Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão da Bula da Santa Cruzada na Catedral de Lisboa, do Padre António Vieira


Edição de referência:

Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DA BULA DA S. CRUZADA

NA CATEDRAL DE LISBOA, ANO DE 1647

Unus militum lancea latus ejus aperuit, et continuo exivit sanguis et aqua.[1]

I

Do lado do segundo Adão morto se formou a Igreja. A escritura de nos­sos pecados, e a nova escritura de graças, a bula do Papa Inocêncio Décimo. Razão pela qual um soldado é quem deveria franquear com a lança os tesou­ros do lado de Cristo.

Como do lado do primeiro Adão dormindo foi formada Eva, assim do lado do segundo Adão morto se formou a Igreja. Daquele lado ferido saíram e mana­ram os sacramentos, e daquele lado aberto se derramaram os tesouros das graças, com que o mundo depois de remido se enriquece. Mas, se bem todas as graças da Igreja se representam admiravelmente na história deste mistério, reparando eu com atenção em todas as circunstâncias dele, ainda acho com maior propriedade as da Bula da Santa Cruzada, que hoje se concedem e publicam solenemente ao Reino e Reinos de Portugal.

Saíram estas graças do lado de Cristo não antes, nem depois, senão quando estava pregado na Cruz, porque da Cruz trouxeram o merecimento, e da Cruz tomou a mesma Bula o nome, que por isso se chama da Cruzada. Saíram em figura de sangue e água: Exivit sanguis et aqua; de água, para apagar o que estava escrito, e de sangue, para se escrever de novo o que naquele sagrado papel se lê. Diz S. Paulo que Cristo morrendo apagou a escritura de nossos pecados, e que assim apagada a pregou na sua Cruz: Delens quod contra nos erat, chirographum et ipsum tulit de medio, affigens illud cruci.[2] Mas se Cristo então apagou uma escritura, e a fixou na Cruz para o remé­dio, hoje escreve outra escritura e fixa nela a mesma cruz para o efeito. Isto é o que significa aquela cruz, e isto o que contém aquela escritura: tudo graça, e tudo graças.

Vejo porém que me estão perguntando todos, e com razão, se estes tesouros e graças manaram do lado de Cristo aberto, como os abriu não outrem, senão um solda­do: Unus militum lancea latus ejus aperuit. Esta é a maior circunstância da história, e a mais viva energia do mistério. O princípio e primeira instituição da Bula da Cruzada, foi em tempo do Concilio Lateranense, quando se concederam estas graças e indulgên­cias a todos os que, tomando a insígnia da cruz, se alistassem por soldados para a conquista da Terra Santa. E como elas foram concedidas, não a outros, senão aos solda­dos daquela sagrada empresa, por isso, com a mesma propriedade, não outrem, senão um soldado, foi o que abriu o lado de Cristo: Unus militum. Mas não parou aqui o mistério, como também não pararam aqui as graças. O motivo que teve primeiro o Papa Gregório Décimo Tércio, e depois seus sucessores, e hoje o Santíssimo Padre Inocên­cio Décimo, Nosso Senhor, para conceder as mesmas indulgências da Cruzada aos Reinos de Portugal, foi, como se contém na mesma bula, o subsídio dos nossos solda­dos da África, que armados sempre, e em velas naquelas fronteiras, defendem as portas de Espanha e da Cristandade contra a invasão dos mouros. E como os soldados da África propriamente são soldados de lança, e os cavaleiros que lá servem, servem ou com uma, ou com muitas lanças, para cumprimento e realce do mistério em toda a sua propriedade, o soldado que abriu o lado de Cristo e franqueou os tesouros das mesmas graças, não foi só, nem devia ser de qualquer modo soldado, senão soldado de lança, e com lança: Lancea tatus ejus aperuit.

Temos declarado o tema, e proposta a matéria em comum. Para descer aos parti­culares dela, publicando as graças da Santa Bula e descobrindo um por um os inestimá­veis tesouros que nelas se encerram, o mesmo tema nos dará o discurso. Em todo ele não seguirei outra ordem, nem outra divisão, que as das mesmas palavras. Ave Maria.

II

Unus: As graças dos reis da terra dependem de muitos, as do rei do céu, dependem de um só. Como aconteceu a Davi com Saul, nos despachos dos reis da terra, mais custa o requerimento que o merecimento. O leproso do Evangelho e o Príncipe dos Sacerdotes. Na Bula da Cruzada, cada um pode eleger o confessor de que mais se contentar, mesmo que seja estrangeiro e cego, como Longuinhos.

Unus militum lancea latus ejus aperuit.

A primeira excelência que acho na Bula da Santa Cruzada, é ser um o que abre estes tesouros do lado de Cristo: Unus. Se estas graças e indulgências depende­ram de muitos, para mim quase deixaram de ser graças. Esta é a grande diferença que há entre as graças e mercês dos reis da terra, e as do Rei do céu. As graças dos reis da terra, sendo por merecimentos nossos, dependem de muitos ministros; as do Rei do céu, sendo por merecimentos seus, dependem de um só: Unus.

Antes de Davi entrar em desafio com o gigante, perguntou que prêmio se havia de dar a quem tirasse do mundo aquele opróbrio de Israel (1 Rs. 17, 23). E foi-lhe respondido que o rei lhe havia de dar sua própria filha em casamento (1 Rs. 17, 25). Saiu Davi a campo, matou o filisteu, mas quando aos aplausos da famosa vitó­ria parece que se haviam de seguir logo as bodas, nada menos lhe passava pelo pensamento a Saul. Puxava Davi pela palavra real, requeria o prêmio, não arbitrário, senão certo, de um tão singular e notório serviço, e a resposta por muito tempo (como se costuma), eram dilações e palavras frívolas (1 Rs. 18, 25). Finalmente mandou-lhe responder o rei que, se queria com efeito a satisfação que se lhe prome­tera, matasse mais um cento de filisteus. Servi lá, arriscai-vos lá, e fiai-vos de pro­messas e mercês de homens. De maneira que para Davi merecer a mercê, bastou-lhe pelejar e vencer um filisteu, e para fazer a mercê efetiva, foi-lhe necessário pelejar e vencer um cento de filisteus. Isto é o que vos acontece em todas as promessas e despachos dos reis da terra. Muito mais custa o requerimento que o merecimento. Para o merecimento basta batalhar com um inimigo; para o requerimento é necessá­rio batalhar com um cento de ministros, que as mais vezes não são amigos. Para render o filisteu de Davi bastou uma pedra; para render estes filisteus tão estirados, tão sombrios, tão armados, não basta uma pedreira, nem muitas pedreiras, e se alguns se rendem com pedras, não são as do rio. Mas quando não foram tão duros e tão dificultosos, bastava serem tantos.

Esta é pois a primeira graça que Deus nos faz na Bula da Santa Cruzada. Tantas enchentes de mercês, tantos tesouros de misericórdias e favores, e todos des­pachados por um só ministro: um confessor. Para as mercês dos reis da terra, que não importam nada, tantas papeladas e tantos ministros; para as graças do Rei do céu, que importam tudo, uma só folha de papel e um só ministro, uma Bula e um sacerdote: Unus.

