Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão de Nossa Senhora de Penha de França, do Padre António Vieira


Edição de referência:

Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DE NOSSA SENHORA DE PENHA DE FRANÇA,

NA SUA IGREJA E CONVENTO DA SAGRADA RELIGIÃO DE SANTO
AGOSTINHO

Em Lisboa, no primeiro dia do tríduo de sua festa, com o Santíssimo Sacramento exposto. Ano de 1652.

Liber generationis Jesu Christi, Filii David, Filii Abraham.[1]

I

Na Penha de França reúnem-se dois tronos de duas majestades: o de Maria e o de Cristo.

Com digno pensamento, Senhor, de vossa divina sabedoria, e com bem mere­cida correspondência de vosso amor, vemos juntos hoje, como antigamente os ajun­tou Salomão (3 Rs. 2, 19), os dois tronos de ambas as majestades: o de vossa santís­sima Mãe, subida a esta penha, e o vosso, descido a ela. Sobre uma penha, diz Jó, que havia de fabricar seu ninho a águia que moraria nas rochas mais altas e inaces­síveis, e que dali contemplaria o corpo morto, para voar e se pôr com ele: In arduis ponet nidum suum; in petris manet, et in accessis rupibus: inde contemplatur es­cam, et ubicumque fuerit cadaver, statim adest.[2] Que águia, que penha e que corpo morto é este, senão tudo o que estamos vendo? A águia, Maria Santíssima; a penha, Penha de França; o corpo morto, vosso corpo sacramentado, vivo, mas em forma de morto. Esta águia, como a viu Ezequiel, é a que vos tirou das entranhas do eterno Padre e vos trasladou às suas.[3] Ela é a que vestiu vossa divindade deste mesmo corpo, e ele o que reciprocamente, com sua real presença, vem honrar hoje e divini­zar a celebridade de sua Mãe, e fazer maior este grande dia.

Para que eu, nos arcanos secretíssimos desse mistério, e nos que com igual secreto encerra o Evangelho, possa descobrir os motivos de nossa obrigação e agra­decimento, e para que de algum modo alcance a ponderar as mercês tão prodigiosas e tão contínuas, que em todas as partes da terra, do mar, e do mundo deve Portugal a este soberano propiciatório, debaixo do glorioso nome de Penha de França, por intercessão da mesma Senhora peço, e da mesma presença de vossa divina e humana majestade, espero aquelas assistências de graça que para tão imenso assunto me é necessária: Ave Maria.

II

Sermão sem livro e sem história. Na observação final do Evangelho de S. João, a Águia dos evangelistas, a razão pela qual não existe o Livro dos milagres da Penha. Santo Agostinho, águia entre os doutores, nega-se a escrever o Livro dos Milagres.

Liber generationis Jesu Christi, Filii David, Filii Abraham (Mt. 1, 1). A pri­meira palavra que diz o evangelista, e a primeira coisa que me oferece o tema, é a primeira e a única que me falta neste dia: Liber, o livro. Quando esta sagrada religião me fez a honra de que subisse hoje a este lugar, quando me encomendou, ou man­dou, que tomasse por minha conta este sermão, como a matéria para todos é tão grande, e para mim, sobre tão grande, era tão nova, para ter, mais que por fama, as notícias e documentos do que havia de dizer deste santuário, pedi o livro da sua história e dos seus milagres. E que vos parece que me responderiam? Esperava eu que me dissessem que eram tantos os volumes, que faziam uma livraria inteira. Responderam-me que não havia livro. Não há livro da história e milagres de Nossa Senhora de Penha de França? Pois seja esta a matéria do sermão, já que me não dão outra. Assim o disse, assim o venho cumprir. Os outros sermões, estudam-se pelos livros: este será sermão sem livro, mas não sem estudo.

Se este caso sucedera em outra parte, pudera parecer descuido. Mas na reli­gião do pai dos patriarcas, Santo Agostinho, tão pontual, tão advertida, tão obser­vante, tão ordenada, que ela foi a que deu ordem e regras a todas ou quase todas as religiões do mundo, claro está que não foi descuido. Se sucedera em outra parte, pudera parecer menos devoção. Mas na religião do serafim da terra, Agostinho, que deixou por herança a seus filhos o coração abrasado que traz na mão, e entre o amor de Jesus e Maria, aquela piedosa indiferença: Quo me vertam, nescio,[4] claro está que não foi falta de devoção. Se sucedera em outra parte, pudera parecer menos suficiência. Mas na religião da Águia dos doutores, Agostinho, de cujas asas tirou a Igreja em todas as idades as mais bem cortadas penas, com que se ilustra, as mais delgadas, com que se apura, e as mais doutas e copiosas, com que se dilata, claro está que não é insuficiência. Pois se não é insuficiência, se não é indevoção, se não é descuido, por que razão não há livro da história e milagres de Penha de França, deste nome, deste templo, desta imagem, deste assombro do mundo, a que justa­mente podemos chamar o maior e mais público teatro da onipotência? Sabeis por quê? Porque do que não cabe em livros, não há livro.

Toma por empresa S. Mateus escrever a vida e ações de Cristo, e escreve o seu Evangelho. Segue o mesmo exemplo S. Marcos, e escreve o seu. Chegaram às mãos de S. Lucas estes dois evangelhos, e outros que naquele tempo saíram, que a Igreja não admitiu, e parecendo-lhe a S. Lucas que todos diziam pouco, resolve-se a fazer terceiro Evangelho, e começa assim, falando com Teófilo, a quem o dedicou: Quoniam multi conati sunt ordinare narrationem quae in nobis completae sunt rerum.[5] Como se dissera: Não vos espanteis, ó Teófilo, de que eu escreva Evangelho, de que eu escreva a história e maravilhas de Cristo, depois de o haverem feito quantos sabeis e tendes lido, porque todos esses que escreveram, ainda que tantos e tanto, não chegaram mais que a intentar: Quoniam multi conati sunt. Escreveu enfim o seu Evangelho S. Lucas. Chegam todos os três Evangelhos às mãos de S. João, e parecendo-Ihe, como verdadeiramente era, que lhes faltava muito por dizer, resolve o discípulo amado a escrever quarto Evangelho. Assim o fez, e assentou a pena S. João, porque esta foi a última obra sua, ainda depois do Apocalipse. Mas que vos parece que lhe sucederia a S. João com o seu Evangelho? Leu-o depois de o haver escrito, e sucedeu-lhe com o seu, o que tinha sucedido com os outros: pareceu-lhe que era muito pouco o que tinha dito, em comparação do infinito que lhe ficara por dizer. Torna a tomar a pena, e acrescenta no fim do seu Evangelho estas duas regras: Sunt et alia multa, quae fecit Jesus, quae si scribantur per singula, nec ipsum arbi­tror mundum capere posse eos, qui scribendi sunt libros (Jo. 21, 25): Saibam todos os que lerem este livro, que nele não estão escritas todas as obras e maravilhas de Cristo, nem a menor parte delas, porque se todas se houveram de escrever, nem em todo o mundo couberam todos os livros. – Pergunto agora: Em que disse mais S. João: nestas duas últimas regras, ou em todo o seu Evangelho? Parece a pergunta temerária. Ao menos nenhum expositor levantou até agora tal questão. Mas respon­de tácita e admiravelmente a ela aquele que entre todos os expositores, na minha opinião, é singular, o doutíssimo Maldonado: Quod dum dicit, et se excusat, et res Christi magis quodammodo, quam si eas perscripsisset, amplificat: Muito mais disse S. João só nestas duas regras últimas, do que disse em todo o livro do seu Evan­gelho, e do que dissera em muitos outros seus, se os escrevera. – Notável resolução! É possível que disse mais S. João nestas duas regras, que em todo o seu Evangelho e em um mundo inteiro de livros, quando os tivera escrito? Sim. Porque em todo esse Evangelho, e em todos esses livros, escrevera S. João as maravilhas de Cristo; nestas duas regras confessou que se não podiam escrever. E muito maior louvor e encarecimento é das coisas grandes confessar que se não podem escrever, que escre­vê-las. O que se escreve, ainda que seja muito, cabe na pena; o que se não pode escrever, é maior que tudo o que cabe nela. O que se escreve, tem número e fim; o que se não pode escrever, confessa-se por inumerável e infinito. Muito mais disse logo S. João no que não escreveu que no que escreveu. No que escreveu, disse muitas maravilhas de Cristo, mas não disse todas; no que não escreveu, disse todas, porque mostrou que eram tantas, que se não podiam escrever. No que escreveu, venceu aos três evangelistas, porque disse muito mais que todos eles; no que não escreveu, venceu-se a si mesmo, porque disse muito mais do que tinha escrito.

Daqui se entenderá uma dúvida do texto de Ezequiel, em que muitos têm reparado, mas a meu ver, ainda não está entendido. Viu Ezequiel aquele misterioso carro por que tiravam quatro animais: um homem, um leão, uma águia e um boi. Todos estes quatro animais tinham asas, mas a águia, diz o texto que voava sobre todos quatro: Desuper ipsorum quatuor (Ez. 1, 10). Dificultosa proposição! Se dis­sera que a águia voava sobre todos os outros três animais, claro estava, e assim havia de ser naturalmente, porque as asas nos outros eram postiças, e a águia nascera com elas. Vede vós agora um boi com asas, como havia de voar? Mas porque muitas vezes a águia e o boi andam no mesmo jugo, por isso o carro faz tão pouco caminho. As asas no leão e no homem ainda que vemos voar tanto a tantos homens, vêm a ser quase o mesmo. De maneira que voar a águia sobre os outros três animais, não é maravilha. Mas dizer o profeta que voava sobre todos quatro, sendo a águia um deles, como pode ser? A nossa razão nos descobriu este grande mistério. Estes ani­mais, como dizem conformemente todos os doutores, eram os quatro evangelistas; as asas eram as penas com que escreveram; a águia era S. João. E diz o profeta que a águia voava, não só sobre os outros três, senão sobre todos quatro: Desuper ipsorum quatuor, porque assim foi. Quando S. João escreveu o seu Evangelho, voou sobre os três evangelistas, porque disse muito mais que eles; mas quando no fim do seu Evangelho acrescentou aquelas duas regras em que disse que as maravilhas de Cristo não se podiam escrever, voou sobre todos quatro, porque voou sobre si mes­mo, e disse muito mais do que tinha dito. De maneira que muito mais voou aquela águia quando encolheu as penas que quando as estendeu. Quando estendeu as penas para escrever as coisas de Cristo, voou sobre os três evangelistas; quando encolheu as penas confessando que se não podiam escrever, voou sobre todos quatro, porque voou sobre si mesmo: Desuper ipsorum quatuor. Passemos agora de uma águia a outra águia, em sentido também literal, porque assim como S. João é a águia entre os evangelistas, assim Santo Agostinho é a águia entre os doutores.

Se as penas de Santo Agostinho se estenderam, se as penas de Santo Agosti­nho se aplicaram a escrever a História e milagres de Penha de França, muito disse­ram, como elas costumam. Mas encolhendo-se essas penas, e confessando que as maravilhas deste prodígio do mundo são tão grandes que se não podem escrever, não há dúvida que dizem muito mais: Dum se excusat, magis res Mariae, quam si eas perscripsisset, amplificat. Nas matérias grandes, o atrever-se a escrever, é en­grandecer a pena; não se atrever a escrever, é engrandecer a matéria. Se as penas da águia Agostinho se atreveram a uma empresa tão grande, como reduzir a escritura o número sem número das maravilhas desta Senhora, ficaram mui engrandecidas as penas; mas não se atrevendo a empreender tal assunto, e confessando-se desiguais para tão grande empresa, fica mais engrandecida a Senhora. Aquela mulher vestida do sol e coroada de estrelas, que viu S. João no Apocalipse, diz o texto que lhe deram as asas de uma águia grande para voar: Datae sunt mulieri alae duae aquilae magnae, ut volaret (Apc. 12, 14). Que mulher é a vestida de sol e coroada de estre­las, senão a Virgem Santíssima? E que asas são as da grande águia, senão as penas, os escritores de Santo Agostinho? Nas outras ocasiões dão-se a esta Senhora as penas daquela águia para voar muito; nesta ocasião negam-se-lhe as penas para voar mais. E assim é: muito mais voa a grandeza desta Senhora encolhendo-se estas pe­nas e não se atrevendo a escrever suas maravilhas, que se todas se empregaram a escrever: Quam si eas perscripsisset. Este foi o generoso pensamento e a discretíssima advertência com que se não escreveu Livro da História e Milagres de Penha de França, sendo mais eloqüente o silêncio do que a escritura em muitos livros.

III

Os milagres da Penha de França não hão mister livros para conservar-lhes a memória. A Penha de França e a penha de Israel no deserto. Quem não é sujeito às leis do tempo não há mister a fé das escrituras.

A razão por que não é necessário que haja livro, direi agora, e é tão clara e manifesta, que ela por si mesma se está inculcando. O fim para que os homens inventaram os livros foi para conservar a memória das coisas passadas contra a tirania do tempo e contra o esquecimento dos homens, que ainda é maior tirania. Por isso Gilberto chamou aos livros, reparadores da memória, e S. Máximo, medicina do esquecimento: Scriptura memoriae reparatrix est, oblivionis medicamentum.[6] E como os livros foram inventados para conservadores das coisas passadas, por isso os milagres de Penha de França não hão mister livros, porque são milagres que não passam, Esta é uma excelência com que a Virgem Maria quis singularizar os privilé­gios desta sua casa, sobre todas as que tem milagrosas no mundo, e sobre todas as que tem nesta cidade. Deixemos as do mundo, porque fora discurso mui dilatado. Vamos às de Lisboa. Foi milagrosa em Lisboa a Casa de Nossa Senhora da Nativida­de, mas passaram os milagres da Natividade. Foi milagrosa a Casa de Nossa Senho­ra do Amparo, mas passaram os milagres do Amparo. Foi milagrosa a Casa de Nos­sa Senhora do Desterro, mas passaram os milagres do Desterro. Foi milagrosa a Casa da Senhora da Luz, mas passaram os milagres da Luz. Só a casa de Nossa Senhora de Penha de França foi milagrosa e há de ser milagrosa, porque os seus milagres nunca passam, e as coisas que não passam nem acabam, as coisas que permanecem sempre, não hão mister livros, Duas leis fez Deus neste mundo: uma foi a lei de Moisés, outra a de Cristo. A lei de Moisés escreveu-se, que por isso se chama lei escrita; a lei de Cristo não se escreveu. E por quê? A lei de Cristo não é lei mais pura, não é lei mais santa, não é lei mais estimada e amada de Deus, que alei de Moisés? Sim. Pois se se escreve a lei de Moisés, a lei de Cristo, por que se não escreve? Porque alei de Moisés era lei que havia de passar; alei de Cristo era lei que havia de permanecer para sempre, e as coisas que passam, essas são as que se escre­vem; as que permanecem não hão mister que se escrevam. Escrevam-se os milagres da Natividade, escrevam-se os da Luz, escrevam-se os do Amparo e do Desterro, para que lhes não acabe o tempo as memórias, assim como os acabou a eles. Os milagres de Penha de França não hão mister a fé das escrituras, porque eles são a fé de si mesmos. Quem quiser saber os milagres de Penha de França, não é necessário que os vá ler no papel; venha-os ver com os olhos. Esta casa não é milagrosa por papéis; não é necessário que se passem certidões onde os milagres não passam. Os rios sempre estão a passar, e nunca passam. Assim são os milagres de Penha de França: um rio de milagres.

Quereis ver este rio e esta penha? Ponde-vos nos desertos do Egito com os filhos de Israel caminhando para a Terra de Promissão. Perecendo ali de sede aquele numeroso exército, mandou Deus a Moisés que dissesse a uma penha que desse água: Loquimini ad petram.[7] Excedeu Moisés o mandamento, deu com a vara na penha, mas pagou o excesso tão rigorosamente, que o castigou Deus com que não entrasse na Terra de Promissão. Para a penha socorrer milagrosamente a necessida­de do povo, basta dizer-lho: Loquere. Não quer Deus que se cuide que o milagre é de vara; quer que se saiba que o milagre e o benefício é da penha. E assim foi. Saiu a água milagrosa com tanta abundância e com tal continuação, que diz S. Paulo: Bibe­bant de consequente eos petra (I Cor. 10, 4): que bebiam da penha que os ia seguin­do. – E como os ia seguindo a penha? Não os seguia movendo-se do lugar onde estava; mas seguia-os com uni rio milagroso, que dela manava, e ia acompanhando o povo, e o sarava de todas as enfermidades: Non erat infirmus in tribubus eorum,[8] Na penha brotava a fonte perene, e da fonte manava perenemente o rio que corria e socorria a todos. E acrescentou logo S. Paulo que tudo isto era figura do que depois havia de suceder, e bem o vemos. Naquele altar está a Penha transplantada de França a Castela, e de Castela a Portugal; daquela Penha sai a fonte, que é a imagem mila­grosa da Virgem Maria, e daquela fonte nasce o rio de seus milagres e benefícios, que não parando nem podendo parar, corre perenemente e acode a todas as necessi­dades do mundo. Assim o disse S. João Damasceno falando desta Senhora: Petra, quae sitientibus vitam tribut: Penha que a todos os que têm sede, dá vida. Fons universo orbi medicinam afferens: Fonte que é medicina universal para todas as enfermidades do mundo. A mesma Senhora o tinha já dito e prometido de si no capítulo oitavo dos Provérbios: Qui me invenerit inveniet vitam, et hauriet salutem a Domino (Prov. 8, 36): Aquele que me buscar, achar-me-á, e aquele que me achar, achará a vida, e beberá a saúde. Não diz que receberá a saúde, senão que a beberá, porque beberá do rio dos milagres e da fonte da saúde, que sai desta penha.

Mas vejo que me dizem os mais versados nas Escrituras, que os milagres daquela antiga penha, não só se escreveram em um livro, senão em muitos, e pelas três penas mais ilustres de ambos os Testamentos: Moisés, Davi, S. Paulo. Pois assim como a história e milagres da penha de Israel se escreveram em tão multipli­cados livros, não seria justo também que se escrevesse a História e Milagres da Penha de França? Não. Pois que vai muito de penha a penha, de rio a rio, e de milagres a milagres. Ali a penha desfez-se, o rio secou-se e os milagres cessaram, e onde o tempo acaba as coisas, é bem que as perpetue a memória dos livros. Na nossa Penha de França, não passa assim. A penha é sempre a mesma, o rio sempre corre, os milagres nunca param, e milagres sobre que não tem jurisdição o tempo, não hão mister remédios contra o tempo: eles são a sua própria escritura, eles os anais, eles os diários de si mesmos,

Criou Deus, distinguiu e ornou esta formosa máquina do universo em espaço de sete dias. E é admirável a pontualidade e exação com que Moisés, dia por dia, escreveu as criaturas e obras de cada um: Divisit lucem a tenebris, et factum est dies unus. Fiat firmamentum in medio aquarum: et factum est dies secundus. Germinet terra herbam virentem: et factum est dies tertius.[9] E assim dos mais. De maneira que fez Moisés um diário exatíssimo de todas as obras da criação. As obras de conservação, isto é, da Providência, com que Deus conserva e governa o universo, em nada são inferiores às da criação, nem no poder, nem na sabedoria, nem na majestade e grandeza. Pois se Moisés escreveu as obras da criação, e compôs um diário tão diligente de todas elas, por que razão, nem ele, nem outro escritor sagrado escreveu as obras da conservação, havendo nestas tanto concurso de causas e tanta variedade de efeitos, tanta contrariedade com tanta harmonia, tanta mudança com tanta estabilidade, tanta confusão com tanta ordem, e tantas outras circunstâncias de sabedoria, de poder, de providência, tão novas e tão admiráveis? A razão é porque as obras da criação pararam e cessaram ao sétimo dia: Requievit die septimo, et cessavit ab universo opere, quod patrarat.[10] Pelo contrário, as obras da conserva­ção continuam sempre desde o princípio, continuam, e hão de continuar até o fim do mundo: Pater meus usque modo operatur, et ego operor.[11] E as obras que passaram e pararam, era bem que se escrevesse história e ainda diário delas, porém as obras que não acabam, que perseveram, que continuam, e se vão sucedendo sempre, não necessitam de história, nem de memória, nem de escritura, porque elas são uma perpétua história e um continuado diário de si mesmas. Que bem o disse Davi! Caeli enarrant gloriam Dei, et opera manuum ejus annuntiat firmamentum. Dies diei eructat verbum,[12] Essa revolução dos céus, esse curso dos planetas, essa ordem do firmamento, que outra coisa fazem continuamente, senão anunciar ao mundo as obras maravilhosas de Deus? E que coisa são os mesmos dias que se vão sucedendo, senão uns historiadores mudos e uns cronistas diligentíssimos dessas mesmas obras, que não por anais, senão por diários perpétuos as estão publicando? Dies diei eructat verbum. Tais são as maravilhas de Penha de França. Se passaram e cessaram, e houvera algum sábado, como aquele da criação, em que constasse que tinham para­do, então seria bem que se escrevessem; mas como não param, nem cessam, como aqui se vê e consta todos os sábados, em que se resumem os milagres daquela sema­na, não é necessário que se escrevam, nem se historiem, porque a sua história é a mesma continuação, e os seus diários os mesmos dias. Dies diei eructat verbum: os milagres de hoje são o instrumento autêntico dos milagres de ontem, e os milagres de amanhã dos milagres de hoje; e assim como se vão sucedendo os dias, se vão também testemunhando uns aos outros, lendo a vista, sem escritura, o que na escri­tura havia de crer a memória. Os gregos, em um dos seus hinos, com elogio singular chamaram à Virgem Maria, diário da divina Onipotência: Diarium unicum Domini creaturas; Diário único do Senhor das criaturas. [13] Mas em nenhum lugar, em ne­nhum trono de quantos esta Senhora tem no mundo, se pode insculpir com mais razão este título, que no pé daquela Penha. Diário, porque as suas maravilhas são de cada dia; único, porque só nelas não tem jurisdição o tempo.

Qual vos parece que é o maior milagre de Penha de França? É não ter jurisdição o tempo sobre os seus milagres. Não há poder maior no mundo que o do tempo: tudo sujeita, tudo muda, tudo acaba. Não só tem poder o tempo sobre a natureza, mas até sobre as coisas sobrenaturais tem poder, que é o que mais me admira. Os milagres são coisas sobrenaturais, e não lhes vale o ser superiores à natureza para não serem sujeitos ao tempo. Grandes milagres foram os da serpente do deserto: todos os enfermos, de qualquer enfer­midade, que olhavam para ela, saravam logo. Andou o tempo, e acabaram os milagres e mais a serpente. Grandes milagres foram os da vara de Moisés: ela foi o instrumento com que se obraram todos os prodígios do Egito contra Faraó. Andou o tempo, e acabaram os milagres e mais a vara. Grandes foram os milagres da capa de Elias: em virtude dela, sustentava Eliseu os vivos, sarava os enfermos e ressuscitava os mortos. Andou o tempo, e acabaram os milagres e mais a capa. Grandes milagres foram os da Arca do Testamento: diante dela tomavam atrás os rios, caíamos muros, despedaçavam-se os ídolos e morriam subitamente os que se lhe atreviam. Andou o tempo, e acabaram os milagres e mais a Arca. Finalmente, foram grandes, e maiores que grandes, os milagres da primitiva Igreja, em que todos os que se batizavam falavam todas as línguas, curavam de todas as enfermi­dades, lançavam os demônios, domavam as serpentes e bebiam sem lesão os venenos. Passou o tempo, cresceu a Igreja, e como já não eram necessários para fundar a fé, cessa­ram aqueles milagres. De sorte que sobre todos os milagres teve jurisdição o tempo. E que só sobre os milagres de Penha de França não tenha jurisdição? Grande milagre! Os outros acabam com o tempo; os milagres de Penha de França crescem com o tempo. O maior encarecimento do tempo, é que tem poder até sobre as penhas; o maior louvor daquela Penha é que tem poder até sobre o tempo. E se os livros são remédio contra o tempo, quem não é sujeito às leis do tempo não há mister livros.

§ IV

Quais os livros da História e Milagres da Penha de França? O primeiro é o Evangelho do dia. Significação mística e historial da genealogia da Virgem. Signi­ficação mística das gerações da Senhora.

Estas são as razões que se me ofereceram de não haver livro da história e milagres de Nossa Senhora da Penha de França, e de não ser necessário que o houvesse, suposta a resposta que me deram de que o não havia. Mas com licença vossa, e de todos, eu não o suponho nem o entendo assim, senão muito pelo contrário. Digo que não só há livro, senão livros da história e milagres desta casa. E qual é o livro, e quais são os livros? Agora o ouvireis: dai-me atenção. O primeiro livro de Penha de França é o Evangelho que ali se leu: Liber generationis Jesu Christi, Filii David, Filii Abraham (Mt. 1, 1). Pois o livro da geração de Jesus Cristo, Filho de Davi e Filho de Abraão, é o livro da história e milagres de Penha de França? Sim. Todo este Evangelho de S. Mateus, desde a primeira até a última palavra, está cheio daquela variedade e multidão de nomes que ouvistes: Abraão, Isac, Jacó, Jessé, Davi, Salomão, etc. Comentando estes nomes, diz S. João Crisóstomo estas palavras: Causa quidem, et ratione, providentiaque Dei, posita sunt haec nomina; qua autem causa et ratione posita sint, vere ipsi scierunt qui posuerunt, et Deus cujus providentia ponebantur. Nos vero, quid intelligere possumus in nominibus ipsis, hoc lo­quimur: Todos aqueles nomes foram escritos neste Evangelho com grande causa e grande mistério; mas qual seja a causa e qual o mistério, só o sabem aqueles que os escreveram, e Deus, por cuja providência foram mandados escrever. Nós os interpretamos conforme o que podemos entender. – Isto diz S. João Crisóstomo, e o mesmo diz Santo Anselmo e outros Padres. De maneira que cada nome deste Evangelho tem duas significações: uma historial e outra mística, A significação historial significa pessoas; a significação mística significa coisas. As pessoas que se significam na significação historial são os progenitores da Virgem Maria; as coisas que se significam na significação mística, são as graças da mesma Senhora. Os progenitores dizem o que a Senhora recebeu dos homens, que é o sangue e nobreza dos patriarcas; as graças dizem o que os homens recebem da Senhora, que são os favores e benefícios com que enche a todo o gênero humano. De sorte que ditou o Espírito Santo este primeiro capítulo de S. Mateus com tal mistério e artifício, que lido por fora, quanto aos nomes, é livro de gerações de pais e avós: Liber generationis; construído por dentro, quanto às significações, é livro de graças, de favores, de benefícios, de remédios.

Admiravelmente o disse a mesma Senhora naquelas palavras do Eclesiástico que a Igreja lhe aplica: In me est omnis gratia viae et virtutis; transite ad me omnes qui concupiscitis me, et a generationibus meis implemini (Eclo. 24, 26): Em mim há todas as graças e todas as virtudes; vinde a mim todos os que as desejais, e encher-vos-ei de minhas gerações. Notáveis palavras, e muito mais notável a conseqüência delas! Em mim há todas as graças: vinde a mim, e encher-vos-ei de minhas gera­ções! Que conseqüência é esta? Muito grande à vista desse livro. Diz que se encham de suas gerações todos os que desejam suas graças, porque as suas graças estão depositadas dentro das suas gerações. As gerações da Senhora são todos os seus progenitores, que se contam neste livro: Liber generationis (Mt.1, 2). Abraão é uma geração: Abraham genuit Isaac; Isac é outra geração: ¡sac genuit Jacob, e assim dos mais. E como debaixo de cada geração destas, e de cada nome destes progenitores se contém uma particular graça e uma particular virtude com que a mesma Senhora nos socorre e remedeia, por isso diz altissimamente que todos os que desejam suas gra­ças se venham encher de suas gerações: In me est omnis gratia; venite ad me, et a generationibus meis implemini. A glosa interlineal explicou o modo como isto é, com uma comparação de grande propriedade: Hic liber est apotheca gratiarum, in quo omnis anima, quidquid necesse habet, inveniet: Sabeis como é este livro, diz a glosa; é como uma botica de remédios sobrenaturais, onde todos os homens acham tudo o de que têm necessidade para seus males. [14] A comparação pudera ser mais levantada, mas não pode ser mais própria. Que é o que tem uma botica por fora e por dentro? Por fora não aparecem mais que uns títulos de nomes gregos e arábicos; e por dentro, debaixo deles, estão os remédios, com que se curam todas as enfermida­des. O mesmo passa neste Liber generationis de S. Mateus. Por fora não se vê mais que estes nomes de patriarcas, uns hebraicos, outros siríacos; mas por dentro, debai­xo deles, está a sua significação, que contém os remédios miraculosos com que a Senhora acode a todos os males do gênero humano. Ora, ide comigo, e vereis toda a história e milagres de Penha de França escritos neste livro.

Caístes enfermo em uma cama, experimentastes os remédios da arte sem provei­to, socorrestes-vos à Virgem de Penha de França, fizestes-lhe um voto, e no mesmo ponto vos achastes com perfeita saúde? Que foi isto? Foi milagre daquela Senhora. Lede-o no livro de seus milagres: Genuit Josiam. Josias, id est, salus Domini: Saúde de Deus (Mt. 1, 10). – Foi a enfermidade que padecestes mortal; desconfiaram-vos os médicos; recebestes os últimos sacramentos; não fizestes vós oração à Virgem de Pe­nha de França, porque já não podíeis, mas fizeram-na os que vos assistiam e vos sus­tentavam a candeia na mão; subitamente melhorastes, tornastes da morte à vida, e pendurastes ali a vossa mortalha. Que foi isto? Foi milagre daquela Senhora. Lede-o no livro dos seus milagres: Genuit Eliacim. Eliacim, id est, Dei ressurrectio (Mt. 1, 13): Ressurreição obrada por Deus. – Estáveis todo entrevado, com os membros tolhidos e entorpecidos, não vos podíeis mover, nem dar um passo; mandastes-vos trazer em ombros alheios a esta casa. Pedistes com grande confiança à Virgem de Penha de Fran­ça, que usasse convosco de suas misericórdias: no mesmo ponto tomastes para vossa casa por vossos pés, e pendurastes em memória as vossas muletas. Que foi isto? Foi milagre daquela Senhora. Lede-o escrito no livro: Genuit Ezechiam. Ezechias, id est, confortatio Domini (Mt. 1, 9): Confortação do Senhor. – Fez-vos Deus mercê de vos dar abundância de bens com que sustentar uma casa muito honrada, mas não vos deu filhos com que a perpetuar. Viestes a Nossa Senhora de Penha de França, fizestes uma novena, e acabados os nove dias de vossa devoção, não tardaram os nove meses que não tivésseis sucessor para vossa casa. Que foi isto? Foi milagre daquela Senhora. Lede-o escrito no livro: Filii Abraham; Abraham, id est, pater multarum gentium (Mt. 1, 1): Pai de muita descendência. – Havendo muitos anos que sendo casada, vivíeis como viúva, e vossos filhos como órfãos, porque o pai fez uma viagem para as con­quistas, e nunca mais houve novas dele. Tomastes por devoção vir aos sábados à Penha de França, ou rezar o rosário em vossa casa (que às vezes é a devoção mais segura); e quando menos o esperáveis, vedes entrar o pai dos vossos órfãos pela porta dentro. Que foi isto? Milagre daquela Senhora. Lede-o escrito no livro: Genuit Abiam, Abias, id est, pater veniens hic (Mt. 1, 7): este é o pai que veio. – Caístes em pobreza, vistes-vos com trabalhos e misérias, e com a casa cheia de obrigações e de bocas a que matar a fome; não houve diligência que não fizésseis, não houve indústria que não experi­mentásseis, todas sem proveito. Acolhestes-vos por última esperança à sombra desta casa, que cobre e sustenta a tantos pobres, e sem saber donde, nem por onde, achastes-vos com remédio e com descanso. Que foi isto? Milagre daquela Senhora. Lede-o escrito no livro: Genuit Naasson. Naasson, refectio et requies Domini (Mt, 1, 4): Re­feição e descanso dado por Deus. Fostes tão desgraçado que vos foi necessário pleitear para viver; quiseram-vos tirar a vossa fazenda com demandas, com calúnias, com fal­sos testemunhos e violências; andastes tantos anos arrastado por tribunais, cada vez a vossa justiça mais escura e vós mais desesperado; apelastes finalmente para o tribunal de Penha de França, e fez-vos Deus a justiça que nos homens não acháveis. Que foi isto? Foi milagre daquela Senhora. Lede-o escrito no livro: Genuit Josaphat, id est, Deus judex (Mt. 1, 8): Deus feito juiz por vós, – Éreis um moço louco e cego; andáveis enredado nos labirintos do amor profano, que vos prendiam o alvedrio, que vos des­truíam a vida e vos levavam ao inferno. Vivíeis sem lembrança da morte, nem da honra, nem da salvação. Oh! valha-me Deus! Quantos milagres eram necessários para vos arrancar daquele miserável estado? Era necessário apartar, porque a ocasião era próxima; era necessário esquecer, porque a lembrança era contínua, era necessário ver, porque os olhos estavam cegos; era necessário aborrecer, porque o apetite estava entre­gue; era necessário confessar, porque a consciência estava perdida; era necessário per­severar, por que a recaída não fosse mais arriscada. Todos estes milagres havíeis mister, que todos são necessários a quem vive em semelhante estado, e por isso saem dele tão poucos. Enfim, fizestes-vos devoto da Virgem de Penha de França, oferecestes-lhe um coração todo de cera e todo de mármore, que tal era o vosso: de mármore para com Deus, de cera para com o mundo. E quando vós mesmo cuidáveis que seria impossível haver nunca mudança em vós, achastes que o mármore se abrandou, que a cera se endureceu, e que o vosso coração se trocou totalmente. Que foi isto? Foram milagres daquela Senhora. Lede-os todos no livro de seus milagres. – Era necessário apartar? Genuit Phares. Phares, id est, divisio: apartamento. Era necessário esquecer? Genuit Manassem. Manasses, id est, oblivio: esquecimento. Era necessário ver: Genuit Obet ex Ruth. Ruth, id est, videns: o que vê. Era necessário aborrecer? Genuit Zaram de Thamar. Thamar, id est, amaritudo: aborrecimento. Era necessário confessar? Genuit Judam. Judas, id est, confessio: confissão. Era necessário perseverar? Genuit Achas. Achas, id est, firmamentum Domini: Firmeza dada por Deus.

Finalmente todos os milagres que a Senhora faz, que são todos os que pede a necessidade e o desejo, todos estão escritos naquele seu livro. Andáveis afligido e angustiado: acudistes à Virgem de Penha de França, e achastes refrigério e alívio? Jess: refrigerium. Andáveis triste e desconsolado, pusestes o vosso coração nas mãos da Virgem de Penha de França, e tornastes com consolação e alegria? Isaac: risus: Andáveis confuso, sem vos saber resolver, recorrestes à Virgem de Penha de França, e livrou-vos da confusão? Zorobabel: alienus a confusione. Andáveis em guerra e dissensões, tomastes por medianeira a Virgem de Penha de França, e pôs-vos em paz? Salomon: pacificus. Tínheis inimigos, e não sabíeis de quem vos ha­víeis de guardar; tomastes uma carta de seguro da devoção da Virgem de Penha de França, e prevenistes todos os perigos? Hefron: jaculum videns. Sois tentado, cha­mastes pela Virgem de Penha de França em vossas tentações, e deu-vos fortaleza para lutar animosamente contra o demônio? Jacob: luctator. Sois soldado, pedistes socorro à Virgem de Penha de França no conflito, e deu-vos valor com que vencer ao inimigo? Booz: praevalens. Sois conselheiro, recorrestes à Virgem de Penha de França, e deu-vos luz e prudência para acertar? Salmon: omnia discernis. Sois mer­cador, encomendastes as vossas encomendas à Virgem de Penha de França, e rece­bestes em torno com grandes aumentos? Joseph: augmentum. Sois mareante, cha­mastes pela Virgem de Penha de França nas tempestades, e reconheceram as ondas a virtude daquele sagrado nome? Maria: domina maris. Enfim, que o primeiro livro da História e Milagres de Nossa Senhora de Penha de França é o nosso Evangelho: Liber generationis.

§V

O segundo livro da História e Milagres da Penha de França: o Santíssimo - Sacramento do altar. O livro e o Sacramento. O livro misterioso do profeta Eze­quiel, e o memorial de que fala o profeta Davi. A Casa de Penha de França, Sacra­mento com as cortinas corridas.

O segundo livro desta história e milagres, qual vos parece que será? Também o não havemos de ir buscar fora de casa. É o Santíssimo Sacramento do altar. Bem dizia eu logo que os milagres desta casa não só têm livro, senão livros. Apareceu ao profeta Ezequiel um braço com um livro na mão, e disse-lhe uma voz: Comede volumen istud (Ez. 3, 1): Ezequiel, come este livro. – Abriu a boca Ezequiel, comeu o livro, e sucedeu-lhe uma coisa notável. Porque quando o tomou na boca sentiu um sabor; depois que o levou para baixo, experimentou outro. Admirável livro! Admi­rável manjar, que nem parece manjar, nem livro! Livro não, porque os livros não se comem, e este comia-se. Manjar não, porque o manjar tem um só sabor, e este na boca; e este tinha dois sabores: um exterior, quando se tomou na boca, e outro interior, quando se passou ao peito. Pois manjar que tem dois sabores, manjar que se come com a boca e com o coração, manjar que sabe de uma maneira aos sentidos, e de outra ao interior da alma, que manjar é, nem pode ser este, senão o Santíssimo Sacramento? Por isso o profeta, quando lhe disseram que o comesse, não o comeu, comungou; não o tomou primeiro com a mão, como se faz ao que se come, mas abriu a boca com grande reverência, e recebeu-o. A cerimônia, o modo e os efeitos, tudo é de sacramento; não se pode negar. Mas a figura não o parece: Comede volu­men istud. Que tem que ver o livro com o Sacramento? Agora o vereis. O livro é a mais perfeita imagem de seu autor, tão perfeita, que não se distingue dele, nem tem outro nome; o livro, visto por fora, não mostra nada; por dentro está cheio de misté­rios; o livro, se se imprimem muitos volumes, tanto tem um como todos, e não tem mais todos que um; o livro está juntamente em Roma, na Índia e em Lisboa, e é o mesmo; o livro, sendo o mesmo para todos, uns percebem dele muito, outros pouco, outros nada; cada um conforme a sua capacidade: o livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive, e não tendo ação em si mesmo, move os ânimos e causa grandes efeitos. Quem há que não reconheça em todas estas propriedades o Santíssimo Sacramento do altar? Livro é, e livro com grande propriedade: Comede volumen istud.

Mas de que matéria trata este livro? Disse o profeta Davi bem claramente: Memoriam fecit mirabilium suorum, misericors et miserator Dominus: estam dedit timentibus se, [15] Sabeis que o livro é este soberano manjar que Deus dá aos que o temem? É o livro das memórias dos milagres da misericórdia de Deus. E quais são os milagres da misericór­dia de Deus, pergunto eu agora, senão os que se obram nesta casa? Que lugar há no mundo, onde Deus se mostre mais misericordioso, e onde sua misericórdia seja mais milagrosa que neste? Ali estão os milagres e as misericórdias fechadas; aqui estão os milagres e as misericórdias patentes. Que cuidais que é a Casa de Penha de França com as suas maravilhas? É o Sacramento com as cortinas corridas. Se Deus correra as cortinas àquele mistério, e nos abrira aquele livro divino, havíamos de ler ali o que aqui vemos. Ali estão os milagres de Penha de França encobertos; aqui estão os milagres do Sacramento desencerrados. Ali as paredes cobrem os milagres; aqui os milagres cobrem as paredes. Os milagres e inscrições de que estas paredes ordinariamente estão armadas, que imaginais que são? São as folhas daquele livro desencadernadas. Viu S. João no Apocalipse um livro, que não se achou nunca quem o pudesse abrir no mundo, até que o abriu Cristo (Ape. 5, 1). Assim esteve fechado tantos centos de anos aquele livro do Diviníssimo Sacramento, até que o abriu a Virgem de Penha de França. O que ali se lê, é o que aqui se vê; o que ali cremos, é o que aqui experimentamos. Nas outras igrejas, é o Sacramento mistério da fé: aqui é desengano dos sentidos. Se os sentidos aqui vêem tantos milagres, que muito é que a fé creia ali tantos milagres? Cante-se nas outras igrejas: Praestet files supplementum sensuum defectui: Supra a fé o defeito dos sentidos. Em Penha de França, cante-se ao contrário: Praestet sensus supplementum fidei defectui: supram os sentidos o defeito da fé, – se porventura o houvesse. Se os sentidos vêem os milagres, por que os há de duvidar a fé, e ainda a infidelidade?

O milagre em que mais tropeça e embaraça a infidelidade no Divino Sacramento é, sendo Cristo um, estar em tão diferentes lugares. E quantos olhos há no mundo que podem testemunhar de vista este milagre na Senhora de Penha de França? Vedes entrar por aquela porta um homem carregado de grilhões e de cadeias, e levá-las ao pé daquele altar, e se lhe perguntais a causa, diz que estando nas masmorras de Argel ou Tetuão, lhe apareceu aquela mesma Senhora de Penha de França, a que se encomendava, e que em sinal da liberdade que lhe deu, lhe vem oferecer as mesmas cadeias. Vereis entrar por aquela porta o indiático, e oferecer ricos ornamentos a este templo, porque pelejando na Índia contra os aquéns, ou contra os rumes, invocou a Virgem de Penha de França, que sendo vista diante do nosso exército pelos mesmos inimigos, as suas balas nos caíam aos pés, e as suas setas se convertiam contra eles. Vereis entrar por aquela porta uma procissão de homens descalços, com aspecto mais de ressuscitados que de vivos, e dir-vos-ão que se vêm prostrar por terra diante daquela Senhora, porque vendo-se comidos do mar, chamaram pela Virgem de Penha de França, e logo a viram no ar entre as suas antenas, e cessou num momento a tempestade. De maneira que a Senhora de Penha de França, como se debaixo dos aciden­tes deste glorioso nome se sacramentara também por amor de nós, sendo uma só, está em Lisboa, está em Argel, está na Índia, está em todas as partes do mar e da terra onde a invocamos. Vem-me ao pensamento neste passo que as palavras da invocação, ou têm ou participam a mesma virtude das palavras da consagração. A virtude das palavras da con­sagração é tão poderosa, que em se pronunciando as palavras, logo Cristo ali está presente. Tal é a virtude das palavras da invocação. Ouvi a Isaías: Invocabis, et Dominus exaudiet; clamabis, et dicet: Ecce adsum (Is, 58, 9): Invocar-me-eis, e chamareis por mim, e no mesmo ponto serei presente. – Assim o faz a Virgem piedosíssima a todos os que a invo­cam em todas as partes do mundo. Cristo presente em toda a parte pelas palavras com que o sacerdote consagra a hóstia; Maria presente em toda a parte pelas palavras com que o necessitado a invoca. S. Gregório Taumaturgo chamou a esta Senhora: Omnium miracu­lorum officina: Oficina de todos os milagres. – E como estes dois livros de milagres foram impressos na mesma oficina, não é muito que sejam semelhantes nos mesmos caracteres. Só com esta diferença, por não dizer vantagem, que no Sacramento está a oficina e o livro cerrado; em Penha de França está a oficina e o livro aberto, excedendo nesta parte ao Livro Gerado, o Livro da Geração: Liber generationis.

§ VI

As enfermidades espirituais: os mancos de Elias, os cegos de Isaías, os sur­dos de Davi e os mortos do Apocalipse e de S. Mateus. O sepulcro de Cristo e a Penha de França.

Ora, senhores, já que estamos na casa dos milagres, e no dia em que a Senhora de Penha de França deve estar mais liberal que nunca de seus favores e misericórdias, o que importa, e o que Deus e a mesma Senhora quer, é que nenhum de nós hoje se vá desta igreja sem o seu milagre. Nenhum de nós há tão perfeitamente são que não tenha alguma enfermidade, e muitas de que sarar. Quantos estão hoje nesta igreja mancos e aleijados? Quantos cegos, quantos surdos, quantos entrevados, e o pior de tudo, quantos mortos? Quereis saber quem são os mancos? Ouvi a Elias: Usquequo claudicatis in duas partes (3 Rs. 18, 21)? Até quando, povo errado, hás de manquejar para duas partes, – adorando juntamente a Deus e mais a Baal. Quantos há debaixo do nome de cristãos, que dobram um joelho a Deus e outro ao ídolo? Perguntai-o a vossas torpes adorações. Os que fazem isto são os mancos. Quereis saber quais são os cegos? Não são aqueles que não vêem: são aqueles que vendo, e tendo os olhos abertos, obram como se não viram: Excaeca cor populi hujus, diz Isaías, ut videntes non videant.  [16] Vemos que todo este mundo é vaidade, que a vida é um sonho, que tudo passa, que tudo acaba, e que nós havemos de acabar primeiro que tudo, e vivemos como se fôramos imortais ou não houvera etemidade. Que­reis saber quem são os surdos? São aqueles de quem disse Davi: Aures habent, et non audient: Terão ouvidos, e não ouvirão (SI, 113, 6). Não ouvir por não ter ouvidos, não é grande miséria; mas ter ouvidos para não ouvir, é a maior enfermidade de todas. Nenhuma coisa me desconsola e está desconsolando tanto, como ver-me ouvir. O que vai ao enten­dimento, ouvi-lo com grande atenção e satisfação, e com maior aplauso do que merece; o que vai à vontade, e mais importa, ou não lhe dais ouvidos, ou vos não soa bem neles. Quanto temo que é evidente sinal da reprovação! Propterea vos non auditis, quia ex Deo non estis, [17] Estes são os surdos. Quereis finalmente saber quem são os mortos? São aqueles de quem disse S. João: Nomen habes, quod vivus, et mortuus es» [18] e aqueles de quem disse Cristo: Sinite mortuos sepelire mortuos suos [19] Os mortos são todos aqueles que estão em pecado mortal. Haverá algum morto, ou alguma morta nesta igreja? Ainda mal, porque tantos e tantas. Vede quanto pior morte é o pecado que a mesma morte. Os homens, temos três vidas: vida corporal, vida espiritual, vida eterna. A morte tira somente  a vida corporal; o pecado tira a vida eterna e também tira a corporal, porque do pecado nasceu a morte: Per peccatwn, mors (Rom. 5, 12). Todas as mortes, quantas há, quantas houve e quantas há de haver, foram causadas de um só pecado de Adão, e não bastando todas para o pagar, foi necessário que o mesmo Deus morresse para satisfazer por ele. A morte mata o corpo, que é mortal; o pecado mata a alma, que é imortal, e morte que mata o imortal, vede que morte será! Os estragos que faz a morte no corpo, consome-os em poucos dias a terra; os estragos que faz o pecado na alma, não basta uma eternidade para os consumir no fogo. E sendo sobre todo o excesso de comparação tanto mais para temer a morte da alma que a morte do corpo, e tendo mais para amar e para estimar a vida espiritual e eterna, que a vida temporal, em que fé, e em que juízo cabe, que pela vida e saúde do corpo se façam tão extraordinários extremos, e que da vida e saúde da alma se faça tão pouco caso?

Verdadeiramente, senhores, que quando considero no que aqui estamos vendo, não há coisa para mim no mundo tão temerosa, como o mesmo concurso e devoção desta casa, e ainda os mesmos milagres dela. Oh! se ouvíramos os brados que nos estão dando à consciência estas paredes! Queixam-se de nós com Deus, e queixam-se de nós conosco; e cada voto, cada milagre dos que aqui se vêem pendurados, é um brado, é um pregão do céu contra o nosso descuido. É possível (estão bradando estas paredes) é possível que faz tantos milagre Deus por nos dar a saúde e vida temporal, e que os homens não queiram fazer o que Deus lhes manda, sendo tão fácil, para alcançar a saúde espiritual e a vida eterna? É possível que esteja Deus empenhando toda a sua onipotência em vos dar a vida do corpo, e vós que estejais empregando todas as vossas potências em perder a vida da alma? Dizei-me em que empregais a vossa memória? Em que empregais o vosso entendi­mento? Em que empregais a vossa vontade, e todos os vossos sentidos, senão em coisas que vos apartam da salvação? É possível (tornam a bradar contra nós estas paredes, e a argumentar-nos a nós conosco mesmos) é possível que havemos de fazer tanto pela saúde e pela vida temporal, e que pela saúde da alma e pela vida eterna não queremos fazer coisa alguma? Se adoeceis, se estais em perigo, tanto acudir àqueles altares, tantos votos, tantas missas, tantas romarias, tantas novenas, tantas promessas, tantas ofertas: gaste-se o que se gastar, perca-se o que se perder, empenhe-se o que se empenhar; e pela saúde da alma, pela vida eterna, como se tal coisa não houvera, nem se crera? Vede o que diz Santo Agostinho: Si tantum, ut aliquanto plus vivatur quanto magis, ut sempre vivatur? Se tanto se faz para viver um pouco mais, quanto mais se deve fazer para viver sempre? – Pois desenganai-vos, que por mais que não façais caso da outra vida, ela há de durar eternamente, e por mais que façais tanto caso desta vida, ela há de acabar e em mui poucos dias. Uma vez escapareis da morte, e pendurareis a mortalha em Penha de França; mas alfim, há de vir dia em que a morte vos não há de perdoar, e em que vós não pendurareis a mortalha, mas ela vos leve à sepultura. Lázaro ressuscitou uma vez, valeu-lhe Maria, mas depois morreu alfim como os demais.

O que importa é tratar daquela vida que há de durar para sempre, e procurar sarar a alma, se está enferma, e sobretudo, ressuscitá-la, se está morta. Cristo, para ressuscitar, escolheu uma sepultura aberta em uma penha: In monumento, quod erat excisum in petra (Mac. 15, 46), e ressuscitou ao terceiro dia. Tudo aqui temos: a penha, os três dias, e o ressuscitador: Ego sum ressurrectio et vita. [20] Já que a alma está morta, sepulte-se naquela penha para que ressuscite. Ó alma infelizmente morta e felizmente sepultada: se ali sepultares de uma vez e para sempre tudo o que te mata! Tu ressuscitarás, e ressuscitarás, se quiseres, neste mesmo momento. Que felicidade a nossa, e que glória daquela Senhora e de seu sacramentado Filho, se todos os que hoje entraram em Penha de França mortos, saíssem ressuscitados! Não ama ao Filho, nem é verdadeiro devoto da Mãe, quem assim o não fizer. Não guar­demos o ressuscitar para o terceiro dia, nem para o segundo, que não sabemos o dia nem a hora. Cristo ressuscitou ao terceiro dia, para provar a verdade da sua morte; os mortos que então ressuscitaram, ressuscitaram logo, e no primeiro momento dos três dias, para provar a eficácia da virtude de Cristo. Não é esta a matéria em que se hajam de perder  momentos, porque pode ser que seja esta a última inspiração, e este aquele último momento de que pende a eternidade. Ouçam estas vozes do céu os que hoje aqui vieram surdos; abram os olhos e vejam seu perigo, os que vieram cegos; tornem por outro caminho e com outros passos, os que vieram mancos, e todos levem vivas e ressuscitadas as almas que trouxeram mortas, deixando em Penha de França, por memória deste dia, cada um a sua mortalha. Estes são os mais gloriosos troféus com que se podem ornar estas miraculosas paredes. E este o FINIS de maior louvor de Deus e de sua Mãe, com que devemos cerrar um e outro livro, pois é o fim que só nos há de levar à vida sem fim.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Livro da geração de Jesus Cristo, Filho de Davi, Filho de Abraão (Mt. 1, 1).

[2] Jó. 33, 38.

[3] Ez. 17,3. Prado. Corn. Et alii ibi.

[4] Não sei para que lado voltar-me

[5] Pois que foram na verdade muitos os que empreenderam pôr em ordem a narração das coisas que entre nós se viram cumpridas (Le. I, I).

[6] « Gilb. serm. 47 in Cant. S. Maxim. in praef. ad Mistagog. Ecclesiast.

[7] Falai à pedra (Núm. 2O, 8).

[8] Não havia enfermo nas tribos deles (SI. 104, 37).

[9] (9) E dividiu a luz das trevas, e se fez o dia primeiro. Faça-se o firmamento no meio das águas, e se fez o dia segundo. Produza a terra erva verde, e se fez o dia terceiro (Gên. 1, 4.5. 6, 8.11. 13).

[10] Descansou no dia sétimo de toda a obra que fizera (Gên. 2, 3).

[11] Meu Pai até agora não cessa de obrar, e eu obro também (Jo. 5, 17).

[12] Os céus publicam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia diz uma palavra a outro dia (SI. 18, Is).

[13] Apud Theophilum Ray

[14] A Glosa Interlineal, de Anselme de Laen, um dos mais célebres glosadores latinos, morto em 1117, tem esse nome por ter o autor explicado entre as linhas da Vulgata, as palavras mais ou menos obscuras ou equívocas das Escrituras Sagradas

[15] Deixou memória das suas maravilhas o Senhor, que é misericordioso e compassivo. Deu sustento aos que o temem (SI. 110, 4 s).

[16] Obceca o coração deste povo, para que não suceda que veja com seus olhos (Is. 6, 10

[17] Por isso vós não as ouvis, porque não sois de Deus (Jo. 8, 47).

[18] Tens a reputação de que vives, e tu estás morto (Apc. 3, 1).

[19] Deixa que os mortos sepultem os seus mortos (Mt. 8, 22).

[20] Eu sou a ressurreição e a vida (Jo. 11, 25).