Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão do Sábado Quarto da Quaresma, do Padre António Vieira


Edição de referência:

Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO NO SÁBADO QUARTO DA QUARESMA
EM LISBOA. ANO DE 1652

Hoc autem dicebant tentantes eum, ut possent accusare eum. [1]

I

Cristo tentado pelos homens no caso da mulher adúltera.

Outra vez – quem tal imaginara? – outra vez tentado a Cristo. Não há que fiar em vitórias. A mais estabelecida paz é trégua. Quando cessam batalhas, então se fabricam as máquinas. A máquina da tentação que hoje temos, é admirável juntamente, e formi­dável, e não foi o maquinador nem o tentador o demônio: foram os homens. Destes tentadores e destas tentações hei de tratar. Ouçamos primeiro o caso.

Tal dia, ou tal noite, como a deste dia, diz S. João que foi Cristo orar no Monte Olivete. Sabia que havia de ser tentado; foi-se armar para a batalha com a oração. Em Cristo foi exemplo; em nós é necessidade. Não tem armas a fraqueza humana, se as não pede a Deus. Até aqui não houve perigo. Do monte, e muito de madrugada, veio o Senhor ao Templo a pregar, como costumava. E diz o evangelista que concor­reu todo o povo a ouvi-lo: Et omnis populus venit ad eum (Jo. 8, 2). Tanto concurso, pregador divino? Já temo que vos hão de tentar. Veio o povo todo àquela hora, porque os que não são povo não madrugam tanto: põe-se-lhes o sol à meia-noite, e amanhece-lhes ao meio-dia. Estava o Senhor ensinando, diz o texto, quando chega­ram os escribas e fariseus a perguntar um caso. Traziam uma pobre mulher atada, e disseram assim: Magister, haec mulier modo deprehensa est in adulterio (Jo. 8, 4): Esta mulher nesta mesma hora foi achada em adultério. Esta mulher? E o cúmplice? Foram dois os pecadores, e é uma só a culpada? Sempre a justiça é zelosa contra os que podem menos. Moisés, dizem, manda na lei que os que cometerem adultério sejam apedrejados; e vós Mestre, que dizeis? Os escribas e fariseus eram os douto­res daquele tempo. Bem me parecia a mim, que quando os doutos e presumidos perguntam, não é para saber, senão para tentar. Assim o diz o evangelista nas pala­vras que propus: Hoc autem dicebant tentantes eum. Em que consistiu a tentação, e onde estava armado o laço, diremos depois. E que respondeu o Senhor? Levantou-se da cadeira sem falar palavra, e inclinando-se, inclinans se: Alvíssaras, pecadora, enxuga as lágrimas. Cristo começa inclinando-se? Tu sairás perdoada porque a sua inclinação não é de condenar. Deus nos livre de juízes inclinados, se não são Deus. Aonde vai a inclinação, lá vai a sentença. Não quis o Senhor responder por palavra, quiçá por que lhas não trocassem; respondeu por escrito. Digito scribebat in terra: Escrevia com o dedo na terra (Ibid. 6). Não vos espanteis que no templo lajeado de mármores houvesse terra: literalmente, porque era muito o concurso e pouco o cui­dado; moralmente, porque não há lugar tão santo e tão sagrado, ainda que seja a mesma igreja, em que não haja terra. O que Cristo escrevesse, não se sabe de certo. Entendem comumente os Padres que foram os pecados dos acusadores. Que acuse o homicida ao homicida, o ladrão ao ladrão, o adúltero ao adúltero? Homem, acusa-te a ti; olha que quando acusas os pecados alheios, te condenas nos próprios. Assim sucedeu. Depois que o Senhor escreveu o processo, não da acusada, senão dos acu­sadores, levantou-se e não lhes disse mais que estas palavras: Qui sine pecato est vestrum, primus in illam lapidem mittat (Ibid. 7): Aquele de vós que se achar sem pecado, seja o primeiro que atire as pedras. – Aqui me lembram as de S. Jerônimo. As pedras que traziam aparelhadas contra a delinqüente, converteu-as cada um con­tra o peito, e os que tinham entrado tão zelosos, começaram a se sair confusos. Saíram-se, porque entraram na própria consciência. E nota o evangelista, que os que saíram primeiro foram os mais velhos: Incipientes a senioribus (Ibid. 9). Miserável condição da vida humana! Quantos mais anos, mais culpas. Todos se devem arre­pender das suas, mas com mais razão, e mais depressa, os que estão mais perto da conta. Ficou só Cristo e a delinqüente, isto é, a misericórdia e a miséria. Perguntou-lhe: Onde estão os que te acusam? Condenou-te alguém? Nemo, Domine (Ibid. 11). Ninguém senhor. Pois se ninguém te condena, nem eu te condenarei; vai-te e não peques mais. – Este foi o fim da história, admirável na justiça, admirável na miseri­córdia, admirável na sabedoria, admirável na onipotência. A lei ficou em pé, os acusadores confusos, a delinqüente perdoada, e Cristo livre dos que o vieram tentar. Esta tentação, como dizia, será a matéria do nosso discurso. Peçamos a graça a quem a dá tão facilmente, até aos que a não merecem. Ave Maria.

II

Antes de tratar com os homens, Cristo convive com os animais, e é tentado pelo demônio.

Hoc autem dicebant tentantes eum. Que os homens sejam maiores inimigos que os demônios, é verdade que eu tenho muito averiguada. Busque cada um os exemplos em si, e achá-los-á: por agora, baste-nos a todos o de Cristo. Depois de trinta anos de retiro, houve Cristo de sair a tratar com os homens, ou a lidar com eles. E porque não basta ciência sem experiência, nem há vitória sem batalha, nem se peleja bem sem exercício, antes de entrar nesta tão perigosa campanha, quis-se exercitar primeiro com outros inimigos. Parte-se o Senhor, depois de batizado, ao desterro, e diz S. Marcos que estava e vivia ali com as feras: Eratque cum bestiis (Mc. 1, 13). Passados assim quarenta dias, seguiram-se as tentações do demônio: Et accedens tentator (Mt. 4, 3); tentado Cristo no mesmo deserto, tentado no templo, tentado no monte. E depois destas duas experiências, então finalmente saiu e apare­ceu no mundo, e começou a tratar com os homens: Exinde caepit praedicare (Ibid. 17). Não sei se reparastes na ordem destes ensaios. Parece que primeiro se havia de exercitar o Senhor com os homens, como racionais e humanos; depois com as feras, como irracionais e indômitas; e ultimamente com os demônios, como tão desuma­nos, tão cruéis e tão horrendos. Mas não foi assim, senão ao contrário. Primeiro com as feras, depois com o demônio, e ultimamente com os homens. E por quê? Porque o exercício e ensaio há de ser do menor inimigo para o maior, e os homens não só são inimigos mais feros que as feras, senão mais diabólicos que os mesmos demô­nios. Vede-o na experiência. Que aconteceu a Cristo com as feras, com o demônio, e com os homens?  As feras nem  lhe quiseram fazer mal, nem lho fizeram; o demónio quis-lhe fazer mal, mas não lho fez; os homens quiseram-lhe fazer mal, e fizeram-lho. Olhai para aquela cruz. As feras não o comeram, o demônio não o despenhou; os que lhe tiraram a vida foram os homens. Julgai se são piores inimigos que o demônio! Do demônio defendeis-vos com a cruz; os homens põem-vos nela.

De maneira que não há dúvida que os homens são piores inimigos que os demônios. A minha dúvida hoje é se são piores tentadores: Hoc autem dicebant tentantes eum. Os demônios tentam, os homens tentam; o demônio tentou a Cristo, os homens tentaram a Cristo; quais são os maiores e piores tentadores: os homens ou os demônios? A questão é muito alta e muito útil; e para que não gastemos o tempo em esperar pela conclusão, digo que comparada (como se deve comparar) astúcia com astúcia, pertinácia com pertinácia, e tentação com tentação, piores tentadores são os homens que os demônios. Comecemos pelo Evangelho, com o qual também havemos de continuar e acabar.

III

Os homens, piores inimigos que os demônios. As tentações do demônio, ven­cem-se com um sim ou um não; as tentações dos homens são como os laços de que fala Isaías, escondidos debaixo de pedras. Sutileza de Pedro ao responder aos co­bradores do tributo.

Hoc autem dicebant tentantes eum. Vieram os escribas e fariseus, como dizíamos, ao Templo, que contra o ódio e a inveja humana não lhe vale sagrado à inocência. Presentaram diante de Cristo a adúltera tomada em flagrante delito, e alegaram o texto, que é do capítulo vinte do Levítico, em que a lei mandava que fosse apedrejada: Moyses mandavit nobis hujusmodi lapidare[2] Pois se a lei era expressa, e o delito notório, se no caso não havia dúvida de feito, nem de direito, por que não executam eles a lei? Se é delinqüente, castiguem-na; se a pena é de morte, tirem-lhe a vida; se o gênero da pena são pedras, apedrejem-na, levem-na ao campo, e não ao Templo. E se aguardam a sentença, requeiram-na aos juízes, e não a Cristo. Isto era o que pedia a justiça, o zelo e a razão. Mas não o fizeram assim, diz o evangelista, porque o seu intento não era castigar a acusada, senão acusar a Cristo: Ut possent accusare eum. Traziam uma acusação, para levar outra. Vede a maldade mais que infernal, e a astúcia mais que diabólica. O demônio, no juízo universal e no particular, há-me de acusar a mim, para me condenar a mim, e há-vos de acusar a vós, para vos condenar a vós: porém estes tentadores não só acusavam um para condenar outro, mas acusavam a pecadora, para condenar o justo; acusavam a delin­qüente para condenar o inocente.

Mas como havia isto de ser, ou como queriam que fosse? Como tinham urdido a trama? Onde estava armado o laço? Onde vinha escondida a tentação? Desco­briu-a maravilhosamente Santo Agostinho: Ut si diceret, non lapidetur adultera, injustus convinceretur: si diceret, lapidetur, mansuetus non videretur: Ou Cristo havia de dizer que fosse apedrejada a adúltera, ou não: se dizia que não fosse ape­drejada, convenciam-no de injusto; se dizia que a apedrejassem, parecia que não era misericordioso. E, ou faltasse à justiça, ou à misericórdia, concluíam que não era o Messias. Cristo, como Deus e humanado, era todo mansidão, todo benignidade, todo misericórdia; as suas entranhas e as suas ações, todas eram de fazer bem, de remediar, de consolar e de perdoar, de livrar a todos, e por isso todos o amavam, todos o veneravam, todos o aclamavam, todos o seguiam, que era o que mais lhes doía aos escribas e fariseus. Acrescentava-se a isto o que o mesmo Senhor dizia de si, de seu espírito, e das causas que o trouxeram ao mundo. Aos discípulos que queriam que descesse fogo do céu sobre os samaritanos, disse: Filius hominis non venit animas perdere, sed salvare (Lc. 9, 56): Que não tinha vindo a matar homens, senão a salvá-los. – Sobretudo naquele mesmo Templo, abrindo o Senhor a Escritu­ra, ensinou publicamente que dele se entendia o famoso lugar do capítulo sessenta e um de Isaías: Ad annuntiandum mansuetis misit me, ut mederer contritis corde, et praedicarem captivis indulgentiam, ut consolarer omnes lugentes (Is. 61,1 s). Quer dizer: Mandou-me Deus ao mundo, para curar corações, para remediar afligidos, para consolar os que choram e dar liberdade e perdão aos que estão presos. – Parece que tinha o profeta diante dos olhos tudo o que concorria no estado e fortuna desta pobre mulher. Assim a apresentaram diante de Cristo, presa, afligida, angustiada, chorando irremediavelmente sua miséria; e aqui, e mais na lei, vinha armada a ten­tação. Se diz que não seja apedrejada a adúltera, é transgressor da lei; se diz (o que não dirá) que a apedrejem, perde a opinião de misericordioso e a estimação do povo, e sobretudo, contradiz-se a si mesmo e às escrituras do Messias, que interpreta de si. Logo, ou diga que se execute a lei, ou que se não execute, ou que seja apedrejada a delinqüente, ou que o não seja, sempre o temos colhido, porque não pode escapar de um laço sem cair no outro.

A este modo de argüir, que é fortíssimo e apertadíssimo, chamam os dialéticos dilema ou argumento cornuto, porque vai nele uma contraditória com tal artifí­cio, dividida em duas pontas, que se escapais de uma, necessariamente haveis de cair na outra. Assim investiram hoje a Cristo os escribas e fariseus com Moisés. De Moisés diz a Escritura: Quod facies ejus esset cornuta,[3]) e nesta forma o puseram no campo, como no corro, contra Cristo. Moyses mandavit nobis hujusmodi lapidare: Moisés, dizem, mandou-nos apedrejar a quem cometesse este delito. – E para que a lei se parecesse com a testa do legislador, ia disposta e dividida em duas pontas, tão bem armadas, que ou Cristo dissesse sim ou dissesse não, se escapasse de uma, levavam-no na outra. De maneira que as pedras de que vinham prevenidos os escri­bas e fariseus, não eram para apedrejar a adúltera, senão para que Cristo tropeçasse e caísse nelas no laço que ali lhe tinham armado. Deste modo de laços armados em pedras, faz elegante menção Isaías no capítulo oitavo: Et erit in lapidem offensionis, et petram scandali, in laqueum, et in ruinam. Et offendent, et cadent, et conterentur, et irretientur, et capientur.[4] Alude o profeta ao uso dos caçadores daquele tempo, os quais armavam as suas redes e laços cercados de pedras, para que, tropeçando nelas, a caça caísse incautamente e ficasse enredada e presa. Tal era o laço que os escribas e fariseus traziam hoje armado debaixo das pedras da lei, ou da lei das pedras: Moy­ses mandavit hujusmodi lapidare, para que, tropeçando Cristo nas pedras, caísse e o tomassem no laço.

Lembrados estareis que o demônio no deserto e no pináculo do Templo tam­bém armou o laço a Cristo com pedras. No deserto: Dic, ut lapides isti panes fiant.[5] No pináculo do Templo: Ne forte offendas ad lapidem pedem tuum.[6] Mas com os laços e as tentações parecerem tão semelhantes, vede quanto mais astutos tentadores foram os homens que o demônio. Da primeira tentação do diabo, livrou-se Cristo facilmente com um não: Non in solo pane vivit homo.[7] Da segunda tentação livrou-se com outro não: Non tentabis Dominum Deum tuum.[8] Porém da tenta­ção que hoje lhe armaram os homens, não bastava dizer não, para se livrar, por­que, ou dissesse não, ou dissesse sim, sempre ficava no laço. Ou Cristo havia de dizer: Sim, apedrejai; - ou havia de dizer: Não, não apedrejeis. – Se dizia não, ia contra a justiça; se dizia sim, ia contra a piedade. Se dizia não, ia contra a lei; se dizia sim, ia contra si mesmo. Se dizia não, ofendia o magistrado; se dizia sim, ofendia o povo. De sorte que lhe armaram os paus ou as pedras, em tal forma, que, ou quisesse observar a lei ou não quisesse, sempre ficava réu. Se se mostra rigoroso, falta à piedade; se se mostra piedoso, falta à justiça; e se falta ou à justiça ou à piedade, não é Messias.

Outra tentação semelhante urdiram os mesmos escribas e fariseus contra Cris­to sobre o tributo de César, quando o Senhor lhes disse: Quid me tentatis?[9] Manda­ram juntas duas escolas, a sua e a dos herodianos, e depois de uma longa prefação de louvores falsos, propuseram esta questão: Licet censum dare Caesari, an non (Mt. 22, 17)? Mestre, é lícito dar o tributo a César, ou não? – Notai a apertura dos termos. O que pediam era um sim, ou um não: é lícito, ou não é lícito? E por que com tanta formalidade e com tanto aperto? O evangelista o disse: Ut caperent eum in sermone.[10] Porque com qualquer destas duas respostas, ou Cristo dissesse sim, ou disses­se não, sempre ficava encravado. Se dizia não, era contra a regalia do imperador: se dizia sim, era contra a liberdade e imunidade da nação; se dizia não, crucificava-o César: se dizia sim, apedrejava-o povo. E de qualquer modo, diziam eles, se perde, e o temos apanhado e destruído. Isto é o que se maquinou e resolveu naquele conse­lho injusto, ímpio e tirânico: Consilium inierunt, ut caperent eum in sermone.[11] Houve algum dia demônio que urdisse tal tentação e metesse um homem em tais talas? Nem houve tal demônio nunca nem o pode haver, porque não há nem pode haver tentação nenhuma do demônio, da qual vos não possais livrar facilmente, ou com um sim, ou com um não. Ora vede.

O demônio sempre arma os seus laços ao pé dos Mandamentos: ali só põe a tentação, porque só ali pode haver o pecado: Virtus peccati lex. [12]  Os mandamentos todos, ou são positivos, ou negativos; e se o demônio me tenta nos Mandamentos positivos, basta para me defender um sim; se me tenta nos Mandamentos negativos, basta para me defender um não. Exemplo: os Mandamentos positivos, como sabeis, são: Amarás a Deus, guardarás as festas, honrarás os pais. Os negativos são: Não jurarás, não matarás, não furtarás, não levantarás falso testemunho, e os demais. Agora ao posto. Se o diabo me tenta nos Mandamentos positivos, diz-me: Não ames a Deus, não guardes as festas, não honres a teu pai. E se eu digo sim, resolutamente, sim hei de amar, sim hei de guardar, sim hei de honrar, basta este sim para que a tentação fique desvanecida e o diabo frustrado. Do mesmo modo nos Mandamentos negativos. Diz o demônio que jure, que mate, que furte, que levante falso testemu­nho. E se eu digo não: não quero jurar, não quero matar, não quero furtar, – basta este não para que o tentador e a tentação fiquem vencidos. De maneira que das tentações do demônio, basta um sim ou um não, para ficar livre; mas das tentações dos homens, como estas, nem basta o sim, nem basta o não para me livrar, porque vão armadas com tal astúcia, e maquinadas com tal arte, e tecidas e tramadas com tal enredo, que ou digais sim, ou digais não, sempre ficais no laço. Se dizeis que se apedreje a adúltera e que se pague o tributo, incorreis no ódio do povo, e hão-vos de apedrejar a vós; se dizeis que se não apedreje, nem se pague, incorreis no crime da lei e na indignação do César, e hão-vos de pôr em uma cruz. E ainda que o tentado seja Jesus Cristo, sempre os tentadores hão de ter um cabo por onde lhe possam pegar, e lhe possam pegar: Ut possent accusare eum.

Vejo que me perguntais: E que remédio, padre, para escapar de tais tentadores e de tão terríveis tentações? Rem difficilem postulasti.[13] Nenhum teólogo escolásti­co ou ascético lhe deu até agora remédio. Eu direi o que me ocorre. Digo que não há outro remédio, senão buscar um sim que seja juntamente sim e não, ou um não que seja juntamente não e sim. Não tenho menos autor para a prova que o príncipe dos apóstolos, S, Pedro. E notai que quando S. Pedro deu nesta sutileza, ainda estava em Jerusalém, e na Judéia, para que não cuide alguém que a fineza desta política fosse romana. Vieram ter com S. Pedro os cobradores de certo tributo imposto por Augus­to, em que cada um por cabeça pagava duas dracmas, e fizeram-lhe esta pergunta: Magister vester non solvit didrachma (Mt. 17, 23)? O vosso mestre, não paga o tributo? – Viu-se perplexo e atalhado S. Pedro, porque não sabia qual fosse a tenta­ção de seu Mestre neste ponto de tanta conseqüência? E o que respondeu foi: Etiam: Sim. – Agora pergunto eu: E este etiam, este sim de São Pedro, que significava? Significava sim, e significava não. Construí-o com a pergunta, e vereis se tem cor­rentemente ambos os sentidos. – Vosso mestre não paga o tributo? Sim: assim é; não paga. – Vosso mestre não paga o tributo? Sim; sim, paga. – De sorte que o mesmo sim era sim e não. Entendido de um modo, era sim, porque significava: sim, paga; e entendido de outro modo, era não, porque significava: não paga. E com esta equivo­cação se escapou S. Pedro dos tributeiros, enquanto seu Mestre não resolvia, dei­xando a porta aberta e cerrada juntamente, e o sim aparelhado e indiferente, para set sim ou ser não, conforme se resolvesse. Cristo tinha ensinado ao mesmo S. Pedro e a todos seus discípulos, que o seu sim fosse sim, e o seu não fosse não: Sit sermo vester: est est, non non.[14] Mas chegado Pedro a perguntas, e metido na tentação. foi-lhe necessário fazer um sim que fosse sim e não juntamente, para poder escapai dos homens.

Isto é o que fez S. Pedro naquela ocasião. E Cristo, que fez no nosso caso, que era muito mais apertado? Viu que os cordéis com que traziam presa a adúltera, eram laços com que o pretendiam atar; viu que as pedras da lei que alegavam vinham cheias de fogo por dentro, e que ao toque de qualquer resposta sua, não só haviam de brotar faíscas, mas um incêndio de calúnias; viu que suposta à tenção e astúcia dos tentadores, tanto se condenava condenando, como absolvendo, e que um e outro perigo era inevitável: que conselho tomaria? Não dizer sim nem não, era forçoso porque até a Sabedoria infinita, quando são tais as tentações dos homens, se não pode livrar delas respondendo em próprios termos. E como entre não e sim, não há meio, que meio tomaria Cristo para se livrar de uma tal tentação? Agora o veremos

IV

Para que Cristo se defendesse de três tentações do demônio, bastou-lhe um só livro das Escrituras, para se defender de uma tentação dos homens, não lhe bastaram todas as Escrituras. foi-lhe necessário fazer novas Escrituras. A escritu­ra de Jesus e as palavras misteriosas do festim de Baltasar. Para vencer os homens quis Cristo escrever com seu próprio dedo e na terra.

Levantou-se o divino Mestre da cadeira sem responder palavra. Não havia ali outro papel, senão a terra; inclina-se e começa a escrever nela: Digito scribebat in terra. Esta foi a única vez que sabemos da História Sagrada que Cristo escrevesse de seu punho. Mas enquanto Cristo escreve, e estes tentadores esperam, tornemos ao deserto e às tentações do demônio. Tentou o demônio a primeira vez a Cristo, e rebate o Senhor a tentação com as palavras do capítulo oitavo do Deuteronômio: Non in solo pane vivit homo.[15]Tentou a segunda vez, e foi rebatido com as palavras do capítulo sexto do mesmo livro: Non tentabis Dominum Deum tuum.[16] Instou a terceira vez, e terceira vez o lançou Cristo de si com outras palavras do mesmo capítulo: Dominum Deus tuum timebis, et illi soli servies.[17] Quem haverá que não se admire à vista destas três tentações, e da que temos presente? Estes homens eram letrados de profissão, eram lidos e versados nas Escrituras, e atualmente estavam alegando textos da lei de Moisés. Pois se Cristo se defendeu das tentações do demônio com as Escrituras Sagradas e com os textos da mesma lei, por que se não defen­de também destes tentadores com as mesmas Escrituras? Mais. Resistindo ao demônio, defendeu-se Cristo de três tentações com um só livro da Escritura, e só com dois capítulos dele. Nas Escrituras que então havia, que são todas as do Testamento Velho, há trinta e nove livros com mais de mil capítulos. Pois se Cristo tinha tantas armas, tão fortes, tão diversas e tão prevenidas, por que se não defende com elas desta tentação? Aqui vereis quanto mais terríveis tentadores são os homens que o demônio. Para Cristo se defender de três tentações do demônio, bastou-lhe um só livro da Escritura; para se defender de uma tentação dos homens, não lhe bastaram todas quantas Escrituras havia; foi-lhe necessário fazer escrituras de novo: Digito scribebat in terra. As Escrituras Sagradas, como notou S. Gregório, são os arma­zéns de Deus. Destas disse Salomão, comparando-as à torre de seu pai Davi: Mille clypei pendent ex ea: omnis armatura fortium.[18] E são tais, tão novas, tão esquisi­tas, e nunca imaginadas pelo demônio as astúcias e máquinas que os homens inven­tam para tentar, que em todos os armazéns de Deus se não acharam armas com que as resistir, e foi necessário que a Sabedoria encarnada forjasse outras de novo, ese pusesse a compor e a escrever contra estes tentadores: Digito scribebat in terra.

Mas qual foi o efeito desta escritura? Agora acabareis de entender quanto mais dura é a pertinácia dos homens quando tentam, que a do demônio. Escreveu e escrevia a mão onipotente, e os tentadores, a escritura diante dos olhos, nem se rendem, nem desistem, nem fazem caso dela, nem da mão que a escreve: ainda instam e apertam que responda à pergunta: Cum perseverarent interrogantes[19] Oh! Escritura! Oh! Baltasar! Oh! Babilônia! Apareceram três dedos em uma parede, sem mão, sem braço, sem corpo: Digiti quasi manus hominis scribentis,[20] e com três palavras que escreveram, sem saber o que significavam, começa Baltasar a tremer de pés e mãos, sem cor, sem coração, sem alento. Treme o mais poderoso rei do mundo, e quatro homens, sem mais poder que a sua malícia, não tremem. Viam os dedos, viam o braço que escrevia, sabiam e tinham obrigação de saber, pelas mara­vilhas que obrava, e de que eles tanto se doíam, que era homem e Deus juntamente, e à vista de uma escritura tão larga de sua mão, em que se viam processados a si mesmos, não tremem, nem se movem, antes perseveram obstinados a perguntar e tentar: Cum perseverarent. Digam agora os escribas e fariseus, se é o gentio Baltasar, ou eles? Mas o meu intento não é comparar homens, senão homens com o demônio. Três circunstâncias particulares notou o Evangelista nesta ação de Cristo. Notou que escrevia, e com que escrevia, e onde escrevia: Digito scribebat in terra. Escrevia Cristo, e escrevia com o dedo, e escrevia na terra. E em todas estas circuns­tâncias, venceram os homens ao demônio na pertinácia de tentadores

 Primeiramente: Scribebat: Escrevia. E por que quis escrever? As mesmas coisas que Cristo escreveu podia dizer em voz, e mais facilmente. Pois, por que as não quis dizer em voz, senão por escrito? Porque as mesmas palavras divinas têm mais eficá­cia, para vencer as tentações, escritas que ditas. Na morte de Cristo tentou o demônio aos discípulos na fé da ressurreição, e todos, ou foram vencidos, ou fraquearam na tentação, como o mesmo Senhor lhes tinha predito. E dando causa desta fraqueza, São João diz que foi porque ignoravam as Escrituras da ressurreição: Nondum sciebant Scripturam, quia oportebat eum a mortuis resurgere. [21] Contra: Evangelis­ta sagrado. Cristo tinha dito muitas vezes que havia de ressuscitar, e particularmente o disse ao mesmo S. João, e a S. Pedro e São Tiago no monte Tabor: Nemini dixeritis visionem, donec Filius hominis a mortuis ressurgat.[22] Por que escusa logo o evan­gelista a fraqueza de não resistirem à tentação com a ignorância das Escrituras? Porque ainda que as palavras divinas, ou ditas ou escritas, tenham a mesma autori­dade, escritas, movem mais e têm mais eficácia para resistir às tentações. Vede-o no modo com que Cristo resistiu ao demônio em todas as suas. Em todas as três tenta­ções se defendeu Cristo do demônio com a palavra divina; mas não sei se tendes reparado que em todas e em cada uma advertiu que era palavra escrita. Na primeira tentação: Scriptum est: Non in solo pane vivit homo. Na segunda: Scriptum est: Non tentabis Dominum Deum tuum. Na terceira: Scriptum est: Dominum Deum tuum timebis.[23] Parece que para resistir à tentação, e rebater ao demônio, bastava referir as sentenças e palavras sagradas; por que acrescenta logo o Senhor, e deita diante de cada uma delas a declaração de que eram escritas, repetindo uma, duas, e três vezes: Scriptum est, scriptum est, scriptum est? Porque sendo palavra de Deus, e escritas, tinham não só a virtude e eficácia das palavras, senão também a das letras. Assim como o demônio, para encantar e render aos homens, põe a eficácia do encanto em certos caracteres diabólicos, assim Deus, para o encantar e ligar a ele, tem posto maior eficácia, não só nas palavras sagradas, senão também nos caracteres com que são escritas. Por isso Cristo, neste caso, vendo-se tão apertadamente tentado dos homens, não tardou de se defender deles dizendo, senão escrevendo: Scribebat.

Mas se tanta é a força e eficácia de um Scriptum est, e Cristo hoje escrevia: Scribebat, e os seus tentadores o estavam vendo escrever, e viam, e liam a escritura, por que persistem ainda e perseveram na tentação: Cum perseverarent? Não persiste o demônio, e persistem os homens? Sim, porque o demônio é demônio, e os homens são homens, e por isso mais teimosos e mais pertinazes tentadores. Onde muito se deve advertir a diferença desta escritura de Cristo às Escrituras com que resistiu ao demônio. As Escrituras que o Senhor referiu ao demônio, eram escrituras gerais, feitas a outro intento, e para outrem. As escrituras que hoje escreveu, eram particu­lares e escritas somente para os que o estavam tentando, e dirigidas ao coração e à consciência de cada um. O demônio podia responder que as Escrituras do Deutero­nômio eram feitas para os homens e não para os demônios; mas bastou serem escri­turas de Deus, para o demônio, ou as reverenciar, ou as temer, posto que não falas­sem com ele. Os homens, pelo contrário, falando com todos e com cada um deles a escritura de Cristo, nem a reverência os refreia, nem a força os quebranta, nem a consciência os intimida, nem a certeza com que se vêem feridos os rende: conti­nuam, instam e perseveram obstinados: Cum perseverarent. Que mais?

Digito: Escrevia Cristo com o dedo. As Escrituras com que o Senhor rebateu as tentações do demônio, não eram escritas com o dedo de Deus. Deus só escreveu com o dedo as duas Tábuas da Lei: Tabulas scriptas digito Dei.[24] Os outros textos eram escritos por Moisés com mão humana. Mas bastou serem Escrituras Sagradas e canônicas, para que o demônio se não atrevesse a lhes resistir. Vede se se podia e devia esperar hoje que os tentadores de Cristo se rendessem às suas escrituras, pois eram escrituras não só de Deus, mas escritas com o seu dedo: Digito scribebat. Claro está que se haviam de render, se os tentadores fossem demônios; mas não se renderam, porque eram homens. Quando os magos de Faraó viram o que obrava a vara de Moisés, disseram: Digitus Dei est hic (Êx. 8, 19): Esta obra é do dedo de Deus, – e logo se deram por vencidos. Mas como assim? A arte mágica não é arte diabólica? Os magos do Egito não eram ministros e instrumentos do demônio? Pois como cedem tão prontamente, e não se atrevem a resistir ao dedo de Deus? Por isso mesmo. Se as suas artes foram humanas, e eles obraram como homens, haviam de teimar e persistir; mas como as artes eram diabólicas, e eles obravam como ministros do demônio, nem eles, nem os demônios se atreveram a resistir à força do dedo de Deus. Hoje, porém, vê-se o dedo de Deus resistido, sendo dedo de Deus não invisível e encoberto em uma vara, mas visível, vivo e animado, porque as artes com que os escribas e fariseus vieram tentar e queriam derrubar a Cristo, não eram artes diabólicas, senão humanas, nem eles, demônios, mas homens. Dos demônios dizia Cristo: In digito Dei ejicio daemonia.[25] Mas esse mesmo dedo de Deus, que lança­va dos corpos os demônios, não lhe bastava agora para lançar de si os homens. Os demônios, ao menor impulso do dedo de Cristo, fugiam; os homens, contra tantos e tão repetidos impulsos do mesmo dedo, quantas eram as letras que escrevia, não faziam de si nenhum abalo. Os demônios deixavam os homens, os homens não deixavam a Cristo; os demônios não podiam parar, os homens persistiam firmes; os demônios desistiam, os homens perseveravam: Cum perseverarent. Que mais?

In terra. Nota finalmente o evangelista que escrevia Cristo na terra. E por que na terra? Para que os que, esquecidos da própria fragilidade, acusavam tão rigorosamente uma fraqueza no sexo mais fraco, considerassem e advertissem que ela era terra, e eles terra. É tão própria do caso e tão natural esta consideração, que daqui veio a ter para si Cartusiano que as palavras que Cristo escreveu foram estas: Terra terram judicat: A terra acusa a terra. – Se os acusadores foram céu, não era de estranhar que acusassem a terra; mas que a terra acuse a terra! Ainda faziam mais estes tentadores. A terra acusava a terra para condenar o céu, porque acusava a adúltera para condenar a Cristo. Pois se a terra muda, e por si mesma, estava dando brados contra estes acusadores formados da mesma terra, agora que já não é muda, com as palavras e vozes de Cristo, que tem escritas e estampadas em si, por que os não confunde, por que os não convence, por que os não rende? Já me canso de dizer: porque eram homens. E se não, tomemos a comparar esta tentação com a do demônio. Assim como o elemento do homem é a terra, assim o elemento do demônio é o ar. Neste ar habitam os demônios, neste ar andam, neste ar nos tentam, e por isso S. Paulo lhes chamou potestades do ar: Secundum principem potestatis aeris hujus.[26]) As palavras com que Cristo se defendeu do demônio foram pronunciadas no ar, que é incapaz de escritura; as com que se quis defender destes homens, foram escritas e impressas na terra. As palavras pronunciadas passam, as escritas permanecem; as pronunciadas entram pelos ouvidos, as escritas pelos olhos. E sendo aquelas só pronunciadas, e estas escritas, aquelas sucessivas, e estas permanentes, aquelas ouvidas, e estas vistas, aquelas breves e poucas, e estas muitas e continuadas, que isso quer dizer scribebat, aquelas formadas no ar bastaram para vencer potestades do ar; e estas impressas na terra bastaram para render os homens formados de terra: Digito scribebat in terra.

V

Os homens, ainda quando desistem, são piores tentadores que o demônio. As duas espadas dos discípulos do Senhor. Por que Cristo escreveu duas vezes? Ra­zões de Santo Agostinho e de Santo Ambrósio. A escritura de Cristo e os heresiar­cas. O demônio, como mais sábio, não voltou contra Cristo as Escrituras. Cristo, quando foi tentado, preferiu ser tentado pelo demônio a ser tentado pelos homens.

Assim resistido Cristo, e assim rebatida, por não dizer afrontada a força de sua mão e da sua escritura, que novo meio buscaria a Sabedoria onipotente para se defender de tão pertinazes tentadores? Assim como eles perseveraram em tentar, assim ele perseverou em escrever, porque a pertinácia da tentação só se vence com a constância da resistência. E quando os remédios são proporcionados, mudá-los é perdê-los. Toma Cristo a inclinar-se, e a escrever outra vez: Iterum inclinans se digito scribebat in terra. E foi tal a eficácia desta segunda escritura, que alfim se renderam a ela os que tinham resistido à primeira. Então se foram retirando uns após outros, mas, se vencidos de Cristo na retirada, vencedores contudo do demônio na arte da tentação. Ainda quando desistem são piores tentadores os homens que o demônio. O demônio tentou a Cristo três vezes, mas notai que respondendo o Se­nhor a cada tentação com uma Escritura, nunca o demônio esperou a segunda. Em o demônio ouvindo uma Escritura, calava, desistia, não resistia, nem replicava; muda­va logo de tentação e ainda de lugar. Vencido de Cristo, ainda presumia e esperava vencer a Cristo; refutado com uma Escritura, nunca teve atrevimento para resistir nem esperar outra Escritura. E os homens? Olhai para eles. Os homens, porém, mais pertinazes, mais impudentes, mais duros e mais feros tentadores que o mesmo de­mônio, vêem uma vez escrever a Cristo, e não se movem; vêem e entendem o que escreve, e não se rendem. É necessário que a Sabedoria divina multiplique Escritu­ras sobre Escrituras, que tendo escrito uma vez, tome outra vez a escrever: Iterum scribebat, não já para persuadir os tentadores, mas para se defender e se livrar a si mesmo de suas tentações.

Na última e mais forte tentação que padeceram os discípulos de Cristo, que foi na véspera de sua morte, anunciou-lhes o divino Mestre que era chegado o tempo em que tinham necessidade de armas. E respondendo eles que tinham duas espadas: Ecce duo gladii hic (Lc. 22, 38), contentou-se o Senhor com a prevenção, e disse-lhes que essas bastavam: Satis est. Todos os Padres e expositores entendem concordemente que falou Cristo neste passo alegórica e metaforicamente, e que as espadas com que os apóstolos se haviam de defender, eram as Escrituras Sagradas. O mesmo tinha declarado muito antes Davi, falando dos mesmos apóstolos e das mesmas espadas: Et gladii ancipites in mani­bus eorum: ad faciendam vindictam in nationibus, increpationes in populis.[27] Sendo pois este o sentido e intento das palavras de Cristo, é muito para reparar que destas duas espa­das, naquele grande conflito, se não desembainhasse mais que uma, que foi a de S. Pedro, e que querendo os outros discípulos usar da segunda, quando disseram: Si percutimus in gladio, [28] o Senhor lho não permitisse. Pois se as espadas eram duas, e ambas aceitadas e aprovadas por Cristo como necessárias, por que proibiu o Senhor a segunda, e não quis que se usasse mais que de uma nesta tentação? O mesmo Cristo o disse: Haec est hora vestra, et potestas tenebrarum. [29] Esta tentação, como aquela em que se empenhou e empregou todo o poder do inferno, era tentação do demônio, ainda que para ela concorre­ram também os homens, como ministros e instrumentos do mesmo demônio e do mesmo inferno; e para as tentações do demônio, por mais fortes e poderosas que sejam, basta uma só espada, isto é, uma só Escritura, não são necessárias duas. Assim bastou uma só Escri­tura contra a tentação do deserto, e uma só contra a tentação do Templo, e uma só contra a tentação do monte. E como então lhe não foi necessário a Cristo lançar mão da segunda espada, por isso também neste conflito não permitiu aos apóstolos que usassem dela, porque ainda que a tentação era tão forte e tão apertada, era alfim tentação do demônio: Haec est hora vestra, et potestas tenebrarum.

Logo, a segunda espada que o Senhor não permitiu se desembainhasse, era escusada e inútil? Não: porque essa ficou reservada para as tentações dos homens. Assim o experimentou o mesmo Senhor na tentação de hoje, em que não lhe bastan­do uma só escritura contra a pertinácia dos seus tentadores, foi forçado a se valer de segunda escritura, e escrever outra vez: Iterum scribebat. E porque esta Segunda espada assim como foi necessária, assim bastou para dar fim à batalha, por isso o Senhor, com o mesmo mistério, quando os discípulos lhe disseram que tinham duas espadas, respondeu que essas bastavam: Satis est, porque ainda que contra os ho­mens não bastasse uma só Escritura, como basta e bastou para o demônio, contudo bastariam duas, como finalmente bastaram. Ao passo que os segundos caracteres uns após outros se iam formando, os tentadores também após outros se iam saindo: Unus post unum exibant (Jo. 8, 9). O que não venceu uma Escritura venceram duas Escrituras: Iterum scribebat.

Mas que direi eu neste passo tirando os olhos dos ministros da Sinagoga, e pondo-os em muitos que se chamam cristãos? Já me não queixo dos escribas e fariseus, nem Cristo se podia queixar tanto, porque haviam de vir ao mundo tais homens, que com sua pertinácia os haviam de fazer menos duros, e com as suas tentações menos tentadores. Os escribas e fariseus não se renderam às primeiras escrituras do dedo de Cristo, mas rende­ram-se às segundas, e largaram as pedras. Os hereges com nome de cristãos, nem às primeiras, nem às segundas escrituras se rendem, antes, das mesmas Escrituras adultera­das (que também trazem consigo a adúltera) fazem pedras com que atirar a Cristo. Santo Agostinho e Santo Ambrósio dizem que escreveu Cristo duas vezes para mostrar que ele era o autor e legislador de ambas as Escrituras: das Escrituras do Velho Testamento e das Escrituras do novo, e que as primeiras Escrituras foram escritas em pedra, porque haviam de ser estéreis; as segundas escritas na terra, porque haviam de ser fecundas, e haviam de dar fruto, como alfim deram hoje.[30] Mas estou vendo, Senhor meu, que esta terra em que escreveis e escrevestes, arada duas vezes pela vossa mão, e semeada duas vezes com a vossa palavra, em lugar de dar fruto, há de produzir espinhos. Esta foi a maldição que lançastes a Adão, que não só se cumpriu e estendeu, mas cresceu, e crescerá sempre em seus filhos. Os escribas e fariseus foram piores que o demônio. Virão homens que sejam piores que os escribas e fariseus. O diabo rendeu-se a uma Escritura: os escribas e fariseus renderam-se a duas; virão homens que nem a duas Escrituras se rendam, e, pertinazes contra ambos os Testamentos, com ambos vos façam guerra. Dai-me licença para que vos repita a minha dor parte do que está antevendo vossa Sabedoria.

Escrevestes em ambos os Testamentos a verdade e fé de vossa divindade, tão ex­pressa no Testamento Novo, e tão convencida por vós mesmo no Velho; e virá um Ébion, um Cerinto, um Paulo Samosateno, um Fotino, que impudentemente neguem que fostes e sois Deus. Escrevestes em ambos os Testamentos (e não era necessário que se escrevesse) a verdade de vossa humanidade, em tudo semelhante à nossa, e virá um Maniqueu, um Prisciliano, um Valentino, que contra a evidência dos olhos e das mesmas mãos que a tocaram, digam que vossa carne não foi verdadeira, senão fantástica, celeste e não huma­na. Escrevestes em ambos os Testamentos a unidade de vossa pessoa, uma em duas natu­rezas, humana e divina, e virá um Nestório, que reconhecendo as duas naturezas, diga pertinazmente que também houve em vós duas pessoas, e um Eutiques, e um Dioscoro, que confessando a vossa humanidade e a vossa divindade, digam que de ambas se formou ou transformou uma só, convertendo-se uma na outra. Escrevestes em ambos os Testa­mentos a perfeição e inteireza de vosso ser humano, composto de corpo e alma, e virá um Ario e um Apolinar, que digam que tivestes somente corpo de homem, e que a alma desse corpo era a divindade. Escrevestes em ambos os Testamentos, e demonstrastes contra os saduceus, a futura ressurreição nossa e de todos os mortais, e virá um Simão Mago, um Basilides, um Hemineu, um Fileto, que merecedores de morrer para sempre, como os brutos, neguem a esperança e a fé da ressurreição. Escrevestes em ambos os Testamentos (bastando só a experiência) a verdade e absoluto domínio do livre alvedrio humano, e virá um Bardasanes, um Pedro Abailardo, e modernamente um Eculampádio e um Male­ththon, que dizendo uma liberdade tão inaudita, neguem que há liberdade. Escrevestes em ambos os Testamentos, que sem graça não há mérito, e que do concurso de vossa graça e do nosso alvedrio procedem as obras dignas, e só elas dignas, da vida eterna, e virá um Pelágio, um Celestino, um Juliano, que impotentemente concedam todo este poder ao alvedrio, acrescentando as forças do primeiro benefício, com que nos criastes, para vos negarem ingratissimamente o maior e segundo, com que nos justificais. Escrevestes em ambos os Testamentos a necessidade e merecimento das boas obras, e virá um Lutero, que não só negue serem necessárias as boas obras para a salvação, mas se atreva a dizer que todas as boas obras são pecado, e pudera acrescentar, pecado em que nunca pecou Lutero, Assim o ensinaram ele e Calvino, aqueles dois monstros mais que infernais do nosso século, para tirar do mundo a oração, o jejum, a esmola, a castidade, a penitência, os sufrágios, os sacramentos, pregando contra o que Cristo pregou, e escrevendo contra o que duas vezes escreveu, e formando novas tentações, contra o mesmo Cristo, das mes­mas Escrituras com que ele se defendeu das tentações, para que se veja quanto se adiantaram os homens nas artes de tentar, e quanto atrás deixaram ao mesmo demônio.

O demônio, vendo na primeira tentação que Cristo se defendia com a Escritu­ra, para o tentar pelos mesmos fios, alegou na segunda tentação outra Escritura. Mas, o que é muito para admirar e ainda para reverenciar, foi, que nem contra o primeiro, nem contra o segundo, nem contra o terceiro texto alegado por Cristo argüisse, nem instasse o demônio uma só palavra. O demônio é mais letrado, mais teólogo, mais filósofo, mais agudo e mais sutil que todos os homens. Pois, se os homens, e tantos homens, têm argüido tanto e por tantos modos contra umas e outras Escrituras de Cristo, antes se atreveram a lhe fazer guerra com elas, voltando as mesmas Escrituras contra o mesmo Cristo, e interpretando-as não só em sentido falso, mas totalmente contrário, por que não fez também isto o mesmo demônio? Porque era demônio, e não homem. Porque era demônio tentou como sábio; porque não era homem não tentou como néscio e impudente. Tentar e argüir, e teimar contra a verdade conhecida das Escrituras não é insolência que se ache na maldade do demônio; na do homem sim. Agora entendereis a energia com que na parábola da cizânia respondeu o pai de familias: Inimicus homo hoc fecit (Mt. 13, 28): O trigo que ele tinha semeado, é a doutrina pura e sã das Escrituras Sagradas; a cizânia que se semeou sobre o trigo, são as falsas interpretações com que se perverte o verdadei­ro sentido das mesmas Escrituras. E quem é ou foi o autor desta maldade e deste desengano tão pernicioso à seara de Cristo? Inimicus homo: o inimigo homem. No­tai. Parece que bastava dizer o inimigo, mas acrescentou e declarou que esse inimigo era homem, para distinguir o inimigo – homem do inimigo – demônio. O demônio é inimigo, e grande inimigo; porém o inimigo-demônio, nunca foi tão demônio, nem tão inimigo, que se atrevesse a voltar contra Cristo as Escrituras que ele alegava por si, como se viu em todas as três tentações; mas isto que nunca fez o inimigo-demô­nio, isto é o que fizeram e fazem os inimigos-homens: Inimicus homo hoc fecit. Bem sei que alguns santos por este Inimicus homo entenderam o demônio. E quando esta inteli­gência seja verdadeira, aí vereis quem são os homens. Assim como nós, quando queremos encarecer a maldade de um homem, lhe chamamos demônio, assim Deus, quando quis encarecer a maldade do demônio, chamou-lhe homem: Inimicus homo. Ao menos eu, se houvera de escolher tentador, antes havia de querer ser tentado pelo demônio que pelos homens. Cristo, guiado pelo Espírito Santo, escolheu tentador: Ductus est a Spiritu, ut tentaretur. E que tentador escolheu? Ut tentaretur a diabolo:[31] escolheu tentador-diabo, e não tentador-homem. O certo é que quando o diabo tentou a Cristo, Cristo foi buscar o diabo; mas quando os homens hoje tentaram a Cristo, os homens o buscaram a ele: Tentantes eum, ut possent accusare eum.[32]

VI

Guardai-vos dos homens. O diabo anda pelos desertos porque nas cortes os homens lhe tomaram o ofício. Guardai-vos dos inimigos: Saul tenta contra a vida de Davi, depois de livre do demônio. Guardai-vos dos amigos: tentações dos três amigos de Jó. Sobretudo cada um se guarde de si mesmo.

Suposto isto, senhores, suposto que os homens são maiores e piores tentadores que o demônio, que havemos de fazer? Não é necessário gastar muito tempo em con­sultar a resolução, porque o mesmo Cristo a decidiu e no-la deixou expressa e mui recomendada como tão importante: Cavete ab hominibus (Mt. 10, 17): Guardai-vos dos homens. – Se eu pregasse no deserto a anacoretas, dir-lhes-ia que se guardassem do diabo; mas como prego no povoado, e a cortesãos, digo-vos que vos guardeis uns dos outros. O diabo já não tenta no povoado, nem é necessário, porque os homens lhe tomaram o ofício, e o fazem muito melhor que ele. Cristo, como pouco há dizíamos, quis ser tentado do diabo, e foi-o buscar ao deserto. Senhor, se quereis ser tentado do demônio por que o não ides buscar à cidade, à corte? Porque nas cidades e nas cortes já não há demônios. E não se saíram por força de exorcismos, senão porque o seu talento não tem exercício. Se à corte vêem alguns artífices estrangeiros mais insignes e de obra mais prima, os oficiais da terra ficam à pá, vão se fazer lavradores. Assim lhe aconteceu ao demônio. Ele era o que tinha por ofício ser tentador; mas como sobrevieram os homens, mais industriosos, mais astutos, mais sutis e mais primos na arte, ficou o diabo ocioso; se tenta por si mesmo, é lá a um ermitão solitário, onde não há homens: por isso se anda pelos desertos, onde Cristo o foi buscar. Não digo que vos não guardeis do demônio, que alguma vez dará cá um salto; o que vos digo é que vos guardeis muito mais dos homens, e vede se tenho razão.

Depois que a inveja entrou na alma de Saul (indigna mancha de um rei) en­trou-lhe também o demônio no corpo. Fora causa da inveja a funda de Davi, e não havia outro remédio contra aquele demônio, senão a sua harpa. Vinha Davi, tocava a harpa em presença de Saul, e deixava-o o demônio. Fê-lo assim uma vez, e depois que o demônio se saiu, deita mão Saul a uma lança e fez tiro a Davi, diz o texto, para o pregar com ela a uma parede. Que um rei cometesse tal excesso de ingratidão contra um vassalo a quem devia a honra e a coroa, não me admira. Assim se pagam os serviços que são maiores que todo o prêmio. O que me admirou sempre, e o que pondera muito S. Basilio de Selêucia, é que não tentasse Saul esta aleivosia enquan­to tinha o demônio no corpo, senão depois que se saiu dele. Quando Saul tem o demônio no corpo, modera a inveja, o ódio, a fúria, e depois que o demônio o deixa, agora comete uma traição e uma aleivosia tão enorme? Sim; agora. Porque agora está Saul em si; dantes estava o demônio nele, dantes obrava como endemoninhado; agora obrava como homem. Se Saul intentara esta infame ação enquanto estava possuído do demônio, havíamos de dizer que obrava o demônio nele; mas quis a providência do céu que o não fizesse Saul senão depois que esteve livre, para que soubéssemos que obrava como homem, e nos guardássemos dos homens mais ainda que do demônio. – O novum, injuriumque facinus! – exclama Basilio. – Daemon pellitur, et daemone liberatus arma capiebat. Daemon vincebatur, et hominis mores plus sumebant audaciae. – Era pior Saul livre do demônio, que possuído dele, por­que possuído, obrava pelos impulsos do demônio; livre, obrava pelos seus, pelos de homem: Et hominis mores plus sumebant audaciae. – Por isso o demônio, vendo tão feiamente inclinado a Saul, se saiu fora, envergonhando-se que pudesse o mundo cuidar que aquela tentação era sua. Oh! que bem lhe estivera ao mundo que entrasse o demônio em alguns homens, para que fossem menos maus e menos tentadores! Compadeço-me de Davi, honrado, valoroso, fiel, mas enganado com o seu amor e com o seu príncipe. Se não sabes, ó Davi, a quem serves, vê ao teu rei no espelho da tua harpa: emudece-a, destempera-lhe as cordas, faze-a em pedaços. Enquanto Saul estiver endemoninhado, estarás seguro: se tornar em si, olha por ti. Não é Saul ho­mem que queira junto a si tamanho homem.

Bem provado cuido que está com o horror deste exemplo, que nos devemos guardar e recatar dos homens, mais ainda que do diabo. Mas vejo que me dizeis que Saul era inimigo capitalíssimo de Davi, e que dos homens que são inimigos, bem é que nos guardemos com toda a cautela; porém dos amigos, parece que não. São eles homens? Pois ainda que sejam amigos, guardai-vos deles, e crede-me, porque os amigos também tentam, e de mais perto, e se vos tentarem, hão de fazer e poder mais que o diabo para vos derrubar. Nunca o diabo teve mais ampla jurisdição para tentar com todas suas artes, e com todo seu poder, que quando tentou a Jó. Tentou-o na fazenda, tirando-lha toda em um momento; tentou-o nos filhos, matando-lhos todos de um golpe; tentou-o na própria carne, cobrindo-o de lepra e câncer, e fazendo-o todo uma chaga viva. E que fez, ou que disse Jó? Dominus dedid, Dominus abstulit: sit nomem Domini benedictum.[33] Paciência, humildade, resignação na vontade di­vina, graças e mais graças a Deus, dando testemunho a mesma Escritura, que em todas estas tentações não lhe pôde tirar da boca o demônio uma palavra que não fosse de um ânimo muito constante, muito reto, muito pio, muito timorato, muito santo: In omnibus his non peccavit Job labiis suis, neque stultum aliquid locutus est contra Deum[34]. Neste estado de tanta miséria e de tanta virtude, vieram os amigos de Jó a visitá-lo e consolá-lo. Eram estes amigos três, todos príncipes, todos sábios, e que todos professavam estreita amizade com Jó. Ao princípio estiveram mudos, por espaço de sete dias; depois falaram, e falaram muito. E que lhe sucedeu a Jó com estes amigos? O que não pôde o diabo com todas as suas tentações. Fizeram-lhe perder a constância, fizeram-lhe perder a paciência, fizeram-lhe perder a conformi­dade, e até a consciência lhe fizeram perder, porque se puseram a altercar contra ele, e o argüiram, e o caluniaram, e o apartaram de tal sorte, que Jó deixou de ser Jó. Não só amaldiçoou a sua vida e a sua fortuna, mas ainda, em respeito da justiça e da Providência divina, disse coisas muito indignas da sabedoria e muito alheias da piedade de um homem santo, pelas quais foi asperamente repreendido de Deus. O mesmo Jó as confessou depois, e se arrependeu, e fez penitência delas, coberto de cinza: Insipienter locutus sum, idcirco ipse me reprehendo, et ago poenitentiam in favilla et cinere. [35] Eis aqui quão pouco lustroso saiu das mãos dos homens o espe­lho da paciência, tendo saído das tentações do demônio vencedor, glorioso, triun­fante. O demônio era demônio e inimigo; os homens eram amigos, mas homens; e bastou que fossem homens, para que tentassem mais fortemente a Jó que o mesma demônio. As tentações do demônio foram para ele coroa; e as consolações dos ami­gos, não só tentação, mas ruína. E se isto fazem amigos sabios, zelosos da honra de Deus e da alma de seu amigo como aqueles eram, quando o vêm consolar em seus trabalhos, que farão amigos perdidos e loucos, que só se buscam a si, e não a vós. que estimam mais a vossa fortuna que a vossa alma, e que fazem dela tão pouca caso, como da sua?

Há mais algum homem de quem nos devamos guardar? Sim. O maior tentador de todos. E quem é este? Cada um de si mesmo. O homem de que mais nos devemos guardar, é eu de mim, e vós de vós. Unusquisque tentatur a concupiscentia sua abstractus et illectus.[36] Sabeis, diz São Tiago Apóstolo, quem vos tenta? Sabeis quem vos faz cair? Vós a vós: cada um a si: Unusquisque tentatur. – Nós, como filhos de Eva, tudo é dizer: Serpens decepit me:[37] Tentou-me o diabo, enganou-me o diabo, e vós sois o que vos tentais e vos enganais, porque quereis enganar-vos. O vosso diabo sois vós: o vosso apetite, a vossa vaidade, a vossa ambição, o vosso esquecimento de Deus, do inferno, do céu, da alma. Guardai-vos de vós, se vos quereis guardado. Pôs Deus a Adão no Paraíso terreal, e cuidamos que o pôs naque­le lugar tão ameno e deleitoso só para que gozasse suas delícias, e todo se regalasse e banhasse nelas, sem nenhum outro cuidado. Mas vede o que diz o texto: Possuit  eum in paradiso voluptatis, ut operaretur, et custodiret illum (Gên. 2, 15): Pôs, diz, a Adão no Paraíso, para que o cultivasse e guardasse. – Nesta última palavra reparei sempre muito: Ut custodiret illum. De quem havia de guardar o Paraíso Adão? Dos animais? Não, porque todos lhe eram obedientes e sujeitos. Dos homens? Não, porque não havia homens. Pois se o não havia de guardar dos homens, nem dos ani­mais, de quem o havia de guardar? De quem o não guardou: de si mesmo. Guarde-se Adão de Adão, e guardará o Paraíso. Sois homem? Guardai-vos desse homem: guardai-vos do seu entendimento, que vos há de enganar; guardai-vos da sua vonta­de, que vos há de trair; guardai-vos dos seus olhos e dos seus ouvidos, e de todos os seus sentidos, que vos hão de entregar. Guardou-se Davi de Saul, e caiu, porque se não guardou de Davi. Guardou-se Sansão dos filisteus, e perdeu-se, porque se não guardou de Sansão. Guarde-se Davi de Davi, guarde-se Sansão de Sansão, guarde-se cada um de si mesmo. De todos os homens nos havemos de guardar, porque todos tentam; mas deste homem mais que de todos, porque é o maior tentador. Por isso dizia Santo Agostinho, como santo, como douto e como experimentado: Liberet te Deus a te ipso: Livre-te Deus de ti. – Cristo livrou-se hoje dos homens que o tenta­ram, mas eles não se livraram de si, porque quando vieram a tentar, já vinham tenta­dos, quando vieram a derrubar, já vinham caídos. Para si e para Cristo, homens; e por isso, contra si e contra Cristo, tentadores: Tentantes eum.

VII

Cristo, o único homem de quem não nos devemos guardar. Porque não fugiu a adúltera depois que se afastaram seus acusadores? Como a pecadora e a samaritana, devemos cada dia ficar um momento só por só com Cristo, para que nos convertamos.

Ninguém me pode negar que é muito verdadeira e muito certa esta doutrina, mas parece que eu também não posso negar que é muito triste e mui desconsolada. O homem é animal sociável, nisso nos distinguimos dos brutos, e parece coisa dura, que havendo necessariamente um homem de tratar com homens, se haja de guardar de todos os homens. Não haverá um homem com quem outro homem tratar sem temor, sem cautela, e sem se guardar dele? Sim, há. E que homem é este? Aquele Homem a quem hoje vieram tentar os homens; aquele Homem que juntamente é Deus e Homem; aquele Homem em quem só achou refúgio e remédio aquela mise­rável mulher de quem não se compadeceram e a quem acusavam os homens. Argüiu sutilissimamente Santo Agostinho, que esta mulher, depois que se viu livre de seus acusadores, parece que devia fugir de Cristo. A razão é manifesta, porque Cristo tinha dito na sua sentença que quem não tivesse pecado lhe atirasse as pedras: logo só de Cristo se podia temer, porque só Cristo não tinha pecado. Mas porque só ele não tinha pecado, por isso mesmo se não temeu de tal homem, e por isso mesmo só daquele homem, e naquele homem se devia fiar e confiar. Primeiramente, Cristo na sua sentença já se tinha excetuado a si: Qui sine peccato est vestrum (Jo. 8, 7): Quem de vós não tem pecado, esse atire as pedras. Não disse quem, absolutamente, senão quem de vós, para se excetuar a si, que é a exceção de todos os homens. E o mesmo não haver em Cristo pecado, era a maior segurança da pecadora.

Duas condições concorriam em Cristo neste caso para se compadecer e usar de misericórdia com aquela pobre mulher. A primeira e universal, o ser isento de pecado, verificando-se só nele o Qui sine peccato est. A segunda e particular, o estar naquela ocasião tentado pelos homens: Tentantes eum. Como tentado, não podia deixar de se compadecer; como isento de pecado, não podia deixar de perdoar. A tentação o fazia compassivo, e a isenção de pecado misericordioso. Tudo disse ad­miravelmente S. Paulo falando de Cristo: Non enim habemus pontificem, qui non possit compati infirmitatibus nostris, tentatum per omnia pro similitudine, absque peccato: adeamus ergo cum fiducia ad thronum gratiae, ut misericordiam consequamur.[38] Notai todas as palavras, e particularmente aquelas: tentatum e absque peccato. Como tentado: tentatum, não podia deixar de se compadecer: Qui non possit compati. Como isento de pecado: absque peccato, não podia deixar de ser misericordioso: Adeamus ergo cum fiducia, ut misericordiam consequamur. Na ver­dade, neste ergo de S. Paulo esteve toda a confiança da delinqüente, e por isso não quis fugir, como se interpretara a sentença de Cristo e dissera: Se só me há de atirar as pedras quem não tem pecado, ninguém mas há de atirar. Os fariseus, que têm pecado, não, porque têm pecado; Cristo, que não tem pecado, também não, porque o não tem. Quem não tem pecado, não atira pedras. – Assim foi, e assim lho disse Cristo; Nemo te condemnavit, mulier? Neque ego te condemnabo (Jo. 8, 11): Se ninguém te condenou, nem eu te condenarei. – Eles não te condenaram, porque tinham pecado; eu não te condenarei, porque o não tenho. Eis aqui por que este Homem é tão diferente de todos os outros homens. Os homens que tinham pecado, tentavam, acusavam, perseguiam; o Homem que não tinha pecado, escusou, defen­deu, compadeceu-se, perdoou, livrou, e de tal modo condenou o pecado, que absol­veu a pecadora: Vade, et noli amplius peccare.

Senhores meus, conclusão. Pois que os homens são piores tentadores que o demô­nio, guardemo-nos dos homens; e pois que entre todos os homens não há outro homem, de quem seguramente nos possamos fiar, senão este Homem, que juntamente é Deus, tratemos só deste Homem, e tratemos muito familiarmente com este Homem. Toda a fortuna daquela tão desgraciada criatura, esteve em a trazerem diante de tal Homem; e a primeira mercê que lhe fez, foi livrá-la dos outros homens. Por que cuidais que fez Deus homem? Não só para remir os homens, senão para que os homens tivessem um Homem de quem se pudessem fiar, a quem pudessem acudir, e com quem pudessem tratar sem receio, sem cautela, com segurança. Só neste Homem se acha a verdadeira amizade, só neste Homem se acha o verdadeiro remédio. E nós a buscar homens, a comprar homens, a pôr a confiança em homens! Maledictus homo qui confidit in homine (Jer. 7,5): Maldito o homem que confia em homem, – e bendito o homem que confia neste Homem, e só neste Homem, e muito só por só com este Homem, trata do que lhe convém. Levai este ponto para casa, e não quero outro fruto do sermão.

Depois que se apartaram aqueles maus homens (que bastava serem homens, ainda que não fossem maus) diz o evangelista que ficou só Cristo, e diante dele a venturosa pecadora: Remansit Jesus solus, et mulier in medio stans (Jó: 8, 9). Esta foi a maior ventura daquela alma, e esta a melhor hora daquele dia: aquele breve tempo, em que esteve só por só com Cristo. Neste breve tempo, remediou o passado mais o futuro. O passado: Neque ego te condemnabo; o futuro: Noli amplius peccare.[39]) Já que os homens nos levam tanta parte do dia, tomemos todos os dias, sequer um breve espaço, em que a nossa alma se recolha com Deus e consigo, e esteja só por só com Cristo, com este Homem. Oh! se o fizéramos assim, quão verdadeira­mente nos convertêramos a ele!

Chegado Cristo à fonte de Sicar, mandou todos os apóstolos que fossem à cidade buscar de comer, porque era, diz o evangelista, a hora do meio-dia (Jo. 4, 7). Veio neste tempo a samaritana, converteu-a o Senhor, e tornando os apóstolos, pondo-lhe diante o que traziam, não quis comer. Duas grandes dúvidas tem este lugar. Primeira, por que mandou Cristo à cidade os apóstolos todos, sendo que para trazer de comer, bastava um ou dois? Segunda: se os mandou buscar de comer, e traziam, e lho ofereceram, e era meio-dia, por que não comeu? Primeiramente não comeu, porque já tinha comido. Assim o suspeitaram os discípulos, dizendo entre si: Nunquid ali quis attulit ei manducare?[40] Mas não entenderam que quem tinha trazido de comer, era a mesma samaritana. Aquela alma convertida foi para Cris não só a mais regalada iguaria, mas o melhor e o mais esplêndido banquete que lhe podia dar o céu, quanto mais a terra. Tal foi o que também hoje lhe deu, na conversão desta pecadora. Notai. Quando Cristo venceu no deserto as tentações do demônio, banqueteou o céu a Cristo vencedor com iguarias da terra; porém hoje, como tentações foram maiores, e maiores os tentadores, e a vitória maior, foi também maior e melhor o banquete. Lá, a Cristo vencedor das tentações do demônio, serviram-no os anjos com manjares do corpo: Et ecce angeli ministrabant ei;[41] e a Cris vencedor das tentações dos homens, banqueteou a convertida com a sua alma, que para Cristo o prato mais regalado, e aquele que só lhe podem dar os homens, e não os anjos. Esta foi a razão por que o Senhor disse que tinha comido.

E a razão por que mandou à cidade, não parte dos apóstolos, senão todos, f porque havia de converter ali a samaritana, e para uma alma se converter verdadeiramente a Cristo, é necessário que estejam muito a solas: Cristo só por só com alma, a alma só por só com Cristo. Remansit Jesus solus, et mulier in medio stans[42].( Jesus e a alma sós. Esta é a solidão que Deus quer para falar às almas e ao coração Ducam eam in solitudinem, et loquar ad cor ejus.[43] Não é a solidão dos ermos e di desertos: é a solidão em que a alma está só por só com Jesus. Nesta solidão, só por só lhe fala; nesta solidão, só por só ouve; nesta solidão, só por só lhe representa suas misérias, e lhe pede, e alcança o remédio delas e ainda sem o pedir, o alcança. com o silêncio e conhecimento humilde de suas culpas, como aconteceu a esta solitária pecadora. Façamo-lo assim, cristão, por amor de Cristo, que tanto o deseja, por amor de nossas almas, que tanto arriscadas andam, e tão esquecidas de si. Não digo que deixeis o mundo, e que vos vades meter em um deserto; só digo que façais o deserto dentro no mesmo mundo, e dentro de vós mesmos, tomando cada dia um espaço de solidão só por só com Cristo, e vereis quanto vos aproveita. Ali se lembra um homem de Deus e de si; ali se faz resenha dos pecados e da vida passada; ali se libera e compõe a futura; ali se contam os anos, que não hão de tornar; ali se mede a eternidade, que há de durar para sempre; ali diz Cristo à alma eficazmente, e a alma a si mesma um nunca mais muito firme e muito resoluto: Noli amplius peccare; ali enfim se segura aquela tão duvidosa sentença do último juiz: Neque ego te condemnabo: Nem eu te condenarei. – Esta é a absolução das absoluções, esta é a indulgên­cia das indulgências, e esta a graça das graças, sem a qual é infalível o inferno, e com a qual é certa a glória.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Diziam pois isto os judeus, tentando-o, para o poderem acusar (Jo. 8, 6).

[2] Lev. 20, 10; Deut. 22, 20. 21. 24; Dan. 13, 62.

[3] não sabia que do seu rosto saíam uns raios (Êx. 34, 29).

[4] E servirá de pedra de tropeço, e de pedra de escândalo, laço de ruína. E tropeçarão, e cairão, e serão quebrantados, e enredados, e presos (Is. 8,14 s).

[5] Dize que estas pedras se convertam em pães (Mt. 4, 3

[6] Para que não suceda tropeçares em pedra com o teu pé (Mt. 4, 6).

[7] Não só de pão vive o homem (Mt. 4, 4).

[8] Não tentarás ao Senhor teu Deus (Mt. 4, 7).

[9] Por que me tentais? (ML 22, 18).

[10] Como o surpreenderiam no que falasse (Mt. 22, 15).(11)

[11] Consultaram entre si, como o surpreenderiam no que falasse (Mt. 22, 15

[12] A força do pecado é a lei (1 Cor. 15, 56). (13)

[13] Dificultosa coisa pediste (4 Rs. 2, 10).

[14] Mas seja o vosso falar: Sim, sim; Não, não (Mt. 5, 37).

[15] O homem não vive só do pão (Deut. 8, 3).(16)

[16] Não tentarás ao Senhor teu Deus (Deut. 6, 16).

[17] Temerás ao Senhor teu Deus, e só a ele servirás (Deut. 6, 13).

[18] Dela estão pendentes mil escudos, toda a armadura dos esforçados (Cânt. 4, 4

[19] E como eles perseveravam em fazer-lhe perguntas (Jo. 8, 7).

[20] Apareceram uns dedos como de mão de homem que escrevia (Dan. 5, 5).

[21] Porque ainda não entendiam a Escritura, que importava que ele ressuscitasse dentre os mortos (Jo. 20, 9).

[22] Não digais a pessoa alguma o que vistes, enquanto o Filho do homem não ressurgir dos mortos (Mt.17,9)

[23] Ver notas 15,16,17.

[24] Tábuas escritas com o dedo de Deus (Deus. 9, 10).

[25] Pelo dedo de Deus lanço os demônios (Le. 11, 20).

[26] Segundo o príncipe das potestades deste ar (Ef. 2, 2).

[27] E espadas de dois fios nas suas mãos, para fazer vingança nas nações, castigos nos povos (S1.149, 6 s

[28] Firamo-los à espada (Le. 22, 49).

[29] Esta é a vossa hora, e o poder das trevas (Le. 22, 53)

[30] S. August. Tract. 33 In Joan; S. Ambr. Ep. 76 Ad Stud

[31] Foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo (Mt. 4, 1).

[32] Tentando-o para o poderem acusar (Jo. 8, 6).

[33] O Senhor o deu, o Senhor o tirou: Bendito seja o nome do Senhor (Jó 1, 21

[34] Em todas estas coisas não pecou Jó pelos seus lábios, nem falou coisa alguma indiscreta contra Deus (Jó 1, 22).

[35] Tenho falado nesciamente; por isso me repreendo a mim mesmo, e faço penitência no pó e na cinza (Jó 42, 3. 6

[36] Cada um é tentado pela sua própria concupiscência que o atrai e alicia (Tg. 1, 14).

[37] A serpente me enganou (Gên. 3, 13).

[38] Porque não temos um pontífice que não possa compadecer-se das nossas enfermidades, mas que foi tentado em todas as coisas à nossa semelhança, exceto o pecado. Cheguemo-nos pois confiada­mente ao trono da graça, a fim de alcançar misericórdia (Hebr. 4,15 s).

[39] Nem eu tampouco te condenarei (Jo. 8, 11). —Não peques mais (Jo. 8,11).

[40] Será acaso que alguém lhe trouxesse de comer? (Jo. 4, 33).

[41] E eis que chegaram os anjos e o serviram (Mt. 4, 11).

[42] E ficou só Jesus, e a mulher, que estava em pé (Jo. 8, 9).

[43] E a levarei à soledade, e lhe falarei ao coração (Os. 2, 14).