Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão do Mandato em Roma, na Igreja de Santo Antonio dos Portugueses, do Padre António Vieira


Edição de referência:

Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DO MANDATO

EM ROMA, NA IGREJA DE SANTO ANTÔNIO DOS PORTUGUESES.
ANO DE 1670

Sciens Jesus quia venit hora ejus, ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, cum dilexisset suos, qui erant in mundo, infinem dilexit eos.[1]

O mais extremo do amor de Cristo para conosco foi ausentar-se de nós.

I

Este é aquele texto saudoso e suavíssimo, este é aquele mistério, ou enigma grande do amor tantas vezes repetido nesta hora, tantas vezes e por tantos modos encarecido, tantas vezes e tão sutilmente interpretado, mas nunca assaz entendido. Diz o evangelista S. João, que se parte Cristo, e que nos ama. Que se parte: Ut transeat ex hoc mundo; que nos ama: In finem dilexit eos. Mas se nos ama, como se parte? Se nos ama, como se ausenta de nós? Mais diz o evangelista. Não só diz que nos ama Cristo, e que se parte, não só diz que nos ama e que se ausenta de nós, senão que nesta mesma hora em que se partiu, nesta mesma hora em que se ausentou, havendo-nos amado sempre tanto, então, ou agora, nos amou mais: Sciens quia venit hora ejus, ut transeat ex hoc mundo, cum dilexisset suos, in finem dilexit eos.

Se dissera isto outro evangelista, não me admirara tanto. Mas João, a águia do entendimento e a fênix do amor? João, o secretário do peito de Cristo? João, aquele discípulo que entre todos soube melhor amar, e mereceu ser mais amado, que me diga que se parte Cristo, que se ausenta, que nos deixa, que se vai de nós, e que nos ama? Que nos ama, e que agora nos amou mais? Não o entendo. Se me dissera S. João que se ausentava Cristo, porque estava arrependido de nos amar; que se ausentava porque aqueles primeiros extremos do seu amor, o tempo, que acaba tudo, os acabara; se me dissera que, obrigado de nossas más correspondências, que ofendido de nossos desprimores, que can­sado de nossas ingratidões, que desenganado de nossa pouca fé, já nos aborre­cia, ou já nos desamava, e que por isso deixa o mundo e se ausenta dos homens, se isto me dissera S. João, sentira-o eu muito, mas conhecera a razão e a conse­qüência. Confessaria, e confessaríamos todos, que obrava Cristo como quem é, e que nos tratava como quem somos. Amou-nos sem o merecermos, ausenta-se porque lho merecemos. O amor o trouxe, e desamor o leva; por isso se vai e nos deixa. Mas que diga o evangelista constantemente que não é desamor, senão amor, e que quando Cristo se ausenta de nós, então obrou a maior fineza, então subiu ao maior extremo, então chegou ao último fim aonde podia chegar aman­do: Cum dilexisset suos, in finem dilexit eos?

O verdadeiro entendimento desta amorosa implicação será a matéria do nosso discurso, e a mesma razão de duvidar nos dará a solução da dúvida. Veremos com assombro de todas as leis do amor, como o maior extremo do amor de Cristo para conosco foi o ausentar-se de nós. É o que dizem as pala­vras do texto: Sciens quia venit hora ejus, ut transeat ex hoc mundo: eis aí o ausentar-se de nós; Cum dilexisset suos, in finem dilexit eos: eis aí o maior extremo de seu amor. Parece paradoxo, mas é extremo. Amou Cristo tanto aos homens que os deixou e se foi: parece paradoxo. Amou Cristo tanto aos ho­mens que chegou por eles a apartar-se deles: este é o extremo, e isto é o que diz o evangelista. Nos homens, a hora da partida é o fim do amor; em Cristo, o fim do amor foi a hora da partida: Sciens quia venit hora ejus, in finem dilexit eos. Dizer menos é descer; subir mais, não há para onde. E como este foi o ponto mais alto onde pode chegar o amor de Cristo, este será também o ponto único em que começará e acabará nosso discurso. Peçamos ao mesmo amor, pelos merecimentos daquele coração, que só o soube corresponder dignamente, nos assista nesta hora sua com a sua graça. Ave Maria.

II

Três poderosos opositores ao pensamento do autor: o amor, a morte, o Sa­cramento. O amor forte, no dizer de Salomão, é como a morte, e como ela separa. O amor unitivo, causa da Encarnação de Cristo, o amor forte causa do apartamen­to de Cristo. Apartar-se quem ama de quem ama, eis o último extremo a que pode chegar o amor. O estranho cântico da Esposa dos Cantares. Finezas do Esposo e da Esposa dos Cânticos. S. João conclui o livro de Salomão.

Ut transeat ex hoc mundo, in finem dilexit eos.

Amou Cristo tanto aos homens, que chegou por eles a apartar-se deles. Este é o meu assunto, e este digo que foi o maior extremo do amor de Cristo. Mas que vejo? Naquele monumento sagrado, naquele mistério sacrossanto (que é a cifra do amor, e o memorial da morte de Cristo), vejo postos em campo contra este meu pensamento três poderosos opositores: o Sacramento, a morte, e o mesmo amor. O amor diz que não pode ser amor o apartar-se Cristo de nós; o Sacramento diz que o deixar-se conosco foi a maior fineza; a morte diz que o morrer por nós foi o maior extremo de todos. Estes são os assombros com que as ações mais herói­cas do amor de Cristo hoje, e com que as mesmas leis do amor se opõem à novi­dade do nosso assunto. Mas essas mesmas nos dividirão o discurso, e nos servi­rão de degraus para mais o subir de ponto.

Começando pelo amor. O amor essencialmente é união, e naturalmente a busca; para ali pesa, para ali caminha, e só ali pára. Tudo são palavras de Platão e de Santo Agostinho. Pois se a natureza do amor é unir, como pode ser efeito do amor o apartar? Assim é, quando o amor não é extremado e excessivo. As causas excessivamente intensas produzem efeitos contrários. A dor faz gritar, mas se é excessiva, faz emudecer; a luz faz ver, mas se é excessiva, cega; a alegria alenta e vivifica, mas se é excessiva mata. Assim o amor: naturalmente une, mas se é excessivo, divide. Fortis est ut mors dilec­tio (Cânt. 8, 6): O amor, diz Salomão, é como a morte. – Como a morte, rei sábio? Como a vida, dissera eu. O amor é união de almas: a morte é separa­ção da alma; pois se o efeito do amor é unir, e o efeito da morte é separar, como pode ser o amor semelhante a morte? O mesmo Salomão se explicou. Não fala Salomão de qualquer amor, senão do amor forte: Fortis est ut mors dilectio;[2] e o amor forte, o amor intenso, o amor excessivo produz efeitos contrários. É união, e produz apartamentos. Sabe-se o amor atar, e sabe-se desatar como Sansão: afetuoso, deixa-se atar; forte, rompe as ataduras. O amor sempre é amoroso, mas umas vezes é amoroso e unitivo, outras vezes amoroso e forte. Enquanto amoroso e unitivo, ajunta os extremos mais dis­tantes: enquanto amoroso e forte, divide os extremos mais unidos. Quais são os extremos mais distantes e mais unidos que há no mundo? O nosso corpo e a nossa alma. São os extremos mais distantes, porque um é carne, outro espí­rito; são os extremos mais unidos, porque nunca jamais se apartam. Juntos nascem, juntos crescem, juntos vivem; juntos caminham, juntos param, juntos trabalham, juntos descansam; de noite e de dia, dormindo e velando, em todo o tempo, em toda a idade, em toda a fortuna; sempre amigos, sempre companheiros, sempre abraçados, sempre unidos. E esta união tão natural, esta união tão estreita, quem a divide? A morte. Tal é o amor: Fortis est ut mors dilectio. O amor, enquanto unitivo, é como a vida; enquanto forte, é como a morte. Enquanto unitivo, por mais distantes que sejam os extremos, ajunta-os; enquanto forte, por mais unidos que estejam, aparta-os.

Antes da Encarnação do Verbo, quais eram os extremos mais distan­tes? Deus e o homem. E que fez o amor unitivo? Trouxe a Deus do céu a terra, e uniu a Deus com os homens. Depois da Encarnação, quais eram os extremos mais unidos? Cristo e os homens. E que fez o amor forte? Leva hoje a Cristo da terra ao céu: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem,[3] e apar­tou a Cristo dos homens. Exivi a Patre, et veni in mundum: eis aí o amor unitivo; Iterum relinquo mundum, et vado ad Patrem:[4] eis aí o amor forte. É o que diz o evangelista: Cum dilexisset, dilexit. Houve diferença nos tem­pos, mas não houve mudança no amor. Cristo unido com os homens, amor: Cum dilexisset; Cristo apartado dos homens, também amor, e maior amor: In finem dilexit eos.

Já temos mostrado ao amor que pode ser amor e grande amor o apartar-se. Agora abra mais os olhos o mesmo amor, e veja que não só é amor, e grande amor, senão o maior de todos: In finem. Em uma hora, que era representação desta mesma hora, como notou S. Bernardo, estando a esposa em um horto que também era figura de outro horto, pediu-lhe o Esposo divino que cantasse alguma letra, porque a queriam ouvir seus amigos: Quae habitas in hortis, amici auscultant, fac me audire vocem tuam[5]. Os amigos que escutam somos nós; o esposo é Cristo; a esposa é a Igreja; qual será a letra? Cantou a esposa em verso pastoril o que S. João em prosa evangélica. Toma a esposa uma cítara na mão, e tocando docemente as cordas, cantou assim: Heu, fuge dilecte mi: Ai, ide-vos amado meu: Assimilare capreae hinnuloque cervorum super montes aromatum:[6] Parti como cervo ligeiro, deixai os vales da terra, ide-vos para os montes do céu. – Disse a esposa, quebrou a cítara, e emudeceu para sempre. Assim foi, porque este é o último verso e a última cláusula do último capítulo dos Cânticos. Todos sabemos que a matéria dos Cânticos de Salomão é a história do amor, ou dos amores de Cristo com sua esposa, a Igreja Pois, esposa santa, este é o fim com que dais fim a história do amor de vosso esposo? Ou quereis encarecer o seu amor, ou o vosso, ou o de ambos? Se o seu, dizeis-lhe que se vá? Se o vosso dizeis-lhe que vos deixe? Se o de ambos, concluís com o apartamento de ambos? Sim, porque este é o último fim, este é o último extremo a que pode chegar o amor: apartar-se quem ama de quem ama. Enquanto não chegou a este ponto, sempre a sabedoria de Salomão teve mais e mais que escrever dos extremos do amor de Cristo; mas tanto que disse: Heu, fuge, tanto que disse que havia Cristo de deixar o mundo, tanto que disse que se havia de apartar dos homens por amor dos homens, Salomão suspendeu a pena, a esposa quebrou a cítara, o amor rompeu o arco, e aqui deu fim a história de suas finezas, porque até aqui pode chegar o amor, e não pode passar daqui. Salomão acabou o livro, e S. João pôs o finis:: In finem dilexit eos.

E senão, comparemos este fim com os princípios do mesmo amor. Nos princípios do amor, as finezas do esposo eram buscar a esposa por montes e vales: Ecce ipse veniet saliens in montibus, transiliens colles;[7] nos princípios do amor, as finezas da esposa eram ter o esposo sempre consigo, e não se apartar um momento dele: Inveni quem diligit anima mea, tenui eum, nec dimittam.[8] Porém depois que o amor principiante passou a amor perfeito, depois que o amor proficiente chegou a amor consumado, já as presenças se trocam pelas ausências, e todos os extremos do amor se reduzem a quê? A um ai! e um ide-vos: Heu! Fuge! O heu significa a dor, o fuge o apartamento; o heu significa a violência, o fuge a resolução; o heu significa o afeto, o fuge o sacrificio; o heu significa o amor, o fuge a fineza e o extremo. Heu e fuge: Ai! e ide-vos? Oh! que extremos tão encontrados! Non optando loquitur, diz Beda.[9] Mas destes dois extremos tão encontrados se compunha o extremo do amor de Cristo, e o encontro e repugnância destes dois extremos eram os torcedores que nesta hora de sua partida lhe partiam o coração. O afeto pedia que ficasse, a conveniência instava que se fosse: Expedit vobis, ut ego vadam;[10] mas como o afeto era seu, e a conveniência era nossa, pôde mais a conveniência que o afeto. Vença a conveniência, pois é vossa, pelo que tem de vós; corte-se pelo afeto, pois é meu, pelo que tem de mim, e seja este o último fim e o extremo último do meu amor: Heu! fuge dilecte mi: In finem dilexit eos.

III

Desde Adão e Eva, o amor do que se ama prova-se pelo amor do que se deixa. Jacó e Raquel, figuras de Cristo e da Igreja. Cristo, não tendo mais em si, ou fora de si, o que deixar por amor dos homens, só podia deixar por amor dos homens os mesmos homens.