Mas porque, para tirar toda a dificuldade e repugnância, não basta só ser o ministro um, se for certo e determinado, concede-vos mais a bula, que este um seja, à vossa eleição, aquele que vós escolherdes. Esta é a maior circunstância de graça que se encerra nesta graça. Quando Cristo sarou aquele leproso do Evangelho, man­dou-lhe, segundo o texto de S. Marcos, que se fosse presentar ao Príncipe dos Sacer­dotes: Vade, ostende te Principi Sacerdotum.[3] Contra este mandado está que a lei universal do Levítico, como consta do capítulo treze, só obrigava aos leprosos que se manifestassem a qualquer sacerdote, aos quais pertencia julgar da lepra – (Lev. 13, 1). Pois, se qualquer sacerdote ordinário podia conhecer da lepra, por que manda Cristo a este leproso que nomeadamente se presente ao Príncipe dos Sacerdotes? Respondem os expositores que antigamente assim era, mas que esta lei geral se tinha restringido depois, e estava reservado o caso da lepra ao conhecimento e juízo do Príncipe dos Sacerdotes somente. E por isso Cristo mandou o leproso, não a outro sacerdote, senão ao Príncipe: Principi Sacerdotum. O mesmo passa hoje nos casos e pecados reservados, de que não podem absolver os sacerdotes ordinários, e só per­tence a absolução ao prelado de toda a diocese, e talvez ao príncipe supremo de toda a Igreja. E posto que semelhantes reservações sejam muito justas e necessárias para refrear a temeridade, não há dúvida que também são ocasionadas para precipitar a fraqueza. Que haja um homem de descobrir a sua lepra e manifestar a sua miséria, de que só Deus é sabedor, não só a outro homem como ele, senão determinadamente a tal homem? Grave e dificultosa pensão! E muito mais, quando pela distância dos lugares se acrescenta o trabalho e a despesa, e pela grandeza e dignidade da pessoa, se faz maior a repugnância, o pejo e o horror. É verdade que os meios da salvação se hão de procurar e aceitar de qualquer mão, ainda que seja a mais aborrecida e repug­nante: Salutem ex inimicis nostris, et de manu omnium qui oderunt nos.[4] Mas ainda mal, porque é tal a fraqueza e pusilanimidade humana, que estão ardendo muitos no inferno, não por não confessar seus pecados, senão pelos não confessar a tal homem, sem reparar que no dia do juízo hão de ser manifestos todos a todos os homens.

A este inconveniente porém acode hoje a misericórdia divina e a benignidade do Sumo Pastor por meio da Santa Cruzada, concedendo atados os que a tomarem faculdade de eleger cada um o confessor aprovado de que mais se contentar e satisfizer. Por isso o ministro que abriu o lado se não nomeia no texto, e só se diz que era unos militem: um, indetermina­damente. E posto que da História Eclesiástica conste que foi Londrino (ou, como o vulgo lhe chama, Longuinhos) neste mesmo homem concorriam duas circunstâncias dignas de grande reparo para o nosso caso. Era Londrino estrangeiro e cego. Estrangeiro, porque, sendo roma­no, servia nos presídios de Jerusalém; cego, porque, como afirma S. Gregório Nazianzeno, de ambos os olhos não via. [5] E por que quis Cristo que lhe abrisse o lado e fosse o dispensador destas graças um estrangeiro, e cego? Para tirar toda a ocasião e escusa ao pejo e repugnância humana. Tendes pejo de manifestar a vossa miséria, tendes repugnância de descobrir o vosso pecado? O remédio está na vossa eleição: buscai um estrangeiro que vos não conheça, buscai um cego que vos não veja: Unus militum. Passemos a segunda palavra.

III

Militum. – O descaminho dos soldos. O merecimento da esmola não consiste em que a comam aqueles para quem se dá, senão em que se dê para que eles a comam. Abraão e os anjos peregrinos. Judas e as esmolas dos discípulos de Cristo.

Militum. Sobre esta palavra soldados, a primeira coisa que ocorre é o soldo. E este se paga pontualmente e se despende todo com os nossos soldados cavaleiros da África, tão beneméritos da fé e da Igreja: esse é o fim para que os Sumos Pontífices concederam o subsídio da bula. Da pureza das mãos em que se recebe, nunca houve, nem pode haver dúvida. Mas, como passa por tantas outras, e há tanto mar e sumidouros em meio, não sei se poderá ser justificada a queixa comum. É certo que nos escritores da África, sem serem Tertulianos, nem Agostinhos, se lêem de tempos passados graves lamentações deste des­caminho. O dinheiro santo da bula, que cá se recolhe em vinténs, dizem que torna de lá em meticais, e que a muita fome que de cá se leva é a causa da que lá se padece. Mas isto toca a quem toca. O que a mim me pertence é desfazer este escrúpulo e assegurar a todos os que tomam a bula que, ainda que o dinheiro da esmola se desencaminhe, e os soldados da África os não comam, sempre as graças concedidas se ganham com infalível certeza.

No dia do juízo, dirá Cristo: Venite, benedicti Patris mei: esurivi enim, et dedistis mihi manducare (Mt. 25, 35): Vinde benditos de meu Padre, porque tive fome, e me destes de comer. – Notai muito aquele porque. Não diz: Porque comi o que me destes, senão: Porque me destes de comer. Aqui está o ser da obra. O merecimento da esmola não consiste em que a comam aqueles para quem a dais, senão em que vós a deis para que eles a comam. E isto é o que se verifica na esmola da bula, em qualquer acontecimento. Pode acontecer que a não comam, nem se sustentem com ela os soldados para que está aplicada. E pode também acontecer que em parte não haja tais soldados, porque há praças fantásticas. Mas, ainda que a praça e o soldado seja fantástico, a esmola que se dá para seu sustento sempre é verdadeira, e o merecimento certo. Grande exemplo na História Sagrada.

Vieram a casa de Abraão três anjos em figura de peregrinos, e diz o texto que Abraão os hospedou e lhes pôs a mesa, e os tratou com grande agasalho e regalo (Gên. 4, 2). Agora pergunto: Aqueles anjos comeram verdadeiramente o que lhes deu Abraão? Claro está que não, porque os anjos não comem, e aqueles corpos com que apareceram eram corpos fantásticos. Contudo diz o mesmo texto que Deus pa­gou esta obra a Abraão muito de contado, e lhe fez grandes mercês por ela, como foi a do filho Isac, e outras (Gên. 15, 18). Pois, por uma obra que se fez a homens fantásticos, a homens que não havia tais homens no mundo, e pelo comer que se lhes deu, o qual eles não comeram, nem podiam comer, faz Deus tantas graças e tantas mercês a Abraão? Sim. Porque ainda que os homens eram fantásticos, a esmola era verdadeira, e ainda que eles não comeram o que lhes deu Abraão, Abraão deu-o para que eles comessem. A esmola da Bula que dais para os soldados de África, pode acontecer que eles a não comam, ou porque alguns os não há, ou porque fica cá o dinheiro, ou porque, se lá vai, eles (como dizeis) ficam anjos; mas como Deus só respeita o merecimento da esmola e o fim dela, ainda que os homens o divirtam e desencaminhem, a paga que naquela escritura se vos promete sempre está segura.

Tenho notado a este propósito um lanço da providência e governo de Cristo, que sempre me admirou muito e deve admirar a todos. Cristo e seus discípulos, como não possuíam nada deste mundo, viviam das esmolas com que a devoção dos fiéis socorria o Sagrado Colégio. Para receber estas esmolas, e as despender e distribuir, houve o Senhor de eleger um deles (Jo. 12, 6), e quem se não admirara e pasmara de que este eleito fosse Judas? – Senhor, dai-me licença. Vós não conheceis muito bem a Judas? – Sim, conheço. – Não sabeis que é ladrão, e que há de furtar?– Sim, sei.– Estas esmolas que lhe entregais e fiais dele, não são para sustento dos outros discípulos que vos servem, e que hão de defender com a vida vossa fé e vossa igreja? – Sim, são. – Sobretudo, a esmola não é aquela obra de caridade tão estimada de vós, a que tendes prometido tantos prêmios, tantas mercês, tantas graças, e a mesma bem-aventurança? – Sim, é. – Pois nas mãos de Judas meteis tudo isso, para que ele se aproveite e os outros padeçam? Para que ele coma, e os outros morram de fome? Não foi esse o fim de Cristo, que Deus não favo­rece ladrões, ainda que os permita. Mas permitiu neste caso, com alta providência, que as esmolas dadas para sustento dos que o serviam, corressem por mãos de quem as havia de roubar, para que constasse então, e agora a toda sua Igreja, que ainda que as esmolas se roubem, e se desencaminhem, e não se apliquem ao fim para que se dão, o preço, e merecimento delas, e o prêmio que se promete a quem as dá, sempre está seguro. Neste contrato há duas pagas: uma, apagados soldados para quem dais a esmola, que corre por mão dos homens, e outra, a paga da mesma esmola que dais, que corre pela mão de Deus. A que corre por mão dos homens, pode faltar aos soldados; a que corre por mão de Deus, nunca vos pode faltar a vós. Os soldados não serão pagos; vós sempre sois pago.

Satisfeito este escrúpulo vulgar, respondamos a outro de mais bem fundada objeção, a que nos chama o texto.

IV

Lancea: As lanças dos soldados da África e os tesouros da Igreja. O Papa, tesoureiro da monarquia de Cristo. Como Cristo atribui seus milagres não à pró­pria onipotência, senão à fé dos que os recebem, assim atribuímos os beneficios da Bula mais à lança dos soldados que às Chaves de Pedro. Nas leis da terra, dão-se os prêmios só a quem milita e serve; nas leis do céu têm o mesmo prêmio tanto o que milita e serve, como o que o sustenta.

 Lancea. Assim como a lança do soldado do Calvário foi a que abriu o lado de Cristo, assim dissemos que as lanças dos nossos soldados de África são as que abrirão e abrem os tesouros da Igreja, que se nos concedem na Bula Mas esta aplicação, ou modo de dizer, parece que se encontra com a propriedade e verdade do que cremos neste mesmo ponto. É verdade católica de nossa santa fé romana, que quem abre e só pode abrir os tesouros espiri­tuais da Igreja, são as chaves de S. Pedro: logo, mal o atribuímos às lanças dos nossos solda­dos. Direi. Para abrir estes sagrados tesouros, necessariamente[6]  concorrem duas coisas: da parte de quem os concede (que é o Papa) o poder; e da parte de quem os recebe (que somos nós) ajusta causa Mas de tal sorte dependem desta justa causa as mesmas graças concedidas, que sem elas seriam totalmente inválidas e de nenhum efeito. A razão disto é, como está decidido em muitos cânones, porque o Pontífice não é senhor dos bens espirituais da Igreja, senão despenseiro, e como tal só os pode despender racionavelmente e com causa justa De outra maneira seria a monarquia espiritual de Cristo tão malgovemada, como são as tempo­rais de muitos príncipes. Por isso vemos tantos tesouros mais esperdiçados que repartidos, e tantas graças e mercês imódicas, concedidas sem nenhuma causa, e muitas vezes com a contrária Digam-no as prodigalidades de el rei Assuero com o seu mau valido Amã (Est. 3, 1). E no mesmo tempo o fiel Mardoqueu, benemérito de tantos serviços feitos à coroa e a pessoa do mesmo rei, pregado manhã e tarde aos postes de palácio, subindo e descendo aquelas cansadas escadas, sem haver quem pusesse nele os olhos, salvo o mesmo Amã, para o destruir. Não assim os tesouros da monarquia de Cristo, de que tem as chaves o seu Vigário. Eles só os pode despender, sim, mas só com justa causa. E como ajusta causadas graças que se nos concedem na bula, é a defensa dos lugares e fortalezas da África, as quais os nossos soldados sustentam contra a invasão e forças de toda a barbaria, por isso a abertura das mesmas graças se atribui justamente às suas lanças. Vede se falo conforme a doutrina e leis do Senhor e autor da mesma Igreja.

Quando Cristo concedia perdão de pecados, ou dava saúde milagrosa aos enfer­mos, tudo atribuía comumente a fé dos que a recebiam. A Madalena: Fides tua te salvam fecit;[7] a cananéia: O mulier, magna est fides tua;[8] ao centurião: Sicut credidisti, fíat tibi, 8 ao pai do surdo e mudo: Omnia possibilia sunt credenti.[9] E assim a outros muitos. Mas, por que razão? Essas obras sobrenaturais, Senhor, e essas mercês extraor­dinárias, ou da graça, ou da saúde, não são todas efeito da vossa onipotência? São. Pois, por que as não atribuís à mesma onipotência que as obra, senão à fé dos que as recebem? Porque, segundo a regra geral da Providência de Cristo, queria o Senhor que assentassem estas mercês e graças que fazia, sobre o merecimento da fé dos que as logravam. E como para as mesmas graças concorriam duas causas, uma eficiente que era a onipotência, e outra meritória, que era a fé, atribui-se o efeito a meritória e não à eficiente, porque a eficiente naquela suposição dependia da meritória. O mesmo passa no nosso caso. O poder de abrir os tesouros da Igreja está nas chaves de S. Pedro; mas elas os não podem abrir validamente senão com justa causa, e toda a justa causa das graças que se nos concedem na bula, é a conservação das praças católicas, que os nossos soldados e cavaleiros da África defendem às lançadas, por isso, sem ofensa do poder das chaves (que reconhecemos) não atribuímos os efeitos delas às mesmas cha­ves, quanto as lanças: Lancea tatus ejus aperuit.

Mas vejo que voltais contra mim a mesma lança, e me argúis com a minha mesma razão. Se a causa das indulgências que se concedem na bula é a defensa dos lugares da África e daquelas muralhas da Cristandade com que impedimos os passos aos infiéis, e pomos freio ao orgulho e fúria de seus exércitos, será justa e justíssima causa para os soldados e cavaleiros, que com as armas às costas, vigiando de noite e pelejando de dia, defendem às lançadas e com o sangue e as vidas as mesmas mura­lhas. Mas para nós, que estamos em Portugal muito seguros e descansados, sem vigiar, nem acudir a rebate, nem ver mouro, nem empunhar lança, que só com a contribuição de uma esmola tão tênue tenhamos justa causa de se nos concederem as mesmas graças? Parece que não pode ser. Prova-se com a experiência das nossas fronteiras. Para os soldados que nelas militam e as defendem, todos pagamos à déci­ma, mas quando vêm ao requerimento das mercês, só os soldados e capitães as pedem e as recebem: os demais, ainda que os sustentem com os seus tributos, nem recebem, nem pedem, nem esperam mercê por isso. Não é assim? Assim é, e assim havia de ser, se Deus fora como os homens, e o Rei do céu, como os da terra. Nas leis da terra dão-se os prêmios ao que milita e serve, mas não a quem o sustenta; nas leis do céu, aquele que milita e serve, e mais aquele que o sustenta, todos têm o mesmo prêmio. Lei expressa do Evangelho, promulgada por Cristo: Qui recipit prophetam in nomine prophetae, mercedem prophetae accipiet; qui recipit justum in nomine justi, mercedem justi accipiet.[10] Eu, diz Cristo, mando meus pregadores, que são os meus soldados, a conquistar o mundo e pelejar contra os infiéis; mas porque eu lhes não dou sustento, nem soldo com que o comprar, saibam todos que a mercê que lhes tenho tachado a eles por me servirem, a mesma hei de fazer aos que os sustentarem: Mercedem prophetae, mercedem justi accipiet. Pode haver texto mais claro e pro­messa mais infalível? Pois isto é o que se nos promete naquela escritura fundada na mesma lei da munificência divina. Os soldados e cavaleiros da África passam o mar, mudam o clima e deixam a pátria: vós ficais nela; eles vigiam nas atalaias, vós dormis; eles defendem as tranqueiras, saem ao campo, andam as lançadas com os bárbaros, e muitas vezes perdem a vida; vós lograis a bela paz. Mas basta que as vossas esmolas, posto que tão limitadas, concorram ao seu sustento, para que, nas mercês e nas graças, iguale Deus o vosso ócio ao seu trabalho. Para com os reis, só eles merecem e ganham as comendas; para com Deus, tanto ganha a vossa esmola, como a sua lança: Lancea.

