira,

Era beijado com fervor e culto.

XI

Loriolo envelhecia entre os aplausos,

Dando a mão a beijar à fidalguia.

Demais um sabichão fizera um livro

Em vinte e tantos volumões in‑folio,

Obra cheia de mapas e figuras

Em que provava que por linha reta

De Hércules descendia Loriolo

E portanto de Júpiter Tonante.

E apresentou as certidões em cópia

De óbito e nascimento e batistério,

E até de casamento, para prova

De que nas veias puras do Monarca

Não correra a mais leve bastardia.

É inútil dizer que os tais volumes

Nada contavam sobre o Pai, porqueiro

Como o do Santo Papa Sixto Quinto,

E sobre a mãe do Rei, a velha Mória

Que vendera perus, Deus sabe o resto!

Nos tempos folgazões da mocidade!

XII

Um dia o reino cem navios tocam.

São piratas do Norte! são Normandos!

Infrene multidão nas praias corre,

Levando tudo a ferro... até os frades.

Matam, queimam, saqueiam, furtam moças,

E a infrene turba corre até aos paços.

XIII

Enquanto vem a campo a fidalguia

Armada pied en cap, espada em punho,

Loriolo sem fala nos apertos,

Nas adegas se esconde.

                                                                        Embalde o chamam,

Embalde corre voz que dos Normandos

Emissário de paz o Rei procura.

El‑Rei suou de susto a roupa inteira.

Nem era de admirar, que a reis e povo,

Como ao bicho-da-seda a trovoada,

Camisas de onze varas apavoram

E fazem frio aparições de forca.

XIV

Um soldado Normando que buscava

Nas adegas reais alguma pinga,

Mete a verruma numa velha pipa.

Um grito sai dali, mas não licores.

O soldado feroz destampa o nicho;

Agarra um vulto dentro, mas somente

Sente nas mãos vazia cabeleira...

Desembainha a torva durindana.

Nas cavernas da pipa, e nas cavernas

Do coração do Rei reboa o golpe.

Estala‑se o tonel de meio a meio.

Entretanto o bom Rei que não falava,

Sujo da lia da ruinosa pipa,

Mais morto do que vivo (já pensando

Que seu reino acabava n’um espeto

Como o reino do galo), às cambalhotas

Rola aos pés do soldado, chora e treme,

Gagueja de pavor nos calafrios

E pelo amor de Deus perdão implora.

XV

O soldado, maroto e bom gaiato,

Agarra às costas o real trambolho,

Como um vilão que à feira leva um porco,

E no meio do pátio, entre os despojos,

De pernas para o ar e cara suja

Atira o bobo...

                                                                  — El‑Rei! clama um fidalgo.

XVI

Porém o Rei não fala… Sua e treme.

"Singofredo o pirata aqui me envia.

(Diz ao Rei o pacífico Mercúrio,

O Arauto de paz que vem de bordo): —

Eu venho aqui propor‑vos um tratado.

Por direito de espada e por herança

Singofredo é senhor destes países.

Ele vem reclamar sua coroa.

Se o Rei não se opuser, não corre sangue;

Senão hão de fazê‑lo em sarrabulho,

Puxado p'lo nariz o encher de lodo

E espetar‑lhe a careta sobre um mastro.

Singofredo o feroz exige apenas

Que o Rei deixando o cetro deste reino

Seja sempre na corte Rei da Lua.

Loriolo virá ao seu caminho

Trajando seu gibão amarelado

Com remendos de cor, e campainhas,

Meias roxas e gorro afunilado."

XVII

Loriolo suspira. O povo espera.

Pela face do Bobo corre a furto

Uma lágrima trêmula. — É desgraça

Tendo subido a Rei voltar. . .

                                                   Nem ousa

O nome proferir de sua infâmia.

De repente uma idéia o ilumina...

Deu uma das antigas gargalhadas,

Inda em trajes de rei graceja e pula.

Foi uma dança cômica, fantástica,

Um riso que doía — tão gelado

Coava o coração!... Estava doudo...

Dançou a gargalhar... caiu exausto,

Caiu sem movimento sobre o lodo...

Escutaram‑lhe o peito. Estava morto.

Ora o pirata, o invasor Normando,

Era filho da nossa conhecida,

Que, posto não pudesse com acerto

Dizer quem era o pai de seu boêmio,

Afirmava contudo afoitamente

Que, em todo o caso, tinha jus ao trono.

Reina pela cidade a bebedeira,

E bebendo à saúde do bastardo

O Bobo que foi rei ninguém sepulta...

* * *

Bem vês, amigo Puff, que neste conto

Em poucos versos digo histórias longas:

— Amores, mortes, e no trono um bobo

E sobre o lodo um rei que não se enterra. —

Muito embora a mulher as roupas façam,

Eu provo que o burel não faz o monge,

E um bobo é sempre um bobo. Mostro ainda

De meu estro no vário cosmorama

Um rei que numa pipa o trono perde,

E um bastardo que o pai dizer não pode

E em nome de dous pais, ambos em dúvida,

Vem na sangueira reclamar seu nome.

Um outro só com isso dera a lume

Um poema em dez cantos. Sou conciso;

Não ouso tanto: dou somente idéias,

Esboço aqui apenas meu enredo.

Mas... Puff! olá, meu Puff! Estás dormindo,

Prosaico beberrão! Acorda um pouco!

Bebeu todo o meu vinho — a empada foi‑se...

Não resta‑me esperança! Este demônio

De um poeta como eu nem vale um murro!

Um homem da platéia (interrompendo).

Silêncio! fora a peça! que maçada!

Até o ponto dorme a sono solto!

Levanta‑se o pano até o meio. — Passa por debaixo e vem até a rampa o

Prólogo,

velho de cabeça calva, camisola branca, carapuça frígia coroada de louros. Tem um ramo de oliveira na mão. Faz as cortesias do estilo e fala:

Dom Quixote! sublime criatura!

Tu sim foste leal e cavaleiro,

O último herói, o paladim extremo

De Castela e do mundo. Se teu cérebro

Toldou‑se na loucura, a tua insânia

Vale mais do que o siso destes séculos

Em que a Infâmia, Dagon cheio de lodo,

Recebe as orações, mirras e flores,

E a louca multidão renega o Cristo!

Tua loucura revelava brio.

No triste livro do imortal Cervantes

Não posso crer um insolente escárnio

Do Cavaleiro andante aos nobres sonhos,

Ao fidalgo da Mancha — cuja nódoa

Foi só ter crido em Deus e amado os homens,

E votado seu braço aos oprimidos.

Aquelas folhas não me causam riso,

Mas desgosto profundo e tédio à vida.

Soldado e trovador, era impossível

Que Cervantes manchasse um valeroso

Em vil caricatura, e desse à turba,

Como presa de escárnio e de vergonha,

Esse homem que à virtude, amor e cantos

Abria o coração!...

                                                       Estas idéias

Servem para desculpa do poeta.

Apesar de bom moço o autor da peça

Tem uns laivos talvez de Dom Quixote.

E nestes tempos de verdade e prosa

— Sem Gigantes, sem Mágicos medonhos

Que velavam nas torres encantadas

As donzelas dormidas por cem anos —

Do seu imaginar esgrime as sombras

E dá botes de lança nos moinhos.

Mas não escreve sátiras: — apenas

Na idade das visões — dá corpo aos sonhos.

Faz trovas, e não talha carapuças.

Nem rebuça no véu do mundo antigo,

P'ra realce maior, presentes vícios.

Não segue a Juvenal, e não embebe

Em venenoso fel a pena escura

Para nódoas pintar no manto alheio.

O tempo em que se passa agora a cena

É o século dos Bórgias. O Ariosto

Depôs na fronte a Rafael gelado

Sua c'roa divina, e o segue ao túmulo.

Ticiano inda vive. O rei da turba

É um gênio maldito — o Aretino

Que vende a alma e prostitui as crenças.

Aretino! essa incrível criatura,

Poeta sem pudor, onda de lodo

Em que do gênio profanou‑se a pérola...

Vaso d'oiro que um óxido sem cura

Azinhavrou de morte... homem terrível

Que tudo profanou co'as mãos imundas,

Que latiu como um cão mordendo um século,

E, como diz um epitáfio antigo,

Só em Deus não mordeu, porque o não vira.

Como ele, foi devasso todo o século.

Os contos de Boccacio e de Brantôme

São mais puros que a história desses tempos.

Tasso enlouquece. O Rei que se diverte

— O herói de Marignan e de Pavia

Que n’um vidro escrevera do palácio

Femme souvent varie”, mas leviano

Com mais amantes que um Sultão vivia,

Mandava ao Aretino amáveis letras,

Um colar d'oiro com sangrentas línguas,

E dava‑lhe pensões. O Vaticano

Viu o Papa beijando aquela fronte.

Carlos V o nomeia cavaleiro,

Abraça‑o e — inda mais — lhe manda escudos.

O Duque João Médicis o adora,

Dorme com ele a par no mesmo leito.

É um tempo de agonias. A arte pálida,

Suarenta, moribunda, desespera

E aguarda o funeral de Miguel Ângelo

Para com ele abandonar o mundo

E angélica voltar ao céu dos Anjos.

Agora basta. Revelei minh'alma.

A cena descrevi onde correra

Inteira uma comédia em vez de um ato,

Se o poeta, mais forte, se atrevesse

A erguer nos versos a medonha sombra

Da loucura fatal do mundo inteiro.

Boas‑noites, platéia e camarotes;

O ponto já me diz que deixe o campo.

O primeiro galã todo empoado,

Cheio de vermelhão, já dentro fala:

Estão cheios de luz os bastidores.

Uma última palavra: o autor da peça,

Puxando‑me da túnica romana,

Diz‑me da cena que eu avise às Damas

Que desta feita os sais não são precisos;

Não há de sarrabulho haver no palco.

É uma peça clássica. O perigo

Que pode ter lugar é vir o sono;

Mas dormir é tão bom, que certamente

Ninguém por esse dom fará barulho.

O assunto da Comédia e do Poema

Era digno sem dúvida, Senhores,

De uma pena melhor; mas desta feita

Não fala Shakespeare nem Gil Vicente.

O poeta é novato, mas promete.

Posto que seja um homem barrigudo

E tenha por Talia o seu cachimbo,

Merece aplausos e merece glória.

SPLEEN E CHARUTOS

I

SOLIDÃO

Nas nuvens cor de cinza do horizonte

A lua amarelada a face embuça;

Parece que tem frio, e no seu leito

Deitou, para dormir, a carapuça.

Ergueu‑se, vem da noite a vagabunda

Sem xale, sem camisa e sem mantilha,

Vem nua e bela procurar amantes;

É douda por amor da noite a filha.

As nuvens são uns frades de joelhos,

Rezam adormecendo no oratório;

Todos têm o capuz e bons narizes,

E parecem sonhar o refeitório.

As árvores prateiam‑se na praia,

Qual de uma fada os mágicos retiros...

Ó lua, as doces brisas que sussurram

Coam dos lábios teus como suspiros!

Falando ao coração que nota aérea

Deste céu, destas águas se desata?

Canta assim algum gênio adormecido

Das ondas mortas no lençol de prata?

Minh’alma tenebrosa se entristece,

É muda como sala mortuária...

Deito‑me só e triste, e sem ter fome

Vejo na mesa a ceia solitária.

Ó lua, ó lua bela dos amores

Se tu és moça e tens um peito amigo,

Não me deixes assim dormir solteiro,

À meia‑noite vem cear comigo!

II

MEU ANJO

Meu anjo tem o encanto, a maravilha

Da espontânea canção dos passarinhos;

Tem os seios tão alvos, tão macios

Como o pêlo sedoso dos arminhos.

Triste de noite na janela a vejo

E de seus lábios o gemido escuto.

É leve a criatura vaporosa

Como a frouxa fumaça de um charuto.

Parece até que sobre a fronte angélica

Um anjo lhe depôs coroa e nimbo...

Formosa a vejo assim entre meus sonhos

Mais bela no vapor do meu cachimbo.

Como o vinho espanhol, um beijo dela

Entorna ao sangue a luz do paraíso.

Dá morte n’um desdém, n’um beijo vida,

E celestes desmaios num sorriso!

Mas quis a minha sina que seu peito

Não batesse por mim nem um minuto,

E que ela fosse leviana e bela

Como a leve fumaça de um charuto!

III

VAGABUNDO

Eat, drink and love; what can the rest avail us?

Don Juan
Byron

Eu durmo e vivo no sol como um cigano,

Fumando meu cigarro vaporoso;

Nas noites de verão namoro estrelas;

Sou pobre, sou mendigo, e sou ditoso!

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;

Mas tenho na viola uma riqueza:

Canto à lua de noite serenatas,

E quem vive de amor não tem pobreza.

Não invejo ninguém, nem ouço a raiva

Nas cavernas do peito, sufocante,

Quando à noite na treva em mim se entornam

Os reflexos do baile fascinante.

Namoro e sou feliz nos meus amores;

Sou garboso e rapaz... Uma criada

Abrasada de amor por um soneto

Já um beijo me deu subindo a escada...

Oito dias lá vão que ando cismando

Na donzela que ali defronte mora.

Ela ao ver‑me sorri tão docemente!

Desconfio que a moça me namora!...

Tenho por meu palácio as longas ruas;

Passeio a gosto e durmo sem temores:

Quando bebo, sou rei como um poeta,

E o vinho faz sonhar com os amores.

O degrau das igrejas é meu trono,

Minha pátria é o vento que respiro,

Minha mãe é a lua macilenta,

E a preguiça a mulher por quem suspiro.

Escrevo na parede as minhas rimas,

De painéis a carvão adorno a rua;

Como as aves do céu e as flores puras

Abro meu peito ao sol e durmo à lua.

Sinto‑me um coração de lazzaroni;

Sou filho do calor, odeio o frio;

Não creio no diabo nem nos santos...

Rezo à Nossa Senhora, e sou vadio!

Ora, se por aí alguma bela

Bem doirada e amante da preguiça

Quiser a nívea mão unir à minha

Há de achar‑me na Sé, domingo, à Missa.

IV

A LAGARTIXA

A lagartixa ao sol ardente vive

E fazendo verão o corpo espicha:

O clarão de teus olhos me dá vida,

Tu és o sol e eu sou a lagartixa.

Amo‑te como o vinho e como o sono,

Tu és meu copo e amoroso leito...

Mas teu néctar de amor jamais se esgota,

Travesseiro não há como teu peito.

Posso agora viver: para coroas

Não preciso no prado colher flores;

Engrinaldo melhor a minha fronte

Nas rosas mais gentis de teus amores.

Vale todo um harém a minha bela,

Em fazer‑me ditoso ela capricha;

Vivo ao sol de seus olhos namorados,

Como ao sol de verão a lagartixa.

V

LUAR DE VERÃO

O que vês, trovador? — Eu vejo a lua

Que sem lavor a face ali passeia;

No azul do firmamento inda é mais pálida

Que em cinzas do fogão uma candeia.

O que vês, trovador? — No esguio tronco

Vejo erguer‑se o chinó de uma nogueira...

Além se entorna a luz sobre um rochedo

Tão liso como um pau‑de‑cabeleira.

Nas praias lisas a maré enchente

S'espraia cintilante d'ardentia...

Em vez de aromas as doiradas ondas

Respiram efluviosa maresia!

O que vês, trovador? — No céu formoso

Ao sopro dos favônios feiticeiros

Eu vejo — e tremo de paixão ao vê‑las —

As nuvens a dormir, como carneiros.

E vejo além, na sombra do horizonte,

Como viúva moça envolta em luto,

Brilhando em nuvem negra estrela viva

Como na treva a ponta de um charuto.

Teu romantismo bebo, ó minha lua,

A teus raios divinos me abandono,

Torno‑me vaporoso, e só de ver‑te

Eu sinto os lábios meus se abrir de sono.

VI

O POETA MORIBUNDO

Poetas! amanhã ao meu cadáver

Minha tripa cortai mais sonorosa!...

Façam dela uma corda, e cantem nela

Os amores da vida esperançosa!

Cantem esse verão que me alentava...

O aroma dos currais, o bezerrinho,

As aves que na sombra suspiravam,

E os sapos que cantavam no caminho!

Coração, por que tremes? Se esta lira

Nas minhas mãos sem força desafina,

Enquanto ao cemitério não te levam,

Casa no marimbau a alma divina!

Eu morro qual nas mãos da cozinheira

O marreco piando na agonia . . .

Como o cisne de outr’ora... que gemendo

Entre os hinos de amor se enternecia.

Coração, por que tremes? Vejo a morte,

Ali vem lazarenta e desdentada. ..

Que noiva!. . . E devo então dormir com ela?...

Se ela ao menos dormisse mascarada!

Que ruínas! que amor petrificado!

Tão antediluviano e gigantesco!

Ora, façam idéia que ternuras

Terá essa lagarta posta ao fresco!

Antes mil vezes que dormir com ela,

Que dessa fúria o gozo, amor eterno. . .

Se ali não há também amor de velha,

Dêem‑me as caldeiras do terceiro Inferno!

No inferno estão suavíssimas belezas,

Cleópatras, Helenas, Eleonoras;

Lá se namora em boa companhia,

Não pode haver inferno com Senhoras!

Se é verdade que os homens gozadores,

Amigos de no vinho ter consolos,

Foram com Satanás fazer colônia,

Antes lá que no Céu sofrer os tolos! —

Ora! e forcem um'alma qual a minha

Que no altar sacrifica ao Deus‑Preguiça

A cantar ladainha eternamente

E por mil anos ajudar a Missa!

É ELA! É ELA! É ELA! É ELA!

É ela! é ela! — murmurei tremendo,

E o eco ao longe murmurou — é ela!

Eu a vi — minha fada aérea e pura —

A minha lavadeira na janela!

Dessas águas‑furtadas onde eu moro

Eu a vejo estendendo no telhado

Os vestidos de chita, as saias brancas;

Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido

Nas telhas que estalavam nos meus passos

Ir espiar seu venturoso sono,

Vê‑la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono!...

Tinha na mão o ferro do engomado...

Como roncava maviosa e pura!...

Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso:

Palpitava‑lhe o seio adormecido...

Fui beijá‑la... roubei do seio dela

Um bilhete que estava ali metido...

Oh! de certo... (pensei) é doce página

Onde a alma derramou gentis amores;

São versos dela... que amanhã de certo

Ela me enviará cheios de flores...

Tremi de febre! Venturosa folha!

Quem pousasse contigo neste seio!

Como Otelo beijando a sua esposa,

Eu beijei‑a a tremer de devaneio...

É ela! é ela! — repeti tremendo,

Mas cantou nesse instante uma coruja...

Abri cioso a página secreta...

Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota

Dando pão com manteiga às criancinhas,

Se achou‑a assim mais bela, — eu mais te adoro

Sonhando‑te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela! meu amor, minh'alma,

A Laura, a Beatriz que o céu revela...

É ela! é ela! — murmurei tremendo,

E o eco ao longe suspirou — é ela!

SONETO

Um mancebo no jogo se descora,

Outro bêbado passa noite e dia,

Um tolo pela valsa viveria,

Um passeia a cavalo, outro namora.

Um outro que uma sina má devora

Faz das vidas alheias zombaria,

Outro toma rapé, um outro espia....

Quantos moços perdidos vejo agora!

Oh! não proíbam pois ao meu retiro

Do pensamento ao merencório luto

A fumaça gentil por que suspiro.

N’uma fumaça o canto d'alma escuto. . .

Um aroma balsâmico respiro,

Oh! deixai‑me fumar o meu charuto!

SONETO

Ao sol do meio‑dia eu vi dormindo

Na calçada da rua um marinheiro,

Roncava a todo o pano o tal brejeiro

Do vinho nos vapores se expandindo!

Além um Espanhol eu vi sorrindo

Saboreando um cigarro feiticeiro,

Enchia de fumaça o quarto inteiro.

Parecia de gosto se esvaindo!

Mais longe estava um pobretão careca

De uma esquina lodosa no retiro

Enlevado tocando uma rabeca!

Venturosa indolência! não deliro

Se morro de preguiça.... o mais é seca!

D’esta vida o que mais vale um suspiro?

* * * *

(sem título)

Toda aquela mulher tem a pureza

Que exala o jasmineiro no perfume,

Lampeja seu olhar nos olhos negros

Como em noite d'escuro um vaga‑lume...

Que suave moreno o de seu rosto!

A alma parece que seu corpo inflama.

Ilude até que sobre os lábios d’ela

Na cor vermelha tem errante chama....

E quem dirá, meu Deus! que a lira d'alma

Ali não tem um som — nem de falsete!

E sob a imagem de aparente fogo

É frio o coração como um sorvete!

O CÔNEGO FILIPE

O cônego Filipe! Ó nome eterno!

Cinzas ilustres que da terra escura

Fazeis rir nos ciprestes as corujas!

Por que tão pobre lira o céu doou‑me

Que não consinta meu inglório gênio

Em vasto e heróico poema decantar‑te?

Voltemos ao assunto. A minha musa,

Como um falado Imperador Romano

Distrai‑se às vezes apanhando moscas.

Por estradas mais longas ando sempre.

Com o cônego ilustre me pareço,

Quando ele já sentia vir o sono,

Para poupar. Caminho até a vela,

Sobre a vela atirava a carapuça.

Então no escuro, em camisola branca

Já apalpando procurar na sala —

Para o queijo flamengo da careca

Dos defluxos guardar — o negro saco.

À ordem, Musa! Canta agora como

O poeta Ali‑Moon no harém entrando

Como um poeta que enamora a lua,

Ou que beija uma estátua de alabastro,

Suando de calor... de sol e amores...

Cantava no alaúde enamorado,

E como ele saiu‑se do namoro.

Assunto bem moral, digno de prêmio,

E interessante como um catecismo,

Que tem ares até de ladainha!

Quem não sonhou a terra do Levante?

As noites do Oriente, o mar, as brisas,

Toda aquela sua natureza

Que amorosa suspira e encanta os olhos?

Principio no harém. Não é tão novo.

Mas esta vida é sempre deleitosa.

As almas d'homem ao harém se voltam —

Ser um dia sultão quem não deseja?

Quem não quisera das sombrias folhas

Nas horas do calor, junto do lago

As odaliscas espreitar no banho

E mais bela a sultana entre as formosas?

Mas ah! o plágio nem perdão merece!

Digam — pega ladrão! — Confesso o crime,

Não é Ovídio só que imito e sonho,

Quando pinta Acteon fitando os olhos

Nas formas nuas de Diana virgem!

Não! embora eu aqui não fale em ninfas,

Essa idéia é do cônego Filipe!

TERZA RIMA

É belo de entre a cinza ver ardendo

Nas mãos do fumador um bom cigarro,

Sentir o fumo em névoas recendendo,

Do cachimbo alemão no louro barro

Ver a chama vermelha estremecendo

E até... perdoem... respirar‑lhe o sarro!

Porém o que há mais doce n’esta vida,

O que das mágoas desvanece o luto

E dá som a uma alma empobrecida,

Palavra d'honra, és tu, ó meu charuto!

NAMORO A CAVALO

Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça

Que rege minha vida malfadada

Pôs lá no fim da rua do Catete

A minha Dulcinéia namorada.

Alugo (três mil réis) por uma tarde

Um cavalo de trote (que esparrela)!

Só para erguer meus olhos suspirando

A minha namorada na janela...

Todo o meu ordenado vai‑se em flores

E em lindas folhas de papel bordado

Onde eu escrevo trêmulo, amoroso

Algum verso bonito... mas furtado.

Morro pela menina, junto d’ela

Nem ouso suspirar de acanhamento...

Se ela quisesse eu acabava a história

Como toda a comédia — em casamento.

Ontem tinha chovido. . . que desgraça!

Eu ia a trote inglês ardendo em chama,

Mas lá vai senão quando uma carroça

Minhas roupas tafuis encheu de lama...

Eu não desanimei. Se Dom Quixote

No Rocinante erguendo a larga espada

Nunca voltou de medo, eu, mais valente,

Fui mesmo sujo ver a namorada...

Mas eis que no passar pelo sobrado

Onde habita nas lojas minha bela

Por ver‑me tão lodoso ela irritada

Bateu‑me sobre as ventas a janela...

O cavalo ignorante de namoros

Entre dentes tomou a bofetada,

Arrepia‑se, pula, e dá‑me um tombo

Com pernas para o ar, sobre a calçada...

        

Dei ao diabo os namoros. Escovado

Meu chapéu que sofrera no pagode

Dei de pernas corrido e cabisbaixo

E berrando de raiva como um bode.

Circunstância agravante. A calça inglesa

Rasgou‑se no cair de meio a meio,

O sangue pelas ventas me corria

Em paga do amoroso devaneio!...

O EDITOR

— A poesia transcrita é de Torquato,

Desse pobre poeta enamorado

Pelos encantos de Leonora esquiva,

Copiei‑a do próprio manuscrito

E para prova da verdade pura

D’este prólogo meu, basta que eu diga

Que a letra era um garrancho indecifrável,

Mistura de borrões e linhas tortas,

Trouxe‑me do Arquivo lá da lua

E decifrou‑m’a familiar demônio...

Demais — infelizmente é bem verdade

Que Tasso lastimou‑se da penúria

De não ter um ceitil para a candeia.

Provo com isso que do mundo todo

O sol é este Deus indefinível,

Ouro, prata, papel, ou mesmo cobre,

Mais santo do que os Papas — o dinheiro!

Byron no seu Don Juan votou‑lhe cantos,

Filinto Elísio e Tolentino o sonham,

Foi o Deus de Bocage e d'Aretino,

Aretino, essa incrível criatura

Lívida e tenebrosa, impura e bela,

Sublime... e sem pudor, onda de lodo,

Em que do gênio profanou‑se a pérola,

Vaso d'ouro que um óxido terrível

Envenenou de morte, alma poeta

Que tudo profanou com as mãos imundas,

E latiu como um cão mordendo um século...

.............................................................

Quem não ama o dinheiro? Não me engano

Se creio que Satã à noite veio

Aos ouvidos de Adão adormecido

Na sua hora primeira, murmurar‑lhe

Essa palavra mágica da vida,

Que vibra musical em todo o mundo.

Se houvesse o Deus vintém no Paraíso

Eva não se tentava pelas frutas,

Pela rubra maçã não se perdera;

Preferira de certo o louro amante

Que tine tão suave e é tão macio!

Se não faltasse o tempo a meus trabalhos

Eu mostraria quanto o povo mente

Quando diz — que a poesia enjeita, odeia

As moedinhas doiradas. — É mentira!

Desde Homero (que até pedia cobre),

Virgílio, Horácio, Calderon, Racine,

Boileau e o fabuleiro Lafontaine

E tantos que melhor de certo fora

Dos poetas copiar algum catálogo,

Todos a mil e mil por ele vivem,

E alguns chegaram a morrer por ele!

Eu só peço licença de fazer‑vos

Uma simples pergunta. Na gaveta

Se Camões visse o brilho do dinheiro —

Malfilâtre, Gilbert, o altivo Chatterton

Se o tivessem nas rotas algibeiras

Acaso blasfemando morreriam?

D I N H E I R O

Oh! argent! Avec toi on est beau, jeune

adoré; on a considération, honneur,

qualités, vertus. Quand on n'a point d'argent,

on est dans la dépendance de toutes

choses et de tout le monde.

Chateaubriand

Sem ele não há cova — quem enterra

Assim gratis a Deo? O batizado

Também custa dinheiro. Quem namora

Sem pagar as pratinhas ao Mercúrio?

Demais as Danáes também o adoram.

Quem imprime seus versos, quem passeia,

Quem sobe a Deputado, até Ministro,

Quem é mesmo Eleitor, embora sábio,

Embora gênio, talentosa fronte,

Alma Romana, se não tem dinheiro?

Fora a canalha de vazios bolsos!

O mundo é para todos.... Certamente,

Assim o disse Deus — mas esse texto

Explica‑se melhor e d’outro modo.

Houve um erro de imprensa no Evangelho:

O mundo é um festim — concordo nisso,

Mas não entra ninguém sem ter as louras.

MINHA DESGRAÇA

Minha desgraça, não, não é ser poeta,

Nem na terra de amor não ter um eco,

E meu anjo de Deus, o meu planeta

Tratar‑me como trata‑se um boneco...

Não é andar de cotovelos rotos,

Ter duro como pedra o travesseiro...

Eu sei... O mundo é um lodaçal perdido

Cujo sol (quem m’o dera)! é o dinheiro...

Minha desgraça, ó cândida donzela,

O que faz que o meu peito assim blasfema,

É ter para escrever todo um poema,

E não ter um vintém para uma vela.

SONETO

Passei ontem a noite junto dela.

Do camarote a divisão se erguia

Apenas entre nós — e eu vivia

No doce alento dessa virgem bela...

Tanto amor, tanto fogo se revela

Naqueles olhos negros! só a via!

Música mais do céu, mais harmonia

Aspirando nessa alma de donzela!

Como era doce aquele seio arfando!

Nos lábios que sorriso feiticeiro!

Daquelas horas lembro-me chorando!

Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro

É sentir todo o seio palpitando...

Cheio de amores! e dormir solteiro!

eutanásia

Ergue-te daí, velho, — ergue essa fronte onde o passado afundou suas

rugas como o vendaval no Oceano, onde a morte assombrou sua palidez como na

face do cadáver — onde o simoun do tempo ressicou os anéis louros do

mancebo nas cãs alvacentas de ancião?

Por que tão lívido, ó monge taciturno, debruças a cabeça macilenta no peito que é

murcho, onde mal bate o coração sobre a cogula negra do asceta?

Escuta: A lua ergueu-se hoje mais prateada nos céus cor-de-rosa do verão — as montanhas se azulam no crepuscular da tarde — e o mar cintila seu manto azul palhetado de aljôfares. A hora da tarde é bela — quem aí na vida lhe não sagrou uma lágrima de saudade?

Tens os olhares turvos, luzem-te baços os olhos negros nas pálpebras roxas, e o beijo frio da doença te azulou nos lábios a tinta do moribundo. — E por que te abismas em fantasias profundas sentado à borda de um fosso aberto, sentado na pedra de um túmulo?

Por que pensá-la — a noite dos mortos, fria e trevosa como os ventos de inverno? Por que antes não banhas tua fronte nas virações da infância, nos sonhos de moço? Sob essa estamenha não arfa um coração que palpitara outrora por uns olhos gázeos de mulher?

Sonha — sonha antes no passado — no passado belo e doirado em seu dossel de escarlate, em seus mares azuis, em suas luas límpidas, e suas estrelas românticas.

O velho ergueu a cabeça. Era uma fronte larga e calva, umas faces contraídas e  amarelentas, uns lábios secos, gretados, em que sobreaguava amargo sorriso, uns olhares onde a febre tresnoitava suas insônias...

E quem to disse — que a morte é a noite escura e fria, o leito de terra úmida, a podridão e o lodo? Quem to disse — que a morte não era mais bela que as flores sem cheiro da infância, que os perfumes peregrinos e sem flores da adolescência? Quem to disse — que a vida não é uma mentira — que a morte não é o leito das trêmulas venturas?

GLÓRIA MORIBUNDA

Une fille de joie attendait sur la borne.

Théophile Gautier

I

É uma visão medonha uma caveira?

Não tremas de pavor, ergue‑a do lodo.

Foi a cabeça ardente de um poeta,

Outr’ora à sombra dos cabelos loiros.

Quando o reflexo do viver fogoso

Ali dentro animava o pensamento,

Esta fronte era bela. Aqui nas faces

Formosa palidez cobria o rosto;

Nessas órbitas — ocas, denegridas! —

Como era puro seu olhar sombrio!

Agora tudo é cinza. Resta apenas

A caveira que a alma em si guardava,

Como a concha no mar encerra a pérola,

Como a caçoila a mirra incandescente.

Tu outr’ora talvez desses‑lhe um beijo,

Por que repugnas levantá‑lo agora?

Olha‑o comigo! Que espaçosa fronte!

Quanta vida ali dentro fermentava,

Como a seiva nos ramos do arvoredo!

E a sede em fogo das idéias vivas

Onde está? onde foi? Essa alma errante

Que um dia no viver passou cantando,

Como canta na treva um vagabundo,

Perdeu‑se acaso no sombrio vento,

Como noturna lâmpada apagou‑se?

E a centelha da vida, o eletrismo

Que as fibras tremulantes agitava

Morreu para animar futuras vidas?

Sorris? eu sou um louco. As utopias,

Os sonhos da ciência nada valem.

A vida é um escárnio sem sentido,

Comédia infame que ensangüenta o lodo.

Há talvez um segredo que ela esconde;

Mas esse a morte o sabe e o não revela.

Os túmulos são mudos como o vácuo.

Desde a primeira dor sobre um cadáver,

Quando a primeira mãe entre soluços

Do filho morto os membros apertava

Ao ofegante seio, o peito humano

Caiu tremendo interrogando o túmulo...

E a terra sepulcral não respondia.

Levanta‑me do chão essa caveira!

Vou cantar‑te uma página da vida

De uma alma que penou, e já descansa.

II

— Por quem esperas trêmula a desoras,

Mulher da noite, na deserta rua?

A miséria venceu os teus orgulhos,

E vens na treva contratar teu leito?

Vem pois. És bela. Tens no rosto frio

A imagem das Madonas descoradas.

Vagabunda de amor, és bela e pálida.

Será doce em teu seio de morena

Um momento sentir os meus suspiros

Estuantes nos lábios doloridos.

Se inda podes amar, ergue‑te ainda,

Une teu peito ao meu, pálida sombra!

III

Era uma fronte olímpica e sombria,

Nua ao vento da noite que agitava

As loiras ondas do cabelo solto;

Cabeça de poeta e libertino

Que fogo incerto de embriaguez corava.

Na fronte a palidez, no olhar aceso

O lume errante de uma febre insana.

IV

— Mancebo, quem és tu?

                 — Que importa o nome?

Um poeta de santas harmonias

Que a Musa obscena do bordel profana.

Na aparição balsâmica dos anjos

Porventura enlevei a mocidade.

Das virgens no cheiroso travesseiro

Porventura dormi... Meu Deus! que sonhos!

Em seios que a inocência adormecia

Repousei minha fronte embevecida.

Amei, mulher! amei!

                                              Que sede intensa!

Secou‑se‑me a torrente do deserto

Que as folhas de frescura borrifava.

Tudo! tudo passou... Amei... Embora!

Quero agora dormir nos teus joelhos.

Nessa esponja da vida inda uma gota

Talvez reste a meus lábios anelantes

Que me dê um assomo de ventura

E um leito onde morrer amando ainda.

E que vida, mulher! que dor profunda,

Faminta como um verme aqui no peito!

Murcha desfaleceu a flor da vida

E cedo morrerá. . . E vós, meus anjos,

Ó Virgem Santa, que eu amei, na lira

A quem votei meu canto deliroso;

Amantes que eu sonhei, que eu amaria

Com todo o fogo juvenil que ainda

Me abrasa o coração, por que fugistes,

Brancas sombras, do céu das esperanças?

Oh! ríamos da vida! tudo mente!

Os meus versos gotejam de ironias!

Esse mundo sem fé merece prantos?

À orgia! na saturnal entre a loucura

Derrama o vinho sono e esquecimento.

Vinde, belezas que a volúpia inflama!