Só resta para inteira satisfação do amor, que lhe demos a razão desta altíssima filosofia. Qual é a razão por que apartar-se Cristo de nós, e apartar-se quem ama de quem ama é o maior extremo a que pode chegar o amor? A razão é esta! Porque o amor do que se ama prova-se pelo amor do que se deixa, e não pode deixar mais o amor, que chegar a deixar pelo amado ao mesmo amado. A pedra de toque do amor é um amor com outro. Quis Deus provar o amor de Abraão, tocou-o com o amor de Isac, a quem amava como filho; quis Davi provar o amor de Jônatas, tocou-o como amor de Saul, a quem amava como pai. Da mesma maneira, quem quiser apurar os quilates do amor, toque o amor do que se ama com o amor do que se deixa, e logo conhecerá quão fino é. Desde o primeiro amor que houve no mundo, ficou estabelecida esta regra.

No ponto em que Eva saiu das mãos de Deus, amou-a logo Adão tão extremada­mente, quanto ela por si e por seu autor merecia ser amada. Quis encarecer este seu amor o novo desposado, mas como então não havia no mundo outro amor, nem outrem a quem amar, que faria Adão para provar o amor que desejava encarecer? Vede o artifício: Propter hoc relinquet homo patrem et matrem (Gên. 2, 24): Por amor desta deixará o homem a seu pai e a sua mãe. – Adão não tinha pai, nem mãe; era homem, mas o primeiro homem. Pois, se não tinha pai, nem mãe, por que prova Adão o seu amor com o amor do pai e da mãe, que os outros homens haviam de deixar por suas esposas? Por isso mesmo. Porque o amor do que se ama prova-se pelo amor do que se deixa. E como Adão não tinha outro amor que deixar, provou o amor com que amava a sua esposa, pelo amor do pai e mãe, que os outros homens haviam de deixar pelas suas: Propter hoc relinquet homo patrem et matrem. Provou Adão o amor presente pelo futuro, e o próprio pelo alheio, e provou bem, porque o amor do pai e mãe, que nos deram o ser, é o mais natural e o mais devido, e quando se deixa por amor da esposa o que tanto se ama, é prova que se ama mais a esposa por amor de quem se deixa. Isto é o que fez e o que disse Adão; mas ainda que soube provar, não soube encarecer, porque o verdadeiro encarecimento do amor não era para o primeiro Adão: estava reservado para o segundo. Se Adão soubesse encarecer o seu amor, que havia de dizer? Havia de dizer assim. Eu, esposa minha, não posso qualificar o amor que vos tenho, porque não tenho outro amor que deixar por ele; e ainda que tivera pai e mãe, a quem muito amara, como hão de ter meus descendentes, deixar o pai e a mãe por amor de vós, não era bastante prova do meu amor; mas para que conheçais quanto vos amo, amo-vos tanto, que chegara a vos deixar a vós por amor de vós. Isto é o que não soube dizer Adão, e isto é o que fez Cristo. Chegou a nos deixar a nós por amor de nós. Deixar os pais por amor da esposa, foi o ponto mais alto que soube imaginar o amor de Adão; mas Cristo chegou a fazer o que ele não chegou a imaginar, porque chegou a deixar a esposa por amor da esposa: Sacramentum magnum in Christo, et in Ecclesia»[11] A esposa de Cris­to é a Igreja; a Igreja somos nós, e Cristo chegou a nos deixar a nós por amor de nós.


Quando Cristo veio ao mundo, pareceu-se o amor divino com o amor huma­no, porque deixou o Padre por amor da esposa; mas quando hoje Cristo se vai do mundo: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, não teve o seu amor com quem se parecer, porque deixou a esposa por amor da esposa. Saiu Jacó peregrino da casa de seus pais para se desposar com Raquel, e neste caminho viu aquela misteriosa esca­da que chegava da terra ao céu. Voltou Jacó outra vez com Raquel para a pátria, mas neste segundo caminho, ainda que teve aparições de anjos, não viu a escada. Todos sabeis que Jacó não só foi figura de Cristo, mas expressamente figura de Cristo amante. Agora, pergunto: se Jacó viu a escada na primeira visão e no primeiro cami­nho, por que a não viu no segundo? Se Jacó viu a escada quando veio, por que não viu a escada quando tornou? Porque aquela escada, como dizem comumente os Padres, significava a descida de Cristo e a subida: a descida, quando veio ao mundo; a subida, quando tomou para o Padre. E quando Jacó veio, viu a escada, porque Cristo quando veio, pareceu-se com Jacó; mas quando Jacó tomou, não viu a esca­da, porque quando Cristo tornou, não se pareceu com ele, nem teve com quem se parecer. Quando Cristo veio, pareceu-se com Jacó, porque assim como Jacó deixou os pais por amor de Raquel, assim deixou o Padre por amor da esposa; porém quan­do Cristo tornou, não se pareceu com Jacó, porque Jacó não deixou a Raquel por amor de Raquel, e Cristo sim. Deixou a sua Raquel por amor da mesma Raquel; deixou a sua esposa por amor da mesma esposa; deixou os seus homens (Cum dile­xisset suos) por amor dos mesmos homens. E este foi o último e o maior extremo do seu amor, porque chegou a deixar os amados por amor dos mesmos amados: Cum dilexisset suos, in finem dilexit eos.

Quem deixa tudo pelo amado, deixa tudo; mas quem deixa pelo amado ao mesmo amado, ainda deixa mais, porque chega a deixar aquele por quem tem deixa­do tudo. Quando Cristo veio ao mundo, deixou o céu por amor dos homens; porém hoje deixa os mesmos homens por quem tinha deixado o céu. Quando veio ao mun­do, deixou os anjos por amor dos homens; porém hoje deixa os mesmos homens, por quem tinha deixado os anjos. Quando veio ao mundo, deixou a glória por amor dos homens; porém hoje deixa os mesmos homens por quem tinha deixado a glória. Finalmente, quando veio ao mundo deixou o Padre por amor dos homens: porém hoje deixa os mesmos homens por quem tinha deixado o Padre. E neste mundo, que deixou Cristo? Nascendo pobre, deixou por amor dos homens a riqueza: desterran­do-se, deixou por amor dos homens a pátria; trabalhando, deixou por amor dos homens o descanso; entregando-se, deixou por amor dos homens a liberdade; pade­cendo afrontas, deixou por amor dos homens a honra; morrendo, deixou por amor dos homens a vida; sacramentando-se, deixou por amor dos homens a si mesmo; mas hoje, ausentando-se dos homens e partindo-se do mundo: Ut transeat ex hoc mundo, deixou mais que as riquezas, mais que a pátria, mais que o descanso, mais que a liberdade, mais que a honra, mais que a vida, mais que a si mesmo, porque deixou os mesmos homens, por quem tudo isto tinha deixado. De maneira que, havendo Cristo deixado por amor dos homens tudo o que tinha no céu, até o mesmo Padre, e tudo o que tinha e podia ter na terra, até a si mesmo, não tendo já nem no céu, nem na terra, não tendo já em si, nem fora de si outra coisa que deixar por amor dos homens, para chegar ao non plus ultra do amor, chega a deixar por amor dos homens aos mesmos homens: Ut transeat ex hoc mundo, in finem dilexit eos.

IV

Foi maior fineza de Cristo deixar-se no Sacramento que apartar-se de nós? Cristo e a amizade de Rut, Noemi e Orfa. Cristo, deixando-se no Sacramento, satisfez a um seu desejo; ausentando-se dos homens, violentou sua inclinação. Cristo, o Jor­dão divino. Por que S. João passa totalmente em silêncio a instituição da Eucaristia.

Haverá ainda quem se oponha a este extremo de fineza? Haverá ainda quem se oponha a este extremo de amor? Ainda. Ainda se opõe e resiste o mesmo amor, defendendo-se com o escudo do Sacramento e com a espada da morte. Fortes armas! Mas também as há de render o amor, ainda que tão fortes e tão finas.

Alega por parte do Sacramento o amor, e defende constantemente, que foi maior fineza em Cristo o deixar-se que o deixar-nos, o ficar conosco, que o apartar­se de nós. E como o prova? Em um caso, temos ambos os casos. Na terra de Moab houve três amigas muito celebradas na Escritura: Noemi, Rut e Orfa. Viveram muito tempo juntas essas amigas, como amigas e parentas que eram, até que veio uma hora, como esta hora, em que se houveram de ausentar. Abraçaram-se, choraram muito, fizeram as exéquias à sua despedida, com todas as solenidades que costuma o amor, mas tanto que chegou o ponto preciso em que se haviam de apartar, sucede uma diferença notável. Orfa, diz o texto, que se apartou e que se foi para a sua pátria e para o seu Deus, porém Rut enterneceu-se tanto, que de nenhum modo se pôde apartar da companhia de Noemi, e se deixou ficar com ela por toda a vida. Eis aqui quanto vai de amar a amar, e de ficar a partir-se. Quem ama pouco, aparta-se; quem ama muito não se pode apartar. Orfa, que amava pouco, apartou-se e deixou a Noe­mi; Rut, que amava muito, não a pôde deixar, nem apartar-se dela. São os termos do nosso caso. Chegou a hora precisa em que Cristo se havia de apartar dos homens; Sciens quia venit hora ejus, ut transeat ex hoc mundo, mas nesta amorosa despedi­da, neste rigoroso apartamento, quem foi a Orfa, que se apartou? Quem foi a Rut, que se não pôde apartar? Uma e outra, por modo admirável, foi a mesma humanida­de sacratíssima de Cristo. Ela foi a que nesta mesma hora se apartou, ela foi a que nesta mesma hora se não pôde apartar. Ela foi a Orfa, que se apartou, e se foi para a sua pátria e para o seu Deus: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem; e ela foi a Rut, que se não pôde apartar, e recolhendo as espigas, se deixou naquele Sacramento, debaixo das espécies de pão. Logo, maior amor foi em Cristo o deixar-se, que o deixar-nos; logo, maior amor foi em Cristo o ficar conosco, que o apartar-se de nós. Que grosseiros são os afetos humanos para avaliar as finezas do amor divino! Se Cristo se apartara como Orfa, amando como Orfa, fora menor o seu amor; mas Cristo apartou-se como Orfa, amando como Rut. Amar muito, e apartar-se, esta é a fineza. Orla amou pouco, Rut, amou muito, mas nem uma, nem outra finamente; porque Orfa, apartando-se de Noemi, seguiu a sua conveniência, e Rut não se podendo apartar, seguiu a sua inclinação.

Perdoai-me, sacramentado amor (mas não me perdoeis). Deixar-se Cristo com os homens no Sacramento, foi seguir o amor o seu afeto e a sua inclinação, foi satisfazer ao desejo: Desiderio desideravi hoc pasha manducare vobiscum;[12] foi gosto, foi alívio, foi satisfação, foi descanso, foi comodidade, sim, que fineza não. Obrou o amor como amor, mas não obrou como fino. Cair a pedra para o centro, correr a fonte para o mar, voar o fogo para a sua esfera, é natureza, é inclinação, é descanso, não é fineza; e isso foi deixar-se Cristo com os homens no Sacramento. Ainda o coração de Cristo não era humano lá naquele princípio sem princípio de sua eternidade, e quais eram já então os seus gostos, as suas recreações, as suas delícias? Eram estar no mundo com os homens: Ludens in orbe terrarum, et deliciae meae essa cum filiis hominum.[13] Notável dizer! Naquele tempo, antes de todo o tempo, ainda não havia mundo nem havia homens. Pois, se não havia homens, nem mundo, como eram as delícias do Verbo estar com os homens no mundo? Essa é a força da minha razão e da minha conseqüência. Se quando não havia homens nem mundo, eram as delícias de Cristo estar no mundo com os homens, que não eram, quais seriam depois as suas delícias estar no mundo com os homens, que eram: Suos qui erant in mundo?[14] Deixar-se Cristo no mundo com os homens, foi buscar o amor as suas delícias, e por isso não foi fineza; a fineza foi deixar o mundo e apartar-se dos homens: Ut transeat ex hoc mundo, porque foi violentar a inclinação, foi sacrificar o gosto, foi martirizar o desejo, foi vencer em si e contra si a maior repugnância.

Para Cristo se apartar de nós, e juntamente se deixar conosco, dividiu-se Cris­to de si mesmo. Grande fineza! Grande maravilha! Mas nesta prodigiosa divisão, o amor que fez a maravilha e a fineza, não foi o amor que deixou a Cristo no mundo, senão o amor que o levou do mundo: Ut transeat ex hoc mundo. Vede-o com os olhos. Para dar passo a Arca do Testamento, apartou-se o rio Jordão, e dividiu-se de si mesmo: uma parte do rio assim dividido correu para o mar, e a outra parte suspen­deu a corrente, e tornou para a fonte donde tinha saído: Quid est tibi mare quod fugisti, et tu Jordanis, quia conversus es retrorsum?[15] Dizei-me agora. Partido as­sim o Jordão, e dividido de si mesmo, qual destas duas partes fez a maravilha? Qual destas duas partes obrou a fineza? A parte que correu para o mar, ou a que voltou para a fonte? Claro está, diz Agostinho, e não era necessário que ele o dissesse, claro está que a parte que voltou para a fonte foi a que fez a fineza e a maravilha, porque a parte que correu para o mar seguiu a inclinação natural, e foi buscar o seu centro; porém a parte que tornou para a fonte, violentou essa mesma inclinação, rebateu e quebrou o ímpeto da corrente, e contra o peso das águas e da natureza, a fez outra vez subir para donde descera. Por isso, como agudamente notou Lorino, quando o rio desceu, disse-lhe Davi: Quid est tibi, e quando subiu, não, porque o correr para o mar, foi buscar-se a si, e o voltar para a fonte, foi ir contra si: Conversus est retrorsum. Ah! Jordão divino! – que assim vos chamou profundamente Orígenes - vejo-vos dividido de vós mesmo nesta hora, e dividido de vós mesmo com duas correntes contrárias. Com uma corrente ides para o Padre, que é o princípio fonta­nal, como dizem os teólogos, donde nascestes: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem; com outra corrente ide-vos meter nesse mar imenso do Sacramento, onde ver­dadeiramente estais sem aparecer, assim como os rios entram no mar e desaparecem: Quid est tibi mare quod fugisti? O Jordão fugiu de si, e vós fugistes de vós. Vendo que vos ausentáveis dos homens, fugistes de vós para nós, e escondeste-vos neste mistério. Mas qual foi aqui a fineza? Qual foi aqui a maravilha? Milagre dos mila­gres, qual foi aqui o milagre? O ficar Cristo conosco no Sacramento, foi milagre da natureza, porque correu o rio para o mar, correu o amor para o centro; mas o apartar­se Cristo de nós: Ut transeat ex hoc mundo, esse foi o milagre sobre a natureza, e contra a natureza, porque foi voltar o rio para a fonte donde nascera, foi romper contra o ímpeto da inclinação, foi não só vencer a corrente, senão quebrar as corren­tes ao amor. Assim que a maravilha e a fineza, não foi o sacramentar-se Cristo para ficar conosco, senão o apartar-se e ausentar-se de nós.

  E se não, perguntemos ao mesmo evangelista nestas suas reflexões tão ponde­rosas do amor de Cristo, por que não fez menção, nem memória alguma da institui­ção do Sacramento? Não fundo o reparo na relação tão copiosa que de todos os outros evangelistas fizeram deste sagrado mistério, mas na que S. João não quis fazer. E vede se se argúi bem do seu mesmo texto: In finem dilexit eos; et caena facta.[16] Ponderou o extremo do amor com que nos amou Cristo no fim: In finem dilexit eos; fez menção da ceia: Et coena facta; porém do Sacramento instituído na mesma ceia, nem palavra falou. Pois se pondera o extremo do amor, e faz menção da ceia imediatamente depois, por que passa totalmente em silêncio a instituição de um mistério tão soberano, tão admirável, tão amoroso? Porque falou e calou como divi­no retórico que era. Disse o que fazia ao seu intento, e calou o que não servia. O intento de S. João neste Evangelho não era só provar o amor de Cristo, senão realçar a fineza do mesmo amor: Cum dilexisset, in finem dilexit. E a instituição do Sacra­mento, ainda que foi amor, e grande amor, em rigor não era fineza. Por isso não diz que se sacramentou, senão que se ausentou; por isso não diz que se deixou conosco, senão que se apartou de nós; por isso não diz que ficou no mundo, senão que se foi do mundo: Ut transeat ex hoc mundo; logo concluiu: In finem dilexit eos, porque ainda que o sacramento foi amor, o ausentar-se foi fineza; ainda que o deixar-se foi amor, o deixar-nos foi o extremo; ainda que o ficar conosco foi amor, o apartar-se de nós foi amor sobre amor: Cum dilexisset, dilexit.

V

Foi maior fineza de Cristo apartar-se de nós que morrer por nós. A despedida de Cristo no Horto, mais violenta que sua própria morte. Os dois cálices da paixão de Cristo: o do Horto e o do Calvário. O cálix da morte e o da ausência.

Temos rendido o braço do escudo; só nos resta o da espada, que é a morte. Muito confia nesta espada o amor, porque traz escrito e gravado nela: Majore chari­tatem nemo habet, ut animam suam ponat quis pro amicis suis.[17] Mas saiba a morte e o amor, se o não sabem, que o nemo não compreende a Cristo. Nemo te condemna­vit, mulier, neque ego.[18] O ego singular de Cristo, não se compreende debaixo do universal de nemo. O nemo, em respeito do Filho, é como o omnes em respeito da Mãe. Nem o omnes faz argumento contra a pureza da Mãe, nem o nemo contra a caridade do Filho. E para que julgue a mesma vista dos olhos, de que carece a morte e o amor, quanto maior fineza foi no amor de Cristo o apartar-se de nós que o morrer por nós, ponhamos o Horto defronte do Calvário, e ajuntemos o teatro da despedida com o teatro da morte.

O teatro da última despedida ou apartamento de Cristo, foi o vale de Getsêmani, coberto das sombras da noite, onde tudo aspirava amor, tudo silêncio, tudo tristeza, tudo saudade. Aqui se apartou o amoroso Senhor de seus discípulos, não de todos juntamente, senão de uns primeiro, e depois dos outros. Como o golpe lhe chegava tanto à alma, não se atreveu a levá-lo todo de uma vez; foi dividindo por partes. Assim se apartou o Senhor; mas não digo bem! Avulsus est ab eis, diz S. Lucas (Lc. 22,41): Não se apartou, arrancou-se. Tão violentamente se apartava Cristo dos homens, que o apartar-se deles era arrancar-se. Tão dentro deles estava, e tão dentro de si os tinha, que não se apartava dos seus olhos, nem se apartava de seus braços: arrancava-se de seus corações, e arrancava-se-lhe o coração: Avulsus est ab eis. Saia agora a morte com algum semelhante encarecimento, se o tem, do muito que fizesse Cristo em padecer, e diga o que dizem dela os evangelistas. Porventura chegou a dizer algum evangelista, que quando Cristo morreu, se lhe arrancou a alma? Não por certo. O Evangelista que mais disse foi S. Mateus. E que disse? Emisit spiritum: despediu a alma (Mt. 27, 50). De sorte que quando Cristo morre despede a alma, e quando Cristo se despede, arran­ca-se dos homens. Tão fácil lhe foi morrer, tão dificultoso o apartar-se. O laço com que a alma de Cristo estava atada ao corpo desatou-se; os laços com que o mesmo Cristo estava atado aos homens não se puderam desatar: romperam-se. Romperam-se, rasga­ram-se, arrancou-se: Avulsus est. Quantos eram os homens que havia no mundo, tantas eram as raízes que prendiam o coração de Cristo. Eram raízes de trinta e três anos, eram raízes de uma eternidade inteira, profundadas com tanto amor, regadas com tantas lágrimas, endurecidas com tantos trabalhos; e que todas essas raízes, tantas e tão fortes, se houvessem de arrancar juntas na mesma hora: Sciens quia venit hora ejus? Oh! que dor! Oh! que violência! Oh! que tormento! Cada palavra do evangelista é uma profun­da ponderação desta força e desta repugnância. É possível que hão de ficar no mundo os homens, que hão de ficar no mundo os meus: Suos, qui erant in mundo? É possível que eu me hei de apartar para sempre deste mundo, onde os vim buscar: Ut transeat ex hoc mundo? Ex hoc mundo: Oh! que terrível apartamento! Hora ejus: Oh! que terrível hora! In finem: Oh! que terrível fim! Ut transeat: Oh! que terrível transe!

Assim apartado, ou arrancado Cristo dos discípulos, começa a orar ao Padre: Pater, si possibile est, transeat a me calix iste (Mt. 26, 39): Eterno Pai, se é possível, passe de mim este cálix. – Tornemos agora ao Calvário, ou torne o Calvário ao Horto. Pregado Cristo no duro madeiro da cruz, e já vizinho à morte: Sciens quia omnia consummata sunt, dixit: sitio (Jo. 19, 28): Vendo que todos os tormentos se tinham acabado, disse: Tenho sede. – Sede agora, Senhor meu? Sois outro, ou o mesmo? Reparai que estes ecos do monte não respondem bem aos clamores do vale. No Horto, repugnáveis com tantas instâncias o cálix: Transeat a me calix iste;  e agora, no Calvário, depois de ter bebido todas as amarguras dele, publicais a vozes que tendes sede de mais: Sitio? Sim. Porque o cálix do Calvário era um; o cálix do Horto era outro: Calix iste: este; este, e não aquele. Ora vede: S. João Crisóstomo, S. Cirilo, Eutímio, e outros Padres entendem do cálix da paixão e morte de Cristo aquele famoso texto do Salmo setenta e quatro: Calix in manu Domini: et inclinavit ex hoc in hoc. Estava o cálix na mão do Senhor, – diz Davi, – e lançou de um no outro. – Se era cálix: Calix in manu Domini, era um; se lançou de um no outro: Incuinavit ex hoc in hoc, eram dois. Que cálices eram logo estes na morte e paixão de Cristo, tão unidos que compunham um só cálix, e tão distintos que se dividiam em dois? Era a mesma morte diversamente considerada (como o Senhor a conside­rava) no Horto e no Calvário. Toda a morte é justamente morte e ausência: é morte, porque nos tira a vida; é ausência, porque nos aparta para sempre daqueles que neste mundo amamos. E estes são os dois cálices que Cristo distinguia no mesmo cálix, fazendo grande diferença entre a sua morte, enquanto morte, e a mesma morte, en­quanto ausência. Enquanto morte, era o cálix do Calvário, onde deu a vida; enquan­to ausência, era o cálix do Horto, onde se apartou dos seus. E este, e não aquele, era o cálix que seu amor recusava quando disse: Transeat a me calix iste. Prova? Sim, que me não empenhara eu em tal pensamento sem ela, e muito forte.

Primeiramente, assim o entendeu S. Basilio de Selêucia, quando disse: Ut ascensum praepediat Christus, passionem subbit illubens.[19] Mas eu o provo do mesmo texto: Calix iste. Aquele iste é distintivo, é demonstrativo e é relativo. En­quanto distintivo, distingue um cálix do outro, enquanto demonstrativo, demonstra cálix presente, e não futuro; enquanto relativo, refere-se ao que ficava dito imedia­tamente antes. E que é o que dizem imediatamente antes os evangelistas? Todos referem o sentimento de Cristo naquele passo, e a repugnância e violência excessi­va, com que se apartava dos discípulos. S. Lucas: Avulsus est ab eis, et positis genibus, orabat, dicens: Pater, si vis, transfer calicem istum a me.[20] S. Mateus: Sustine­te hic, et vigílate mecum; et progressus pusillum procidit in faciem suam, orans et dicens: Pater mi, si possibile est, transeat a me calix iste.[21] Assim que a ação ou sentimento atual, sobre que caiu o transeat a me calix iste, era a dor, a dificuldade, a repugnância, a violência com que o Senhor se apartava, ou provava a se apartar dos discípulos, logo este mesmo apartamento, e a apreensão dele tão presente, tão viva e tão rigorosa, era o cálix que o seu amor e o seu coração tanto recusava. Confirma-se admiravelmente do mesmo texto, porque dele consta, que três vezes no mesmo tempo e no mesmo Horto se apartou o Senhor dos discípulos, e três vezes, imediatamente, tanto que se apartava, repetia a mesma petição. Assim o pondera S. Mateus. A primeira vez, no texto que acabamos de referir; a segunda: Secundo abiit, et oravit dicens: Pater mi, si non potest hic calix transire; e a terceira: Iterum abiit, et oravit tertio eundem sermonem dicens. [22] Em suma, que a cada novo apartamento se seguia nova resistência: a cada novo apartamento, nova instância; a cada novo apartamento, nova apelação do cálix. Logo este era e não outro.

E verdadeiramente que se o mesmo apartamento não fora o cálix, ou a matéria dele, nunca os evangelistas se puseram ao descrever e encarecer com tão particula­res e miúdas advertências. O avulsus est ab eis de S. Lucas já o ponderamos. O progressus pusillum de S. Mateus não é digno de menor ponderação e piedade. Diz o evangelista que se apartou o Senhor: pusillum: um pequenino. Vede a dificuldade, vede o tento, vede o receio com que se apartara. Pussillum: um pequenino. Não contava os passos, mas media e pesava os indivisíveis, porque em cada um se divi­dia. Pusillum: um pequenino. Como quem tocava o cálix para provar se o poderia beber, e não se atrevendo a o levar, parava, e não ia por diante. E como este aparta­mento mínimo era tão violento para o coração de Cristo, e lhe parecia coisa impos­sível o poder-se apartar de todo, por isso intentava impossíveis pelo estorvar, e abraçado com a terra clamava: Pater, si possibile est, transeat a me calix iste: Este, este e não aquele: este do Horto, e não aquele do Calvário; este da ausência, e não aquele da morte; este do apartamento, e não aquele da Cruz. Assim como eram dois os cálices, assim também eram duas as sedes, mas muito contrárias: na Cruz, a sede de padecer por nós; no Horto, a sede de estar conosco. Mas como a morte podia matar aquela sede, e estoutra sede com a morte crescia mais, por isso no Calvário dizia: Sitio, e no Horto repugnava o cálix: Transeat a me calix iste.

E que se seguiu a esta repugnância tão estranha? Que se seguiu a esta violência tão violenta? Et factus in agonia (Lc. 22,44): ali mesmo começou o Senhor a entrar em agonia. Cristo em agonia? Cristo agonizante no Horto? Acuda por si a morte. A agonia e o agonizar é ação ansiosa e acidente terrível, próprio da morte; mas Cristo na morte não agonizou. Vede como expirou placidamente: Inclinato capite, tradidit spiritum.[23] Pois se Cristo não agoniza na Cruz, se não agoniza no Calvário, como agoniza no Horto? Porque no Calvário morria, no Horto ausentava-se; no Calvário dividia-se de si, no Horto dividia-se de nós, e esta era a sua agonia. Por isso no Calvário passou pelo artigo da morte sem agonizar, e no Horto, quando entrou em artigos da ausência, então agonizou: Et factus in agonia. Morreu Cristo enquanto homem, e ausentou-se enquan­to homem; mas nem morreu como os homens morrem, nem se ausentou como os ho­mens se ausentam, porque não amava como os homens amam. Morreu e ausentou-se, mas com os acidentes trocados: morreu como se se ausentara, sem agonizar; ausentou-se como se morrera, agonizando. Oh! que amor! Oh! que fineza! Oh! que extremo! A ausência agonizante, e a morte sem agonia!

Agora se entenderá o que Cristo lançou de um cálix no outro calix, quando inclinou um no outro: Inclinavit ex hoc in hoc. Um calix, como dissemos, era o da morte, o outro era o da ausência; e como o cálix da ausência era muito mais amargo para o seu coração, e muito mais terrível que o da morte, para que constasse aos homens quanto menos fazia em morrer por eles, que em apartar e ausentar deles, que fez? Todas as agonias e ânsias que naturalmente havia de padecer na morte, verteu-as do cálix da morte, e passou ao cálix da ausência. Na morte, segundo as leis do amor da vida, havia Cristo de padecer todo aquele tropel de penas, toda aquela tormenta de aflições, todo aquele combate ou conflito de angústias que padecem, e mais na idade robusta, aqueles que por isso se chamam agoni­zantes; e todas essas se passaram do cálix do Calvário ao do Horto, porque no Horto se ausentava. Assim o dizem os evangelistas, falando expressamente daquele último aparta­mento. Que padecem os homens no transe da morte? Padecem agonias? Et factus in agonia. Padecem tristezas? Tristis est anima mea. Padecem tédios e temores? Caepit pavere et taedere.[24] De sorte que todas as aflições e angústias que se padecem na morte, as traspassou o Senhor do cálix da morte, e as refundiu no cálix da ausência E se a alguém parecer dificultoso, que voltando-se o cálix do Calvário sobre o cálix do Horto,


não levasse de mistura algumas partes de sangue, essas foram aquelas gotas de sangue que no suor mais que mortal do Horto derramou a violência da mesma agonia: Etfactus est sudor ejus tanquam guttae sanguinis decurrentis in terram.[25] Confesse logo a morte, o testemunho de seus próprios despojos, que muito mais sentiu Cristo o apartar-se de nós, que o morrer por nós; e que se o morrer nos homens é a maior prova do amor, em Cristo o ausentar-se dos homens foi a maior fineza.

E para que nem a morte, nem outrem por ela, tenha que replicar contra esta amorosa verdade, concluamos com uma justificação autêntica do secretário do mes­mo amor, que dentro e fora do coração de Cristo foi presente a tudo, e acabemos por onde começamos: Sciens Jesus quia venit hora ejus, ut transeat ex hoc mundo: Sabendo o Senhor Jesus que era chegada a hora de partir deste mundo. – Esta hora de que fala o evangelista era a hora da morte. Assim o declarou o mesmo S. João no capítulo sete, falando desta mesma hora: Nemo misit in illum manus, quia nondum venerat hora ejus.[26] E no capítulo oitavo, tornou a declarar o mesmo: Et nemo apprehendit eum, quia necdum venerat hora ejus.[27] Pois se esta hora era a hora de morrer o Senhor, e dar a vida pelos homens, por que não diz: Sabendo, que era chegada a hora de morrer; senão: Sabendo que era chegada a hora de se ausentar? Se o intento do evangelista era encarecer o amor do fim: In finem dilexit eos, declare o fim do amor pelo fim da vida, e diga que amou Cristo tanto aos homens, que chegou a morrer por eles. Mas para prova e encarecimento do amor, calar o nome da morte, e ostentar o da ausência e da partida? Sim, porque, como S. João tinha as chaves do coração de Cristo, sabia o lugar que tinham nele estes dois afetos, e o preço com que lá se avaliava um e outro extremo: O preço da morte era muito alto, porque pesava tanto como a vida; mas o da ausência era muito mais subido, porque pesava tanto como aqueles por quem se dava a vida. Por isso diz que quando chegou a hora de partir, então amou, e não quando chegou a hora de morrer, porque era muito mais dura para o coração de Cristo a mesma hora enquanto hora da ausência, que enquan­to hora da morte. A hora da morte era um fim que acabava a vida: a hora da ausência era o Em que consumava o amor: Ut transeat ex hoc mundo, in finem dilexit eos.

Concluído temos logo (não a pesar, senão a prazer de Cristo morto, de Cristo sacramentado e de Cristo amante) que o chegar a apartar-se dos homens por amor dos homens, foi o último e mais subido extremo com que os amou: Cum dilexisset suos, in finem dilexit eos.

VI

Obrigações de nosso amor. Propósito final: apartar-se cada um de tudo o que o aparta de Cristo. Oração.

Tenho acabado, fiéis, o meu discurso, e não sei se tendes também concluído o vosso. Se me ouvistes com discurso, se me ouvistes com a devida consideração, com os mesmos argumentos com que ponderei os extremos do amor de Cristo, de­víeis vós também ter ponderado e conhecido as obrigações do vosso. E que obriga­ções são essas? Porventura, porque o amor de Cristo chegou a nos deixar a nós por amor de nós, obriga-nos este mesmo amor a que nós também deixemos a Cristo por amor de Cristo? Se eu pregara noutro tempo e noutro lugar, facilmente o inferira e persuadira assim. A maior fineza que fez por Cristo aquela grande alma de S. Paulo, foi deixar a Cristo por amor de Cristo: Cupio dissolvi et esse cum Christo; manere autem necessario propter vos.[28] Assim o fizeram, saindo dos desertos os Arsê­nios, e não saindo das cidades os Martinhos, e em todas as idades, e ainda na nossa, tantos outros varões de extremado amor e zelo, a quem a mitra era peso, a vida tormento, a morte desejo, e só Cristo a ambição e a saudade.

Mas, deixados aqueles heróicos espíritos o primor tão pouco imitado destas correspondências, falemos com o desamor, com a ingratidão e com o pouco juízo das nossas. É possível que sinta tanto Cristo o apartar-se de nós, e que haja homens que não sintam o apartar-se de Cristo, antes tenham por gosto e por vida, e ainda por felicidade, o que os aparta dele? Cristão ingrato e infeliz, que há tantos anos vives tão apartado de Cristo, que juízo é o teu neste dia do juízo do teu amor? Cristo sente tanto apartar-se de ti, indo para o céu: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, e tu sentes tão pouco apartar-se de Cristo, indo para o inferno? Antes queres o inferno sem Cristo, que o céu e a bem-aventurança com Cristo? Se, como cristão, não te lembras de Cristo, ao menos como homem, lembra-te de ti. Dize-me, dize-me: Fazes conta de te apartar alguma hora de tudo o que te aparta de tua salvação? Se não fazes essa conta, que tanto devias fazer, não falo contigo, porque nem és cristão, nem homem, nem tens fé, nem tens juízo. Mas se fazes conta, como é certo que fazes, e se tens propósitos, como é certo que tens, de alguma hora te converter a Cristo, de alguma hora te chegar a Cristo, de alguma hora te apartar de tudo o que te aparta de Cristo, quando há de ser esta hora? Esta é a hora, cristão, esta é a hora: Sciens quia venit hora ejes. Esta é a hora de acabar com o mundo: Ut transeat ex hoc mundo. Esta é a hora de romper as cadeias desse mau vício, qualquer que seja, que tão preso te tem e tanto te tiraniza. Esta "é a hora de acabar de conhecer, e te desenganar desse falso e enganoso amor. Esta é a hora de abrir os olhos a esse amor cego. Esta é a hora de reformar esse amor escandaloso. Esta é a hora de purificar esse amor impuro, e de o pôr todo em Cristo. Aproveitemo-nos, cristãos, desta hora, pois não sabemos se teremos outra hora. Aproveitemo-nos, torno a dizer, desta hora, pois não sabemos se teremos outra. Ah! Senhor, como se há de converter noutra hora, quem se não con­verte a vós nessa hora vossa? Como vos há de amar noutra hora, quem vos não ama nesta hora de vosso amor? Por reverência desta hora, por honra e glória desta hora, por amor do amor desta hora, que triunfe nesta hora vosso poderoso amor desta dureza tão dura de nossos corações. Não permitais, Senhor, por vossa bondade, que saia deste cenáculo nesta hora vossa, algum coração que não seja vosso. Basta um Judas, basta um ingrato, basta um inimigo, basta um traidor. Oh! triste alma! Oh! miserável alma! Oh! desventurada alma! Oh! alma que melhor te fora não ser criada, e que nesta hora se não rende ao amor de Cristo!

Amoroso Jesus, todos nesta hora estamos rendidos ao vosso amor. Todos nes­ta hora, e desde esta hora, vos queremos amar de todo nosso coração. Só a vós, Senhor, só a vós: só a vós queremos amar, para nunca mais vos ofender; só a vós queremos amar, para nunca mais vos ser ingratos; só a vós queremos amar, para nunca mais nos apartarmos de vós; só a vós queremos amar, para desta hora em diante nos apartarmos para sempre de tudo o que aparta de vosso amor. Seja esta hora o fim de todo o amor que não é vosso, e seja o princípio de vos amarmos sem fim, assim como vós sem fim nos amastes: ln finem dilexit eos.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai, como tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim (Jo. 13, 1)

[2] O amor é valente como a morte (Cânt. 8, 6).

[3] De passar deste mundo ao Pai (Jo. 13, 1).

[4] Eu saí do Pai, e vim ao mundo; outra vez deixo o mundo e torno para o Pai (Jo. 16, 28).

[5] Ó tu, a que habitas nos jardins, os teus amigos estão atentos, faze-me ouvir a tua voz (Cânt. 8, 13

[6] ). Foge, amado meu, e faze-te semelhante a uma cabra montesa, e aos veadinhos sobre os montes dos aromas (Cânt. 8, 14).

[7] Ei-lo aí vem saltando sobre os montes, atravessando os outeiros (Cânt. 2, 8).

[8] Achei eu aquele a quem ama a minha alma; aferrei dele, nem o largarei (Cânt. 3, 4).

[9] Não fala em preferências.

[10] A vós convém-vos que eu vá (Jo. 16, 7).

[11] Este sacramento é grande, mas eu o digo em Cristo e na Igreja (Ef. 5, 32).

[12] Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta páscoa (Lc. 22, 15).

[13] Achando as minhas delícias em estar com os filhos dos homens (Prov. 8, 31).

[14] Os seus que estavam no mundo (Jo. 13, 1).

[15] Que tiveste tu, ó mar, que fugiste? E tu, Jordão, para retrocederes? (51.113, 5).

[16] Amou-os até o fim; e acabada a ceia (Jo. 13,1 s).

[17] Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a própria vida por seus amigos (Jo. 15, 13).

[18] Ninguém te condenou, mulher, nem eu tampouco (Jo. 8,1O s).

[19] Basil. Sel. Orat. 32

[20] Se arrancou deles, e posto de joelhos, orava, dizendo: Pai, se é do teu agrado, transfere de mim este cálice (Lc. 22, 41 s).

[21] Demorai-vos aqui, e vigiai comigo. E adiantando-se uns poucos de passos, se prostrou com o rosto em terra, fazendo oração, e dizendo: Pai meu, se é possível, passe de mim este cálice (Mt. 26, 38 s).

[22] De novo se retirou segunda vez, e orou, dizendo: Pai meu, se este cálice não pode passar (Mt. 26,42). – E, deixando-os de novo, foi orar terceira vez, dizendo as mesmas palavras (Mt. 26, 44).

[23] Abaixando a cabeça, rendeu o espírito (Jo. 19, 30).

[24] A minha alma se acha numa tristeza mortal (Mc. 14, 34). E começou a ter pavor e a angustiar-se (Mc. 14, 33).

[25] E veio-lhe um suor, como de gotas de sangue, que corria sobre a terra (Lc. 22, 44).

[26] Ninguém lhe lançou as mãos, porque não era ainda chegada a sua hora (Jo. 7, 30).

[27] E ninguém o prendeu, porque não era ainda chegada a sua hora (Jo. 8, 20).

[28] Tenho desejo de ser desatado da carne, e estar com Cristo; mas o permanecer em carne é necessá­rio, por amor de vós (Flp. 1, 23).