Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão da Terceira Quarta-feira da Quaresma, na Capela Real, no ano de 1670, de Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DA TERCEIRA QUARTA-FEIRA DA QUARESMA, PREGADO NA CAPELA REAL, NO ANO DE 1670

Non est meum dare vobis, sed quibus paratum est a Patre meo [1]

§ I

Sermão dos pretendentes. Os filhos de Zebedeu e os descobridores portugueses. O non e a serpente de Moisés. Não: palavra dura para quem a ouve e para quem a diz. O anjo de Deus e as petições de Abraão em favor das cinco cidades condenadas à destruição. É decente a um rei dizer não? No caso em que convenha, qual é o modo com que o deve dizer?

Estamos em sermão de pretendentes, e, segundo a experiência e queixa comum, ou seja com razão, ou sem ela, acho eu que os pretendentes das cortes, em seus requerimentos, são como os nossos argonautas e primeiros descobridores da Índia, senão que navegam ao revés e fazem a viagem às avessas. Os nossos descobridores primeiro passaram o Cabo de Não, e depois o Cabo de Boa Esperança; os pretendentes, pelo contrário, começam pelo Cabo de Boa Esperança, e acabam pelo Cabo de Não. Assim sucedeu hoje aos filhos do Zebedeu, que também eram navegantes. Começaram pelo Cabo de Boa Esperança, e com tão boa mon­ção, que o passaram em uma sangradura, porque o vento era Galerno e o mar bonança. Funda­vam a esperança na graça de Cristo, na eleição que deles tinha feito, e na prontidão com que tinham deixado, não só as barcas e as redes, como Pedro e André, senão também o próprio pai; fundavam a esperança no valimento de João, conhecidamente o mais aceito a Cristo, e desco­bertamente o amado entre todos os discípulos; fundavam a esperança na propinqüidade do sangue, por serem primos do mesmo Senhor, não reparando que os príncipes não têm parentes, e muito menos ao perto; fundavam finalmente a esperança na intercessão de sua mãe, que, por mulher, era digna de todo o respeito, e, por viúva, de toda a piedade. Mas ainda que passaram tão felizmente o Cabo de Boa Esperança, e se prometiam pronto e inteiro despacho, alfim acabaram como os demais pelo Cabo de Não: Non est meum dare vobis.

Terrível palavra é um non. Não tem direito, nem avesso; por qualquer lado que a tomeis, sempre soa e diz o mesmo. Lede-o do princípio para o fim, ou do fim para o princípio, sempre é non. Quando a vara de Moisés se converteu naquela serpente tão feroz, que fugia dela por que o não mordesse, disse-lhe Deus que a tomasse ao revés, e logo perdeu a figura, a ferocidade e a peçonha. O non não é assim: por qualquer parte que o tomeis, sempre é serpen­te, sempre morde, sempre fere, sempre leva o veneno consigo. Mata a esperança, que é o último remédio que deixou a natureza a todos os males. Não há corretivo que o modere, nem arte que o abrande, nem lisonja que o adoce. Por mais que confeiteis um não, sempre amarga; por mais que o enfeiteis, sempre é feio; por mais que o doureis, sempre é de feno. Em nenhu­ma solfa o podeis pôr que não seja malsoante, áspero e duro. Quereis saber qual é a dureza de um não? A mais dura coisa que tem a vida é chegar a pedir, e, depois de chegar a pedir, ouvir um não. Vede o que será? A língua hebraica, que é a que falou Adão, e a que mais naturalmente significa e declara a essência das coisas, chama, ao negar o que se pede, envergonhar a face. Assim disse Bersabé a Salomão: Petitionem unam precor a te: ne confundas faciem meam (3 Rs. 2, 16): Trago-vos, Senhor, uma petição: não me envergonheis a face. — E por que se chama envergonhar a face negar o que se pede? Porque dizer não a quem pede é dar-lhe uma bofetada com a língua, tão dura, tão áspera, tão injuriosa palavra é um não. Para a necessidade dura, para a honra afrontosa, e para o merecimento insofrível.

E se um não é tão duro para quem o ouve, creio eu que não é menor a sua dureza para quem o diz, e tanto mais, quanto mais generoso for o coração e mais soberano o ânimo que o houver de pronunciar. Dos três anjos que apareceram a Abraão no vale de Mambré, os dois que representavam ministros partiram a executar o castigo nas cidades infames, e o terceiro, ou primeiro, que representava a Deus, ficou com Abraão. E porque o estar só por só com Deus é o melhor tempo e modo de negociar com ele, animou-se então o santo patriar­ca a pedir a revogação da sentença. Eram as cidades cinco, e disse assim: - Senhor, se naquelas cinco cidades houver cinqüenta justos, não lhes perdoará Vossa Majestade? — Sim, perdoarei, — respondeu Deus ou o anjo em seu nome. — E se não chegarem a cinqüen­ta, e forem somente quarenta e cinco? — Também perdoarei. — Alentado com esta partida, continuou Abraão a outras menores. — E se forem só quarenta? — Perdoarei por quarenta. — E se trinta, Senhor? — Também por trinta. — E se vinte? — Por vinte. — E se dez somente? — Também perdoarei por dez. — E dizendo isto, desapareceu o anjo: Abiitque Dominus (Gên. 18, 33). Notável despedida! Não aguardou o anjo a que Abraão instasse mais e ofe­recesse ou rogasse com menor partido. A submissão, o comedimento, e a santa cortesania com que Abraão instava e passava de uma petição a outra é admirável, e digníssima de que todos a leiam, e de que o anjo só pelo ouvir se detivesse. Pois se tinha aguardado não só com paciência, mas com tão particular agrado, desde a primeira instância até a sexta, por que não esperou a sétima, por que se retirou e escondeu tão súbita e improvisamente? Por não chegar a dizer um não. A comissão que trazia o anjo eram dois decretos: um condicio­nal, outro absoluto. O condicional, que se nas cinco cidades houvesse até dez justos, suspen­desse o castigo: o absoluto, que se fossem menos de dez, executasse e ardessem. E como o anjo, que a seis petições de Abraão tão benevolamente tinha sempre dito sim, se ele continuas­se e instasse com a sétima, era forçado a dizer não, por se não atrever a pronunciar esta durís­sima palavra, desapareceu e escondeu-se. — Naquelas cinco cidades não há mais que quatro justos, de que consta a família de Lot, sobrinho de Abraão; se Abraão, como é certo, descer a este número, eu, diz o anjo, não lhe posso conceder o partido, e é força responder-lhe de não. Pois, para que nem eu tenha o dissabor de dizer tal palavra, nem ele o desgosto e pena de a ouvir, fugir e desaparecer é o melhor meio: Abiitque Dominus.

Os reis e príncipes soberanos representam e têm as vezes de Deus na terra, como tinha esse anjo. Também, como o mesmo anjo neste caso, não podem deixar de ouvir peti­ções e ser importunados de requerimentos a que não devem deferir. E porque dizer não aos pretendentes é coisa tão dura para eles, como para o mesmo príncipe, será matéria mui própria deste lugar e deste Evangelho pôr hoje em questão e averiguar duas coisas: Primei­ra: se é conveniente e decente a um rei dizer não? Segunda: qual é o modo com que o deve dizer, no caso que convenha? Uma e outra resolução nos darão as palavras do tema: Non est meum dare vobis, sed quibus paratum est a Patre meo.

§II

Não é conveniente, nem decente à majestade, que pronuncie de palavra, ou firme com a pena um não. Tão vil é na mentira o sim, como honrado na verdade o não. A resposta dos atenienses a Filipe de Macedônia. D. João Segundo e as mercês do não dito a seu tempo. 

Dos imperadores que precederam ao império de Trajano, diz o seu panegirista Plínio que desejavam muito ser rogados, e que todos lhes pedissem, só pelo gosto que tinham de dizer não: Priores principes a singulis rogari gestiebant, non tam praestandi animo, quam negandi. Mas como estes, que ele chama príncipes, verdadeiramente eram tiranos, e mais monstros da natureza humana que homens, excluído sem controvérsia este escândalo da razão e da humanidade, e começando a nossa questão pelas razões prováveis de duvidar, parece que não é conveniente nem decente à majestade e autoridade de um rei, que pronuncie de palavra ou firme com a pena um não. Ou o rei diz não porque não quer, ou porque não pode: se porque não quer, ofende o amor; se porque não pode, desacredita a grandeza. E se as petições e requerimentos são tais que se não devem conceder, entendam os pretendentes o não, mas não o ouçam; seja discurso seu, e não resposta ou resolução real. Mais decente negativa é para o governo, e menos descoberta desconsolação para os que requerem, que eles tomem por si o desengano. Desengane-os a dilação, desengane-os o tempo, e se de dia não cuidam, nem de noite sonham mais que no seu despacho, os mesmos dias e noites lhes digam o que se lhes não diz, e por elas saibam o que não querem entender. Sustentem-se na sua esperança, posto que falsa, e fique sempre inteiro ao príncipe o pun­donor de que não negou. Se por este modo se estendem os requerimentos, e se entretêm e multiplicam os que vêm requerer, isso mesmo é um certo gênero de grandeza e autoridade haver muitos pretendentes. O que pies gastam e despendem sustenta a majestade da corte, e também as cortes dos que não são majestade. Já que pretendem sem merecimento, pa­guem as custas da sua ambição, e sirva-lhes a eles de castigo e aos mais de exemplo.

Contra o sofístico destas razões — que verdadeiramente tem muito da vaidade — parece que são mais sólidas as do ditame contrário. Tão vil é na mentira o sim, como honrado na verdade o não. A verdade — que por isso se pinta despida — não sabe encobrir, nem fingir, nem enfeitar, nem corar, e muito menos enganar; e a primeira virtude do trono, ou seja, da justiça ou da graça, é a verdade. Todo o artifício é coisa mecânica, e não nobre, quanto mais real. O sol abranda a cera e endurece o barro, porque obra conforme a disposi­ção dos sujeitos; mas em todos, e com todos descobertamente: por isso o calor é insepará­vel da luz. Importa distinguir o bastão do cetro. Os estratagemas não são para o despacho: sejam embora para a campanha, mas não para a corte, para os inimigos, e não para os vassalos. Saibam os pretendentes se podem esperar ou não, para que no fim não desespe­rem. Quem diz que é arte de não desgostar, não diz nem cuida bem. Melhor é dar um desgosto que muitos. Queixem-se de que os não satisfizeram, mas não possam dizer justa­mente que os enganaram. Se é dura palavra um não, mais duras são as boas palavras que suspendem e encobrem o mesmo não, até que o descobre o efeito. Quem fez o não tão breve, não quis que se dilatasse.

Pediu Filipe, rei de Macedônia, à República de Atenas o deixasse passar com oexérci­to pelas suas terras, o que o senado lhe não quis conceder. E porque o estilo dos atenienses — que ainda hoje se chama estilo lacônico — era resumir tudo o que se havia de dizer às palavras mais breves, tomaram um grande pergaminho — que era o papel daquele tempo — e escreveram nele um não com tamanhas letras, que o enchia todo, e cen-ado, e selado, esta foi a resposta que deram aos embaixadores de Filipe. É mui célebre nas histórias gregas este breve e grandíssimo não, mas na nossa Atenas ainda os há maiores. Tantas petições, tantas remissões, tantas provisões, tantas pa­tentes, tantas certidões, tantas justificações, tantas folhas corridas, tantas vistas, tantas informa­ções, pedidas muitas vezes à Ásia, e à América, tantas consultas, tantas interlocutórias, tantas réplicas e tantas outras cerimônias e mistérios por escrito, a que não se sabe o número nem o nome; e ao cabo de quatro, de seis e de dez anos, ou o despacho, ou o que significa o despacho em meia resma de papel, é um não. Não fora melhor este desengano ao princípio? E as despesas deste injusto entretenimento, que se devem restituir nesta vida, ou se hão de pagar na outra, por cuja conta correm?Já que não haveis de fazer ao pretendente a mercê que pede, porque não lha fareis, ao menos, do que há de gastar inutilmente na pretensão? Ao outro que presentava o seu memorial, disse el-rei D. João Segundo, naprimeira audiência, que não tinha lugar no que pedia, e ele beijou-lhe a mão. Entendestes-me? — replicou el-rei. — Senhor, sim, — Por que me beijais, logo, a mão? — Porque me fez Vossa Alteza mercê do dinheiro que trazia para gastar na corte, e agora o tomo a levar para minha casa. — Estas são as mercês do desengano, e os despachos do não dito a seu tempo. Não o dizer será maiorpolítica, maior autoridade e decência; mas dizê-lo, em muitos casos é obrigação e consciência.

§III

Como evitar as ocasiões de dizer não? Primeiro meio: não conceder aos validos as suas petições, como o fez Deus quando castigou o povo de Israel. O não do Senhor à pretensão dos apóstolos. A petição de S. Paulo. Os dois gêneros de negações: as puras negações, e as privações.

Disputada assim problematicamente a nossa questão, de umas e outras razões de duvidar, se conclui com certeza que o não, sem ser coisa alguma, é como as outras coisas deste mundo, que todas têm seus bens e seus males, suas utilidades e seus inconvenientes. Para não cair, ou tropeçar nestes, que a cada passo se oferecem ou atravessam em tanta multidão de requerimentos, o primeiro cuidado ou cautela do prudente príncipe deve ser evitar, quanto for possível, as ocasiões de dizer não. Mas como se podem evitar ou atalhar estas ocasiões, sendo os pretendentes e as pretensões, os requerentes e os requerimentos tantos? Digo que fazendo com destreza e constância que sejam menos, e muito menos, e usando para isso dos meios que agora apontarei, e nos ensina o nosso Evangelho.

O primeiro meio é que os validos, ou privados, por mais juntos que estejam à pessoa real, e por mais dentro que estejam na graça, sejamos primeiros a que se não conce­da o que pretenderem. A razão, ou conseqüência, é manifesta. Porque se os que estão de fora virem que os que estão de dentro, e tão de dentro, não alcançam o que pretendem, como se atreverão eles a pretender, nem pedir? Tinha Deus determinado castigar o povo de Israel com quatro pragas ou açoites, de fome, de guerra, de peste e de bestas-feras, e para que entendessem que por nenhuns rogos ou intercessões, se suspenderia a execução destes castigos, acrescenta que, ainda que lho pedisse Noé, Jó e Daniel, não lho havia de conce­der. O modo desta cominação pelo profeta Ezequiel é muito singular, por que diz assim: Se mandar fome, ainda que interceda Noé, Jó e Daniel, hão-se de secar os campos e as searas; se mandar guerra, ainda que interceda Noé, Jó e Daniel, tudo há de levar a espada; se mandar peste, ainda que interceda Noé, Jó e Daniel, tudo há de consumir a morte; se man­dar bestas-feras, ainda que interceda Noé, Jó e Daniel, tudo hão de destruir e devastar as feras. Com razão chamei a este modo de cominação singular, porque se não lê outro seme­lhante em toda a Escritura. Pois por que o faz Ezequiel, e o manda fazer Deus com tão expressa e tão multiplicada repetição, de que não hão de valer ao povo as orações de Noé, de Jó e de Daniel? Porque estes três, em diferentes séculos, foram os maiores validos de Deus, e para persuadir e desenganar a todos de que se lhes não há de conceder o que pedirem, o meio e exemplo mais eficaz é negar e não conceder aos validos as suas petições. Se a Noé, se a Já, se a Daniel se nega o que pedirem, como se me há de conceder a mim? Não quero pedir. No nosso texto o temos.

Os apóstolos, antes de descer sobre eles o Espírito Santo, eram muito tocados da ambi­ção e apetite de ser, como homens alfim levantados do pó da terra ou das areias da praia. Daqui nasceu aquela contenda tão indignado Sagrado Colégio: Facia est contentio intereos, quis eorum videretur esse major.[2] Descobertamente disputaram e altercaram entre si sobre a preferência, cuidando e defendendo cada um que ele era o maior. E tão aferrados estavam todos à própria opinião, que, ainda consultando a seu Divino Mestre sobre a matéria, não se sujeitaram a que ele absolutamente a definisse, circunstância digna de grande ponderação: Quis putas major est in regno caelorum (Mt. 18, 1). Não disseram: quem de nós é o maior? Senão; Quis putas: Quem vos parece que o é? — Para que, ainda depois da resposta, ficasse a maioria em opinião, e cada um seguisse a sua — e se não descesse dela. Pois se esta ambição era de todos, e não só de João e Diogo, como foram só estes dois os que pretenderam e pediram as primeiras cadeiras, e nenhum dos outros, que tanto como eles o desejavam, intentou tal coisa? Por isso mesmo. João e Diogo eram conhecidamente os maiores validos de Cristo, e os mais entrados na sua graça, e os que a tinham mais bem fundada, ainda naquela razão natural que corre pelas veias; e como os outros apóstolos viram que os lugares que todos apeteciam se negaram aos válidos, todos amainaram as velas e recolheram os remos da sua ambição, e nenhum teve confiança nem atrevimento, para pretender nem pedir, quando a eles se tinha negado. Vede a virtude de um não para evitar muitos. Com o Senhor dizer uma vez não: Non est meum dare vobis, se livrou de o dizer oitenta e duas vezes. Se Cristo concedera ou condescendera com esta petição dos dois apóstolos, logo os outros dez haviam de vir com as suas, e após os dez apóstolos, os setenta e dois discípulos, que todos se haviam de querer aproveitar de tão boa maré; mas com um não que disse aos validos, se livrou o Senhor de dizer dez nãos, e setenta nãos.

Porque os reis não imitam o exemplo do Rei dos Reis, e por isso se vêem tão perseguidos de petições e tão atribulados de requerimentos, de que se não podem desemba­raçar, mais constrangidos da conseqüência, que obrigados da razão, devendo e querendo negar a muitos, e não o podendo fazer pelo que têm concedido a poucos. Diga-se um não a João e a Diogo, ainda que sejam validos, e logo não só se poderá dizer com liberdade aos mais, mas cessarão as ocasiões de ser necessário dizer-se. Dirão porém os mesmos validos, ou alguém por eles, que não parece, nem é justiça, nem ainda bom exemplo e crédito do mesmo rei, que aos que servem e trabalham junto à sua pessoa, e sustentam o peso da monarquia, devendo ser os primeiros e mais remunerados, fiquem sem mercê e sem prê­mio. E é pouca mercê e pouco prêmio o ser validos? É pouca mercê e pouco prêmio estar sempre junto à pessoa real? O prêmio que Cristo prometeu a seus ministros foi que estariam onde ele está: Ubi ego sum, illic et minister meus erit.[3] Nem o rei pode dar maior prêmio, nem o ministro desejar mais avantajada mercê. É verdade que isto mesmo se concedeu a um ladrão venturoso: Hodie mecum eris,[4] o que também pode ter sua propriedade e sua aplicação. Mas ouçamos o que sucedeu a S. Paulo, e como Cristo o tratou em uma só petição que lhe fez, sendo o ministro que mais trabalhou que todos em seu serviço.

Pediu São Paulo a Cristo que o isentasse de certa pensão que pagava por conta de uma pouca de terra que herdara de seus pais e nossos, cujo exator o apertava e molestava muito; e fazendo três vezes esta petição: Propter quod ter Dominum rogavi,[5] nem à pri­meira, nem à segunda, nem à terceira se serviu o Senhor de lhe deferir: sempre saiu escusa­do. Pois a Paulo, que se não era o primeiro valido, não era o segundo, porque dos dois primeiros ministros da casa e reino de Cristo ele era um, a Paulo, que só para o meter em seu serviço, desceu o mesmo Cristo segunda vez do céu à terra, e o levou em vida ao céu para lhe comunicar seus segredos, a este ministro, a este valido, a este que tanto privava com o seu príncipe, nega o Senhor uma pretensão tão justa e tão fácil, e não uma só vez na petição, senão outra vez na nova instância, e terceira na réplica? Sim: para que nem os validos estranhem as negativas, nem os príncipes se encolham e desanimem, ou cuidem que os agravam e faltam à sua obrigação, em lhes negar o que pedirem. Não era Paulo ministro que servisse em palácio, à sombra de tetos dourados, sem molhar o pé no mar nem o meter na campanha, mas era um ministro que, em serviço e honra de seu príncipe, pere­grinava e corria o mundo em roda-viva, desde levante até poente, sempre com o montante na mão, em perpétuas batalhas e conquistas, por mar e por terra, e suportando no mar tais tempestades e naufrágios, que talvez passou um dia e uma noite debaixo das ondas: Die ac nocte in profundo maris fui (2 Cor. 11, 25). E com que rosto — para que o digamos assim — ou com que palavras se atreveu Cristo a negar a um tal ministro o que lhe pedia? O mesmo S. Paulo as referiu, e são digníssimas de quem as disse: Et dixit mihi: Sufficit tibi gratia mea (2 Cor. 12, 9): Nego-te, Paulo, o que me pedes, porque te basta a minha graça. — Aos validos, e que logram a graça do príncipe, basta-lhes a mercê da mesma graça, e todas as outras se lhes podem negar confiadamente. Confiadamente digo, e pudera dizer que com ressaibos de desconfiança, porque o ministro que se não contenta com a graça, e além da graça quer outra mercê, não só é indigno da mercê, senão também da graça. Mas há muitos que não conhecem o preço dela, e por isso, com injúria da mesma graça e do príncipe, fazem da graça degrau para outros interesses, que é o mesmo que pisá-la.

Mas ouçamos o que diz S. Paulo da sua graça, que pode ser tenha alguma escusa: Gratia Dei sum id quod sum (2 Cor. 14, 10): Todo o ser que tenho o devo à graça de meu Senhor. — Assim o devem dizer e confessar ainda os que, por merecimentos seus, e não por nossos pecados, estiverem na graça, porque o contrário seria muita soberba, e maior ingratidão. Por diante: Et gratia ejus, continua Paulo, in me vacua non fuit: e a sua graça não foi em mim vazia. Aqui parece que entra a escusa. Logo, se a graça não há de ser vazia, há-se de encher? Por isso vemos os cheios da graça tão cheios: para se encher se aproveitam da graça. Mas Paulo não diz que se encheu a si com a graça, senão que a graça se encheu nele: Gratia ejus in me vacua non fuit. E como se encheu nele a graça? Muito havia mister para se encher, porque o vaso era muito grande: Vas electionis est mihi iste,[6] e assim o fez o famoso Paulo. Gratia ejus in me vacua non fuit, sed abundantius omnibus laboravi.[7] O modo com que a graça se encheu em mim, foi trabalhando e servindo não só muito, senão mais que todos. Porque essa é a diferença que hão de fazer aos demais os que estão na graça. Não se hão de encher com a graça, nem hão de encher a graça com mercês, senão com novos e maiores serviços. E segundo esta obrigação, bem lhes pode o príncipe negar o que pedirem, e eles prezarem-se muito dessas negações.

Os filósofos distinguem dois gêneros de negações: umas que se chamam puras negações, e outras a que deram nome de privações. A pura negação nega o ato, e mais a aptidão; a privação supõe a aptidão, e nega o ato. O silêncio é negação de falar, mas com grande diferença no homem e na estátua, porque a estátua não fala, nem é apta para falar, senão inepta: porém no homem é negação e privação, porque, ainda que o homem não fale, é apto e capaz de falar. Daqui se segue que, assim como o silêncio na estátua é incapacidade, e no homem virtude, assim o que se nega ao indigno é pura negação, a qual o afronta, e o que se nega ao digno é privação que o honra e acredita, e tanto mais quanto for mais digno. Tais são as negações que os príncipes fizeram e devem fazer aos seus validos. São privações com que não só se acredita a si, senão também a eles, porque o maior crédito do valido é que a sua privança seja privação. Por isso os validos, com mais nobre e heróica etimologia, se chamam privados. E quando eles folgarem de o ser, ou o príncipe fizer que o sejam, ainda que não folguem, as privações dos privados farão mais toleráveis as negações dos que o não são. E desenganados os demais com este exemplo, nem eles se atreverão a pedir o que se lhes deve negar, nem o príncipe será forçado a negar o que lhe pedirem, ficando livre por este meio de muitas e molestas ocasiões em que, contra o decoro e agrado da majes­tade, seja obrigado a dizer não.

§ IV

Segundo meio de atalhar o não: a justiça e inteireza do príncipe em seus despa­chos. A inteireza de Catão. Resposta de el-rei Acab a Isaias. Salomão e o castigo de Ado­nias. Razão da negativa de Cristo. O dar por justiça e o dar por graça. Não cuidem os príncipes que podem tudo porque podem tudo.

O segundo meio ou indústria de prevenir e atalhar o não e as ocasiões de odizeré que o príncipe em todos seus despachos e resoluções seja inteiro, justo e reto, e conhecido por tal. Desta justiça e inteireza– que por outra parte é a sua primeira obrigação– se seguirão dois efeitos notáveis. O primeiro, que ninguém se atreverá a pedir senão o que for justo; o segundo que, pedindo todos somente o justo, a todos concederá o príncipe o que pedirem, e nunca dirá não.

O mais justo, reto, inteiro e constante homem que houve entre os romanos foi Marco Pórcio Catão. E que conseguiu com esta inteireza e constância de sua justiça infle­xível? Conseguiu, como refere Plínio, que ninguém no seu consulado se atreveu a lhe pedir coisa que não fosse justa. Assim lho disse com admiração a eloqüência de Túlio: O te felicem, Marce Porce, a quo rem improbam petere nemo audet! Tal será a reverência do governo e tal a felicidade do rei que em todas suas resoluções e despachos observar cons­tantemente a justiça. Ajustiça, como a definem os teólogos e juristas, não é outra coisa que uma perpétua e constante vontade de dar a cada um o que merece. Se esta vontade — que ordinariamente é tão mudável nos afetos humanos — for constante e perpétua no príncipe, todos se desenganarão que não hão de alcançar dele senão o que for devido a seus serviços e proporcionado a seus merecimentos. E, por meio deste desengano, conseguirá a felicida­de de que ninguém se atreva a lhe pedir senão o que for justo. O te felicem, a quo rem improbam petere nemo audet! Feliz, porque, não se atrevendo ninguém a pedir senão o justo, senão muito menos as petições e requerimentos; feliz, porque, não pedindo ninguém senão o que lhe é devido, haverá com que satisfazer a todos; feliz, porque, sendo as peti­ções e requerimentos justificados, sempre o príncipe concederá o que se lhe pedir, e nunca dirá não. Não é melhor e mais decente, e mais breve, e mais útil, que o não o digam a si mesmos aqueles que haviam de pedir, do que dizer-lho a eles o príncipe depois de pedi­rem? Pois isso é o que sucederá, se ninguém se atrever a pedir senão o que merecer.

Disse Isaías a el-rei Acab, que, em prova do que lhe tinha anunciado, desde o céu até o inferno pedisse livremente o sinal que quisesse: Pete tibi signum a Domino in profundum inferni, sive in excelsum supra (Is. 7,11). E que responderia Acab? Non petam: Não pedirei tal coisa. — Assim o disse resolutamente, e assim o cumpriu. Mas por quê? Se o profeta o assegurava e exortava a que pedisse aquele sinal, e com tanta largueza de elei­ção quanta vai do céu ao centro da terra, porque não quer pedir Acab? Ele mesmo deu a razão: Non pecam, e non tentabo Dominum: Não pedirei tal coisa, porque não quero tentar a Deus. — Tentar a Deus é querer que Deus faça o que não deve,assim como o demônio nos tenta para que façamos o que não devemos. E fez este discurso Acab: Deus é justo e justís­simo, antes a mesma justiça; eu não lhe tenho feito nenhuns serviços — porque sirvo a outros deuses — para que me faça tamanhas mercês: pois como terei eu atrevimento para lhe pedir o que me promete Isaías? Isto será tentar a Deus, e querer que o justo e justíssimo faça o que não deve. E assim me resolvo a não pedir: Non pecam. — Seja o príncipe justo, e tão constantemente justo, que por nenhum outro motivo nem respeito, dê a ninguém senão o que merecer e lhe for devido, e logo os vassalos se não atreverão a pretender as sem-razões e exorbitâncias que vemos, e se benzerão de pedir, como de tentação: Non pecam, et non tentabo Dominum (Is. 7, 12).

Oh! se os reis, tantas vezes e tão injuriosamente tentados, ao menos não con­sentissem na tentação! Não digo que castiguem severamente algumas petições, posto que imitariam nisto a Salomão, o qual por uma petiçãozinha — que assim lhe chamou a interces­sora: Petitionem parvulam (3 Rs. 2, 20) — mandou cortar a cabeça a Adonias. E verdadeira­mente há petições que, bem interpretadas, são libelos infamatórios dos mesmos príncipes em cujas mãos se metem. Porque, se são dolosas, como era esta de Adonias, supõem que são néscios; se são exorbitantes, supõem que são pródigos; se são contra os cânones apos­tólicos — como são muitas — supõem que não são católicos. E de qualquer modo que peçam o que não é justo, supõem que são injustos. Mas se, antes de fazerem as petições, supuse­rem e se desenganarem que nenhuma coisa hão de conseguir, senão o que ditar a inteira e reta justiça, eles se comporão com a sua ambição, e tomarão por partido o não pedir: Non pecam. Notai onde está o non, e vede quanto mais conveniente é para o vassalo, e mais expediente para o governo, e mais decente para o rei, o não antes do pecam, que depois da petição. É mais conveniente para o vassalo, porque melhor lhe está que, desenganado, tome por si mesmo o não, e o ponha antes das suas petições, que ouvi-lo depois delas. É mais expediente para o governo, porque, cessando o tumulto e inundação dos requerimen­tos, que verdadeiramente afogam, terão mais fácil expedição os negócios. E finalmente é mais decente e decoroso para o rei, porque nenhum que vier buscar o prêmio ou o remédio aos pés da majestade, se apartará deles descontente. Virão a ser por essa via todas as peti­ções da nossa corte, como as que se despacham na do céu. Davi dizia a Deus: Intret postu­latio mea in conspectu tuo (S1.118,170): Entre, Senhor, a minha petição ao vosso conspec­to. — Nas cortes da terra deseja o pretendente que saia a sua petição; na do céu deseja que entre, porque uma vez que a petição foi tal que pudesse entrar, infalivelmente sai despacha­da. Assim será cá também, se ninguém pedir senão o que for justo, porque o rei justo à petição justa nunca pode dizer não.

Mas que fará o rei para adquirir este crédito e reputação universal de justo, e por meio dela evitar as petições e requerimentos injustos, sem os quais fique livre dos inconvenientes e dissabores do não? Digo que só o poderá conseguir aplicando o não tam­bém a si, e primeiro a si que aos súditos. E um grande documento do nosso texto, e digno de se reparar muito nele: Non est meum dare vobis: diz o Senhor que o dar não é seu; e o não primeiro cai sobre ele, que sobre os dois a quem negou o que pretendiam: primeiro sobre o meum, e depois sobre o vobis. Assim há de fazer o rei que quer ser justo, e ter opinião de tal. Cuidam os reis que o dar é seu, e o Rei dos Reis diz que não é seu o dar: Non est meum dare. Pois Cristo, enquanto Deus e enquanto homem, não é Senhor de tudo? Sim, é. Logo pode dar a quem quiser e como quiser? Distingo: com justiça, sim; sem justiça, não. Santo Ambrósio: Non est meum, qui justitiam servio, non gratiam: Eu dou por justiça e não por graça: por justiça é meu o dar, por graça, como vós quereis, não é meu: Non est meum dare vobis. A razão disto é porque Cristo fundou e ordenou o seu reino em tal forma, que nenhu­ma coisa se desse nele de graça e por graça, senão por merecimento e por justiça. Por isso S. Paulo chamou à coroa que o esperava, coroa de justiça, e que lha havia de dar o Senhor, não como Senhor, mas como justo juiz: Reposita est mihi corona justitiae, quam reddet mihi Dominus justus judex.[8] Os lugares da mão direita e esquerda que pretendiam os dois irmãos eram do reino de Cristo: Ad dexteram et sinistram in regno tuo (Mt. 20, 21). O modo por que o pediam não era por merecimento e por justiça, senão por graça e por parentesco: Dic ut sedeant hi duo filii mei:[9] e por isso respondeu o Senhor que não era seu o dar, porque o dar por justiça é seu, o dar por graça não é seu: Non est meum dare, qui justitiam servo, non gratiam.

Nenhuma coisa anda mais mal-entendida e pior praticada nas cortes que a distinção entre a justiça e a graça. Donde se segue que apenas há mercê da que se chamam graça, que não seja injustiça, e contenha muitas injustiças. Não nego que os reis podem fazer graças, e que o fazê-las é muito próprio da beneficência e magnificência real, mas isso há de ser depois de satisfeitas as obrigações da justiça. Zaqueu disse que daria a metade da sua fazenda aos pobres, e que da outra metade pagaria as suas dívidas, e os danos delas: Ecce dimidium bonorum meorum da pauperi­bus, et si quid aliquem defraudavi, reddo quadruplum.[10] Disse bem, mas perverteu e trocou a ordem, porque em primeiro lugar estava o pagar as dívidas, que é obrigação de justiça, e depois o dar as esmolas, que é ato de liberalidade. E que desordem seria, se se tomasse aos pobres, e não se pagasse aos credores? Que desordem seria — por lhe não dar outro nome — se a uns se tomasse violentamente o necessário, para se dar a outros prodigamente o supérfluo? Como o pagar é espécie de sujeição, e o daré soberania e grandeza, gostam mais os príncipes de dar, que de pagar. Dêem, mas dêem do seu, se o tiverem, que dar e não pagar é dardo alheio. E se os Zebedeus — que são os que levam as graças — os importunarem que dêem, respondam com Cristo: Non estmeum dare. O que perde, não só o governo, mas as consciências e almas dos príncipes é cuidarem que podem tudo, porque podem tudo. Se assim lho dizem, é lisonja, e se o crêem, é engano. O rei pode tudo o que é justo; para o que for injusto nenhum poder tem. Esta é a verdadeira e maior lisonja que se pode dizer aos reis, porque é fazê-los poderosos como Deus. Deus é onipotente, e poderá Deus fazer uma injustiça? De nenhum modo. Pois assim devem entender os reis que são podero­sos. E se os súditos se persuadirem que o rei assim o entende e assim o observa, nem eles, desen­ganados, pedirão senão o que for justo, nem o rei, importunado, terá ocasiões de dizer não.

§V

Terceiro meio de se cortarem as ocasiões de dizer não: a observância inviolável das leis. A inviolabilidade da lei da morte, e a árvore da vida. A dispensação que se concede a um, porque a pede, não se pode negar a outro, ainda que a não peça. O pedido do filho pródigo. Jacó e os pedidos de Raquel e Lia.

O terceiro meio de se cortarem as ocasiões de dizer não é a observância invio­lável das leis. Se as leis se conservarem em todo seu vigor, sem dispensação, sem privilé­gio, sem exceção de pessoa, o não di-lo-á a lei, e não o rei. As leis de Deus proibitivas, todas começam por não: Non occides; non maecaberis; non furaberis; non falsam testimo­nium dices.[11] Houve algum homem até hoje, por atrevido e insolente que seja, que fizesse petição a Deus para matar, para adulterar, para furtar, para levantar falso testemunho? Ne­nhum, porque estas leis são invioláveis e indispensáveis. Poiso mesmo sucederá ao príncipe, se conservar e mantiver as suas inviolável e indispensavelmente. E por este modo tão decoro­so e tão fácil se livrará de muitas ocasiões de dizer não, porque já o tem dito a lei.

Pronunciou Deus, depois do primeiro pecado, a lei universal da morte, à qual quis que ficasse sujeito Adão e todo o gênero humano, e no mesmo ponto em que fez a lei, fez também que fosse inviolável. A lei da morte parece inviolável de sua mesma natureza, mas naquele tempo podia-se violar facilmente, porque comendo Adão, e qualquer outro homem, do fruto da Arvore da Vida, ficava isento de morrer. E que fez Deus?Ne fortte sumat etuun de ligno vitae, et comedat, et vivat in aeternum (Gên. 3, 22): Por que não aconteça que Adão, assim como quebrou a primeira lei, comendo da árvore da ciência, quebre também a segunda, comendo da árvore da vida, e fique imortal: Collocavit ante paradisum cherubim, et flam­meum gladium, ad custodiendam viam ligni vitae:[12] Pôs à porta do paraíso um querubim com uma espada de fogo, para que, sem exceção, defendesse a entrada a todos, e se algum intentas­se eximir-se da lei de morrer, morresse primeiro. — Esta foi a ordem cerrada do querubim, e este o rigor indispensável da lei, da qual não quis Deus que fosse privilegiado nem seu próprio Filho. O privilégio chama-se em Direito vulnus legis, ferida da lei. E o poder e espada do legislador não há de ser para ferir as leis, senão para ferir, matar e queimar a quem intentar quebrá-las, que por isso a espada do querubim era espada, e de fogo. Bem pudera Deus cortar a Árvore da Vida, com que se escusavam todos aqueles aparatos de horror; quis porém que a árvore ficasse em pé, e a lei se guardasse contudo inviolavelmente, para que entendessem os legisladores que, ainda que eles possam dispensar nas leis, e o modo da dispensação seja fácil, nem por isso o hão de permitir. — Mas, Senhor, a árvore da vida está carregada de frutos: uns nascem, outros caem, e todos se perdem, podendo-se aproveitar com tanta utilidade. Oh! mal­ditas utilidades! Este é o engano que perde aos príncipes. Dispensam-se as leis por utilidades — que ordinariamente são dos particulares, e não suas — e abre-se a porta à ruína universal, que só se pode evitar com a observância inviolável das leis. Percam-se os frutos da árvore da vida, que são a mais preciosa coisa que Deus criou; percam-se as mesmas vidas, e não se recupere a imortalidade; morra e sepulte-se o mundo todo, mas a lei não se quebre nem se dispense.

E que se seguiu deste rigor indispensável da lei? Seguiu-se aquele desengano universal que pregou Davi: Quis est homo qui vivet, et non videbit mortem (SI. 88, 4): Que homem há que viva, e não haja de morrer? — E, desenganados uma vez os homens de que a lei era inviolável, sendo a morte a coisa mais aborrecida, e a vida a mais amada, ninguém houve jamais que se atrevesse, nem lhe viesse ao pensamento intentar ser dispensado para não morrer. Guardem-se as leis tão severa e inviolavelmente, que se desenganem todos que se não hão de dispensar, e como não que elas dizem se livrarão os príncipes de o dizer. Mas porque alguns príncipes são de tão bom coração, ou de tão pouco, que nem à mãe dos Zebedeus, nem a seus filhos se atrevem a dizer: Nescitis quid petatie,[13] eles tomam confiança para pedir, as petições saem despachadas, e o não das leis caem sobre elas, e não sobre o que proíbem. Tanto que o proibido se dispensa, logo a lei não é lei, não só porque o que se concede a um não se pode negar a outros, senão também, e muito mais, porque o que se concede a um, que o pede, também se há de conceder aos outros, ainda que o não peçam.

Pediu o filho pródigo a seu pai que lhe desse em vida a parte da herança que lhe pertencia: Pater, da mihi portionem substantiae quae me contingit (Lc. 15, 12). Bem mos­trou na petição o que havia de ser, ou o que já era. Vem cá, moço louco e atrevido, não sabes que os filhos não herdam a seus pais senão depois da morte? Pois como te atreves a pedir a teu pai que te dê a tua herança, estando vivo, e como se te mete em cabeça que ele te há de conceder uma coisa tão alheia de toda a razão e de toda a lei? Fiou-se no grande amor que o pai lhe tinha, e o amor, assim como é cego para conceder, assim é fraco para negar. Enfim o bom velho dispensou na lei comum, e deu-lhe a parte da herança que lhe pertencia, mas com uma circunstância notável, porque os filhos eram dois, e quando deu a sua parte a este, deu também a sua ao outro: Divisit illis substantiam.[14] Repara muito no caso S. Pedro Crisólogo, e admira-se com razão de que, sendo um só filho o que pediu esta dispensação, o pai a concedeu logo a ambos: Uno petente, ambobus totam substantiam mox divisit. Que o pai em sua vida dê a parte da herança a um filho, porque lha pede, muito tinha que duvidar, mas passe; porém a outro filho, que não teve tal desejo, nem pediu tal coisa, porque lhe dá também logo a sua parte, e não o deixa esperar pelo fim de seus dias? É certo que o pai não obrou prudentemente no que concedeu àquele filho, e mais, quando o devia conhecer; mas uma vez que lhe deu a ele a sua parte, procedeu coerentemente em dar também ao outro a sua, porque a dispensação que se concede a um, porque a pede, não se pode negar a outro, ainda que a não peça: Uno petente, ambobus mox divisit. É o caso do nosso Evangelho, mas decidido mais altamente por Cristo. Os apóstolos eram doze: dois pediram, dez não pediram, e se o Senhor concedesse aos dois o que pediam, porque pedi­ram, também o havia de conceder aos dez, posto que não pedissem. Pois assim como o pai do pródigo obrou coerentemente em conceder ao filho que não pediu o que tinha concedi­do ao que pedira, assim o Senhor, com mais alta coerência negou aos dois que pediram o que se não devia conceder, nem a eles, nem aos dez que não tinham pedido. O pai, pela petição de um, despachou a ambos; e Cristo, pelo despacho dos dois, respondeu a todos; mas o pai imprudentemente, porque relaxou a lei concedendo, e o Senhor divinamente, porque a estabeleceu negando.

Eu não nego que, em matéria de conceder e negar, pode haver maior razão em uns que em outros; mas a conseqüência de concederdes a outro, logo não me haveis de negar a mim, é argumento que se não solta com maior razão. Vendo-se Raquel estéril, e que sua irmã Lia tinha muitos filhos, pediu a Jacó que admitisse ao tálamo uma escrava sua, por nome Bala, para que os filhos que dela houvesse, por serem da sua escrava, fossem de algum modo seus (Gên. 30, 4, 5, 9). Já o casamento de Raquel lhe tinha custado a Jacíro casamento aborrecido de Lia, e agora lhe havia de custar o indecente de Bala; mas a tudo se' sujeita quem ama. Nasceram filhos a Bala, e não contente Lia com quatro legítimos que já tinha, pediu também a Jacó que admitisse outra escrava sua, chamada Zelfa. Há tal perse­guição de mulheres? Que vos parece que faria Jacó neste caso? Para conceder aquela con­solação a Raquel, além das obrigações do amor, alguma razão tinha; mas a Lia não amada e cercada de filhos? Contudo concedeu Jacó com esta segunda petição, e admitiu a Zelfa. Pois se Lia nenhuma razão tinha para o que pedia, e pedia só por emulação e apetite, um homem tão racional e tão justo como Jacó, por que lhe concede o que pede? Porque já o tinha concedido a Raquel. Se Jacó negara a Lia esta petição, havia-o de reconvir com a de sua irmã, e não havia de sofrer que se lhe negasse a ela o que a Raquel se tinha concedido. E posto que a disparidade era tão manifesta, como ser Raquel estéril e Lia fecunda, Lia ter tantos filhos e Raquel nenhum, nenhuma destas considerações havia de bastar para que Lia sossegasse, porque contra o argumento de negar a um o que se concede a outro, e contra a força — ou forçosa, ou forçada — desta conseqüência, não valem soluções de maior razão.

Persuada-se o príncipe que o que se concede a um, porque o pede, também se há de conceder aos outros, ainda que o não peçam. Entenda que as dispensações e privilé­gios, não só são feridas da lei, mas feridas mortais, e que a lei morta não pode dar vida à república; considere que as leis são os muros dela, e que, se hoje se abriu uma brecha por onde possa entrar um só homem, amanhã será tão larga que entre um exército inteiro. Olhe para as leis políticas, para as ordenanças militares, e para tantas pragmáticas econômicas, que, sendo instituídas para remédio, vieram por esta causa a ser descrédito. E seja a última e única resolução do príncipe justo, tratar as suas leis como suas, sustentando-as e manten­do-as em seu vigor inviolável e indispensavelmente, porque o que a lei nega a todos sem injúria, depois que se concede a um — ainda que seja com razão — não se pode negar a outro sem agravo. E é melhor, mais fácil e mais decente que as mesmas leis digam o não conser­vando-se, do que quebrá-las o príncipe pelo não dizer.

§ VI

 Quarto meio de evitar o não: antecipar os provimentos e não ter lugares vagos. Diligência da natureza em impedir o vácuo. S. Pedro e o lugar vago de Judas. O provimen­to da sucessão de Davi. D. João Segundo, o rei do Bom Memorial. Cristo aos Zebedeus responde que os lugares a que pretendiam já estavam providos. A política do céu: criar antes os oficiais que os ofícios.

O quarto e último meio ou indústria de evitar o não é antecipar os provimentos, e não ter lugares vagos, porque, tanto que o lugar está provido, cessam as pretensões. Admirável é a diligência e cuidado que a natureza põe em impedir o vácuo, e que em todo o universo não haja lugar vazio. A este fim vemos subir a água, descer o ar, mover-se a terra, romper-se os mármores, estalarem os brasões, e correrem todas as criaturas com ím­peto contra suas próprias inclinações. Daqui nascem os freqüentes terremotos, e os extra­ordinários e horrendos, que não poucas vezes derrubaram e destruíram cidades inteiras. O mesmo que faz a natureza por impedir o vácuo, faz a ambição pelo ocupar. Em havendo lugares vagos, de todas as partes concorrem tumultuariamente a eles os pretendentes, não por impedir — que só se impedem uns a outros — mas por ocupar o vácuo, e tanto com maior e mais violento ímpeto, quanto a natureza acode ao bem comum do universo, e a ambição ao particular de cada um. E quais sejamos terremotos e perturbações da república que aqui se levantam, basta que o digam as batalhas interiores de Roma no concurso dos consula­dos. No governo monárquico é muito fácil atalhar todos estes inconvenientes, antecipando o vácuo de tudo aquilo que se pode pretender ou pedir, com prevenir vigilantemente que não haja lugares vagos. E assim o deve fazer todo o prudente príncipe.

Partindo-se Cristo para o céu, mandou a seus apóstolos e discípulos que se recolhessem a Jerusalém, e que assim esperassem a vinda do Espírito Santo, que não tarda­ria muitos dias. Fizeram-no assim recolhidos ao cenáculo. E S. Pedro, que já tinha recebido a investidura de Príncipe da Igreja, sem esperar que o Espírito Santo viesse, a primeira e única coisa que logo fez, foi prover, como proveu em S. Matias, o lugar que estava vago pela morte de Judas. Ninguém haverá que se não admire desta notável resolução e ação de S. Pedro em tal lugar e tal tempo. O tempo em que os apóstolos se haviam de repartir pelo mundo não era chegado, nem havia de ser, como não foi, senão daí a alguns anos, depois de compostos e bem assentados os fundamentos de um tão grande edifício, como era o da nova e universal Igreja. Pois por que não dilata S. Pedro este provimento, ao menos por alguns dias, e por que não espera que desça o Espírito Santo sobre ele, para fazer com mais infalível acerto a eleição daquele lugar? Porque tanto importa, e tanto entendeu S. Pedro que importava que os lugares não estejam vagos, nem por um momento. Oportet foi a primeira palavra com que começou a sua proposta o grande Príncipe do Apostolado, e as últimas com que concluiu a sua oração: Accipere locum ministerii hujus et apostolatus, de quo praevaricatus est Judas, ut abiret in locum suum.[15] Os que ali se achavam, como nota o evangelista, eram cento e vinte homens — que bastava serem homens para se temer algum inconveniente: — Erat autem turba hominum simul fere centum viginti (At. 1, 15). Os que se converteram e se lhes agregaram, no mesmo dia em que desceu o Espírito Santo, foram três mil: Et appositae sunt in die ilia anima circiter iria millia (At. 2, 41). O número que depois acresceu foi muito maior, e em tanta multidão de gente, toda capaz de aspirar e pretender aquele lugar, se estivesse vago; bem se vê quão perigosa ocasião podia ser per­turbar a paz e esfriar a união dos que convinha que fossem, como verdadeiramente diz o Evangelho que eram: Cor unum, et anima una.[16] Pois, para prevenir este perigo, e os inconvenientes que dele humanamente se podiam temer, proveja-se logo o lugar — diz S. Pedro — e não esteja um momento vago; donde se seguirá que, vendo-o os presentes, e achando-o, os que vierem, provido, a todos se tire a ocasião de o pretender ou pedir. Nem se podia duvidar que o provimento, que parecia antecipado, e a eleição dele seria acertada, porque como S. Pedro, por razão do seu ofício, tinha segura a assistência do Espírito Santo — posto que o mesmo Espírito Santo desceu sobre todos visivelmente ao décimo dia — naquele mesmo dia desceu invisivelmente sobre S. Pedro, como já tinha descido, quando eficazmente lhe inspirou que não dilatasse o provimento.

Se assim o fizerem os príncipes seculares, a quem também por seu modo não falta a assistência do Espírito Santo, esta será uma discreta política, com que livrem aos pretendentes do trabalho ou tentação de pedir, e a si mesmos das ocasiões de negar. A maior e mais dificultosa ocasião que tem havido neste gênero foi o provimento da su­cessão de Davi. Queria Davi, e sabia, que era conveniente ao bem do reino que o seu sucessor fosse Salomão, e que assim o tinha Deus decretado. Contra isto estava ser Salomão ilegítimo e menor, e Adonias, seu competidor, não só legítimo; mas de todos os filhos de Davi, que então viviam, o primogênito, e como tal, assistido do séquito comum do Eclesiástico, e popular, e de grande parte da milícia. Era chegado o negócio a termos que, em um banquete, que naquele dia tinha dado Adonias a todos os príncipes e senho­res da sua parcialidade, já se lhe faziam os brindes à saúde de el-rei. Teve notícia disto naquela mesma hora Davi, e que resolução tomaria? — Sele-se, diz, a minha mula — que eram os cavalos de que então usavam os reis — monte nela Salomão, e, ungido pelo profeta Natã, saia por Jerusalém com trombetas e atabales diante, e digam todos: Viva el-rei. — Assim se executou no mesmo ponto. Ouviu-se no banquete com assombro o som das trombetas, soube-se o que se passava, retiraram-se cheios de medo os convida­dos, e todos no mesmo dia beijaram a mão a Salomão. Mas que razão deu de si Davi, e do que tinha mandado? Como respondeu ao direito e pretensão de Adonias? E como enfeitou ou adoçou o não de o não ter nomeado a ele? Nenhuma coisa lhe disse, nem teve necessidade de 1ha dizer, porque, vendo Adonias o lugar provido, compôs-se com sua fortuna, foi beijar a mão a Salomão, e nem a ele, nem a seu pai replicou uma só palavra. Tanto importa o pronto provimento dos lugares, para pôr silêncio à ambição dos pretendentes e também ao não dos príncipes.

A praxe desta política exercitou gloriosamente no nosso reino el-rei Dom João, o Segundo, digno de ser chamado Dom João, o do Bom Memorial, assim como Dom João, o Primeiro, se chamou o de Boa Memória. Tinha este prudentíssimo rei um memorial secre­to, no qual trazia apontados todos os que se avantajavam em seu serviço, ou fossem minis­tros do estado, ou da justiça; ou da fazenda, ou da guerra, e, segundo o merecimento de cada um, lhes tinha destinado os lugares e prêmios, assim como fossem vagando. Era pro­vérbio dos hebreus, de que também usou Cristo: Ubicumque fuerit corpus, illic congrega­buntur et aquilae (Lc. 17, 37): Onde houver corpo morto, logo ali correrão as águias. — Fala das águias vulturinas, que são aves de rapina, as quais têm agudíssima vista, e sutilíssimo olfato, e, em vendo ou cheirando corpo morto, logo correm a empolgar e cevar-se nele. Assim sucede com a ambição dos pretendentes a todos aqueles por cuja morte vaga ofício, comenda, vara, cadeira, mitra, governo, ou outro emolumento útil e pingue, em que empre­gar — não digo as unhas — as mãos. Mas que fazia nestes casos cotidianos o rei do bom memorial? Como nele tinha já destinadas as pessoas, a quem havia de fazer o provimento, respondia que já o lugar, ofício, ou benefício estava provido, e as águias, que corriam famintas aos despojos do morto, encolhiam as asas, embainhavam as unhas, e, ainda que queriam grasnar, tapavam o bico.

É o que aconteceu hoje aos nossos dois pretendentes. A razão com que Cris­to lhes tapou a boca foi com dizer que aqueles lugares já estavam destinados e dados a outrem: Non vobis, sed quibus paratum esta Patre meo, [17] Se vós soubéreis, que para se proverem os lugares do meu reino, não se espera que concorram os pretendentes a pedi-los, senão que muito antes disso estão já destinados, é certo que os não pretendereis nem pedireis; mas porque não sabeis este estilo do meu governo, por isso pedis, e não sabeis o que pedis: Nescitis quid petatis. No mesmo caminho em que se fez esta petição, acabava Cristo de dizer que ia a Jerusalém a morrer. João era a águia, e Diogo seu irmão, e, como lhe cheirou a corpo morto, também quiseram empolgar e aproveitar-se da oca­sião; mas ainda que os lugares que pediam tivessem sido do morto, e ele fora como os outros mortos que morrem e não ressuscitam, nem por isso sabiam o que pediam, porque o segredo altíssimo de destinar os lugares antes que vaguem faz que, ainda que morram as pessoas, os ofícios sempre ficam e estão vivos. Imitem pois os príncipes aquela regra universal da natureza: Corruptio unius est generatio alterius.[18] E assim como ela não permite que a matéria esteja sem forma, nem por um instante, assim eles tirem do mundo a vacância dos lugares, e não consintam que vaguem, ou estejam vagos um só momento, senão sempre providos e vivos.

Podem replicar a isto os nossos pretendentes que os lugares que pediam não eram vacantes, senão criados, ou que se haviam de criar de novo. Mas também esta instância se desfaz com o quibus paratum est, e com a prevenção ou predestinação dos providos. Deus, quando cria ofícios de novo, primeiro cria os oficiais que os ofícios, e assim já nascem providos, sem terem instante de vagos. No princípio do mundo criou três presidências, duas no céu, e uma na tema, mas primeiro criou os presidentes que as presidências. A primeira presidência do céu foi ado sol, para que presidisse ao dia, e a segunda ada lua, para que presidisse à noite; mas, antes que criasse estas presidências, já tinha criado um e outro presidente: Fecit duo luminaria magna: luminare majus ut praeesset liei, luminare minus, ut praeesset nocti (Gên.1, 16). A presidência da terra foi a do homem sobre todos os animais do mar, do ar e da mesma terra, mas também estava já criado o presidente, antes que criasse a presidência: Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram, et praesit piscibus maris, et volatilibus coeli, et bestiis, universaeque terrae. [19] O mesmo estilo observou Deus em todos os ofícios que criou de novo. Houve de criar de novo o reino de Israel, e primeiro criou o rei, e mandou ungir a Saul por Samuel, do que criasse e lhe desse o reino. Houve de criar de novo o oficio de restaurador do mundo, e primeiro, e cem anos primeiro, nomeou a Noé, e lhe mandou fabricar a arca, do que lhe desse e exercitasse o ofício. Não posso deixar de me lembrar neste passo de quantas vezes se têm visto as naus da Índia de vergas de alto, sem se saber, nem estar nomeado quem as há de governar. Nós começamos as nossas naus pela quilha; Deus começou a sua pelo piloto. Assim o fez também Cristo. Muito antes de morrer, nomeou a S. Pedro, e, depois de ressuscitar, lhe entregou a barca. Imitem esta política do céu os príncipes da terra; dos ofícios que se criarem façam primeiro os oficiais que os ofícios, e nos ordinários, e de sucessão, tenham-lhes prevenidos os sucessores, para que, vagando, não estejam vagos. E desta sorte, ativa e passivamente, cessará em grande parte o desagrado do não.

§ VII

 Como dizer não, quando é forçoso negar? A cizânia e a resposta do pai de famílias aos criados zelosos. Escusar um não com outro, como fez Labão a Jacó. Razões da escusa de el-rei Aquis a Davi.

Temos apontado os meios com que antecipadamente se podem atalhar ou diminuir as ocasiões de se dizer nem ouvir este tão duro advérbio. Mas porque se podem oferecercontudo algumas em que seja forçoso negar, vejamos agora o modo, ou modos, com que nos tais casos, com menos sentimento dos vassalos e menor mortificação do príncipe, se há de dizer não. El-rei, que está no céu, disse a um seu confidente, que tinha vinte e quatro modos de negar. Teve esta notícia um embaixador, que havia tempos requeria certo despacho, e com a confiança de criado antigo que tinha sido de Sua Majestade, deu uma nova instância com estas palavras: — Cá ouço que Vossa Majestade tem vinte e quatro modos de negar. Senhor, se Vossa Majestade tem vinte e quatro modos de negar, eu tenho vinte e cinco de pedir. — Quais fossem estes vinte e quatro modos de negar, eu o não sei, nem me ocorrem, mas como são e podem ser mais os modos de pedir, necessário será contra a importunidade dos pretendentes, repulsá-los talvez com um não mais ou menos desenganado, segundo o que pedir a matéria.

Primeiramente me parece que são merecedores de um não muito claro e muito seco certo gênero de alvitreiros, que, inventando e oferecendo novos arbítrios e indústrias de acrescen­tar o erário ou fazenda real, juntamente dizem — e aqui bate o ponto–que eles hão de ser também os executores, e para isso pedem meios e jurisdições. Nasceu cizânia, diz Cristo, entre a seara de um pai de famílias, o que vendo os criados, vieram logo mui zelosos encarecendo aquela perda da fazenda de seu amo, e oferecendo-se a ir mondar a seara e arrancar a cizânia: Ws, imus etcolligi­mus ea? Quereis, senhor, que a vamos colher (Mt. 13, 28)?– Colher, disseram, e não arrancar, porque estes zelos e oferecimentos sempre se encaminham à colheita. Respondeu o pai de famílias, sem lhes agradecer o cuidado. E que respondeu? Ait illis: Non. Disse-lhes: Não (Mt. 13, 29). Assim se há de responder com um não muito seco e muito resoluto a semelhantes propostas. O pai de famílias entendia melhor da lavoura que os criados. Os criados representavam a utilidade, e o amo reconhecia os inconvenientes; eles diziam que queriam mondar a seara, e ele reconheceu que haviam de arrancar o trigo: Ne colligentes zizania, eradicetis simul et triticum (Mt. 13, 29). Nem se há de fazer o que quereis, nem o haveis de fazer vós: far-se-á a seu tempo, e fá-lo-ão os segadores, que é seu ofício, e o entendem: In tempore messis dicam messoribus.[20] Quando os que não entendem as coisas, nem têm experiência delas, oferecem alvitres e se ofere­cem para os executar, sendo as utilidades só aparentes, as ocasiões intempestivas, e os danos certos–como ordinariamente acontece — despida-os opai de famílias a eles e às suas propostas, e diga-lhes um não muito resumido e muito claro: Ait illis: Non.

Em outras ocasiões de negar se costuma escusar um não com outro, e por que é modo muito ordinário e usado, não é bem que passe sem exame e sem censura. Negou Labão a Jacó o prêmio de sete anos de serviço, em que se concertaram, e em lugar de Raquel — que foi pior que negar — como quem paga com moeda falsa, lhe introduziu a Lia. Descobriu à luz do dia o engano, queixou-se Jacó a Labão de lhe não ter dado a Raquel: Nonne pro Raquel servivi tibí? [21] E que satisfação lhe daria Labão, que quer dizer o cândido? Desculpou um não com outro não, dizendo que não era costume da sua terra casarem em primeiro lugar as filhas segundas: Non est in loco nostro consuetudinis, ut minores ante tradamus ad nuptias (Gên. 29, 26). É costume da vossa terra não cumprir o prometido? É costume da vossa terra enganar? É costume da vossa terra mentir? É costume da vossa terra faltar à justiça e à razão, e dar por escusa que não é costume? Passemos da terra de Labão à nossa. Em toda aterra, como demonstra Aristóteles, élei natural que os sábios govemem e mandem, equeos que menos sabem, obedeçam e sirvam. Em toda a terra é lei natural, confirmada  com as civis, que os que forem mais eminentes em cada gênero subam aos maiores lugares e tenham os primeiros prêmios. Mas tira-se por exceção a nossa terra, na qual, para alcançar estes prêmios, e para subira estes lugares, não basta a eminência dos talentos nem dos merecimentos, se falta certo grau de qualidade, bastando só esta qualidade sem outro merecimento nem talento, para pretender e alcançar, ou alcançar sem pretender, os mesmos lugares. E se os estrangeiros se admiram e pasmam de ver que os homens que eles e o mundo venera, não ocupem aqueles postos, responde-se a este não com outro não: Non est in loco nostro consuetudinis.

Se um dos nossos pretendentes do Evangelho — e seja S. Tiago, que veio a Portugal — viera hoje, e, em lugar da cadeira que pediu, pretendera a de qualquer bispado do Reino, haviam-lhe de responder que no reino não, porque era filho de um pescador, que o maior favor que se lhe podia fazer era dar-lhe um bispado ultramarino, e logo lhe nomeariam satiricamente ode Meliapor, por ser na Costa da Pescaria. Se Josué, conquistador de trinta e três reinos, e de quem se prezou o sol de ser soldado, quisesse ser capitão-general, também lhe haviam de opor que tinha sido criado de Moisés; e José, o qual teve maior indústria que todos os homens, para adquirir fazenda a seu rei, e maior fideli­dade para a conservar, se quisesse ser vedor da fazenda, vede se lho consentiriam as ovelhas que tinha guardado seu pai? Não falo em Bartolo, se lhe viesse ao pensamento a regência da justiça, ou a Navarro, a da consciência, porque o segundo, tendo ensinado em Portugal com assombro de todas as universidades o que aprendeu nade Coimbra, foi a tomar por si o não, e ir morrer em terras estranhas, por que se lhe não dissesse na nossa: Non est in loco nostro consuetudinis. A censura deste que se chama costume, é que não é costume, senão abuso contrário à natureza, à razão, à virtude, e prejudicial à república, e que os príncipes que se escusam com este modo de não, ele não só os não escusa, mas acusa e condena mais, fazendo-os odiosos aos vassalos, ao mundo e ao mesmo Deus, o qual por isso fez a todos os homens filhos do mesmo pai e da mesma mãe.

Excluído, pois, este abuso particular da nossa terra, o modo que em todas e todos apro­vam, e os melhores políticos ensinam como o mais decente, é que, nas ocasiões de negar, para abran­dar a dureza do não, depois de mandar consultar as matérias, se escuse o sábio príncipe com seus conselhos. É necessário porém advertir neste meio, que deve ser aplicado com tal moderação e caute­la, que, por enfeitar o não, não se afeie a autoridade do rei nem o crédito dos conselhos, nem as mesmas razões da escusa. Negou el-rei Aquis a Davi a licença que lhe pedia para o servir em certa guerra como aventureiro entre suas mesmas tropas, e escusou o não com os seus conselheiros: Non places satrapis. [22] Porém, antes de chegara pronunciar este não, e depois dele, fez com juramento um protesto mais honrado para quem o ouvia, que para quem o jurava: Vivit Dominus guia rectus es tu, et bonus in conspectu meo, sed non places satrapis. Scio quia bonus es tu in oculis meis, sicut angelus Domini (1 Rs. 29, 6.9): Juro-vos, Davi, que no meu conceito sois reto e bom, e me pareceis tão bom e tão reto como um anjo de Deus; mas não contentais aos do meu conselho. — Quantas coisas se negam aos grandes sujeitos como Davi, não porque não sejam dignos e digníssimos delas, mas porque não contentam ao conselho dos reis. Se dissera que lhes não contentavam os oferecimentos de Davi, motivos podiam ter para isso, mas que lhes não contentava a pessoa: Non places? E se o conceito do rei era tão diverso, que o tem por homem justo  bom, e que mais lhe parece anjo que homem,porque se não conforma o rei antes como seu parecer, e com o seu juízo, que com o descontentamento dos conselheiros? E já que se conforma com eles na resolução, por que a intima a Davi, floreada de tantos louvores, que os mesmos louvores confutam e condenam a negativa? Tudo isso disse Aquis para enfeitar o não com que negava a Davi o que lhe pedia, mas, com estes mesmos enfeites, asseou primeiramente a autoridade e soberania de rei, porque, seguindo o voto dos conselheiros, contra o juízo e experiência própria, mostrou que era súdito dos seus conselhos, e não superior e senhor; asseou também o crédito dos mesmos conselhos, porque, dizendo que Davi lhes não contentava, mostrou quere governavam mais pelo aspecto das pessoas que pelo merecimento das causas;e asseou finalmente a mesma razão com que se escusava, porque, sendo os procedimentos de Davi tão retos, como ele reconhecia, jurava e tinha experimentados, eles mesmos desfaziam toda a chamada razão da escusa, e convenciam ser pretexto. Havendo pois o príncipe de se escusar ou escudar com os seus conselhos, diga que mandou considerar a matéria, e que se conformou com eles, e não diga mais.

§ VIII

  

Aleguem os príncipes herdeiros os decretos e disposições dos pais, como fez Cristo aos dois irmãos Zebedeus. Causas do infausto reinado de Roboão, filho de Salomão. Jacó e a bênção de Manassés e Efraim.

Isto é, Senhor, o que prudentemente ensina a política humana, confirmada mais alta­mente com os documentos da sagrada, que tenho referido; o meio porém que sobre todos repre­sento e ofereço a Vossa Alteza, para a feliz administração do cetro, que com particular providência pôs nas reais mãos de Vossa Alteza a divina, é o exemplo do Filho de Deus nas palavras que tomei por tema, tão próprias do tempo, circunstâncias e ocasião presente, que parecem ditadas e escritas só para ela. Negou Cristo aos dois irmãos os lugares que pediam, e o meio com que lhes adoçou a eles o não, e com que o fez decoroso e decentíssimo para si, foi com alegar os decretos e disposi­ções de seu pai: Non est meum dare vobis, sed quibus paratum est a Patre meo: Não é meu — diz o Senhor — conceder-vos o que pedis, porque esses lugares já meu Pai os decretou para outros, — e assim como dele herdei o poder, assim dele hei de seguir e confirmar os decretos. Isto é o que devem imitar os príncipes herdeiros, e tanto mais gloriosamente, quanto filhos de pais mais gloriosos. É conseqüência natural, que, com o sol que se põe, se escureçam uns lugares, e com o que nasce se alumiem outros, e esta é a alva ou o alvo das pretensões no oriente dos reis que começam, e ocaso dos reis que acabam. Mas o príncipe que teve a fortuna de suceder a um pai tão digno das saudades dos vassalos, como da imitação dos filhos, com se referir às eleições de seu pai, se livra de inovar outras. Se João e Diogo, o a por si ou por outrem, fizerem instâncias, responda com o formulário do Rei dos Reis: Non vobis, sed quibus paratum esta Patre meo; e ser-lhe-á tão fácil o não, como decoroso e reverente.

Haverá, não duvido — como sempre há nos novos reinados — ambições desejosas de se introduzir, que aconselhem e persuadam o contrário. Mas quais sejamos efeitos destas novidades que tão docemente se ouvem, e tão facilmente se abraçam, bem o podem ver os conselheiros e os aconse­lhados, e sacramentar– se quiserem– no novo e infausto reinado de Roboão, filho de el-rei Salomão, por cuja morte o juraram todas as doze tribos de Israel nas cortes de Siquém. Assentaram também nas mesmas cortes pedir ao novo rei os aliviasse dos tributos que pagavam no tempo de seu pai, os quais, por ocasião das fábricas, assim do Templo como dos palácios reais, e muito mais pela excessiva despesa com que Salomão sustentava tanto número de rainhas, chegaram a ser insuportáveis. Feita esta petição, diz o texto sagrado que chamou Roboão a conselho os velhos do tempo de seu pai, e que todos lhe aconselharam concedesse benignamente aos povos o que tão justamente pediam, porque assim lhes ganharia as vontades, e se conservaria no reino. Não se aquietando porém Roboão com este conselho, diz o mesmo texto que consultou o negócio com os moços, com quem se tinha criado e o assistiam, e que, aconselhado por eles, respondeu ao povo que o seu dedo meiminho era mais grosso que seu pai pela cintura, e que, conforme esta diferença da sua grandeza, não só lhes não havia de moderar o açoite dos tributos, mas que, se as correias no tempo de seu pai eram de couro, no seu haviam de ser de faro: Pater meus caecidit vos flagellis, ego autem caedam vos scorpionibus.[23] Este foi o conselho, e esta a resposta e o sucesso em suma, qual se podia esperar de tal resposta e de tal conselho. Porque das doze tribos que juraram a Roboão parei, as dez lhe negaram logo a obediência, e a deram a Jeroboão, criado que tinha sido de seu pai, querendo antes ser vassalo de um criado de Salomão, que de um tal filho de Salomão.

E se buscarmos a origem de tão infeliz e desastrado sucesso, em que um rei, sem batalha, perdeu as dez partes do seu reino, para si e para todos seus descendentes, em uma hora, acharemos que foi por não querer conservar os ministros antigos que assistiam ao lado de seu pai, e tomar outros. Assim o diz e pondera a Escritura: Reliquit consilium senun, qui assistebant coram Salomone patre ejus, cum adhuc viveret, et adhibuit adolescentes, qui nutriti fuerot cum eo, et assistebant illi. [24] Notai este e aquele assistebant. A causa próxima da ruína de Roboão foi deixar o maduro conselho dos velhos experimentados, e tornar o dos moços orgulhosos e sem experiência. Mas a origem dessa mesma causa esteve num passo mais atrás, que foi mudar os ministros que assistiam ao lado de seu pai: Qui assistebant coram Salomone patre ejus; e criar de novo aqueles com que se tinha criado, para que o assistissem a ele: Qui nutriti fuerant cum eo, et assistebant illi. A última decocção dos negócios faz-se entre ministros que estão ao lado dos reis, como se viu neste mesmo caso, e se os mesmos que assistiamaSalomão assistissem a seu filho, o voto destes havia de ser o que prevalecesse, e os povos ficariam contentes, o reino inteiro, o rei obedecido e amado, e Roboão, que dizia que era maior que seu pai, tão grande como ele.

Nem deve passar sem advertência a repetição enfática com que o texto sagrado, depois de dizer:Assistebant coram Salomone, acrescenta: Pane ejus. Parece desnecessária esta nova expres­são, pois de toda a narração da história constava ser Salomão pai de Roboão. Mas foi nota e pondera­ção digníssima de se não dissimular, como de uma maior circunstância, que notavelmente agrava o caso. Porque, ainda que os ministros, de quem Salomão em sua vida se tinha servido junto à sua pessoa, por serem ministros do rei mais sábio que teve o mundo, mereciam ser estimados, honrados e conservados no lugar que com ele tinham, só por serem ministros de seu pai ainda que esse pai não fora Salomão, se devia Roboão servir deles, e tê-los sempre junto a si, e fazer maior confiança da sua fidelidade, da sua verdade, do seu zelo, e do seu amor, que do de todos os outros: Amicum tuum, et anricum patris tui ne dimiseris (Prov. 27, 10), diz o Espírito Santo, por boca do mesmo Salomão: O amigo que foi amigo de teu pai não o apartes de ti. — E que mais têm os amigos que foram amigos dos pais, do que os amigos novos e particulares dos filhos? Têm de mais aquela diferença que há entre o certo e o duvidoso. Os amigos novos, que os filhos elegem, poderá ser que sejam bons e fiéis amigos; mas os que foram amigos dos pais, já é certo que o são, porque estes já estão experimentados e provados; aqueles ainda não. Até em Deus tem sua força esta conseqüência. Quando Deus apareceu a Moisés na sarça, não sabendo ele quem era, disse-lhe: Ego sum Deus Patris tui (Ex. 3, 6): Eu sou o Deus de teu pai; — irás libertar o povo, edir-lhe-ás, para que te dêem crédito que o Deus de seus pais te manda: Deus patrum vestronun misit me ad vos (Ex. 3, 13). Queria-os libertar do cativeiro de Faraó, e, para os assegurar deste grande benefício, não só disse que era Deus, que o podia fazer, mas que era Deus de seus pais, para que estivessem certos que o faria. Por isso disse sabiamente Isócrates que os mais seguros amigos são os que se herdaram. A amizade dos que se fazem de novo é duvidosa; a dos que se herdaram, e vem de pais a filhos, certa. E daqui conclui este famosíssimo filósofo: Liberos haeredes esse non modo facultatum, sed amicitiarum paternarum: Que os filhos não só são e devem ser herdeiros da fazenda dos pais, senão também dos amigos. Se Roboão, assim como herdou a coroa, herdara também os amigos de seu pai, ele não perdera o reino; mas porque, herdando o reino, quis fazer novos amigos, eles o perderam.

Quando estes se quiseram introduzir à assistência da pessoa e lugares do lado de Roboão, facilmente, e sem os escandalizar, lhes pudera ele dizer que estavam diante os que tinham servido a seu pai, e de quem ele tinha feito eleição: Non vobis, sed quibus paratum esta Patre meo. Mas o enn de Roboão esteve em que os que se tinham criado com ele a primeira coisa que lhe persuadiram foi que as suas eleições haviam de ser melhores. Por que, se puderam tanto com as suas lisonjas, e se cegou tanto com elas o pobre moço, que se persuadiu e se atreveu a dizer que o seu anel tinha maior roda que o cinto de seu pai, como lhe não meteriam também em cabeça que, sendo seu pai Salomão, sabia mais que ele? Esta é a cegueira em que ordinariamente caem os filhos dos reis, e por isso, em sucedendo no governo, mudam criados e ofícios, e quanto seus pais tinham ordenado, não advertindo que em matéria de prover lugares, sabem mais os pais com os olhos fechados, que os filhos, por mais sábios que sejam, com eles abertos. Estava Jacó já cego com a velhice, quando seu filho José lhe presentou os dois netos, Manassés e Efraim, para que lhes lançasse a bênção. Era Manassés o maior, e por isso lho pôs José à mão direita, como a Efraim, porque era o menor, à esquerda; porém Jacó cruzou e trocou as mãos, epôs a direita sobre a cabeça de Efraim, e a esquerda sobre a de Manassés. — Não, senhor — replicou José — que este sobre que pondes a mão direita é o menor, e o maior fica à esquerda — E que responderia Jacó? Que responderia o pai cego? Scio, fili mi, scio (Gên.48,19): Bem sei, filho meu, qual é o maior e o menor, e bem sei também o que faço. Sei qual é o maior e o menor, porque sei o que vós vedes, e sei também o que faço, porque sei o que não vedes. Vós vedes só as idades desses dois meninos: eu vejo-lhes as idades, e mais as fortunas. E porque a fortuna de Efraim há de ser muito maior que a de Manassés, por isso ponho a mão direita sobre o que vós tendes por menor, e a esquerda sobre o outro. José era tão sábio, como todos sabem, e como experimentou e admirou o Egito, onde sucedeu este caso. E contudo Jacó, estando cego, via duas vezes mais que José, e sabia duas vezes mais que ele: Scio, fili mi, scio: porque mais sabe, como dizia, um pai com os olhos fechados,que o mais sábio filho com eles abertos. Cuidem os filhos, e não desconfiem de que se cuide que seus pais sabem mais que eles.

Uma vez perguntaram os discípulos a Cristo, quando havia de restituir o Reino de Israel, e outra vez, quando havia de ser o dia do Juízo, e de ambas as vezes se escusou o Senhor com responder que estes segredos só os sabia seu pai. Pois, Mestre divino, em quem o mesmo pai têm depositado os tesouros de sua sabedoria, não sabeis vós também estes dois segredos? Sim, sei: mas sei-os para os guardar, não os sei para os dizer. Excelen­te solução, e esta é a verdadeira destes dois textos. Será bem, contudo, Senhor, que cuidem os vossos discípulos que não sabeis tudo? Como a comparação não é mais que entre meu Pai e mim, cuidem embora. Nenhum filho deve desconfiar de que se cuide que seu pai sabe mais que ele. E assim o há de entender e supor, como também Cristo o supunha, enquanto homem. E se alguém me replicar que este, ou sejaconhecimento, ou modéstia, não é tão decente nem tão decorosa nos outros filhos, como em Cristo, porque seu pai é Deus, digo que os outros pais, em respeito de seus filhos, também são deuses, ou, quando menos, que os filhos os devem estimar e venerar como tais, para seguir seus ditames: Filii probi parentes suos tanquam deos quosdam visibiles colunt, et observant, diz Filo: Os bons filhos reveneram a seus pais como deuses visíveis, e como de tais, observam seus exemplos. — Esta sentença tomou-a o Platão dos hebreus do Platão dos gregos, o qual chamou aos pais domestica numina, deuses domésticos, e acrescenta que os ditames dos pais, como de deuses, hão de ser recebidos e observados dos filhos, não como conselhos ou preceitos, senão como oráculos: Parentum dogmata a filiis velut oracula excipienda sunt. Finalmente, por que não faça dúvida esta doutrina, que Platão ditou sem fé de Deus, e Filho sem fé de Cristo, e para que dela possamos colher e gozar os abundantes e felicíssimos frutos que nossas esperanças nos prometem, fechemos este tão importante discurso com o oráculo irrefragável do Espírito Santo, o qual mandou pregar pelo filho de Sirac a todos os filhos: Judicium patris audite, filii, et sic facite, ut salvi sitis [25] : Filhos, ouvi o juízo de vosso pai, e fazei-o assim, para que vos conserveis nesta vida, e vos salveis na outra.

 

[1] Não me pertence a mim o dar-vo-lo, mas isso é para aqueles para quem está preparado por meu Pai (Mt. 20, 23).

[2] Excitou-se entre eles a questão sobre qual deles se devia reputar o maior (Lc. 22,

24).

[3] Onde eu estiver, estará ali também o que me serve (Jo. 12, 26).

[4] Hoje serás comigo no Paraíso (Lc. 23, 43).

[5] Por cuja causa roguei ao Senhor três vezes (2 Cor. 12, 8).

[6] Este é para mim um vaso escolhido (At. 9, 15).

[7] A sua graça não tem sido vã em mim, antes tenho trabalhado mais copiosamente que todos (2 Cor. 15, 10).

[8] Pelo mais me está reservada a coroa da justiça, que o Senhor, justo juiz, me dará (2 Tim. 4, 8).

[9] Dize que estes meus dois filhos se assentem no teu reino, um à tua direita, e outro à tua esquerda (Mt. 20, 21).

[10] Estou para dar aos pobres metade dos meus bens, e naquilo em que eu tiver defraudado a alguém, pagar-lho-ei quadruplicado (Lc. 19, 8).

[11] Não matarás, não fornicarás. não furtarás, não dirás falso testemunho (Êx. 20,13 ss).

[12] Pôs diante do Paraíso um querubim com uma espada de fogo, para guardar o caminho da árvore da vida (Gên. 3, 24). 

[13] Não sabeis o que pedis (Mt. 20, 22).

[14]  Repartiu entre ambos a fazenda (Lc. 15, 12).

[15] Para que tome o lugar deste ministério e apostolado, do qual, pela sua prevaricação, caiu Judas para ir ao seu lugar (At. 1, 25).

[16] O coração era um e a alma uma (At. 4, 32).

[17] Não me pertence a mim o dar-vo-lo, mas isso é para aqueles para quem está preparado por meu Pai (Mt. 20, 23). 

[18] A corrupção de uns é a geração de outros.

[19] Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, o qual presida aos peixes do mar, às aves do céu, aos animais selváticos, e a toda terra (Gên. 1, 26).

[20] No tempo da ceifa direi aos segadores (Mt. 13, 30).

[21] Porventura não te servi eu por amor de Raquel? (Gên. 29, 25.)

[22] Tu não agradas aos príncipes (1 Rs. 29, 6).

[23]  Meu pai açoitou-vos com correias, e eu açoitar-vos-ei com escorpiões (3 Rs. 12, 14).

[24] Abandonou o conselho dos velhos que faziam corte a Salomão, seu pai, quando este ainda vivia, e consultou os moços que tinham sido criados com ele, e que lhe assistiam (3 Rs. 12, 6, 8).

[25] Ouvi, filhos, os avisos de vosso pai; e segui-os de sorte que sejais salvos (Eclo. 3, 2)

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística