Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão de Santo Inácio Fundador da Companhia de Jesus , do Padre António Vieira


Edição de referência:

Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DE SANTO INÁCIO

FUNDADOR DA COMPANHIA DE JESUS

Em Lisboa, no Real Colégio de S. Antão. Ano 1669.

Et vos similes hominibus expectantibus dominum suum[1]

I

O mandamento de Cristo aos santos e a Santo Inácio em particular. Santo Inácio e a Vida dos Santos.

Admirável é Deus em seus santos, mas no santo que hoje celebra a Igreja singularmen­te admirável. A todos os Santos manda Cristo neste Evangelho que sejam semelhantes a homens: Et vos similes hominibus (Lc. 12, 36). Mas assim como há grande diferença de homens a homens, assim vai muito de semelhanças a semelhanças. Aos outros santos manda Cristo que sejam semelhantes aos homens que servem aos senhores da terra: Hominibus expectantibus dominam suum; a Santo Inácio manda-lhe Cristo que seja semelhante aos homens que serviram ao Senhor do céu. Quanto vai do céu à terra, tanto vai de semelhança a semelhança Aos outros santos meteu-lhes Cristo na mão este Evangelho, e disse-lhes: Servi-me assim como os homens servem aos homens; a Santo Inácio, mete-lhe na mão um livro da vida de todos os santos, e diz-lhe: Serve-me assim como estes homens me serviram a mim. Foi o caso. Jazia Santo Inácio, (não digo bem), jazia Dom Inácio de Loiola, malferido de uma bala francesa, no sítio de Pamplona, e picado, como valente, de ter perdido um castelo, fabricava no pensamento outros castelos maiores, pelas medidas de seus espíritos. Já lhe parecia pouca defensa Navarra, pouca muralha os Pireneus, e pouca conquista França Con­siderava-se capitão, e espanhol, e rendido, e a dor lhe trazia à memória, como Roma em Cipião, e Cartago em Aníbal, foram despojos de Espanha. Os Cides, os Pelaios, os Viriatos, os Lusos, os Geriões, os Hércules, eram os homens com cujas semelhanças heróicas o anima­va e inquietava a fama; mais ferido da reputação da pátria que das suas próprias feridas. Cansado de lutar com pensamentos tão vastos, pediu um livro de cavalerias para passar o tempo. Mas, ó providência, divina! Um livro que só se achou, era das vidas dos santos. Bem pagou depois, Santo Inácio em livros o que deveu a este. Mas vede quanto importa a lição de bons livros. Se o livro fora de cavalerias, sairia Santo Inácio um grande cavaleiro: foi um livro de vidas de santos, saiu um grande santo. Se lera cavalerias, sairia Santo Inácio um cavaleiro da ardente espada; leu vidas de santos, saiu um santo da ardente tocha Et lucernae ardentes in manibus vestris. Toma Inácio o livro nas mãos, lê-o ao princípio com dissabor, pouco depois sem fastio, ultimamente com gosto, e dali por diante com fome, com ânsia, com cuidado, com desengano, com devoção, com lágrimas.

Estava atônito Inácio do que lia, e de ver que havia no mundo outra milícia para ele tão nova e tão ignorada, porque os que seguem as leis do apetite, como se rendem sem batalha, não têm conhecimento da guerra. Já lhe pareciam maiores aqueles combates, mais fortes aquelas resistências, mais ilustres aquelas façanhas, mais glo­riosas aquelas vitórias, e mais para apetecer aqueles triunfos. Resolve-se a trocar as armas, e alista-se debaixo das bandeiras de Cristo, e a espada de que tanto se preza­va, foi o primeiro despojo que ofereceu a Deus e à sua Mãe nos altares de Monser­rate. Aceitai, Senhora, esta espada que, como se hão de rebelar contra vós tantos inimigos, tempo virá em que seja bem necessária para defensa de vossos atributos. Lia Inácio as vidas dos confessores, e começando como eles, pelo desprezo da vai­dade, tira o colete, despe as galas, e assim como se ia despindo o corpo, se ia arman­do o espírito. Lia as vidas dos anacoretas, e já suspirava pelos desertos, e por se ver metido em uma cova de Manresa, onde sepultado acabasse de morrer ao mundo, e começasse a viver ou a ressuscitar a si mesmo. Lia as vidas dos doutores e pontífi­ces, e, ainda que o não afeiçoaram as mitras nem as tiaras, delibera-se a aprender para ensinar e a começar os rudimentos da gramática entre os meninos, conhecendo que em trinta e três anos de corte e guerra, ainda não começara a ser homem. Lia as vidas ou as mortes valorosas dos mártires, e com sede de derramar o sangue próprio, quem tinha derramado tanto alheio, sacrifica-se a ir buscar o martírio a Jerusalém, oferecendo as mãos desarmadas às algemas, os pés aos grilhões, o corpo às masmor­ras, e o pescoço aos alfanjes turquescos. Lia finalmente as vidas e as peregrinações dos apóstolos, e soando-lhe melhor que tudo aos ouvidos as trombetas do Evange­lho, toma por empresa a conquista de todo o mundo, para dilatar a fé, para o sujeitar à Igreja, e para levantar novo edifício sobre os alicerces e ruínas do que eles tinham fundado. Isto era o que Inácio ia lendo, e isto o que juntamente ia trasladando em si e imprimindo dentro na alma. Mas quem lhe dissera então ao novo soldado de Cristo que notasse naquele livro o dia de trinta e um de julho, que advertisse bem que aquele lugar estava vago, e que soubesse que a vida de santo que ali faltava havia de ser a sua, e que este dia feriado e sem nome havia de ser o dia de Santo Inácio de Loiola, fundador e patriarca da Companhia de Jesus! Tais são os segredos da provi­dência, tão grandes os poderes da graça, e tanta a capacidade da nossa natureza.

Para satisfazer às obrigações de tamanho dia, nem quero mais matéria que o caso que propus, nem mais livros que o mesmo livro, nem mais texto que as mesmas palavras: Et vos similes hominibus. Veremos, em dois discursos, Inácio semelhante a homens, e Inácio homem sem semelhante. Mais breve ainda: o semelhante sem semelhante. Este será o assunto. Peçamos a graça. Ave Maria.

II

Cristo foi gerado nos resplendores de todos os santos como exemplar de todos eles; Santo Inácio o foi, porque todos os santos lhe serviram de exemplar. A pintura de Zêuxis e a santidade de Santo Inácio. Cristo e a diversidade de opiniões a seu respeito. Santo Inácio, embora um, era feito à semelhança de muitos.

Temos Santo Inácio com o seu livro nas mãos, com os exemplares de todos os santos diante dos olhos, e Deus dizendo-lhe ao ouvido: Et vos símiles hominibus. Tan­tos instrumentos juntos? Grande obra intenta Deus. Quando Deus quer converter ho­mens e fazer santos, lavra um diamante com outro diamante, e faz um santo com outro. Santo foi Davi: converteu-o Deus com outro santo, o profeta Natã. Santo foi Cornélio Centurião: converteu-o Deus com outro santo, S. Pedro. Santo foi Dionísio Areopagi­ta: converteu-o Deus com outro santo, S. Paulo. Santo foi Santo Agostinho: converteu-o Deus com outro santo, S. Ambrósio. Santo foi S. Francisco Xavier: converteu-o Deus com outro santo, o mesmo Santo Inácio. Pois, se para fazer um santo basta outro santo, por que ajuntou Deus os santos de todas as idades do mundo, por que ajunta os santos de todos os estados da Igreja, por que ajunta as vidas, as ações, as virtudes, os exemplos de todos os santos para fazer Santo Inácio? Porque tanto era necessário para fazer um grande santo. Para fazer outros santos, basta um só santo; para fazer um Santo Inácio, são necessários todos. Para ser Santo Enós, basta que seja semelhante a Set; para ser S. José, basta que seja semelhante a Jacó: para ser São Josué, basta que seja semelhante a Moisés; para ser Santo Tobias, basta que seja semelhante a Jó; para ser Santo Eliseu, basta que seja semelhante a Elias; para ser Santo Timóteo, basta que seja semelhante a Paulo; mas para Inácio ser santo tão grande e tão singular como Deus o queria fazer, não basta ser semelhante a um santo, não basta ser semelhante a muitos santos, é necessário ser semelhante a todos. Por isso lhe mete Cristo nas mãos, em um livro, as vidas e ações heróicas de todos os santos, para que os imite e se forme à semelhança de todos: Et vos similes hominibus.

Falando Deus de seu unigênito Filho por boca de Davi, diz que o gerou nos resplendores de todos os santos: In splendoribus sanctorum genui te (SI. 109, 3). Estas palavras, ou se podem entender da geração eterna do Verbo antes da Encarna­ção, ou da geração temporal do mesmo Verbo, enquanto encarnado. E neste segundo sentido as entendem Santo Agostinho, Tertuliano, Hesíquio, S. Justino, S. Próspero, S. Isidoro, e muitos outros. Diz pois o Eterno Padre, que quando mandou seu Filho ao mundo, o gerou nos resplendores de todos os santos, porque Cristo, como ensina a Teologia, não só foi a causa meritória de toda a graça e santidade, mas também a causa exemplar, e protótipo de todos os santos, enquanto todos foram santos à seme­lhança de Cristo, imitando nele e dele todas as virtudes e graças com que resplande­ceram; e isto quer dizer: In splendoribus sanctorum. Assim como todos os astros recebem a luz do sol, e cada um deles é juntamente um espelho e retrato resplande­cente do mesmo rei dos planetas, assim todos os santos recebem de Cristo a graça, e do mesmo Cristo retratam em si todos os dotes e resplendores da santidade com que se ilustram. Por isso o anjo, quando anunciou a Encarnação, não disse: Qui nascetur ex te sanctus, senão: Quod nascetur ex te sanctum,[2] porque Cristo não só foi santo, mas o Santo dos santos. O Santo dos santos, como fonte de toda a santidade por origem, e o Santo dos santos, como exemplar de toda a santidade para a imitação.

Este é o modo universal com que Cristo faz a todos os santos. Mas a Santo Inácio, a quem quis fazer tão singular santo, fê-lo também por modo singular, podendo dizer dele em tão excelente sentido, como verdadeiro: In splendoribus sanctorum genui te. Cristo foi gerado nos resplendores de todos os santos, porque é o exemplar de todos os santos, e Inácio foi gerado nos resplendores de todos os santos, porque todos os santos foram o exemplar de Santo Inácio. Cristo não só santo, mas Santo dos santos, porque de sua imitação receberam todos os santos a santidade; e Inácio não só santo, mas santo dos santos, porque todos os santos concorreram a formar a santidade de Santo Inácio. Bem sei que é melhor exemplar Cristo só que todos os santos juntos, mas também sei que para ser santo, basta imitar um só santo que imitou a Cristo. Assim dizia S. Paulo a todos os que vieram depois dos apóstolos: Imitatores mei estote, sicut et ego Christi.[3] Mas Cristo, para formar a Santo Inácio, ajuntou as imitações de todos os santos, para que o imitasse ele só como todos.

Houve-se Deus na formação de Santo Inácio como Zêuxis na pintura de Juno, deusa das deusas. Fez vir diante de si aquele famoso pintor todas as formosuras que então havia mais celebradas em Agrigentina, e imitando de cada uma a parte mais excelente de que as dotara a natureza, venceu a mesma natureza com a arte, porque ajuntando o melhor de cada uma, saiu com uma imagem mais perfeita que todas.[4] Se assim sucedeu, foi caso e fortuna, mas não ciência, porque como a formosura consiste na proporção, ainda que cada uma das partes em si fosse de extremada beleza, todas juntas podiam compor um todo que não fosse formoso. Na formosura das virtudes é o contrário. Como todas as virtudes entre si são concordes e não podem deixar de fazer harmonia, de qualquer parte que sejam imitadas, sempre há de resultar delas um composto excelente e admirável, qual foi o que Deus quis formar em Santo Inácio. E aqui entra com toda a sua propriedade a versão do mesmo texto: In pulchritudinibus sanctorum genui te: Pôs Deus diante dos olhos a Inácio, estampados naquele livro, os mais famosos e os mais formosos originais da santida­de, não de um reino ou de uma idade, senão de todas as idades e de toda a Igreja, e copiando Inácio em si mesmo, de um a humildade, de outro a penitência, de um a temperança, de outro a fortaleza; de um a paciência, de outro a caridade, e de todos e cada um aquela virtude e graça em que foram mais eminentes, saiu Inácio com quê? Com um Santo Inácio, com uma imagem da mais heróica virtude, com uma imagem da mais consumada perfeição, com uma imagem da mais prodigiosa santi­dade, enfim, com um santo, não semelhante e parecido a um só santo, senão seme­lhante e parecido a todos: Et vos similes hominibus.

Perguntou Cristo uma hora a seus discípulos: Quem dicunt hommes esse Filiam homi­nis (Mt. 26, 13): Quem dizem os homens que sou eu? – E responderam os discípulos: Alii Joannem Baptistam, alii vero Eliam, alii vero Jeremiam, aut unum ex prophetis: Senhor, uns dizem que sois o Batista, outros que sois Elias, outros que sois Jeremias, ou algum dos outros profetas e santos antigos. – Notáveis pareceres dos homens, e mais notável o parecer de Cristo! Se Cristo se parecia com o Batista, como se parecia com Elias? Se se parecia com Elias, como se parecia com Jeremias? Se se parecia com Jeremias, como se parecia com o Batista? Nos outros santos e profetas antigos: Aut unun ex prophetis, ainda é maior a admi­ração, porque era maior o número e a diferença. Pois se Cristo era um só homem, como se parecia com tantos homens? Porque não só no natural, senão também no moral, como logo veremos, era feito à semelhança de muitos: In similitudinem hominum factus, et habitu inven­tus ut homo.[5] Onde nota S. Bernardo, que disse o apóstolo: Hominum, non hominis. E se era feito à semelhança de muitos, que muito se parecesse com eles? Quem via a Cristo instituir o batismo, dizia: Este é o Batista: Alii Joannem Baptistam. Quem via a Cristo jejuar quarenta dias em um deserto, dizia: Este é Elias: Alii vero Eliam. Quem via a Cristo chorar sobre Jerusalém, dizia: Este é Jeremias: Alii vero Jeremiam. Do mesmo modo filosofavam os que diziam que era algum dos outros santos ou profetas antigos: Aut unun exprophetis. Quem via a sabedoria admirável de Cristo, não-estudada, senão infusa, dizia: Este é Salomão. Quem o via publicar lei nova em um monte, dizia Este é Moisés. Quem o via converter os homens com parábolas, dizia: Este é Natã. Quem o via admitir os obséquios de uma mulher pecadora, dizia: Este é Oséias. Quem o via passar as noites em oração, dizia: Este é Davi. Quem o via aplaudido do povo e perseguido dos grandes, dizia: Este é Daniel. Quem o via sofrer as afrontas com tanta humildade, dizia Este é Miquéias. Quem o via sarar os enfermos, e ressus­citar os mortos, dizia: Este é Eliseu. De maneira que a multidão e maravilha das obras, causava a diversidade das opiniões, e sendo Cristo na realidade um só homem, na opinião era muitos homens. Mas era muitos homens na opinião, sendo um só na realidade, porque verdadeiramente, ainda que era um, era feito à semelhança de muitos: In similitudinem hominum factus.

Ah! glorioso patriarca meu! Se a vida de Santo Inácio se escrevem sem nome, e se dele se excitara a questão: Quem dicunt hommes? não há dúvida que o mundo se houvera de dividirem opiniões, e que ninguém havia de atinar facilmente que santo era aquele. Eram tão contínuas as lágrimas que Santo Inácio chorava pelos pecados da vida passada, que de puro chorar chegou a perder a vista; e havia de dizer o mundo: Este é S. Pedro. Oito dias inteiros esteve Santo Inácio arrebatado em um êxtase em que Deus lhe revelou o instituto da religião que havia de fundar, e havia de dizer o mundo: Este é S. Paulo. Nenhum santo teve maiores inimigos, nem mais pertinazes. Mas como a vingança que Santo Inácio tomava de seus inimigos, e a que deixou por instituto a seus filhos, era rogar por eles a Deus, havia de dizer o mundo: Este é S. Estevão. Era tal o magistério espiritual de Santo Inácio e as regras de perfeição, que ensinou, tão fundadas e sólidas, que todos os santos, quantos depois canonizou a Igreja, ou foram discípulos do seu espírito, ou se conformaram com ele;[6] e havia de dizer o mundo: Este é S. Basilio. Era talo domínio que Santo Inácio tinha sobre o inferno, que em ouvindo o seu nome os demônios, uns se prostravam de joelhos, outros começavam a tremer, outros saíam amortecidos, e todos saíam dos corpos; e havia de dizer o mundo: Este é Santo Antônio, o Grande. Quando os pecadores tinham repugnância de confessar seus pecados, contava-lhes Inácio, os pecados da sua vida passada, confessando-se pri­meiro o confessor ao penitente, e à vista destas confissões havia de dizer o mundo: Este é Santo Agostinho. Não houve gênero de necessidade ou de miséria que a caridade de Santo Inácio não remediasse: os pobres, os enfermos, os órfãos, as viúvas, as mulheres perdidas, e as que estavam a risco de se perder; e havia de dizer o mundo: Este é S. Nicolau. Aquele grande varão doutíssimo e religiosíssimo, o Padre Frei Luís de Granada, dizia que uma das maiores maravilhas que Deus fez no mundo foi Santo Inácio, e o seu instituto. E como a esta religião, por tantos títulos grande, deu Santo Inácio o nome não de sua, mas de mínima, havia de dizer o mundo: Este é S. Francisco de Paula.

Mas antes que vá por diante, se a alguém parecerem muitos estes pareceres do mundo, e grande o encontro e variedade de opiniões, para se juntarem todas em um homem, lembre-se da multidão dos exemplares a que Deus o mandou ser semelhante quando, com aquele livro nas mãos, lhe disse:Et vos similes hominibus. Em cada página daquele livro se podia ler indecisamente uma nova opinião deste glorioso e numeroso problema. Não uma vez, senão muitas viu Santo Inácio, quanto se pode ver nesta vida, a essência, os atributos, as pessoas e processões (*) divinas. E quem não cuidaria e diria: Este é S. Bento? Foi tal a compreensão que das Escrituras Sagradas teve Santo Inácio, ainda antes de estudar, que se as Escrituras, como no tempo de Esdras, se perdessem, se achariam na sua memória. E quem não cuidaria e diria: Este é S. Bernardo? Obedeciam ao império de Santo Inácio, os incêndios, as tempestades, a terra, ornar, o fogo, os ventos. E quem não cuidaria e diria: Este é S. Gregório Taumaturgo? No mesmo tempo esteve Santo Inácio em Roma e em Colônia, só para satisfazer à devoção de um seu filho, que muito o desejava ver. E quem não cuidaria, e diria: Este é S. Antônio de Pádua? Ressuscitou Santo Inácio não menos que nove mortos. E quem não cuidaria e diria: Este é S. Patrício? Ele foi o Marte da Igreja e o martelo das heresias: e diriam com razão: Este é S. Atanásio. Ele foi o diamante da constância contra o poder dos vícios e contra a resistência dos poderosos; e diriam: Este é S. Crisóstomo. Ele foi o reformador do culto divino, e da freqüência dos santos sacramentos; e diriam: Este é S. Silvestre. Ele foi o que instituiu semi-nados da fé em Roma e em toda a cristandade; e diriam: Este é S. Gregório. Ele foi o que abraçou a conquista de todas as gentilidades em ambos os mundos; e diriam e perguntariam de novo ambos os mundos: Que santo é este, ou que santos em um santo? Enfim que se o mundo não soubera que este grande santo era Santo Inácio, não havia de haver santo insigne na Igreja, que não tivesse opinião por si de que era ele. Mas eram todos parecidos a Inácio, porque era Inácio semelhante a todos: Et vos similes hominibus.

III

O retrato de Santo Inácio. As diversas faces do santo. Os retratos de Cristo. Ezequiel e os quatro rostos dos animais enigmáticos. O carro da glória de Deus e a Companhia de Jesus. O homem abrasado em fogo. Interpretação da palavra chasmal.

Mal pudera eu provar de uma vez tão grande discurso, se o céu, cujo é o assunto, não tomara por sua conta a prova. Vede se o provou evidente, elegante, e engenhosamente. Enfermo Inácio, e já nos últimos dias da vida, veio a visitá-lo seu grande devoto, o eminentíssimo cardeal Pacheco, e trouxe consigo um pintor insigne, o qual, de parte donde visse o santo e não fosse visto dele, a furto de sua humildade, o retratasse. Põe-se encoberto o pintor, olha para Santo Inácio, forma idéia, aplica os pincéis ao quadro e começa a delinear-lhe as feições do rosto. Toma a olhar (coisa maravilhosa!) o que agora viu, já não era o mesmo homem, já não era o mesmo rosto, já não era a mesma figura, senão outra muito diferente da primeira. Admirado o pintor deixa o desenho que tinha começado, lança segundas linhas, começa segundo retrato e segundo rosto; olha terceira vez (nova maravilha!) o segundo original já tinha desaparecido, e Santo Inácio estava outra vez transtornado com novo aspecto, com novas feições, com nova cor, com nova proporção, com nova figura. Já o pintor se pudera desenganar e cansar, mas a mesma maravilha o instigava a insistir. Insta repetidamente, olha e toma a olhar, desenha e toma a desenhar, mas sendo o objeto o mesmo, nunca pode tomar a ver o mesmo que tinha visto, porque quantas vezes aplicava e divertia os olhos, tantos eram os rostos diversos e tantas as figuras novas em que o santo se lhe representava Pasmou o pintor, e desistiu do retrato; pasmaram todos vendo a variedade dos desenhos que tinha começado, e eu também quero pasmar um pouco à vista deste prodígio.

Santo Inácio, nunca teve dois rostos, quanto mais tantos. Foi cortesão, foi solda­do, foi religioso; e nunca mudou de cores nem de semblante. Serviu em palácio a el-rei D. Fernando, o Católico, e a sua maior gala era trajar sempre da mesma cor, e trazer o coração no rosto. Os amigos viam-lhe no rosto o amor, os inimigos a desafeição, o príncipe a verdade, e ninguém lisonja. Quando soldado, nunca entre as balas mudou as cores; na comédia e na batalha estava com o mesmo desenfado. Teve uma pendência com certo poderoso, e diz a história que contra uma rua de espadas, sem fazer um pé atrás, se sustentou só com a sua; o braço mudava os talhos e os reveses, mas o rosto não mudou as cores. Depois de religioso ficou fora da jurisdição da fortuna, mas nem por isso fora das variedades do mundo. Era porém tão igual a constância e serenidade de seu ânimo, que ninguém lhe divisou jamais perturbação, nem mudança no semblante; o mesmo nos sucessos prósperos, o mesmo nos adversos: nos prósperos sem sinal de alegria, nos adversos sem sombra de tristeza. Pois se Inácio teve sempre o mesmo rosto, cortesão, soldado, religioso, se teve sempre e conservou o mesmo semblante, como agora se transfigura em tantas formas? Como se transforma em tantas figuras, quando querem copiar o seu retrato? Por isso mesmo. Era Inácio um, mas semelhante a muitos, e quem era semelhante a muitos, só se podia retratar em muitas figuras.

Antes de Cristo vir e aparecer no mundo, mandou diante o seu retrato, para que o conhecessem e amassem os homens. E qual foi o retrato de Cristo? Admirável caso ao nosso intento! O retrato de Cristo, como ensinam todos os Padres, foi um retrato composto de muitas figuras. Uma figura de Cristo foi Abel, outra figura de Cristo foi Noé. Uma figura foi Abraão, outra figura foi Isaac; uma figura José, outra figura Moisés; outra Sansão, outra Jó, outra Samuel, outra Davi, outra Salomão, e outros. Pois se o retratado era um só, e o retrato também um, como se retratou em tantas e tão diversas figuras? Porque as perfeições de Cristo, ainda em grau muito inferior, não se achavam nem se podiam achar juntas em um só homem; e como estavam divididas por muitos homens, por isso se retratou em muitas figuras. Era Cristo a mesma inocência: por isso se retratou em Abel. Era Cristo a mesma pureza: por isso se retratou em José. Era a mesma mansidão: por isso se retratou em Moisés. Era a mesma forta­leza: por isso se retratou em Sansão. Era a mesma caridade, a mesma obediência, a mesma paciência, a mesma constância, a mesma justiça, a mesma piedade, a mesma sabedoria: por isso se retratou em Abraão, em Isaac, em Noé, em Jó, em Samuel, em Davi, em Salomão. De sorte que sendo o retrato um só, estava dividido em muitas figuras, porque só em muitas figuras podiam caber as perfeições do retrato. Tato retra­to de Santo Inácio, como feito à semelhança de muitos: Et vos similes hominibus. Mas não me detenho na acomodação, porque estou vendo que aconteceu a Ezequiel com o retrato de Santo Inácio, o mesmo que ao pintor de Roma.

Viu Ezequiel um carro misterioso que se movia sobre quatro rodas vivas, e tinha por nome o carro da glória de Deus. Tiravam por este carro quatro animais enigmáticos, cada um com quatro rostos: de homem, de águia, de leão, de boi, com que olhavam para as quatro partes do mundo. Em cima, sobre trono de safiras, aparecia um homem todo abrasado em fogo ou vestido de labaredas: A lumbis desuper, et a lumhis deorsum, quasi species ignis splendentis. [7] Que representasse este carro a religião da Companhia de Jesus, muitos autores o disseram. Chamava-se carro da glória de Deus, porque esta foi a empresa de Santo Inácio: Ad majorem Dei gloriai. Assentava sobre quatro rodas, porque essa é a diferença da Com­panhia As outras religiões geralmente estribam em três rodas, isto é, em três votos essenciais; mas a Companhia, em quatro. Em voto de pobreza, em voto de castidade, em voto de obediência, como as demais, e em quarto voto de obediência particular ao Sumo Pontífice. Olhavam os animais juntamente para as quatro partes do mundo, porque este é o fim e instituto da Companhia: ir viver ou morrer em qualquer parte do mundo, onde se espera maior serviço de Deus e proveito das almas. Tinham rosto de homem, de águia, de leão, de boi; de homem, pelo trato familiar com os próximos: de águia, pela ciência com que ensinam e escrevem; de leão, pela fortaleza com que resistem aos inimigos da fé; de boi, pelo trabalho com que cultivam a seara de Cristo, passando tantas vezes do arado ao sacrifício. No povoa­do, homens; no campo, bois; no bosque, leões; nas nuvens, águias. E para que a explicação não fique à cortesia dos ouvintes, onde a Escritura, falando desses animais, diz: Animalia tua (SI. 67, 11), leu Arias Montano: Viri societatis tuae: os varões da vossa Companhia, Senhor. O homem abrasado em fogo que se via no alto do carro, não tem necessidade de declaração: isso quer dizer Inácio, o fogoso, o abrasado, o ardente. Isto suposto:

Viu Ezequiel este homem de fogo, que ia triunfante no carro, e querendo descrever a semelhança que tinha: Et de medio ignis quasi species, escreveu estas sete letras: C. H. A. S. M. A. L. Assim estão no original hebreu, em cujo texto falo. E posto que estas letras juntas fazem Chasmal, palavra de duvidosa significação, e que só esta vez se acha nas Escrituras, os cabalistas, como refere Cornélio, querem que sejam letras simbólicas, de que se acham mui­tos exemplos e mistérios no texto sagrado. Nas letras que viu Baltasar e interpretou Daniel, três palavras significavam três sentenças, e não estava escrito mais que o princípio de cada uma Nas quatro letras do nome Adão, como notou S. Justino, e depois dele, em diversos lugares, Santo Agostinho, significou Moisés as quatro partes do mundo, porque as quatro letras do nome Adão, conforme o texto grego, são as quatro primeiras com que se escreve oriente, poente, setentrião, e meio-dia. Do mesmo modo lemos no terceiro Livro dos Reis que Semei amaldiçoou a Davi maledictione pessima (3 Rs. 2, 8), e no hebreu, como declara S. Jerônimo, contém esta palavra cinco letras, cada uma das quais significa dicção inteira, e cada uma, uma maldição particular, que começa pela mesma letra. Finalmente, se havemos de dar fé a Corásio, este foi o mistério com que as sibilas escreveram aquelas quatro letras S. P. Q. R., as quais os romanos aplicaram às suas bandeiras, entendendo por elas: Senatus, Populus Que Romanos, sendo que a verdadeira significação era: Salva Populum Quem Redemisti.[8] Ao nosso ponto agora e às nossas letras. Seja o sentido alegórico ou acomodatício, como mais quiserem os doutos. Viu Ezequiel o homem de fogo que ia no alto do carro, quis escrever a semelhança que tinha: De medio ignis quasi species (Ez. 1, 4), e o que fez foi deixar somente apontado naquelas letras misteriosas, não a semelhança que tinha, senão os princípios das semelhanças com que se lhe representara, como se sucedera a Ezequiel com Inácio, o mesmo que ao pintor de Roma.

Pôs os olhos Ezequiel no homem de fogo, pôs os olhos em Inácio, e viu-o primeiro que tudo cercado de perseguições; perseguido dos naturais, e perseguido dos estranhos; per­seguido dos hereges, e perseguido dos católicos; perseguido dos viciosos, e perseguido dos espirituais; perseguido em si, e perseguido em seus filhos; perseguido na vida, e perseguido depois da morte; perseguido na terra, e até no céu perseguido. E como os olhos proféticos penetram todos os tempos, pareceu-lhe que aquele santo tão perseguido era S. Clemente, e escreveu um C. Toma a olhar, para se firmar mais no que via, e já a representação era outra. Viu a Inácio em uma cova com uma cruz e uma caveira diante, lançado em terra, cingido de cilícios, chorando infinitas lágrimas, jejuando, vigiando, orando, disciplinando-se com ca­deias de ferro, lutando fortemente contra as tentações, e ferindo os peitos nus com uma pedra dura: persuadiu-se Ezequiel que era S. Hierônimo, e já tinha escrito um H, quando Inácio, de repente transfigurado se lhe mostrou em nova aparência Era o santo naquele tempo tão leigo que não sabia mais que as letras do A. B. C., mas alumiado com um raio do céu, estava escrevendo um livro do mistério altíssimo da Santíssima Trindade, com a definição da  essência, como número e unidade dos atributos, com a igualdade das pessoas, com a distinção das relações, com a propriedade das noções, com a ordem das emanações e processões divinas, e tudo com umas inteligências tão claras e tão profundas, que se resolveu o profeta que devia ser Santo Atanásio, que estava compondo o símbolo. Pôs um A, mas apenas tinha formado a letra, quando já Inácio estava outra vez transformado. Representava-se vestido em ornamen­tos sacerdotais, e com um Menino Jesus vivo nas mãos, caso que lhe sucedeu muitas vezes. Naquele passo da Missa, em que com maiores afetos de devoção havia de consumir a Sagra­da Hóstia, corria o Senhor acortinados acidentes, e para se mostrar mais amoroso a seu servo, era em forma de menino. Como Ezequiel o viu revestido de sacerdote, com o Menino Jesus nas mãos, entendeu que era o santo Simeão, e escreveu um S. Porém, logo o desenganou o prodigioso original, porque já se tinha mudado em outra figura Mostrava-se em hábito de soldado bizarro, Inácio trajado de galas e plumas; tinha junto a si um pobre mendigo; tirava o chapéu, tirava a capa, e, despojando-se das próprias roupas, cobria com elas o pobre soldado, e despindo-se a si para cobrir o pobre: Este é S. Martinho, diz o profeta Formou um M, se bem já com receio de alguma nova transformação, e de que se lhe variasse outra vez o objeto; e assim foi. Estava Inácio arrebatado no ar, com os braços caídos, como rosto inflamado, com os olhos pregados no céu, acusando com suspiros a brevidade da noite, e dando queixas ao sol, de que havendo tão poucos momentos que lhe amanhecem no ocaso, já lhe anoitecia no oriente. Persuadido o profeta que o grande Inácio era o grande Antônio, escreveu o segundo A. Mas o divino Proteu não se descuidava. Viu subitamente um incêndio que chegava da terra ao céu, e no meio dele, a Inácio abrasado em vivas chamas de fogo e zelo de amor de Deus, de fogo e zelo de amor do próximo. E ainda que Ezequiel, parecendo-lhe que seria S. Lourenço, formou um L, foram tantas as transfigurações, e tão diversas as figuras em que Inácio variou o rosto, o gesto, as ações, que acabaram de se desenganar os olhos do profeta, como se tinham desenganado os do pintor. Ali ficaram ambos os retratos suspensos e imper­feitos, e acabou de conhecer o céu e a terra que o retrato de Inácio senão podia reduzir a uma só figura, e que não podia ser copiado em uma só imagem, como os outros santos, quem era feito à semelhança de todos: Et vos similes hominibus.

IV

Inácio, tomado por partes, tinha semelhantes; tomado no todo, não tinha semelhantes. O homem, compêndio universal de todas as criaturas, considerado por partes, é semelhante a todas, mas considerado o homem todo não tem seme­lhantes, como diz o Gênesis. Abraão, os patriarcas e Santo Inácio. O possesso livre do demônio com a invocação de Santo Inácio. A espada de Golias e o santo.

Temos visto a Inácio semelhante a homem; resta ver a Inácio homem sem semelhante. Mas do mesmo que temos dito nasce a dificuldade e a dúvida do que temos para dizer. Se Inácio foi semelhante a tantos homens, como pode ser que Inácio fosse homem sem seme­lhante? Se era tão semelhante a tantos, como não tinha nem teve semelhante? Santo Tomás, dando a razão por que a Igreja aplica a muitos santos aquelas mesmas palavras que o Eclesiástico disse de Abraão: Non est inventus similis illi qui conservavit legem Excelsi, [9]diz que se verificam daquela graça ou prerrogativa particular em que Deus costuma singularizar a cada um dos santos, e fazê-lo respectivamente mais excelente que os outros. Mas esta razão não tem lugar em Santo Inácio, porque já vimos que lhe deu Deus por exemplar a todos os santos, e que ele foi semelhante não a um, senão a todos, imitando a cada um naquela graça e perfeição em que foi mais excelente. Hugo cardeal, diz que se hão de entender as palavras: Non est inventus similis illi, daquela idade em que cada um dos santos floresceu; e assim vemos que tendo-se dado este elogio a Abraão, se deu também a Jó: Quod non sit similis ilii in terra [10] porque cada um na sua idade foi singular e não teve semelhante. Mas também esta razão não convém a Santo Inácio, porque os santos que Deus lhe propôs naquela crônica universal, em cujo espelho ele compôs e retratou a sua vida, não foram os santos particulares de uma só idade, senão os de todas as idades e de todos os séculos. Pois se Santo Inácio foi semelhante a tantos, como pode ser que não tivesse semelhante? Digo que muito facilmente, se distinguirmos as partes e o todo. Tomado Santo Inácio por partes, era semelhante: todo Santo Inácio, não tinha semelhante. Vede se o provo.

Criado o céu e os elementos, no céu criou Deus os anjos, no ar as aves, no mar os peixes, na terra as plantas, os animais, e ultimamente o homem. Estando porém desta maneira o universo cheio, povoado e ornado de tanta imensidade e variedade de criaturas, diz o texto sagrado que em todas elas não se achava uma que fosse semelhante ao homem: Adae vero non inveniebatur adiutor similis ejus.[11] A mim parecia-me que antes se havia de dizer o contrário, porque demonstrativamente se convence que não se acha criatura alguma em todo o mundo que não tenha semelhança com o homem. Todas as criaturas deste mundo, não falando no homem, ou são viventes ou não-viventes. Se não são viventes, são os céus, os elementos, as pedras. Se são viventes, ou vivem vida vegetativa, e são as plantas, ou vivem vida sensitiva, e são os animais, ou vivem vida racional, e são os anjos, e tudo isso se acha no homem, porque o homem, dos elementos temo corpóreo, das plantas tem o vegetativo, dos animais tem o sensitivo, dos anjos tem o racional. Esta foi a razão e o sentido, como notou Santo Agostinho, com que Cristo chamou ao homem toda criatura quando disse aos apósto­los: Praedicate omni criaturae, [12] porque o homem é um compêndio universal de todas as criaturas, e todas as criaturas, cada uma segundo sua própria natureza, estão recompiladas e retratadas no homem. Pois se todas as criaturas, quantas Deus criou neste mundo, têm tanta semelhança com o homem, e o homem, por sua própria natureza, é semelhante, não a uma ou algumas, senão a todas as criaturas, como diz o texto sagrado que entre todas as criaturas não se achava semelhante ao homem: Non inveniebatur similis ejus ? Porque ainda que o homem, considerado por partes, era semelhante a todas as criaturas, considerado todo o homem, ou o homem todo, nenhuma outra criatura era semelhante a ele. As partes eram semelhantes, o todo não tinha semelhante. De maneira que a mesma semelhança que as criaturas tinham com Adão, dividida, e por partes, era semelhança; unida, e por junto, era diferença. Assim também Santo Inácio em respeito dos outros santos, a quem eu sempre respeito. Santo Inácio, parte por parte, era semelhante; todo Santo Inácio, não tinha semelhante. Adão, semelhante sem semelhante entre todas as criaturas; Inácio semelhante sem semelhante entre todos os santos.

No mesmo texto do Eclesiástico que se nos opunha temos uma confirmação admirá­vel desta dessemelhança composta e fundada em muitas semelhanças. Diz o texto que Abraão não teve semelhante: Non est inventus similis illi (Eclo. 44, 20), e em prova deste elogio e desta proposição tão singular vai logo o mesmo texto contando as excelências e prerrogativas de Abraão. Mas é muito digno de notar que em todas as coisas que assim se dizem deste grande patriarca, houve outros patriarcas que foram semelhantes a ele. Diz o texto que rece­beu Abraão e observou o pacto da circuncisão: In carne ejus stare fecit testamentum, [13] e isso mesmo fez Moisés. Diz que foi fiel em sacrificar a seu filho: Fidelis in tentation inventus est, [14] e isso mesmo fez Jefté. Diz que o fez crescer no mundo: Crescere illum dedit quasi terrae cumulum,[15] e isso mesmo teve José. Diz que lhe deu Deus por herança de mar a mar, e do rio até os fins da terra: Haereditare a mari usque ad mare, et a flumine usque ad terminos terrae, [16]e isso mesmo se lê expressamente de Salomão. Diz que lhe deu Deus a bênção de todas as gentes: Benedictionem omnium gentium dedit illi, [17]e essa mesma benção, pelas mesmas palavras, deu o mesmo Deus a Isac. Pois se Moisés, Jefté, José, Salomão, Isac, foram semelhantes a Abraão nas mesmas graças, nas mesmas excelências, nas mesmas prerrogati­vas, como diz o oráculo divino: Non est inventus similis illi: que nenhum se achou semelhante a Abraão? Porque vai muito de se acharem as prerrogativas divididas em muitos, ou estarem juntas em um só: Et  quae divisa beatos efficiunt, collectatenes.[18] Abraão, dividido e por partes, teve muitos semelhantes; todo Abraão, e por junto, ninguém lhe foi semelhante. As semelhanças de Abraão, divididas, faziam a cada um semelhante a Abraão; as semelhanças de Abraão, unidas, faziam a Abraão dessemelhante a todos: Non est inventus similis illi. Ó Abraão, ó Inácio! Abraão semelhante a todos os patriarcas, mas entre todos os patriarcas sem semelhante; Inácio semelhante a todos os santos, mas entre todos os santos sem semelhante. E senão, vejamo-lo nos efeitos.

Para prova efetiva desta diferença tenho um testemunho muito legal e muito desapaixonado, por ser testemunho do maior inimigo. Em Germânia, tendo-se o demô­nio apoderado de um homem, estava tão forte e tão rebelde que a tudo resistia. Aplica­ram-se-lhe todos os remédios naturais e divinos; repetiram-se por muitas vezes os exor­cismos, mas o demônio sem se render a nada. Resolveu-se o exorcista a invocar todo o exército do céu contra aquele soberbo espírito, e começou assim, pela ordem das ladainhas: Sancte Michael, Sancte Gabriel, Omnes Sancti Angeli et Archangeli. O demônio zombando. Sancte Joannes Baptista, Omnes Sancti Patriarchae et Prophetae. O demônio sem fazer caso. Sancte Petre, Sancte Paule, Omnes Sancti Apostoli et Evangelistae. Nenhum efeito. Sancte Stephane, Sancte Laurenti, Omnes Sancti Martyres. Cada vez mais rebelde. Sancte Gregori, Sancte Ambrosi, Omnes Sancti Pontifices et Confessores, Omnes Sancti Doctores. Mais aterrado, mais pertinaz, mais furioso. Sancte Antoni. Nada. Sancte Benedicte. Como dantes. Sancte Bernarde. Nenhum aba­lo. Sancte Dominice. A ter mão fortemente. Sancte Francisce. A mesma pertinácia. Sancte Ignati. Em soando o nome de Santo Inácio, desampara o demônio, deixa o homem, desaparece, e nunca mais tomou. Toma cá demônio, espera. Ainda que malig­no e soberbo, tu não és racional? Não és entendido? Sim. Pois se resistes aos anjos que te lançaram do céu, se resistes aos apóstolos, a quem Cristo deu domínio sobre ti, se resistes aos patriarcas e profetas, aos confessores, aos pontífices, aos doutores, aos mártires, como te rendes só ao nome de Inácio? Se cuidas que hei de cuidar por isso que Santo Inácio é maior que os outros santos, enganas-te: nem eu cuido tal coisa, nem seria filho de Santo Inácio se o cuidara. Ser sem semelhante, que é o que eu digo, não significa maioria, significa somente diferença. E esta é a diferença que o demônio muito a seu pesar confessou com o efeito, não obedecendo à invocação dos outros santos, e rendendo-se só ao nome de Inácio, para que conhecesse o mundo por este testemunho público do inferno, ou verdadeiramente da providência e onipotência divi­na, que ainda no concurso de todos os santos é Inácio sem semelhante.

Aquela espada com que Davi matou ao gigante Golias, disse o mesmo Davi que não havia outra semelhante a ela: Non est alter huic similis (1 Rs. 21, 9). E que fez aquela espada para que se diga dela que não tinha semelhante? Fez, no desafio de Davi, o que neste caso fez Santo Inácio, que também em algum tempo foi espada do mesmo a quem depois cortou a cabeça. Plantou-se armado no campo o soberbíssimo gigante, desafiou a todo o exército de Saul, a todas as doze tribos de Israel, e em todas não houve uma espada que se atrevesse contra tão poderoso, deliberado e belicoso inimigo. Entre os demônios também há gigantes, e tão valentes e belicosos, que contra o poder dos maiores santos se mostram invencíveis. Assim o experimen­taram os apóstolos naquele terrível demônio de quem disseram a Cristo que o não puderam arrancar do posto: Non potuimus ejicere eum (Mc. 9, 27). O Golias destes gigantes do inferno era este soberbíssimo espírito a quem rendeu Santo Inácio. Pro­vocou o exorcista contra ele a todo o exército dos bem-aventurados e todas as doze tribos do céu. Contai se foram doze. Provocou os anjos e os arcanjos, os patriarcas e os profetas, os apóstolos e os evangelistas, os confessores e os pontífices, os dou­tores e os mártires, os sacerdotes e os levitas. E houve algum neste caso que o rendesse, que o sujeitasse, que o vencesse? Nenhum. Só Inácio, sendo tão rebelde, o rendeu. Só Inácio, sendo tão obstinado, o sujeitou. Só Inácio, sendo tão invencível, o venceu. Confesse logo o demônio, confesse o inferno, e também o céu, que Inácio, entre todos os santos é espada de Davi, e que a ele, como a ela, se deve o elogio e glória de não ter semelhante: Non est alter huic similis.

V

O verdadeiro retrato do santo: o livro de seu Instituto. A Companhia de Jesus e a Encarnação do Verbo. Santo Inácio e os patriarcas fundadores de ordens: Elias, Paulo, Jerônimo, Agostinho, Bento, Bruno, Bernardo, João e Félix, Domingos, Francisco, Caitano, João de Deus, e Santa Teresa.

E para que esta diferença e dessemelhança se conheça com toda a evidência, e se veja com os olhos, olhemos para o verdadeiro retrato de Santo Inácio. Ninguém pôde retratar a Santo Inácio, como vimos, mas só Santo Inácio se retratou a si mesmo. E qual é o verdadeiro retrato? Qual é a vera efígie de Santo Inácio? A vera efígie de Santo Inácio é aquele livro de seu Instituto que tem nas mãos. O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve. O corpo retrata-se com o pincel, a alma com a pena. Quando Ovídio estava desterrado no Ponto, um seu amigo trazia-o retratado na pedra do anel; mas ele mandou-lhe os seus versos dizendo que aquele era o seu verdadeiro retrato: Grata tua est pietas, sed carmina  major imago, sont mea, quae mando. [19] Sêneca, quando lia as cartas de Lucílio, diz que o via: Video te mi Lucili, cum maxime audio.[20] E melhor autor que estes, Santo Agostinho disse altamente, que enquanto não vemos Deus em sua própria face, o podemos ver como imagem nas Escrituras: Pro facie Dei pone interim Scripturam Dei.[21] A primeira imagem de Deus é o Verbo gerado; a segun­da, o verbo escrito. O verbo gerado é retrato de Deus ad intra; o verbo escrito é retrato de Deus ad extra. E assim como Deus se retratou no livro das suas Escrituras, a si Inácio se retratou no livro das suas. Retratou-se Inácio por um livro em outro livro. O livro das vidas dos santos foi o original de que Santo Inácio é cópia; o livro do Instituto da Companhia é a cópia de que Santo Inácio é o original. Mas com isso ser assim é certo que o Instituto de Santo Inácio é muito diferente e muito dessemelhante dos outros institutos. Pois se o patriarca foi feito à semelhança dos outros patriarcas, e o instituto à semelhança dos outros institutos, como saiu o patriarca tão diferente e o instituto tão dessemelhante? Porque Santo Inácio, no que imitou dos outros patriarcas, e no que imitou dos outros institutos, ainda que tomou os gêneros, não tomou as diferenças: os gêneros eram alheios, as diferenças foram suas.

Fez-se Deus homem pelo mistério altíssimo da Encarnação, e notou profundamente Santo Tomás, como já o tinha notado S. João Damasceno, que fazendo-se Deus homem, não só tomou e uniu a si a natureza humana, senão também todas as outras naturezas que tinha criada [22] Pela criação saíram de Deus todas as naturezas; pela Encarnação tomaram todas as naturezas a unir-se a Deus. Mas como se fez esta universal união? Como uniu Deus a si todas as naturezas? Santo Tomás: Communicavit se Christo homini, et per consequens omnibus generibus singulorum: Tomou Deus no homem, diz Santo Tomás, não só a natureza humana, senão também todas as naturezas, mas não tomou as diferenças delas, senão os gêneros. Tomou o gênero dos elementos no corpóreo, e ainda que pudera ser um elemento, como o fogo da sarça, não tomou a diferença de elemento. Tomou o gênero das plantas no vegetativo, e ainda que pudera ser uma planta, como a Árvore da Vida, não tomou a diferença de planta Tomou o gênero dos animais no sensitivo, e ainda que pudera ser um animal, como a pomba do Jordão, não tomou diferença de animal. Tomou o gênero dos anjos no racional, e ainda que pudera ser um anjo, como Gabriel, não tomou a diferença de anjo. De modo que tomou Deus no homem todas as outras naturezas quanto aos gêneros, mas não quanto às diferenças, porque os gêneros eram das criaturas, as diferenças eram de Cristo. Assim o fez o grande imitador de Cristo, Inácio. Uniu em si todos os patriarcas, uniu no seu instituto todos os institutos, mas o que tomou foram os gêneros, o que acrescentou foram as diferenças: o que tomou foram os gêneros, e por isto é semelhante; o que acrescentou foram as diferenças, e por isso não tem semelhante.

Para glória universal de todos os patriarcas, e para glória singular do nosso patriarca, pois o dia é seu, vejamos em uma palavra os gêneros e estas diferenças. Falarei só dos patriarcas que têm religião em Portugal, e seguirei a ordem de antiguidade.

Do grande patriarca e pai de todos os patriarcas, Elias, tomou Santo Inácio o zelo da honra de Deus. Ambos tinham espada de fogo; mas o fogo de Elias queimava, o fogo de Inácio acendia; o fogo de Elias abrasava, o fogo de Inácio derretia Ambos, como dois raios artificiais, subiam direitos ao céu; mas o de Elias acabava em estrondo, o de Inácio em lágrimas. De S. Paulo, primeiro pai dos eremitas, tomou Santo Inácio a contemplação; mas Paulo no deserto para si, Inácio no povoado para todos. Ambos elegeram o meio mais alto e mais divino, mas com diferentes fins: Paulo para evitar a perseguição de Décio; Inácio para resistir aos Décios e às perseguições. Paulo recolheu-se ao sagrado da contemplação, para escapar à tirania; Inácio armou-se do peito forte da contemplação, para debelar os tiranos. Do patriarca e doutor máximo, S. Jerônimo, tomou Santo Inácio a assistência inseparável da Sede Apostólica no serviço universal da Igreja S. Jerônimo era a mão direita da Igreja, com que os pontífices escreviam; Santo Inácio é o braço direito da Igreja, com que os pontífices se defendem. Assim o disse o Papa Clemente VICI à Companhia: Vos estis brachium dextrum Ecclesiae Dei: Vós sois o braço direito da Igreja de Deus. – Do único sol da Igreja, Santo Agostinho, porque os raios do entendimento não eram imitáveis, tomou Inácio as labaredas do coração. O amor de Agostinho chegou a dizer que se ele fora Deus, deixara de o ser para que Deus o fosse; Inácio, com suposição menos impossível, dizia que entre a certeza e a dúvida de ver a Deus, escolheria a dúvida de o ver pela certeza de o servir. Do patriarca, pai de tantos patriarcas, S. Bento, estendendo o Monte Cassino por todo o mundo, tomou Santo Inácio as escolas e a criação dos moços. Para quê? Para que na prensa das letras se lhes imprimam os bons costumes, e estudando as humanas aprendam a ser homens. O senhor arcebispo último de Lisboa, tão grande português como prelado, e tão grande prelado como douto, dizia que todos os homens grandes que teve Portugal no século passado, saíram do pátio de Santo Antão. Agora o não freqüentam tanto seus netos; depois veremos se são tão grandes como seus avós. Do patriarca S. Bruno, aquele horror sagrado pela natureza, que tomaria Santo Inácio? Tomou o perpétuo cilício. Não o cuida assim o mundo, mas sabem-no as enfermarias e as sepulturas. O cilício que anda entre o corpo e o linho, não é o que mais pica: o que cega o entendimento e nega a vontade, este é o que afoga a alma e tira a vida. Os outros cilícios mortificam, este mata. Do patriarca S. Bernardo, anjo em carne, e por isso irmão de leite de Cristo, tomou Santo Inácio a angélica pureza Em ambos foi favor especial da Mãe de Deus, mas em Santo Inácio tão singular, que desde o dia de sua conversão, nunca mais, nem no corpo, nem na alma, sentiu pensamento contrário. E sendo os maiores inimigos da castidade os olhos, naqueles em quem punha os olhos Santo Inácio infundia castidade. Dos gloriosos patriarcas S. João e S. Félix, a cuja religião deu o seu nome a mesma Trindade, tomou Santo Inácio o ofício de redentor. E porque a esta trindade humana faltava a terceira pessoa, quis ele ser a terceira. Desta maneira, permiti-me que o explique assim, o Redentor do gênero humano, que tinha só uma subsistência divina, ficou como subsistindo em três subsis­tências humanas: redentor em João, redentor em Félix, e redentor em Inácio; mas naquele imediatamente redentor dos corpos; neste imediatamente redentor das almas. Do ilustríssimo patriarca S. Domingos, a quem com razão podemos chamar o grande pai das luzes, tomou Santo Inácio a devoção da Rainha dos anjos, e a doutrina do Doutor Angélico. A primeira devoção que fazia Santo Inácio todos os dias era rezar o Rosário, e o farol que quis seguissem na teologia as bandeiras da sua Companhia, foi a doutrina de Santo Tomás. Mas concordou Santo Inácio essa mesma doutrina e essa mesma devoção com tal preferência, que no caso em que uma se encontrasse com a outra, a devoção da Senhora prevalecesse à doutrina, e não a doutrina à devoção. Assim se começou a praticar nas primeiras conclusões públicas que em Roma defendeu a Companhia, e depois sustentou com tantos livros. Do serafim dos patriar­cas, S. Francisco, tomou Santo Inácio, por dentro, as chagas, por fora, a pobreza. E estimou tanto Inácio a estreiteza da pobreza seráfica que atou a pobreza com um voto, e a estreiteza com outro. Fazemos um voto de guardar a pobreza, e outro voto de a estreitar. Aos professos mandou Santo Inácio que pedissem esmola; aos não-professos, que lhes desse a esmola a religião, para que a não fossem buscar fora dela. Por isso têm rendas os colégios e não as casas. Do patriarca S. Caitano, ilustre glória do estado clerical e quase contemporâneo de Santo Inácio, ainda que em algumas partes da Europa quiseram honrar como mesmo nome a seus filhos, não tomou Santo Inácio o nome, porque o tinha dado a Jesus. O que tomou deste apostólico instituto foi a divina providência, e por que não fosse menos providência, nem menos divina, não só a tomou entre a caridade dos fiéis, senão entre a barbada dos gentios. Finalmente, do nosso insigne português, S. João de Deus, tomou Santo Inácio a caridade pública dos próxi­mos. Ambos se uniram na caridade, e a caridade se dividiu em ambos. Tomaram ambos por empresa o remédio do gênero humano enfermo. João de uma parte, curando o corpo, Inácio de outra parte, curando a alma; João, com o nome de Deus que formou o barro; Inácio com o nome de Jesus, que reformou o espírito. Não falo naquele grande prodígio da nossa idade, a Santa Madre Teresa de Jesus, porque veio ao mundo depois de Santo Inácio. Mas assim como Deus, para dar semelhante a Adão, do lado do mesmo Adão formou a Eva, assim para dar semelhante a Santo Inácio, do lado do mesmo Santo Inácio formou a Santa Teresa. O texto desta gloriosa verdade é a mesma santa. Assim o deixou escrito de sua própria mão, afirmando que do espírito de Santo Inácio, formou parte do seu espírito, e do instituto de Santo Inácio, parte do seu Instituto.[23] E este foi o modo maravilhoso com que o patriarca Santo Inácio veio a sair semelhante sem semelhante. Semelhante, porque tomou os gêneros; sem semelhan­te, porque acrescentou as diferenças. Semelhante, porque imitou a semelhança de cada um; sem semelhante, porque uniu em si as semelhanças de todos. Et vos similes hominibus.

VI

Protesta o autor que as diferenças que ponderou entre Santo Inácio e os outros fundadores, posto que pareçam vantagens, não são mais que semelhanças. Santo Inácio, como Moisés, se não excedera a glória dos outros patriarcas, fora menor, porque veio depois. Como diz S. Paulo, o Verbo, para mostrar a igualdade que tem com o Pai, tornou-se dessemelhante fazendo-se homem, a fim de que no excesso ficasse proporcionada a igualdade, e na diferença a semelhança.

Tenho acabado as duas partes do meu discurso, mas temo que não falte quem me argúa de que nesta última excedi os limites dele, porque as diferenças que acres­centei às semelhanças, parece que desfazem as mesmas semelhanças. Comparei Santo Inácio com os patriarcas santíssimos das outras religiões sagradas, e na mesma comparação parece que introduzi, ou distingui, alguma vantagem, mas isso é o que eu nego. Ainda que faço de meu santo patriarca a estimação que devo e sua santidade merece, e ainda que sei as licenças que concede o dia próprio ao encarecimento dos louvores dos santos, conheço porém, e reconheço, que nem eu podia pretender tal vantagem, nem desejar-lhe maior grandeza que a semelhança de tão esclarecidos exemplares, e isso o que só fiz. Digo pois, e protesto, que as diferenças que ponde­rei, posto que pareçam vantagens, não são mais que semelhanças; antes acrescento que nenhuma delas fora semelhança se não tivera alguma coisa de vantagem, porque essa é a prerrogativa dos que vieram primeiro. Santo Inácio veio depois, e muito depois daqueles gloriosíssimos patriarcas; e quem vem depois, se não excede, não iguala; se não é mais que semelhante, não é semelhante.

No capítulo 44 e no 45 do Eclesiástico, faz o texto sagrado um elogio geral de todos os patriarcas antigos, começando desde Enoc. E chegando a Moisés, diz assim: Similem illum fecit in gloria sanctorum (Eclo. 45, 2): Fê-lo Deus semelhante aos ou­tros santos na glória de suas obras. – Este é o elogio de Moisés, que não só parece moderado e curto, senão muito inferior e quase indigno da fama e das ações de um herói tão singularmente grande. Se lermos as histórias dos antigos patriarcas, achare­mos que as ações e as maravilhas de Moisés excederam quase incomparavelmente às de todos os passados. Não me detenho em o demonstrar porque fora matéria muito dilatada, e me mortifico assaz em não fazer um paralelo de Moisés com Santo Inácio. Um que falava com Deus facie ad faciem (Gên. 32, 30), outro que o viu tantas vezes. Um, legisla­dor famoso; outro, singularíssimo legislador; um, conquistador da Terra de Promissão; outro, conquistador de novos mundos. Um, domador do Mar Vermelho; outro, do oceano e de tantos mares. Um, que cedeu a glória de seus trabalhos a Josué; outro, a Jesus. Um, que tirou do cativeiro seiscentas mil familias; outro, famílias, cidades, e reinos sem conta. Um, que pelo zelo das almas, não duvidou em ser riscado dos livros de Deus; outro que não ficou atrás em semelhante excesso. Pois se Moisés excedeu tanto as glórias dos outros patriarcas, como não diz a Escritura que lhes foi avantajado, senão somente semelhante: Similem illum fecit in gloria sanctorum? Tudo isto não avançou mais que a fazer uma semelhança? Não. Porque os outros patriarcas foram primeiro, Moisés veio depois, e ainda que excedesse muito aos primeiros, não chegou mais que a ser semelhante. Se não excedera, fora menor; porque excedeu, foi igual. O excesso fez a semelhança, a maioria a igualdade. De todos os patriarcas das sagradas religiões, só um temos na Escritura, que é Elias. S. João Batista foi o maior dos nascidos, e essa maioria, comparada com Elias, onde o chegou? Não a ser maior que Elias, senão a ser como ele: Venit Joannes Baptista in Spiritu et virtute Eliae.[24] Os que vêm depois, comparados com os que vieram antes, não se medem tanto por tanto, senão tanto por mais. Se fizestes mais, sois igual: se fizestes tanto, sois menos.

E qual é a razão deste modo de medir, que verdadeiramente parece desigual? O igual ficar menor, e o maior ficar igual, não é desigualdade? Não, quando a com­paração se faz com os que foram primeiro, porque essa é a prerrogativa da priorida­de. Os primeiros sempre têm a vantagem de ser primeiros, e esta primazia, ou prio­ridade, tem de si mesma tal excelência, que comparada entre igual e igual, sempre fica superior, e é necessário que a mesma igualdade se supra com algum excesso, para não ser, ou parecer, menos que igualdade. Não há nem se pode conceber maior desigualdade, que a das Pessoas Divinas. Vede agora o que fez a Segunda Pessoa, não para ser, mas para provar que é igual à primeira: Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit, formam servi accipiens.[25] Sendo o Verbo, diz S. Paulo, imagem substancial do Padre e igual a ele em tudo, para mostrar que esta desigualdade era sua, e não alheia, própria, e não roubada, natural, verdadeira, e não fingida, tomou a forma de servo, fez-se homem, padeceu; e remiu o mundo. Esta conseqüência de S. Paulo tem dado muito que entender a todos os Padres e expositores. Porque, para o Verbo mostrar a igualdade que tem com o Pai, parece que se havia de deixar estar à sua destra no mesmo trono, e para mostrar que era imagem e vera-efígie sua, como leu Tertuliano, parece que como espelho do mesmo Padre havia de retratar em si mesmo todas as suas ações somente, e nenhuma outra. Se o Padre criou o mundo, crie-o também, como criou, o Filho; se governa, governe; se decreta, decrete; se manda, mande. E se o Padre se não fez homem, nem remiu o mundo, não seja ele também homem, nem Redentor, porque tomar o Filho outra forma, isto é a forma humana, que o Padre não tomou, e fazer o que ele não fez, parece que era desigualar a igualdade e desfazer a proporção, e mudar a seme­lhança de verdadeira e perfeita imagem. Pois se o Verbo se quer mostrar igual, por que se desiguala? Se se quer mostrar semelhante, por que se desassemelha, e por que faz o que o Padre não fez? Porque o Padre era a primeira pessoa, e o Filho a segunda, e para se mostrar igual e semelhante, havia de fazer mais. No Padre não há priorida­de de tempo nem de natureza, mas há prioridade de origem: o Pai é a primeira fonte da divindade de quem o Filho a recebeu; o Pai é o primeiro exemplar de quem o Filho é imagem; enfim, o Pai é a primeira pessoa e o Filho a segunda, e é tal a prerrogativa da prioridade, qualquer que seja, ainda que não seja, nem possa ser maioria, que para o Verbo mostrar ao mundo a inteireza da sua igualdade e a perfei­ção da sua semelhança, foi conveniente que fizesse mais de que o Padre fizera. Desta maneira, a nosso modo de entender, supriu o Verbo com o excesso das ações a prioridade da origem, e proporcionou a prerrogativa do exemplar com os novos resplendores da semelhança. E se isto foi decente e conveniente na igualdade de Deus entre a segunda pessoa e a primeira, bem se vê quão necessário será na desi­gualdade dos homens. Excedeu o Batista a Elias, para lhe ser igual; excedeu Moisés aos outros patriarcas, para lhes ser semelhante. Logo, ainda que Santo Inácio pareça que excedeu aos exemplares santíssimos que imitou, necessariamente havia de ser assim, sendo eles primeiro, para que no excesso ficasse proporcionada a igualdade, e na diferença, a semelhança: Et vos similes hominibus.

VII

O fim para que Deus ajuntou em Santo Inácio as perfeições de todos os santos, foi para que nele achássemos junto o que nos outros se acha dividido. Como o maná tinha o sabor de todos os manjares, Santo Inácio é um compêndio de todos os santos.

Acabemos com o fim. O fim para que Deus ajuntou em Santo Inácio as seme­lhanças e perfeições de todos os santos, foi para que neste grande santo achássemos junto, o que nos outros santos se acha dividido. Santo Inácio, se bem se consideram os princípios e fins de sua vida, foi o fruto do Flos Sanctorum. O Flos Sanctorum era a flor, Santo Inácio foi o fruto. Se de todas as flores se compusesse uma só flor, esta flor havia de ter o cheiro de todas as flores; e se desta flor nascesse um fruto, este fruto havia de ter os sabores de todos os frutos. E esta maravilha fez Deus em Santo Inácio. O livro foi a flor, ele o fruto; um fruto que contém em si todos os sabores; um santo que sabe a tudo o que cada um deseja e há mister. O maná era semelhante sem semelhante: semelhante porque tinha o sabor de todos os manjares; sem semelhante, porque nenhum manjar sabia a tudo como ele. Por isso se chamou maná, ou manhu (Êx. 16, 15), que quer dizer: Quid est hoc? Que é isto? E a esta pergunta se respondia: é tudo o que quiserdes. O mesmo digo eu de Santo Inácio. Tudo o que quiserdes, tudo o que desejardes, tudo o que houverdes mister, achareis neste santo, ou neste compêndio de todos os santos. Essa foi a razão por que orde­nou a Providência divina que concorressem e se ajuntassem neste grande exemplar tanta diversidade de estados, de exercícios, de fortunas. Nasceu fidalgo, foi corte­são, foi soldado, foi mendigo, foi peregrino, foi preso, foi estudante, foi graduado, foi escritor, foi religioso, foi pregador, foi súdito, foi prelado, foi legislador, foi mestre de espírito, e até pecador foi em sua mocidade; depois, arrependido, peniten­te e santo. Para quê? Para que todos achem tudo em Santo Inácio: Omnibus omnia factus sum.[26] O fidalgo achará em Santo Inácio uma idéia da verdadeira nobreza; o cortesão, os primores da verdadeira polícia; o soldado, os timbres do verdadeiro valor. O pobre achará em Santo Inácio que o não desejar é mais certa riqueza; o peregrino, que todo o mundo é pátria; o perseguido, que a perseguição é o caráter dos escolhidos; o preso, que a verdadeira liberdade é a inocência. O estudante acha­rá em Santo Inácio o cuidado sem negligência; o letrado, a ciência sem ambição; o pregador, a verdade sem respeito; o escritor, a utilidade sem afeite.[27] O religioso achará em Santo Inácio a perfeição mais alta; o súdito, a obediência mais cega; o prelado, a prudência mais advertida; o legislador, as leis mais justas. O mestre de espírito achará em Santo Inácio muito que aprender, muito que exercitar, muito que ensinar, e muito para onde crescer. Finalmente o pecador, por mais metido que se veja no mundo e nos enganos de suas vaidades, achará em Santo Inácio o verdadeiro norte de sua salvação; achará o exemplo mais raro da conversão e mudança de vida; achará o espelho mais vivo da resoluta e constante penitência e achará o motivo mais eficaz da confiança em Deus e na sua misericórdia, para pretender, para conseguir, para perseverar e para subir ao mais alto cume da santidade e graça, com a qual se mede a glória.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] E sede vós outros semelhantes aos homens que esperam a seu senhor (Lc. 12, 36).

[2] 0 santo que há de nascer de ti (Lc. 1, 35).

[3] Sede meus imitadores, bem como eu também o sou de Cristo (1 Cor. 11, 1).

[4] Plinius, Liv. 35, C. 9.

[5] Fazendo-se semelhante aos homens, e sendo reconhecido na condição como homem (Flp. 2, 7).

[6] Euseb. in ejus vita

(*) Processões — De proceder.

[7] "Desde os seus lombos, e daí para cima, e desde os seus lombos até baixo, vi uma como aparência de fogo resplandescente ao redor (Ez.1, 27).

[8] Salva o povo a quem remiste (Apud Theoph. in Cabala).

[9] Não foi encontrado outro semelhante a ele; guardou a lei do Excelso (Eclo. 44, 20).

[10]  Não há semelhante a ele na terra (Jó 1, 8).

[11] Mas não se achava para Adão adjutório semelhante a ele (Gên. 2, 20).

[12] Pregai a toda a criatura (Mc. 16, 15).

[13] Em sua carne ratificou a aliança (Eclo. 44, 21).

[14] Na prova foi achado fiel (Eclo. 44, 21; Jz. 11, 34).

[15]Ele se multiplicaria como o pó da terra (Eclo. 44, 22; Gên. 49, 22).

[16] Lhe daria por herança (o continente) de mar a mar, e desde o rio (Eufrates) até às extremidades da terra (Eclo.44,23;Sl.71,8)

[17] Abençoou nele todas as nações (Eclo.44,25;Gên.26,4)

 

[18] Claudian.

[19] Ovid. de Ponto

[20] Senec. Ep. 55.

[21] Aug. Serm. 109 de Temp.

[22] D. Th. Opusc. 60 et 3. p. q.1. Art. 1. Dam. Serm. I De Nativit. Virg.

[23] S. The reza in epistol. propria manuscripta apud Eusebium in vita S. Ignat. c. 40, et saepe se vocat filiam Societatis. A Puente, in vita P. Balthazaris Alvares et alii.

[24] No espírito e virtude de Elias (Lc. 1, 17).

[25] Não o julgou que fosse nele uma usurpação o ser igual a Deus; mas ele aniquilou a si mesmo, tomando a natureza servo (Flp. 2, 6 s).

[26] Fiz-me tudo para todos (1 Cor. 9, 22).

[27] Afeite: adorno, enfeite.