Bebamos juntos... Cantarei de novo:

A minha alma nas asas do improviso,

Como as aves do céu, voe cantando. . .

Todos caíram ébrios?.. . só eu resto?

Embora! em minha mão a lira pulsa,

Meu peito bate, a inspiração agora

Cânticos imortais ao lábio inspira.

Voai ao céu — não morrereis, meus cantos!

V

A glória! a glória! meu amor foi ela,

Foi meu Deus, o meu sangue... até meu gênio. . .

E agora!... Além os sonhos desta vida!

Quando eu morrer, meus versos incendeiem!

Apague‑se meu nome — e ao cadáver

Nem lágrima nem cruz o mundo vote.

Sou um ímpio (disseram‑n’o)! pois deixem‑me

Descansar no sepulcro!

                                                            Por que choras,

Descorada mulher? Sabes acaso

Quem é o triste, o malfadado obscuro

Que delira e desvaira aqui na treva

E tuas mãos aperta convulsivo?

Eu não te posso amar. Meu peito morto

É como a rocha que o oceano bate

E branqueia de escuma: ali não pode

Medrar a flor cheirosa dos enlevos...

Teu amor... Eu descri até dos sonhos...

Demais dentro em tua alma eu vejo trevas,

Uma estrela de Deus não a ilumina.

Quem pudera nas ondas do passado,

Ditoso pescador, erguer no lodo

O ramo de coral de teus amores?

VI

Amei! amei! no sonho, nas vigílias

Esse nome gemi que eu adorava!

Votei amor a tudo quanto é belo!

Escuta... A rua é queda. A noite escura

É negra como um túmulo. Durmamos

No leito dos amores do perdido.

Vês? nem lua no céu... tudo é medonho!

Nem estrela de luz!... — Silêncio! Embora!

Escuta, anjo da noite! no meu peito

Não ouves palpitar o som da vida?

Deixa encostar meus lábios incendidos

No teu seio que bate. Vem, meu anjo!

A alma da formosura é sempre virgem!

Minha virgem — irmã — meu Deus! contigo

Oh! deixa‑me viver! Eu sinto bela

A tua alma acordando refletir‑te

Nesses olhos tão negros d'Espanhola.

Quero amar e viver — sonhar — em fogo

Meus frouxos dias exaurir n’um beijo,

Derramar a teus pés os meus amores,

Minhas santas canções a ti erguê‑las,

A ti, e só a ti! —

VII

                                               — Que tens? desmaias?

Que tens, mancebo?

                                               — Nada. É cedo ainda.

Não é ela inda não. Chamei por ela...

Foi em vão... delirei...

                                   — Por quem?

— A morte.

— Morrer! pobre de ti, ó meu poeta!

— Se a morte é sofrimento, eu sofro tanto,

Que a mudança do mal será consolo;

Se a morte é sono, meu cansado corpo

No descanso eternal deixai que durma.

— Eu também sofro. . . mas a morte assusta.

Eu mísera mulher nas amarguras

Descorei e perdi a formosura...

No amor impuro profanei minha'alma...

E nesta vida não amei contudo!

Não sou a virgem melindrosa e casta

Que nos sonhos da infância os anjos beijam

E entre as rosas da noite adormecera

Tão pura como a noite e como as flores;

Mas na minh'alma dorme amor ainda.

Levanta‑me, poeta, dos abismos

Até ao puro sol do amor dos anjos!

Ó minha vida, minha vida pura,

Por que foram tão breves da inocência

Das crenças virginais os belos dias?

Chamei por Deus em vão. Sobre meu leito

Em vez do anjo do céu senti gelada

Sombra desconhecida vir sentar‑se,

Em beijos frios roxear meus lábios,

Em abraços de morte unir‑me ao seio.

Douda! chamei por Deus! a meu reclamo

Veio o torvo Satã... Oh! não maldigas

A mísera que os seios inocentes

Entregou sem pudor a mãos impuras:

Eram taças de Deus... eu bem sabia!

Mas todo o pesadelo do passado

Foi uma horrenda sina... tudo aquilo

Escrevera Satã... —

VIII

                                                    — Fatalidade!

É pois a voz unânime dos mundos,

Das longas gerações que se agonizam,

Que sobe aos pés do Eterno como incenso?

Serás tu como os bonzos te fingiram?

Sublime Criador, por que enjeitaste

A pobre criação? Por que a fizeste

Da argila mais impura e negro lodo,

E a lançaste nas trevas errabunda

Co'a palidez na fronte como anátema,

Qual lança a borboleta a raça d'oiro

No pântano e no sangue?

                                                              Tudo é sina:

O crime é um destino — o gênio, a glória

São palavras mentidas — a virtude

É a máscara vil que o vício cobre.

O egoísmo! eis a voz da humanidade.

Foste sublime, Criador dos mundos!

IX

Tudo morre, meu Deus! No mundo exausto

Bastardas gerações vagam descridas.

E a arte se vendeu, essa arte santa

Que orava de joelhos e vertia

O seu raio de luz e amor no povo,

E o gênio soluçando e moribundo

Olvidou‑se da vida e do futuro

E blasfema lutando na agonia.

Agonia de morte! Só em torno

No leito do morrer as almas gemem.

E o fantasma da morte gela tudo.

Por que um ardente amor não mais suspira

Notas do coração pelo silêncio

Da noite enamorada? A chama pura

Por que das almas se apagou nas cinzas?

E a lira do poeta, se murmura

As ilusões de um mundo visionário,

Por que estala tão cedo? Vagabundo

Adormeci das árvores na sombra

E nos campos em flor errei sonhando

Coroando‑me dos lírios da alvorada.

Árvore prateada da esperança,

Sombra das ilusões, ó vida bela

E sempre bela, e no morrer ainda,

Por que pousei a fronte sobre a relva

À sombra vossa, delirante um dia?

Oh! que morro também! na noite d'alma

Sinto‑o no peito que um ardor consome,

No meu gênio que apaga-se nas orgias,

Que foge o mundo, e o sepulcro teme...

Exilei‑me dos homens blasfemando...

Concentrei‑me no fundo desespero,

E exausto de esperança e zombarias

Como um corpo no túmulo lancei‑me,

Suicida da fé, no vício impuro.

X

E o mundo? não me entende. Para as turbas

Eu sou um doudo que se aponta ao dedo.

A glória é essa. P'ra viver um dia

Troquei o manto de cantor divino

Pelas roupas do insano. — Os sons profundos

Ninguém os aplaudia sobre a terra.

Para um pouco de pão ganhar da turba,

Como teu corpo no bordel profanas,

— Fiz mais ainda! — prostituí meu gênio!

Oh! ditoso Filinto! ele sim pôde

Na miséria guardar seu gênio puro;

Nunca infame beijou a mão dos grandes:

Morreu como Camões, morreu sem nódoa!

Mas eu! A voz do vício arrebatou‑me,

Fascinou‑me da infâmia o revérbero...

Maldições sobre mim! Abre‑te, ó campa!

Ali obscuro dormirei na treva...

XI

Ó santa inspiração! fada noturna,

Por que a fronte não beijas do poeta?

Por que não lhe descansas nos cabelos

A coroa dos sonhos, e rebentam‑lhe

Entre as lívidas mãos uma por uma

As cordas do alaúde no vibrá‑las?

Ó santa inspiração! por que nas sombras

Não escuta o poeta à meia‑noite

Os sons perdidos da harmonia santa

Que o pobre coração de amor lhe enchiam?

Eu fui à noite da taverna à mesa

Bater meu copo à taça do bandido,

Na louca saturnal beber com ele,

Ouvir‑lhe os cantos da sangrenta vida

E as lendas de punhal e morticínio.

De vinho e febre pálido deitei‑me

Sobre o leito venal de uma perdida...

Comprimi‑a no meu exausto peito,

Falei‑lhe em meu amor, contei‑lhe sonhos,

Do meu passado a flor, as glórias murchas

E os longos beijos da primeira amante...

Amor! amor! meu sonho de mancebo!

Minha sede! meu canto de saudade!

Amor! Meu coração, lábios e vida

A ti, sol do viver, erguem‑se ainda,

E a ti, sol do viver, erguem‑se embalde!

Ouvi, ouvi no leito da miséria

A pálida mulher junto a meu peito

Contar‑me seus amores que passaram,

Falar‑me de purezas, d'esperanças...

E soluçava a triste, e ardentes, longas.

As lágrimas em fio deslizando

Eu vi caindo sobre o seio dela...

Oh! suas emoções, úmidos beijos,

Dos seios o tremor, aqueles prantos,

E os ofegantes ais... eram mentira!...

XII

Ah! vem, alma sombria que pranteias.

Por quem choras? Por mim? Em vez de prantos

Deixa‑me suspirar em teus joelhos.

Tu sim és pura. Os anjos da inocência

Poderiam amar sobre teu seio.

Aperta minha mão! Senta‑te um pouco

Bem unida a minha alma em meus joelhos:

Assim parece que um abraço aperta

Nossas almas que sofrem. Revivamos!

O passado é um sonho — o mundo é largo,

Fugiremos à pátria. Iremos longe

Habitar n’um deserto. No meu peito

Eu tenho amores para encher de encantos

Uma alma de mulher... Por que sorriste?

Sou um louco. Maldita a folha negra

Em que Deus escreveu a minha sina...

Maldita minha mãe, que entre os joelhos

Não soubeste apertar, quando eu nascia,

O meu corpo infantil! Maldita!...

XIII

                                                       Escuta.

Sinto uma voz no peito que suspira...

É a alma do poeta que desperta

E canta como as aves acordando.

Oh! cantemos! até que a morte fria

Gele nos lábios meus o último canto!

Um cântico de amor, ó minha lira!

Anália! Armia! aparições formosas!

Eu amei sobre a terra as vossas sombras.

O ideal que vos anima e eu buscava,

Vive apenas no céu! vou entre os anjos,

Entre os braços da morte amar com eles! —

XIV

O poeta a tremer caiu no lodo.

A perdida tomou‑lhe a fronte branca,

Pô‑la ao colo — era lívida — inda o fogo

Lá dentro vacilava agonizando,

Como flutua a claridão da lâmpada

Apagando‑se ao vento.

                                                             E quando a aurora

Nos céus de nácar acordava o dia,

E nas nuvens azuis o sol purpúreo

Se embalava no eflúvio de ventura

Das flores que se abriam, dos perfumes,

Da brisa morna que tremia as folhas,

Macilenta a mulher no chão da rua

Sentada, a fronte curva, sobre os seios

Embalava cantando aquele morto.

Na manta o encobriu. Medrosa a furto

A infeliz o beijou — o pobre amante

Que uma noite pernoitou com ela

Para aos pés lhe morrer — e sem ao menos

Nas faces dela estremecer um beijo.

Alguém que ali passou, vendo‑a tão pálida

Sentada sobre a laje, e tão ardente,

Chegou ao pé — ergueu ao malfadado

A manta.

                                                             Como súbito acordando

Disse a moça a tremer:

                                                          — Deixa-o agora.

Ele penou de febre toda a noite,

Deitou‑se descansando sobre o leito...

Oh! deixa‑m’o dormir.

                                                           — Mulher, no peito

Sabes quem tu dormiu?

                                                           — "Que importa o nome?"

Assim falava‑me…

                                                            — Ai de ti, misérrima!

Um poeta morreu. Fronte divina,

Alma cheia de sol, fronte sublime

Que de um anjo devera no regaço

Amorosa viver. . . Morreu Bocage! —

Se eu morresse amanhã!

Se eu morresse amanhã, viria ao menos

Fechar os olhos minha triste irmã;

Minha mãe de saudades morreria

Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!

Que aurora de porvir e que manhã!

Eu perdera chorando essas coroas

Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n’alva

Acorda a natureza mais louçã!

Não me batera tanto amor no peito,

Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora

A ânsia de glória, o dolorido afã...

A dor no peito emudecera ao menos,

Se eu morresse amanhã!

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

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