Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão de S. Roque, na Capela Real, ano de 1659, de Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DE S. ROQUE PREGADO NA CAPELA REAL, ANO DE 1659, HAVENDO PESTE NO REINO DE ALGARVE

Beati sunt servi illi, quos, cum venerit dominus, invenerit vigilantes: quod si venerit in secunda vigilia, et si in tertia vigilia venerit, et ita invenerit, beati sunt servi

§I

São Roque, servo da segunda e da terceira vigia, duas vezes bem-aventurado nas vozes do Evangelho, e quatro vezes desgraciado nos sucessos e tragédias da vida.

Se há bem-aventurança nesta vida, os servos de Deus a gozam, e se há duas bem-aventuranças, também as gozam os servos de Deus, porque as gozam os que são mais seus servos. Duas diferenças de servos vigilantes introduz Cristo na parábola deste Evangelho. Há uns servos que vigiam nas horas menos dificultosas e arriscarias, ou sejam da noite ou do dia, e a estes chama o Senhor servos bem-aventurados: Beati sunt servi illi, quos cum venerit Dominus, invenerit vigilantes. Há outros servos que vigiam na segunda e terceira vigia da noite, que são as horas ou os quartos de maior escuro e de maior sono, de maior trabalho e de maior dificuldade, de maior perigo e de maior confiança, e a estes servos, sobre a primeira bem-aventurança, os chama o Senhor outra vez bem-aventurados: Quod si venerit in secun­da vigilia, quod si in tertia vigilia venerit, beatti sunt servi illi[1]Aquele grande servo de Cristo, cujas gloriosas vigilâncias hoje celebramos, S. Roque, não há dúvida que foi servo da segun­da e terceira vigia Nenhum vigiou, nenhum aturou, nenhum resistiu, nenhum perseverou, nenhum esteve nunca mais alerta e com os olhos mais abertos, nem no mais alto e profundo da noite, nem em noites mais escuras e mais cerradas. Mas quando eu, segundo a regra e promessa do Evangelho, esperava ver a S. Roque duas vezes bem-aventurado por estas vigilâncias, em lugar de o ver duas vezes bem-aventurado, acho-o não só duas vezes, senão quatro vezes desgraciado. Desgraciado com os parentes, e desgraciado com os naturais; desgraciado com as enfermidades, é desgraciado com os remédios. Se as bem-aventuran­ças e felicidades prometidas no Evangelho foram só felicidades e bem-aventuranças da outra vida, fácil estava a soltura desta admiração; mas Cristo não promete só àqueles servos que serão bem-aventurados e felizes na outra vida, senão que o serão, antes, que o são nesta. Assim o dizem e repetem conformemente ambos os textos: Beati sunt servi illi quos, cum venerit Dominus, invenerit vigilantes. Quod si venerit in secunda vigilia, quod si in tertia vigilia venerit, beati sunt servi illi. De maneira que não diz: Bem-aventurados serão, senão bem-aventurados são: beati sunt, a primeira vez, e beati sunt a segunda. Pois se os servos vigilantes, e vigilantes da segunda e terceira vigia, são duas vezes felizes, e duas vezes bem-aventurados ainda nesta vida, como se trocou tanto esta regra ou esta fortuna em S. Roque, que, por cada felicidade que lhe promete o Evangelho, achamos nele duas infelicidades, e, por cada bem-aventurança, duas des­venturas? Duas vezes bem-aventurado nas vozes do Evangelho, e quatro vezes desgraciado nos sucessos nos encontros e nas tragédias da vida? Sim. Mas para entender e concordar aquelas promessas com estas experiências, e aquelas bem-aventuranças com estas desgraças, não basta só a luz da terra, é necessária a do céu. Peçamo-la ao Espírito Santo, por intercessão da Senhora. Ave Maria.

§ II

Às vezes está a ventura em se dobrarem as desgraças. S. Roque, quatro vezes semelhante a Cristo.

Beati sunt, beati sunt servi illi.

Às vezes está a ventura em se dobrarem as desgraças. Quando buscava o remédio a uma dúvida, fui topar com outra maior. Nas primeiras cláusulas do Evangelho manda Cristo aos que o quiserem servir sejam semelhantes aos servos que esperam por seu Senhor: Et vos similes hominibus expectantibus dominum suum[2]. E S. Roque, que tanto serviu e tanto quis servir a Cristo, que é o que fez? Em vez de se fazer semelhante aos servos, que esperam pelo Senhor, fez-se seme­lhante ao Senhor, por quem esperam os servos. Estes servos são os santos, este Senhor é Cristo, e, se bem repararmos na vida de S. Roque, achá-lo-emos seme­lhante, não aos outros santos, senão ao mesmo Cristo, e não só uma vez seme­lhante a Cristo, senão quatro vezes semelhante. Semelhante a Cristo nascido, se­melhante a Cristo preso, semelhante a Cristo crucificado, semelhante a Cristo morto. Pois, santo singular, santo portentoso, santo que em tudo, parece, quereis ir por fora do Evangelho: se vos mandam ser semelhante aos servos quem vos fez, ou como vos fizestes semelhante ao Senhor? Esta é, como dizia, a segunda dúvi­da: mas nela temos respondida e desatada a primeira. Pode haver maior bem-aventurança, que chegar o servo a ser semelhante a seu Senhor? Não pode. Pois eis aqui quão gloriosamente se despintaram as desgraças de S. Roque, e se trans­figuraram todas em bem-aventuranças. As desgraças de S. Roque, dizíamos que eram quatro: desgraciado com os parentes, desgraciado com os naturais, desgra­ciado com as enfermidades, desgraciado com os remédios. Mas como em todas estas que a natureza chama desgraças, se fez S. Roque semelhante a Cristo, pelo mesmo que o chamávamos quatro vezes desgraciado, veio ele verdadeiramente a ser quatro vezes bem-aventurado: bem-aventurado na desgraça com os parentes, porque ficou semelhante a Cristo nascido; bem-aventurado na desgraça com os naturais, porque ficou semelhante a Cristo preso; bem-aventurado na desgraça com as enfermidades, porque ficou semelhante a Cristo crucificado; bem-aventu­rado na desgraça com os remédios, porque ficou semelhante a Cristo morto. De sorte que, pelos mesmos extremos por onde cuidávamos que se nos saía S. Roque do Evangelho, o temos mais alta e mais gloriosamente dentro nele, e não só duas vezes bem-aventurado, senão duplicadamente duas: Beati sunt servi illi, beati sunt. Vamos vendo estas quatro bem-aventuranças realçadas sobre as quatro desgraças de S. Roque. E não será, ao que creio, vista desaprazível ver beatificar desgraças.

§ III

primeira desgraça de S. Roque: com os parentes, porque o desconheceram como estranhos. A fortuna próspera muda as feições, como no caso de José, vice-rei do Egito. Os parentes de S. Roque semelhantes aos amigos de Jó, porque a sua amiza­de era com a fortuna e não com a pessoa. A terrível resposta do esposo às virgens néscias. Como Cristo, veio S. Roque ao seu, e não o receberam os seus, sendo desco­nhecido dos homens, quando era reconhecido por um animal.

A primeira desgraça de S. Roque foi com os parentes. Foi desgraciado S. Roque com os parentes, porque o desconheceram como estranho aqueles que eram seu sangue, e a quem tinha dado o seu. Herdou S. Roque de seus pais o estado de Mompilher, de que eram senhores, junto com muitas riquezas: mas o santo, com maior resolução do que prometiam seus anos, porque era muito moço, entregou o estado e os vassalos a um seu tio para que o governasse, repartiu as jóias e toda a mais fazenda aos pobres, e, pobre como um deles, se partiu peregrino à Itália, para visitar os santos lugares de Roma. Passados alguns anos, que não foram muitos, tornou S. Roque para Mompilher, no mesmo trajo em que se partira, mas nem seu tio, nem algum de seus parentes o conheceram; e assim, pobre e vivendo de esmolas, passou o resto da vida peregrino dentro em sua própria pátria, necessitado no meio de suas riquezas, e desconhecido dos mesmos que eram seu sangue.

Ora, eu não posso deixar de espantar-me muito que os.parentes e vassa­los de S. Roque desconhecessem em tão pouco tempo a um mancebo ali nascido, ali criado, ali servido, ali senhor! Esta mudança e este desconhecimento, ou estava no rosto de S. Roque ou nos olhos dos que o viam. Se nos olhos, tão depressa se esque­cem? Se no rosto, tão facilmente se muda? Eu digo que a mudança não estava nos olhos de quem via, senão na fortuna de quem vinha. Vinha S. Roque a Mompilher em muito diferente fortuna do que ali o viram antigamente, e não há coisa que tanto mude as feições como a fortuna. Vieram os filhos de Jacó nos sete anos de fome buscar trigo ao Egito, e, aparecendo diante de seu irmão José, que era o vice-rei daqueles reinos, diz o texto sagrado: Cognovit eos, et non est cognitus ab eis (Gên. 42, 8): Que José os conheceu a eles, e que eles não conheceram a José. —  Notável caso! Parece que não havia de ser assim, porque os irmãos, como eram mais velhos,conheciam de mais tempo a José, porque o conheciam desde menino, idade em que ele os não podia conhecer. Os irmãos, de uma vez, foram dez, e doutra onze, e mais fácil é conhecerem muitos a um, que um a muitos; o tempo da ausência era igual, porque tanto havia que os irmãos não viam a José, como José a eles. Pois, se todas as razões de conhecimento, ou eram iguais ou maiores da parte dos irmãos, como os conheceu José a eles, e eles não conheceram a José? A razão natural é porque José tinha mudado a fortuna; seus irmãos não a tinham mudado. Os irmãos antigamente tinham sido pastores, e agora também eram pastores; José antigamente tinha sido pastor, agora era vice-rei, e, como os irmãos não tinham mudado de fortuna, não tinham mudado de parecer; porém José tinha mudado de parecer, porque tinha mu­dado de fortuna. Ele conhecia os irmãos, porque os irmãos eram os mesmos; os irmãos não o conheciam a ele, porque José já era outro.

