Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, na Capela Real, ano de 1655, de Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DA PRIMEIRA DOMINGA DA QUARESMA, PREGADO NA CAPELA REAL, NO ANO DE 1655

Ostendit ei omnia regna mundi, et gloriam eorum,

et dixit ei: Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me [1]

§I

Como o demônio dos remédios faz tentações, nós, das tentações, façamos remédio, sendo liberais com o demônio, fazendo das pedras pão, e dos precipícios caminhos. To­mando por fundamento a terceira tentação do demônio, o autor ensina-nos a vencer qual­quer tentação usando das mesmas tentações.

Se o demônio é tão astuto que até dos nossos remédios faz tentações, por que não seremos nós tão prudentes, que até das suas tentações façamos remédios? Esta é a conclusão que tiro hoje de toda a história do Evangelho. Quarenta dias havia, e quarenta noites, que jejuava Cristo em um deserto. Sucedeu ao jejum naturalmente a fome, e sobre a fome veio logo a tentação: Si Filius Dei es, dic ut lapides isti panes fiant (Mt. 4, 3): Se és Filho de Deus — diz o demônio — manda a estas pedras que se convertam em pães. Vede se inferi bem que dos nossos remédios faz o demônio tentação: com as pedras se defendia das suas tentações S. Jerônimo; os desertos e soledades são as fortalezas dos anacoretas; o jejum de quarenta dias foi uma penitência prodigiosa; procurar de comer aos que hão fome é obra de misericórdia; converter pedras em pão, com uma palavra, é onipotência; ser Filho de Deus, é divindade. Quem cuidara que de tais ingredientes como estes se havia de compor uma tentação? De pedras, de deserto, de jejum, de obra de misericórdia, de onipotência, de divindade? De pe­dras: lapides isti; de deserto: ductus est Jesus in desertum; de jejum: cum jejunasset; de obra de misericórdia: panes fiant; de onipotência: dic; de divindade: Si Filius Dei es. Se o demônio tenta com as pedras, que fará com condições menos duras? Se tenta com o deserto, que será como povoado e com a corte? Se tenta com o jejum, que será com o regalo? Se tenta com a obra de misericórdia, que será com a injustiça? Se tenta com a onipotência, que será com a fraqueza? E se até com a divindade tenta, com a humanidade e com a desumanidade, que será?

Vencido o demônio nesta primeira tentação, diz o texto que levou a Cristo à Cidade Santa de Jerusalém, e, pondo-o sobre o mais alto do Templo, lhe disse desta maneira: Micte te deorsum. Scriptum est enim, quia angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: Deita-te daqui abaixo, porque prometido está na Sagrada Escritura que mandará Deus aos seus anjos te, guardem em todos teus caminhos [2] — Vede outra vez como tornam os remédios a ser tentações, e nesta segunda tentação, ainda com circunstâncias mais notáveis. E quais foram? A Cidade Santa, o Templo de Jerusalém, as Sagradas Escrituras, os Mandamentos de Deus, os Anjos da Guarda, e também o descer para baixo. Podia haver coisas menos ocasionadas para tentações? Pois disto fez o demônio uma tentação. Da Cidade Santa: Assumpsit eum in sanctam civitatem; do templo de Jerusalém: Et statuit eum super pinaculum Templi; da Sagrada Escritura: Scriptum est enim; dos mandamentos de Deus: Deus mandavit de te; dos Anjos da Guarda:Ange­lis suis utcustodu nt te; do descer para baixo: Micte te deorsum. Se o demônio tenta com a Cidade Santa, que será com a cidade escandalosa? Setenta como Templo de Deus, que será com as casas dos ídolos? Se tenta com as Sagradas Escrituras, que será com os livros profanos? Setenta com os Mandamentos de Deus, que será com as leis do mundo? Se tentacom os Anjos da Guarda, que será com os anjos da perdição? Se tenta finalmente como descer, que será com o subir?

Eis aqui como o demônio, dos remédios faz tentações. Mas como será possível que nós, das tentações, façamos remédios? O demônio, na primeira tentação, pediu a Cristo que fizesse das pedras pão, e na segunda, que fizesse dos precipícios caminhos. Que coisa são as tentações senão pedras e precipícios? Pedras em que tropeçamos, e precipícios donde caímos. Pois como é possível que das pedras em que tropeçamos se faça pão com que nos sustentemos, e dos precipícios donde caímos se façam caminhos por onde subamos? Isto havemos de ver hoje, e hei de ser tão liberal com o demônio, que lhe hei de conceder tudo o que Cristo lhe negou. Que queres demônio? Que te faça das pedras pão? Sou contente. Que queres mais? Que dos precipícios faça caminhos? Também farei isso hoje. O demônio do pão fez pedras, e dos caminhos fez precipícios, porque dos remédios fez tentações. Eu às avessas: das pedras hei de fazer pão, e dos precipícios caminho, porque das tentações hei de fazer remédios.

Para reduzir todo este ponto tão grande e tão importante a uma só máxima uni­versal, tomei por fundamento a terceira tentação que propus, que é a maior que o demônio fez hoje a Cristo, e a maior que nunca se fez, nem há de fazer, nem pode fazer no mundo. Vencido primeira e segunda vez o demônio, não desesperou da vitória, porque lhe faltava ainda por correr a terceira lança em que mais confiava. Levou a Cristo ao cume de um monte altíssimo, e, mostrando-lhe dali todos os reinos e monarquias do mundo, com todas suas glórias e grandezas, com todas suas riquezas e delícias, com todas suas pompas e majestades, apontando em roda para todo este mapa universal, tão grande, tão formoso, tão vário, disse assim: Haec omnia tibi dabo, si cadens, adoraveris me: Tudo isto que vês te darei, se com o joelho em terra, me adorares. — Esta foi a última tentação do diabo, e esta foi a terceira vitória de Cristo. As armas com que o Senhor se defendeu, e o remédio que tomou nesta tentação, como nas outras, foram as palavras da Escritura Sagrada: Dominum Deum tuum adorabis, et illi soli servies.[3] E a Escritura Sagrada um armazém divino onde se acham todas as armas; é uma oficina medicinal, onde se acham todos os remédios; esta é aquela torre de Davi da qual disse Salomão: Mile clypei pendent ex ea, omnis armaturafortiumt [4], porque, como comenta S. Gregório: Universa nostra munitio in sacro eloquio continetur.[5] Esta é aquela botica universal da qual diz S. Basílio: AbScriptura unusquis que tanquam ab officina medicinae appositum suae infirmitati medicamentam invenire poterit.[6] E muito antes o tinha dito a Sabedoria: Nequeherba, neque malagma sanavit, sed tuus Domine sermo, qui sanat omnia.[7] Poderosíssimas armas e eficacíssimos remédios contra as tentações do demônio são as divinas Escrituras. Mas como eu prego para todos, e nem todos podem menear estas armas, nem usar destes remédios, é o meu intento hoje inculcar-vos outras armas mais prontas, e outros remédios mais fáceis, com que todos pos­sais resistir a todas as tentações. Na boca da víbora pôs a natureza a peçonha, e juntamente a triaga. Se quando a serpente tentou aos primeiros homens souberam eles usar bem das suas mesmas palavras, não haviam mister outras armas para resistir nem outro remédio para se conservar no paraíso. O mais pronto e mais fácil remédio contra qualquer tentação do demônio é a mesma tentação. A mesma coisa oferecida pelo demônio é tentação; bem considerada por nós, é remédio. Isto hei de pregar hoje.

§ II

Só esta última tentação nos pertence propriamente a nós, porque nela o demônio tentou a Cristo como se tentara a qualquer homem. O caso notável do cerco de Ostende. Por confissão do demônio, nossa alma vale mais que todo o mundo. A resposta de Demé­trio a César. Esaú, um homem que vendeu e não pesou o que vendia.

Na primeira e na segunda tentação, tentou o demônio a Cristo como Filho de Deus; na terceira, como a puro homem. Por isso na terceira tentação não disse: Si Filius Dei es, como tinha dito na primeira e na segunda. Tentou a Cristo como se tentara a qualquer homem. Esta é a razão e a diferença, porque só esta última tentação nos pertence propriamente a nós. Mas, como poderá um homem, como poderá um filho de Adão resistir a uma tentação tão poderosa e tão imensa, como esta que o demônio fez a Cristo? A Adão fez-lhe tiro o demônio com uma maçã e derrubou-o; a Cristo fez-lhe tiro como mundo todo: Ostendit ei omnia regna mundi. Mas sendo esta bala tirada a Cristo como homem, e dando em um peito de came, foi tão fortemente rebatida, que voltou com maior força contra o mesmo tentador: Vade retro! [8] Um dos casos mais notáveis que sucederam em nossos dias, no famoso cerco de Ostende, foi este. [9] Estava carregada uma peça no exército católico; entra pela boca da mesma peça uma bala do inimigo, concebe fogo a pólvora, sai outra vez a bala com dobrada fúria, e como veio e voltou pelos mesmos pontos, foi-se empregar no mesmo que a tinha tirado. Oh! que bizarro e venturoso Vaderetro! Assim havemos de fazer aos tiros do demônio. Volte outra vez a bala contra o inimigo, e vençamos ao tentador com a sua própria tentação. Não cortou Davi a cabeça ao gigante com a sua própria espada? Judite, sendo mulher, não degolou a Holofernes com a sua? Pois assim o havemos nós de fazer, nem necessitamos de outras armas, mais que as mesmas com que o demônio nos tenta.

Mostrou o demônio a Cristo todos os reinos do mundo e suas glórias; disse-lhe que tudo aquilo lhe daria de uma vez se lhe dobrasse o joelho. Parece que faz estremecer a grandeza desta tentação! Mas o demônio é o que havia de tremer dela. Desarmou-se a si e armou-nos a nós. Tu, demônio, ofereces-me de um lanço todo o mundo, para que caia, para que peque, para que te dê a minha alma: logo a minha alma, por confissão tua, vale mais que todo o mundo. A minha alma vale mais que todo o mundo? Pois não te quero dar o que vale mais pelo que vale menos: Vale retro! Pode-nos o demônio dar ou prometer alguma coisa que não seja menos que o mundo? Claro está que não! Pois aqui se desarmou para sempre; nesta tentação perdeu todas, se nós não temos perdido o juízo. Ouvi a Salviano: Quis ergo furor est viles a nobis animas nostras haberi, quas etiam d abolus putat esse preciosas: Homens loucos, homens furiosos, homens sem entendi­mento nem juízo, é possível que, sendo as nossas almas na estimação do mesmo demônio tão preciosas, no vosso conceito, e no vosso desprezo, hão de sertão vis? O demônio, quando me quer roubar, quando me quer perder, quando me quer enganar, não pode deixar de confessar que a minha alma vale mais que todo o mundo; e eu, sendo essa alma minha, não há de haver no mundo coisa tão baixa, tão vã e tão vil, pela qual a não dê sem nenhum reparo? Quis furor est? Que loucura, que demência, que furor é este nosso? Muito mais obrigada está a nossa alma ao demô­nio, muito mais lhe deve que a nós. Ele a honra, nós a afrontamos. Envergonhou-se o demônio, no primeiro lanço, de oferecer menos por uma alma que o mundo todo.

Caio César, como refere Sêneca, mandou de presente a Demétrio duzentos talentos de prata, que fazem hoje da nossa moeda mais de duzentos mil cruzados. Não creio que have­ria na nossa corte quem não beijasse a mão real, e aceitasse com ambas as mãos a mercê. Era porém Demétrio filósofo estóico, como se disséssemos cristão daquele tempo. E que respon­deu? Si tentare me constituerat, toto illi fui experiundus imperio: Andai, levai os seus talentos ao imperador, e dizei-lhe, que se me queria tentar, que havia de ser com todo o seu império. É, e chama-se senhor de todo o mundo? Com todo o mundo me havia de tentar. Não nos fez assim o César, porque não conhecia a Demétrio, mas fê-loassim o demônio: Princeps hujus mundi, porque sabe o que vale uma alma. Se vos tentar o demônio com menos que todo o mundo, dai-vos por afrontado, e se vos tentar com todo o mundo, fique vencido: Quid prodest homini, si universum mundum lucretur, animae vero suae detrimentum patiatur (Mt. 16, 26)? Que apro­veita ao homem ganhar todo o mundo, adquirir todo o mundo, senhorear e dominar todo o mundo, se há de perder a sua alma?Autquam dabit homo commutationem pro anima sua? Ou que coisa pode haver de tanto peso, e de tanto preço, pela qual se haja de vender a alma, ou se haja de trocar? Este é o caso e a suposição em que estamos, nem mais, nem menos. Oferece-nos o demônio o mundo, e pede-nos a alma. Considere e pese bem cada um se lhe está bemeste contrato, se lhe está bem esta venda, se lhe está bem esta troca. Mas nós trocamos e vendemos, porque não pesamos.

Chegou Esaú do campo, cansado e com fome de todo o dia, e chegou a desastra­da hora, porque estava no mesmo tempo seu irmão Jacó cozinhando, diz o texto, umaslentilhas. Estes eram os grandes homens, e estes os grandes regalos daquele tempo. Pediu Esaú a seu irmão um pouco daquela vianda, mas ele, aproveitando-se da ocasião e da necessidade, respondeu que dar não, mas vender sim: que se Esaú lhe vendesse o seu morgado, começaria desde logo a lhe dar aqueles alimentos. Deus nos livre de se ajuntar no mesmo tempo a fome e a tentação. O sucesso foi que Esaú aceitou o contrato, deu o morga­do. Pois valha-me Deus, o morgado de Isac, a herança de Abraão, a bênção dos patriarcas, que foi a maior coisa que desde Adão houve no mundo, por uma escudela de lentilhas? Este homem era cego? Era louco? Era vil? Nada disto era, mas era um homem — diz a Escritura — que vendeu, e não pesou o que vendia: Abiit parvi pendens, quod primogenita vendidisset. [10] E homem que vende sem pesar o que vende, não é muito que por uma escu­dela de grosserias desse o maior morgado do mundo. Se Esaú, antes de vender, tomara a balança na mão, e pusera de uma parte o morgado e da outra a escudela, parece-vos que venderia? Pois eis aí porque há tantas almas venais. Esta história de Esaú e Jacó aconteceu uma só vez antigamente, mas cada dia se representa no mundo: o papel de Jacó fá-lo o demônio, ode Esaú fazemo-lo nós. O demônio oferece-nos um gosto, ou um interesse vil, e pede-nos o morgado que nos ganhou Cristo; e nós, porque contratamos sem a balança na mão, e não pesamos a vileza do que recebemos com a grandeza do que damos, consentimos no contrato, e ficamos sem bênção. Quando Esaú vendeu o morgado, não o sentiu, nem fez caso disso; mas depois, quando viu que Jacó levava a bênção, e ele ficava sem ela, diz o texto que irrugit clamore magno, et consternatus est: (Gên. 27, 34): que tudo era encher o céu de clamores e gemidos, e despedaçar-se a si mesmo e desfazer-se com dor. — Ah! mal-aconselhados Esaús! Agora vendemos a alma e o morgado do céu pela vileza de um gosto, pelo engano de um apetite, pela grosseria de um manjar de brutos, e disto não fazemos caso. Mas quando vier aquele dia em que Cristo dê a bênção aos que estiverem à sua mão direita, e nós virmos que ficamos sem ela por umas coisas tão vis: Oh! que dor! oh! que desesperação! Oh! que circunstância de inferno será esta tão grande para nós!

Pois que havemos de fazer, para não cometer um erro tão grande e tão sem remédio? Fazer remédio da mesma tentação. Tomar na mão a balança que faltou a Esaú, e pesar o que o demônio nos promete e o que nos pede. O que nos promete não é todo o mundo; o que nos pede, e o que lhe havemos de dar, é a alma. Ponhamos de uma parte da balança o mundo todo, e da outra parte uma alma, e vejamos qual pesa mais. Oh! se Deus me ajudasse a vos mostrar com evidência a diferença destes dois pesos! Vamos ponderan­do uma por uma as mesmas palavras da tentação.

§ III

O mundo fantástico que o demônio mostrou a Cristo era nada mais que uma vaida­de composta de muitas vaidades, como diz Salomão. As balanças do juízo humano segun­do Davi. O peso das coisas não está nas coisas, senão no coração com que as amamos. A brevidade momentânea das tentações. As riquezas e glórias do mundo: um trabalho para antes, um cuidado para logo, um sentimento para depois. Andou muito néscio o demônio em mostrar o mundo a quem queria tentar.

Ostendit ei omnia regna mundi, et gloriam eorum. Desde aquele monte alto, onde o demônio subiu a Cristo, lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória. Isto, que tão facil­mente se diz, não é tão fácil de entender. De um monte, por alto que seja, não se pode descobrir todos os reinos do mundo. O sol está levantado na quarta esfera, e contudodescobre um só hemisfério, e nem vê, nem pode ver os antípodas. Pois como foi possível que o demônio desde aquele monte mostrasse todo o mundo a Cristo? A sentença mais certa e mais seguida é que o mundo que o demônio mostrou a Cristo não foi este mundo verdadeiro, senão um mundo fantás­tico e aparente, uma aparência e representação do mundo. Assim como os anjos, quando apare­cem aos homens, se vestem de corpos fantásticos que parecem corpos formosíssimos, e não são corpos, assim o demônio, que no poder natural é igual aos anjos, em todo o ar que se estendia daquele monte até os horizontes, com cores, com sombras, com aparências, pintou e levantou em um momento, montes, vales, campos, terras, cidades, castelos, reinos, enfim um mundo. De ma­neira que todo aquele mundo, todo aquele mapa de reinos e de grandezas, bem apertado, vinha a ser um pouco de vento. E com ser assim esta representação — notai agora — com ser o que o demônio mostrava uma só representação fantástica, uma aparência, contudo diz o evangelista que o demônio mostrou a Cristo todos os reinos do mundo e suas glórias, por que todas as glórias e todas as grandezas do mundo, bem consideradas, são o que estaseram: ar; vento, sombras, cores aparentes. Antes digo que mais verdadeiro e mais próprio mundo era este mundo aparente, que o mundo verdadeiro; porque o mundo aparente eram aparências verdadeiras, e o mundo verdadeiro são as aparências falsas. E se não, dizei-me: de todos aqueles reinos, de todas aquelas majestades e grandezas que havia no tempo de Cristo quando sucedeu esta tentação, há hoje alguma coisa no mundo? Nenhuma. Pois que é feito de tantos reinos, que é feito de tantas monarquias, que é feito de tantas grandezas? Eram vento, passaram; eram sombra, sumiram-se; eram aparências, desapa­receram. Ainda agora são o que de antes eram: eram nada, são nada. Até dos mármores daquele tempo não há mais que pó e cinza; e os homens, como bem notou Filo Hebreu, vendo isto com os nossos olhos, somos tão cegos que fazemos mais caso deste pó e desta cinza, que daprópria alma: Qui cinerem, et pulverem pluris facitis, quam animam.

Isto são hoje os reinos daquele tempo; e os reinos de hoje, que são? São porventura outra coisa? Diga-o o rei do reino mais florente, e o mais sábio de todos os reis: Verba Ecclesiastae, filii David, regis Hierusalem: Vanitas vanitatum, et omnia vanitas.[11] Eu fui rei, e filho de rei — diz Salomão — experimentei tudo o que era, e tudo o que podia dar de si o poder, a grandeza, o senhorio do mundo, e achei que tudo o que parece que há nele, é vão, e nada sólido, e que bem pesado e apertado, não vem a ser mais que uma vaidade composta de muitas vaidades: Vanitas vanitatum, et omina vanitas. Vaidade os cetros, vaidade as coroas, vaidade os reinos e monarquias, e o mesmo mundo que delas se compõe, vaidade das vaidades: Vanitas vanitatum. Esta é a verdade que não sabemos ver, por estar escondida e andar enfeitada debai­xo das aparências que vemos. E este é o conhecimento e desengano com que devemos rebater e desprezar o tudo ou o nada com que nos tenta o mundo. Oh! como ficariam desvanecidas as maiores tentações, se soubéssemos responder aoomnia do demônio com oomnia de Salomão: Omnia regna mundi? Omnia vanitas. Omnia tibi dabo? Omnia vanitas.

Mas se todo este mundo, e tudo o que nele mais avulta, é vão, antes a mesma vaidade; como é possível que tenha tanto valor e tanto peso com os homens, que pese paracom eles mais que o céu, mais que a alma e mais que o mesmo Deus? Tão falsas são as balanças do juízo humano! Não são elas as falsas, somos nós: Mendaces filiihominum in stateris, ut decipiant de vanitate in idipsum. [12] São tais os homens — diz Davi — que com a balança na mão trocam o peso às coisas. — Não diz que as balanças são falsas, senão que os homens são falsos nelas: Mendaces flui hominum in stateris. E a razão desta falsidade, ou desta falsificação, é porque os mesmos homens se querem enganar a si mesmos com a vaida­de: Ut decipiant de vanitate in idipsum. Não é o nosso juízo o que nos engana, é o nosso afeto, o qual, pendendo e inclinando para a parte da vaidade, leva após si o fiel do juízo. Nestas balanças — que são como as de S. Miguel, em que se pesam as almas — de uma parte está a alma, da outra o mundo; de uma parte está o temporal, da outra o eterno; de uma parte está a verdade, da outra a vaidade. E porque nós pomos o nosso afeto e o nosso coração da parte do mundo e da vaidade, esse afeto e esse coração é o que dá à vaidade do mundo o peso que ela não tem, nem pode ter. A vaidade não amada não tem peso, porque é vaidade; mas essa mesma vaidade, amada, pesa mais que tudo, porque o nosso amor e o nosso afeto é o que falsamente lhe dá peso. De maneira que o peso não está nas coisas, está no coração com que as amamos.

O mesmo Davi o disse admiravelmente: Filii hominum, usquequo gravi corde? Ut quid diligitis vanitatem (Sl. 4, 3)? Filhos dos homens, até quando haveis de ter os corações pesa­dos? Até quando haveis de amar a vaidade? — Notai a conseqüência. Queixa-se de amarem os homens a vaidade: Ut quiri diligitis vanitatem? E acusa-os de teremos corações pesados: Usque­quo gravi corde? Porque o peso que achamos na vaidade não está na mesma vaidade, senão no coração com que a amamos. Amamos e estimamos a vaidade, e por isso a balança inclina a ela e com ela, e nos mostra falsamente o peso onde o não há. Oh! se pesássemos bem e fielmente, com o coração livre de todo o afeto, como veríamos logo que a inclinação e movimento da balança pendia todo para a parte da alma, e que todo o mundo, contrapesado a ela, não pesa um átomo.

Agora entendereis a astúcia da tentação do demônio, no modo com que hoje mos­trou a Cristo todos os reinos do mundo. Diz S. Lucas que lhos mostrou em um instante: Osten­dit ei omnia regna orbis terrae in momento (Lc. 4, 5). E por que razão em um instante? Por que não deu mais espaço de tempo a quem tentava com uma tão grande ostentação? Seria porven­tura porque ainda o demônio, quando engana, não pode encobrir a brevidade momentânea com que passa e se muda esta cena das coisas do mundo, aparecendo e desaparecendo todas em um instante? Assim o diz S. Ambrósio: Non tam conspectus celeritas indicatur, quam caduca fragilitas potestatisexprimitur: in momento enim, cuncta illa praetereunt: Mostrou o demônio todos os reinos e grandezas do mundo em um instante, porque as mostrou assim como elas são, e tudo o que há neste mundo não tem mais ser que um instante. O que foi, já não é; o que há de ser, ainda não é; e o que é, não é mais que no instante em que passa: In momento cuncta illa praetereunt. Boa razão, e verdadeira, como de tal autor. Mas ainda debaixo dela se encobria outra astúcia do tentador, o qual não quis dar tempo ao tentado para pesar o que lhe oferecia. O peso das coisas vê-se pela inclinação e movimento da balança. E como em instante não pode haver movimento, por isso lhe mostrou tudo em um instante. Veja o tentado o mundo que lhe ofereço, mas veja-o em instante somente, e não em tempo, para que não possa averi­guar o pouco que pesa: In momento omnia regna mundi.

Juntamente com os reinos do mundo mostrou também o demônio a Cristo todas as suas glórias: Et gloriam eorum. Mas, ainda que autorizadas com tão especioso nome, nenhum pendor fazem à balança, porque são tão vãs como o mesmo mundo, e ainda mais, se pode ser. E se não, discorrei por elas com qualquer átomo de consideração. O que mais pesa e o que mais luz no mundo, são as riquezas. E que coisas são as riquezas, senão um trabalho para antes, um cuidado para logo e um sentimento para depois? As riquezas, diz S. Bernardo, adquirem-se com trabalho, conservam-se com cuidado, e perdem-se com dor. Que coisa é o ouro e a prata, senão uma terra de melhor cor? E que coisa são as pérolas e os diamantes, senão uns vidros mais duros? Que coisas são as galas, senão um engano de muitas cores? Cabelos de Absalão, que pareciam madeixas, e eram laços. Que coisa é a formosura, senão uma caveira com um volante por cima? Tirou a morte aquele véu, e fugis hoje do que ontem adoráveis. Que coisa são os gostos, senão as vésperas dos pesares? Quem mais as canta, esse as vem a chorar mais. Que coisa são as delícias, senão o mel da lança de Jônatas? Juntamente vai à boca o favo e o ferro. Que coisa são todos os passatempos da mocidade, senão arrependimentos depositados para a velhice? E o melhor bem que podem ter é chegarem a ser arrependimentos. Que coisa são as honras e as dignidades, senão fumo? Fumo que sempre cega, e muitas vezes faz chorar. Que coisa é a privança, senão um vapor de pouca dura? Um raio do sol o levanta, e outro raio o desfaz. Que coisas são as provisões e os despachos grandes, senão umas cartas de Urias? Todas parecem cartas de favor, e quantas foram sentença de morte? Que coisa é a fama, senão uma inveja comprada? Uma funda de Davi que derruba o gigante com a pedra, e ao mesmo Davi com o estralo. Que coisa é toda a prosperidade humana, senão um vento que corre todos os rumos? Se diminui, não é bonança, se cresce, é tempestade. Finalmente, que coisa é a mesma vida, senão uma alâmpada acesa, vidro e fogo? Vidro, que com um assopro se faz; fogo, que com um assopro se apaga. Estas são as glórias do vosso mundo e dos vossos reinos: Omnia regna mundi, et gloriam eorum. E por estas glórias falsas, vãs e momentâ­neas, damos aquela alma imortal que Deus criou para a glória verdadeira e eterna.

Certo que andou o demônio muito néscio em mostrar o mundo e suas glórias a quem queria tentar com elas. Havia de encobrir a mercadoria, se queria que lha compras­sem. O mundo, prometido, forte tentação parece; mas visto, não é tentação. Quereis que vos não tente o mundo ou que vos não vença, se vos tentar? Olhai bem para ele. Mordiam as serpentes no deserto venenosamente aos filhos de Israel. E que fez Moisés? Mandou levantar em lugar alto uma daquelas serpentes feita de bronze: olhavam para ela os mordi­dos, e saravam. Todos nesta vida andais mordidos: uns mordidos do valimento, outros mordidos da ambição, outros mordi dos da honra, outros mordidos da inveja, outros mordi­dos do interesse, outros mordidos da afeição, enfim todos mordidos. Pois, que remédio para sarar destas mordeduras do mundo? Pôr o mesmo mundo diante dos olhos, e olhar bem para ele. Quem haverá que olhe para o mundo com os olhos bem abertos, que veja como todo é nada, como todo é mentira, como todo é inconstância, como hoje não são os que ontem foram, como amanhã não hão de ser os que hoje são, como tudo acabou e tudo acaba, como havemos de acabar e todos imos acabando, enfim que veja ao mundo bem como é em si, que se não desengane com ele, e se não desengane dele? A serpente de Moisés era de bronze; o mundo também é serpente, mas de barro, mas de vidro, mas de fumo, que ainda são melhores metais para o desengano.

§ IV

Vimos quanto pesa o mundo: vejamos agora quanto pesa uma alma. A cruz, balan­ça justa em que Deus pesou o preço da alma. Só Deus se pode contrapesar com a alma. Toda a desgraça está em que o mundo com que o demônio nos tenta é visível, e a alma invisível. Pela diferença do corpo morto, podemos avaliar o que é a alma.

Mas demos já uma volta à balança. Vimos quanto pesa o mundo; vejamos agora quanto pesa uma alma. Neste peso entramos todos. O peso do mundo não pertence a todos, porque muitos têm pouco mundo; o peso da alma, ninguém há a quem não pertença: o rei, o vassalo, o grande, o pequeno, o rico, o pobre, todos têm alma. Ora vejamos quanto pesa e quanto vale isto que todos trazemos e temos dentro em nós.

Onde porém acharemos nós uma balança tal, que se possa pesar nela uma alma? Quatro mil anos durou o mundo, sem haver em todo ele esta balança. E, porventura, essa foi a ocasião de se perderem naquele tempo tantas almas. Chegou finalmente o dia da Redenção, pôs-se o Filho de Deus em uma cruz, e ela foi a verdadeira e fiel balança que a divina justiça levantou no Monte Cal vário, para que o homem conhecesse quão imenso era o peso e preço da alma que tinha perdido. Assim o canta e no-lo ensina a Igreja:

Beata cujus brachiis

Pretium pependit saeculi,

Statera facto corporis.

Tulitque praedam tartari.[13]

Vês, homem, aquela cruz em que está pendente e morto o Filho de Deus? Pois sabe que ela é a balança justa em que Deus pesou o preço da tua alma, para que tu a não despre­zes. O braço direito desceu tanto com o peso, que não só trouxe Deus do céu à terra, mas do céu até o inferno; e o braço esquerdo subiu tanto, que, estando a alma no inferno pelo pecado, não só a levantou do inferno, mas a pôs no céu. De maneira que quem fielmente quiser pesar uma alma, não há de pôr de uma parte da balança a alma, e da outra o mundo, senão de uma parte a alma, e da outra a Deus. O mundo custou a Deus uma palavra; a alma custou a Deus o sangue, custou a Deus a vida, custou a Deus o mesmo Deus: Qui dedit semetipsum redemptionem pro omnibus.[14] Ouvi agora a Eusébio Emisseno: Tam copioso munere ipsa redemptio agitur, ut homo Deum valere videatur: É tal o preço que Deus deu pelas almas, que, posta de uma parte a alma, e da outra o preço, parece que vale tanto a alma como Deus. — Parece, diz, porque Deus verdadeiramente vale e pesa mais que toda a alma. Mas a divina justiça não pôs em balança com a alma outro peso, nem aceitou por ela outro preço, que o do mesmo Deus, porque, de peso a peso, só Deus se pode contrapesar com a alma, e, de preço a preço, só Deus se pode avaliar com ela: Ut Deum valerevideatur. Sendo pois esta a verdadeira balança, e sendo este o peso e o preço da alma, que tão cara comprou Deus e nós tão barata vendemos ao demônio, não vos quero persuadir que a não vendais: só vos peço, e vos aconselho, que o não façais sem a pôr primeiro em leilão. O demônio, no primeiro lanço, ofereceu por ela o mundo; Deus, no segundo lanço, deu por ela a si mesmo. Se achardes quem vos dê mais pela vossa alma, dai-a embora.

Toda a desgraça da pobre alma, tão falsamente avaliada, e tão vilmente trocada e vendida, é porque a não vemos como vemos o mundo. O demônio mostrou todos os reinos do mundo: Ostendit ei omnia regna mundi. Se eu também vos pudera mostrar uma alma, estavam acabadas todas as tentações, e não eram necessários mais discursos. O demônio dá todo o mundo por uma alma, porque a vê e a conhece: é espírito, vê as almas. Nós, como somos corpo, vemos o mundo e não vemos a alma, e porque a não conhecemos, por isso a desestimamos. Oh! se Deus nos mostrasse uma alma! Que pasmo, que estimação seria a nossa, e que desprezo de quanto há no mundo e na vida! Mostrou Deus uma alma a Santa Madalena de Pazzi, e oito dias ficou fora de si, arrebatada, de assombro, de pasmo, de estranheza, só na memória, na admiração, na novidade do que vira. Isto é uma alma? Isto é. A Santa Catarina de Sena mostrou-lhe Deus também uma alma, e dizia — como refere Santo Antônio — que nenhum homem haveria, se tivesse visto uma alma, que não desse por ela a vida cem vezes cada dia, e não pela própria, senão pela alheia. De sorte que toda a diferen­ça e toda a desgraça está em que o mundo, com que o demônio nos engana, é visível, e a alma invisível. Mas por isso mesmo havíamos nós de estimar muito mais a alma, se tivéra­mos juízo. O mundo é visível, a alma é invisível; o mundo vê-se, a alma não se vê. Logo muito mais preciosa é a alma, muito mais vale que todo o mundo. Ouvi a S. Paulo: Noncontemplantibus nobis quae videntur, sed quae non videntur: quae enfim videntur, tempo­ralia sunt; quae non videntur, aeterna (2 Cor. 4, 18): Não havemos de admirar, nem esti­mar o que se vê, senão o que se não vê — diz S. Paulo — porque o visível, o que se vê, é temporal; o invisível, o que se não vê, é eterno. — O mundo que o demônio me mostra é visível, porque é temporal como o corpo; a alma que o demônio não pode mostrar — nem me havia de mostrar, se pudera — é invisível, porque é eterna como Deus; e, assim como os olhos não podem ver a Deus por sua soberania, assim não podem ver a nossa alma. Não é a nossa alma tão baixa que a houvessem de ver os olhos. Vêem o mundo, vêem o céu, vêem as estrelas, vêem o sol: a alma não a podem ver, porque não chega lá a sua esfera.

Mas já que somos tão corporais e damos tanto crédito aos olhos, os mesmos olhos quero que nos digam e que confessem o que é a alma. Quereis ver o que é uma alma? Olhai, diz Santo Agostinho, para um corpo sem alma. Se aquele corpo era de um sábio, onde estão as ciências? Foram-se com a alma, porque eram suas. A retórica, a poesia, a filosofia, as matemá­ticas, a teologia, a jurisprudência, aquelas razões tão fortes, aqueles discursos tão deduzidos, aquelas sentenças tão vivas, aqueles pensamentos tão sublimes, aqueles escritos humanos e divinos que admiramos, e excedem a admiração, tudo isto era a alma. Se o corpo é de um artífice, quem fazia viver as tábuas e os mármores? Quem amolecia o ferro, quem derretia os bronzes, quem dava nova forma e novo ser à mesma natureza? Quem ensinou naquele corpo regras ao fogo, fecundidade à terra, caminhos ao mar, obediência aos ventos, e a unir as distân­cias do universo, e meter todo o mundo venal em uma praça? A alma.

Se o corpo morto é de um soldado, a ordem dos exércitos, a disposição dos arraiais, a fábrica dos muros, os engenhos e máquinas bélicas, o valor, a bizarria, a audácia, a constân­cia, a honra, a vitória, o levar na lâmina de uma espada a vida própria e a morte alheia: quem fazia tudo isto? A alma. Se o corpo é de um príncipe, a majestade, o domínio, a soberania, a moderação no próspero, a serenidade no adverso, a vigilância, a prudência, a justiça, todas as outras virtudes políticas com que o mundo se governa: de quem eram governadas, e de quem eram? Da alma. Se o corpo é de um santo, a humildade, a paciência, a temperança, a caridade, o zelo, a contemplação altíssima das coisas divinas, os êxtases, os raptos, subido o mesmo peso do corpo e suspendido no ar: que maravilha! Mas isto é alma. Finalmente os mesmos vícios nossos nos dizem o que ela é. Uma cobiça que nunca se farta, uma soberba que sempre sobe, uma ambição que sempre aspira, um desejo que nunca aquieta, uma capacidade que todo o mundo a não enche, como a de Alexandre, uma altiveza como a de Adão, que não se conten­ta menos que com ser Deus. Tudo isto, que vemos com nossos olhos, é aquele espírito sublime, ardente, grande, imenso: a alma. Até a mesma formosura, que parece dote próprio do corpo, e tanto arrebata e cativa os sentidos humanos, aquela graça, aquela proporção, aquela suavidade de cor, aquele ar, aquele brio, aquela vida: que é tudo senão alma? E se não, vede o corpo sem ela, insta Agostinho: Non facit corpus uncle ametur, nisianimus? Aquilo que amáveis e admi­ráveis não era o corpo, era a alma: Recessit, quod non videtur, remansit quod cum dobre videatur: Apartou-se o que se não via, ficou o que se não pode ver. — A alma levou tudo o que havia de beleza, como de ciência, de arte, de valor, de majestade, de virtude, porque tudo, ainda que a alma se não via, era a alma. Viu S. Francisco de Borja o corpo defunto e disforme da nossa imperatriz Dona Isabel, e que lhe sucedeu? Pela diferença do corpo morto, viu naque­le espelho o que era a alma, e como viu o que era a alma, deixou o mundo. Não nos enganara o demônio com o mundo, se nós víramos e conhecêramos bem o que é a alma. Mas já que a não podemos ver em si, vejamo-la em nós; no que o corpo há de ser, vejamos o que ela é.

§V

O verdadeiro tudo deste mundo e do outro é a alma, não é o mundo. Deus, o nego­ciador do Evangelho, que deu tudo o que tinha por uma alma. Depois desta última tenta­ção, quando torna o diabo a tentar a Cristo? Como se ajoelha Cristo diante de Judas, se já o demônio tinha entrado nele? Quantos não dobram o joelho ao demônio, não pelo mundo todo, senão por umas partes tão pequenas dele!

Então que vos diga o demônio com a boca muito cheia e muito inchada: Haec omnia tibi dabo! Mente o diabo, e troque as balanças: o omnia não há de estar na balança do mundo, senão na balança da alma. O tudo deste mundo e do outro é a alma, não é o mundo. No capítulo doze de São João diz Cristo: Et ego, cum exaltatus fuero a terra, omniatraham ad me ipsum (Jo. 12, 32): E eu, quando for levantado na cruz, hei de trazer a mim tudo: Omnia. Digam-me agora os doutos, que tudo é este que Cristo havia de trazer a si? Cristo desde o instante da Encarnação, foi Senhor universal de tudo pela união hipostática, pelo direito here­ditário da filiação, como Filho natural de Deus, e por outros muitos títulos. S. Paulo: Quem constituir haeredem universorum;[15] S. João: Sciens quia omnia dedit ei Pater in manus;[16] e o mesmo Cristo: Omnia mihitradita sunt a Patre meo.[17] Pois se Cristo era, e sempre foi Senhor de tudo, que tudo era este que diz que há de adquirir e trazer a si na cruz? Era o tudo que só é tudo: as almas. Assim o resolve S. Crisóstomo, S. Cirilo, Teofilato, Beda, Leôncio, e todos. Desde o instante da Encarnação foi Cristo absoluto Senhor de todas as criaturas, quanto ao domínio e quanto à sujeição; só das almas, ainda que era Senhor quanto ao domínio, quanto à sujeição não o era, por que estavam cativas e escravas do demônio e do pecado. E como Cristo na cruz havia de redimir, adquirir, sujeitar e trazer a si as almas, este é o tudo a que absolutamente chama tudo: Omnia traham ad me ipsum.

E se me perguntardes por que na cruz não trouxe a si atualmente mais que uma só alma, a do bom ladrão, foi por que entendêssemos que o tudo de que falava, não eram só todas as almas coletivamente, senão qualquer e cada uma delas. Assim o declarou admiravelmente a versão siríaca: Unumquemque traham ad me ipsum.[18] Todas, tudo; cada uma, tudo. A vossa alma é tudo, a minha tudo, a de Dimas e a de qualquer homem, tudo: omnia, unumquemque. Mas para que são versões nem exposições, se temos o mesmo autor do texto? Simile est reg-num caelorum homini negotiatori quaerenti bonas margaritas; inventa una pretiosa margari­ta, dedit omnia sua, et comparaviteam (Mt. 13, 45 s). Um mercador — diz Cristo — que nego­ciava e tratava em pérolas; achando uma, deu tudo quanto tinha, e comprou-a. — Quem é o mercador, qual é a pérola, e que é o tudo que deu por ela? O mercador — diz Haymo — é Cristo; a pedra preciosa é a alma; o tudo que deu por ela é tudo o que Deus tinha e tudo o que era. De maneira que não por todas, nem por muitas, senão por uma só alma: Una pretiosa margarita, deu Deus tudo o que tinha e tudo o que era, e não uma só vez, nem por um só modo, senão por tantos: Se nascens dedit socium, convescens in edulium, se moriens in pretium, se regnans dar in praemium: Deu-se na Encarnação, deu-se no Sacramento, deu-se na cruz, dá-se na glória. E aquilo por que Deus tantas vezes, e por tantos modos, deu tudo, vede se é tudo: Omnia traham ad me ipsum. — A alma, a alma, tentador, é o verdadeiro tudo, e não o mundo, a que tu falsa­mente dás esse nome: Haec omnia tibi dabo.

Que bem o entendeu assim o mesmo demônio, que para tudo nos dá armas. Terceira vez vencido o tentador, diz São Lucas que se retirou por então, não para desistir totalmente de tentar a Cristo, mas reservando a tentação para outro tempo: Et consummata omni tentatione, diabolus recessit ab silo usque ad tempus (Lc. 4, 13). Contudo, nem S. Lucas, nem algum dos outros evangelistas dizem expressamente quando o diabo tornasse a tentar a Cristo. Que tempo foi logo este, e que tentação? Santo Atanásio, e comumente os Padres e expositores, resolvem que o tempo foi no último dia e hora da morte de Cristo — que é a ocasião em que o demônio faz o último esforço para tentar aos homens — e que a tentação foi por boca dos judeus, quando disseram: Si Filius Dei est, descendat nunc de cruce, et credimus ei (Mt. 27, 42): Se é Filho de Deus, desça da cruz, e creremos nele. — E verdadeiramente a frase, e modo da tentação, bem mostra ser do mesmo artífice que tinha tentado a Cristo no deserto e no Templo, onde sempre começou, dizendo: Si Filius Dei es. Vede agora a astúcia e conseqüência do demônio, em que fundou toda sua esperança. Como na última tentação, em que se retirou vencido, tinha oferecido a Cristo todos os reinos do mundo, fez este discurso: Este homem, ofereci-lhe todo o mundo, e não o pude render; necessário é logo acrescentar e reforçar a tentação, e oferecer-lhe coisa que pese e valha mais que todo o mundo. Coisa de maior preço e de maior valor que todo o mundo não há, senão a alma. Hei-o de tentar com almas. E assim o fez: Descendat de cruce, et credimus ei. De sorte que só com o oferecimento daquelas almas, que o demônio tanto possuía, lhe pareceu que podia render a quem não tinha rendido com o oferecimento de todo o mundo.

Esta foi a tentação que o demônio reservou para a última batalha. Mas, ainda que nesta ocasião fez o tiro a Cristo com muitas almas, já antes dela o tinha feito com uma só, não oferecendo-lha, mas querendo-lha roubar. Para o demônio roubar a Cristo a alma de Judas, persuadiu-lhe a traição. E que fez o bom pastor para tirar dos dentes deste lobo aquela ovelha? Lançou-se aos pés do mesmo Judas para lhos lavar: Cum jam diabolus misisset in cor, ut traderet eum Judas, caepit lavare pedes discipulorum.[19] Senhor meu, vós aos pés de Judas, persuadido pelo demônio a vos entregar? Vós aos pés de Judas, a quem chamastes demônio: Ex vobis unusdiabolus est? [20] Ainda é maior e mais fundada a minha admiração. Diz expressamente S. Lucas que, antes deste ato e deste dia, já o demô­nio tinha entrado em Judas: Intravit Satanas in Judam, et quaerebat oportunitatem ut tra­deret ilium. Venit autem dies azymorum, in quo oportebat occidi Pascha. [21] Pois se Judas não só é demônio por maldade, mas em Judas está por realidade o mesmo demônio, como se ajoelha Cristo diante de Judas? A figura em que o demônio tentou a Cristo quando disse: Si cadens adoraveris me, era de homem, e não de demônio. Judas, em quem agora está o demônio, também é homem. Como pois se ajoelha Cristo a um homem que é demônio, e dentro do qual está o demônio? Aqui vereis quanto vale uma alma, e quanto vale mais que o mundo todo. Por todo o mundo não dobrou Cristo o joelho, nem o podia dobrar a um demônio transfigurado em homem; e por uma alma lançou-se de joelhos aos pés de um homem que era demônio, e tinha dentro de si o demônio. Por todo o mundo não conseguiu o demônio que Cristo se ajoelhasse a ele; por uma alma, se não conseguiu que se ajoelhasse a ele, conseguiu que se ajoelhasse diante dele.

Ah! idólatras do mundo! que tantas vezes dais a alma e dobrais o joelho ao demônio, não pelo mundo todo, senão por umas partes tão pequenas dele, que nem miga­lhas do mundo se podem chamar! Quantos príncipes dão a alma, e tantas almas ao demônio por uma cidade, por uma fortaleza? Quantos títulos por uma vila? Quantos nobres por uma quinta, por uma vinha, por uma casa? Que palmo de terra há no mundo que não tenha levado muitas almas ao inferno, pela demanda, pelo testemunho falso, pela escritura su­posta, pela sentença injusta, pelos ódios, pelos homicídios, e por infinitas maldades? Se o mundo todo não pesa uma alma, como pesam tanto estes pedacinhos do mundo? Barro alfim. Deitai ao mar um vaso de barro inteiro: nada por cima da água; quebrai esse mesmo vaso, fazei-o em pedaços, e todos, até o mais pequeno, se vão ao fundo. Se o mundo todo inteiro pesa tão pouco, como pesam tanto estes pedaços do mundo, que todos se vão ao fundo e nos levam a alma após si? Quisera acabar aqui, e já há muito que devera, mas como estamos em um ponto de tanta importância, que é a maior e a única, e toca igualmente a todos e a cada um, dai-me licença com que acabe de desarmar ao demônio, dando-lhe muitas mais armas das que ele tem, e concedendo-lhe tudo o que hoje prometeu e tudo o que se não atreveu a prometer. Se alguma hora me destes atenção, seja neste último argu­mento, que desejo apertar de maneira que não haja coração tão duro, nem entendimento tão rebelde, que não dê as mãos e fique convencido.

§ VI

Se o demônio nos mostrasse procurações de Deus para nos dar todos os reinos do mundo, aceitá-lo-íamos? Réplicas a esse oferecimento: a brevidade da vida, a inconstân­cia dos reinos, e a limitação da natureza humana. Deus nos livre de pôr a salvação denossa alma em dúvida. A túnica interior e as vestiduras exteriores de Cristo, símbolos da alma e dos bens temporais divididos ou lançados à sorte.

Quando o demônio ofereceu o mundo a Cristo, disse-lhe juntamente, como refere S. Lucas, que ele tinha poderes de Deus para dar o que oferecia: Tibi dabo potestatem hancuniver­sam, et gloriam eorum, quia mihi tradita sunt, et cui volo, do illa. [22] Estes poderes que o demônio alegava eram tão falsos como as mesmas promessas. Mas, para apertarmos este ponto, suponha­mos que os poderes eram verdadeiros, e que eram ainda maiores. Suponhamos que tinha o demô­nio poderes de Deus, para verdadeiramente dar este mundo a um homem, e demais destes poderes, que tinha também delegação da onipotência para prometer, cumprir e executar tudo o que quises­se. Neste caso, se o demônio nos propusesse o mesmo contrato que hoje propôs a Cristo, se nos oferecesse todos os reinos e grandezas do mundo, e nos mostrasse procurações de Deus para tudo, aceitá-lo-íamos? Eu entendo que neste caso, qualquer homem bem entendido podia pôr três répli­cas, ou três instâncias, a este oferecimento: a primeira, na brevidade da vida; a segunda, na incons­tância dos reinos; a terceira, na limitação da natureza humana. Ora, discorrei comigo, e falemos como demônio. — Tu, demônio, me ofereces todos os reinos do mundo. Grande oferecimento é, mas bem sabes tu que Alexandre Magno não durou mais que seis anos no império, e outros imperadores duraram muito menos, e algum houve que durou só três dias. Pois por seis anos, ou por vinte anos, ou por quarenta anos que posso viver, e esses incertos, hei eu de entregar a minha alma? Não é bompartido. — Não sejaessáadúvida–dizo demônio–eu te seguro, comospoderes que tenho, cem mil anos de vida, e esses sem dor, sem velhice, sem enfermidade. Há mais outra dúvida? — Ainda que eu haja de ter cem mil anos de vida, quem me segurou a mim a duração e permanência desses reinos e dessa monarquia?

Não há coisa mais inconstante no mundo que os reinos, nem menos durável que sua glória e felicidade. Sem recorrer aos exemplos passados, digam-no as mudanças que vindos nes­tes nossos dias, em que tão pouco segura tiveram os reis a obediência dos vassalos e a coma, e ainda a mesma cabeça sobre que assentam as coroas. [23] Pois se os vassalos mesmos se me houves­sem de rebelar, ou os estranhos me houvessem de conquistar os reinos, que me importaria a mim ter o nome e o domínio deles? — Não seja essa também a dificuldade — diz o demônio — eu te asseguro a duração e perpetuidade da monarquia e todos os reinos que te mostrei, por espaço de cem mil anos, e te prometo que os possuirás sempre quietos e pacíficos. Há mais ainda alguma coisa em que reparar?–Ainda há uma. Sendo eu rei de todo o mundo, não me posso gozar de todo ele ao mesmo tempo. Quando tiver a corte em Lisboa, não a posso ter em Paris; quando a tiverem Roma, não a posso ter em Constantinopla; se lograr as terras da Europa, não posso lograr as da América; se lograr as delícias de Itália, não posso gozar as da Índia. Pois se eu não hei de ter mais capacidade para os gozos da vida, do que tem qualquer outro homem, que me importa ter tanto poder e tanta matéria para eles? Também isso tem remédio — diz o demônio. — Assim como Cristo no Sacramento está em todos os lugares do mundo, sendo um só e o mesmo, assim farei eu pela onipotência delegada, que tu, sendo um só, estejas juntamente em todos os lugares do mundo, para que em todos possas gozar tudo o que quiseres.

Eis aqui as condições com que suponho que nos oferece o demônio o seu contra­to. Parece-vos que são boas condições estas, e dignas de se aceitarem? Um homem com cem mil anos de vida seguros, sem dor, nem enfermidade; um homem monarca universal de todos os reinos do mundo, com certeza de não se mudarem; um homem multiplicado em todas as partes do mundo, para poder gozar no mesmo tempo as delícias de todo ele. Parece que a imaginação não pode inventar mais, nem querer mais o desejo. Dizei-me agora: se este contrato vo-lo oferecesse o demônio, assinado por Deus, aceitaríeis esta vida, esta majestade, estas delícias de cem mil anos, com condição de, no cabo deles, perder a alma, e ir ao inferno? É certo que nenhum de nós aceitaria tal contrato. Ao menos, eu não. Pois se não aceitaríamos ao demônio um talcontrato, como aceitamos tentações tão diferentes? Dizei-me: quando o demônio vos tenta, promete-vos larga vida? Antes são muitas vezes tais as tentações que sabeis de certo que, caindo nelas, quando menos, haveis de encurtar a vida e perder a saúde. Mais. Quando o demônio vos tenta, promete-vos reinos e monar­quias universais do mundo? Não: um governo, uma privança, um título, um morgado, uma herança e outros interesses menores. Mais. Quando o demônio vos tenta, multiplica-vos a capacidade dos sentidos, para que possais gozar com maior largueza e sem limite os gostos e delícias do mundo? Nada disto. Pois se fora loucura e rematada loucura entregar um homem a sua alma por aquele contrato, que será entregarmo-la cada dia e cada hora por tentações de tanto menos porte? Por uma vaidade, por um desejo, por uma representação, por um apetite, que no instante de antes o desejais, e no instante de depois o aborreceis? Tomara que me respondêsseis a esta evidência, para ver que razão me dais.

Só uma vos pode ocorrer que tenha alguma aparência, e é o que nos engana a todos. Padre, entre aquele contrato e as tentações ordinárias do demônio há uma diferença grande. Con­sentindo naquele contrato, ficava eu perdendo a minha alma de certo; consentindo nas outrastentações, somente ponho a minha alma em dúvida, porque, depois de aceitara tentação e lograr o que o diabo ou o apetite me promete, posso arrepender-me, e salvar-me. Primeiramente essa mesma conta fizeram todos os cristãos que estão no inferno. Mas sem chegar a essa suposição, tão leve negócio é pôr a alma e a salvação em dúvida? Aprendamo-lo do mesmo demônio, e tome a tentação a ser remédio. Quando o diabo tentou a Cristo, bem via que aquele homem, quem quer que fosse, depois de aceitar o partido e se ficar com os reinos do mundo, assim como se houvesse posto de joelhos diante do demônio, para o adorar, assim se podia pôr de joelhos diante de Deus, para pedir perdão e se restituir à graça, e salvar-se. Pois se isto era assim, por que lhe oferecia o demônio todo o mundo, só por aquela adoração, só por aquele pecado? Porque aquele pecado em um homem, ainda que lhe não tirava a salvação com certeza, punha-lhe a salvação em dúvida, e só porpôrem dúvida a salvaçãode uma alma, dará edá odemônio todo o mundo. Pois se odemônio, que não é interessado como eu, dá o mundo, só por pôr a minha salvação, em dúvida, eu por que porei em dúvida a minha alma e a minha salvação, ainda que seja por todo o mundo?

Cristãos, Deus nos livre de pôr a salvação de nossa alma em dúvida, ainda que seja pelo preço de todo o mundo e de mil mundos. O que se põe em dúvida, pode ser e não pode ser. E se for? Se a dúvida inclinar para a pior parte, se eu me não salvar e me condenar, como se condenaram tantos que lhe fizeram esta mesma conta; será bem que fique a alma nestas contingências? Oh! tristes almas as nossas, que não sei que nos têm feito, que tanto mal lhes queremos! Por certo, que não nos havemos nós assim nas temporalidades. O negó­cio em que vos vai a vida, ou a fazenda, ou a honra, ou o gosto, contentais-vos com o deixar nessas dúvidas? Não buscais sempre o mais seguro? Pois só a Deus e à ventura hão de ser para a triste alma? Vede como se queixava Cristo desta sem-razão: Diviserunt sibi vesti­menta mea, et super vestem meam miseruntsortem (Mt. 27, 35): As minhas vestiduras exteriores, dividiram-nas para si, e a minha túnica interior, lançaram-na a sortes. — Os ves­tidos exteriores de Cristo, dividiram-nos entre si os soldados em partes iguais; a túnica interior, jogaram-na a ver quem a levava inteira. Que é esta túnica interior, e que vestiduras exteriores são estas que os homens receberam de Deus? As vestiduras exteriores são os bens temporais, a túnica interior é a alma. Vede agora com quanta razão se queixa Cristo: Diviserunt sibivestimenta mea: as vestiduras exteriores, os bens temporais estimam-nos os homens tanto que os não querem pôr na dúvida de uma sorte: dividem-nos com grande tento, reparando em um fio, e cada um segura a sua parte; Et super vestem meam miserunt sortem: porém a túnica interior, a alma, fazem tão pouco caso dela os homens, que a lançam a sortes e à ventura, ao tombo de um dado. Atrevemo-nos a estar eternamente no inferno? Para quando guardamos os nossos juízos? Para quando guardamos os nossos entendimentos? Por que cuidais que foram prudentes as cinco virgens do Evangelho? Por que eram muito entendidas? Por que falavam com grande discrição? Não. Porque quando as compa­nheiras lhes pediram do óleo para acompanhar o esposo às bodas, elas responderam: Ne forte non sufficiat nobis, et vobis (Mt. 24, 9): Não, amigas, porque não sabemos se nos bastará o que temos. — Pôr em dúvida a entrada do céu, pôr em dúvida a salvação da alma, nem por amor das amigas, nem por amor das bodas, nem por amor do esposo.

§VII

É tão grande o valor das almas por si mesmas, que mesmo quando condenadas, como a de Judas, deu Deus por bem empregado nelas o preço infinito de seu sangue. Que nos fizeram as nossas almas para lhes querermos tão mal? Tomemos meia hora por dia para tratar de nossa alma. Por que não haverá também uma irmandade para a salvação das almas que se perdem? Proposta de Cristo ao Reino de Portugal.

Não digo eu pôr a salvação da alma em dúvida. Ainda que algum de nós soubera de certo, e tivera revelação que a sua alma se não havia de salvar, só por ser alma, a não havia de dar por nenhum preço do mundo. Ouvi uma ponderação que me faz tremer. É de fé que o Filho de Deus morreu por todos os homens. Assim o definiu Inocêncio Décimo em nossos dias, contra o erro dos jansenistas, e assim o diz expressamente S. Paulo em dois lugares de suas epístolas: na segunda ad Chorinthios, capítulo cinco: Christus pro omnibus mortuus est;[24] e na primeira ad Thimotheum, capítulo dois: Qui dedit redemptionem seme­tipsum pro omnibus.[25] Todos os homens quantos há, e houve, e há de haver no mundo, ou são predestinados que se hão de salvar, ou são precitos que se hão de perder. Que Cristo morresse pelas almas dos predestinados, bem está: são almas que se hão de salvar, e que hão de ver, e gozar, e amar a Deus por toda a eternidade; mas morrer Cristo, e dar o preço infinito de seu sangue também pelas almas dos precitos? Sim. Morreu pelas almas dos predestinados, porque são almas que se hão de salvar; e morreu também pelas almas dos precitos, porque, ainda que se não hão de salvar, são almas. Nos predestinados, morreu Cristo pela salvação das almas; nos precitos, morreu pelas almas sem salvação, porque é tão grande o valor das almas por si mesmas, ainda sem o respeito de se haverem de salvar, que deu Deus por bem empregado ou por bem perdido nelas o preço infinito de seu sangue. Grande exemplo em uma alma particular.

Fez Cristo por Judas os extremos que todos sabem; mas nem todos os ponderam como merecem. Se Cristo tivera certeza de que Judas se havia de salvar, bem empregadas estavam todas aquelas despesas de trabalho e de amor. E se, quando menos, a salvação de Judas estivera duvidosa, também era bem-aventurar todas aquelas diligências na contin­gência dessa dúvida. Mas Cristo sabia de certo que Judas era precito e se havia de conde­nar. Pois, Senhor, como empregais e despendeis tantas vezes o preço infinito de vossas palavras, de vossas ações e de vossas lágrimas com esse infeliz homem? Não sabeis que se há de perder a sua alma? Sim, sei; mas, ainda que se há de perder, é alma. A certeza da sua perdição não lhe tirou o ser, antes acrescenta a dor de tamanha perda. E que haja ainda almas que se queiram perder certamente? Que haja ainda tantos Judas, que dêem entrada ao demônio em suas almas, não por todo o mundo, nem por trinta dinheiros, mas por outros preços mais vis e mais vergonhosos?

Ora, cristãos, se uma alma, ainda sem o respeito da salvação, vale tanto, as nossas almas, que pela misericórdia de Deus ainda estão em estado de salvação, por que as estimamos tão pouco? Que nos fizeram as nossas almas, para lhes querermos tanto mal, para as desprezarmos tanto? Cristo estima infinitamente a minha alma mais que todo o mundo; o mesmo demônio estima também mais a minha alma que todo o mundo, e só eu hei de estimar todas as coisas do mundo mais que a minha alma? Que coisa há neste mundo tão vil, ou seja da vida, ou seja da honra, ou seja do interesse, ou seja do gosto, que a não estimemos mais que a alma, e que não vendamos a alma por ela? Ponhamos os olhos em um Cristo crucificado, e aprendamos naquela balança a pesar e estimar nossa alma. Como está Cristo na cruz? Despido, afrontado, atormentado, morto: despido pela minha alma, para que eu estime mais a minha alma que o interesse; afrontado pela minha alma, para que eu estime mais a minha alma que a honra; atormentado pela minha alma, para que eu estime mais a minha alma que os gostos; morto pela minha alma, para que eu estime mais a minha alma que a vida. Oh! pesemos, e pesemos bem o que é, e o que há de ser o mundo, o que é, e o que há de ser a nossa alma. Seja esta a principal devoção desta quaresma, e seja também a principal penitência. Não vos peço que nesta quaresma acrescenteis as devoções nem as penitências: só uma comutação delas vos peço, e é que tomeis na mão aquela balança. Tomemos sequer meia hora cada dia, para nos fecharmos conosco e com a nossa alma, e para tratarmos dela e com ela. Diz S. João no Apocalipse: Factum estsilentium in caelo quasi media hora (Apc. 8, 1): que se fez silêncio no céu por espaço de meia hora, enquanto se tratava das petições da terra. Se no céu, onde tudo é segurança é felicidade, se toma meia hora para tratar da terra, na terra, onde nada é seguro e tudo é miséria, por que se não tomará meia hora para tratar do céu? De vinte e quatro horas do dia, não lhe bastaram ao corpo vinte e três e meia, e a pobre alma não terá sequer meia hora? E que seja necessário que isto se vos esteja rogando e pedindo, e que não baste? Ora, fiéis cristãos, façamo-lo assim todos nesta quaresma, para que também a quaresma seja cristã. Consideremos que a nossa alma é uma só, que esta alma é imortal e eterna, que a união que tem esta alma com o corpo — a que chamamos vida — pode desatar-se hoje; que todas as coisas deste mundo cá hão de ficar, e só a nossa alma há de ir conosco; que a esta alma a espera uma de duas eternidades: se formos bons, eternidade de glória, se formos maus, eternidade de pena. É isto verdade ou mentira? Cremos que temos alma, ou não o cremos? São estas almas nos­sas, ou são alheias? Pois que fazemos?

Também das alheias nos devemos lastimar muito. Todo o mundo, que o demônio hoje ofereceu a Cristo, foi por uma alma alheia. Se dá todo o mundo o demônio por perder uma alma, porque não daremos nós, e por que não faremos alguma coisa por tantas almas que se perdem? Neste mesmo instante se estão perdendo infinitas almas na Africa, infinitas almas na Asia, infinitas almas na América — cujo remédio venho buscar– tudo por culpa e por negligência nossa. Verdadeiramente não há reino mais pio que Portugal; mas não sei entender a nossa piedade, nem a nossa fé, nem a nossa devoção. Para as almas que estão no purgatório, há tantas irmandades, tantas confrarias, tantas despesas, tantos procuradores, tantos que as encomendem de noite e de dia; só aquelas pobres almas que estão indo ao inferno não têm nada disto. As almas do purgatório, ainda que padeçam, têm o céu seguro; as que vivem e morrem na gentilidade, não só têm o céu duvidoso, mas o inferno e a condenação certa, sem haver quem lhes acuda. Não é maior obra de misericórdia esta? Pois por que não haverá também uma irmandade, por que não haverá também uma congregação, por que não haverá também uma junta, por que não haverá também um procurador daque­las pobres almas? — Senhor, estas almas não são todas remidas com o vosso sangue? — Senhor, estas almas não são todas remidas com o sangue de Cristo? [26] — Senhor, a conver­são destas almas não a entregastes aos reis e reino de Portugal? — Senhor, estas almas não estão encarregadas por Deus a Vossa Majestade com o reino? — Senhor, será bem que estas almas se percam e se vão ao inferno contra o vosso desejo? — Senhor, será bem que aquelas almas se percam, se vão ao inferno por nossa culpa? Não o espero eu assim da Vossa Majestade divina, nem da humana. Já que há tantos expedientes para os negócios do mun­do, haja também um expediente para os negócios das almas, pois valem mais que o mundo. Desenganemo-nos: quanto mais se adiantar o negócio da salvação das almas, tanto os do mundo irão mais por diante. O demônio oferecer todos os reinos do mundo a Cristo pela perdição de uma alma, e Cristo, porque tratou da salvação das almas, está hoje Senhor de todos os reinos do mundo. Assim nos sucederá a nós também, e assim o prometo em nome do mesmo Deus. Deixai-me santificar as palavras do demônio, e pô-las na boca de Cristo: Ostendit et omnia regna mundi: Está-nos Deus mostrando todos os reinos desse novo mun­do, que por sua liberalidade nos deu, e por nóssa culpa nos tem tirado em tanta parte. E, apontando para a África, para a Ásia, para a América, nos está dizendo: Haecomnia tibi dabo, si cadens adoraveris me: Reino de Portugal, eu te prometo a restituição de todos os reinos que te pagavam tributo, e a conquista de outros muitos, e mui opulentos desse novo mundo, se tu, pois te escolhi para isso, fizeres que creia em mim, e me adore: Si cadens adoraverit me. Assim o prometo da bondade de Deus, assim o espero do grande zelo e piedade de sua majestade, assim o confio da muita cristandade de todos os ministros, e, se tratarmos das almas alheias, este meio, de que tanto se serve Deus, será o mais eficaz de conseguirmos a salvação das próprias, nesta vida, com grandes aumentos de graça, e na outra, com o prêmio da glória.

[1] E lhe mostrou todos os reinos do mundo, e a glória deles, e lhe disse: Tudo isto te darei, se prostrado me adorares (Mt. 4.8 s).

[2] Na Vulgata: Porque escrito está, que mandou a seus anjos que cuidem de ti e eles te tomarão nas palmas, para que não suceda tropeçares em pedra com o teu pé (Mt. 4, 6; Lc. 4, 10 s).

[3] Ao Senhor teu Deus adorarás, e a ele só servirás (Mt. 4, 10).

[4] Dela estão pendentes mil escudos, toda a armadura dos esforçados (Cânt. 4, 4).

[5] Todas as nossas armas estão contidas nas Sagradas Escrituras.

[6] Na Escritura, como em uma botica, cada um poderá encontrar o remédio certo para a sua enfermidade.

[7] Porquanto, nem foi erva que os sarou, nem lenitivo algum, mas sim a tua palavra, Senhor, que sara todas as coisas (Sab. 16, 12).

[8] Vai-te, Satanás (Mt. 4, 10).

[9]  Londin. in Hist. Flandr.

[10] Foi-se, dando-se-lhe pouco de ter vendido o seu direito de primogenitura (Gên. 25, 34).

[11] Palavras do Eclesiastes, filho de Davi, rei de Jerusalém: Vaidade de vaidades, e tudo vaidade (Ecl. 1, 1).

[12] Mentirosos são os filhos dos homens em balanças; eles conspiram concordemente em vaidade para usar de enganos (Sl. 61, 8). 

[13] Bendita cruz, transformada em balança, de cujos braços pende a salvação do mundo, roubando ao inferno a presa.

[14] Que se deu a si mesmo para redenção de todos (1 Tim. 2, 6)

[15] Ao qual constituiu herdeiro de tudo (Hebr. 1, 2).

[16] Sabendo que o Pai depositara em suas mãos todas as coisas (Jo. 13, 3).

[17] Todas as coisas me foram entregues por meu Pai (Mt. 11. 27).

[18] Trarei cada um até mim.

[19] Como já o diabo tinha metido no coração a Judas, começou a lavar os pés aos discípulos (Jo. 13, 2, 5).

[20] Um de vós é o diabo (Jo. 6, 71).

[21] Satanás entrou em Judas, e buscava ocasião oportuna de lho entregar. Entretanto chegou o dia dos pães asmos, no qual era necessário imolar-se a Páscoa (Lc. 22, 3, 6, 7).

[22] Dar-te-ei todo este poder e a glória destes reinos, porque eles me foram dados, e eu os dou a quem bem me parecer (Lc. 4, 6).

[23] Neste tempo foi degolado el-rei de Inglaterra.

[24] Cristo morreu por todos (1 Cor. 5, 15).

[25] Que se deu a si mesmo para redenção de todos (1 Tim. 2, 6).

[26] Fala alternadamente com Deus e com o rei.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística