Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão de Santo Antônio, em Roma, de Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO

Pregado em Roma, na Igreja dos Portugueses, e na ocasião em que o Marquês das Minas, Embaixador extraordinário do Príncipe nosso Senhor, fez a Em­baixada de Obediência à Santidade de Clemente X.

Vos estes lux mundi[1].

§I

Um português italiano e um italiano português celebra hoje Itália e Portugal. Como o sol, Santo Antônio nasce em uma parte e sepulta-se em outra. O que vê a Itália em Pádua, e o que vê em Lisboa Portugal. Argumento: Santo Antôaio foi luz do mundo porque foi verdadeiro português, e foi verdadeiro português porque foi luz do mundo.

A um português italiano e a um italiano português, celebra hoje Itália e Portugal. Portugal a Santo Antônio de Lisboa: Itália a Santo Antônio de Pádua. De Lisboa, porque lhe deu o nascimento; de Pádua, porque lhe deu a sepultura. Assim foi, mas eu cuidava que não havia de ser assim. José, o prodigioso, José, o que tanto cresceu fora de sua pátria, mandou que seu corpo fosse levado a ela, e não ficasse no Egito. Em Egito obrou as maravilhas, em Egito recebeu as adorações, mas não quis que descansassem os seus ossos na terra onde reinara, senão na terra onde nascera. Quis que conhecesse a sua pátria que estimava mais a natureza que as fortunas.

Antes quis uma sepultura rasa. em sete pés da terra própria, que os mausoléus e as. pirâmides egípcias na estranha. Assim cuidava eu que à lei de bom português devia fazer também Santo Antônio, mas quando por parte da pátria me queria queixar do seu amor, atalhou-me o Evangelho com a sua obrigação: Vos estis luxmundi. Reparai, diz o evangelista, que Antônio foi luz do mundo. Foi luz do mundo? Não tem logo que se queixar Portugal. Se Antônio não nascera para sol, tivera a sepultura onde teve o nascimento; mas como Deus o criou para luz do mundo, nascer em uma parte, e sepultar-se na outra, é obrigação do sol. Profetizando malaquias o nascimento de Cristo, diz que nasceria como sol de justiça: Orietur vobis sol justitiae (Mal. 4, 2). E que fez Cristo como sol, e como justo? Como sol, mudou os horizontes; como justo, deu a cada um o seu. Como sol mudou os horizontes, porque nasceu num lugar e morreu noutro; como justo deu a cada um o seu, porque a Belém honrou com o berço, a Jerusalém com o sepulcro. Assim também Antônio. Se Lisboa foi a aurora do seu oriente, seja Pádua a sepultura do seu ocaso.

Levante Pádua glorioso mausoléu às sagradas relíquias de Antônio, e veja-se esculpida nas quatro fachadas dele a obediência dos quatro elementos sujei­tos a seu império. A terra com os animais prostrados, o mar com os peixes ouvintes, o ar com as tempestades suspensas, o fogo com os incêndios parados. Pendurem-se nas pirâmides por troféus os despojos inumeráveis de sua beneficência: as bandeiras dos vencedores, as âncoras dos naufragantes, as cadeias dos cativos, as mortalhas dos ressuscitados, e dos enfermos de todas as enfermidades, os votos. Dispa-se a fama para fazer cortinas a este sacrário, bordadas —  como fazia a antigüidade —  de olhos, de línguas e de orelhas. Das orelhas, com que deu ouvidos a tantos surdos; dos olhos, com que restituiu a vista a tantos cegos; das línguas, com que desimpediu a fala a tantos mudos. E por alma de todo este corpo milagroso, veja-se —  como hoje se vê —  e adore-se em custódia de cristal a mesma língua de Antônio, depois da morte, viva, antes da ressurreição. ressuscitada, apesar da terra, incorrupta, apesar das cinzas, inteira, apesar da sepultura, imortal, e apesar dos tempos, eterna.

Isto é o que vê Itália em Pádua. E em Lisboa, que vê Portugal e o mundo? Não se vêem ali muitos milagres: vê-se ali um só milagre; não se vêem os milagres do santo; vê-se o milagre dos santos. Vê-se Antônio sobre os altares, com as mãos carregadas de memoriais, como primeiro valido de Deus, e como bom valido, des­pachados logo. Vê-se a casa onde nasceu, convertida e consagrada com magnificênciareal em suntuoso templo, e vê-se, com religiosa razão de estado, fundado sobre as abóbadas do mesmo templo, o Capitólio ou Senado daquela triunfante cidade, da­quela cidade, digo, que, depois de pôr freio ao nunca domado oceano, descobriu, conquistou e sujeitou, e uniu à Igreja Romana aqueles vastíssimos membros do corpo do mundo, de que Roma já se chamava a cabeça, mas ainda o não era.

Neste templo e naquele sepulcro se vê dividido Antônio entre Portugal e Itália; nestes dois horizontes tão distantes se vê dividida a luz do mundo entre Pádua e Lisboa. Gloriosa Pádua, porque pode dizer: Aqui jaz. Gloriosa Lisboa, porque pode dizer: Aqui nasceu. Mas qual das duas mais gloriosa? Não quero decidir a questão: dividi-la sim. Fiquem as glórias de S. Antônio de Pádua para a eloqüência elegantíssima dos oradores de Itália. E eu, que me devo acomodar ao lugar e ao auditório, só falarei hoje de S. Antônio de Lisboa.

Para louvor, pois, do santo português, e para honra e doutrina dos portu­gueses que o celebramos. reduzindo estes dois intentos a um só assunto, e fundando tudo nas palavras do Evangelho: Vos estis lux mundi, será o argumento do meu discurso esse: que Santo Antônio foi luz do mundo porque foi verdadeiro portu­guês, e que foi verdadeiro português porque foi luz do mundo. Declaro-me: bem pudera Santo Antônio ser luz do mundo, sendo de outra nação, mas, uma vez que nasceu português, não fora verdadeiro português, se não fora luz do mundo, porque o ser luz do inundo nos outros homens é só privilégio da graça; nos portugueses .é também obrigação da natureza. Isto é o que hoje hão de ouvir os portugueses de si e do seu português. Ave Maria.

§ II

Ser luz do mundo, graça universal da nação portuguesa. Portugal, único reino do inundo findado e instituído por Deus. A instituição da Igreja em S. Pedro, e a instituição do Reino de Portugal em D. Afonso Henriques. El-rei D. Afonso Henriques e Gedeão. O aome de Pedro e o nome dos portugueses.

Vos estis lux mundi.

Fala Cristo nestas palavras com os apóstolos, e neles com todos seus sucessores, os varões apostólicos. E porque a obrigação do ofício apostólico é alu­miar o mundo com a luz do Evangelho, por isso lhes dá Cristo por título o mesmo caráter da sua obrigação, chamando-lhes luz do mundo: Vos estis lux muadi. Esta prerrogativa tão gloriosa, que nas outras nações é graça particular das pessoas, nos portugueses não só é particular das pessoas, senão universal de toda a nação. A Pedro e a João disse Cristo que eram luz do mundo, mas, ainda que Pedro e João eram galileus, não o disse a toda Galiléia. A Basílio e Atanásio disse Cristo que eram luz do mundo, mas, ainda que Basílio e Atanásio eram gregos, não o disse a toda Grécia. A Cipriano e Agostinho disse Cristo que eram luz do mundo, mas, ainda que Cipriano e Agostinho eram africanos, não o disse a toda a África. A An­tônio, porém, disse Cristo que era luz do mundo, e não só o disse a Antônio, que era português, senão também a todos os portugueses. E qual é, ou qual pode ser a razão desta diferença tão notável? A razão é porque os outros homens, por instituição divina, têm só obrigação de ser católicos: o português tem obrigação de ser católico e de ser apostólico; os outros cristãos têm obrigação de crer a fé: o português tem obrigação de a crer, e mais de a propagar. E quem diz isto? São Jerônimo ou Santo Ambrósio? Não: o mesmo Cristo, que disse: Vos estis lux mundi.

É glória singular do Reino de Portugal que só ele, entre todos os do mundo, foi fundado e instituído por Deus. Bem sei que o Reino de Israel também foi feito por Deus, mas foi feito por Deus só permissivamente, e muito contra sua von­tade, porque teimaram os israelitas a ter rei, como as outras nações; porém o Reino de Portugal, quando Cristo o fundou e instituiu, aparecendo a el-rei —  que ainda o não era —  Dom Afonso Henriques, a primeira palavra que lhe disse foi: Volo: que­ro[2]. Como o Reino de Portugal havia de ser tão filho da Igreja Católica, e lhe havia de fazer no mundo tão relevantes serviços, quis Cristo que a sua instituição fosse muito semelhante à da mesma Igreja. A S. Pedro disse Cristo: Tu es Petrus, et super hanc petram adificabo Ecclesiam mean[3]a D. Afonso disse Cristo: Volo ia te, et ia semiae tuo imperium mihi stabilire. A Pedro disse: Quero fundar em ti uma Igre­ja, não tua, senão minha: Ecclesiam meam. A Afonso disse: Quero fundarem ti um império, não para ti, senão para mim: Imperium mihi. A Pedro, na instituição da Igreja, não disse: In te, et in semiae tuo, porque, como o império da Igreja era uni­versal sobre todas as nações do mundo, quis que todas as nações tivessem direito à eleição da tiara: o hebreu. como Pedro, o grego, como Anacleto, o romano, como Gregório, o alemão, como Vítor, o francês, como Martinho, o espanhol, como Calixto, o português, como Dâmaso. Mas na instituição do Reino de Portugal disse Cristo: Ia te, et in semine tuo, porque, como era reino particular de uma só nação, quis que fosse hereditário e não eletivo, para que se continuasse na sucessão e descendência do mesmo sangue. E por que tudo isto, e para quê?

Não para o fim político, que é comum a todos os reinos e a todas as nações, senão para o fim apostólico, que é particular deste reino e desta nação. O mesmo Cristo o disse nas palavras com que o instituiu: Ut deseratur nomem mcuta ia exteras gentes: para que, por meio dos portugueses, seja levado meu nome às gentes estranhas. —  Ainda então não sabia o mundo que gentes estranhas fossem estas, mas daí a 400 anos, quando também o mundo se conheceu a si mesmo, então o soube. Vede se foi instituição Apostólica. De S. Paulo disse Cristo: Ut portei nomem meum coram gentibus[4]dos portugueses disse o mesmo Cristo: Ut deseratur nomem meum in exteras gentes. Aos apóstolos disse Cristo: Videte regioaes, guia alba sunt ad roessem[5]e aos portugueses disse o mesmo Cristo: Ut sint messores mei ia terás longinquis[6]E notai que disse nomeadamente messores: sega­dores, porque se havia de servir também do seu braço e do seu ferro. Quando Cristo apareceu a el-rei D. Afonso, estava ele na sua tenda lendo a história de Gedeão, não só com um, mas com dois mistérios: Primeiro, para que o rei não desconfiasse da promessa, vendo que os seus portugueses eram poucos. Segundo, para que os mesmos portugueses entendessem que, como soldados de Gedeão, em uma mão haviam de levar a trombeta, e na outra mão a luz (Jz. 7, 20). A Pedro chamou-lhe Cristo Cephas: pedra (Jo. I, 42), em significação do que havia de ser; os portugueses primeiro se chamaram Tubales, de Tubal, que quer dizer mundanos, e depois chamaram-se lusitanos; lusitanos, para que trouxes­sem no nome a luz: mundanos para que trouxessem no nome o mundo, porque Deus os havia de escolher para luz do mundo: Vos estis lux mundi.

§ III

Os cinco movimentos particulares da luz de Santo Antônio. Primeiro: mudar de religião: Por que deixou S. Antônio a S. Agostinho para seguir S. Francisco? As sagradas quinas, brasão e armas de Portugal. As quatro chagas dos cravos e a incredulidade de S. Tomé. As cinco pedras de Davi e as cinco chagas de Cristo.

Suposta esta verdade tão autêntica, para que vejamos distintamente quão bem se desempenhou Santo Antônio da obrigação de verdadeiro português, e do título de luz do mundo, considero eu na sua luz cinco movimentos muito particula­res: 1. mudar de religião; 2. deixar a pátria; 3. embarcar-se e meter-se no mar; 4. dedicar-se a vida à conversão dos infiéis; 5. vir a Roma, onde estamos, e dar obediência ao Vigário de Cristo, como Portugal lha deu agora solenemente, e com tanta soleni­dade. Parecem muitos os movimentos, mas como são de luz, serão breves.

Não há coisa que mais pareça contrária à santidade que a mudança da vocação. Santo Antônio era religioso da sagrada Ordem de Santo Agostinho: ali se graduou de luz, e ali havia de ser. Pois por que muda de hábito e de profissão? Se o fez pela clausura de cônego regrante, para sair, como luz, ao mundo, passara-se aos eremitas, debaixo da mesma regra de Santo Agostinho. Por que deixa logo o seu patriarca, e entre todos os patriarcas escolhe a S. Francisco? Porque era português, e resoluto a alumiar o mundo, havia de ser debaixo das quinas de Portugal, debaixo da bandeira das cinco chagas. O mesmo Santo Agostinho, seu padre, chamou as chagas de Cristo bandeiras de luz: Fulgentia redemptionis vexilla. E como entre todos os patriarcas, entre todos os generais da Igreja militante, só Francisco levava diante a bandeira das cinco chagas, só debaixo desta bandeira se devia alistar Antônio, como português e como luz do mundo: como português, para seguir as sagradas quinas; como luz do mundo, para alumiar com elas aos infiéis.

Infiel estava Tomé, e tão incredulamente infiel que dizia e protestava: Nisi videro fixuram clavorum, et mittam manum meam in latus ejus, non credam (Jo. 20, 25): Se não vir as chagas dos cravos, e não meter a mão na chaga do lado, não hei de crer. —  Aqui reparo. Para crer e para fazer fé, bastam duas testemunhas; as chagas dos cravos eram quatro; pois por que se não contenta Tomé com as chagas dos cravos, por que pede também a do lado para crer? Porque as chagas dos lados,ainda que eram chagas, não eram quinas: eram quatro, não eram cinco. E para converter infiéis, para os render e reduzir a crer, hão de concorrer todas as cinco chagas. Tertuliano: Omnibus divinitatis Christi probationibus instrutus, dixit: Dominus meus, et Deus meus[7].Reduziu-se a infidelidade de Tomé, e rendeu-se à virtude e eficácia das chagas de Cristo? Sim. Mas notai —  diz Tertuliano —  que não se rendeu a parte delas, senão a todas: Omnibus. Crerás, Tomé, se vires as chagas das mãos de Cristo? Non credam. Crerás, Tomé, se vires as chagas das mãos e as dos pés? Non credam. E se vires as duas dos pés e as duas das mãos, e também a quinta do lado, crerás? Então sim: Dominus meus, et Deus meus. Assim se rendeu a infidelidade de Tomé, e assim se rendeu e se havia de render a do mundo.

Por isso disse judiciosamente S. Pedro Crisólogo que a instância de Tomé em pedir as cinco chagas não só foi incredulidade, senão profecia: Prophetia sane coagis, quam cunctatio fuit. Muitas coisas profetizou S. Tomé na Índia, dos portugueses, mas esta profecia foi o cumprimento de todas: Que havia de ser conquistada a infidelidade das gentes em virtude das cinco chagas de Cristo; que havia de ser conquistada a infidelidade das gentes, não pelas armas dos portugueses, senão pelas Armas de Portugal. Deu-nos Cristo por armas e por brasão as sagradas quinas, e essas quinas foram as nossas armas. Quando os filhos de Israel saíram do Egito para a conquista da terra de promis­são, saíram sem armas, porque lhas vedavam e proibiam os egípcios; e contudo diz o texto que saíram armados: Armati ascenderunt filii Israel de terra Aegypti.Pois se saíram sem armas, como diz a Escritura que saíram armados? Milagro­samente o original hebreu: Ascenderunt filii Israel armati: ascenderunt filii Israel quini et quini (Êx. 13, 8). Diz que saíram armados, porque saíram, mis­teriosamente, cinco e cinco. E como saíram cinco e cinco: quini et quini, estas quinas lhes servirão de armas: Ascenderunt quini et quini: ascenderunt armati. Estas foram as armas com que os hebreus conquistaram a Terra de Promissão, estas foram as armas com que os portugueses conquistaram o mundo novo, e estas foram as armas com que S. Antônio conquistou, alumiou e renovou o velho. Oh! soberano Davi, menor, vestido de saial, e vencedor do gigante, em virtude das sagradas quinas!

Quando Davi, entre os irmãos o menor, houve de sair contra o gigante, que fez? Despe as armas de Saul, veste-se do seu saial, vai-se ao rio, escolhe cinco pedras, e sai: Elegit sibi quinque limpidissimos lapides de torrente (1 Rs. 17, 40). Para o tiro bastava uma só pedra, como bastou. Pois, se bastava uma só, por que leva cinco Davi? Porque, ainda que uma só bastava para o golpe, eram necessárias todas cinco para o mistério. Aquelas cinco pedras eram as cinco chagas de Cristo; a tor­rente de que as tirou lavadas era a torrente do seu sangue. E para um homem ou um moço tão pequeno, derrubar um gigante tão grande, só na virtude das cinco chagas podia ser. Dispa logo Antônio as armas de Agostinho, vista-se do saial de Francisco, e, com as sagradas quinas diante, saia seguro e confiado o menor, que ele vencerá o gigante. Estava uma vez pregando Santo Antônio; eis que aparece junto a ele S. Francisco com os braços em cruz, mostrando as chagas. Francisco era o Moisés, Antônio era o Josué; Francisco sustentava a bandeira, Antônio meneava as ar­mas; Francisco arvorava as quinas, Antônio alcançava as vitórias. No corpo de Francisco estava cintilando a constelação das cinco estrelas fixas, e pela boca de Antônio saíam os raios e as influências da luz, que confundia e alumiava o mun­do: Vos estes lux mundi.

§ IV

Segundo movimento da luz: deixara pátria. Sem sair, ninguém pode ser grande. Os dois empregos que Cristo fez dos trinta dinheiros por que foi vendido. Como pudera Santo Antônio ser luz do mundo se não safra de Portugal? Portugal semi­nário de fé e de luz.

E se Antônio era luz do mundo, como não havia de sair da pátria? Este foi o segundo movimento. Saiu como luz do mundo, e saiu como português. Sem sair, ninguém pode ser grande: Egredere de terra tua, et faciam te in gentem magnam[8], disse Deus, ao pai da fé. Saiu para ser grande, e, porque era grande, saiu. Ao quinto dia do mundo, criou Deus no elemento da água as aves e os peixes. E que fizeram uns e outros? Os peixes, como frios e sem asas, deixaram-se ficar onde nasceram; as aves, como alentadas e generosas, mudaram elemento. Assim o fez o grande espírito de Antônio, e assim era obrigado a o fazer, porque nasceu português. Uma coisa em que há muito tempo tenho reparado são os dois empregos que Cristo fez dos trinta dinheiros por que foi vendido. O primeiro emprego foi comprar um campo para enterro de peregrinos: Emerunt ex eis agrum figuli in sepulturam peregrinorum[9]O segundo emprego foi esmaltar com os mesmos trinta dinheiros o escudo das armas de Portugal: Ex pretio quo ego genus humanum emi, et quo a judaeis emptus sum, insigne tuum compones[10] . Notáveis empregos! E que propor­ção tem o escudo de Portugal com o enterro dos peregrinos, para que o preço de um seja esmalte do outro? Grande proporção. Quis Cristo que o preço da sepultura dos peregrinos fosse o esmalte das armas dos portugueses, para que entendêssemos que o brasão de nascer português era obrigação de morrer peregrino. Com as armas nos obrigou Cristo a peregrinar, e com a sepultura nos empenhou a morrer. Mas, se nos deu o brasão, que nos havia de levar da pátria, também nos deu a terra, que nos havia de cobrir fora dela.

Nascer pequeno e morrer grande é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas terras para a sepultura. Para nascer, pouca terra, para morrer, toda a terra; para nascer, Portugal, para morrer, o mundo. Perguntai a vossos avós quantos saíram e quão poucos tornaram? Mas estes são os ossos de que mais se deve prezar vosso sangue.

Funda-se esta pensão de sair da pátria na obrigação de ser luz do mundo. Como pudera Santo Antônio ser luz de França e de Itália, se não saíra de Portugal? Para Abraão levar a fé à Palestina, houve de sair de Caldéia; para Cristo derrubar os ídolos do Egito, houve de sair de Nazaré: ambos desterrados da pátria, mas ambos, como luz, desterrando trevas. Não se pode plantar a fé sem se transplantarem os que a semeiam. Não debalde disse Cristo: Pater meus agrícola est[11]Houve-se Deus, com os portugueses, como agricultor de luzes. Semeia o agricultor em pouca terra o que depois há de dispor em muita. Pouca terra era Portugal, mas ali fez Deus um seminário de luz para a transplantar pelo mundo. Criou Deus a luz no primeiro dia; passou o segundo, passou o terceiro, e ao quarto dia, dividindo aquela mesma luz que tinha criado, formou dela o sol, a lua, e as estrelas, e repartiu-as por todo o firmamento. Pergunto: e esses planetas, esses astros, esses signos e essas constela­ções, por que as não formou Deus logo no primeiro dia, senão depois? O mistério foi, diz S. Basílio, porque quis o supremo artífice do universo debuxar no rascunho da natureza a traça que havia de seguir nas obras da graça. É o que vimos na conver­são do mundo novo. Assim como a luz material primeiro a criou Deus junta em um lugar, e depois a repartiu dali por todas as regiões do céu e sobre todas as da terra, umas estrelas ao Polo Ártico, outras ao Antártico, umas ao Norte, outras ao Sul, umas ao Setentrião, outras ao Meio-Dia, assim, para alumiar o Novo Mundo, que tantos séculos havia de estar às escuras, sem ser conhecido dos homens nem ter conhecimento do verdadeiro Deus, que fez o autor da graça? Criou primeiro e con­servou separado em Portugal aquele seminário escolhido de fé e de luz, para que dali, dividida e repartida a seu tempo, umas luzes fossem alumiar a África, outras a Ásia, outras a América, umas ao Brasil, outras a Etiópia, outras a Índia, outras ao Mogor, outras ao Japão, outras à China, e desta maneira, transplantada de Portugal, a fé se plantasse nas três partes do mundo.

É verdade que Portugal era um cantinho, ou um canteirinho da Europa, mas neste cantinho de terra pura e mimosa de Deus: Fide purum, et pietate dilectum, nesse cantinho quis o céu depositar a fé que dali se havia de derivar a todas estas vastíssimas terras, introduzida com tanto valor, cultivada com tanto trabalho, regada com tanto sangue, recolhida com tantos suores, e metida finalmente nos seleiros da Igreja, debaixo das chaves de Pedro, com tanta glória. Medindo-se Portugal consigo mesmo, e, reconhecendo-se tão pequeno à vista de uma empresa tão imensa, poderá dizer o que disse Jeremias, quando Deus o escolheu para profeta das gentes: Et prophetam in gentibus dedi te[12]. E que disse Jeremias? Et dixit: A, A, A, Domine Deus, quia puer ego sum (Jer. I, 6): Ah! Ah! Ah! Deus meu, onde me mandais, que sou muito pequeno para tamanha empresa. —  O mesmo pudera dizer Portugal. Mas tirando-lhe Deus da boca estes três AAA, ao primeiro A, escreveu África, ao segun­do A escreveu Ásia, ao terceiro A escreveu América, sujeitando todas três a seu império, como Senhor, e à sua doutrina, como luz: Vos estis lux mundi.

§V

Terceiro movimento da luz: embarcar-se e meter-se no mar. Santo Antônio caminha do poente para o levante mostrando o caminho aos portugueses. O caminho do mar, aberto por Deus aos portugueses, e por eles às outras nações. As naus portuguesas, os carros do sol de que fala Habacuc. O profeta Isaías e os antípodas. Os portugueses chegam com as naus onde Santo Agostinho não chegou com o entendimento. Somente um homem passou o Cabo de Boa Esperança antes dos portugueses: Jonas, no ventre da baleia.

Mas como Santo Antônio —  já imos no terceiro movimento —  como Santo Antônio era a primeira luz destas luzes, ela foi também a que lhes abriu e mostrou o caminho, saindo do poente para o levante. Não é este o curso do sol; porém assim havia de ser, porque era Antônio sol que levava a saúde nas asas: Et sanitas in pennis ejus (Mal. 4, 2). Pediu el-rei Ezequias a Deus que lhe segurasse a saúde em um sinal do sol. E qual foi o sinal? Que o sol trocasse a carreira, e não caminhasse do oriente para o ocaso, senão do ocaso para o oriente. Assim Antônio, e assim os portugueses. Ele do poente para levante, eles do ocaso para o oriente, porque leva­vam na luz a saúde do mundo. E porque o sol, quando desce a alumiar os antípodas, mete o carro no mar e banha os cavalos nas ondas, para que assim o fizessem tam­bém os portugueses, deixa Antônio a terra, engolfa-se no Oceano, e começa a nave­gar, levando o pensamento e a proa na África, que também foi a primeira derrota e a primeira ousadia dos nossos argonautas.

Mas por que a frase dos cavalos e carro do sol metidos no mar não pareça poética e fabulosa, ouçamo-la ao profeta Habacuc, que, com novo e levantado estilo, o cantou assim no capítulo terceiro: Viam fecisti in mari equis Luis, et quadrigae tuae salvatio[13]: Vós Senhor —  diz o profeta —  fizestes o caminho pelo mar aos vossos cavalos e às vossas carroças da salvação.

Na Vulgata: Qui ascendes super equos tuos, et quadrigae tuae salvatio: Tu, que montarás sobre os teus cavalos, e as tuas carroças são a nossa salvação (Hab. 3, 8). No versículo 15 porém, lê-se: Viam fecisti in mari equis Luis, in luto aquarum multarum: e cavalos que caminham pelo mar? Que carroças e que cavalos são estes? Portugallenses in suis navigationibus et conversionibus, disse Genebrardo[14]. Mas ouçamos antes o mesmo texto. Primeiramente diz o profeta que Deus é o que lhes fez este caminho pelo mar: Viam fecisti in mari equis tuis, porque o caminho que fizeram os portugueses era caminho que ainda não estava feito. Por mares nunca dantes navegados, Deus abriu o caminho aos portugueses, e os portugueses o abriram às outras nações. Mareavam sem carta, porque eles haviam de fazer a carta de marear. As suas vitórias arrumaram as terras, os seus perigos descobri­ram os baixos, a sua experiência compassou as alturas, a sua resistência exami­nou as correntes. Navegavam sem carta nem roteiro, por novos mares, por novos climas, com ventos novos, com céus novos e com estrelas novas, mas nunca per­deram o tino nem a derrota, porque Deus era o que mandava a via: Viam fecisti in mari equis tuis. Estes eram os cavalos intrépidos e generosos.

E as carroças da salvação, quais eram? Eram aquelas cidades nadantes, aqueles poderosíssimos vasos da primeira navegação do Oriente, a que os estrangeiros, com pouca dife­rença de carroças, chamaram carracas. E chama-lhes o profeta carroças de salva­ção: Quadrigae tuae salvatio, porque, da quilha ao tope, isto é o que levavam. Levavam por lastro os padrões da Igreja, e talvez as mesmas igrejas em peças, para lá se fabricarem. Levavam nas bandeiras as chagas de Cristo, nas antenas a cruz, na agulha a fé, nas âncoras a esperança, no leme a caridade, no farol a luz do Evangelho, e em tudo a salvação: Et quadrigae tuae salvatio. Desta maneira en­traram pelo mar dentro aqueles novos carros do sol, para levar a luz aos antípodas. Assim o disse, falando à letra dos portugueses, o profeta Isaías. Não é a exposi­ção minha, nem de nenhum português; é de Vatablo, de Cornélio, de Maluenda, de Tomás Bósio, e outros: Ite Angeli veloces ad gentem expectantem, expectantem, ad gentem conculcatam[15]Ide depressa, portugueses, ide depressa, embaixado­res do céu, levai a luz do Evangelho a essa gente, que há mil e quinhentos anos que está esperando: Ad gentem expectantem, expectantem. Ide, levai a luz do Evangelho a essa gente pisada: Ad gentem conculcatam. Gente pisada? Gentem conculcatam? E qual é a gente pisada? Não a busqueis, que está muito longe. São os antípodas, que vivem lá debaixo dos nossos pés; eles vivem lá embaixo, e os nossos pés andam cá pisando por cima. Tão elegantemente o disse Isaías, como profeta de corte.

Santo Agostinho teve para si que não havia antípodas. E diz assim no livro 26, De Civitate Dei: Absurdum est, ut dicatur homines aliquos ex hac in illam partem, trajecta Oceani immensitate, navigare et pervenire potuisse, ut etiam illis, ex uno illo primo homine, genus institueretur humanum. Se há tais homens, argumentava Agosti­nho, são filhos de Adão; se são filhos de Adão, passaram destas partes àquelas nave­gando e atravessando a imensidade do Oceano; tal passagem e tal navegação é impos­sível: logo, não há tais homens. —  Grande glória, Antônio, da vossa nação, que chegas­sem os portugueses a dar fundo com as âncoras onde Santo Agostinho não achou fundo com o entendimento; que chegassem os portugueses a fazer possível com o valor o que no maior entendimento era impossível. Por isso Isaías lhes mandou mais que homens: Ite Angeli veloces. Um só homem passou o Cabo de Boa Esperança antes dos portugueses. E qual foi, e como? Jonas no ventre da baleia. Desembocou a baleia o Mediterrâneo, porque não tinha outro caminho, tomou a costa da África à mão esquer­da, dobrou o Cabo de Boa Esperança, escorreu a Etiópia, passou a Arábia, entrou o sino Pérsico, aportou às praias de Nínive, no Eufrates, e, fazendo da língua prancha, pôs o profeta em terra: In profundum projectus est, exceptusque a ceto marino mons­tro, ac devoratus post triduum fere. Ninivitarum littoribus ejectus, jussa praedicat: diz Sulpício Severo, no livro Ida História Sagrada[16].

Mas por que fez o profeta esta viagem por debaixo do mar, dentro em uma baleia; por que a não fez por cima da água, no mesmo navio em que navegava? Porque este milagre do valor, e esta vitória da natureza, não era para os mareantes de Tiro: tinha-o Deus guardado para os argonautas do Tejo. O Tejo era o que havia de dominar o mar; o Tejo era o que havia de triunfar das ondas e dos ventos; o Tejo era o que havia de tirar o tridente das mãos ao Oceano, para o pôr, reverente, aos pés do Tibre. Faltavam-lhe ao anel de pescados quase as três partes do círculo, e essas lhe perfez o Tejo com o ouro das suas areias. Muito me engano eu, se o não cantou Davi: Dominabitur a mari usque ad mare, et a flumine usque ad terminos orbis terrarum (SI. 71, 8). Dominará a Igreja de mar a mar, e do rio: aflumine, até os últimos fins da terra. —  E qual é o rio que de fim a fim está contraposto aos fins da terra? É o rio de Lisboa, o Tejo. Do rio de Lisboa saiu Antônio, e, derrotado da tempestade, foi aportar à Itália para ser luz da Europa. Do rio de Lisboa saíram os portugueses, e, medindo a África, descobrindo a América, chegaram com a luz do Evangelho até os fins da Ásia, para que, alumiando Antônio a melhor parte do mundo, e alumiando os outros portugueses as três maiores partes, na união de todas quatro se devesse inteiramente ao nome português o título de luz do mundo: Vos estis lux mundi.

§ VI

Quarto e quinto movimento da luz: dedicar-se à conversão dos infiéis, e vir a Roma dar obediência ao Vigário de Cristo. Como o oficio do sol é perseguir as trevas, assim também os portugueses aos infiéis. Para os católicos o escudo, para os infiéis a espada. O ferro português e a lança que abriu o lado de Cristo morto. O maior título de Portugal: filho obedientíssimo da Sede Apostólica.

Não se dedicou Antônio —  este era o quarto movimento, mas por abreviar o ajuntarei com o último —  não se dedicou Antônio à cristandade, porque são homens com luz; aos infiéis o levava o seu espírito, porque era espírito português. Glória singu­lar é de Portugal, que nem no Reino, nem em toda a Monarquia domine um só palmo de terra que não fosse conquistada a infiéis. Tudo quanto dominou a luz neste mundo foi conquistado às trevas, porque elas o possuíam primeiro: Tenebrae erant superfaciem abyssi, et dixit Deus: Fiat lux. Et facta est lux[17]E, assim como o ofício do sol é ir sempre seguindo e perseguindo as trevas e lançando-as fora do mundo, assim também os portugueses aos infiéis. Estava Portugal pela desgraça universal de Espanha ocupa­da de maometanos; e que fizeram os portugueses? Do Minho os lançaram além do Douro, do Douro à Estremadura, da Estremadura a Além do Tejo, de Além do Tejo ao Algarve, do Algarve às Costas de África, e ali os foram sempre seguindo e conquistan­do, até que o peso das armas se passou às conquistas da gentilidade, onde fizeram o mesmo. Sempre como soldados de Cristo, pela fé e contra infiéis.

É verdade que algumas vezes tiveram guerra os portugueses contra cató­licos, mas guerra defensiva somente, nunca ofensiva. Tem Portugal para os católi­cos o escudo, para os infiéis a espada. A S. Pedro, que era cabeça dos fiéis, disse-lhe Cristo, que metesse a espada na bainha; a S. Paulo, que era conquistador da gentilidade, meteu-lhe na mão a espada. Para os infiéis a espada sempre nua; para os fiéis, na bainha. Com os católicos paz, com os infiéis perpétua guerra. Santo Antô­nio meneou as armas da sua milícia na Itália e na França, mas estes raios da sua luz foram reflexos. Os direitos iam à África, os reflexos foram à Europa. Mas ainda aí, notai, não se chamou Antônio martelo dos vícios, senão martelo das heresias: Perpetuus haereticorum malleus, porque os vícios acham-se também nos católicos; as heresias, só nos infiéis. Por isso Deus, para formar este martelo, foi buscar o ferro às minas de Portugal, porque a dureza natural do ferro português é para quebrantar e converter infiéis.

É o ferro português como o ferro da lança que abriu o lado de Cristo: tirou primeiro sangue, e depois água: Exivit sanguis et agua (Jo. 19, 34). O san­gue para vencer, a água para batizar os vencidos. Mas qual foi a razão ou o misté­rio porque o soldado não deu a lançada no corpo de Cristo vivo, senão no corpo morto? Pela mesma que vou dizendo: O corpo místico de Cristo, materialmente considerado, é todo o gênero humano; os fiéis são o corpo vivo, porque é corpo informado com a fé; os infiéis são o corpo morto, porque é corpo informe. Quan­do recebem a fé, então recebem também a forma, e se fazem membros vivos do corpo místico de Cristo, que é a Igreja. Para isto se serviu Cristo daquele soldado e da sua lança: Ut sibi Ecclesiam fabricare[18], diz S. Cipriano. Foram sempre os soldados portugueses como os fabricadores do segundo templo de Jerusalém, que com uma mão pelejavam, e com a outra iam edificando. Nenhum golpe deu a sua espada que não acrescentasse mais uma pedra à Igreja. Se pelejavam, se venciam, se triunfavam, era para tirar reinos à idolatria, e sujeitá-los a Cristo, para conver­ter as mesquitas e pagodes em templos, os ídolos em imagens sagradas, os gentios em cristãos, os bárbaros em homens, as feras em ovelhas, e para trazer essas ovelhas de terras tão remotas e em número infinito ao rebanho de Cristo e à obediência do Sumo Pastor.

Assim o fez Santo Antônio em Roma, lançando-se a si e a tantos heresiarcas rendidos aos pés da Santidade de Gregório IX. Assim o fez el-rei D. Manoel, pondo todo o Oriente aos pés da Santidade de Leão X. E assim o fez ultimamente o Príncipe reinante de Portugal, o muito alto e muito poderoso Se­nhor nosso, D. Pedro, que Deus guarde, oferecendo solenemente aos beatíssimos pés da Santidade de Clemente X, nosso Senhor, o seu Reino, a sua Monarquia toda, e na pessoa excelentíssima de seu embaixador, a sua real pessoa, como herdeiro e verdadeiro imitador de seus gloriosos progenitores. A el-rei D. Sebas­tião, pouco antes de dar a vida pela dilatação da fé, ofereceu a Santidade de Pio V que escolhesse título; e que responderia o religiosíssimo rei? Respondeu que não queria outro título, senão o de filho obedientíssimo da Sede Apostólica. Em cum­primento deste título, três sucessores continuados do mesmo rei, em espaço de vinte e oito anos, estiveram sempre oferecendo à Santa Sede a mesma obediência de filhos. E se a pública aceitação deste ato se dilatou, foi com atenção e provi­dência paternal do Vigário de Cristo, para que, no entretanto, pudesse lograr a Igreja os repetidos exemplos de tão constante sujeição e obediência, perseveran­do e instando sempre o primeiro rei, o segundo e o terceiro, não só como filhos obedientes, mas como obedientíssimos filhos.

No filho pródigo, notou agudamente São Pedro Crisólogo que cha­mou pai ao pai, reconhecendo que se não devia chamar filho: Pater, non sum dignus vocari filius tuus[19]Parece implicação. A denominação de filho funda-se na relação de filho; a denominação de pai funda-se na relação de pai, e, conforme. a verdadeira filosofia, nas relações mútuas e recíprocas, quando falta uma, falta também a outra. Se falta a relação de filho, cessa a de pai; se falta a relação de pai, cessa a de filho. Pois, se da parte do pródigo faltava a relação e denominação de filho: Non sum dignus vocari filius tuus (Lc. 15, 19), como da parte do pai não faltou a relação e denominação de pai: Pater? Porque essa foi a maravilha mais que natural —  diz Crisólogo —  que, faltando no filho a relação de filho, não faltasse no pai a relação de pai: Ego perdidi quod filii est: tu quod patris est non amisisti. Voltemos à semelhança. Da parte do Pai universal nunca faltaram os fundamentos próximos da relação, que eram a vontade, o afeto e paternal amor, como sempre reconheceu e experimentou Portugal. Mas que, enquanto não resultava a relação do pai, existisse sempre inteira a relação do filho? Essa foi a maravilhosa prova da verdadeira filiação. Tinha tanto de divina, que não só foi relação, mas subsis­tência. Assim havia de ser para qualificar Portugal, que não só era filho, mas filho obedientíssimo.

Bem sabe toda a Europa com quantos discursos, e ainda direitos mal-interpretados, procurou a política menos cristã tentar a obediência por­tuguesa em tantos anos. Mas a sua obediência obedientíssima tão longe este­ve de dar ouvidos a semelhantes tentações, que nunca chegou nem ainda a ser tentada, quanto mais vencida. Quando Deus mandou a Abraão que lhe sacrificasse seu filho, diz a Escritura que tentou Deus a Abraão: Tentavit Deus Abraham (Gên. 22, 1). Eu cuidava que neste caso o tentado havia de ser Isac. Sacrificar o pai ao filho amado, tentação era; mas que o filho se houvesse de deixar atar, e lançar-se sobre a lenha, e aguardar o golpe, e perder a vida, essa era a terrível tentação. Pois por que diz a Escritura que tentou Deus a Abraão, e não a Isac? Porque Isac era filho obedientíssimo. O amor, no pai, podia ser tentado, mas não vencido; a obediência, no filho, nem vencida nem tentada.

Tal foi a de Portugal. Tão longe de ser vencida, nem ainda tentada no meio de todas essas tentações que, como filho obedientíssimo, sempre esteve multiplicando obediências sobre obediências, e mandando embaixadas sobre em­baixadas, tantas e por tantos modos. Nas duas primeiras, mostrou-se obediente; na terceira e na quarta, mais que obediente; na quinta e na última, obedientíssimo. Uma só vez vieram os reis do Oriente a Belém protestar a sua obediência e ofere­cer as coroas aos pés de Cristo. Mas como vieram? Chamados primeiro por uma estrela: Vidimus stellam ejus, et venimus[20]. A obediência de Portugal não espe­rou por estrela para vir, antes, vindo cinco vezes sem estrela, veio também a sexta. Mas, porque veio sem estrela seis vezes, por isso o recebeu o céu com seis estrelas[21]. Assim recuperou Santo Antônio à sua pátria, em um dia, o que tinha perdido e pedido em tantos anos.

§ VII

Agradecimento às estrelas do brasão de Clemente X.

Vivam as clementíssimas estrelas eternamente: Quasi stellae in per­petuas aeternitates[22]Vivam as clementíssimas estrelas, e permaneçam, se é conce­dido, sobre os anos de Pedro: Stellae manentes in ordine et cursu suo[23]para que, debaixo destas estrelas, como a valente Débora, triunfe a Igreja do bárbaro Sisara, que tanto se vem chegando, mas para sua ruína. E se os reis do Oriente, quando lhes apareceu a estrela escondida, gavisi sunt gaudio magno valde[24]faça extremos de prazer Portugal, adorando os clementíssimos aspectos e a divina majestade destas estrelas, que se na outra estrela é opinião que estava um anjo, nestas estrelas é fé que está Deus. Alegre-se Lisboa, e alegre-se Portugal, e agora se tenha por verdadeira­mente restituído, pois se vê restituído e canonizado. Santo Antônio entrou triunfan­te no céu no dia de sua morte, mas os sinos de Lisboa não se repicaram milagrosa­mente senão no dia de sua canonização, porque não tem Portugal as suas glórias por glórias, senão quando as vê confirmadas e estabelecidas por Roma. Muitas graças a Roma, muitas graças às beatíssimas estrelas que a dominam. E pois eu lhes não posso oferecer outro tributo, quero fixar ao pé delas o meu tema: Vos estis lux mundi.

 

[1] Vós sois a luz do mundo (Mt. 5, 14).

[2] Ex Alfons. juram.

[3] Tu és Pedro. e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja (Mt. 16, 18).

[4] Para levar o meu nome diante das gentes (At. 9, 15).

[5] Olhai para essas terras. que já estão branquejando próximas às ceifas (Jo. 4, 35).

[6] Para que sejam meus segadores em terras longínquas. (Lc. 24, 35).

[7] Convencido por todas as provas da divindade de Cristo, disse: Meu Senhor e meu Deus.

[8] Sai da tua terra, e eu te farei pai de um grande povo (Gên. 12, 1).

[9] Compraram com ele o campo de um oleiro, para servir de cemitério aos forasteiros (Mt. 27, 7).

[10] Compõe o teu brasão com o preço pelo qual comprei o gênero humano, e pelo qual me compra­ram os judeus.

[11] O meu Pai é o agricultor (Jo. 15, 1).

[12] E te estabeleci profeta entre as gentes (Jer. 1, 5).

[13] Tu abriste um caminho aos teus cavalos no mar, ao través do lado que se acha no fundo das grandes águas (Hab. 3, 15).

[14] Os portugueses em suas navegações e conversões.

[15] Ide, anjos velozes, a uma gente que está esperando, e é pisada dos pés (Is. 18, 2).

[16] Jogado ao mar, e devorado pela baleia, depois de três dias foi lançado nas praias ninivitas, pondo-se a pregar o que lhe fora mandado.

[17] As trevas cobriam a face do abismo, e disse Deus: Faça-se a luz. E foi feita a luz (Gên. 1, 2, 3).

[18] Para edificar uma igreja para si.

[19] Pai, não sou digno de ser chamado teu filho (Lc. 15, 19).

[20] Nós vimos no oriente a sua estrela, e viemos (Mt. 2, 2).

[21] As armas de Clemente X são seis estrelas.

[22] Como as estrelas por toda a eternidade (Dan. 12, 3).

[23] As estrelas, permanecendo na sua ordem e no seu curso (Jz. 5, 20).

[24] Ficaram possuídos de grande alegria (Mt. 2, 10).

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística