Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DAS LÁGRIMAS DE S. PEDRO,

EM SEGUNDA-FEIRA DA SEMANA SANTA NA CATEDRAL DE LISBOA.
ANO DE 1669

Cantavit gallus et conversus Dominus respexit Petrum, et egressus foras, flevit amare. [1]

§I

Fez Cristo sete pregações a Judas, e não se converte Judas; cantou o galo uma vez, e converte-se Pedro: tudo dependeu do olhar de Cristo. Do pregador são as vozes, de Cristo é toda a eficácia. As lágrimas de Pedro manaram nos olhos de Cristo, como um dilúvio salvador. A conversão dos ouvintes e as águas que brota­ram do penhasco.

Cantou o galo, olhou Cristo, chorou Pedro. Que pregador haverá em tal dia, que não fale com confiança de converter? Que ouvinte haverá em tal hora, que não ouça com esperança de chorar? Na ceia de Betânia e na do Cordeiro, que foram as duas ocasiões últimas em que Cristo teve juntos a seus discípulos, sete vezes falou o Senhor com Judas, e sete vezes lhe pregou para o converter. As palavras, umas foram de amor, outras de compaixão, outras de terror, e porventura que nenhumas disse jamais Cristo tão temerosas: Vae autem homini illi, per quem Filius hominis tradetur (Mt. 26, 24): Ai daquele homem por quem for entregue o Filho do Homem. — Bonum erat ei, si natos non fuisset honro ille: Melhor lhe fora a tal homem nunca haver nascido. — Ainda ditas a Judas, fazem tremer estas palavras. Mas nem as amorosas o abrandaram, nem as compassivas o enter­neceram, nem as temerosas o compungiram; a nada se rendeu Judas. Negou S. Pedro na mesma noite a Cristo; negou uma, negou duas, negou três vezes; cantou na última negação o galo: Et statim gallus cantavit (Jo. 18, 27); e no mesmo ponto sai Pedro da casa de Caifás, convertido, e põe-se a chorar amargamente seu pecado: Egressus foras, flevitama­re (Lc. 22, 63). Notável caso! De maneira que faz Cristo sete pregações a Judas, e não se converte Judas; canta o galo uma vez, e converte-se Pedro? Sim: porque tanto vai de olhar Cristo, ou não olhar. A Pedro pôs-lhe os olhos Cristo: Respexit Petrum (Lc. 22, 61); a Judas não lhe pôs os olhos. Se Cristo põe os olhos, basta a voz irracional de um galo para converter pecadores; se Cristo não põe os olhos, não basta a voz, nem bastam sete vozes de mesmo Cristo para converter. Non est sacis concionatoris vox, nisi simul adsit Christi in peccatorem respectus — disse gravemente neste caso S. Gregório Papa.[2] Do pregador são só as vozes; dos olhos de Cristo é toda a eficácia. E quando temos hoje os olhos de Cristo tão propícios, que pregador haverá tão tíbio, e que ouvinte tão duro, que não espere grandes efeitos ao brado de suas vozes? Senhor, os vossos olhos são os que hão de dar as lágrimas aos nossos.

As mais bem nascidas lágrimas que nunca se choraram no mundo foram as de S. Pedro, porque tiveram o seu nascimento nos olhos de Cristo; nos olhos de Cristo nasceram, dos olhos de Pedro manaram; nos de Cristo quando viu: Respexit Petrum; dos de Pedro quando chorou: Flevit amare. Rios de lágrimas foram hoje as lágrimas de S. Pedro, mas as fontes desses rios foram os olhos de Cristo. Ao Nilo, antigamente viam-se-lhe as correntes, mas não se lhe sabia a origem; tais em Pedro hoje os dois rios, ou os dois Nilos de suas lágrimas. A origem era oculta, porque tinham as fontes nos olhos de Cristo; as correntes eram públicas, porque manavam dos olhos de Pedro. Para o dilúvio universal, diz o texto sagrado, que se abriram as janelas do céu e se romperam as fontes dos abismos; Apertae sunt cataratae caeli, rupti sunt fontes abyssi (Gên. 7, 11). Assim também para este dilúvio (em que hoje fora tão ditoso o mundo se se afogara) abriram-se as janelas do céu, que são os olhos de Cristo, romperam-se as fontes do abismo, que são os olhos de Pedro. Desta maneira inundou aquele imenso dilúvio, em que depois de fazer naufrágio, se salvou o melhor Noé.

Esta é a lastimosa e gloriosa representação com que a Igreja dá feliz princípio neste dia a uma semana que devera ser santa na compunção, como é santa no nome. Faltando água no deserto a um povo, que era figura deste nosso, chegou-se Moisés a um penhasco, deu-lhe um golpe com a vara, e não saiu água: deu o segundo golpe, e saíram rios: Egressae sunt aquae laigissimae (Num. 20, 11). Que penhasco duro é este, senão o meu coração e os vossos? Deu a Igreja o primeiro golpe, no dia das lágrimas da Madrilena, mas não deram as pedras água; dá hoje o segundo golpe, no dia das lágrimas de S. Pedro, e no dia em que tanto chorou Pedro, como não chorarão as pedras? Mas não são estes os golpes que eu trago posta a confiança. Os dos vossos olhos, Senhor, que fizeram rios os olhos de Pedro, são os que hão de abrandar a dureza dos nossos. Pelas lágrimas daquela Senhora que não teve pecados que chorar, nos concedei hoje lágrimas com que choremos nossos pecados. E pois ela chorou só por nós e para nós, sua piedade nos alcance de vossos piedosos olhos esta graça Ave Maria.

§II

Os olhos, único sentido que tem dois ofícios: ver e chorar. Por que a natureza e a providência ajuntou nos mesmos olhos dois efeitos tão contrários? Origem das lá­grimas de Davi, de Siquém, de Jacó e de Sansão. A vista de Eva, princípio de todas as lágrimas. O elogio das lágrimas. Queixa do Espírito Santo contra os nossos olhos.

Egressus foras Petrus flevit amare.

Notável criatura são os olhos! Admirável instrumento da natureza! Prodigioso artifício da Providência! Eles são a primeira origem da culpa, eles a primeira fonte da graça. São os olhos duas víboras metidas em duas covas, em que a tentação pôs o veneno, e a contrição a triaga. São duas setas com que o demônio se arma para nos ferir e perder, e são dois escudos com que Deus, depois de feridos; nos repara para nos salvar. Todos os sentidos do homem têm um só ofício; só os olhos têm dois. O ouvido ouve, o gosto gosta, o olfato cheira, o tato apalpa, só os olhos têm dois ofícios: ver e chorar. Estes serão os dois pólos do nosso discurso.

Ninguém haverá, se tem entendimento, que não deseje saber por que ajuntou a natureza no mesmo instrumento as lágrimas e a vista, e por que uniu na mesma potência o ofício de chorar e o de ver? O ver é a ação mais alegre; o chorar a mais triste. Sem ver, como dizia Tobias, não há gosto, porque o sabor de todos os gostos é o ver (Tob. 5, 12); pelo contrário, o chorar é o estilado da dor, o sangue da alma, a tinta do coração, o fel da vida, o líquido do sentimento. Por que ajuntou logo a natureza nos mesmos olhos dois efeitos tão contrários: ver e chorar? A razão e a experiência é esta: ajuntou a natureza a vista e as lágrimas, porque as lágrimas são conseqüência da vista; ajuntou a Providência o chorar com o ver, porque o ver é a causa do chorar. Sabeis por que choram os olhos? Porque vêem. Chorou Davi toda a vida, e chorou tão continuamente, que com as lágrimas sustentava a mesma vida: Fuerunt mihi lácrymae meae panes. [3] E por que chorou tanto Davi? Porque viu: Vidit mulierem.[4] Chorou Siquém, chorou Jacó, chorou Sansão, um príncipe, outro pastor, outro soldado, e por que pagaram este tributo tão igual às lágrimas os que tinham tão desigual fortuna? Porque viram: Siquém a Dina, Jacó a Raquel, Sansão a Dalila. Choraram os que com suas lágrimas acrescentaram as águas do dilúvio; e por que choraram? Porque tendo o nome de filhos de Deus, viram as que se chamavam filhas dos homens: Videntes filii Dei, filias hominum (Gên. 6, 2). Mas para que são exemplos parti­culares, em uma causa tão comum e tão universal de todos os olhos? Todas as lágrimas que se choram, todas as que se têm chorado, todas as que se hão de chorar até o fim do mundo, onde tiveram seu princípio? Em uma vista: Vidit mulher, quod bonum esset lignum ad vescendum. [5] Viu Eva o pomo vedado, e assim como aquela vista foi a origem do pecado original, assim foi o princípio de todas as lágrimas que choramos os que também então começamos a ser mortais. Digam-me agora os teólogos: se os homens se conservaram na justiça original, em que foram criados os primeiros pais, havia de haver lágrimas no mundo? Nem lágrimas, nem uma só lágrima. Nem havíamos de entrar neste mundo chorando, nem havíamos de chorar enquanto nele vivêssemos, nem havíamos de ser chorados quando dele partíssemos. Aquela vista foi a que converteu o paraíso de deleites em vale de lágrimas; por aquela vista choramos todos. Mas, que diriam sobre esta ponderação os que neste dia fazem panegíricos às lágrimas? Diriam que estima Deus tanto as lágrimas choradas por pecados, que permitiu Deus o pecado de Adão, só por ver chorar pecadores. Diriam que permitiu Deus o pecado, da sua parte, para que os homens vissem a Deus derramar sangue; da nossa parte, para que Deus visse aos homens derramar lágrimas. Não é o meu intento dizer estas coisas. Que importa em semelhantes dias que as lágrimas fiquem louvadas, se os olhos ficam enxutos? O melhor elogio das lágrimas é chorá-las.

Chorou Eva, porque viu, e choramos os filhos de Eva, porque vemos. Mas eu não me admiro de que os nossos olhos chorem porque vêem; o que me admira muito, é que sejam tão cegos os nossos olhos, que vejam para chorar. Só os olhos racionais choram; e se é efeito da razão chorar porque viram, não pode haver maior sem-razão que verem para chorar. É queixa do Espírito Santo, e invectiva que fez contra os nossos olhos, no capítulo trinta e um do Eclesiástico: Nequius oculo quid creatum est?[6]  — Entre todas as coisas criadas, nenhuma há mais desarrazoada no mundo, nenhuma mais perversa que os olhos. E por quê? Porque são tais, diz o mesmo Espírito Santo, que vêem para chorar: Ab omni facie sua lacrymabitur cum viderit.[7] Põem-se os olhos a ver a uma parte e a outra, e depois põem-se a chorar porque viram. Pois, olhos cegos, olhos maladvertidos, olhos inimigos de vós mesmos: se a vossa vista vos há de custar lágrimas, se vedes para chorar, ou haveis de chorar porque vistes, para que vedes? É possível que haveis de chorar porque vistes, e haveis de ver para chorar? Lacrymabitur cum viderit? Assim é, e estes são os nossos olhos: choram porque vêem, e vêem para chorar. O chorar é o lastimoso fim do ver, e o ver é o triste princípio do chorar. Chorou hoje S. Pedro, e chorou tão amargamente, como logo veremos. E donde nasceu este chorar? Nasceu do ver. Naquela trágica noite da Paixão de Cristo, entrou Pedro no átrio do pontífice Caifás, e o fim com que entrou foi para ver: Ut videret finem. [8] E vós, Pedro, entrais aqui para ver? Pois vós saireis para chorar. Quisestes ver o fim? Vereis o fim do ver. Egressus foras flevit amare.

§ III

Do ver segue-se o pecar; do pecar segue-se o chorar. Todos os pecados são conseqüência do ver. Pecam os olhos em todos os pecados, e é justo que paguem por todos chorando. Quer a Igreja que os olhos, fonte da culpa, sejam também fonte da penitência.

Basta o dito para sabermos que o chorar é efeito ou conseqüência do ver. Mas como se segue esta conseqüência? Segue-se de um meio-termo terrível, que se complica com o ver e com o chorar, sendo conseqüente de um e antecedente de outro. Do ver segue-se o pecar, do pecar segue-se o chorar, e por isso o chorar é conseqüência do ver. Depois que Eva e Adão pecaram, diz o texto que a ambos se lhes abriram os olhos: Aperti sunt oculi amborum (Gên. 3, 7). Pergunto: Antes desta hora, Adão e Eva não tinham os olhos abertos? Sim, tinham: viram o paraíso, viram a serpente, viram a árvore, viram o pomo, viram-se a si mesmos; tudo viram e tudo viam. Pois se viam e tinham os olhos abertos, como diz o texto que agora se lhes abriram os olhos? Abriram-se-lhes, para começar a chorar, porque até ali não tinham chorado: Aperti sunt oculi ad quod antea non patebant, diz Santo Agostinho.[9] Criou Deus os olhos humanos com as portas do ver abertas, mas com as portas do chorar fechadas. Viram e pecaram, e o pecado que entrou pelas portas do ver, saiu pelas portas do chorar. Estas são as portas dos olhos que se abriram: Aperti sunt oculi amborum. Pecaram, porque viram; choraram, porque pecaram. Pagaram os olhos o que fizeram os olhos, porque justo era que se executasse nos olhos o castigo, pois os olhos foram a causa e ocasião do delito.

Dir-me-eis porventura, que em Eva e no seu pecado, teve lugar esta conse­qüência; em nós e nos nossos olhos não, ao menos em todos. Em Eva sim, porque entrou o seu pecado pelos olhos; em nós não, porque ainda que alguns dos nossos pecados entrem pelos olhos, muitos têm outras entradas. Digo que em todos os pecados é o chorar conseqüência do ver, e não quero outra prova senão as mesmas lágrimas. Dai-me atenção.

Coisa é digna, não só de reparo, senão de espanto, que queira Deus e aceite as lágrimas por satisfação de todos os pecados. É misericórdia grande, mas misericórdia que não parece justiça. Que paguem os olhos os pecados dos olhos, que paguem os olhos chorando o que os olhos pecaram vendo, castigo é muito justo e justiça muito igual; mas que os olhos hajam de pagar pelos pecados de todas as potências da alma, e pelos pecados de todos os sentidos e membros do corpo, que justiça e que igualdade é esta? Se o homem peca nos maus passos, paguem os pés; se peca nas más obras, paguem as mãos; se peca nas más palavras, pague a língua; se peca nos maus pensamentos, pague a memória; se peca nos maus juízos, pague o entendimento; se peca nos maus desejos e nos maus afetos, pague a vontade; mas que os tristes olhos hajam de pagar tudo, e por todos? Sim, porque é justo que pague por todos quem é causa ou instrumento dos pecados de todos. Lede as Escrituras, e lede-as todas (que não é necessária menos lição para este assunto) e achareis que em todos os pecados do corpo e da alma, são cúmplices os olhos. Pecou a alma, os olhos são os culpados: Oculus meus depraedatus est animam mean.[10] Pecou o corpo, os olhos são os delinqüentes: Si oculus tuus fuerit nequam, totus corpus tuum tenebrosum erit.[11] Todos os pecados do homem, os de pensamento, os de palavra, os de obra, saem imediatamente do coração: De corde exeunt cogitationes malae:[12] eis aí os pecados do pensamento; Homicidia, adulteria, furta: eis aí os pecados de obra. Falsa testimonia, blasphemiae: eis aí os pecados de palavra. E para todos esses pecados, a quem segue o coração? Aos olhos. Si secutum est oculos meos corneum.[13] Se seguis com tantas ânsias as vaidades do mundo, os vossos olhos são os que vos levam à vaidade: Averte oculos meos, ne videant vanitatem.[14] Se seguis tão insaciavelmente as riquezas, os vossos olhos são os desta sede insaciável: Nec satiantur oculi ejus divitüs.[15] Se vos cegais e vos deixais arrebatar e enfurecer da paixão, os vossos olhos são os apaixonados: Turbatus est a furore oculus meus.[16] Se vos vingais e não perdoais o agravo, os vossos olhos são os vingativos e os que não perdoam: Non parcet eis oculus tuus.[17] Se estais preso e cativo da má afeição, os vossos olhos são os laços que vos prenderam e vos cativaram: Capiatur laqueo oculorum suorum.[18] Se desejais o que não deveis desejar, e apeteceis o que não deveis apetecer, os vossos olhos são os que desejam: Desideraverunt oculi mei;[19] e os vossos olhos são os que apetecem: Concupiscentia oculorum suorum.[20] Se desprezais o que deveis estimar, e aborreceis o que devereis amar, os vossos olhos são os que desprezam: Despexit oculus meus;[21] os vossos olhos são os que aborrecem: Non rectis oculis aspiciebat. [22] Infinita matéria fora se houvéramos de discorrer por todos os movimentos viciosos e por todas as ações de pecado, em que são cúmplices os olhos. Mas pois todos os pecados, e suas espécies, estão reduzidas a sete cabeças, vede como pecam os olhos em todos os pecados capitais. Se pecais no pecado da soberba, os vossos olhos são os soberbos: Oculos superborum humiliabis.[23] Se pecais no pecado da avareza e da cobiça, os vossos olhos são os avarentos e os cobiçosos: Insatiabilis oculus cupidi.[24] Se pecais no pecado da luxúria, os vossos olhos são os torpes e sensuais: Oculos eorum fornicantes.[25] Se pecais no pecado da ira, os vossos olhos são os impacientes e irados: Conturbatus est in ira oculus meus.[26] Se pecais no pecado da inveja, os vossos olhos são os invejosos do bem alheio: Nequam et oculus lividi.[27] Se pecais no pecado da gula, os vossos olhos são os apetitosos e os malsatisfeitos: Nihil respiciunt oculi nostri nisi man.[28] Se pecais no pecado da acídia, os vossos olhos são os negligentes e os tíbios: Oculi mei langue­runt.[29] Finalmente, se ofendeis a Deus e à sua lei em qualquer pecado, os vossos olhos são os que ofendem: Offensiones oculorum abiiciat.[30] E não há pecado tão feio, nem maldade tão abominável no mundo, que não sejam os olhos a causa dessa abominação: Abominationes oculorum suorum.[31] E pois, os olhos pecam em todos os pecados, vendo, que muito é que paguem em todos e por todos, chorando?

Assim como provei a verdade da culpa com toda a Escritura, assim hei de provar a justificação da pena com toda a Igreja. Quo fonte manavit nefas, fluent perennes lacrymae [32]. Sabeis, filhos, diz a Igreja, por que vos manda Deus que chorem os olhos por todos os pecados? É porque os olhos são a fonte de todos: Quo fonte manavit nefas, fluent perennes lacrymae: Chorai pois, diz a Santa Igreja, chorai e chorem perenemen­te os vossos olhos: e pois esses olhos foram a fonte do pecado, sejam também a fonte da contrição; pois esses foram a fonte da culpa, sejam também a fonte da penitência; foram a fonte da culpa enquanto instrumento de ver, sejam a fonte da penitência en­quanto instrumentos de chorar; e já que pecaram vendo, paguem chorando. De maneira que são os nossos olhos, se bem se considera, duas fontes, cada uma com dois canais e com dois registros: um canal, que corre para dentro, e se abre com o registro do ver; outro canal, que corre para fora, e se solta com o registro do chorar. Pelos canais que correm para dentro, se os registros se abrem, entram os pecados; pelos canais que correm para fora, se os registros ou as presas se soltam, saem as lágrimas. E pois as correntes do pecado entram pelos olhos, vendo, justo é que as correntes das lágrimas saiam pelos mesmos olhos, chorando.

Vede que misteriosamente puseram as lágrimas nos olhos a natureza, a justiça, a razão, a graça. A natureza para remédio, a justiça para castigo, a razão para arrependimento, a graça para triunfo. Como pelos olhos se contrai a mácula do pecado, pôs a natureza nos olhos as lágrimas, para que com aquela água se lavassem as manchas; como pelos olhos se admite a culpa, pôs a justiça nos olhos as lágrimas, para que estivesse o suplício no mesmo lugar do delito; como pelos olhos se concebe a ofensa, pôs a razão nos olhos as lágrimas, para que onde se fundiu a ingratidão, a desfizesse o arrependimento; e como pelos olhos entram os inimigos à alma, pôs a graça nos olhos as lágrimas, para que pelas mesmas brechas, por onde entraram vencedores, os fizesse sair correndo. Entrou Jonas pela boca da baleia pecador; saia Jonas pela boca da baleia arrependido. Razão é logo, e justiça, e não só graça, senão natureza, que pois os olhos são a fonte universal de todos os pecados, sejam os rios de suas lágrimas a satisfação também universal de todos, e que paguem os olhos por todos chorando, já que pecaram em todos vendo: Quo fonte manavit nefas, fluent perennes lacrymae.

§ IV

Os olhos, e não a língua, os primeiros culpados nas negações de Pedro. O pai de famílias da parábola das vinhas não se queixou das línguas dos cavadores, senão de seus olhos. Assim Pedro chorou amargamente para que os olhos pagas­sem o ver, e a amargura pagasse o negar.

Agora se entenderá facilmente uma dúvida não fácil entre as negações de S. Pedro e as suas lágrimas. As negações de S. Pedro, todas foram pecado de língua. A língua foi a que na primeira negação disse: Non sum. [33] A língua foi a que na segun­da tentação disse: Non novi hominem. [34] A língua foi a que na terceira negação disse: Homo, nescio quid dicis. [35] Pois se a língua foi a que pecou, por que foram os olhos os que pagaram o pecado? Por que não condenou S. Pedro a língua a perpétuo silêncio, senão os olhos a perpétuas lágrimas? Porque ainda que a língua foi a que pronunciou as palavras, os olhos foram os primeiros culpados nas negações; a lín­gua foi o instrumento, os olhos deram a causa.

Na parábola das vinhas, foram chamados os cavadores a diferentes horas. Ao pôr-do-sol, mandou o pai de famílias que se pagasse a todos o seu jornal; mas vendo os primeiros, que lhes igualavam os últimos: Murmurabant adversus pa­irem familias (Mt. 20, 11): começaram a murmurar contra o pai de famílias. — O que agora noto (e não sei se se notou até agora) é que repreendendo o pai de famílias aos murmuradores, não se queixou das suas línguas, senão dos seus olhos: An oculus tuus nequam est, guia ego bonus sum (Mt. 20, 15)? Basta que porque eu sou bom, os vossos olhos hão de ser maus? — Assim o disse e assim se queixou o pai de famílias; mas eu não vejo a razão desta sua queixa. A sua queixa era dos murmuradores e da murmuração; os olhos não são os que murmuram, senão a língua. Pois por que se não queixa da língua, senão dos olhos? Porque ainda que das línguas saiu a murmuração, os olhos, e maus olhos, deram a causa. Muitos murmuradores murmuram o que não vêem; mas estes só murmuraram o que vi­ram. Viram que eles tinham trabalhado todo o dia; isso murmuraram: Portavimus pondus diei et aestus.[36] Viram que os outros vieram tarde, e muito tarde; isso murmuraram: Hi novissimi unam horam fecerunt. [37] Viram que, sendo desiguais no trabalho, lhos igualavam no prêmio; isso murmuravam: Pares illos nobis fe­cisti.[38] E como a murmuração, ainda que saiu pela língua, teve a ocasião nos olhos, por isso são repreendidos e castigados os olhos, e não a língua: An oculus tuus nequam est?[39] Assim o julgou contra os olhos daqueles murmuradores o pai de famílias, e assim se sentenciou também S. Pedro contra os seus. As suas nega­ções saíram pela língua, mas a causa e a ocasião, deram-na os olhos. Negou por­que quis ver, porque se não quisera ver, não negara; pois ainda que a língua foi o instrumento da negação, castiguem-se os olhos que foram a causa. Se os olhos não foram curiosos para ver, não fora a língua fraca para negar. E pois os olhos, por quererem ver, puseram a língua em ocasião de negar, paguem os olhos por si, e paguem pela língua: pela língua paguem o negar, e por si paguem o ver.

E se não, pergunto: Por que dizem os evangelistas com tão particular advertência, que chorou Pedro amargamente: Flevit amare? Se queriam en­carecer as lágrimas de Pedro pela cópia, digam que se fizeram seus olhos duas fontes perenes de lágrimas, digam que chorou rios, digam que chorou mares, digam que chorou dilúvios. E se queriam encarecer esses dilúvios de lágrimas, não pela cópia, senão pela dor, digam que chorou tristemente, di­gam que chorou sentidamente, digam que chorou lastimosamente, digam que chorou irremediavelmente, ou busquem outros termos de maior tristeza, de maior lástima, de maior sentimento, de maior pena, de maior dor. Mas que, deixado tudo isto só digam e ponderem que chorou amargamente: Flevit amare? Sim, e com muita razão, porque o chorar pertence aos olhos, a amar­gura pertence à língua, e como os olhos de Pedro choravam por si e mais pela língua, era bem que a amargura se passasse da língua aos olhos, e que não só chorasse Pedro, senão que chorasse amargamente: Flevit amare. Como à culpa dos olhos em ver se ajuntou com a culpa da língua em negar, ajuntou-se também o castigo da língua, que é a amargura, com o castigo dos olhos, que são as lágrimas, para que as lágrimas pagassem o ver, e a amargu­ra pagasse o negar, e os olhos, chorando amargamente, pagassem por tudo: Flevit amare.

§V

Se S. Pedro chora porque negou, por que não chora quando negou, ou depois de negar, senão só depois de sair? Ver e chorar, dois ofícios incompatíveis no mes­mo tempo. Davi no enterro de Abner. Ovídio e o pranto de Ariadne. Pedro, como os portugueses na morte de D. Manoel, cobre o rosto para chorar.

Mas se o ver em Pedro foi ocasião de negar, e o negar foi a causa de chorar, por que não chorou Pedro quando negou, senão depois que saiu: Egressus foras flevit? Negou a primeira vez, e ficou com os olhos enxutos como dantes; negou a segunda vez, e ficou do mesmo modo; negou a terceira vez, e nem ainda então chorou. Sai Pedro finalmente fora, e depois que saiu, então saíram também as lágri­mas: Egressus foras flevit amare. Pois, se Pedro chora porque negou, por que não chora quando negou, ou depois de negar, senão quando saiu, e depois de sair? Por­que, enquanto Pedro não saiu fora, persistia na ocasião de ver e querer ver, e os olhos, enquanto vêem, não podem chorar. O ver e o chorar, como dizíamos, são os dois ofícios dos olhos, mas são ofícios incompatíveis no mesmo tempo: enquanto vêem, não podem chorar, e se querem chorar, hão de deixar de ver. Por isso saiu fora Pedro, não só para chorar, senão para poder chorar, porque para os seus olhos exer­citarem o ofício de chorar, haviam de cessar do exercício de ver.

Notável filosofia é a dos nossos olhos no chorar e não chorar. Se choramos, o nosso ver foi a causa, e se não choramos, o nosso ver é o impedimento. Como estes nossos olhos são as portas do ver e do chorar, encontram-se nestas portas as lágrimas com as vistas: as vistas para entrar, as lágrimas para sair. E porque as lágrimas são mais grossas, e as vistas mais sutis, entram de tropel as vistas, e não podem sair as lágrimas. Vistes já nas barras do mar encontrar-se a força da maré com as correntes dos rios? E porque o peso do mar é mais poderoso, vistes como as ondas entram e os rios param? Pois o mesmo passa nos nossos olhos. Todos os objetos deste mar imenso do mundo, e mais os que mais amamos, são as ondas, que umas sobre as outras entram pelos nossos olhos, e ainda que as lágrimas dos mesmos olhos tenham tantas causas para sair, como o sentido do ver pode mais que o sentimento do chorar, vemos quando havíamos de chorar, e não choramos, porque não cessamos de ver. Vejamos tudo nos olhos de Davi, que do ver nos deixou tantos desenganos, e do chorar tantos exemplos.

Morto lastimosamente o príncipe Abner, mandou Davi que todo o exército vestido de luto e arrastando as armas, o acompanhasse até a sepultura, e o mesmo rei o acompanhou também: Porro David sequebatur feretrum (2 Rs. 3, 31). Desta ma­neira foi marchando e continuando o enterro até o lugar do sepulcro, mas ninguém chorava. Tiram o corpo do esquife, e ainda aqui se não viram nem ouviram lágrimas; metem finalmente o cadáver na sepultura, cerram a porta, eis que começa Davi a rebentar em lágrimas, e todos como ele em pranto desfeito: Cumque sepellissent Abner, levavit David vocem suam, et flevit super tumulum: flevit autem et omnis populus (2 Rs. 3, 32). Pois se no enterro, e antes de enterrado Abner, nem Davi, nem o exército chora, por que chora tanto Davi, e choram todos com ele no mesmo ponto em que foi metido na sepultura? Porque no enterro, e antes de enterrado, viam a Abner; depois de enterrado, já o não viam. Como a ação de chorar se impede pela resistência do ver, enquanto os olhos viram, estiveram represadas as lágrimas; tanto que não tiveram que ver, começaram as lágrimas a sair. Não puderam chorar os olhos enquanto viram; tanto que não viram, choraram. Sirvam as letras humanas às divinas, e ouçamos aquele engenho, que melhor que todos soube exprimir os afetos da dor e da natureza: Iamque oculis ereptus eras, turn denique flevi. [40] A história pode ser fabulosa, mas a filosofia é verdadeira. Enquanto Ariadne pôde seguir com os olhos a Teseu, estiveram as lágrimas suspensas, embargadas pela vista; mas tanto que já o não pôde ver: Iamque oculis ereptus eras, tirado o impedimento da vista, começaram as lágrimas a correr: Turn denique flevi.

Esta foi a razão ainda natural por que Pedro saiu do lugar onde via, e onde entrara para ver. Saiu para que as suas lágrimas saíssem: Et egressus foras, flevit ama­re. Entrou para ver, saiu para chorar, porque enquanto a vista tinha entrada, não podiam as lágrimas ter saída. E para que o mesmo S. Pedro nos prove a verdade desta filosofia, diz S. Marcos no texto grego, conforme a interpretação de Teofilato, que saindo S. Pedro do átrio, lançou a capa sobre o rosto, e então começou a chorar: Cum caput obvelasset, flevit (Mc. 14, 30). Para Pedro poder chorar, cobriu primeiro os olhos para não ver. Saiu para não ver o que via, e cobriu os olhos para que nenhuma coisa vissem, e quando não viu, nem pôde ver, então pôde chorar, e chorou: Flevit. O pranto mais público que se viu na nação portuguesa, foi quando chegaram à Índia as novas da morte de el-rei Dom Manoel, primeiro e verdadeiro pai daquela monarquia. Estava o vice-rei na Sé, como nós agora, ouvindo sermão, e tanto que lhe deram a triste nova, diz a história que lançou a capa sobre o rosto, e que fazendo todo o auditório o mesmo, começaram a chorar em grito, e se levantou o maior, e mais lastimoso pranto que jamais se vira. Este era o uso dos capuzes portugueses, quando também se usava o chorar. Metiam os capuzes na cabeça até o peito, cobriam e escureciam os olhos, e assim choravam e lamentavam o defunto. Depois que as mortes se não choram, trazem-se os capuzes por detrás das costas, para que nem os olhos os vejam. Não foi assim o luto que Pedro fez pela morte da sua alma; mas porque a quis logo chorar, cobriu os olhos para não ver: Cum caput obvelasset, flevit.

§ VI

Para onde se retirou S. Pedro depois da negação? Davi, o Pedro da lei escri­ta; Pedro, o Davi da lei da graça. As lágrimas de Pedro e o desejo de Jeremias.

Assim saiu Pedro do lugar da sua desgraça. Mas para onde saiu? Diz Nicéfo­ro, e outros autores eclesiásticos mais vizinhos daquele tempo, que se foi S. Pedro meter em uma cova, entre Jerusalém e o Monte Sião. Tinha prometido morrer com Cristo, mas porque não tivera ânimo para morrer, teve resolução para se sepultar. Nesta sepultura triste, solitária, escura, como os olhos não tiveram luz para ver, tiveram maior liberdade para chorar. Só na suposição de um paralelo se pode conhe­cer este excesso, ou este artifício das lágrimas de S. Pedro. Os dois exemplares da penitência que Deus pôs neste mundo em uma e outra lei, foi S. Pedro e Davi. Davi foi o Pedro da lei escrita; Pedro foi o Davi da lei da graça. E assim como S. Pedro escolheu lugar particular para as suas lágrimas, assim Davi escolheu tempo particu­lar para as suas. Mas qual escolheu melhor e mais finamente? Agora o veremos.

O tempo que Davi escolheu para as suas lágrimas, foi o que diz mais com os tristes: o tempo escuro da noite: Per singulas noctes, lacrymis meis stratum meum rigabo.[41] De dia governava, de noite chorava: o dia dava aos negócios, a noite às lágrimas. Oh! que exemplo este para reis, para ministros, e para todos os que gastam o dia em ocupações, ou públicas, ou particulares! As flores anoitecem murchas e quase secas, mas com o orvalho da noite amanhecem frescas, vigorosas, ressuscita­das. Assim o fazia Davi, e assim regava a sua alma todas as noites: Per singulas noctes, lacrymis meis stratum meum rigabo. Mas tornemos ao motivo desta eleição. E por que razão escolhia Davi o tempo escuro da noite para chorar? Porque de dia, com a luz, como está livre o uso do ver, fica embaraçado o exercício do chorar; mas de noite, com a sombra e escuridade das trevas, fica livre e desembaraçado o exercí­cio do chorar, porque está impedido o uso de ver. A mesma razão seguiu S. Pedro na eleição da sua cova, mas com maior crédito da sua dor, e para maior excesso das suas lágrimas. Davi escolheu o tempo da noite, e assim chorava de noite, mas de dia não chorava; porém Pedro escolheu uma cova escura, em que de dia e de noite sempre fosse noite, para que de dia e de noite sempre chorasse. Os olhos de Davi, alternando o dia com a noite, alternavam também o ver com o chorar; porém os olhos de Pedro, metidos naquela noite sucessiva e continuada, nem de dia, nem de noite viam, e de dia, e de noite sempre choravam.

Só Pedro pôde conseguir para as suas lágrimas o que só Jeremias soube desejar para as suas: Quis dabit capiti meo aquam, et oculis meis fontem lacrymarum, et plorabo die ac nocte! [42] Oh! quem dera fontes de lágrimas a meus olhos, dizia Jere­mias, para chorar de dia e de noite! Vede quão discreta e quão encarecidamente pedia Jeremias. Não só pedia lágrimas, senão fontes de lágrimas: Fontem lacrymarum. E por que pedia fontes? Porque desejava chorar de dia e de noite: Et plorabo die ac nocte. As fontes não fazem diferença de noite a dia: de dia e de noite sempre correm, e como Jeremias desejava chorar de dia e de noite: Plorabo die ac nocte, por isso pedia fontes de lágrimas, ou lágrimas como fontes: Et oculis meis fontem lacrymarum. Tais eram as fontes dos olhos de Pedro naquela cova escura. Não havia ali diferença de noite a dia, porque não havia luz, e como a luz não interrompia a noite, a vista não interrompia as lágrimas: a noite suspendia perpetuamente o ver, as lágri­mas continuavam perpetuamente a chorar. Chorava amargamente porque vira, cho­rava continuamente porque não via: fora do paço, onde vira, para não ver; dentro da cova, onde não via, para sempre chorar: Egressus foras, flevit amare.

§VII

Que dizem os olhos de Pedro? O concerto de Jó com seus olhos. As três tentações, representadas pelas ancilas e pelo soldado. O escândalo dos olhos e a admoestação de Cristo.

Até agora falamos com os olhos de Pedro: agora falem os olhos de Pedro com os nossos. Os olhos também falam: Neque taceat pupilla oculi tui. [43] E que dizem os olhos de Pedro? Que dizem aqueles dois grandes pregadores aos nossos olhos? Olhos, aprendei de nós: nós vimos, e porque vimos, choramos; do nosso ver, aprendei a não ver; do nosso chorar aprendei a chorar. Oh! que grandes duas lições para os nossos olhos!

Se Pedro, quando quis ver a Cristo, negou três vezes a Cristo, os olhos que querem ver as criaturas, quantas vezes o negarão? Se nega a Cristo Pedro quando quer ver, levado do amor de Cristo, como não negarão a Cristo os que querem ver, levados de outro amor? Se quem entrou a ver uma tragédia da paixão de Cristo teve tanto que chorar, os que entram a ver outras representações e outros teatros, que fruto hão de colher daquelas vistas? Diz S. Leão Papa que os olhos de Pedro se batizaram hoje nas suas lágrimas. Bem se podem batizar os nossos olhos outra vez, porque não têm nada de cristãos. Comparai aquela cova de Chipre com a de Jerusalém; comparai as nossas vistas, ou as nossas cegueiras, com a de S. Pedro. Não digo que se metam os nossos olhos em uma cova, porque não há hoje tanto espírito no mundo; mas, ao menos, não comporemos os nossos olhos? Não faremos ao menos com os nossos olhos aquele concerto que fez Jó com os seus?

Pepigi faedus cum oculis meis, ut ne cogitarem quidem de virgine.[44] Falava Jó do vício contra a honestidade, em que tanta parte têm os olhos, e diz que fez concerto com os seus, para não admitir o pecado no consentimento, nem ainda na imaginação. Este concerto, parece que não se havia de fazer com os olhos, senão como entendimento e com a vontade. O consentimento pertence à vontade, a imagi­nação pertence ao entendimento: faça-se logo o concerto com a vontade que consente, e com o entendimento que cuida e imagina, e não com os olhos, que somente

vêem. Não, — diz Jó. — Com os olhos se há de fazer o concerto, porque o pecado, ou o que há de ser pecado, entra pela vista, da vista passa à imaginação, e da imagina­ção ao consentimento; logo, para que não chegue ao consentimento, nos olhos, onde está o primeiro perigo, se há de pôr a cautela, nos olhos a resistência, nos olhos o remédio. Notou advertidamente Salmeirão, que sucede aos homens nos pecados desta casta o mesmo que sucedeu a São Pedro nas suas negações. Para as negações de São Pedro concorreram duas tentadoras e um tentador: a primeira e a segunda tentadora foram as duas ancilas, e o terceiro tentador foi o soldado da guarda de Caifás. Assim também as nossas negações. A primeira ancila, e a primeira tentadora, é a vista; a segunda ancila, e a segunda tentadora é a imaginação; e o terceiro tenta­dor é o consentimento, em que se consuma o pecado. E assim como nas negações de Pedro a primeira tentadora foi a ancila ostiária, a porteira, assim nas nossas nega­ções a primeira tentadora é a vista, que é a porteira, e a que tem nos olhos as chaves das outras potências. Por isso Jó fez concerto com os seus olhos, para que estas portas estivessem sempre fechadas.

Não fecharemos estas portas tão arriscadas da nossa alma, ao menos nestes dias, em reverência dos olhos de Cristo? No mesmo tempo em que Pedro estava negando a Cristo, estava Cristo com os olhos tapados, padecendo tantas afrontas. Consente Cristo que lhe tapem os olhos tão afrontosamente por amor de mim, e eu por amor de Cristo, não fecharei os olhos? Consente Cristo que lhe tapem os olhos para me salvar, e eu abrirei os olhos para me perder?

Olhai quanto mais encarecida é a doutrina de Cristo neste caso; Si oculus tuus scandalizat te, erue eum, et projice abs te (Mt. 12, 9): Se os vossos olhos vos servem de escândalo, se vos fazem cair, arrancai-os e lançai-os fora. — Se fora resolução muito bem empregada arrancar os olhos por amor da salvação, e para esses mesmos olhos verem a Deus, por que há de ser coisa dificultosa o fechá-los? A Sansão arrancaram-lhe os olhos os filisteus, porque os entregou a Dalila (Jz. 14,1,16, 21). Não lhe fora melhor a Sansão fechar os olhos para não ver, que perdê-los porque viu? Não lhe fora melhor a Siquém não ver a Dina (Gên. 34, 25 s)? Não lhe fora melhor a Amnon não ver a Tamar (2 Rs. 13)? Não lhe fora melhor a Holofernes não ver a Judite (Jdt. 10, 19)? Todos estes pereceram às mãos de seus olhos. Demócrito, filósofo gentio, como diz Tertuliano, arrancou voluntariamente os olhos por se livrar de pensamentos menos honestos. Que tivesse resolução um gentio para arrancar os olhos por amor da pureza, e que não tenha ânimo nem valor um cristão para os fechar! Cristãos: por amor daqueles olhos que Cristo hoje pôs em S. Pedro, e para que ele os ponha em nós, que se havemos de fazer esta semana alguma penitência, se havemos de fazer esta semana alguma mortificação, se havemos de fazer esta semana algum ato de cristandade, seja cerrar os olhos por amor de Cristo. Aquelas pestanas cerradas sejam as sedas de que teçamos um cilício muito apertado a nossos olhos. Não são os olhos aqueles grandes pecadores que pecam em todos os pecados? Pois tragam esta semana este cilício.

 

§ VIII

Esta vida não é lugar de ver, senão de chorar. Davi e o livro das dívidas e das satisfações. Se pecamos como Pedro, por que não choramos como Pedro? Oração.

Como os olhos estiverem cerrados (que é o segundo documento dos olhos de S. Pedro), como os olhos não virem, logo chorarão. Lembremo-nos que estamos em um vale de lágrimas; lembremo-nos que esta vida não é lugar de ver, senão de cho­rar: Locus flentium.[45] Esta vida, diz S. Crisóstomo, é para os nossos olhos chora­rem; a outra é para verem. Nós nesta vida trocamos aos nossos olhos os tempos e os lugares, mas também na outra vida os acharemos trocados. Os olhos que chorarem na terra, verão no céu; os olhos que quiserem ver na terra, chorarão no inferno: Ibi erit fletus.[46] Também no inferno há lágrimas, mas lágrimas sem fruto. Não é melhor chorar aqui poucos dias para nosso remédio, que chorar eternamente no inferno sem nenhum remédio? Que contas lhe fazemos? Que contas faz a nossa fé com a nossa vida? Que contas fazem os que fazem conta de dar conta a Deus? Olhai as contas que Deus faz com as nossas lágrimas e com os nossos pecados. É passo admirável, e que podendo ser de grande consolação, é de grande terror.

Posuisti lacrymas meas in conspectu tuo (Sl. 55, 9), diz Davi: Senhor, vós sempre tendes postas as minhas lágrimas diante dos vossos olhos. — E estas lágrimas que Deus tem postas diante dos olhos, onde estão? Elas correm, elas passam, elas enxugam-se, elas secam-se: onde estão postas estas lágrimas? O texto original o declarou admiravelmente: Posuisti lacrymas meas in libro rationum tuarum: Tem Deus posto as nossas lágrimas nos seus livros da razão; tem Deus posto as nossas lágrimas nos seus livros de deve e há de haver. — Estes são os livros dos quais diz S. João que se hão de abrir no dia do juízo: Et libri aperti sunt, [47] e assim o resolvem todos os teólogos. Um é o livro do deve, outro o livro do há de haver; um o livro das dívidas, outro o livro das satisfações: no das dívidas estão os pecados, no das satisfações estão as lágrimas: In libro rationum tuarum. Faça agora cada um as suas contas, pois há de dar conta a Deus por estes livros. Some cada um quantos pecados tem no livro das dívidas, e some quantas lágrimas tem no livro das satisfações. Haverá, quando menos para cada pecado uma lágrima? Oh! tristes dos nossos olhos! Oh! miseráveis das nossas almas! S. Pedro no livro do deve tem três negações, e no livro do há de haver tem infinitas lágrimas. Quantos cristãos haverá, que no livro do deve tenham infinitos pecados, e no livro do há de haver não tenham três lágrimas choradas de coração! Pois como havemos de aparecer diante do tribunal de Deus? Como lhe havemos de dar boa conta? E se estamos tão alcançados nas contas, como não nos resolvemos a chorar nossos pecados desde logo, pois o não fizemos até agora? S. Pedro não chegou a estar duas horas no seu pecado, e chorou toda a vida até a morte; e nós que toda a vida temos gastado em pecados, e muitos estamos no cabo da vida, e todos não sabemos quanto nos há de durar a vida, quando fazemos conta de chorar? S. Pedro sabia de certo que Deus lhe tinha perdoado, e contudo não cessava de chorar continuamente. Sabemos de certo que Deus nos tem perdoado? Sabemos de certo que temos ofendido a Deus, e muitos sabem também de certo que não estão perdoados, porque também sabem de certo que estão atualmente em peca­do mortal; e com toda esta evidência, nem uns nem outros choram.

Dizei-me, pelas chagas de Cristo: Fazeis conta de vos salvar como S. Pedro? Sim. Pecastes como S. Pedro? Muito mais. Chorastes como S. Pedro? Não. Pois se pecastes como Pedro, e não chorais como Pedro, como fazeis conta de vos salvar como Pedro? Tem Deus para vós outra lei? Tem Deus para vós outra justiça? Tem Deus para vós outra misericórdia? Cristo perdoou a Pedro porque chorou, e se Pe­dro não chorara, não lhe havia Cristo de perdoar, como não perdoou a Judas. Pois se Cristo não perdoa a Pedro sem chorar, como nos há de perdoar a nós, se não chora­mos? Somos mais discípulos de Cristo que Pedro? Somos mais favorecidos de Cris­to que Pedro? Somos mais mimosos de Cristo que Pedro? Somos mais de casa e do seio de Cristo? Somos mais amigos e mais amados, e mais prezados de Cristo que Pedro? Pois que confiança cega e diabólica é esta nossa?

Senhor, Senhor, Judas não chorou, porque lhe não pusestes os olhos; Pedro chorou, porque lhe pusestes os olhos. Respice in nos, et miserere nostri: Olhai para nós, piedoso Jesus, olhai para nós com aqueles piedosos olhos com que hoje olhastes para Pedro. Abrandai esta dureza impenetrável de nossos corações. Alumiai esta ce­gueira obstinada de nossos olhos. Fechai-nos estes olhos, para que não vejam as vaida­des e loucuras do mundo. Abri-nos estes olhos, para que se desfaçam em lágrimas por vos terem negado e por vos terem tanto ofendido. São Pedro, divino apóstolo, divino penitente, pontífice divino, lembrai-vos desta vossa Igreja, que tão cega está e tão impenitente. Lembrai-vos destas vossas ovelhas. Lembrai-vos destes vossos filhos, e dessas lágrimas que vos sobejaram: derramai sobre nós as que tanto havemos mister. Alcançai-nos daqueles olhos, que tão benignamente vos viram, que imitemos vossa contrição, que choremos nossos pecados, que façamos verdadeira penitência, que aca­bemos uma vez de nos arrepender e emendar de todo coração. E nesta semana tão sagrada, lançai-nos do céu uma bênção, e concedei-nos uma indulgência plenária que nos absolva de todas nossas culpas. Sobretudo, perseverança na graça, nos propósitos, na dor, no arrependimento, para que chorando o que só devemos chorar, vejamos final­mente o que só devemos desejar ver, que é a Deus nessa glória.

[1] Cantou o galo, e voltando-se o Senhor, pôs os olhos em Pedro. E tendo saído para fora, chorou amargamente (Lc. 22, 60 ss).

[2] Não basta a voz do pregador, se não houver juntamente o olhar de Cristo para o pecador.

[3] As minhas lágrimas foram o meu pão (Sl. 41, 4).

[4] Viu uma mulher (2 Rs. 11. 2).

[5]Viu pois a mulher que a árvore era boa para comer (Gên. 3, 6).

[6] Que coisa há de pior que semelhante olho? (Ed. 31, 15)

[7] Banhará de lágrimas todo o seu rosto quando olhar (Ed. 31, 15).

[8] Para ver em que parava o caso (Mt. 26, 58).

[9] Abriram-se-lhe os olhos para o que antes não se tinham aberto.

[10] O meu olho quase me roubou a vida (Lam. 3.51).

[11] Se o teu olho for mau, todo o teu corpo estará em trevas (Mt. 6, 23).

[12] Do coração é que saem os maus pensamentos (Mt. 15, 19).

[13] Se o meu coração seguiu os meus olhos (Jó 31, 7).

[14] Aparta os meus olhos para que não vejam a vaidade (Sl. 118, 37).

[15] Nem os seus olhos se fartam de riquezas (Ecl. 4, 8).

[16] O meu olho se turvou à vista do furor (Sl. 6, 8).

[17] Não te deixarás tocar de compaixão (Deut. 7, 16).

[18] Seja ele preso no laço dos seus olhos (Jdt. 9, 13).

[19] E não neguei aos meus olhos coisa alguma de quanto eles desejaram (Ecl. 2,10).

[20] Pela concupiscência dos seus olhos (Ez. 23, 16).

[21] Os meus olhos olharam com desprezo (Sl. 53, 9).

[22] Não via com bons olhos (1 Rs. 18, 9).

[23] Humilharas os olhos dos soberbos (Sl. 17, 28).

[24] O olho do avaro não se sacia (Eclo. 14, 9).

[25] Olhos prostituídos pela fornicação (Ez. 6, 9).

[26] Conturbado com o pesar está o meu olho (Sl. 30, 10).

[27] O olho do invejoso é mau (Eclo. 14, 8).

[28] Os nossos olhos não vêem senão maná (Núm. 11, 6).

[29] Os meus olhos desfaleceram (Sl. 87, 10).

[30] Lance de si os tropeços dos seus olhos (Ez. 20, 7).

[31] As abominações dos seus olhos (Ez. 20, 8).

[32] Da mesma fonte de onde se originou o pecado, correm incessantes lágrimas.

[33] Não o sou (Lc. 22, 58).

[34]  Não conheço tal homem (Mt. 26, 72).

[35] Homem, eu não sei que é o que tu dizes (Lc. 22, 60).

[36] Aturamos o peso do dia e da calma (Mt. 20, 12).

[37] Estes, que vieram últimos, não trabalharam senão uma hora (Mt. 20, 12).

[42] Quem dará água à minha cabeça, e uma fonte de lágrimas a meus olhos, e eu chorarei de dia e de noite (Jer. 9, 1).

[43] Nem a menina do teu olho se cale (Lam. 2, 18).

[44] Fiz concerto com os meus olhos de certamente não cogitar nem ainda em uma virgem (JO 31, 1).

[45] Lugar dos que choram (Jz. 2, 5).
[46] Ali haverá choro (Mt. 8, 12).

[47] E foram abertos os livros (Apc. 20, 12).

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística