Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão da Terceira Quarta-feira da Quaresma, do Padre António Vieira


Edição de referência:

Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DA TERCEIRA QUARTA-FEIRA DA QUARESMA

NA CAPELA REAL. ANO 1669

Nescitis quid petatis. (1)

I

         Assunto: um remédio para os males de todas as cortes do mundo: a consola­ção dos maldespachados, baseando-se no pedido indeferido da mãe dos Zebedeus.

               Dois lugares e dois pretendentes, um memorial e uma intercessora, um príncipe e um despacho, são a representação política e a história cristã deste Evangelho. Nos lugares temos as mercês; nos pretendentes, as ambições; na intercessora, as valias; no memorial, os requerimentos; no príncipe, o poder e a justiça; no despacho, o desengano e o exemplo. Este último há de ser a veia que hoje havemos de sangrar Queira Deus que a acertemos, que é muito funda. A enfermidade mais geral de que adoecem as cortes, e a dor e o achaque de que todos comumente se queixam, é de maldespachados. Em alguns se queixa o merecimento, em outros a necessidade, em muitos a própria estimação, e em todos o costume. O benemérito chama-lhe sem-razão, o necessitado diz que é crueldade, o presu­mido toma-o por agravo, e o mais modesto dá-lhe nome de desgraça e pouca ventura. E que não houvesse até agora no púlpito quem tomasse por assunto a consolação desta queixa, o alívio desta melancolia, o antídoto deste veneno, e a cura desta enfermidade? Muitos dos enfermos bem haviam mister um hospital. Mas à obrigação desta cadeira, que é de medicina das almas, só lhe toca disputar a doença e receitar o remédio. E se este for provado e pouco custoso, será fácil de aplicar. Ora, eu, movido da obrigação e da piedade,[1] e parecendo-me esta matéria uma das mais importantes para todas as cortes do mundo, e a mais necessária para a nossa no tempo presente, determino pregar hoje a consolação dos maldespachados. Nem com a ambição dos Zebedeus hei de condenar os pretendentes, nem com a negociação da mãe hei de argüir os intercessores, nem com a resolução de Cristo hei de abonar os príncipes e os ministros; só com o desengano do requerimento: Nescitis quid petatis, pretendo consolar eficazmente a todos os que se queixam dos seus despachos, ou se sentem dos alheios. Consolar um maldespachado é o assunto do sermão. Se com a graça divina se conseguir o intento, sairão hoje daqui os pretendentes comedi­dos, os ministros aliviados, os bem-despachados confusos e os maldespachados conten­tes. Ajude Deus o zelo com que ele sabe que fiz eleição deste ponto.

II

                

               Os que devem ser excluídos da lista dos maldespachados. Considerar: o que éreis e o que sois. Adão, transformado de barro em homem, ainda pretende ser Deus. O que tínheis e o que tendes: a estranha ordem do Faraó aos irmãos de José. Onde estáveis e onde estais: a origem humilde de Davi. Por que não se queixaram os apóstolos ante a negativa de Cristo?

               Nescitis quid petatis.

               Havendo pois de consolar hoje os maldespachados, aquela gente muita e não vulgar, de quem se pode dizer: Non est qui consoletur eam [2] para que procedamos distintamente e falemos só com quem devemos falar, é necessário excluir primeiro desta honrada lista os que importunamente e sem razão se querem meter nela. E quem são estes? São aqueles, que sendo hoje tanto mais do que eram, e tendo tanto mais do que tinham, e estando tanto mais levantados do que estavam, ainda se quei­xam e se chamam maldespachados.

               Adão, antes de Deus o formar, não era nada; formado, era uma estátua de barro lança­da naquele chão; bafejou-o Deus, pôs-se Adão em pés, começou a ser homem, e foi com tão extraordinária fortuna, que tinha, diz o texto, ele só três presidências: a presidência da terra sobre todos os animais; a presidência do ar sobre todas as aves; a presidência do mar sobre todos os peixes. Estava bem despachado Adão? Parece que não podia ser mais, nem melhor. Contudo nem ele, nem sua mulher ficaram contentes; ainda pretendiam. E quê? Não mais que ser como Deus: Eritis sicut dii. [3] Há tal ambição de subir? Há tal desatino de crescer? Anteontem nada, ontem barro, hoje homem, amanhã Deus? Não se lembrará Adão do que era ontem, e muito mais do que era anteontem? Quem ontem em barro, não se contentará com ser hoje homem, e o primeiro homem? Quem anteontem era nada, não se contentará com ser hoje tudo, e mandar tudo? Não; porque já então era Adão como hoje são muitos de seus filhos, que saem como ele ao barro e ao nada de que foram criados. Malcriados, e maus criados. Por isso descontentes e ingratos, quando deveram estar muito contentes e mui agra­decidos. E a razão desta sem-razão é porque dos sentidos perderam a vista, e das potências a memória; nem olham para o que são, nem se lembram do que foram.

               Mas do que éreis e do que sois, passemos ao que tínheis e ao que tendes. Entronizado José no governo e império do Egito, soube el rei Faraó que tinha pai e irmãos na terra de Canaã, e mandou-os logo chamar para que viessem ser compa­nheiros da fortuna de seu irmão. O recado foi notável, e dizia assim: Properate, nec dimittatis quidquam de supellectili vestra, quia omnes opes Aegypti vestrae erunt: Vinde logo, e não deixeis coisa alguma das vossas alfaias, porque todas as riquezas do Egito hão de ser vossas (Gên. 45, 20). Este porquê, não entendo. Antes, porque todas as riquezas do Egito haviam de ser suas, não era necessário que trouxessem coisa alguma do que tinham em Canaã. Pois por que lhes manda Faraó que tragam todas as suas alfaias? Por isso mesmo: para que cotejando as alfaias da fortuna presente com as da fortuna passada, conhecessem melhor a mercê que o rei lhes fizera. Eram os irmãos de José uns pobres lavradores e pastores; saíam de cabanas e telhados de colmo, para virem morar em palácios dourados debaixo das pirâmides e obeliscos do Egito. Pois tragam as suas peles, as suas mantas, os seus pelotes de pano da serra; tragam as suas samarras, as suas alparcas, as suas gualteiras; tragam as suas escudelas de pão, e os seus tarros de cortiça, para que quando se virem com as paredes ricamente entapizadas, a prata rodar pelas mesas, a seda e ouro das galas, as pérolas e os diamantes das jóias, os criados, os cavalos, as carroças, conheçam quanto vai de tempo a tempo, e de fortuna a fortuna, e dêem graças a Faraó. Quer cada um conhecer e ver e apalpar a muita mercê que o rei lhe tem feito? Coteje as suas alfaias, as de casa e as da rua, as suas e as dos seus. A comparação deste muito com aquele pouco. Oh! quanto serviria para o agradecimento e para a modéstia, e ainda para fazer lastro a mesma fortuna!

