LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão do Santíssimo Sacramento , do Padre António Vieira
Edição de referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.
SERMÃO DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO
EXPOSTO NA
IGREJA DE S. LOURENÇO IN DAMASO,
NOS DIAS DO CARNAVAL.
EM ROMA. ANO DE 1674.
TRADUZIDO DO ITALIANO.
Tentat vos Dominus Deus vester, ut palam fiat utrum diligatis eum, an non.[1]
I
Nos outros tempos eram três os tentadores dos homens: agora não só tenta a carne, o diabo e o mundo, mas Deus também nos tenta, a fim de provar e descobrir quais são seus amigos.
Maior espetáculo, ó Tibre, vês estes dias tu nas margens soberbamente habitadas de tuas ribeiras, daquele que viu antigamente o Jordão nas soledades do seu deserto, quando o demônio tentou a Cristo. Ali se viu Deus tentado, aqui se vê Deus tentador: Tentat vos Dominus Deus vester. Maior espetáculo, ó Roma, vês estes dias tu nas tuas praças, palácios e templos, daquele que viste antigamente no teu bárbaro anfiteatro, quando os novos professores do Cristianismo eram deitados às feras. Ali com tormentos e mortes se provava a fé; aqui entre jogos e passatempos se prova o amor: Ut palam fiat utrum diligatis eum an non.
Terríveis dias são estes, e terrível concurso de tempo, senhores meus. Nos outros tempos, e por toda a roda do ano, os tentadores dos homens são três: nestes dias são quatro, e o quarto, maior e mais poderoso que todos. Nos outros tempos tenta o mundo, tenta o diabo, tenta a carne: nestes dias não só tenta a carne, o diabo, o mundo, e mais fortemente que nunca, mas Deus também nos tenta: Tentat vos Dominus Deus vester. Por que cuidais que sai Deus de seus sacrários? Por que cuidais que se põe Deus em público nestes dias, senão para tentar também ele publicamente no tempo das tentações públicas? Os três tentadores universais sempre tentam como inimigos, mas não sempre como inimigos descobertos; porém nestes dias, quando os homens com tão estranhos disfarces se cobrem a cara, o mundo, o diabo, a carne tentam à cara descoberta. Por isso, no mesmo tempo se descobre Deus para tentar ele também descobertamente. Mas a que fim? Não a fim de ajudar, tentando, a nossos inimigos, mas a fim de provar, e descobrir, tentando, quais são os seus amigos: Ut palam fiat utrum diligatis eum, an non. Esta é a propriedade natural das palavras que propus, e esta será a matéria não menos própria do meu discurso: Deus tentador, Roma tentada, os que amam ou não amam a Deus publicamente conhecidos. Os pontos são três, mas eu por brevidade os reduzirei a um só. E comecemos.
II
Deus tentador no carnaval. Ò maná, figura da Eucaristia, remédio e tentação. Os hebreus se enfastiaram do maná não pelo gosto, mas pela vista, tentação idêntica à que nos submete Deus na Eucaristia.
Tentat vos Dominus Deus vester. Deus nos tenta? Deus tentador? Estupenda e temerosa palavra, e, ao parecer, indigna e indecente! Mas não é ainda esta a minha maior admiração. Deus tentador, e tentador no Sacramento? Aqui está a dificuldade, aqui o assombro. O Santíssimo Sacramento do altar não é o peito forte com que Deus nos arma contra todas as tentações? Aquela hóstia consagrada não é o escudo dobrado, humano e divino juntamente,com que se defende a Igreja? E que nos atrevamos a dizer, sem escândalo da piedade, que o toma Deus por instrumento de nos tentar: Tentat vos Dominus Deus vester! Nestes dias, sim.
Tumultuou o povo no deserto contra Moisés, e foi o tumulto de carnaval. Utinam mortui essemus in Aegypto, quando sedebamus super ollas carnium.[2] Egito, memórias da gentilidade, gosto e apetite depravado, intemperanças de gula, enfim carne. E que fez Deus então para apagar a rebelião e moderar a desordem deste apetite bruto? Dixit autem Dominus ad Moysen: Ego pluam vobis panes de caelo:[3] Moisés, não é bem que o meu povo se lembre do Egito e daquilo que tinha e o deleitava quando vivia entre gentios: eu lhe darei pão do céu. De maneira que a primeira origem do maná e a primeira instituição do sacramento em figura, foi para apartar e descamar os homens dos apetites e costumes que chamais carnavalescos, e para desarraigar do seu povo as memórias e relíquias da gentilidade, quais são as que ainda se conservam entre os cristãos nestes dias. Bem. E teve mais algum outro fim Deus em dar o maná ao povo? Sim: o que eu digo. Não só lhe deu o maná para o tirar daquele vício, senão também para o tentar. Ouvi o que ajuntou Deus às palavras referidas: Ego pluam vobis panes de caelo; egrediatur populus, et colligat, ut tentem eum, utrum ambulet in lege mea, an non (Êx.16, 4): Eu darei o maná ao povo; ele sairá a recolher, e eu com isto o tentarei, se obedece à minha lei ou não. – Este foi o segundo fim por que deu Deus o maná. O primeiro, para remédio, o segundo, para tentação; o primeiro, para apartar o povo dos costumes profanos do Egito, o segundo, para tentar e provar o mesmo povo se obedecia e amava a Deus ou não: Ut tentem eum, utrum ambulet in lege mea, an non, que é em próprios termos o fim e sentido das nossas palavras: Tentat vos Dominus Deus vestem, ut palam fiat utrum diligatis eum, an non.
Já temos a Deus tentador, e tentador no carnaval, e tentador com o sacramento, e que o fim de nos tentar neste tempo e com este mistério é para provar nosso amor. Mas em que consiste a energia desta tentação, o exame desta dúvida, e a averiguação desta prova? Consiste em se conhecer e constar publicamente se pode mais em nós a fé que a vista, e se deixamos o gosto do que se vê pelo amor do que se não vê. Tornemos ao deserto, e prossigamos a mesma história.
Depois de alguns dias, que não foram muitos, tornou aquele povo mal-acostumado e rebelde a cair na mesma tentação. Lembravam-se como dantes dos comeres profanos do Egito e das grosserias vis que lá tinham por regalo, e diziam com grande aborrecimento que o maná os enfastiava: Anima nostra nauseat super cibo isto.[4] Este é um dos lugares da Escritura mais dificultosos de entender, porque o maná, como consta do mesmo texto sagrado, continha em si os sabores de todos os manjares: Deserviens uniuscujusque voluntati, diz a sabedoria.[5] E Davi: Omnem escam abominata est anima eorum.[6] Pois se o maná continha todos os sabores, como podia causar fastio? Aquele fastio não era por demasiada fartura, nem por falta de fome, ou vontade de comer, porque no mesmo tempo suspiravam pelas olhas do Egito. Logo, se o maná, não só de prato a prato, mas de bocado a bocado, podia variar os sabores, e os hebreus, quando comiam, se assentavam sempre a uma mesa mais abundante e esquisitamente provida que a do seu Faraó, e tinham nela juntos os sabores de quanto nada no mar, voa no ar, e pasce ou nasce na terra, como não tiravam o fastio de um sabor com a mudança e variedade do outro? E se alguém me disser que a delicadeza de manjares tão preciosos não era para o paladar grosseiro e servil de uma gente pouco antes escrava, donde vinha dizerem eles: In mentem nobis veniunt cucumeres, et pepones, porrique, et cae-pe, et allia;[7] os sabores destas verduras rústicas e de quaisquer outras baixezas vilãs e grosseiras também se continham no mesmo maná. Como logo lhes causava nem podia causar fastio? Os doutos terão lido muitas soluções desta grande dúvida, mas eu cuido que vos hei de dar a literal e verdadeira. Digo que o fastio do maná não estava no gosto: estava nos olhos. O que gostavam os hebreus era tudo quanto queriam, mas o que viam era somente maná. Maná ao jantar, maná à ceia, maná hoje, maná amanhã, sempre maná. E como toda a variedade era para o gosto, e para os olhos não havia variedade nem diferença, os olhos eram os que se enfastiavam. Não é exposição minha, senão confissão sua. Eles o dizem no mesmo texto: Nihil aliud respiciunt oculi nostri, nisi man (Núm. 11, 6): Os nossos olhos não vêem outra coisa mais que maná. – E como não viam mais que maná, por isso o não podiam ver, por isso se enfastiavam dele, e tornavam com os desejos ao Egito.
Oh! divino maná e verdadeiro pão do céu! Cremos e confessamos que estão encerrados debaixo desses acidentes todos os gostos e delícias da alma; mas Anima nostra nauseat super cibo isto, porque Nihil respiciunt oculi nostri, nisi man. Esta foi a tentação antigamente com que Deus tentou o povo israelítico no maná: Ut tentem eum. Esta é hoje a tentação com que tenta o povo católico no Sacramento: Tentat vos Dominus Deus vester. Os hebreus, exceto um Moisés e os poucos que o seguiam, os cristãos, exceto outro Moisés [8] e os poucos que o seguem, todos vemos rendidos à tentação, porque todos gostam mais das mesas profanas e abomináveis do Egito, que daquele pão do céu, A razão desta sem-razão tão grande em uns e outros é a mesma: nos hebreus porque não viam mais que maná; nos cristãos, porque não vemos mais que aqueles acidentes brancos: Nihil respiciunt oculi nostri nisi man. Oh! fraqueza da fé, oh! cegueira e tirania dos olhos humanos! Tenta Deus nestes dias, e tenta o mundo, e uma e outra tentação põe o laço nos olhos, mas a de Deus nos olhos fechados, a do mundo nos olhos abertos. Deus tenta com a sua presença encoberta; o mundo tenta com as suas representações públicas. E como aquelas representações se vêem, e esta presença não se pode ver, em vez de triunfar a fortaleza da fé contra os apetites e enganos da vista, triunfa a tirania da vista contra as obrigações da fé. Se Cristo como está presente, corresse aquela cortina que o encobre, subitamente se veria nesta igreja a transfiguração do Tabor, e toda a cidade de Pedro diria com o mesmo Pedro: Bonum est nos hic esse.[9] Mas Cristo não quer vencer o mundo com armas iguais. Põe-se em campo contra ele, invisível a nossos olhos, porque vem a fazer prova de nossa fé e do nosso amor Ut palam fiat, utrum diligatis eum, an non.
III
O Tabor e a exclamação de S. Pedro. Fineza natural do heliotrópio e fineza sobrenatural de Moisés. Os serafins de Isaías e a visão de Deus. Conselhos de Davi a Deus.
Notável caso é que, quando S. Pedro disse: Bonum est nos hic esse, digam os evangelistas que estava fora de si: Nesciens quid diceret. [10] Quer estar sempre com Cristo, e está fora de si? Antes dissera eu que nunca esteve mais em si que quando quis estar sempre com Cristo. Pois, por que mereceu uma tal censura o fervor e amor de Pedro? Porque disse que queria estar com Cristo quando viu descobertos os resplendores de sua glória, sendo que isso havia de dizer quando depois se lhe encobriram com a nuvem que sobreveio. No teatro do Tabor representaram-se sucessivamente duas cenas muito diversas. Na primeira apareceu a majestade de Cristo como sol resplandecente, descoberto e coroado de raios: Resplenduit facies ejus sicut sol. [11] Na segunda, desceu e atravessou-se uma nuvem que eclipsou toda aquela glória, e a encobriu aos olhos dos apóstolos: Nubes obumbravit eos.[12] E que disse agora Pedro? Nada. Pois agora é que ele havia de dizer: Bonum est nos hic esse, porque querer estar com Cristo quando se mostra e deixa ver com toda a sua glória e majestade, nem é fé, nem é amor, nem é pensamento digno da cabeça da Igreja. Por isso a mesma nuvem que lhe tolheu o sentido da vista, lhe abriu e espertou logo o sentido da fé: Et ecce vox de nube dicens: Ipsum audite.[13] A prova da verdadeira fé e a fineza do verdadeiro amor não é seguir ao sol quando ele se deixa ver claro e formoso com toda a pompa de seus raios, senão quando se nega aos olhos, escondido e encoberto de nuvens. Vede-o no espelho da natureza.
Aquela flor, a que o giro do sol deu o nome, chamada dos gregos heliotrópio, imóvel e com perpétuo movimento, jamais deixa de seguir e acompanhar a seu amado planeta. Quando o sol nasce, se lhe inclina e o saúda; quando sobe, se levanta com ele: quando está no zênite, o contempla direita; quando desce, se toma a dobrar; e quando finalmente chega ao ocaso, com nova e profunda inclinação se despede dele. Grande milagre da natureza. Grande fineza de amor! Mas onde está o mais fino desta fineza? Descobriu-o e ponderou-o Plínio com uma reflexão tão admirável como a da mesma flor: Heliotropii miraculum saepius diximus cum sole se circumagentis etiam nubilo die. Tantus sideris amor est: Maravilha é, e fineza prodigiosa que aquela flor amante do sol, sem se poder mover de um lugar, o siga sempre em roda, acompanhando seu curso; mas o mais maravilhoso desta maravilha, e o mais fino desta fineza, diz Plínio, é que não só segue e acompanha o sol quando se lhe mostra claro e resplandecente, senão quando se esconde e se cobre de nuvens: Etiam nubilo die, tantus sideris amor est. Mas passemos da escola da natureza à da graça, e vejamos se há nela alguma flor semelhante. Desejou Moisés ver a Deus, e pediu-lhe que lhe mostrasse seu rosto: Ostende mihi faciem tuam (Êx. 33, 13). Foi-lhe respondido que não era possível nesta vida: Non videbit me homo, et vivet.[14] E que vos parece que faria Moisés com este desengano? Não o disse ele na sua história, mas disse-o por ele S. Paulo com altíssima ponderação: Invisibilem tanquam videns sustinuit.[15] Desenganado Moisés de poder ver a Deus, foi tal a sua fineza, que fazia não o vendo o que havia de fazer se o vira. Que havia de fazer Moisés se vira a Deus? Havia de estar sempre com os olhos fixos nele, sem jamais se apartar de sua vista e de sua presença. Pois isto que havia de fazer se o vira, isso mesmo fazia não o vendo: Invisibilem tanquam videns sustinuit.
Assim provou Moisés o seu amor, e assim prova Deus nestes dias, e quer provemos o nosso: Ut palam fiat utrum diligatis eum. Mostra-se-nos o Sol Divino encoberto com aquela nuvem que o faz invisível para provar se pode tanto em nós a fé como a vista, e se o assistimos e acompanhamos não o vendo, como se o víramos. Os que assim o fizeram, bem podem tomar por divisa de seu amor a fineza natural do heliotrópio e a sobrenatural de Moisés. E será o corpo e a alma da empresa igualmente discreta. O corpo, um heliotrópio voltado ao sol coberto de nuvens; e a alma, a letra de S. Paulo: Invisibilem tanquam videns. Não cuide que ama a Cristo quem não antepõe sua presença invisível a tudo quanto se vê e pode ver no mundo. Lá vos chama a ver, aqui a não ver, porque a prova do verdadeiro amor não está em amar vendo, senão em amar sem ver. Amar e ver, é bem-aventurança; amar sem ver, é amor. O mesmo mundo o contesta. Toda a gala do amor, qual é? Vós o pintais nu como a verdade, e assim há de ser se é amor. Qual é logo a sua gala? Toda a gala do amor é a sua venda. Vendado e despido, porque quando não tem uso dos olhos, então se descobre o amor. Ut palam fiat utrum diligatis eum.
Dai-me agora licença para que examine um passo vulgar de Isaías, o qual cada dia aparece nos púlpitos, mas para mim ainda é oculto e novo. Viu Isaías aqueles serafins que todos sabem, e o que eu não sei entender é como os ditos serafins assistiam a Deus e não viam a Deus. Assistiam a Deus, porque estavam diante do trono de Deus: Seraphim stabant super illud. Não viam a Deus, porque com a interposição das asas cobriam os olhos próprios e a face do mesmo Deus: Velabant faciem ejus. [16] Aqui está o ponto da minha dificuldade. E folgara que me disseram os doutos que serafins são aqueles que assistem a Deus e não vêem a Deus. É certo e de fé, que todos os espíritos angélicos estão sempre vendo a face de Deus: Angeli eorum semper vident faciem Patris, qui in caelis est (Mt. 18, 10). Os serafins não só são anjos, senão os supremos anjos da suprema hierarquia: logo também é certo que todos os serafins vêem sempre a Deus, e com visão mais alta e mais imediata que todos os outros anjos. Que serafins são logo estes que assistem a Deus e não vêem a Deus? Senhores meus, estes serafins não vêem a Deus, mas eu vejo estes serafins. Dizei-me. Todos os que concorreis a esta igreja a adorar e acompanhar a Cristo sacramentado naquele trono, assistis a Deus? Sim. Vedes a Deus? Não. Pois estes são os serafins que assistem a Deus e não vêem a Deus. Não são serafins do céu, são serafins da terra; não são serafins-anjos, são serafins-homens. E porque estes serafins vêm a assistir e vêm a não ver, por isso as mesmas asas que os trazem, os param e os cegam juntamente: Volabant, stabant, velabant. Neste sentido interpretam a visão de Isaías, dos Padres gregos, S. Cirilo, e dos latinos, S. Jerônimo. Mas eu não quero outro expositor que o mesmo texto. Digo que a visão não era no céu, senão na terra. Assim diz o texto: Plena est omnis terra gloria ejus.[17] Digo que o lugar da terra era a igreja: Et ea quae sub ipso erant, replebant templum.[18] Digo que nessa igreja estava impedida a vista e o uso dos olhos. Assim diz o texto: Et domus repleta est fumo.[19]
Mas se os chamados serafins que assistiam nessa terra, nessa igreja e nessa invisibilidade de Deus são os homens, por que lhes não chama Isaías homens, nem anjos, nem arcanjos, nem querubins, senão serafins? Por isso mesmo. Porque assistem a Deus sem o ver. Os serafins são aqueles espíritos ardentes a quem o amor a Deus deu o nome, porque entre todas as hierarquias, e sobre todas amam a Deus mais que todos. E porque a circunstância de amar e assistir a Deus sem o ver é a maior prova, a maior fineza e o grau mais alto e mais sublime a que pode subir ou voar o amor, por isso lhe chama o profeta serafins, mas serafins com os olhos vendados.
Perdoai-me serafins do céu. Vós tendes lá o nome, e cá está o amor. Vós lá assistis e amais, mas vedes. Cá assistimos e amamos, e não vemos. Esta única glória é própria da terra e própria de Deus, Própria da terra: Plena est omnis terra, porque amar sem ver a Deus é glória que não há nem houve, nem haverá nunca no céu. E própria de Deus: Gloria ejus, porque Deus no céu da glória, aqui recebe-a. Esta é a força daquele ejus. No céu dá Deus a glória aos bem-aventurados; na terra vós, que o assistis, dais a glória a Deus. Deus no céu dá a glória aos bem-aventurados, porque deixando-se ver e amar faz aos bem-aventurados gloriosos. Vós na terra dais a glória a Deus, porque amando-o sem o ver, vós o glorificais. No céu Deus é o glorificador, e os bem-aventurados os glorificados; na terra vós sois os glorificadores, e Deus o glorificado e glorioso: Plena est omnis terra gloria ejus. Tanto vai de amar vendo, a amar sem ver.
E porque o intento de Cristo nestes dias é tentar e provar o nosso amor: Tentat vos utrum diligatis eum, an non, – por isso se apresenta à nossa fé, e não a nossos olhos; não vestido de majestade e glória, senão armado de invisibilidade. Aquele grande guerreiro, Davi, aconselhava a Deus, se queria render e trazer tudo a si, que se armasse de sua formosura, e que a beleza de seu rosto fosse a sua espada: Accingere gladio tuo super femur tuum, potentissime. Specie tua, et pulchritudine tua, intende, prospere, procede, et regna. [20] Mas assim como Davi não aceitou as armas de Saul, assim Cristo não aceita estas armas de Davi. E quando o mundo, para nos levar após si, faz público e pomposo teatro aos olhos de tudo o que o engenho e novidade pode inventar agradável e deleitoso, ele pelo contrário, debaixo daqueles disfarces, esconde todos os tesouros de sua formosura, confiado de nossa fé e de nosso amor, que invisível será adorado, que não visto será assistido, e que escondido e encoberto será descobertamente amado: Ut palam fiat utrum diligatis eum.
IV
Toca a nós ou resistir e vencer a tentação, ou cair Roma e o milagre do Jordão. Davi interpela a parte superior do Jordão que parou à passagem da Arca. O autor, com o profeta, interroga a parte inferior do rio que lhe voltou as costas.(20)
Esta é senhores a tentação com que Deus nos tenta, digna da generosidade e grandeza, e do coração amoroso de tão soberano tentador: Tentat vos Dominus Deus vester. Agora toca a nós, ou resistir e vencer a tentação ou cair; ou ser da multidão vulgar dos que por suma fraqueza e indignidade seguem o mundo, ou ser do mundo generoso e verdadeiramente cristão dos que, deixando ao mundo as suas loucuras, seguem e assistem a Cristo e professam publicamente nestes dias ser do partido dos que o amam: Ut palam fiat utrum diligatis eran, an non. Toda a tentação e toda a vitória está entre um sim e um não. Ou ver ou não ver; ou amar ou não amar. Até agora Utrum diligatis eum, an non, é problema. Vós o haveis de resolver, e os vossos olhos. De boa vontade o disputara eu largamente por uma e outra parte. Mas porque a brevidade do tempo mo não permite, eu vo-lo proporei já disputado e resoluto na Escritura, e prodigiosamente representado. Tornemos às ribeiras do Jordão.
Entrou no Jordão a Arca do Testamento, e subitamente as águas do rio se dividiram em duas partes ou em duas parcialidades. A parte superior, como estática e atônita à presença da Arca, tornou atrás e parou, e assim esteve imóvel. A parte inferior, deixando-se levar da inclinação natural e ímpeto da corrente, não parou, e correu ao mar. Esta é a famosa história que todos os anos nestes dias se representa em Roma, A Arca do Testamento, na qual se encerrava toda a grandeza e majestade de Deus, é o digníssimo Sacramento; o Jordão, que se dividiu, não é o Tibre, mas a cidade do Tibre, que também tem suas correntes e suas divisões. A parte superior, que reverente parou à presença da Arca, são aqueles que assistem e acompanham a este Senhor. A parte inferior, que se retirou e correu ao mar, são os que o deixam e desacompanham, e se vão com a corrente onde os chama o mundo.
À vista desta diferença tão notável, fala Davi com o rio, e diz assim: Quid est tibi mare, quod fugisti, et tu Jordane, quia conversus es retrorsum?[21] Jordão parado, Jordão fugitivo, que divisão é esta, e que resolução tão diversa? Tu que paras, por que paras? E tu que foges, de quem foges? Se a causa é a mesma, o rio e mesmo, e a natureza de uma e de outra parte a mesma, por que são os movimentos tão contrários? Responde Davi pela parte do Jordão superior e parado, e diz que parou cortês e obsequioso porque reconheceu e reverenciou na Arca a presença do Deus de Jacó: A facie Domini, a facie Dei Jacob.[22] Chamava-se a Arca face de Deus pela particular assistência com que Deus invisivelmente residia nela. E daqui se segue também que todo o verso de Davi se há de entender, como nós o entendemos, da passagem do Jordão, porque na passagem do Mar Vermelho ainda não havia arca. Mas se bastava dizer que parou o Jordão: A facie Domini, por que acrescentou nomeadamente o profeta que esse Deus era Deus de Jacó: A facie Dei Jacob? Seria porventura para diferenciar o Deus verdadeiro, qual era ode Jacó, dos deuses falsos e fabulosos, que em diversas figuras adoravam naquele tempo os gentios? Verdadeiramente, senhores, que quem não pára aqui a reverenciar e assistir àquela divina Arca, ou não crê que está ali o verdadeiro Deus, ou tem outros deuses falsos e torpes, a quem mais ama e adora, Mas não é este só o mistério, nem foi esta só a fineza do Jordão. Nota neste passo a glosa que não disse o profeta: A facie Dei Israel, senão: A facie Dei Jacob. Este patriarca tinha dois nomes: o de Jacó, que lhe puseram os homens, e o de Israel, que lhe deu Deus. Pois por que se não chama Deus neste caso Deus de Israel, senão Deus de Jacó? Com grande mistério. Jacó quer dizer: Luctator, o lutador; Israel quer dizer: Videns Deum: o que vê a Deus. E como Deus estava invisivelmente na Arca, e o Jordão parou a Deus invisível, por isso Deus senão chama aqui Deus do que vê a Deus: Deus Israel, porque foi Deus reverenciado, e não visto; chama-se, porém, com segundo mistério e com maior energia: Deus Jacob: Deus lutador, porque o Jordão, resistindo ao peso das águas e refreando o ímpeto da corrente, lutou fortemente contra a inclinação precipitosa da própria natureza, e a venceu gloriosamente. De maneira que se ajustaram neste milagre do Jordão as duas circunstâncias que necessariamente concorrem nos que assistem a Cristo sacramentado nestes dias. A primeira, lutar como Jacó, e vencer o ímpeto da inclinação natural que os leva a seguir a corrente. A segunda, parar e assistir aqui, imovelmente, a Deus, mas não a Deus visto, como Deus de Israel, senão a Deus invisível, como Deus de Jacó.
Assim respondeu Davi pela parte superior do Jordão que parou e reverenciou a Arca. Mas pela parte inferior, que correu ao mar e lhe voltou as costas, como foi ação tão irracional, tão precipitada e tão feia, condenou-a, e afrontou-a o profeta com a admiração da sua mesma indignidade, perguntando-lhe por que fugia de Deus: Quid est tibi mare, quod fugisti? Mas se era rio, por que lhe chama mar? E se era o Jordão, por que lhe não chama Jordão? O nome que lhe tirou e o que lhe deu, ambos foram declaração da censura que merecia. O rio que corre ao mar seguindo a Própria natureza, vai buscar sua perdição: ali perde o nome e o ser, porque já não é rio, é mar. Assim foi buscar o seu naufrágio e o seu castigo aquela indigna parte do Jordão que voltou as costas à Arca. E posto que esta razão bastava para lhe negar o profeta o nome de Jordão, ainda o fez com maior mistério e mais claro documento e repreensão dos que nestes dias o imitam. Jordanis quer dizer fluvius judicii: o rio do juízo. E como podia ser digno de tal nome uma parte do mesmo rio tão precipitada, tão furiosa e sem juízo, que por seguir o ímpeto e costume da natureza, deixou de assistir à Arca de Deus, e fugiu de sua presença? Prezem-se agora de entendidos e discretos os que se apartam ou fogem da mesma presença para ver e autorizar, com a sua, as loucuras do mundo nos dias em que ele mais que nunca perde o siso. E se quereis ver quão alheia de juízo é semelhante resolução, ponderai-a comigo debaixo da alegoria do mesmo rio, e ouvi-me falar com ele com as mesmas palavras do profeta.
Quid est tibi mare, quod fugisti? Rio precipitado e infeliz, que te deixaste arrebatar da fúria da corrente e fugiste da presença da Arca de Deus, dize-me de que foges tu, e por quê? Que malte tem feito aquele Senhor, para fugir dele? De um Deus que te busca, que vem em pessoa a santificar-te, de um Deus que, sendo tu dos amorreus, te quer fazer seu, de um Deus que te quer livrar da servidão da gentilidade, de um Deus que se mete todo dentro de ti mesmo: deste Deus tão amoroso foges tu? Dize-me, assim eu te veja tomar atrás: Quid est tibi? Que fruto, que proveito, que interesse tens em deixar e te apartar de Deus? Se te move o costume inveterado da tua corrente, não vês tu que é melhor e mais são conselho emendar os costumes maus antes de chegar ao Mar Morto, onde tu caminhas? Se te leva o ímpeto e inclinação natural, não vês que a outra parte de ti mesmo, sendo da mesma natureza Conversus est retrorsum? Se ele não seguiu teu exemplo, por que não imitarás tu o seu? Se o não fazes por virtude, ao menos o deves fazer por reputação e por honra. Não vês que aquele Jordão que teve mão em si e parou à presença da Arca, quanto mais está parado, tanto mais cresce e se exalta? Não vês que ele é o milagroso, o admirado, o reverenciado, o louvado, o chamado santo? Que é logo o que te leva? Que é o que vais buscar aonde tão arrebatadamente caminhas: Quid est tibi mare, quod fugisti?
V
O Mar Morto, Valus Salinarum, e o carnaval. A tentação do riso e o sacrifício de Isac, Roma e Sara, mãe dos crentes.
Naquela palavra mare temos todo o quid est, ou todo o porquê da admiração do profeta, e isso mesmo tanto para admirar e estranhar, que apenas se pode dizer sem indecência. Mas não é muito que se diga, pois se vê. Aquele mar, aonde foi parar a parte do Jordão que não parou, é o que nós hoje chamamos Mar Morto, e naquele tempo se chamava Vallis Salinarum, porque sendo estéril de pescado e de toda a coisa vivente, só se tirava dele sal. Pois para correr ao Vale do Sal, se há de deixar a presença e reverência da Arca? Para correr ao Vale do Sal se há de fugir de Deus? Assim é. Para correr ao Vale do Sal, e do sal que algumas vezes é assaz mordaz e picante. Tudo o que vai ver e ouvir a passatempo e gosto vão destes dias, que outras coisas são senão aquelas que a antiga Roma chamava sales, e a moderna sali. Graças, chistes, motes, facécias, bufonarias, metamorfoses de trajos, equívocos de pessoas, transfigurações dos sexos e da espécie, máquinas jocosas, invenções ridículas, enfim quanto sabe excogitar o engenho, a sutileza e á ociosidade para mover a riso. Que diria a severidade do vosso Catão se tal visse? Para isto se vêem cheias as praças, as ruas, os balcões, os teatros; todos a rir, e tudo para rir. E que sendo em suma tão leve e tão ridícula a tentação, triunfe contudo o mundo de nós, e pareça que triunfa do mesmo Deus! Senhor, Senhor, quase estava para vos representar a minha dor, que seria maior decência de vossa divina autoridade retirar-vos ao Sancta Sanctorum de vossos sacrários, que aparecer em público nestes dias. Seja riso aquele riso, mas não seja irrisão vossa. Riam-se os homens do que vêem e do que fazem, mas não pareça que se riem de vós, pois fazem tão pouca conta de vossa presença. Saibam porém os que assim deixam a Deus e o trocam ou vendem por tão vil preço, que Deus, como pregou S. Paulo, non irridetur,[23] e que lá está guardado um Vae da divina justiça para este riso: Vae vobis qui ridetis, quia plorabitis![24]
Esta é, senhores, a representação que vos prometi do vosso problema: Utrum diligatis eum, an non, disputado na história do Jordão, e resoluto diversamente por ambas as partes: uma que parou reverente à presença da Arca; outra que voltou as costas e correu ao mar. Veja agora cada um qual destas partes ou partidos se resolve a seguir. E porque toda a tentação de amar ou não amar a Deus nestes dias se vem a resumir no que se resume a religião ou vaidades deles, que é sacrificar ou não sacrificar o riso, disponhamo-nos animosamente para o sacrifício, e tomemos por exemplar dele um vencedor famoso de semelhante tentação, e tentação também de Deus, como a nossa.
Tentou Deus a Abraão para provar seu amor. São os termos com que fala a Escritura: Tentavit Deus Abraham (Gên. 22, 1). A tentação foi que lhe sacrificasse Isac, o seu amado. E diz S. Paulo que esta tentação de Abraão e sacrifício de Isac foi parábola de Deus: Unde eum in parabolam accepit. [25] Mas como foi parábola, se é história verdadeira? Não quer dizer o apóstolo que não fosse verdadeira história. Quer dizer que foi história e parábola juntamente: história pelo que era, parábola pelo que significava. Saibamos agora. E que significa Isac e o seu sacrifício? Isac significa riso. E ainda que pareça matéria de riso, este riso, na significação de Deus, é a matéria de toda a tentação, e este riso é o que Deus nos manda sacrificar. S. Bernardo: Dicitur tibi, ut immoles Isaac tuum, Isaac enim interpretatur risus: Sabeis, diz Bernardo, o que Deus manda que lhe sacrifiquemos quando manda sacrificar Isac? Manda que lhe sacrifiquemos o riso. Quando mandou a Abraão que sacrificasse o seu Isac, mandou-lhe que sacrificasse o seu filho, e esta foi a história. Quando nos manda que sacrifiquemos o nosso Isac, manda-nos que sacrifiquemos o nosso riso, e esta foi a parábola: Eum in parabolam accepit.
Todos estamos tentados por Deus, como Abraão: Tentat vos Dominus Deus vester. Todos estamos tentados, como ele, para fazer prova do nosso amor: Ut palam fiat utrum diligatis eum, an non. Se há quem se atreva a sacrificar o seu Isac, suba com Abraão ao monte para o imitar. E note bem a gentileza daquele grande coração e daquele braço. O formidabile spetaculum! Amor in prolem, Deique dilectio judicio contendunt, et judex ensifer instat Abrahamus, et gladio jus dicit: O formidável espetáculo! - diz S. Basílio de Selêucia. Litigavam no coração de Abraão dois amores, ambos grandes, ambos fortes, ambos dificultosos de vencer: o amor de Deus, e o amor de Isac. Por parte de Deus advogava a fé; por parte de Isac contradizia toda a natureza. E Abraão, posto no meio destes dois afetos, era o juiz que com a espada havia de pronunciar a sentença. – Tal é a controvérsia, ó cristão, que tu hás de decidir neste ponto: Utrum diligatis eum, an non. Se amas verdadeiramente a Deus, há de morrer Isac; se Isac vive, não amas a Deus. O céu por parte de Deus, a terra por parte do mundo, esperam suspensos a tua resolução. Tu és o juiz: dá a sentença. Que dizes? Sim ou não? Oh! como me parece, fiéis amadores de Cristo, estar vendo em cada um de vós outro Abraão com o braço e com a espada levantada, para cortar a cabeça a este Isac, não inocente, mas réu, não legítimo, mas adulterino, não digno de viver, mas de morrer de uma vez e acabar para sempre. Morra, morra Isac; viva, viva Cristo, viva o Diviníssimo Sacramento. Mas que é o que vejo? Não um anjo do céu, como o de Abraão, mas um anjo do inferno, que da parte do mundo e do apetite vos brada, vos tem mão no braço e vos faz cair a espada. Tal é a fraqueza de nossa fé, tal a covardia de nossos corações. Enfim este ano será como os demais, e se cumprirá a parábola inteiramente. Viverá Isac, e o sacrificado será o Cordeiro. Vós, Senhor, sereis o deixado, e o mundo o buscado e o seguido. Vós estareis aqui quase só, e Roma no corso e nos teatros.
Notou o mesmo S. Basílio, como já o tinha escrito Josefo, que Abraão teve sempre o caso em segredo, e nem quando recebeu o mandamento de Deus, nem quando aparelhou e partiu ao sacrifício, deu conta ou notícia dele a Sara. E a razão foi, diz o santo, porque ainda que Abraão venerava e tinha grande conceito da fé, da devoção e da piedade de Sara, considerou contudo o gênio feminil, e temeu que, como mulher e mãe, não tivesse valor para consentir no sacrifício: Ego quidem ejus animum suspicio, sed genium vereor. Conheceu o ânimo, mas temeu o gênio. Esta é também a razão da minha desconfiança: reverencio, mas receio: Suspicio, sed vereor. Abraão era o pai dos crentes, e Sara a mãe. O pai dos crentes teve valor para fazer o sacrifício: a mãe dos crentes não. E quem é a mãe dos crentes, senão tu, ó Roma?
VI
O autor, com S. Jerônimo, incita Roma para que interprete seu nome. As águias e o corpo de Cristo.
Roma, eu não tenho autoridade, nem confiança, nem língua para te dizer neste caso o que sinto; mas ouve tu o que te diz com igual autoridade e eloqüência o teu Doutor Máximo, Jerônimo, No mesmo tempo em que S. Dâmaso edificava esta mesma igreja em que estamos, escreveu S. Jerônimo a Roma, a qual então andava em grande parte enganada com as larguezas e delícias que aprovava o ímpio Joveniano, mais conformes aos idólatras de Jove, de quem ele tinha o nome, que aos adoradores de Cristo; e diz assim o grande Padre:[26] Urbs potens, urbs orbis domina, urbs Apostoli voce laudata, interpretare tuum vocabulum: Cidade potentíssima, cidade dominadora e senhora do mundo, cidade louvada, não por boca do teu Apolo, senão pelo oráculo de Paulo; Te alloquor, contigo falo, e não te digo outra coisa, senão que interpretes o teu nome: Interpretare tuum vocabulum. Roma, autfortitudinis nomen est apud graecos, aut celsitudinis juxta hebraeos. Serva quod diceris: virtus te excelsam faciat, non voluptas humilem: O grego quando diz Roma, quer dizer a forte: o hebreu quando diz Roma, quer dizer a excelsa: o cristão, acrescentemos nós, quando diz Roma, quer dizer a santa, E será bem que Roma, a forte, não resista a uma tentação tão leve? Será bem que Roma, a excelsa, se abata a uma indecência tão ridícula? Será bem que Roma, a santa, deixe a fonte da santidade por seguir a corrente da vaidade? Rir-se-á e mofará o grego; rir-se-á e zombará o hebreu; chorará e envergonhar-se-á o cristão. Pelo que, Roma minha, diz S. Jerônimo, serva quod diceris. Sete chamas Roma, sê Roma, sê forte, sê excelsa, sê santa.
E vós, senhores romanos, generosos filhos desta águia magnarum alarum,[27] lembrai-vos das palavras que a vós em primeiro lugar, e a todos os que reconhecem por mãe e cabeça esta Santa Cidade, disse em confiança de vossa piedade o Senhor que está presente: Ubicumque fuerit corpus, illic congregabuntur et aquilae: Aonde estiver meu corpo, ali correrão as águias (Mt. 24, 28). Corpus in altari, aquilae vos estis, diz Santo Ambrósio. Não se tenha por águia, que tudo o mais de quem tenho falado até agora é vulgo, não se tenha por águia legítima e verdadeira, a que aqui não vier fazer prova da agudeza de sua vista, e da fineza de seu amor. A águia natural prova os seus verdadeiros filhos aos raios do sol descoberto; a Águia divina prova os seus nas sombras do sol escondido. Com esta nobilíssima circunstância, sacrifiquem os vossos olhos a Deus tudo o que nestes dias deixarem de ver. Se assim o fizerdes, como de vossa generosidade e piedade se deve esperar, será o vosso sacrifício por esta circunstância ainda mais precioso e mais grato a Deus que o de Abraão. Notai. Quando Deus mandou a Abraão que lhe sacrificasse o seu Isac, disse desta maneira: Vade in terram visionis, atque ibi offeres (Gên. 22, 2): Vai à terra da visão, vai à terra onde me viste e onde me vês, e aí oferece o sacrifício. – Na diferença de ibi a ibi está a vantagem da fineza. Fazer sacrifício a Deus no lugar onde se vê Deus, não é maravilha; mas fazê-lo no lugar onde Deus não se vê, essa é a maravilha, essa a fineza, e esta será a glória do vosso sacrifício. Seo não ver a Deus que temos presente é a tentação com que ele vos tenta: Tentat vos Dominus Deus vester, não o ver, e amá-lo, não o ver, e assisti-lo, não o ver, e acompanhá-lo sempre, seja a prova manifesta e pública de vosso amor: Ut palam fiat utrum diligatis eum, an non.
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
O Senhor vosso Deus vos tenta, para se fazer manifesto se o amais ou não (Deut. 13, 3).
[2] Provera a Deus que nós fôssemos mortos no Egito, quando lá estávamos assentados junto às panelas das carnes (Êx. 16, 3).
[3] Eis aí vou eu fazer chover para vós pães do céu (Êx. 16, 4).
[4] A nossa alma se enfastia já deste manjar (Núm. 21, 5).
[5] Acomodando-se à vontade de cada um (Sab. 16, 21).
[6] A alma deles aborreceu toda a comida (SI. 106, 18).
[7] Vêm-nos à memória os pepinos, os melões, os porros, e as cebolas, e os alhos (Núm. II, 5).
[8] 0 Em. Card. Barberino, instituidor desta devoção
[9] Bom é que nós estejamos aqui (Mt. 17, 4; Le. 9, 33).
[10] Mestre, bom é que nós aqui estejamos, e façamos três tendas: uma para ti, e outra para Moisés, e outra para Elias, não sabendo o que dizia (Lc. 9, 33).
[11] E o seu rosto ficou refulgente como o sol (Mt. 17, 2).
[12] Uma nuvem os cobriu (Mt. 17, 5).
[13] E eis que saiu uma voz da nuvem, que dizia: Ouviu-o (Mt. 17, 5).
[14] Nenhum homem me verá, e depois viverá (Êx. 33, 20).
[15] Porque esteve firme, como se visse ao invisível (Hebr. 11, 27).
[16] Os serafins estavam sobre ele; seis asas tinha um e seis asas outro; com duas cobriam a sua face (Is. 6, 2).
[17] Cheia está toda a terra da sua glória (Is. 6, 3).
[18] E as coisas que estavam debaixo dele enchiam o templo (Is. 6, 1).
[19] E a casa se encheu de fumo (Is. 6, 4).
[20] Cinge a tua espada ao teu lado, 6 poderosíssimo. Com a tua beleza e com a tua formosura, entesa o arco, vai adiante felizmente, e reina (SI. 44, 4 s).
Que tiveste tu, ó mar, que fugiste? E tu, Jordão, para retrocederes? (SI. 113, 5).
[22] Na presença do Senhor, perante o Deus de Jacó (SI. 113, 7).
[23] De Deus não se zomba (Gál. 6. 7).
[24] Ai de vós os que agora rides, porque gemereis e chorareis (Lc. 6, 25).
[25] Por onde ele o recobrou também nesta representação (Hebr.11,19)
[26] Hier, contra Jovenianum .
[27] De grandes asas.