V

Latus ejus: Não há graças mais dificultosas e duras de conseguir que as que dependem dos lados dos reis. O lado de Cristo ajuntou em si, mas para nós, tudo o que sobejou a Cristo: os sacramentos. A costa de Adão e a formação da Igreja.

Latus ejus. Se esta segunda palavra não limitara ou ampliara a primeira, gran­de oposição se nos oferecia nela contra tudo o que temos dito e nos resta por dizer. Cristo na cruz estava com título e representação de rei, mas não de rei universal, que era de todo o mundo, senão de rei particular de uma nação: Rex judeorum. E não há graças mais dificultosas e duras de conseguir que as que dependem dos lados dos reis: Latus ejus. Olhemos bem para esta figura exterior, e veremos nela uma imagem natural do que os vassalos têm nos reis, e do que padecem com os lados. Primeira­mente, no estado em que Cristo se achava na cruz, tudo o que pertencia ao rei estava feito; só o que corria por conta do lado estava por fazer. O que houve de fazer o rei, era pedir perdão pelos inimigos, e já estava pedido; era dar o paraíso ao ladrão penitente, e já estava dado; era entregar o discípulo à Mãe, e a Mãe ao discípulo, e já estavam entregues; era beber ou gostar o fel, e já estava gostado; era principalmente remir o mundo, e já estava remido. Enfim, tudo o que tocava ao rei estava feito: Consummatum est (Jo. 19, 30). Ao lado pertencia dar os sacramentos, e só isso estava por fazer. O rei estava patente a todos com quatro portas abertas: duas para os inferiores, nos pés, e duas para os mais altos, nas mãos; e os lados no mesmo tempo estavam fechados por uma e por outra parte, sem haver por onde entrar, nem pene­trar a eles. O corpo estava ferido e lastimado, e só os lados sãos e sem lesão alguma. Nem chegaram lá os golpes dos açoites, como as costas; nem os carregou o peso da cruz, como aos ombros; nem os rasgava ou suspendia a dureza dos cravos, como aos pés e mãos; nem os molestava o estirado e desconjuntado dos membros, como aos nervos e ossos; nem os atenuava o vazio e exausto do sangue, como as veias; nem os amargava o fel, como a boca; e o que é mais que tudo, nem os picavam os espinhos, como a cabeça, tendo tanto da coroa. Finalmente, o que excede toda a razão e toda a admiração, é que estava junto e recolhido nos lados tudo o que faltava ao rei. De duas coisas padeceu Cristo extrema falta no Calvário: falta de sangue e falta de água. Faltou-lhe o sangue, porque o tinha derramado ali e em tantas outras partes; faltou-lhe a água, porque da mesma falta de sangue se seguiu aquela extraordinária sede que o obrigou a dizer: Sitio.[11] É porém muito de notar, que quando se abriu o lado, do mesmo lado saiu sangue e água: Exivit sanguis et aqua. Pois se o rei padecia tanta falta de sangue e tanta falta de água, como agora lhe sai do lado sangue e mais água? Porque tudo o que falta aos reis está junto e recolhido nos lados. Oh! se houvesse, não digo uma lança, ou uma lançada, senão uma chave mestra que abrisse estes lados, como é certo que achariam neles junto os reis, ou tudo, ou grande parte do que lhes falta, e que fazendo dois atos de justiça em um mesmo ato, poderiam socorrer, remediar, e ainda enriquecer a muitos com o que não basta a poucos.

Estes são os lados dos reis, mas não assim o lado de Cristo. Passemos do exterior da alegoria ao interior da realidade. Latus ejus. Toda a diferença de lado alados está na limitação do ejus: dele, de Cristo. Os lados dos reis da terra dilatam, porque não querem fazer; o lado de Cristo dilatou para poder fazer mais do que estava feito. Os lados dos reis, estando todo corpo chagado, só eles se vêem sãos; o lado de Cristo esteve são, para ser ele o mais chagado, antes a maior chaga de todas. Os lados dos reis fecham-se porque se não querem comunicar; o lado de Cristo esperou fechado para se comunicar com maior abundância, e para ficar sempre aberto. Finalmente os lados dos mis ajuntam em si, e para si, tudo o que falta aos reis; o lado de Cristo ajuntou em si, mas para nós, tudo o que sobejou a Cristo. Notai muito.

O sangue de Cristo foi o preço de nossa redenção, e como este preço era infinito, porque uma só gota bastava para remir mil mundos, tão infinito foi o que sobejou depois de remido, como era infinito o que se despendeu para o remir. E que se fez deste preço que sobejou? Assim como do que se despendeu se pagou o resga­te, assim do que sobejou se fez um depósito. E este depósito de preço e valor infinito são os tesouros da Igreja, que misteriosamente estavam encerrados no lado de Cris­to. Daqui se entendera a razão por que, tendo o Senhor derramado tanto sangue até a morte, ainda reservou no lado mais sangue para o derramar depois de morto. E por que, se no ponto da morte de Cristo ficou o mundo remido? Porque o sangue derra­mado até a morte significava o preço necessário à redenção, que se despendeu, e o sangue que se derramou depois da morte, significava o preço superabundante, que sobejou. Do que se despendeu na paixão, como de resgate, se remiu o mundo; do que sobejou no lado, como de depósito, se formou e enriqueceu a Igreja. Dormiente Adam, fit Heva de latere: mortuo Christo, perforatur latus, ut supereffluant sacramenta, unde formetur Ecclesia:[12] Assim como do lado de Adão, diz Santo Agosti­nho, se formou Eva, assim do lado de Cristo saíram os sacramentos, para que deles, como de matéria superabundante, se formasse a Igreja. Isso quer dizer a palavra supereffluant, que significa sair como coisa superabundante, supérflua, e que sobe­ja. Falou Agostinho com tão grande lume da teologia, porque estes são os próprios termos de que usam os teólogos quando falam do tesouro da Igreja, que se compõe principalmente da satisfação infinita do sangue de Cristo, que superabundou e sobe­jou do preço da redenção. Thesaurus satisfactionum Christi supereffluentium[13] diz com todos os doutores ortodoxos o Cardeal Belarmino. E este é o tesouro donde a Igreja tira as graças e indulgências que concede e aplica aos fiéis para que satisfaçam à justiça divina pelas culpas ou penas de que lhe são devedores.

E se alguém desejar, na semelhança de Santo Agostinho, que também é de S. Paulo (Ef. 5, 32), a perfeita proporção da figura com o figurado, e me perguntar como se verifica, ou pode verificar do lado de Adão ser formada Eva, não da parte, ou matéria necessária, senão da superabundante e supérflua, eu o direi, satisfazendo a esta e a outra grande dúvida. Diz o texto sagrado, que tirou Deus uma costa do lado de Adão, e que desta costa formou a Eva; mas duvidam, e com muito fundamento os teólogos, que costa de Adão foi esta, porque se era uma das costas de que naturalmente se com­põe o corpo humano, segue-se que o corpo de Adão ficou defeituoso e imperfeito, o que se não deve admitir, sendo Adão o primeiro homem, e o modelo original de todos os homens que dele haviam de nascer. E se o corpo de Adão ficou perfeito, antes perfeitíssimo (como era bem que fosse), que costa foi esta sua, de que Eva se formou? Responde Santo Tomás que o corpo de Adão, quando ao princípio foi criado, tinha uma costa demais em um dos lados, e que deste lado e desta costa, que nele sobejava, foi formada Eva.[14] Pois, assim como no lado de Adão criou Deus uma parte supera­bundante e supérflua de que tirou a matéria necessária a formação de Eva, assim no lado de Cristo depositou outra parte também superabundante e supérflua, necessária a formação e reformação da Igreja, que foi o que sobejou do preço infinito da redenção. E estes são os tesouros das graças que hoje se nos concedem, tirados do depósito infinito e inexausto do lado de Cristo aberto: Lotus ejus aperuit.

VI

Aperuit: Abriu-se o lado de Cristo. O livro fechado do Apocalipse, excelente representação da Bula da Santa Cruzada. Os sete selos do livro, e os sete impedi­mentos à sua abertura: pecados reservados, excomunhões, interditos, votos, enfer­midades, dívidas temporais aos homens e espirituais a Deus. Universalidade das graças do lado de Cristo.

Aperuit: Abriu-se o lado de Cristo, mas porque se podia abrir mais, ou menos, para que saibamos a largueza com que se abriu, e quão imensos são os tesouros que dele se nos comunicam, vejamo-los patentes e declarados, não por outro intérprete, senão pela mesma bula. Diz S. João no princípio de seu Apocalipse, que viu diante do trono de Deus um pergaminho escrito por dentro e por fora, envolto e cerrado com sete selos. Isto é o que ele chama livro, porque assim eram e se chamavam os livros daquele tempo. Desejava como profeta, saber o que continha aquela escritura tão cerrada (Apc. 5, 1). E diz que chorava muito por se não achar quem a abrisse. Mas logo se chegou a ele um velho, dos vinte e quatro anciãos que assistem ao trono de Deus, o qual o consolou, dizendo que o Leão da tribo de Judá tinha poder para abrir. Então viu S. João um cordeiro que estava em pé, como morto, o qual desfechando os sete selos, abriu e estendeu o pergaminho, e fez patente o que nele estava escrito. Grande mistério verda­deiramente, e grande e excelente representação ou figura da Bula da Santa Cruzada! Primeiramente isto significam os selos, que são os que dão autoridade a bula, e dos mesmos selos pendentes é que ela tem e tomou o nome, porque bula quer dizer selo. Estava o pergaminho escrito por dentro e por fora, porque as graças que contém a bula, não só pertencem aos bens interiores e espirituais, senão também aos temporais e exte­riores, e não só aos vivos, que estamos neste mundo, senão também aos defuntos, que estão fora dele. Não se achava quem abrisse o que ali estava fechado, e publicasse o que estava escrito, porque este poder é só de Cristo e do seu Vigario, e por isso o velho que consolou S. João, como tem para si Lirano, foi S. Pedro. Disse que o abriria o Leão da tribo de Judá, que é Cristo, o qual logo apareceu em figura de cordeiro, em pé, e como morto: Agnum stantem, tanquam occisum (Apc. 5, 6), tudo com o mesmo misté­rio. Em figura de cordeiro, porque esta obra, sendo de seu poder, é muito mais de sua benignidade e misericórdia. Em pé, e como morto, porque Cristo morreu na cruz, não jazendo, senão em pé, e da cruz, acresceu a bula o nome de Cruzada. E finalmente não morto, senão como morto, porque correr sangue do lado de Cristo (o que só acontece aos vivos) foi ação de faculdade vital e vivificante, como gravemente notou S. Hipóli­to: Ut ne ipsum corpus mortuum aliis simile appareat, nobis autem ea, quae sunt vitae causa, possit profundere[15] Correu sangue do lado de Cristo morto, – diz este antiquís­simo Padre, – para que entendêssemos que o mesmo lado, ainda morto, tinha potência de vivificar, e que dele manavam todas as graças que nos haviam de dar vida.

Vamos agora metendo a mão neste sagrado lado aberto, não como Tomé in­crédulo, mas fiel; e abrindo os sete selos, um por um, como o mesmo cordeiro crucificado os abriu, vejamos os divinos tesouros de graças, que naquela larga escritura se nos prometem e comunicam. Em uma alma, ou consciência embaraçada, podem geralmente concorrer sete impedimentos para não conseguir prontamente os meios de sua salvação: pecados reservados, excomunhões, interditos, votos, enfermida­des, dívidas temporais aos homens, e espirituais a Deus. E todos estes impedimentos (com poucas exceções, em que me não posso deter, e se contêm na mesma bula) se nos tiram e facilitam por ela. Acha-se carregada vossa alma, não só com pecados, mas com pecados de dificultosa absolução, quais são os reservados? Tomai a Bula da Santa Cruzada, abri o primeiro selo: Aperuit, e ela dá poder ao confessor que elegerdes, para vos absolver de todos, por graves e enormes que sejam, e não só reservados aos prelados ordinários, mas à mesma Sé Apostólica. Estais ligado com a gravíssima censura da excomunhão, tendes horror, como deveis ter, de vós mes­mo, vendo-vos da comunicação dos fiéis? Abri o segundo selo: Aperuit, e por graça e faculdade da mesma bula, sereis absolto da excomunhão, ou seja a jure, ou ab homine, e restituído ao antigo estado. Fecharam-se-vos as portas da Igreja, por estar interdita a paróquia, a cidade, ou reino onde viveis? No meio desta tristeza e descon­solação pública, abri o terceiro selo: Aperuit, e pelo privilégio que debaixo dele se vos concede, não só podereis assistir privadamente aos divinos ofícios, e receber os sacramentos, mas se durante o interdito morrerdes, gozareis de eclesiástica sepultu­ra. Fizestes votos com que vos obrigastes a Deus e aos santos mais do que o tempo, as ocupações e a pouca devoção vos dão lugar? Abri o quarto selo: Aperuit, e o confessor, por virtude da bula, vo-los comunicará de modo que facilmente os pos­sais cumprir. Sois enfermo ou achacado, fazem-vos dano a saúde os comeres qua­dragesimais? Abri o quinto selo: Aperuit, e de conselho do médico e confessor, não só na quaresma, mas em todos os outros dias proibidos podereis comer licitamente o que julgardes conveniente a vossa fraqueza. Adquiristes e possuís bens alheios, não sabeis a quem os haveis de restituir, porque ou foram adquiridos vagamente, ou não aparece o dono, não podeis restituir inteiramente por pobreza, ou não quereis por avareza, como é mais certo? Abri o sexto selo: Aperuit, e a tudo vos dará a bula tão fácil remédio, que com pouca despesa satisfaçais muita dívida. Finalmente deveis a Deus as penas de vossos pecados, que sois obrigado a pagar, ou nesta, ou na outra vida, como as estão pagando os do purgatório, dos quais igualmente vos compade­ceis, ou pelas obrigações do sangue, ou pelas de cristão? Abri o sétimo selo: Aperuit, e achar-vos-eis rico de tantas abundâncias de graças e indulgências, que plena­mente, e plenissimamente, possais satisfazer por vós, e por todos os defuntos, a quem se estender a vossa caridade.

Oh! misericórdias do lado de Cristo! Oh! tesouros da Madre Igreja, que dele se enriqueceu! Ele tão infinito em lhos entregar, e ela tão liberal em no-los repartir! Agora entendereis a cláusula desta visão do Apocalipse. Diz S. João que quando o cordeiro abriu os sete selos daquela misteriosa escritura, prostrados diante do seu trono, lhe deram infinitas graças todos os que estavam no céu, e na terra, e debaixo da terra, e no mar, e debaixo do mar: Et omnem creaturam, quae in coelo est, et super terram, et sub terra, et quae sunt in mari, et quae in eo, omnes audivi dicentes sedenti in throno, et Agno: Benedictio, et honor, et gloria. E quem são estes que davam tantas graças a Deus e ao cordeiro que abriu os sete selos, não só no céu, senão na terra e no mar, senão também debaixo da terra e debaixo do mar? São todos aqueles que por diversos modos gozam os benefícios da bula. Os do céu, são os bem-aventurados; os da terra e do mar, são os vivos; os de debaixo da terra, e debai­xo do mar, são os defuntos. E todos davam graças a Deus e a Cristo morto pela abertura dos sete selos da Santa Cruzada, porque bem-aventurados, vivos, e defun­tos, todos por diverso modo lhe devem o maior benefício. Os bem-aventurados, porque por meio da bula subiram direitos à glória. Os vivos, porque por meio da bula se restituem a graça. Os defuntos e do purgatório, porque por meio da bula se livram das penas. Vede até onde alcançam, e se são grandes e universais para todos as graças daquele lado e daquela escritura aberta: Aperuit.

VII

Et continuo: logo. O logo da Santa Cruzada, não é como os logos dos tribu­nais. Que quer dizer logo. Os três logos na condenação do Batista. Os jubileus e o logo da Bula da Santa Cruzada. A liberalidade do demônio na tentação do monte, e a liberalidade de Deus.

Et continuo. Mas porque em matéria de mercês e graças, não basta só estarem impetradas e concedidas, nem basta terdes em vosso poder as portarias, os alvarás e as provisões para que entre o dado e o efetivo, entre a escritura e a posse, entre o papel e o que ele diz, não se atravessem muitos embaraços e muito tempo de esperas e ainda de desesperações, com muita razão me perguntareis: Estas graças e indulgências tão gran­des que se nos concedem na bula, quando se alcançam? Já pagamos a esmola, já se escreveu o nosso nome na bula, já a temos em nosso poder, mas o efeito, ou o efetivo, quando há de ser? A palavra que se segue o diz: Et continuo: Logo sem dilação, logo sem tardança, logo verdadeiramente logo. E digo verdadeiramente por que não cuide ou receie alguém que o logo da Santa Cruzada é como os logos dos vossos tribunais.

Não há palavra mais equivoca, nem advérbio de mais duvidosa significação, que o logo em matéria de despachos. Apenas há remissão que não desça com um logo, e quase não há consulta que não suba com dois logos, e alguma com três. Mas estes logos quão longos são, quanto tardam, e quanto duram! Há logo de dois anos e de quatro, e de dez, e de toda a vida. Estais despachado para a Índia, sobem os vossos papéis com três logos, dispara a capitânia peça de leva, cortam-se as amarras, embarcai-vos, e que vos sucede? Estivestes parado muitos dias nas calmas da Guiné, destes volta ao Cabo de Boa Esperança, invernastes em Moçambique, passastes duas vezes a linha, chegais finalmente a Goa a cabo de um ano e meio, e os logos ainda não chegaram. Se lá morrestes, chegarão para o dia do juízo, e se tomastes daí a oito ou dez anos, ainda os logos estão lá em cima, ou não há já memória donde estejam. E isto é o que significa­vam aqueles logos. Muitas vezes me pus a considerar que quer dizer logo. Logo? Porque se o primeiro logo significa logo, o segundo, que significação tem? Parece que um logo sobre outro logo, é como um não sobre outro não. Um não sobre outro não quer dizer sim; e um logo sobre outro logo, muitas vezes quer dizer nunca, e quase sempre, tarde. Isto porém se entende quando os logos são para remunerar e premiar beneméritos, que quando são para os destruir e aniquilar, um logo, e dois, e três, todos voam. Vede-o na tragédia do grande precursor de Cristo. Fez elrei Herodes  aquele solene convite ao dia dos seus anos; saiu a dançar a filha de Herodias; disse-lhe o rei que pedisse ainda que fosse a metade do seu reino. E que pediu? A cabeça do Batista, com três logos. Cumque introisset statim cum festinatione ad regem, petivit dicen: Volo ut protinus des mihi in disco caput Joannis Baptistae.[16] Contai os logos, e vede se foram três. Statim, logo; cum festinatione, logo; protinus, logo. E foram os logos tão prontos e tão logos, que logo entre os pratos da mesa apareceu em um deles a cabeça do maior dos nascidos. Estes são os logos da justiça, ou tirania do mundo. Quatro signifi­cações, todas formidáveis! Para o bem, um nunca; para o mal, três logos: Statim, cum festinatione, protinus.

Só o logo da Santa Cruzada, sendo para bem, e para tão grandes bens, verdadei­ramente, e com infalível certeza é logo: Et continuo. Para um logo não ser logo, po­dem-no impedir e retardar, ou as distâncias do tempo, ou as dos lugares. Mas nem as distâncias do tempo (ainda que sejam de muitos anos) nem as distâncias dos lugares (ainda que sejam de muitos centos de léguas) podem impedir, ou suspender o logo da Santa Cruzada, para que não seja logo. Vamos à mesma bula, e ide comigo. O jubileu do Ano Santo antigamente era de cem em cem anos, e depois foi de cinqüenta em cinqüenta; hoje é de vinte e cinco em vinte e cinco. Mas esta mesma distância de tempo tão comprido, se estreita e abrevia de tal modo, por graça e privilégio da bula, que, sem esperar vinte e cinco anos, nem dez, nem dois, nem um, neste mesmo dia podeis ganhar o jubileu do Ano Santo, e neste mesmo ano duas vezes. Nas distâncias dos lugares ainda é mais maravilhoso este logo: Et continuo. Quereis ganhar as indulgências de São Tiago, haveis de peregrinar cem léguas a Compostela. Quereis fazer as estações de Roma e correr as sete igrejas dentro e fora dos muros, haveis de peregrinar quinhentas léguas à Itália. Quereis visitar o Santo Sepulcro, o calvário, o Monte Olivete, a Casa Santa, haveis de peregrinar mil léguas a Jerusalém. Não são grandes distâncias de lugares estas? Grandes por certo, e ainda maiores, se lhes ajuntarmos que haveis de passar por terras habitadas de infiéis, e por mares infestados de infinitos corsários, onde é mais certa a escravidão e o remo que os perdões e indulgências que ides buscar. Mas para todos estes perigos, eu vos darei um passaporte muito seguro, e para todos estes caminhos um atalho muito breve. Tomai a Bula da Santa Cruzada, e sem sair de Lisboa, fostes a Compostela, fostes a Roma, fostes a Jerusalém, porque as graças que lá haveis de ir buscar, aqui se vos concedem, não diversas, nem menores, senão as mesmas. Querei-las alcançar logo? Visitai cinco igrejas. Quereis mais logo? Visitai na mesma igreja cinco altares. Quereis mais logo? Visitai o mesmo altar cinco vezes, e sem vos bulir de um lugar, fostes à Galiza, fostes à Itália, fostes à Palestina, e vos achais rico de todos os tesouros de graças, que tão longe se vão buscar com trabalho.

Mas ouço que me diz algum pobre: Padre, não são indulgências o que eu só quero; maior mal e maior pena é a minha. Fui tão desgraciado, que incorri uma excomunhão da Bula da Ceia. E quem me há de levar aos pés do Padre Santo, e mais em tempo de tantas guerras? Também cometi um pecado muito grave, reservado ao meu bispo, e agora não há bispos. Além de que, eu sou de uma aldeia de entre Douro e Minho, e depois que faltou o santo frei Bartolomeu dos Mártires, já os prelados não conhecem o meu lugar. Assim que me vejo com o remédio, quando menos mui dilatado; a morte pode vir mais cedo, não sei que há de ser de mim. Quê? Eu vos dou o remédio logo. Tomai a Bula da Santa Cruzada, elegei um confessor, e logo tendes o bispo na vossa igreja, e o Papa na vossa terra, porque o confessor, com uma bula na mão, é bispo e é Papa. Pode haver maior felicidade e maior brevidade que esta para os pecados, para as censuras, para as indulgências? De maneira que sem a Bula da Cruzada haveis de ir buscar o Bispo e o Papa, e com a bula o bispo e o Papa vêm-vos buscar a vós. Sem a bula, havíeis de ir tão longe, a Compostela, a Roma, a Jerusalém; com a bula tendes Compostela, tendes Roma, tendes Jerusalém dentro de Lisboa. Vede quanto vai deste sagrado tribunal aos outros. Nos outros tribunais tratam-se os negócios em Lisboa, como se estiveram em Roma, ou em Jerusalém; neste tratam-se e conseguem-se os de Roma e de Jerusalém como se estiveram em Lisboa. Em Lisboa digo, mas não como em Lisboa, porque o despacho e as graças não estão na mão dos ministros, senão na vossa.

E se vos parece coisa dificultosa que naquela folha de papel, como se fora um mapa do mundo, se ajuntem lugares tão distantes e terras tão remotas, como são Roma, Jerusalém e Lisboa, e que para se conseguirem tantos tesouros de graças se contente Deus e o seu Vigário com que vos ponhais de joelhos numa igreja, respon­dei-me a uma pergunta. Quem é mais liberal: Deus em dar, ou o demônio em prome­ter? Não há dúvida que Deus em dar. Lembrai-vos agora do que fez o demônio e do que prometeu e do que pediu a Cristo na tentação do monte. O que fez foi trazer ali todo o mundo; o que prometeu foi a glória de todos os reinos; o que pediu foi somente que se pusesse Cristo de joelhos diante dele. Pois se o demônio trouxe todos os reinos do mundo a um monte, por que não trará Deus, por modo mais fácil, Jerusalém, Roma e as outras cidades santas à vossa? E se o demônio prometeu todas as glórias daqueles reinos, por que não prometerá Deus todas as graças daqueles lugares? E se o demônio se contenta, e não quer mais, nem põe outra condição, senão que se lhe ajoelhem, por que se não contentará Deus com vos ver de joelhos diante de si, contrito, arrependido e orando? Finalmente se o demônio fez tudo isto (como diz o evangelista) em um momento: In momento (Lc. 4, 5), por que o não fará Deus em um logo que seja logo: Et continuo? Mas já é tempo de concluirmos. Vão juntas as duas últimas palavras.

VIII

Exivit sanguis et aqua: Por que do lado de Cristo morto saiu sangue e água? O Mar Vermelho e o Jordão, figuras do martírio e do batismo. Vantagens da Bula sobre o martírio e o batismo. A indulgência plenária: batismo com repetição e martírio sem tormento.

Exivit sanguis et aqua. Jerônimo, que por testemunho da Igreja, na interpreta­ção das Sagradas Escrituras é o Máximo de todos os doutores, declarando o mistério por que do lado de Cristo morto saiu sangue e água, disse com singular propriedade, que foi para significar, no sangue, o martírio, e na água, o batismo: Latus Christi percutitur lancea, et baptismi atque martyrii pariter sacramenta funduntur. [17] E por que razão mais o martírio e o batismo que algum dos outros sacramentos? A razão deste pensamento não a deu S. Jerônimo, mas posto que seja altíssima, não é dificul­tosa de entender. Entre todos os sacramentos, só o batismo e o martírio (que também é batismo) de tal modo purificam a alma e a absolvem de toda a culpa e pena, que no mesmo ponto ao mártir, por meio do sangue próprio, e ao batizado, por meio da água batismal, se lhes abrem as portas do céu, e se lhes franqueia a vista de Deus. Esse foi o mistério com que ao soldado, que abriu o lado (tanto que dele saiu o sangue e água) logo, sendo cego, se lhe abriram os olhos, e viu ao mesmo Cristo, que não podia ver. E como o fim da encarnação do Verbo foi destruir o pecado, reparar o estado da inocência, e abrir e restituir ao homem o Paraíso perdido, por isso o último ato da vida e morte de Cristo, e a última cláusula com que cerrou a obra da Redenção, foi tirar do sacrário de seu próprio peito aquelas duas chaves douradas do céu, e dar-nos as duas prendas mais seguras de sua graça e glória, que são, no sangue, a do martírio, e, na água, a do batismo: Baptismi, atque martyrii pariter sacramenta funduntur.

Quando os filhos de Israel passaram do Egito a Terra de Promissão, passaram pelo Mar Vermelho e pelo Rio Jordão, mas por um e outro a pé enxuto. E que Egito, que Terra de Promissão, que filhos de Israel, que Mar Vermelho, que Rio Jordão foi este? O Egito é o mundo, a Terra de Promissão é a glória, os filhos de Israel são os fiéis, o Mar Vermelho é o martírio, o Rio Jordão é o batismo, e passaram por um e outro milagrosamente a pé enxuto, porque só pelo Mar. Vermelho do martírio, e só pelo Rio Jordão do batismo se pode passar à glória a pé enxuto, isto é, sem tocar as penas do purgatório. Mas com isto ser assim, debaixo das mesmas figurações de martírio e Batismo, acho eu que ainda nos deu mais o lado de Cristo, e foi mais liberal conosco nas graças da Santa Cruzada. Comparado o martírio com o Batismo, não tem conhecida vantagem: ambos se excedem um ao outro, e ambos são excedi­dos. O batismo, como é sacramento do princípio da vida, deixa-nos capazes de me­recer, mas também capazes de pecar. O martírio, como se consuma com a morte e acaba a vida, deixa-nos incapazes de pecar, mas também incapazes de merecer. E nesta vantagem recíproca com que o martírio e o batismo se excedem e são excedi­dos, só poderá resolver qual é maior graça quem primeiro averiguar se é melhor o merecimento com perigo, ou a segurança sem merecimento, tão iguais ou problemá­ticas são as prerrogativas do batismo e do martírio comparados entre si. Mas compa­rados com as graças da Santa Cruzada, não há dúvida que a indulgência e indulgên­cias plenárias, que tão facilmente, e por tantos modos se nos concedem nela, ainda têm circunstâncias de vantagem, com que não só igualam, mas excedem ao mesmo batismo e ao mesmo martírio. Igualam o batismo e o martírio, porque se o batismo e o martírio purificam e livram a alma de toda a culpa e pena, o mesmo faz a indulgên­cia plenária verdadeiramente ganhada. E excedem o mesmo batismo e o mesmo martírio, porque a indulgência plenária é como o martírio, mas como martírio sem tormento, e é como o batismo, mas como batismo com repetição. Ora vede.

O martírio, como lhe chama a Igreja, é um compêndio ou atalho brevíssimo do caminho da glória, porque o mártir, sem dar mais que um passo, com um pé na terra e outro no céu, entra da morte à bem-aventurança. Por aquela morte se lhe não pede conta da vida; por aquela pena se lhe perdoam todas as penas que devia por seus pecados. E posto que tivesse sido o maior pecador, no mesmo ponto fica santo. Grande felicidade por certo, e muito para desejar! Mas os mártires que assim passaram ao céu, por onde passaram? Uns por cruzes, outros por grelhas, outros por rodas de navalhas, outros pelas unhas e dentes das feras, e todos por tantos e tão atrozes tormentos, que muitos, por medo e horror de tão cruéis mortes, se escondiam e fugiam do martírio, e outros, estando já nele, por não lhes bastar a fortaleza e constância para sofrer, des­maiavam e retrocediam. Vede agora quanto mais fácil é ir direito ao céu por uma indul­gência da Bula da Cruzada, que de cruz não tem mais que o nome. O mártir sobe direito ao céu, mas por tantos tormentos e tão arriscados; vós com a indulgência plenária também subis direito ao céu, mas sem tormento, nem risco. Por isso o sangue que significava o martírio, não saiu do lado de Cristo vivo com dor, senão do lado morto e insensível, porque as graças que manaram daquela fonte divina, se bem logram os privilégios de martírio, são martírio sem tormento.

E se é grande prerrogativa a da indulgência plenária, por ser como o martírio, mas sem tormento, não é menor, nem menos privilegiada, por ser como o Batismo, mas com repetição. A graça do sacramento do Batismo é tão maravilhosa por gran­de, como por fácil. Que maior maravilha, e que maior facilidade, que um homem carregado de pecados, e obrigado por eles a penas eternas, purificar-se de toda a culpa e livrar-se de toda a pena, só com se lavar, ou o lavarem com uma pouca de água? Mas esta mesma graça tão grande, e esta mesma maravilha e facilidade, se é lícito falar assim, tem um notável defeito. E qual é? Não se poder o batismo reiterar, nem repetir. O homem, uma vez batizado, não se pode batizar outra vez. Essa foi a razão (como lemos em Santo Agostinho) porque muitos dos antigos catecúmenos, conhecendo esta limitação, e que não se podiam batizar mais que uma só vez, ou dilatavam o batismo para a morte, ou quando menos para a velhice, reservando, e como poupando a eficácia daquele remédio, para o tempo da maior necessidade. Era abuso, e por isso se proibiu justificadamente. Mas se o Batismo se pudera repetir, e um homem se pudesse rebatizar todas as vezes que quisesse, não há dúvida que seria graça sobre graça, e um excesso de favor muito mais para estimar. Pois isto mesmo que Deus não concedeu a todos pelo sacramento do batismo, nos concede hoje a nós pela bula da Santa Cruzada. Porque sendo a indulgência plenária, como batismo em purificar de culpa e pena, é juntamente como Batismo com repetição, porque se pode repetir e reiterar muitas vezes. O batismo é fonte que se abre uma só vez, e se toma a cerrar para sempre; mas a indulgência da Bula é fonte que se abre hoje, e todos os anos, e não se torna a cerrar, antes fica continuamente aberta. Por isso o lado de que saiu a água, que significava o batismo, de tal maneira se abriu estando Cristo morto, que não se tornou a cerrar, nem depois de ressuscitado. Aberto uma vez, e sempre aberto: Lancea latus ejes aperuit, et continuo exivit sanguis et aqua.

IX

A segunda lançada e as queixas de Cristo à sua Igreja. Naamã Siro e o des­prezo do remédio pela facilidade.

Tenho acabado o meu discurso, e sei, senhores, que vos tenho cansado, mas não sei se vos tenho persuadido. Se estais resolutos todos a vos aproveitar de tão inestimáveis tesouros, isto é o que Cristo deseja, e esta a correspondência que espera de vossa devoção: o amor e liberalidade com que para vos encher de graças, abriu e tem aberto o lado. Mas se houver algum cristão indigno de tal nome, que por fraque­za de fé, ou falta de piedade, não agradeça ao mesmo Senhor as mercês que tão de graça lhe oferece, ao menos com as aceitar e estimar como merecem, saiba que esta será a segunda lançada com que lhe penetrará mais dentro o peito aberto, e lhe ferirá o coração. A lançada do Calvário não diz o texto que feriu, senão que abriu o lado; esta segunda lançada é a que só pode ferir e penetrar tão dentro, que lhe chegue ao coração. Vulnerasti cor meum, soror mea sponsa, vulnerasti cor meum in uno ocu­lorum tuorum.[18] São queixas de Cristo a sua Igreja, que se compõe de maus e bons, de devotos e indevotos, e de fiéis e infiéis. Diz pois o amoroso Senhor, que sua esposa lhe feriu o coração com um dos olhos: In uno oculorum. E por que não com ambos? Porque os dois olhos da Igreja são a fé e o entendimento, e só com um deles, se se dividem, ferem os homens neste caso o coração de Cristo. Os hereges ferem o coração de Cristo com o olho da fé: In uno oculorum, porque negam a verdade das indulgências e o poder do pontífice para as conceder. Assim as negou Lutero, por sinal que raivoso de se dar a outro pregador o sermão da cruzada, que ele pretendia pregar. E este foi o primeiro erro com que depois se precipitou a tantos. Os católicos, que somos nós, ferem também o coração de Cristo, mas com o olho do entendimen­to: In uno oculorum, porque crendo o poder do pontífice e a verdade das indulgên­cias, têm alguns tão pouco juízo, que por negligência e pouco cuidado da alma, e por desprezo dos bens do céu, deixam de se aproveitar de tamanhos tesouros. Oh! que ferida esta para o coração de Cristo, tão cruel da nossa parte, e tão sensível da sua!

E possível que há de haver no mundo homem com fé, que podendo-se purifi­car de todos seus pecados, e pagar a Deus as penas de que lhe é devedor, e uma e outra coisa tão facilmente, o não faça? Mas a mesma facilidade é a causa. É tal a condição vil de nossa natureza, que só estimamos o dificultoso, e desprezamos o fácil. A primeira vez que se concederam as indulgências do Ano Santo, foi tal o concurso de todo o mundo a Roma, que não cabendo a multidão das gentes na cidade, inundava os campos. Se esta mesma bula se concedera uma só vez em cem anos, e no cabo do mundo, lá a havíamos de ir tomar. Pois porque Deus nos facilita tanto este bem, e nos vem buscar com ele a nossa casa, o havemos nós de estimar menos? O que o havia de fazer mais precioso, lhe há de tirar o preço? Tais como isto somos os homens. Quando Eliseu mandou a Naamã Siro que se lavasse no Jordão para sarar da lepra, quis-se ele voltar logo para a sua terra, desprezando o remédio pela facilidade e não crendo que podia ter tanta virtude o que tão pouco custava. Mas que lhe disseram a este príncipe os seus criados, e como o persuadiram a que fizesse o que Eliseu lhe ordenava? Pater, et si rem grandem dixisset tibi propheta, certe facere debueras, quanto magis quia nunc dixit tibi lavare, et mundarebis (4 Rs. 5, 13): Senhor, se o profeta vos mandasse fazer uma coisa muito dificultosa, é certo que a havíeis de fazer para sarar da lepra; pois, se vos pede uma coisa tão fácil, como lavar-vos no Jordão, por que o não fareis? – Isto diziam a Naamã os prudentes criados, e o mesmo digo eu aos que não quiserem curar suas consciências e acudir a suas almas para esta e para a outra vida, com um remédio tão fácil. Se para nos purificar de tantas lepras tão feias, tão asquerosas e tão mortais, como são os peca­dos de todo gênero, e para nos livrar das penas devidas por eles, ou eternas no inferno, ou de muitos anos no purgatório, devíamos aceitar qualquer partido, e ofe­recer-nos muito de grado a qualquer satisfação, por dura e dificultosa que fosse, uma tão fácil como esta, em que tudo se nos concede e perdoa de graça, por que a desprezaremos? Se há alguém que saiba responder a este porquê, deixe embora de tomar a Bula. Mas porque estou certo que nenhum entendimento que tenha fé, lhe pode achar resposta, quero-vos deixar com a mesma pergunta nos ouvidos, esperan­do que por eles nos abra os corações aquele mesmo Senhor que, para nos encher de tantas graças, se deixou abrir o peito: Unus militum lancea latus ejus aperuit.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Um dos soldados lhe abriu o lado com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água (Jo. 19, 34).

[2] Cancelando a cédula do decreto que havia contra nós, a qual nos era contrária, e a aboliu inteira­mente, encravando-a na cruz (Col. 2, 14).

[3] Vai, mostra-te ao Príncipe dos Sacerdotes (Mc. 1, 44).

[4] Que nos havia de livrar das mãos de nossos inimigos, e das mãos de todos os que nos tivessem ódio (Lc.1, 71).

[5]   Naz. in Trag.

[6]  Faça-se-te segundo tu creste (Mt. 8, 13)

[7] A tua fé te salvou (Lc. 7, 50).

[8] Ó mulher, grande é a tua fé (Mt. 15, 28)

[9]  Tudo é possível ao que crê (Mc. 9, 22)

[10] O que recebe um profeta na qualidade de profeta receberá a recompensa de profeta; e o que recebe um justo na qualidade de justo, receberá a recompensa de justo (Mt. 10, 41).

[11] Tenho sede (jô. 19,28)

[12] Aug. In sentent.328.

[13] Tesouro das satisfações superabundantes de Cristo; Bellarmin. de Indulg. L.1, Cap. 2.

[14] D. Thom.p.1,q.92,art.3.

[15] S. Hypol. Epist. ad Regia

[16] E tornando logo a entrar com grande pressa onde estava o rei, pediu, dizendo: Quero que sem mais demora me dês num prato a cabeça de João Batista (Mc. 6, 25).

[17] D. Hier. Ep. 83.

[18] Tu feriste o meu coração, irmã minha esposa, tu feriste o meu coração com um dos teus olhos (Cant. 4, 9