               Visto já o que éreis e o que sois, o que tínheis e o que tendes, resta a combina­ção dos lugares onde estáveis e onde estais. No segundo livro dos Reis, capítulo sétimo, estão registradas as mercês que Deus tinha feito a Davi, e diz assim o regis­to: Ego tuli te de pascuis sequentem greges, ut esses dux super populum meum (2 Rs. 7, 8). Eu, diz Deus, tirei a Davi de entre pastores, onde guardava as ovelhas de seu pai, e o fiz capitão e governador sobre todo o meu povo. Não só diz Deus o lugar onde o pôs, senão também o lugar donde o tirou: o onde, e mais o donde. Pois, Senhor meu, que tão grandioso sois, se quereis que fiquem registadas em vossos livros as mercês que fizestes a Davi, por que mandais que se registe também neles o exercício de que vivia, e o lugar humilde de que o'levantastes? Para que à vista deste lugar conheça melhor Davi a grande mercê que lhe tenho feito. Quando se vir com o bastão na mão, lembre-se que na mesma mão trazia o cajado. Se algum dia, que tudo se pode temer dos homens, lhe parecerem pequenas a Davi as mercês que lhe fiz, lembrar-se-á do lugar que tinha antes, e do que tem agora; lembrar-se-á donde o tirei e onde o pus, e logo lhe parecerão grandes. Estes ondes e estes dondes não se costu­mam registar nos livros das mercês. Seria bem que ao menos se registasse nas me­mórias dos que as recebem. Já que tivestes tanta estrela, ponde-lhe uma estrelinha à margem. Lembre-se o descontente com Davi onde estava e onde está; lembre-se com os irmãos de José do que tinha e do que tem; lembre-se com Adão do que era e do que é, e logo verá qual deve ser o queixoso, se o despacho, ou o despachado.

               Não despachou Cristo hoje os nossos pretendentes, mas eu noto que nenhum deles se queixou. Pediram as duas supremas cadeiras do reino, pediram que Cristo os despa­chasse logo com três letras: Dic, dic, ut sedeant hi duo filii mei. E foram respondidos logo com outras três: Non, non est meum dare vobis. [4] E sendo este não tão claro, tão seco, tão desenfeitado, queixou-se porventura a intercessora? Queixaram-se os pretendentes? Nem uma palavra disseram. E por quê? Porque eram gente que sabia tomar as medidas à sua fortuna. Compararam o que tinham sido com o que eram, e o que eram com o que preten­diam ser. Na comparação do que tinham sido com o que eram, viam a melhoria do seu estado; na comparação do que eram com o que pretendiam ser, reconheciam o excesso da sua ambição. E estas duas comparações lhes taparam a boca de maneira que não teve por onde brotar a queixa. Ontem remando a barca e remendando as redes, hoje despachados cada um de nós com uma das doze cadeiras do reino de Cristo. E que ainda não estejamos contentes e nos atrevamos a pretender os dois lugares supremos? Mais razão tem logo nosso Mestre de negar, do que nossa mãe e nós de pedir. Ele negou como justo, nós pedimos como demasiados e néscios: Nescitis quid petatis.

III

               Os beneméritos maldespachados. Consolações humanas, as ações honradas, como já o reconhecia Sêneca, são satisfações de si mesmas. Afama. O servo inútil do Evangelho e o Venerável Beda. Catão e o reconhecimento dos romanos. A injus­tiça dos prêmios e a opinião de Marco Túlio. Os não-premiados e o glorioso epitá­fio ditado pelo filho pródigo.

               Excluídos já os queixosos e descontentes sem causa, e que porventura são a causa de haver tantos descontentes, ouçam agora os beneméritos maldespachados a muita razão que têm de se consolar. A do Evangelho, como logo mostrarei, é a mais forte de todas. Mas sem recorrer a motivos da fé, se eu fora um dos beneméritos, em mim mesmo e no meu próprio merecimento, achara tão grandes razões de me consolar, que sem outra mercê nem despacho, me dera por mui contente e satisfeito. Discorrei um pouco comigo.

               Ou mereceis os prêmios que vos faltam, e com que vos faltam, ou não; se os não mereceis, não tendes de que vos queixar; se os mereceis, muito menos. Ainda não sabíeis que não há virtude nem merecimento sem prêmio? Assim como o vício é o castigo, assim, a virtude é o prêmio de si mesma. O maior prêmio das ações heróicas é fazê-las. Com melhores palavras o disse Sêneca, porque falava em me­lhor língua: Quid consequar, inquis, si hoc fortiter, si hoc grate fecero? Quod feceris: Se me perguntas que hás de conseguir pelo que fizeste ou forte ou generosamen­te, respondo-te que tê-lo feito.[5]  Rerum honestarum pretium in ipsis est: O prêmio das ações honradas, elas o têm em si, e o levam logo consigo; nem tarda, nem espera

         requerimentos, nem depende de outrem: são satisfação de si mesmas. No dia em que as fizestes, vos satisfizestes.

               E se fora de vós mesmo esperáveis outro prêmio, contentai-vos como da opinião e da honra. Se vossos serviços são mal premiados, baste-vos saber que são bem conhecidos. Este prêmio mental assentado no juízo das gentes, ninguém vo-lo pode tirar nem diminuir. Que importa que subais mal consultado dos ministros, se estais bem julgado da fama? Que importa que saísseis escusado do tribunal, se o tribunal fica acusado? Passai pela chance­laria este despacho, deixai-o por brasão a vossos descendentes, sereis duas vezes glorioso. Só vos dou licença que vos arrependais de ter pretendido. Pouco fez ou baixamente avalia suas ações quem cuida que lhas podiam pagar os homens.

               Se servistes à pátria que vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, ela o que costuma. Mas que paga maior para um coração honrado que ter feito o que devia? Quando fizestes o que devíeis, então vos pagastes.Ouvi ao Mestre divino que tudo nos ensinou. Dizia Cristo a seus soldados, a quem encarregou não menos que a conquista do mundo, em que todos deram a vida: Cum feceritis omnia, dicite: servi inutiles sumus: Quando fizerdes tudo, dizei que sois servos inúteis (Lc. 17, 10). Notável sentença! O servo inútil é aquele que não faz nada; mas o que faz muito, e muito mais o que faz tudo, há de cuidar e dizer que é servo inútil? Sim. Ninguém entendeu melhor este texto que o Venerável Beda. Não fala Cristo da utilidade que recebe o Senhor, senão da utilidade que não recebe o servo. O servo não recebe utilidade do seu serviço, porque é obrigado a servir; e assim há de servir quem serve generosamente. O mesmo Cristo se declarou, e deu a razão muito como sua: Quod debuimus facere, fecimus: O que devíamos fazer isso fizemos. Quem fez o que devia, devia o que fez, e ninguém espera paga de pagar o que deve. Se servi, se pelejei, se trabalhei, se venci, fiz o que devia ao rei, fiz o que devia à pátria, fiz o que me devia a mim mesmo, e quem se desempenhou de tamanhas dívidas, não há de esperar outra paga. Alguns há tão desvanecidos que cuidam que fizeram mais do que deviam. Enganam-se. Quem mais é e mais pode, mais deve. O sol e as estrelas servem sem cessar, e sempre com grande utilidade; mas esta toda é do universo, e nada sua. Prezai-vos lá de filhos do sol, e tão ilustres como as estrelas, e abstende-vos a mendigar outra paga.

                       Eu não pretendo com isto escusar os que vós acusais. Porque vós sois bene­mérito, não devem esses ser injustos, antes aprender da vossa generosidade a ser generosos e liberais. Que dão ou que podem dar, a quem deu por eles o sangue? Mas por que ainda com o pouco que podem, faltam ao agradecimento, quero eu que vos não falte a consolação. Se vossos feitos foram romanos, consolai-vos com Catão, que não teve estátua no Capitólio. Vinham os estrangeiros a Roma, viam as estátuas daqueles varões famosos, e perguntavam pela de Catão. Esta pergunta era a maior estátua de todas. Aos outros pôs-lhes estátua o senado, a Catão o mundo. Deixai perguntar ao mundo e admirar-se de vos não ver premiado. Essa pergunta e essa admiração é o maior e melhor de todos os prêmios. O que vos deu a virtude, não vo­-lo pode tirar a inveja; o que vos deu a fama, não vo-lo pode tirar a ingratidão. Deixai-os ser ingratos, para que vós sejais mais glorioso. Um grande merecimento sobre uma grande ingratidão fica muito mais subido. Se não houvesse ingratidões, como haveria finezas? Não deis logo queixas ao desagradecimento: dai-lhe graças.

               Dir-me-eis que vedes diferentemente premiados os que fizeram menos, ou não fizeram nada. Dor verdadeiramente grande! Já disse uma rainha de Castela que os seus serviam como vassalos, os nossos como filhos.[6] E não pode deixar de ser grande escândalo do amor e grande monstruosidade da natureza, que fossem uns os filhos, e sejam outros os herdeiros. Mas essa mesma injustiça vos deve servir de consolação. Se o mundo e o tempo fora tão justo que distribuíra os prêmios pela medida do merecimento, então tínheis muita razão de queixa, porque vos faltava o testemunho da virtude para que os mesmos prêmios foram instituídos. Mas quando as mercês não são prova de ser homem, senão de ter homem, e quando não signifi­cam valor, senão valia, pouca injúria se faz a quem se não fazem. Dizia com verda­deiro juízo Marco Túlio, que as mercês feitas a indignos não honram os homens, afrontam as honras.[7] E assim é. As comendas em semelhantes peitos não são cruz, são aspa, e quando se vêem tantos ensambenitados da honra, bem vos podeis honrar de não ser um deles. Sejam esses embora exemplos da fortuna, sede-o vós da virtu­de: Virtutem ex me, fortunam ex aliis.[8]

               Finalmente se os homens vos são ingratos, não sejais vós ingrato a Deus. Se os reis vos não dão o que podem, contentai-vos com que vos deu Deus, o que não podem dar os reis. Os reis podem dar títulos, rendas, estados; mas ânimo, valor, fortaleza, constância, desprezo da vida, e outras virtudes de que se compõe a verdadeira honra, não podem. Se Deus vos fez estas mercês, fazei pouco-caso das outras, que nenhuma vale o que custa. Sobretudo lembre-se o capitão e soldado famoso de quantos companheiros perdeu e morreram nas mesmas batalhas e não se queixam. Os que morreram fizeram a maior fineza, porque deram a vida por quem lha não pode dar. E quem por mercê de Deus ficou vitorioso e vivo, como se queixará de maldespachado? Se não beijastes a mão real pelas mercês que vos não fez, beijai a mão da vossa espada que vos fez digno delas. Olhe orei para vós como para um perpétuo credor, e gloriai-vos de que se não possa negar de devedor vosso o que é senhor de tudo. Se tivestes ânimo para dar o sangue e arriscar a vida, mostrai que também vos não falta para o sofrimen­to. Então batalhastes com os inimigos; agora é tempo de vos vencer a vós. Se o soldado se vê despido, folgue de descobrir as feridas e de envergonhar com elas a pátria por quem as recebeu. Se depois de tantas cavalerias se vê a pé, tenha esta pela mais ilustre carroça de seus triunfos. E se assim se vê morrer à fome, deixe-se morrer, e vingue-se. Perdê-lo-á quem o não sustenta, e perderá outros muitos com esse desengano. Não faltará quem diga por ele: Quanti mercenarii abundant panibus, ego autem hic fame pereo![9] E este ingrato e escandaloso epitáfio será para sua memória muito maior e mais honrada comenda de quantas podem dar os que as dão em uma e muitas vidas.

IV

               Consolações divinas: Não sabemos o que pedimos. O pedido de Raquel a Jacó é causa de sua morte. Os pedidos de Sansão e do filho pródigo, causas de sua desventura. Ovídio e o pedido de Faetonte.

               Estes são os motivos gloriosos com que eu não só me consolara, mas ainda me desvanecera, se fora um dos mais beneméritos. Mas, porque Non omnes capiunt verbum istud»[10] vamos à razão divina do Evangelho, com que se não podem deixar de consolar e conformar todos os que têm fé, e ainda os que a não têm. Ouvi-me ao princípio como homens, e depois como cristãos.

               Nescitis quid petatis: Não sabeis o que pedis. Nenhum homem há neste mun­do, falando do céu abaixo, que saiba o que deseja, nem o que pede. Fundemos esta verdade na experiência, para que as conseqüências dela sejam de maior e mais segu­ra consolação. E porque a petição do Evangelho foi de uma mãe e dois filhos, po­nhamos também o exemplo em dois filhos e uma mãe.

               A mais encarecida, a mais empenhada e a mais importuna e impaciente petição que fez mulher neste mundo, foi a de Raquel a seu marido Jacó: Da mihi liberos, alioquin moriar: Jacó, dai-me filhos, senão hei de morrer (Gên. 30, 1). Respondeu-lhe Jacó que os filhos só Deus os dá, e só ele os pode dar. E com ser esta razão tão certa e tão experimentada, não se conformava com ela Raquel. Instava: Da mihi liberos. Di­zia-lhe que advertisse como estava na primavera de seus anos, e que ainda lhe restavam muitos em que podia ter naturalmente o que tanto desejava. Mas esta mesma esperança a inquietava mais: Da mihi liberos. Animava-a com o exemplo de sua avó Sara, que depois de tão comprida esterilidade houvera a Isac, seu pai. Mas Raquel sempre mais impaciente: Da mihi liberos. Ajuntava Jacó a estas razões as da lisonja, mais poderosa muitas vezes com a fraqueza e presunção daquele sexo; dizia-lhe que olhasse para si, e se consolasse com a rosa, a qual sendo a beleza dos prados e a rainha das flores, é flor que não dá fruto. Mas nem a lisonja, nem a razão, nem o exemplo, nem a esperança bastava a lhe moderar as ânsias, nem as vozes: Da mihi liberos! Da mihi liberos! Esta era a petição, este o aperto, estas as instâncias. Mas qual foi o despacho e o sucesso? Caso verdadeiramente admirável! O despacho foi assim como Raquel pedia, e o suces­so em tudo contrário, ao que pedia. O que pedia Raquel não só era filho, senão filhos: Da mihi liberos; e assim lho concedeu Deus, porque a fez mãe de José e de Benjamin. Mas o sucesso foi em tudo contrário ao que pedia, porque parindo felizmente o primei­ro filho, morreu de parto, e no mesmo parto do segundo. Lembrai-vos agora dos termos com que Raquel pedia os filhos: Da mihi liberos, alioquin moriar: Dai-me filhos, dizia, senão hei de morrer. E quando cuidava que havia de morrer se não tivesse filhos, porque teve filhos, e no mesmo ponto em que os teve, morreu. Cuidava que pedia a vida, e pedia a morte; cuidava que pedia a alegria sua e de sua casa, e pedia a tristeza, o luto, a orfandade dela, e os que lhe haviam de trocar a mesma casa em sepultura. Tão errados são os pensamentos e desejos humanos, e tão certo é, que no que pedimos com maiores ânsias não sabemos o que pedimos: Nescitis quid petatis!

               Confirmado o desengano da mãe dos Zebedeus com o exemplo desta mãe, confirmemos o de seus dois filhos com o exemplo de outros dois, posto que filhos de diferentes pais. Sabida é a história de Sansão, e sabida a do pródigo, ambos famosos por seus excessos. Deixados pois os princípios e progressos de uma e outra tragédia, ponhamo-nos ao fim de ambas, e vejamos o estado de extrema miséria a que os passos de cada um os levaram por tão diversos caminhos. Vedes aquele ho­mem robusto e agigantado que com aspecto ferozmente triste, tosquiados os cabe­los, cavados os olhos e correndo sangue, atado dentro em um cárcere a duas fortes cadeias, anda morrendo em uma atafona? Pois aquele é Sansão. Vedes aquele man­cebo macilento e pensativo que roto e quase despido, com uma cometa pendente do ombro, arrimado sobre um cajado, está guardando um rebanho vil do gado mais asqueroso? Pois aquele é o pródigo. Quem haverá que se não admire de uma tal volta de fortuna em dois sujeitos tão notáveis, um tão valente, outro tão altivo! É possível que nisto pararam as façanhas e vitórias de Sansão? É possível que nisto pararam as riquezas e bizarrias do pródigo? Nisto pararam, ou para melhor dizer, não pararam só nisto, porque o pródigo, perecendo à fome no meio da montanha, não tinha licença para se sustentar das bolotas com que apascentava o seu gado, e Sansão, tirado em público para ludíbrio do povo, foi tratado com tais escárnios e indecências, que de corrido e afrontado, com suas próprias mãos se tirou a vida. Mas qual seria a causa destes sucessos, e de suas mudanças tão estranhas? Agora não vos peço admiração, senão pasmo. Ambas estas mudanças de fortuna não tiveram outra causa que o bom despacho de suas petições, em que Sansão e o pródigo se empenha­ram. Pediu Sansão a seus pais que lhe dessem por mulher uma filistéia: Quam quaeso ut accipiatis mihi uxorem.[11] Concederam-lhe os pais o que pedia, e esta filistéia foi a causa das guerras que Sansão teve com os filisteus, e dos enganos e traições de Dalila, e da sua prisão, e do seu cativeiro, e da sua cegueira, e das suas afrontas, e do fim lastimoso e trágico de seu valor. Da mesma maneira pediu o pródigo a seu pai lhe desse em vida a herança que lhe havia de caber por sua morte: Da mihi partio­nem substantiae quae me contingit (Lc. 15, 12). Concedeu-lhe o pai o que pedia, e esta herança, consumida em larguezas e vícios da mocidade, foi causa da sua pobre­za, da sua vileza, da sua miséria, da sua fome, da sua servidão, da sua desonra, que só tiveram de desconto o pesar e arrependimento.

               Tome agora Raquel, e perguntemos àquela mãe e a estes dois filhos, se pediriam depois de tão pesadas e contrárias experiências, o que antes delas pediram. Pediria Raquel filhos, se soubesse que o ter filhos lhe havia de custar a vida? Pediria Sansão a filistéia, se soubesse que lhe havia de ser a causa de sua afronta, de sua morte, e de perder os olhos com que a vira? Pediria o Pródigo a herança antecipada, se soubera que com ela havia de comprar a miséria, a servidão, a desonra? Claro está que não. Pois se agora não haviam de pedir nada do que pediram, senão antes o contrário, por que o pediram então? Já sabeis a resposta. Pediram-no porque não sabiam o que pediam; pediram-no porque ninguém sabe o que pede, e pediram-no porque foram aquela mãe e aqueles dois filhos, como a mãe e os dois filhos de nosso Evangelho: Nescitis quid petatis.

               Suposto este princípio certo e infalível, que ninguém sabe o que pede, tirem agora a conseqüência os que se têm por maldespachados. Se vós soubésseis que vos estava bem o que pedistes, então tínheis razão de estar contentes se vo-lo concede­ram, ou descontentes se, vo-lo negaram. Mas quando ignorais igualmente se vos estava bem ou mal o que pretendíeis, por que vos desconsolais? Se me desconsolo porque cuido que me podia estar bem, por que me não consolo considerando que me podia estar mal, e mais quando nas coisas deste mundo o mal é o mais certo? Conso­lai-vos com a desgraça de Raquel, consolai-vos com a tragédia de Sansão, consolai-vos com o arrependimento do Pródigo. E se estes exemplos vos movem menos por serem de longe, consolai-vos com os de mais perto, e com os que vistes e vedes com vossos olhos. Quantos vistes que cuidavam que estava o seu remédio onde acharam a sua perdição? Quantos vistes que cuidavam que estava a sua honra donde tiraram o seu descrédito? Quantos vistes que cuidavam que estava o seu aumento onde experimentaram a sua ruína? Quantos finalmente vistes que os esperava a morte onde eles esperavam os maiores interesses e felicidades desta vida? Alcançaram o que pediram, aceitaram muito contentes o parabém do despacho, mas o despacho não era para bem. Poenam pro munere poscis, disse o sol a Faetonte, quando lhe pediu o governo do seu carro.[12] Olha filho que cuidas que pedes mercê, e pedes castigo. O autor é fabuloso, mas a sentença verdadeira. E se não, perguntai aos nossos Faetontes, aos do oriente na Ásia, aos do meio-dia na África, aos do ocidente na América. O mesmo carro que pediram foi o seu precipício, e o mesmo excesso dos raios, o seu incêndio. Se lhes buscardes os ossos fulminados, como se buscaram os de Faetonte, uns achareis nas ondas, outros nas areias, outros nos hospitais, outros nos cárceres e nos desterros, e poucos nas mesmas terras que fora mais honrada sepultura. Estes são os vossos bem-despachados. Quando partiram, levavam após si as invejas; quando tornaram, trouxeram as lágrimas. E se eles se enganaram com o seu desejo e com a sua fortuna, porque não souberam o que pediram, vós que também não o sabeis, por que haveis de enganar? Desenganai-vos com o seu engano e consolai-vos com o seu erro, pois nem eles nem vós sabeis o que pedis: Nescitis quid petatis.

V

               Na ciência de Deus e na nossa ignorância devemos estribar a indiferença de nossas petições. Como conciliar com essas verdades o: Pedi e recebereis? Exemplos dados por Cristo no Evangelho. Por pecados, acedeu Deus ao pedido dos hebreus no deserto; por merecimentos, negou Cristo as petições de Zebedeus.

              

             Oh! Se soubéssemos o que pedimos! Oh! Se soubéssemos o que nos está bem ou mal! Como nos havíamos de dar muitas vezes por bem-despachados com aquele mesmo que chamamos mau despacho! O que nos está bem ou mal, só Deus o sabe; todos o mais o ignoramos. E esta ciência de Deus, e esta ignorância nossa, são os dois pólos em que há de estribar toda a indiferença de nossas petições, e também a resignação nos despachos. As petições, havemo-las de fazer como quem não sabe o que pede, e os despachos havemo-los de aceitar como de quem só sabe o que dá. Cuidamos que os homens são os que nos despacham, e por isso murmuramos e nos queixamos deles, e não advertimos que em todos os conselhos assite invisivelmente Deus como presidente supremo, e que ele é o que nos dá ou nega o que pedimos, como quem só sabe o que está bem ou mal. As sortes, diz Salomão, não dependem da mão do homem, que as tira senão da mão de Deus, que as governa: Sortes mittuntur in sinum, et a Domino temperatur.[13] Se vos saiu a sorte em branco, se vos não responderam como pedíeis, consolai-vos e aceitai este despacho como da mão de Deus, que só sabe o que vos convém. Os homens só fazem mercê quando dão; Deus não só faz mercê quando dá, senão também quando nega.

               Petite, et dabitur vobis: Pedi e recebereis, diz Cristo (Lc. 11, 9). E para maior confirmação desta promessa, acrescenta: Omnis qui petit accipit: Porque todo o que pede recebe. A proposição não pode ser mais universal nem mais clara, mas tem a réplica e a instância muito à flor da terra, e apenas haverá neste mesmo auditório quem não possa testemunhar nela com a própria experiência. Quantos senhores de ricas e grandes casas pediram a Deus um herdeiro, e não o alcançaram? Quantos pobres carregados de filhos pediram para eles o sustento, e não têm com que lhes matar a fome? Quantos na enfermi­dade fizeram votos pela saúde, e morreram sem remédio? Quantos na tempestade, bradan­do ao céu, foram comidos das ondas? Quantos no cativeiro, orando continuamente pela liberdade, acabaram a miserável vida nos ferros e nas masmorras? E para que não vamos mais longe, no mesmo caso do nosso texto temos a mãe dos filhos de Zebedeu pedindo, e pedindo de joelhos: Adorans, et petens aliquid ab eo. E a resposta da sua petição, sendo o mesmo Cristo a quem pediam, foi um não muito desenganado e muito liso: Non est meum dare vobis. Pois se é verdade certa e evangélica, experimentada, ordinária e manifesta que muitos pedem a Deus e não alcançam o que pedem, como diz Cristo: Pedi e recebereis? E como afirma absoluta e universalmente que todos os que pedem recebem? A dúvida não pode ser mais apertada, mas é da casta daquelas que se fundam na falta de inteligência, ou errada apreensão do texto. Ponderai e reparai bem no que dizem as palavras, e no que não dizem: Petite et accipietis: Omnis enim qui petit accipit. Não diz Cristo: Pedi e recebereis o que pedi, senão: Pedi e recebereis. Nem diz: Todo o que pede recebe o que pede, - senão: Todo o que pede recebe. E que é o que recebe? O que Deus sabe que lhe está melhor. Se pedis o que vos convém, recebeis o que pedis, mas se pedis o que vos não convém, recebeis o não se vos dar o que pedíeis. Deste modo, todo o que pede recebe: Omnis qui petit, accipit, porque, ou recebe o que pede, ou recebe o que havia de pedir, se soubera o que pedia. Quando um homem pede o que lhe não convém, se soubera o que pedia, havia de pedir que lho negassem, e porque só Deus sabe o que nos convém, supre com a sua ciência a nossa ignorância, e por isso nos responde, como aos Zebedeus, com um não, e nos nega o que pedimos.

               O mesmo Cristo declarou a sua proposição e a fez evidente com três exemplos familiares e caseiros, que se eu os trouxera havíeis de dizer que eram baixos, tão altiva é a nossa rudeza, e tão humana a sabedoria divina: Quis autem ex vobis patrem petit panem, nunquid lapidem dabit illi? Aut piscem, nunquid pro pisce serpentem dabit illi? Aut si petierit ovum, nunquid porriget illi scorpionem? Se um filho, diz Cristo, pedir pão a seu pai, dar-lhe-á uma pedra? Se lhe pedir peixe, dar-lhe-á uma serpente? Ou se lhe pedir um ovo, dar-lhe-á um escorpião?–Pois esta é a razão porque Deus, que nos trata como filhos, nos diz muitas vezes de não e nos nega o que pedimos, porque pedimos pedras, porque pedimos serpentes, porque pedimos escorpiões. Cuidamos que pedimos o necessário, e pedimos o inútil; cuidamos que pedimos o proveitoso, e pedimos o nocivo: isto é pedir pedras. Cuidamos que pedimos sustento, e pedimos veneno; cuidamos que pedimos o que havemos de comer, e pedimos o que nos há de comer; cuidamos que pedimos com que viver, e pedimos o que nos há de matar: e isto é pedir serpentes e escorpiões. Quando somos tão néscios ou tão meninos que não distinguimos o escorpião do ovo, nem a ser­pente do peixe, nem o pão da pedra, Deus que é pai, e tão bom pai, por que nos não há de negar o que tão ignorante e tão perigosamente pedimos? Oh! ditosos aqueles a quem Deus assim despacha, porque sabe que não sabem o que pedem: Nescitis quid petatis!

               E por que vos consoleis dobradamente, não tenho nenhumas invejas aos que o mundo chama bem-despachados; sabei e saibam eles que Deus, assim como tem um não para as mercês, também tem um sim para os castigos. Entre os homens, o melhor despa­cho das petições é: como pede. No tribunal de Deus muitas vezes é o contrário. Deus nos livre de um: como pede, de Deus, quando os homens não sabem o que pedem. Caminha­vam pelo deserto os filhos de Israel, e enfastiados do maná, e lembrados das olhas do Egito, pediram came. Levou Moisés a Deus a petição, não porque ele a aprovasse, mas importunado do povo. E que responderia Deus? Pedem carne? Sou muito contente: faça-se assim como pedem. Não só lhes darei carne, senão muita, e muito regalada. No mesmo ponto, à maneira de chuva, começaram a cair sobre os arraiais infinitas aves de pena, que assim fala o texto: Pluit super eos sicut pulverem carnes, et sicut arenam maris volatilia pennata (Sl. 77, 27). Ora, grande é a paciência e liberalidade de Deus! A uns homens tão ingratos, desprezadores do maná do céu, assim lhes concede o que pedem? A um apetite tão desordenado, tanto favor? A uma petição tão descomedida, tanta mercê? Esperai um pouco pelo fim, e logo vereis. Muito contente o povo com a chuva nunca vista das aves de pena, começam a matar, a depenar, a guisar de vários modos; assentam-se às mesas com grande festa. E que sucedeu? Adhuc escae eorum erant in ore ipsorum, et ira Dei ascendit super eos (Sl. 77, 30 s): Ainda tinham o comer na boca, quando veio a ira de Deus sobre eles. – Comiam das aves, e como se foram serpentes ou escorpiões, cada bocado era outro tanto veneno, e caíam mortos. Eis aqui o fim do: como pedem. Parecia favor, e era castigo; parecia mercê de Deus, e era ira de Deus: Et ira Dei ascendit super eos. Por este e outro sexemplos, disse altamente Santo Agostinho: Multa Deus concedit iratus, quae negaret propitius: Deus, irado, concede muitas coisas, as quais havia de negar se estivera propício. – Se Deus estivera propício ao povo, havia-lhe de negar o que pedia; concedeu-lho, por­que estava irado contra ele. Cuidais que esse despacho tão venturoso e tão invejado é mercê? Esperai-lhe pelo fim, e vereis que é castigo.

               E se Deus concede por pecados, para que os bem-despachados se não desva­neçam, também nega por merecimentos, para que os maldespachados se consolem. Ouvi um grande reparo sobre o nosso Evangelho. Pedem os Zebedeus as cadeiras; não lhas quer Cristo conceder, porque não sabiam o que pediam, como pouco há dissemos; mas antes de lhas negar, pergunta-lhes se se atreviam a beber o cálix, isto é, se se atreviam a morrer por ele, e como ele: Potestis bibere calicem quem ego bibiturus sum? Responderam ambos animosamente que sim. E porque o testemu­nho deste valor e serviço não ficasse só na fé dos pretendentes, o mesmo Cristo o qualificou e justificou, e lhes deu certidão autêntica de que assim era ou havia de ser: Calicem quidem meum bibetis.[14] E depois destas provações tão miúdas e tão exatas, então lhes respondeu: Non est meum dare vobis. Pois se o Senhor lhes havia de negar o que pediam, para que lhes pede serviços? Para que lhes examina mereci­mentos? Para que lhes prova o valor? Para que lhes certifica a morte e o sangue do cálix? Se todas estas diligências foram feitas para sobre elas lhes fazer a mercê, bem estava; mas para negar o que pediam? Sim. Porque também o negar é mercê. E porque mercês, e mais se são grandes, se não devem fazer senão por grandes servi­ços, e muito justificados, por isso Cristo lhes pediu primeiro os serviços, e os justi­ficou por verdadeiros, para lhes fazer a mercê de lhes negar o que pediam. De ma­neira que aos filhos de Israel concedeu-lhes Deus a sua petição por pecados, e aos filhos de Zebedeu negou-lhes Cristo a sua por merecimentos, porque no primeiro caso o conceder era castigo, e no segundo, o negar foi mercê. E como o despacho dos que se têm por bem despachados pode ser castigo, e grande castigo, e pelo contrário, o dos que se têm por mal-despachados pode ser mer­cê, e grande mercê, tão pouca razão têm uns de se desvanecer, como outros de se desconsolar, pois uns e outros não sabem o que lhes deram, assim como não sabem o que pedem: Nescitis quid petatis.

VI

               Platão, Sócrates e a oração. Os pedidos de bens temporais e os males eter­nos. S. Paulo escusado, e o demônio atendido. S. João Crisóstomo e o pedido dos Zebedeus. Os maus ministros e a justiça divina. A condenação de Cristo e dos ladrões, e a absolvição de Barrabás. Deus tem na sua mão os corações dos reis. S. Francisco Xavier e o pedido do Padre Simão. Doutrina de S. Paulo sobre a oração. A carta de Urias. A negação de Cristo e a predestinação.

               Estou vendo, senhores, que já me haveis desempenhado do que ao princípio prometi, entendendo que na primeira parte deste discurso vos preguei como a ho­mens, e na segunda como a cristãos. Não é assim, posto que nesta segunda parte falei tantas vezes em Deus, atribuindo à sua justiça e providência os vossos bons ou maus despachos. Até os gentios falaram deste modo, e conheceram isto mesmo só pelo lume da razão e por serem homens, posto que sem fé. Sócrates, aquele grande filósofo da Grécia, dizia que nenhuma coisa em particular se havia de pedir aos deuses, senão em geral o que estivesse bem a cada um, porque isto só eles o sabem, e os homens ordinariamente apetecemos o que nos fora melhor não alcançar: Nihil id votis ultra petendum a diis immortalibus arbitrabatur, quam ut bona tribuerent, quia ii demum scirent, quid unicuique esset utile, nos autem plerumque id votis expetere, quod non impetrasse melius foret, diz Valério Máximo, falando de Sócrates.[15] E Platão, para ensinar o método com que havíamos de pedir a Deus, compôs esta oração: Jupiter da nobis bona, sive ea petamus sive non; arce vero mala, etiam si ea ex errore petamus. Quer dizer: Júpiter, dai-me o bem, ainda que vo-lo não peça, e livrai-me do mal, ainda que vo-lo peça. – Não conheciam a Deus aqueles filósofos, mas sabiam o que se deve pedir e como se deve pedir a Deus. Pedir-lhe que nos dê o bem, ainda que lho não peçamos, e que nos livre do mal, ainda que lho peçamos, porque muitas vezes pedimos o mal cuidando que é bem, e não pedimos o bem, cuidando que é mal, e só Deus, que sabe o que nos está bem ou mal, nos pode dar o que nos convém. Assim que até agora somente preguei como a homens, e por isso, todos os bens ou males de que falei, foram do céu abaixo. Agora subamos mais acima, e dai-me atenção, como cristãos, ao que brevemente me resta por dizer, que é o que sobre tudo importa.

               Nescitis quid petatis. São tão néscias, cristãos, as nossas petições, são tão arriscadas e tão perigosas muitas vezes, que cuidando que pedimos os bens temporais, pedimos os males eternos; cuidando que pedimos nossas conveniências, pedimos a nossa condena­ção. Não é conseqüência ou consideração minha, senão doutrina e conclusão expressa do mesmo Cristo. Sedere autem ad dexteram meam, vel sinistram, non est meum dare vobis, sed quibus paratum est a Patre mea [16] Notável e profunda resposta! Os dois discípulos e sua mãe pediam as duas primeiras cadeiras do reino temporal de Cristo, entendendo erra­damente que o Senhor havia de reinar temporalmente neste mundo, assim como Davi, Salomão, e outros reis seus primogenitores. Este era o seu pensamento, e esta a sua peti­ção, conforme a esperança vulgar a que todos estavam persuadidos, ainda depois da res­surreição de Cristo, quando perguntaram: Domine, si in tempore hoc restitues regnum Israel?[17] Pois se pediam lugares e dignidades temporais, como lhes responde Cristo, quando lhas nega, com os decretos da predestinação do Padre: Sed quibus paratum est a Patre meo? Porque os despachos das nossas petições, ainda que sejam de coisas tempo­rais, são efeitos muitas vezes da predestinação eterna. Muitas vezes sai despachado o pretendente, porque é precito, e não sai despachado, porque é predestinado. Pediu o de­mônio a Deus que lhe desse poder sobre os bens e pessoa de Jó, e concedeu Deus ao demônio o que pedia o demônio. Pediu S. Paulo a Deus, e pediu-lhe três vezes, que o livrasse de uma tentação, e negou Deus a S. Paulo o que pedia S. Paulo. Pois a Paulo se nega o que pede, e ao demônio se concede? Sim, diz Santo Agostinho. Ao demônio, para maior confusão, a Paulo, para maior glória; a Paulo, como o predestinado, ao demônio como a precito. Quantos precitos estão hoje no inferno arrenegando dos seus despachos! E quantos predestinados estão no céu dando eternas graças a Deus porque os não despa­charam! Dois destes predestinados não despachados, eram os dois apóstolos do nosso Evangelho, que por isso lhes disse Cristo que não sabiam o que pediam. Cuidavam que pediam dignidades e honras do mundo, e pediam, sem saber o que pediam, a sua condena­ção: Unus ad dexteram, et unus ad sinistram. A mão direita de Cristo, como se verá no dia do juízo, é o lugar dos que se hão de salvar; a mão esquerda é o lugar dos que se hão de condenar. E como cada um dos dois apóstolos pedia indiferentemente a mão direita ou esquerda, ambos se expunham e se ofereciam, sem o saberem, ao lugar da condenação. S. João Crisóstomo: Ego vos elegi ad dexteram, et vos, vestro judicio, curritis ad sinistram: Eu, diz Cristo, escolhi-vos para a mão direita, e vós, por vosso juízo, e por vossa vontade, sem saber o que pedis, pedis e fazeis instâncias pela mão esquerda – Oh! quantos reque­rentes da mão esquerda! Oh! quantos pretendentes da condenação andam hoje em todas as cortes da cristandade, sem saberem o que pedem e o que requerem! Andam requerendo e solicitando, e contendendo sobre quem há de levar o inferno. E os que o alcançam, ficam muito contentes, e os que o não conseguem, muito tristes.

               Então tudo é queixar e infamar os ministros, e talvez com tanto excesso e atrevimento, que ainda sobem as queixas mais acima. Eu não tenho tanta opinião dos nossos tribunais na justiça distributiva, como noutras espécies desta virtude, mas para o fim da predestinação e salvação, que é o último despacho, e o que só importa, tanto se serve Deus de ministros justos, como de injustos, e tanto da sua justiça, se a observam, como da sua injustiça. Quis Deus salvar o gênero humano naquele dia fatal em que deu a vida por ele; e de que ministros se serviu sua provi­dência? Caso estupendo! Serviu-se de Judas, de Anás, de Caifás, de Pilatos, de Herodes e por meio da injustiça e impiedade de homens tão abomináveis se conse­guiu a salvação de todos os predestinados. Se esperais ser um deles, não vos quei­xeis. E se me dizeis que foram injustos os ministros convosco, também vô-lo conce­do, posto que o não creio. Mas que importa que ou neste conselho fossem Judas ou naquele Anases e Caifases, ou noutro Herodes e Pilatos, se por meio da sua injustiça tinha Deus predestinado a vossa salvação? Eles irão ao inferno pela injustiça que vos fizeram, e vós, por ocasião da mesma injustiça, ireis ao céu. Notai, neste mesmo dia, dois concursos dignos de toda a ponderação, para que vos não queixeis de ver preferidos os que concorreram convosco. O primeiro concurso foi de Cristo com Barrabás, e ambos foram julgados com suma injustiça, porque Barrabás, ladrão, adúltero, homicida e traidor, saiu absolto, e Cristo, sumamente inocente e sumamen­te benemérito, condenado. O segundo concurso foi de Dimas e Gestas, o bom e o mau ladrão, e ambos foram condenados com igual justiça, porque ambos como la­drões mereciam a forca. E que tirou Deus destes dois concursos e destes dois juízos tão encontrados? O primeiro foi por ambas as partes injusto; o segundo, por ambas as partes justo, e de ambos tirou Deus igualmente a condenação dos precitos e a salvação dos predestinados. Do primeiro tirou a condenação de Barrabás e a glória de Cristo; do segundo tirou a glória do bom ladrão e o inferno do mau, porque para salvar ou não salvar, tanto se serve Deus da justiça dos homens como da sua injus­tiça. Concedo-vos que podeis ser consultado, julgado, e despachado, ou injustamen­te, como vós dizeis, ou justamente, como não confessais; mas nem da justiça nem da injustiça dos ministros vos deveis queixar, se tendes fé, porque tanto pode pender dessa justiça a vossa condenação, saindo bem despachados para o inferno, como depender dessa injustiça a vossa salvação, saindo mal despachados para o céu.

               E se não tendes razão para vos queixar dos ministros, muito menos a tem a vossa temeridade para subirem talvez as queixas até o sagrado, onde se decretam as resoluções. E por quê? Porque ainda que os reis são homens, Deus é o que tem na sua mão os corações dos reis. Cor regis in manu Domini; quocumque voluerit inclinabit illud (Prov. 21, 1): O coração do rei, diz Salomão, está na mão de Deus, e a mão de Deus é a que o move e inclina a uma ou outra parte, segundo a disposição de sua providência. – Como o coração do rei está na mão de Deus, se Deus abre e alarga a mão, alarga-se também o coração do rei, e faz-vos mercê com grande liberalidade: e se Deus aperta e estreita a mão, estreita-se do mesmo modo o coração do rei, e, ou vos dá muito menos, ou nada do que pedíeis. De maneira que ainda que o rei é o senhor que dá ou não dá, tem sobre si outro senhor maior que é o que lhe alarga ou estreita o coração, para que dê ou não dê. Rei era Ciro e rei era Faraó: Ciro dominava os hebreus no cativeiro da Babilônia, e Faraó dominava os mesmos hebreus no cativeiro do Egito; mas a causa superior de serem tão diferentemente tratados, não foi Ciro, nem Faraó, senão Deus. Como Deus tinha na mão o coração daqueles reis, alargou a mão ao coração de Ciro, e deu Ciro liberdade aos hebreus e estreitou a mão ao coração de Faraó, e não só os não libertou Faraó, antes lhes apertou mais o cativeiro. Adverti porém para consolação vossa, que este mesmo aperto e esta mes­ma estreiteza e dureza do coração de Faraó, foi a última disposição que Deus traçava para levar os hebreus, como levou, à Terra de Promissão. Se o coração do rei, tão largo, e tão liberal com outros, é para convosco estreito e ainda duro, alargai vós o vosso coração, e consolai-vos, e entendei que por esse meio vos quer Deus levar à Terra de Promissão do céu, para que vos tem predestinado. Pode haver maior conso­lação que esta? Não pode.

               Agora acabaremos de entender a providência que está escondida em uma desi­gualdade que cada dia experimentamos e não sei se advertimos bem nela. Requer um pretendente, solicita, negoceia, insta, e talvez peita e suborna, e sai despachado. O outro seu competidor que não tem tanta valia, nem tanto do que vale, encomenda o seu negócio a Deus, mete a sua petição na mão de Santo Antônio, manda dizer missas a Nossa Senhora do Bom Despacho, e sai escusado. Pois este é o fruto de negociar com Deus? Estes são os poderes da oração? Esta a valia e a intercessão dos santos? Sim: esta é. Porque eles intercederam por vós, por isto não saístes despachado. Um santo que pregou neste mesmo púlpito nos há de dar a prova. Havia na Índia um fidalgo mui devoto de S. Francisco Xavier. Tinha as suas pretensões com o Senhor Rei D. João o III. Pediu uma carta de favor ao santo para seu companheiro, Padre Mestre Simão, que era mestre do príncipe, e muito bem visto de el-rei. Escreveu S. Francisco Xavier, e dizia assim o capítulo da carta. Dom fulano é muito amigo da Companhia; tem reque­rimentos com S. Alteza. Peço a Vossa Reverência, pelas obrigações que devemos a este fidalgo, que procure desviar os seus despachos quanto for possível, porque todo o que vem despachado para a Índia, vai bem despachado para o inferno. Eis aqui as interces­sões dos santos. Sabeis por que saiu o outro despachado e vós não? Porque ele teve a valia dos homens, e vós a intercessão dos santos. Esperáveis que vos despachassem bem para o inferno, quanto tínheis encomendado o vosso requerimento à Senhora do Bom Despacho? Dai graças a Deus e à sua Mãe, e ouvi tudo o que tenho dito, e tudo o que se pode dizer nesta matéria, em um texto estupendo de S. Paulo.

               Quid oremus, sicut oportet, nescimus: ipse autem Spiritus postulat pro nobis gemitibus inenarrabilibus (Rom. 8, 26). Nós não sabemos o que pedimos: Nescitis quid petatis. Nós não sabemos pedir o que nos convém: Quid orem us, sicut oportet, nescimus. E que faz Deus, autor de nossa predestinação e salvação, quando pedimos o que é contrário a ela? Ipse autem Spiritus postulat pro nobis gemitibus inenarrabilibus: O mesmo Espírito Santo, diz S. Paulo, por sua infinita bondade e misericórdia, troca, emenda, e ordena as nossas petições, e ele mesmo pede por nós a si mesmo, com gemidos que se não podem declarar: Gemitibus inenarrabilibus. – De sorte que quan­do pretendemos o que encontra a nossa salvação, nós pedimos na terra, e o Espírito Santo geme no céu; nós fazemos instâncias, e ele dá ais. Ai, homem cego, que não sabes o perigo em que te metes! Ai, que se quer perder aquela pobre alma! Ai, que anda solicitando sua condenação! Ai, que pretende aquele ofício! Ai, que pretende aquela judicatura! Ai, que pretende aquele concelho! Ai, que pretende aquele governo! Ai, que se alcança o que pretende vai para o inferno! Pretende o Brasil: se vai ao Brasil perde-se; pretende Angola: se vai à Angola, condena-se; pretende a Índia: se passa o Cabo de Boa Esperança, lá vai a esperança da sua salvação. Assim geme o Espírito Santo por nos desviar do que pretendemos com tantas ânsias, porque não sabemos o que pedimos: Quid oremus, sicut oportet, nescimus.

               Pois que há de fazer um homem depois de servir tantos anos? Não há de preten­der? Não há de requerer? Pode ser que esse fora o melhor conselho. Mas não digo tanto, porque não vejo tanto espírito. O que só digo é, pelo que cada um deve à sua salvação, que o nosso modo de requerer seja este. Ponde a petição na mão do ministro, e o despacho nas mãos de Deus. Senhor, eu não sei o que peço; o que mais convém à minha salvação só vós o sabeis; vós o encaminhai, vós o disponde, vós o resolvei. Com isto, ou saireis despachado ou não: se sairdes despachado, aceitai embora a vossa por­taria ou a vossa provisão, e começai a temer e tremer, porque pode ser que aquela folha de papel seja uma carta de Urias (2 Rs. 17, 15), Urias levava no seio a sua carta, cuidando que era um grande despacho, e era a sentença da sua morte. Cuidais que levais no vosso despacho o vosso remédio e o vosso aumento, e pode ser que leveis nele a sentença de vossa condenação. Não lhe fora melhor a Pilatos não ser julgador? Não lhe fora melhor a Caifás não ser pontífice? Não lhe fora melhor a Herodes não ser rei? Todos esses se condenaram pelo ofício, e mais com Cristo diante dos olhos. Mas se fordes tão venturosamente desgraçado que não consigais o despacho, consolai-vos com esses exemplos e com o de S. João e São Tiago. Se Cristo não despacha a dois vassalos tão beneméritos, folgai de ser assim benemérito. Se Cristo não despacha a dois criados tão familiares de sua casa, folgai de ser assim da casa de Cristo. Se Cristo não despacha os dois discípulos tão amados, folgai de ser assim amado seu, e entendei que vos não despachou Deus, nem quis que vos despachassem, porque não sabíeis o que pedíeis e porque sois predestinado. Lá, na outra vida, haveis de viver mais que nesta; se aqui tiverdes trabalhos, lá tereis descanso; se aqui não tiverdes grandes luga­res, lá tereis o lugar que só é grande; e se até aqui vos faltar a graça dos homens, lá tereis a graça de Deus e o prêmio desta graça, que é a glória.

Núcleo de Pesquisas em informática, literatura e Lingüistica



               [1] Não sabeis o que pedis (Mt. 20, 22).

            [2] Não há quem a console (Jer. Tren. 1, 17).

[3] Sereis como uns deuses (Gên. 3, 5).

[4] Dize que estes meus dois filhos se assentem, etc

            - Não me pertence a mim dar-vo-lo (Mt.20,21,23).

[5] Sen. De Beneficiis, lib. IV, cap. 1.

[6] ln vita Joan.(

[7] Sent. Tulii Laudata a Hiero.

            [8] (Virg. Aeneid. 12).

            [9] Quantos jornaleiros há em casa de meu pai, que têm pão em abundância, e eu aqui pereço à fome! (Le. 15, 17.

[10] Nem todos compreendem esta palavra (Mt. 19, 11).

[11] Rogo-vos que ma deis por esposa (Jz. 14, 2).

            [12] Ovid. Metamorph. 2.

            [13] Os bilhetes da sorte lançam-se numa dobra do vestido; mas o Senhor é quem os tempera (Prov. 16, 33).

[14] Podeis vós beber o cálice que eu hei de beber? É verdade que vós haveis de beber o meu cálice (Mt. 20,22 s).

            [15] Val. Max.1. 7, c. 2.

[16] Mas pelo que toca a terdes assento à minha mão direita, ou à esquerda, não me pertence a mim o dar-vo-lo (Mt. 20,23).

            [17] Senhor, dar-se-á ocaso que restituas neste tempo o reino a Israel (At. 1, 6)?