Dificultosa coisa parece que a fortuna faça mudar as feições, mas ainda mal, porque tão provada está esta verdade na experiência de cada dia! Melhorou de fortuna o vosso maior amigo, e ao outro dia já vos olha com outros olhos, já vos ouve com outros ouvidos, já vos fala com outra linguagem: o que ontem era amor, hoje é autoridade; o que ontem era rosto, hoje é semblante. Pois, meu amigo, que mudança é esta? Quem vos trocou as feições? Que é daqueles olhos benévolos com que me víeis? Que é daqueles ouvidos atentos com que me escutáveis? Que é daque­le bom rosto com que nos víamos sempre? O que mudou de fortuna, claro está que havia de mudar de feições.

E se estas mudanças faz a fortuna próspera, não são menores os poderes da adversa. Restituído Jó à sua antiga fortuna depois de tantos trabalhos e calamida­des, diz o texto sagrado: Venerunt ad eum omnes amici et cognati ejus, qui cognove­runt eum prius (Jó 42, 11): Que vieram visitar a Jó todos os seus amigos e parentes que o conheceram no primeiro estado: Qui cognoverunt eum prius, Jó teve três estados nesta vida: o primeiro, de felicidade, o segundo, de trabalhos, o terceiro outra vez de felicidade. Pois se os amigos e parentes o conheceram no primeiro estado, por que não o conheceram, nem o buscaram no segundo? E se o não conhe­ceram, nem buscaram no segundo, por que o conhecem e o buscam no terceiro? A razão disto não a há; a sem-razão, sim, e é esta: Porque os homens costumam conhe­cer nos outros não a pessoa, senão a fortuna; e como os chamados amigos e parentes de Jó conheciam nele a fortuna, e não a pessoa, por isso não buscaram a pessoa enquanto a viram necessitada, e buscaram a fortuna, tanto que a viram restituída. De sorte que os amigos de Jó, bem considerados seus procedimentos, não foram ingra­tos, porque a sua amizade era com a fortuna, e não com a pessoa. E como eles não faltaram à fortuna, ainda que faltaram à pessoa, não foi ingratidão. Se faltaram à pessoa, faltaram a quem não conheciam, mas à fortuna, a quem conheciam, não lhe faltaram: tanto que ela voltou, tornaram eles. E como os homens se costumam conhecer pelas fortunas, e não pelas pessoas, que muito que seus próprios parentes, e em sua própria pátria desconhecessem a S. Roque, pois ele, ainda que trazia a mes­ma pessoa, vinha em tão diferente fortuna.

Oh! miserável condição das coisas humanas! Miserável na fortuna ad­versa, e miserável na próspera. Não há fortuna que não traga consigo o desconheci­mento. Se é próspera, desconheceis-vos; se é adversa, desconhecem-vos. E se a fortuna é tão enganosa que os homens se desconheçam a si, que muito que seja tão injusta, que os outros os desconheçam a eles? Só S. Roque não merecia esta ingra­tidão, porque, sendo que se não desconheceu a si na fortuna próspera, o desconhece­ram os seus na adversa. E que S. Roque entre os seus, e entre aqueles a quem dera o seu, se visse desconhecido, grande desgraça! Se os seus o conheceram e o maltrata­ram, ingratidão era, mas sofrível; porém, sobre maltratado, ver-se ainda desconheci­do, não pode haver maior desgraça.

Quando o Esposo divino fechou as portas do céu às virgens que tarda­ram, o que respondeu às vozes e instâncias com que batiam e chamavam, foi: Nescio vos: Não vos conheço. Breve palavra, mas digna de grande reparo. Se lhes dissera que as não admitia, que as não queria em seu serviço, que não entrariam mais em sua casa, e muito menos em sua graça, pois lhe tinham faltado em ocasião de tanto gosto e empenho, merecedor castigo era de tamanho descuido; mas Deus, que tudo conhe­ce, nem pode deixar de conhecer, que lhes diga: Nescio vos: Não vos conheço? Levado desta admiração S. João Crisóstomo, e não lhe ocorrendo com que dar saída a tão profundo encarecimento, exclamou dizendo: O verbum ipsa gehenna durius! Ó palavra, Nescio vos, mais dura que o mesmo inferno! Fechar Deus as portas do céu a estas desgraciadas criaturas foi condená-las ao inferno, mas com ser o inferno o mais duro e mais terrível castigo que Deus dá, nem pode dar, pois é privação de sua vista, a palavra Nescio vos ainda foi mais dura e mais terrível. Por quê? Porque os condenados do inferno, posto que Deus os tem lançado de si para sempre, conhe­ce-os; porém o estado em que uma miserável criatura, sobre condenada sem remé­dio, se veja ainda e se considere não conhecida, se há extremo de miséria, de dor e de desesperação que se possa imaginar maior que o do mesmo inferno, este é sem dúvida, e não outro: O verbum, nescio vos, ipsa gehenna durius!

Tal era o estado —  quanto pode ser nesta vida —  a que S. Roque chegou por amor de Cristo. Não só de condenado a cárcere perpétuo, e sem remédio —  como logo veremos —  mas, sobre condenado, não conhecido: Nescio vos. E sendo este estado pior que o do inferno, que diga o evangelista que S. Roque era contudo bem-aventurado? Beati sunt servi illi? Sim, porque nesta mesma desgraça foi S. Roque semelhante a Cristo nascido. E que maior bem-aventurança que parecer-se o servo com seu Senhor, em qualquer estado que seja?

Nasceu Cristo neste mundo com o desamparo que sabemos, e, querendo-o encarecer São João Evangelista, ponderou-o com estas palavras: In mundo erat, et mundus per ipsum factus est, et mundus eum non cognovit: in propria venit, et sui eum non receperunt (Jo. 1,10 s): Estava no mundo, e, sendo que o mundo foi feito por ele, não o conheceu o mundo; veio à sua própria casa, e não o receberam os seus. Pois valha-me Deus, evangelista entendido, evangelista amante, se quereis ponderar as ra­zões de dor que houve no nascimento de Cristo, não estavam aí as circunstâncias do tempo, e as do lugar? O rigor do inverno, o desabrigo do portal, a aspereza das palhas, o pobre, o humilde, o desprezado da manjedoura? E se não quereis mais que acusar o desumano dos homens, por que não ponderais a ingratidão com que não amaram a Cristo, senão a cegueira com que o não conheceram: Et mundus eum non cognovit? É porque Cristo, como quem tão bem sabia pesar as razões de dor, sentiu mais o ver-se desconhecido naquela hora, que o ver-se desamado. A ingratidão que desama, grande ingratidão é, mas a ingratidão que chega a desconhecer, é a maior e a mais ingrata de todas: In mundo erat, et mundus per ipsum factus est, et mundus eum non cognovit.

Parece que não acaba o evangelista de lhe chamar mundo: estava no mundo, e, sendo que fora feito por ele o mundo, não o conheceu o mundo. Isto é ser mundo: In propria venit, et sui eum non receperunt: Veio ao seu, e não o receberam os seus. —  Por dois títulos eram seus estes que não receberam a Cristo: eram seus pelo título da criação, e seus pelo título da Encarnação; pelo título da criação, porque eram feitura sua; pelo título da Encarnação, porque eram sangue seu. E que, sendo seus por tantos títulos, e vivendo do seu e no seu, o não conhecessem? Grande ponderação do que Cristo quis sofrer aos homens, e grande também do que S. Roque soube imitar a Cristo. A seme­lhança é tão semelhante, que não há mister aplicação: In propria venit et sui eum non receperunt. Veio S. Roque ao seu, e não o receberam os seus; veio ao seu, porque veio ao seu patrimônio, ao seu estado, à sua casa, à sua corte; e não o receberam os seus, porque os seus vassalos, os seus criados, os seus amigos, os seus parentes o trataram como estranho: Mundus per ipsum factus est, et mundus eum non cognovit. Até aque­les a quem ele tinha feito, a quem tinha levantado, a quem tinha dado o ser —  porque lhes tinha dado o que eram, quando renunciou neles o que tinha sido —  até esses o desconheceram.

E para que neste desconhecimento lhe não faltasse a S. Roque nenhuma semelhança de Cristo nascido, teve também a companhia e piedade de um animal, que, sustentando-o no mesmo tempo, e regalando-lhe as feridas, agravava mais a chaga da ingratidão, e fazia mais desumana a correspondência dos homens. O que mais peso fazia ao sentimento de Cristo no presépio, era a consideração de que o desconheciam os homens, quando o conheciam os animais. Assim o significou o mesmo Senhor por boca de outrem, como quem ainda não podia falar: Coggnovit bos possessorem suum, et asinus praesepe Domini sui; Israel autem me non cognovit: Conheceu o boi e o jumento o presépio de seu Senhor, e Israel não me conheceu a mim[3]: Que se visse Cristo desamparado dos homens e bafejado dos animais, que se visse S. Roque desconhecido do seu sangue e sustentado da piedade de um bruto, grande circunstância de dor! Porque não há coisa que mais lastime o coração huma­no, que as ruins correspondências dos homens à vista de melhores procedimentos nos animais. Grande sem-razão foi que os ministros de Babilônia lançassem no lago dos leões a Daniel; mas, à vista do respeito que lhe guardaram os mesmos leões, ainda tem mais quilates a sem-razão. Que reconheçam as feras esfaimadas a inocên­cia do servo de Deus, e que homens, com nome e obrigação de sábios, a persigam e a condenem? Rara desigualdade! Grande foi a crueldade da rainha Jezabel em perse­guir e querer matar ao profeta Elias, mas, à vista da piedade com que o sustentavam os corvos, ainda tem mais horrores aquela crueldade. Que sustente a vida a Elias a voracidade dos corvos, e que queira tirar a vida a Elias a desumanidade de uma mulher? Rara dissonância! Grande foi o atrevimento com que o profeta Balaão se arrojou a querer amaldiçoar o povo de Deus, mas, à vista do animal em que cami­nhava, tem ainda mais deformidades o atrevimento, Que solte a língua um animal, para pedir razão a um profeta, e que use um profeta de tão pouca razão que ouse soltar a língua contra o mesmo Deus? Rara desproporção! Eis aqui o que agravava o sentimento a S. Roque, como a Cristo nascido. Verem-se desconhecidos dos ho­mens, quando se viam conhecidos dos brutos! Em Cristo, pudera-se chamar desgra­ça, porque se parecia conosco; em S. Roque, era verdadeiramente bem-aventurança, porque se parecia com Cristo. Beati sunt servi illi.

§ IV

A segunda desgraça de S. Roque: ser desgraciado com os naturais. Em Itá­lia, tratado como inimigo, porque era de França; em França, tratado como traidor, porque viera de Itália. Homem de dois hemisférios, como a lua, é duas vezes inimi­go: foi o que presumiram de S. Roque franceses e italianos. As três negações de S. Pedro, e as três dúvidas de Cristo. A dúvida e a fidelidade. A lealdade de José do Egito. Nas mesmas prisões foi S. Roque semelhante a Cristo, preso por zelo da pátria. As cadeias de S. Roque e a comédia de José.

A segunda desgraça de S. Roque foi ser desgraciado com os naturais. Quando S. Roque fez a sua peregrinação de França para Itália, havia guerra entre Itália e França, e desta guerra lhe sucederam ao santo duas coisas notáveis: a primei­ra que, chegando à Itália, os italianos o trataram como a inimigo e o feriram; a segunda que, tornando para França, os franceses o trataram como a traidor, e o prenderam por espia. Há maior desgraça que esta? Que em Itália me tratem como inimigo, porque sou de França, e que em França me tratem como traidor, porque venho de Itália? S. Roque peregrinou de França para Itália por amor de Deus, e tomou de Itália para França por amor da pátria; e que, quando vou em serviço de Deus, me tenham por inimigo, e, quando venho em serviço da pátria, me tenham por traidor? Desgraça grande!

A maior circunstância de desgraça, que eu aqui considero, é que, não sendo merecida da parte de quem a padecia, parecia justificada da parte de quem a causava, porque em tempo que França e Itália andam em guerras, ter entrada em Itália, e ter entrada em França, não são bons indícios. No quarto dia da criação do mundo, criou Deus o sol, a lua e as estrelas, e diz o texto sagrado que um dos ofícios que Deus deu a estas tochas do céu foi que dividissem a noite e o dia: Ut dividant diem ac noctem. Que o sol e as estrelas dividam o dia e a noite, parece-me muito bem aplicado ofício, porque, em havendo sol, não há noite, em havendo estrelas, não há dia. Porém a lua! Como pode ser que a lua a fizesse Deus para dividir a noite do dia? A lua, se bem advertirdes, uns dias anda de dia, outros dias anda de noite. Pois se a lua tem entrada com a noite e tem entrada com o dia, como a fez Deus para dividir o dia e a noite? É porque ninguém divide melhor, que quem tem entrada com ambos. O sol e as estrelas dividem muito bem, porque o sol divide o dia da noite, e as estrelas dividem a noite do dia; mas a lua divide muito melhor, porque tem entra­da com ambos, e divide duas vezes: como tem entrada de dia com o sol, divide o dia da noite, e como tem entrada de noite com as estrelas, divide a noite do dia. De modo que a lua faz guerra a ambos, porque tem entrada com ambos. Oh! livre Deus o mundo destas luas! Ou bem da parte do dia, ou bem da parte da noite; ou bem com o sol, ou bem com as estrelas. Homem de dois hemisférios é duas vezes inimigo. O mesmo presumiram de S. Roque os italianos e os franceses: os franceses, como o viam ter entrada em Itália, cuidavam que era inimigo de França, e os italianos, como o viam ter entrada em França, cuidavam que era inimigo de Itália. O santo nada disto era, mas parecia tudo. Era o cidadão mais fiel, era o filho mais amigo, era o zelador mais verdadeiro, que nunca teve a sua pátria, e contudo a prisão, ainda que não merecida, era justificada. Não havia prova para o crime, mas havia indícios para a dúvida. E em matéria de fé e amor da pátria, um peito tão nobre e tão generoso como ode S. Roque, padecer a afronta ou o desar desta dúvida, era a maior e mais penosa desgraça que lhe podia suceder.

Perguntou Cristo três vezes a S. Pedro se o amava: Diligis me? Diligis me? Diligis me (Jo. 21, 16)? E é certo que estas três perguntas e estas três repetições não foram sem grande mistério. Santo Agostinho e Santo Tomás dizem conformemente que foram três as perguntas, para que, respondendo Pedro três vezes a elas, satisfizesse as três vezes que havia negado: Trinae negationi redditur trina confessio. Divinamente advertido; mas dêem-me licença agora estes grandes lumes da Igreja para que, aos raios da sua mesma luz, veja eu mais alguma coisa nesta satisfação das negações de S. Pedro. Nas três negações de Pedro houve três culpas e houve três injúrias. Houve três culpas,porque três vezes faltou Pedro à sua obrigação; e houve três injúrias, porque três vezes fez injúria a seu Mestre e seu Senhor, negando-o. As injúrias pediam satisfação, as culpas pediam castigo, e tudo se fez neste caso. As três injúrias satisfê-las Pedro com as três respostas; as três culpas castigou-as Cristo com as três perguntas. As três injúrias satisfê-las Pedro com as três respostas —  e isto é o que diz S. Agostinho e Santo Tomás —  porque confessou Pedro três vezes, como três vezes tinha negado: Trinae negationi redditur trina confessio. As três culpas castigou-as Cristo com as três perguntas, e isso é que eu acrescento e provo, porque perguntar Cristo três vezes a São Pedro se o amava, era mostrar que duvidava de sua fé e de seu amor. E duvidar o príncipe do coração do vassalo é a maior pena e o maior castigo que lhe pode dar, e mais em tal pessoa como S. Pedro, que já nesta matéria tinha telhado de vidro. E se não, vede se lhe doeram as perguntas: Et contristatus est Petrus, guia dixit ei tertio: amas-me? (Jo. 21, 27): Entristeceu-se e afligiu-se Pedro de lhe fazer Cristo tantas perguntas sobre o seu amor. —  As perguntas que o entristeciam, sinal é que lhe tocavam no vivo, e lhe chega­vam ao coração. E por que não faça reparo dizer eu que foram castigo as perguntas, o mesmo Agostinho, falando desta tristeza que nasceu delas a S. Pedro, diz que foi em pena dó seu antigo pecado, porque, ainda que estava perdoado quanto à culpa, não estava perdoado de todo quanto à pena. De maneira que é tal pena e tal castigo uma dúvida em matéria de fé e de lealdade, que, quando Cristo quis que pagasse inteiramen­te S. Pedro a culpa de o haver negado, não lhe buscou outra pena nem outro castigo. Castigou as três negações com três dúvidas, e porque lhe tinha negado três vezes a fé, duvidou-lhe três vezes o amor: Contristatus est Petrus, guia dixit ei tertio: amas-me?

Mas, poderá dizer alguém que castigar negações com dúvidas não foi propor­cionado castigo, porque a dúvida pesa muito menos que a negação. Ora estimo que se ponha em balança este ponto, ainda que nos detenhamos mais um pouco nele, pois é matéria tão própria do tempo presente, e que tanto importa às honras dos que padecem as dúvidas como às consciências dos que as fazem padecer. Respondo pois e digo que foi a pena muito proporcionada à culpa, em castigar Cristo três negações com três dúvidas, porque, em pontos de fé e de lealdade, tanto peso tem uma dúvida, como uma negação.

No capítulo I De Haereticis se define que o duvidoso na fé é herege: Dubius . . in fide est haereticus. Esta definição é fundada na doutrina comum dos Padres, confirma­da por muitos pontífices, e geralmente recebida de todos os canonistas e teólogos. Contu­do, não deixa de ser dificultosa a razão dela. Heresia é erro contra a fé; para haver erro é necessário juízo; quem duvida não julga, porque não nega nem afirma: logo não pode ser herege. E se é herege o que duvida, em que consiste a sua heresia? Eu o direi. Quem nega a uma proposição de fé, diz que é falsa; quem a duvida, ainda que não diga que é falsa, supõe que o pode ser, e tanto ofende a fé quem supõe que pode ser falsa, como quem diz que o é, Antes digo que maior injúria faz à fé quem a duvida que quem a nega, porque quem a nega pode-a ofender em um só artigo, e quem a duvida ofende-a em todos. O mesmo passa na fé humana, a qual em ânimos generosos, nem deve ser menos delicada, nem é menos sensitiva. Quem nega a minha lealdade, diz que sou desleal; quem ma duvida, ainda que não diga que sou desleal, supõe que o posso ser, e tanto me ofende, não só na honra e primor da fidelidade, senão na inteireza, na constância e no ser dela, quem supõe que posso ser desleal, como quem diz que o sou.

Vejamos discorrer neste ponto um dos homens mais leais que teve o mundo. Tentou a egípcia descobertamente a José, e respondeu ele que não podia ser desleal a seu Senhor, a quem tanta confiança e tantas obrigações devia: Ecce Dominus meus, omnibus mihi traditis, ignorat quid habeat in domo sua; quomodo ergo possum hoc malum facere?[4]. Neste quomodo possum reparo muito. Por que não disse José: não quero, senão: não posso? Por que não disse: não quero, por não ser infiel e desleal a meu senhor? Por que não disse: não quero, porque se pode vir a saber? Por que não disse: não quero por temor da infâmia, não quero por temor da vida? Enfim, por que não disse por qualquer outro motivo: não quero, senão: não posso? Porque se deu José por mais afrontado na suposição da egípcia, que na mesma tentação. Esta mulher com a sua tentação, diz José, provoca-me a ser desleal: quem me provoca a ser desleal, já no seu pensamento supõe que o posso ser. E quem supõe no seu pensamento que posso ser desleal, nesta suposição e neste pensa­mento já me tem gravemente ofendido. Antes, mais me ofende e mais me tem ofendido nesta suposição e conceito infame que tem de mim, que na mesma tentação, porque a tentação argúi deslealdade no que ela deve ser e não é, e a suposição admite infidelidade no que eu devo ser, e sou. Pois, para que saiba e se desengane a egípcia, que supõe um impossível, e que não posso eu ser desleal, como ela cuida, por isso responde José à suposição do pensamento, e não ao requerimento da tentação; por isso não disse: não quero, senão: não posso: Quomodo ergo possum?

Oh! servo verdadeiramente leal! Oh! ânimo verdadeiramente honrado e generoso! Quantos parecem muito leais e fiéis, porque não há quem lhes puxe pela capa! Por isso a largou José, como afrontada e não sua. Mas não deixemos sem ponderação o que mais disse. Às palavras: Quomodo possum ergo hoc malum face­re, acrescentou José: et peccare in Deum meum? Como posso eu cometer esta desle­aldade a que me provocas, e pecar contra meu Deus? Segue-se logo, José —  vede o que dizeis —  segue-se logo que, em matéria de deslealdade, não podeis pecar. Assim se segue, e assim é, e assim o creio de mim, diz José. Nas outras matérias, basta não ser pecador; na matéria de lealdade é necessário ser impecável. Em pontos de lealda­de, quem não é impecável é desleal. Vede se a uma honra tão delicada, e tão escru­pulosa, e tão honrada como esta, a ofenderia mui sensivelmente só a imaginação de um possível. A lealdade, que não é tão sutil como isto, é mui grosseira lealdade. Há-se de ofender a verdadeira lealdade da suposição de um possível em pensamento, e tão herege há de ser da minha fé quem ma duvide, como quem ma negue.

Estas dúvidas, estas suspeitas, estas suposições, estas afrontas padecia S. Roque na sua prisão, e todas as ponderações do nosso discurso eram fuzis de que ele formava outra cadeia muito mais dura e mais pesada à nobreza de seu ânimo, do que eram as de ferro, que lhe prendiam e atavam o corpo. Quando os irmãos do mesmo José se viram prender no Egito por espias, de que estavam tão inocentes, grande foi a sua aflição, mas lá acharam a culpa deste castigo e o motivo desta desgraça, na deslealdade tão cruel que tinham usado com seu irmão: Merito haec patimur, guia peccavimus in fratrem nostrum[5]. Porém a inocência sempre leal, e a lealdade sem­pre inocente de São Roque, que por uma ocasião tão pia, como ir da sua pátria peregrino a Roma, se veja dentro na mesma pátria com a honra em opiniões, com a vida em riscos, e com as mãos e pés em cadeias? Brava desgraça! Contudo o Evan­gelho ainda insiste em que foi bem-aventurado: Beati sunt servi illi. E por quê? Porque nestas mesmas prisões foi S. Roque semelhante a Cristo preso.

Quando S. Roque estava na sua prisão, concorriam ao cárcere os enfer­mos de todo o gênero, os cegos, os mancos, os aleijados, e era coisa maravilhosa de ver, que, estando o santo às escuras, dava olhos; tendo as mãos atadas, dava mãos, e, não tendo uso dos pés, dava pés, e todos levavam saúde. Pois, homens cruéis, homens ímpios, homens bárbaros, vedes estes prodígios, vedes estes testemunhos do céu, vedes estes sinais manifestos da onipotência, e não rompeis esse cárcere, não quebrais essas cadeias? É possível que, à vista de tantas maravilhas, haveis de dei­xar estar preso ao autor delas? Sim, porque assim era necessário que fosse para ser semelhante S. Roque a Cristo preso. Vieram os inimigos de Cristo a prendê-lo por zelo da pátria —  que também se pareceu a prisão de S. Roque à de Cristo na causa como na inocência —  disse o Senhor: Ego sum (Jo. 18, 5): Eu sou, e caíram subita­mente a seus pés todos os que o iam prender. Quis-se aproveitar da ocasião S. Pedro, e seguir a vitória, tira pela espada, faz golpe à cabeça do primeiro, leva-lhe a orelha, mas o Senhor, mandando meter a espada no lugar da espada, pôs também a orelha no lugar da orelha, e ficou em presença e nos olhos de todos como se não fora cortada. Que vos parece agora que fariam aqueles homens à vista de dois milagres tão grandes, tão patentes, tão súbitos? Parecia-me a mim que se haviam de levantar todos, e irem-se lançar aos pés de Cristo; mas o que fizeram foi o contrário: Iniece­runt manus in Jesum, et tenuerunt eum (Mt. 26, 50). Em vez de se lhe lançarem aos pés, puseram-lhe as mãos e prenderam-no. Vede se se parece a prisão de S. Roque com a de Cristo; a ambos não valeram os milagres contra as prisões. Cristo milagro­so e S. Roque milagroso, mas Cristo preso e S. Roque preso. 

Ainda não está descoberto o mais fino da semelhança. Se Cristo com uma palavra: Ego sum: eu sou, faz cair de repente a seus pés todos os que o queriam prender, por que se deixa ir preso? E se queria —  como é certo que queria —  que o prendessem, por que faz que caiam primeiro a seus pés com dizer: eu sou? A razão foi porque nos quis Cristo mostrar quanto tinha de fineza o deixar-se prender por nós. Deixar-se prender um homem, ainda que seja inocente, não é coisa nova.; mas um homem, que com dizer: eu sou, pode fazer cair a seus pés os mesmos que o prendem, que se deixe prender contudo por amor de outrem, grande fineza! Tal foi a de Cristo, tal foi a de S. Roque. Prenderam a S. Roque seus próprios vassalos, na sua própria cidade, porque, como deixamos dito, vinha tão mudado de trajos, e ainda de pessoa, que o não conheceram. Se S. Roque se descobrira, se S. Roque dissera: Ego sum: Eu sou, os mesmos que o prenderam, haviam de cair a seus pés e beijar-lhe a mão, como a seu verdadeiro senhor. E que podendo S. Roque fazer cair a seus pés os mesmos que o prendiam com dizer: eu sou, se deixasse prender contudo, por amor de Cristo? Fineza foi só como de Cristo e como sua. Muitos santos houve que esti­veram presos muitos anos por amor de Cristo, mas a prisão e a liberdade estavam na mão dos tiranos; porém S. Roque esteve preso quase todos os anos da vida, tendo a prisão e a liberdade na sua mão.

Na vida dos Padres se conta que um santo penitente se prendeu em um deserto a uma cadeia, e, para se não poder soltarem toda a vida, lançou a chave ao mar; ao outro dia saiu à praia um peixe com a chave na boca, e foi revelado ao santo que mais se agradaria Deus de que se deixasse estar preso tendo a chave na mão. Esse é o verdadeiro sacrifício da liberdade. Prender-se e lançar a chave ao mar, é prender-se uma vez; prender-se e deixar as chaves consigo, é estar-se pren­dendo sempre. Eis aqui a diferença que fazem as cadeias de São Roque às cadeias de S. Pedro e dos outros santos. S. Pedro esteve preso alguns dias, mas a chave estava na mão de Herodes. José esteve preso dois anos, mas a chave estava na mão de Faraó. Porém S. Roque esteve preso toda a vida, e tinha a chave na sua mão. Bastara dizer S. Roque: eu sou, para trocar o cárcere com o palácio, os ferros com as jóias, a infâmia com a honra, as injúrias com os aplausos, as afron­tas com as aclamações, e contudo não quis dizer: Eu sou. Com outro eu sou, no Egito: Ego sum Joseph, frater vester[6], se trocaram aos irmãos de José as tristezas em festas, as fomes em banquetes, os temores em parabéns, e as prisões em abra­ços. Mas S. Roque, no escuro teatro da sua prisão, quis antes representar a tragé­dia de Cristo, que a comédia de José, e não disse: eu sou, porque não queria ser ele, queria ser Cristo por viva imitação, e assim o foi. E quem foi tão venturoso, que, sendo servo, se pareceu com seu Senhor, não se diga que é desgraciado, senão bem-aventurado: Beati sunt servi illi.

§V

A terceira desgraça de S. Roque: ser desgraciado com as enfermidades. Tra­ta primeiro o autor da desgraça dos remédios. Os fabricadores da Arca de Noé, os mais desgraciados homens do mundo. O temor de S. Paulo. S. Roque em remediar aos outros e morrer sem remédio, se pareceu com Cristo morto. Cristo morto com o remédio em que dava a vida a todos, pregado nos braços; Roque morto com o remédio em que dava a vida a todos, formado nas mãos.

A terceira desgraça de S. Roque foi ser desgraciado com as enfermida­des; mas haveis-me de dar licença para que troque o lugar a esta desgraça e a deixe para o fim, porque quero acabar com ela, como tão própria de tempo presente, e por isso abreviarei este ponto. Primeiro trataremos da desgraça dos remédios; depois falaremos na desgraça das enfermidades. E provera a Deus que fizera o vosso cuida­do o que agora faz o meu discurso, porque primeiro se padecem as enfermidades, e depois se trata dos remédios: por isso, são os remédios desgraciados.

Foi S. Roque desgraciado com os remédios, porque curando milagrosa­mente a todos os apestados, ele morreu de peste. Pode haver maior desgraça que esta? Que, dando um homem remédio aos outros, lhe falte o mesmo remédio para si? Não pode haver maior desgraça! A maior e mais geral desgraça que se padeceu no mundo foi o dilúvio universal: mas se nesta desgraça comum houve homens mais mofinos e mais desgraciados que os outros, quem pode duvidar que foram os fabricadores da Arca de Noé? Tantos anos estiveram estes homens fabricando aquela nova máquina nunca vista no mundo, em que se haviam de salvar as relíquias dele, já cortando, já serrando, já lavrando, já medindo, já ajustando, já pregando, já calafetando, já breando, e que no cabo entrassem na arca Noé e seus filhos, e os animais de todas as espécies, e se salvassem nela do dilúvio, e que os mesmos que a tinham fabricado, ficassem de fora e perecessem afogados? Brava desgraça! Que fabricássemos nós o instrumento da sal­vação para os outros, e que eles se salvem, e nós pereçamos? Que a arca fosse trabalho nosso, e não seja salvação nossa, senão sua? Que à custa de nosso suor e de nossos braços se salvem eles, e que à vista da sua salvação nos percamos nós? Oh! desgraça! Oh! mofina! Oh! desventura sem igual! Agora se entenderá a energia de umas palavras de S. Paulo, muito repetidas, mas não sei se bem pesadas: Castigo corpus meum, et in servitutem redigo, ne cum aliis praedicaverim, ipse reprobus efficiar (1 Cor. 9, 27): Faço penitência, diz S. Paulo, para que pregando aos outros, não me condene a mim. —  Reparai muito naquele: para que pregando aos outros.

A razão de não se querer condenar um homem é tão cabal, que não há mister ajudada de outra. Pois se S. Paulo dá por razão a sua penitência o não se querer condenar, por que acrescenta a circunstância de ser pregador: Ne cum aliis praedicave­rim? Irem ao inferno os que não são pregadores, é pequena miséria? Grande miséria é, mas em gênero de desgraça é muito menor. A maior desgraça de todas é não se salvar um homem; mas não se salvar um homem que tem por exercício salvar aos outros, ainda é maior desgraça que a maior de todas as desgraças. E tal seria a de Paulo se sendo pregador e ministro da salvação dos outros, ele se não salvasse. Oh! quantos desgraciados há destes no mundo, em todos os estados! Quantos prelados há que cu­ram as almas das ovelhas, e têm enfermas as suas! Quantos governadores que guiam e encaminham os povos, e eles se desgovernam e desencaminham! Quantos conselhei­ros que dão muito bons conselhos aos outros, e eles perdidos e desaconselhados! Cai-fás era Sumo Sacerdote: ensinou o remédio com que se havia de salvar o mundo, e ele ficou sem remédio. Moisés era governador do povo de Deus: introduziu as tribos na Terra de Promissão, e ele ficou de fora. Aquitofel era o melhor conselheiro daquela idade, e, vivendo tantos príncipes do seu conselho, ele foi tão mal-aconselhado, que se matou com o seu. Oh! que grande desgraça esta! Todos a dar remédios a tudo, e nin­guém a tomar remédio. Não só nos homens, em que as desgraças são conseqüência dos vícios, mas até nas mesmas virtudes acho esta desgraça. Que maior virtude que a fé? Sem fé ninguém se pode salvar; mas em todos os que se salvam se perde a fé, porque se não pode conservar com a vista. Que não possa haver céu sem fé, e que não possa haver fé no céu? Virtude que mete aos outros no céu, e fica de fora? Virtude que salva aos outros, e se perde a si? —  Se nas virtudes pode haver desgraça —  desgraciada virtude! Tal era a virtude milagrosa de S. Roque: dava remédio aos outros, e ele morreu sem remé­dio. Mas, sendo esta desgraça tão grande, diz contudo o evangelista que foi bem-aven­turado S. Roque: Beati sunt servi illi, porque em remediar aos outros e morrer sem remédio, se pareceu S. Roque com Cristo morto.

A morte de Cristo foi remédio nosso, mas não foi remédio seu. Reme­diou-nos Cristo a nós, porque nos deu a vida, mas não se remediou a si, porque morreu. Esta foi a maior fineza do Salvador do mundo, nem ponderada dos homens, porém muito mal-entendida, e pior aplicada. Quando Cristo estava para expirar na cruz, blasfemavam os príncipes dos sacerdotes, e diziam: Alios salvos fecit: se ip­sum non potest salvos facere (Mt. 27, 42): Salvou aos outros, e a si não se pôde salvar: —  Grande blasfêmia contra Cristo, mas grande louvor da paciência, da mise­ricórdia e da caridade de Cristo. Em dizerem que não podia, blasfemavam; mas em dizerem que salvando aos outros —  como salvou a tantos da morte —  não se salvava a si, diziam o maior louvor e a maior glória do mesmo Salvador e do soberano modo com que salvava. A mais gloriosa fineza e a mais fidalga soberania de quem dá a saúde e vida a outros, é não a tomar para si; antes dar-lha à custa da sua. Isto é o que fez Cristo, e esta foi a maior ação de um homem que juntamente era Deus. Oh! divino Roque! Quão bem vos puderam blasfemar os judeus, e quão justamente vos devemos louvar nós. Curava S. Roque milagrosamente a todos os feridos da peste, e quando o mundo o viu ferido do mesmo mal, cuidavam todos que ele se salvaria também a si, discorrendo com o mau ladrão: Salva temetipsum, et nos[7]porém o santo, como verdadeiro imitador de Cristo na morte, salvou aos outros, e a si não se salvou: Alios salvos fecit, se ipsum non potest salvum facere.

Tornemos àquele non potest, que, bem examinado, ainda contém outro maior primor da semelhança de S. Roque com Cristo. Cristo absolutamente pudera dar a vida ao gênero humano sem morrer; mas condicionalmente, não podia. E neste sentido era verdadeira a proposição dos príncipes dos sacerdotes, posto que eles a não entendiam. Porque, suposto o decreto divino, tantas vezes declarado pelos pro­fetas, de que o Filho de Deus morresse para salvar aos homens, não podia deixar de morrer. Pois assim como, suposto o decreto de que Cristo havia de salvar o mundo por meio da morte de cruz, não podia deixar de morrer Cristo, assim, suposto o favor —  que também foi decreto —  de que S. Roque imitasse a Cristo na semelhança da sua morte, não podia deixar de morrer S. Roque. Cristo, dando a vida aos demais por meio da cruz, mas morrendo ele, e S. Roque também, dando a vida aos outros, e também por meio da cruz, e morrendo ele também.

O modo com que S. Roque sarava aos apestados, era fazendo sobre eles o sinal da cruz. E esta cruz, assim para com os outros como para consigo, foi em tudo a mais parecida com a cruz de Cristo. A cruz de Cristo, como instrumento da nossa vida e da sua morte, se bem advertirmos, tinha direito e avesso. Para fora dava vida, para dentro deixava morrer; para fora dava vida, porque a cruz foi a árvore da vida de todo o gênero humano; para dentro deixava morrer, porque em seus próprios braços expirou e morreu Cristo. Tal a cruz, ou o sinal da cruz milagroso que formava sobre os apesta­dos a mão de Roque. Nenhum sinal da cruz se viu nunca no céu ou na terra, nem mais semelhante nem mais sinal que este. Para fora dava vida, porque a todas sarava do mortalíssimo mal da peste, e para dentro deixava morrer, porque morreu S. Roque do mesmo mal. Cristo morto com o remédio, em que dava a vida a todos, pregado nos braços; Roque morto com o remédio, em que dava a vida a todos, formado nas mãos. E servo, que morrendo se pareceu tão vivamente a seu Senhor, vede se merece o nome que lhe dá o Evangelho de bem-aventurado: Beati sunt servi illi.

§ VI

A última desgraça de S. Roque: ser enfermo, e de peste. Primeira razão por que a peste é o pior dos males: porque faz do ar, elemento da vida, elemento de morte. A maldição de Davi contra Judas. Os laços da mesa de que fala o profeta. Segunda razão: mal, em que o dizer: estai comigo, é querer mal, e o dizer: fugi de mim, é querer bem. As últimas palavras da esposa dos Cantares ao esposo. Os horrores da peste nas cidades, e a peste do reinado de Davi. Um apelido injurioso: S. Roque, como Cristo crucificado, peste da peste: A ameaça de Cristo pela boca do profeta Oséias. Por que quis Cristo morrer no ar e ao ar? Cristo crucificado e o contágio da saúde. Milagres de S. Roque durante a peste de Constância. A imagem de S. Roque e o contágio divino da sombra de S. Pedro.

Somos chegados à última desgraça de S. Roque, que reservei para este lugar para que nos fique mais na memória, porque nos nossos pecados, não só a deve­mos considerar de longe, como desgraça sua, senão de perto e de dentro, conto desgra­ça também nossa. Ardendo está em peste o Reino do Algarve, e, se der um passo adiante o incêndio, que será de Portugal? Assim como foi S. Roque desgraciado com os remédios, foi também, e já tinha sido, desgraciado com as enfermidades. Padecer alguma enfermidade, parece que é conseqüência de ser mortal, e assim mais se deve chamar natureza, que desgraça. Contudo não deixa de ser desgraça, e notável desgraça, que, havendo um homem de padecer a miséria de enfermo, vá logo topar com a pior - enfermidade, e a mais terrível de todas. Assim lhe aconteceu a S. Roque: enfermou, e enfermou de peste. E entre as misérias, que fazem tão terrível, tão temido e tão aborre­cido o mal da peste, duas são as que a mim me causam maior horror. A primeira, ser a peste um mal que do elemento da vida nos faz o instrumento da morte. O elemento da vida é o ar com que respiramos; a peste é esse mesmo ar corrupto e infeccionado. E que haja um homem de beber o veneno na respiração? Que a respiração, que é o elemento e o alimento da vida, se lhe haja de converter em instrumento da morte? Grande rigor! Expirar é morrer, respirar é viver: e que morra um homem expirando, isso é morte; mas morrer respirando? Que mate o que me havia de dar vida? Bravo tormento!

Lança uma maldição Davi contra Judas e seus sequazes, e diz assim, falan­do com Deus: Fiat mensa eorum in laqueum (SI. 22, 5): Já que esse infame discípulo é tão ingrato, tão desleal, tão traidor, permita vossa infinita justiça, Senhor, que a ele e aos que forem como ele, da mesa se lhe faça o laço: Fiat mensa eorum in laqueum. Não reparo em o laço se poder fazer da mesa, porque tudo o que afoga é laço. Noutra maldição semelhante tinha dito o mesmo Davi: Pluet super peccatores laqueos (SI. 10, 7): Que choveria Deus laços sobre os pecadores. —  Quantas coisas há que parecem vindas do céu, e são laços! Uns tece o demônio, outros apertam os homens, outros chove Deus. Que foi o dilúvio universal senão laços chovidos? Com aquela água cho­vida do céu, se afogou o mundo. E se há laços que se bebem, por que não haverá laços que se comam? Estes são os de que fala Davi: Fiat mensa eorum in laqueum. Mas já que há tantos gêneros de laços, por que deseja o zeloso e justiceiro rei que o laço com que se afogue Judas seja laço feito da mesa? Porque a mesa é o instrumento natural da vida, e perder a vida pelos instrumentos da vida é o mais terrível gênero de morte que se pode imaginar. Formar um laço de cordas, apertar com ele a garganta, fechar a respiração, e matar entre portas a vida, rigor é de morrer trabalhoso, violento, angustiado, terrível, mas alfim é padecer a morte pelos instrumentos da morte; mas assentar-se à mesa para alentar, para sustentar, para recrear a vida, e que o mesmo bocado que meto na boca se me converta em laço na garganta, muito maior rigor, muito maior violência, muito maior tormento, muito maior horror é este de morte, porque é perder a vida pelos instrumentos da vida. Perder a vida pelos instrumentos da vida e converter-se a mesa em laço, é morrer morte traidora. O bocado que me mata é traidor, porque, com pretex­to de me sustentar a vida, ma tira. E um traidor como Judas, era bem que o matasse uma morte também traidora: Osculum tradis Filium hominis[8]Entregaste com um beijo, morrerás com um bocado. Finalmente, como a maldade de Judas merecia ser castigada com a mais cruel de todas as mortes, por isso desejava e pedia Davi que o laço se lhe fizesse da mesa, e não das cordas, porque muito mais cruel gênero de morte é padecer a morte pelos instrumentos da vida que perder a vida pelos instrumentos da morte. Assim o desejava Davi, mas muito melhor o executou Judas. Davi desejava que a mesa se lhe convertesse em laço, e Judas executou em si uma morte com o laço, e outra morte com a mesa: uma morte com o laço, porque se enforcou; outra morte com a mesa, porque comungou em pecado. Matou Judas o seu corpo, e matou a sua alma, mas muito mais cruel verdugo foi com a sua alma que com o seu corpo, porque, ao corpo, deu-lhe a morte com o instrumento da morte: Laqueo se suspendit[9]e, à alma, deu-lhe a morte com o instrumento da vida: Qui manducat hunc panem, vivet [10]E morrer às mãos da vida, oh! que desgraça! Não aplico, por não gastar dois tempos em uma coisa.

Vamos à segunda. A segunda razão ou miséria por que tenho pelo mais des­graçado de todos os males a peste, é porque nas outras enfermidades o maior benefício que vos pode fazer quem vos ama, é estar convosco; na peste, a maior consolação que vos pode dar quem amais é fugir de vós. Mal em que o dizer: estai comigo, é querer mal, e o dizer: fugi de mim, é querer bem. Grande mal! Se a peste não fora enfermidade mortal, só por isso matara. Acaba o último capítulo dos Cantares, falando a esposa com o esposo, e diz assim: Fuge, dilecte mi (Cânt. 8, 14): Fugi, amado meu. —  Estas foram as últimas palavras que disse a esposa; com estas se lhe acabou a vida, e se acaba a história. O que reparo aqui é que não nos diga o texto de que morreu a esposa, sendo que, em todo o discurso de sua vida, teve bastantes causas que lha pudessem tirar. Primeiramente a esposa esteve enferma duas vezes, e de enfermidade perigosa: Quia amore langueo[11]Andou nos perigos da guerra com seu esposo: Equitatui meo in curribus Pharaonis, assimilavi te, amica meã[12]. Roubaram-na e feriram-na os soldados dos muros: Percusserunt me, et tulerunt pallium meum custodes murorum[13]Viu-se por vezes maltratada de seu esposo, e porventura desprezada: Surrexit, ut aperirem dilecto at ipse declinaverat, atque transierat[14]Pois se a esposa era tão forte contra os trabalhos do corpo e contra as moléstias da alma, se esteve duas vezes enferma e viveu, se a feriram e sarou, se foi à guerra e tomou com vida, se se viu desquerida e desprezada e teve constância, que mal foi este agora tão grande a que não pôde resistir e a matou com as palavras na boca? As mesmas palavras odizem: Fuge, dilecte mi: Fugi, amado meu. —  Viu-se a esposa em estado —  qualquer que ele fosse —  que foi forçoso dizer a seu amado, que fugisse dela: Fuge, dilecte mi; e quem se vê em tão miserável estado, que lhe é forçoso dizer a quem mais ama, fugi de mim, não lhe perguntem de que morre: esse mal a matou. Grandes males são as enfermidades, as feri­das, as guerras, os desgostos, os desprezos, os temores, e outros que a esposa padeceu e se padecem no mundo; mas mal em que é forçoso dizer aos que mais amais que fujam de vós, esse é o maior mal de todos os males, esse é o que acaba o valor na maior paciência, esse é o que tira a vida na maior constância. Tal é o mal da peste. Um mal em que haveis de dizer aos que mais amais e vos amam: fugi de mim.

Não sei maior encarecimento da peste, enquanto mal particular e enfer­midade de um homem, como era em S. Roque, mas enquanto mal comum e enfermi­dade das cidades, das províncias, dos reinos; quem poderá bastantemente conside­rar, nem compreender as infelicidades, as misérias, as lástimas, os horrores, que em si contém a desgraça geral de uma peste? Os portos e as barras fechadas, e os nave­gantes alongando-se ao mar, e não só fugindo da costa, mas ainda dos ventos dela; os caminhos por terra tomados com severíssimas guardas; o comércio e a comunica­ção humana totalmente impedida; as ruas desertas e cobertas de erva e mato, como nos contavam e viram nossos maiores, nesta mesma cidade de Lisboa; as portas trancadas com travessas e almagradas; as sepulturas sempre abertas, não já nas igre­jas, nem nos adros, senão nos campos, e talvez caindo nessas sepulturas, mortos, os mesmos vivos que levam a enterrar os outros defuntos; a fazenda adquirida com tanto trabalho, guardada com tanta avareza, estimada com tanta cobiça, já despreza­da, e já lançada ou alijada, como na extrema tempestade, não à água, senão ao fogo, e vendo-se arder sem dor; o amor natural do sangue —  como todo o outro amor —  ou atônito, ou esquecido; os irmãos fugindo dos irmãos, os pais fugindo dos filhos, os maridos fugindo das mulheres, e todos querendo fugir de si mesmos, mas não po­dendo, porque a saída é indispensavelmente vedada e impossível. A razão e a pieda­de têm ali cruelmente presos e sitiados os miseráveis, para que se matem antes a pé quedo entre si, e não saiam a matar os outros; mas, oh! que dor! oh! que angústia! oh! que aflição! oh! que ânsia! oh! que violência! oh! que desesperação tão mortal! E nem ainda para cuidarem os homens, ou pasmarem deste seu estado, lhes dá tempo nem lugar a morte. Em seis horas matou a peste de Davi setenta mil de um povo. Vede em tal horror, e tão súbito, se haveria homem que estivesse dentro em si, e se estariam tão mortos em pé os mesmos vivos como os que caíam mortos? Isto que digo, cristãos, ou isto que não sei dizer, praza a Deus que o ouçamos somente, e que o não vejamos nem experimentemos. Mas do Algarve a Portugal é menos que de Tânger ao Algarve, e não há tanto mar nem tantos ventos em meio.

As diligências, as vigias, as cautelas que se fazem contra este mal tão vizi­nho, são muito prudentes, muito devidas, muito necessárias, mas contra os golpes da espada do céu valem pouco os reparos da terra. No meio do destroço ou carniceria que ia fazendo a peste de Davi no mal contado povo de Israel, pôs os olhos no céu o lastimado e lastimoso rei, e viu um anjo com a espada desembainhada e escorrendo sangue, que já ameaçava o golpe sobre a corte de Jerusalém. Ah! se Deus nos abrisse agora os olhos, como é certo que havíamos de vera mesma espada goteando já sangue nosso, e ameaçando mais sangue e maior golpe sobre Lisboa e sobre Portugal! O peca­do por que Deus castigou com aquela horrenda peste a Davi, comparado com os nossos pecados, pode-se chamar inocência; mas então não tinha Jerusalém, nem tinha Israel um S. Roque, como hoje tem Lisboa e Portugal, que tivesse mão a Deus no braço da espada. Os grandes males pedem grandes remédios, e um mal tamanho, como o da peste, só o podia remediar um tamanho santo, como São Roque. Canonizado está São Roque no mundo com o nome de Advogado da peste, mas a mim me parece muito vulgar esse nome, e muito desigual à grandeza de seus poderes, e aos efeitos prodigio­sos de sua virtude. Só um nome acho igual à virtude de São Roque, e é chamar-lhe peste da peste. Parece-vos injuriosa a novidade do apelido? Ora, para que conheçais a grande glória desta injúria, sabei com maior admiração que foi São Roque peste da peste, para ser semelhante a Cristo crucificado. É a quarta semelhança que nos faltava, para beatificar a quarta e última desgraça de São Roque: Beati sunt servi illi.

Muitos séculos antes de Cristo ser pregado na cruz, mandou publicar para aquele tempo ou uma sentença ou uma ameaça contra a peste, dizendo assim pelo profeta Oséias:

Ero pestis tua, o pestis (Os. 13, 14; Lect. Hebr.): Eu serei tua peste, ó peste. — Assim se lê no texto original hebreu, onde a Vulgata com termos mais universais trasladou: Ero mors tua, o mors[15]A propriedade das palavras não pode ser maior, mas a verdade e aplicação delas parece que padece igual dificuldade. A peste, como dizíamos, é o ar corrupto e contagioso; como se pode logo verificar em Cristo crucificado que fosse peste da peste? Responderei, se me satisfizerem primeiro a outra pergunta. Pergunto: Por que quis Cristo morrer no ar, e ao ar? No ar, sendo levantado em uma cruz; ao ar, sendo crucificado em um monte descoberto e patente? Bem pudera Cristo morrer dentro no templo, e com grande conveniência, pois era a vítima e o sacrifício de nossa redenção. Bem pudera morrer sobre a terra, e também com grande conveniência, pois a terra e os homens, de terra eram os que vinha salvar. Que razão teve logo Cristo para não querer morrer senão no ar, e ao ar? A pergunta e a resposta tudo é de S. João Crisóstomo: Quare in edito loco, et non sub tecto? In excelso loco, ut aeris naturam purgaret, oblatus est: Escolheu Cristo padecer no ar, e ao ar, em um monte e em uma cruz levantado e suspenso, porque assim como com a vida tinha santificado aterra, assim na morte queria purificar o ar; na vida, peregrinando de um lugar em outro lugar, santificou a terra com os pés; na morte, sendo levantado e estendido na cruz, purificou o ar com os braços. Mas que corrupção ou que impureza havia no ar, pela qual houvesse mister purificado? Santo Ataná­sio o explicou seguindo o mesmo pensamento, que também é de S. Cipriano: Solus ille in aere moritur, qui in cruce vitam finit: quare non sine racione eam Dominus sustinuit, ita enfim sublimatus aerem purgavitab omni diaboli, omniumque daemonum infestatione. Quando os demônios caíram do céu, não desceram todos ao inferno, mas muitos ficaram nesta região inferior do ar, para tentarem os homens e lhe fazerem guerra. Por isso S. Paulo chama aos demônios potestades do ar: Potestates aeris hujus (Ef. 2, 2). E como o elemento do ar estava corrupto, infeccionado e apestado com o contágio de tão imundos espíritos, para Cristo alim­par e purificar aquele elemento, quis obrar nele o mistério da Redenção, e escolheu entre todos os instrumentos da morte uma cruz, que o tivesse levantado e suspenso da terra, para sarar o ar no mesmo ar: In excelso loco, ut aeris naturam purgaret. E este foi o segredo da cruz, oculto a todos os séculos, com que ameaçava Cristo pelo profeta haver de ser peste da peste: Ero pestis tua, o pestis.

Bem está, mas ainda não se aquieta o pensamento, porque ser peste da peste é mais que sarar de peste. Para sarar de peste, basta sará-la de qualquer modo; mas para ser peste da peste, é necessário sarar a peste pelo mesmo modo com que a peste costuma infeccionar e matar. Assim é, e assim foi em Cristo com admirável propriedade: não só foi Cristo peste da peste, porque matou a peste, mas foi peste da peste, porque matou a peste assim como a peste mata. E como mata, ou costuma matar a peste? O modo de matar da peste é por contágio, crescendo e continuando-se a corrupção pela comunicação das partes. Corrompe o veneno da peste a primeira parte do ar, e, estando uma parte do ar corrup­ta, pega-se a corrupção à outra parte, e assim de parte em parte se vai corrompendo tudo. Dá na casa, e leva a rua; dá na rua, e leva a cidade; dá na cidade, e leva o reino. Tal foi na cruz a peste e contágio da vida, contra a peste e contágio da morte. As primeiras partes do ar, que se purificaram com a virtude do crucificado, foram as do Monte Calvário; do Calvário passou o contágio a Jerusalém; de Jerusalém a toda a Palestina, e de Palestina a todas as partes do mundo. Por uma parte pegou no Egito, e levou a África; por outra parte pegou na Arábia, e levou a Ásia; por outra parte pegou na Grécia, e levou a Europa; e assim, de terra em terra, ou de ar em ar, lavrou a peste da saúde, e purificou o mundo, desempenhando-se com admirável secreto e prodigiosa propriedade a promessa ou a ameaça de Cristo, e sendo verdadeiramente na cruz peste da peste: Ero pestis tua, o pestis.

Assim como foi peste da peste Cristo crucificado, assim é peste da peste S. Roque. Não temos menos autor, nem menor prova desta verdade, que o testemunho uni­versal de toda a Igreja Católica no Concílio Constanciense. Deu o mal da peste na cidade de Constância, quando nela se celebrava o concílio. Ardia, abrasava-se e despovoava-se tudo; recorre aquela sagrada congregação aos remédios divinos, tira em procissão uma imagem de São Roque: coisa maravilhosa ou coisa sem maravilha! Como se saíra uma peste contra outra peste, ou um contágio de vida contra outro contágio de morte, ao mes­mo passo que ia andando a procissão, ia também andando ou se ia ateando a saúde. E assim, como no furor da peste quando lavra se vêem cair com horror aqui uns, acolá outros mortos, assim naquele triunfo da vida se viam com admiração e assombro de alegria, agora levantar estes, depois aqueles, e finalmente todos saltando das camas às janelas, às portas, às ruas, aclamando, com vozes que chegavam ao céu, ao poderoso triunfador da morte, ao milagroso restaurador da saúde, ao glorioso obrador de tão grande maravilha, enfim a nova e vencedora peste da sua peste: Ero pestis tua, o pestis.

A maior maravilha em gênero de saúde milagrosa que assombrou este mundo foi a que dava São Pedro aos enfermos, só com a passagem da sua sombra. E o mais maravilhoso desta maravilha, em que consistia? Consistia em que, estando grande multidão de enfermos estendidos pelas ruas, esperando que passasse S. Pedro, bastava que a sombra do apóstolo tocasse a um, para que sarassem todos: Ut saltem umbra illius obumbraret quemquam illorum, et sanarentur (At. 5, 15). Assim o diz o rigor das palavras. Mas como podia ser assim? O instrumento da onipotência e da saúde era a sombra de Pedro: pois se a sombra de Pedro tocava só a algum dos enfermos: quem quam illorum, como podia ser que sarassem todos: et sanarentur? Somos forçados a confessar que a saúde que dava S. Pedro era saúde com propriedades de peste. Assim como na peste natural basta que dê a enfermidade em um, para que dele vá lavrando, e se pegue aos demais, assim neste contágio divino, bastava que um recebesse a saúde, para que dele se fosse ateando, e se comunicasse a todos. Esta foi a maior maravilha do maior dos apóstolos. Mas S. Roque que teve, ou por prêmio das suas desgraças, ou por primor de suas grandezas, não ter nelas outra semelhança senão a de Cristo, só a Cristo se pareceu na virtude deste divino contágio, excedendo nela a São Pedro, quando me­nos em duas grandes vantagens. O mesmo texto as aponta: Concurrebat multitudo vicinarum civitatum Hierusalem afferentes aegros.

Estava São Pedro em Jerusalém, e de todas as cidades vizinhas traziam grande multidão de enfermos, para que o santo os curasse. E depois de estarem os enfermos em Jerusalém, que faziam? Ita ut in plateas ejicerent infirmos, et ponerent in lectulis ac grabatis, ut, veniente Petro, etc.: Punham os enfermos pelas ruas nos seus leitos, para que, passando São Pedro, os tocasse a sua sombra, e recebessem saúde. De maneira que para São Pedro dar saúde aos enfermos eram necessárias duas diligências: a primeira, que viessem das outras cidades a Jerusalém, onde estava S. Pedro; a segunda, que, depois de estarem naquela cidade, os pusessem na rua, por onde São Pedro havia de passar. Comparai agora quanto maior foi a maravilha que viu a cidade de Constância em S. Roque, do que a que viu a de Jerusalém em S. Pedro. Saiu a imagem, que é a sombra de S. Roque, pelas ruas de Constância, e, sem se tirarem os enfermos às mas, saravam nas casas, saravam nas enfermarias, saravam nos hospi­tais, enfim em qualquer parte da cidade, por remota, por distante, por oculta que fosse, sara­vam todos. E parou aqui a saúde? Não parou aqui. Não só ardia em peste a cidade de Cons­tância, mas todos os povos grandes, pequenos e maiores daquela província se estavam abra­sando e perecendo ao mesmo incêndio; mas tanto que S. Roque saiu fora, e o ar reconheceu o império de sua presença e tocou, ou foi tocado, de sua virtude; no mesmo ponto, toda aquela multidão imensa de feridos e apestados, sem eles virem a S. Roque, nem S. Roque ir a eles, ficaram sãos e livres em toda a parte.

Isto sim que é purificar o ar por verdadeiro contágio; isto sim que é ser verdadeiramente peste da peste. Contágio era o da virtude de S. Pedro, mas contágio que não passava de cidade a cidade, nem de rua a rua, nem ainda da rua à casa, se não de um enfermo a outro; enfim, contágio que não merecia nome de peste. Mas o contágio da virtude de S. Roque verdadeiramente era peste da peste, porque saltavade um enfermo em outro enfermo, de uma casa em outra casa, de uma rua em outra rua, de uma cidade em outra cidade, lavrando e ateando-se a saúde em um momento em uma província inteira, e não passando adiante, porque não havia mais que sarar. Finalmente Cristo nos braços da cruz, S. Roque sobre os ombros de homens, um e outro levantado no ar: in edito loco, para quê? Um e outro para purificar o ar: Ut aeris naturam purgaret; um e outro para ser peste da peste: Ero pestis tua, o pestis.

§ VII

A ameaça de peste em Portugal, e o poder de S. Roque. Oração.

Este é o mal que nos está ameaçando, cristãos, esta é a espada da divina justiça que já temos metida no peito, e só lhe falta penetrar mais, e chegar ao cora­ção. O que importa é —  se os mesmos pecados que provocam o castigo, nos não cegam —  que pois temos o remédio tão pronto, tão poderoso e tão propício, nos socorramos dele a tempo. Invoquemos a S. Roque com grande fé e com grande confiança; peçamos-lhe nos valha neste trabalho tão próprio dos seus poderes e da sua virtude. Ou para não sermos ingratos, não lhe peçamos que nos valha, senão que continue a nos valer, porque ele é o que nos tem valido, e ele é o que nos está valendo. Quem cuidais que está tendo mão na peste, nas raias do Algarve? Quem cuidais que a está rebatendo, para que não entre em Portugal, senão a virtude daque­le glorioso triunfador dela, sempre tão propício a este Reino? Mandou Deus fogo do céu que abrasasse o povo de Israel —  também por muito menos pecados do que são os maiores nossos; —  ia lavrando o incêndio desapoderadamente, e já tinha abrasado e feito em cinza a mais de catorze mil, quando acudiu a toda a pressa Arão, com um turíbulo nas mãos, e diz o texto que, metendo-se entre os mortos e os vivos, e fazen­do oração pelo povo, parou o incêndio: Stant inter mortuos et viventes, deprecatus est pro populo, et plaga cessavit (Núm. 16, 48). Cristãos, portugueses, já a ira do céu saiu da mão de Deus, como disse Moisés neste caso, já o fogo está ateado, já nos está abrasando: iam egressa est ira a Domino, et plaga desaevit. E se o incêndio tão poderoso e tão apoderado contra sua natureza, tem parado naquelas raias, e não passa adiante, é porque S. Roque, como outro Arão, se meteu inter mortuos et viven­tes, entre os mortos do Algarve, e os vivos de Portugal, e ali com o incenso de suas orações está conservando e preservando o ar puro e são desta parte, para que o não corrompa o infeccionado da outra.

Oh! quem me dera palavras, poderoso santo, para dignamente vos louvar neste caso, e explicar a grandeza desta maravilha! Que poder se viu nunca no mundo que fizesse uma risca no ar, e pusesse limites ao de uma parte, para que não passasse à outra? Isto é o que estais obrando e o que estamos vendo. A maior maravilha que Jó considerava no poder de Deus era pôr balizas ao mar, e dizer-lhe: Aqui chegarás, e não passarás daqui: Circumdedi illud terminis suis, et dixi: huc venies, et non procedes amplius (Jó 38, l0 s). Mas quanto maior e mais prodigiosa maravilha é ter posto estas mesmas balizas ao elemento do ar, tanto mais livre, tanto mais mudável, tanto mais sutil, tanto mais indômito, tanto mais furioso, tanto mais inconstante? Assim o tem S. Roque hoje enfreado e obediente nas raias de Portugal, permitindo-lhe somente que chegue até ali: huc venies, e mandando-lhe, com império onipoten­te, que pare e não dê um passo mais adiante: et non procedes amplius.

Mas o que até agora tem sido tão poderosa resistência, glorioso santo, muito maior glória será de vosso poder, se for perfeita vitória. Assim o pede a inteira imitação de Cristo crucificado, e o milagroso e singular título que dele participastes de peste da peste. Bem vemos e conhecemos que à virtude deste soberano título devemos a suspensão maravilhosa daquele contágio, que não pode ser obra da natureza. Bem vemos e conhecemos que nas raias de Portugal se estão combatendo fortemente a mor­te e a saúde, e que se não tem entrado nem prevalecido contra nós a peste dos homens, é porque temos da nossa parte a peste da peste. Ide por diante pois, glorioso vencedor, ide por diante, e possam mais diante de Deus para com vossa piedade, as misérias que padecem aqueles tão afligidos povos, que a continuação das culpas nossas, com que ainda ajudamos o castigo das suas. Supra o vosso poder a nossa fraqueza, supra o vosso merecimento a nossa indignidade, supra a vossa graça com Deus a nossa ingra­tidão tão repetida. Assim o cremos, assim o esperamos da virtude de vossa intercessão, e que, assim como as nossas culpas nos fizeram companheiros desta vossa desgraça, assim o vosso favor nos faça participantes do remédio dela, que é a última bem-aven­turança vossa, com que aquelas venturosas quatro desgraças vos fizeram quatro vezes bem-aventurado: Beati sunt servi illi.

 

[1] Bem-aventurados aqueles servos a quem o Senhor achar vigiando, quando vier; e se vier na segunda vigília, e se vier na terceira vigília, e assim os achar, bem-aventurados são os tais servos (Lc. 12, 37 s).

[2] E sede vós outros semelhantes aos homens que esperam ao seu senhor (Lc. 12, 36).

[3] Conheceu o boi a seu possuidor, e ojumento o presépio de seu dono, mas Israel não me conheceu (Is. 1, 3).

[4] Eis que meu Senhor, depois de me ter entregue tudo, ignora o que tem em sua casa; como pois posso eu cometer esta maldade

(Gên. 39, 8 s)?

[5] Justamente padecemos estas coisas, porque pecamos contra o nosso irmão (Gên. 42, 21).

[6] Eu sou José, vosso irmão (Gên. 45, 4).

[7] Salva-te a ti mesmo e a nós outros (Lc. 23, 39).

[8] Com um beijo entregas o Filho do homem (Lc. 22, 48)?

[9] Foi-se pendurar de um laço (Mt. 27, 5).

[10] Quem comer deste pão viverá.

[11] Porque estou enferma de amor (Cân. 5, 8).

[12] À minha cavalaria nos carros de Faraó, eu te assemelhei, amiga minha (Cân. 1, 8).

[13] Deram-me e tiraram-me o meu manto os guardas das muralhas (Cânt. 5, 8).

[14] Eu me levantei para abrir ao meu amado, mas ele já se tinha ido, e era já passado a outra parte (Cânt. 5, 5 s).

[15] Ó morte, eu serei a tua morte (Os. 13, 14).

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística