Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão de S. Pedro Nolasco pregado no dia do mesmo santo, no qual se dedicou a Igreja de Nossa Senhora das Mercês, em São Luís do Maranhão, de Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DE S. PEDRO NOLASCO PREGADO NO DIA DO MESMO SANTO, NO QUAL SE DEDICOU A IGREJA DE NOSSA SENHORA DAS MERCÊS NA CIDADE DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO

Com o Santíssimo Sacramento exposto.

Ecce nos reliquimus omnia, et secuti sumus te: quid ergo erit nobis[1]?

§I

Os dois pólos da virtude: deixar e seguir. Os quatro gêneros de homens em que se vê variamente implicado o deixar e o seguir do Evangelho: os que nem deixam, nem seguem; os que deixam, mas não seguem; os que seguem, mas não deixam; os que deixam e juntamente seguem. Entre eles encontramos S. Pedro Após­tolo, mas não encontramos S. Pedro Nolasco. Matéria do sermão: sendo tão pare­cidos estes dois santos, por que há tão grande diferença entre eles?

Estas duas cláusulas de São Pedro, deixar e seguir, são os dois pólos da virtude, são o corpo e alma da santidade, são as duas partes de que se compõe toda a perfeição evangélica. A primeira, deixar tudo: Ecce nos reliquimus omnia; a se­gunda, seguir a Cristo: et secuti sumus te.

Se lançarmos com advertência os olhos por todo o mundo cristão, acharemos nele quatro diferenças de homens em que este deixar e seguir do Evangelho está variamente complicado. Há uns que nem deixam nem seguem; há outros que deixam mas não se­guem; outros que seguem mas não deixam; outros que deixam e juntamente seguem. Não deixar nem seguir é miséria; deixar e não seguir é fraqueza; seguir e não deixar é desenga­no; deixar e seguir é perfeição. Em nenhum destes quatro predicamentos entram os ho­mens do mundo, ainda que sejam cristãos, porque nenhum deles professa deixar e seguir. A sua profissão é obedecer aos preceitos, mas não seguir os conselhos de Cristo. Os que somente professam deixar e seguir, somos todos os que temos nomes de religiosos. E para que cada um conheça em que predicamento destes está e a qual pertence, se ao da miséria, se ao da fraqueza, se ao do desengano, se ao da perfeição, será bem que declaremos estes nomes, e que definamos estas diferenças, e que saibamos quem são estes miseráveis, quem são estes fracos, quem são estes desenganados, e quem são estes perfeitos e santos.

Os miseráveis, que não deixam nem seguem, são os que se metem a religiosos, como a qualquer outro ofício, para viver. Fica no mundo um moço sem pai, mal herdado da fortuna, e menos da natureza, sem valor para seguir as armas, sem engenho para cursar as letras, sem talento nem indústria para granjear a vida por outro exercício honesto, que faz? Entra-se em uma religião das menos austeras, veste, come, canta, conversa, não o penhoram pela décima, nem o prendem para a fronteira, não tem coisa que lhe dê cuidado, nem ele o toma; enfim é um religioso de muito boa vida, não porque a faz, mas porque a leva. Este tal nem deixa, nem segue. Não deixa, porque não tinha que deixar; não segue, porque não veio seguira Cristo: veio viver. Os fracos, que deixam e não seguem, são os que traz à religião o nojo, o desar, a desgraça, e não a vocação. Sucede-lhe um homem nobre e brioso sair mal de um desafio, fazerem-lhe uma afronta que não pode vingar, negar-lhe el-rei o despacho e o agrado, não levar a beca ou a cadeira, ou o posto militar a que se opôs, ou levar-lhe o competidor o casa­mento em que tinha empenhado o tempo, o crédito e amor; enfadado da vida, e indig­nado da fortuna, entrega a sua casa a um irmão segundo, mete-se em uma religião de repente, mas leva consigo o mundo à religião, porque olha para ele com dor, e não com arrependimento. Este deixa, mas não segue. Deixa porque deixou o patrimônio e a fazenda; não segue porque mais o trouxe e tem na religião a afronta que recebeu no mundo, que o zelo ou desejo de seguir e servir a Cristo. Os desenganados, que seguem mas não deixam, são os mal pagos dos homens, que o verdadeiro desengano traz a Deus. Vistes o soldado veterano, que feitas muitas proezas na guerra, se acha ao cabo da vida carregado de anos, de serviços e de feridas sem prêmios, e desenganado de quão ingrato e mau senhor é o mundo; querendo servir a quem melhor lhe pague, e meter algum tempo entre a vida e a morte, troca o colete pelo saial, o táli pelo cordão, e a gola pelo capelo em uma religião penitente, e não tendo outro inimigo mais que a si mesmo, contra ele peleja, a ele vence e dele triunfa. Este é o que não deixa, mas segue. Não deixa, porque não tinha que deixar mais que os papéis que queimou, que sempre foram cinza, e segue, porque já não conhece outra caixa, nem outra bandeira, senão a voz de Cristo e sua cruz. Finalmente os perfeitos e santos, que deixam e juntamente seguem, são os que, chamados e subidos pela graça divina ao cume mais alto da perfei­ção evangélica, imitam gloriosamente a S. Pedro e aos outros apóstolos, os quais tudo o que tinham, e tudo o que podiam ter, deixaram e renunciaram por Cristo, e em tudo o que obraram e ensinaram, fizeram e padeceram, seguiram e imitaram a Cristo. Por isso S. Pedro, em nome de todos, e todos por boca de S. Pedro, dizem hoje com tanta confiança como verdade: Ecce nos reliquimus omnia, et secuti sumus te.

Estes são os quatro gêneros de homens que há no mundo, ou fora do mun­do, em que se vê variamente complicado o deixar e seguir do Evangelho. Mas eu entre eles, ainda que vejo a S. Pedro Apóstolo, não acho nem posso descobrir a S. Pedro Nolasco. Que o não ache entre os miseráveis, claro estava. Como havia de estar entre as infelicidades da miséria um santo tão dotado da natureza, tão favorecido da fortuna, e tão mimoso da graça? Que o não ache entre os fracos, também, e muito mais ainda. Como havia de estar entre os desmaios da fraqueza um santo tão soldado, tão valente, tão animoso, tão resoluto, tão forte, tão constante, tão invencível? Entre os desengana­dos cuidei que o poderia achar por seu entendimento, por seu juízo, por sua discrição, e pelo conhecimento e experiência grande que tinha do mundo. Mas aquele desengano que descrevemos era filho da necessidade, e não da virtude, e um achaque como este não cabia na nobreza de seu coração. Porém que entre os perfeitos e os santos não ache eu a um tão grande santo? Que não esteja ao menos junto a S. Pedro um Pedro tão parecido com ele? Isto é o que me admira e me admirou grandemente, enquanto não conheci a causa. Mas porque ela há de ser a matéria do sermão, quero-a resumir em poucas palavras. Ainda que em tudo o mais, como já aqui vimos, foi tão parecido S. Pedro de Nolasco a S. Pedro Apóstolo, nos dois pontos de deixar e seguir, há grande diferença de Pedro a Pedro. Por quê? Porque S. Pedro apóstolo deixou, S. Pedro Nolasco fez mais que deixar; S. Pedro Apóstolo seguiu, S. Pedro Nolasco fez mais que seguir. E como fez mais que deixar e mais que seguir? Fez mais que deixar, porque professou pedir, e pedir é mais que deixar; fez mais que seguir, porque professou empa­relhar, e emparelhar é mais que seguir. Sobre estes dois pontos faremos dois discursos, que eu desejo que sejam breves. Dai-me atenção, e ajudai-me a pedir graça. Ave Maria.

§II

Primeira razão: porque S. Pedro Nolasco fez mais que deixar, pois professou pedir. A profissão do santo e da Religião das Mercês: pedir esmolas, para com elas remir os cativos que estão em terra de mouros. Por que os apóstolos nada pediam a Cristo? Se pedir é mais que deixar, pedir para darem redenção de cativos quanto maior ação e perfeição será? O quanto custa pedir. Exortação de S. Paulo aos coríntios. O cabedal mendigado com que Cristo nos enriqueceu na Redenção. Cris­to, nos sacramentos, faz-se mendigo de Deus criador,

Ecce nos reliquimus omnia.

Primeiramente digo que S. Pedro Nolasco fez mais que deixar, porque professou pedir. E é assim. A profissão de S. Pedro Nolasco, e da sagrada Religião das Mercês, é pedir esmolas pelos fiéis, para com elas remir os cativos que estão em terras de mouros. E este pedir — ainda que não fora para resgatar — é mais que deixar. O mesmo S. Pedro e os outros apóstolos quero que nos dêem a prova. Chama Cristo a São Pedro e S. André, deixam barcos e redes, e seguem a Cristo. Chama Cristo a S. João e São Tiago, deixam barcos e redes e a seu próprio pai, e seguem a Cristo. Chama Cristo a S. Mateus publicano, deixa o telônio, o dinheiro, os contratos, e segue a Cristo. O mesmo fizeram os demais apóstolos, não havendo algum deles que dilatasse, nem por um só momento, o deixar tudo. Recebidos na escola e na familiaridade de Cristo, passou um ano, passaram dois, passaram três anos, e ne­nhum deles houve que em todo este tempo pedisse alguma coisa a Cristo, até que o mesmo Senhor lhe estranhou: Usque modo non petistis quidquam[2]exortando-os a que pedissem confiadamente, porque tudo lhes seria concedido. Três vezes leio no Evangelho que exortou Cristo os apóstolos a pedir; mas ainda depois destas tão repetidas exortações, não se lê no mesmo Evangelho que pedissem coisa alguma. Pois se Cristo estranha aos apóstolos o não pedirem, e os exorta tantas vezes a pedir, por que não pedem? E se para deixarem tudo quanto tinham, bastou só uma palavra de Cristo, ou não foi necessária uma palavra sua — porque Cristo não lhes disse que deixassem o que tinham, quando o deixaram — por que não bastam tantas exorta­ções, por que não bastam tantos avisos, por que não basta tanta familiaridade para pedirem? Porque tanta diferença vai de deixar a pedir. Para deixar tudo, bastou o primeiro momento da vista de Cristo; para pedirem alguma coisa, não bastaram três anos de familiaridade de Cristo; para deixarem, não foi necessário que Cristo os mandasse deixar; para pedirem, não bastou que Cristo os mandasse pedir.

Viu-se isto ainda melhor entre os doze, nos dois que se mostraram mais ambiciosos. Afetaram S. João e São Tiago as duas cadeiras da mão direita e esquer­da, mas não se atreveram eles a pedi-las: meteram por terceira a mãe para que fizesse este requerimento. Pergunto: por que não pediram por si mesmos estes dois discípu­los, pois tinham tantas razões que os animassem a o fazer? A primeira seja, que eles tinham deixado por amor de Cristo mais que todos, porque os outros apóstolos deixaram as redes, que era o ofício, e S. João e São Tiago deixaram as redes, que era o ofício, e deixaram o pai, que era o amor: Relictis retibus et palre, nota o evangelis­ta (Mt. 4, 22). Demais disso eram parentes muito chegados de Cristo, e tinham as razões do sangue, e tal sangue. Sobretudo, dos três mais validos apóstolos, eram eles os dois, e S. João não só valido, senão conhecidamente o amado. Pois se tinham tantas razões de confiança estes dois discípulos, por que se retiram, por que se enco­lhem, por que se não atrevem a pedir a Cristo? Porque não há coisa que tanto repug­nem os homens, como pedir. É tal esta repugnância, que nem o sangue a modera, nem o amor a facilita, nem ainda a mesma ambição, que é mais, a vence. Para não deixar o que deixaram, tinham estes dois irmãos as maiores repugnâncias da nature­za, que era o deixar pais e fazenda; para pedir o que desejavam, tinham as maiores confianças da natureza e da graça, que era o sangue e o favor. E que fizeram? Tendo as maiores repugnâncias para não deixar, deixaram; tendo as maiores confianças para pedir, não pediram. Tanto maior dificuldade é a do pedir que a do deixar; tanto menor fineza é a do deixar que a do pedir. Deixar é grandeza, pedir é sujeição; deixar é desprezar, pedir é fazer-se desprezado; deixar é abrir as mãos próprias, pedir é beijar as alheias; deixar é comprar-se, porque quem deixa, livra-se: pedir é vender-se, porque quem pede, cativa-se; deixar, finalmente, é ação de quem tem: pedir é ação de quem não tem, e tanto vai de pedir a deixar, quanto vai de não ter a ter. Mais fez logo neste caso, e mais fino e generoso andou com Cristo S. Pedro Nolasco, que S. Pedro Apóstolo, porque S. Pedro Apóstolo deixou e professou dei­xar; S. Pedro Nolasco deixou e professou pedir.

E se pedir, só por pedir, é maior ação que deixar, pedir para dar, e para dar em redenção de cativos — que são os fins deste glorioso pedir — quanto maior ação e perfeição será? A regra de perfeição que Cristo pôs aos que quisessem ser seus discípu­los, foi que vendessem o que tinham, e o dessem aos pobres: Si vis perfectus esse, vende quae habes, et da pauperibus (Mt. 19, 21). Esta foi a primeira coisa que fez S. Pedro Nolasco. Vendeu todas as riquezas que possuía, como grande senhor que era no mundo, e deu o preço para redenção de cativos. Mas, depois de se pôr neste grau de perfeição, ainda subiu a professar outro mais alto, que foi não só dar o que tinha, senão pedir o que não tinha, para também o dar. Que dê um homem tudo o que tem, não o manda Cristo, mas aconselha-o; porém, sobre dar o que tem, que peça ainda o que não tem, para o dar, isso nem o mandou Cristo nunca, nem o aconselhou. Aconselhou que déssemos a quem nos pedisse: Qui petit a te, da ei[3]mas que pedíssemos para dar a outrem, parece que não fiou tanto do valor humano, E isto é o que fez e o que professou S. Pedro Nolasco, excedendo-se a si mesmo e a todos os que deram a Deus e por Deus quanto tinham. Quem dá o que tem, dá a fazenda: quem pede para dar, dá o sangue, e o sangue mais honrado e mais sensitivo, que é o que sai às faces. Quem dá o que tem, pode dar o que vale pouco; mas quem dá o que pede, não pode dar senão o que custa muito, porque nenhuma coisa custa tanto como pedir. A palavra mais dura de pronun­ciar, e que, para sair da boca uma vez, se engole e afoga muitas é: Peço. Molestum verbum est, onerosum, et dimisso vultu dicendum: rogo  diz Sêneca — e acrescenta que até aos deuses não pediriam os homens, se o não fizessem em secreto. O certo é que houve homem a quem Deus convidou e ofereceu que pedisse, e respondeu: Non petam (Is. 7, 11). Considerai a que chegam muitas vezes os homens, por não chegar a pedir, e vereis, os que o não experimentastes, quanto deve custar. Finalmente é sentença antiquíssima de todos os sábios, que ninguém comprou mais caro que quem pediu: Nulla res carius constat, quam quae precibus empta est. Quem para dar espera que lhe pe­çam, vende, e quem pede para que lhe dêem, compra, e pelo preço mais caro e mais custoso. Donde se infere claramente, que, aos religiosos da redenção dos cativos, mais lhes custam os resgates que os resgatados, porque os resgatados compram-nos dando: os resgates compram-nos pedindo. Para comprar os resgatados, dão uma vez: para comprar os resgates, pedem muitas vezes. E se os turcos cortam muito caros os resgates dos cativos, São Pedro Nolasco ainda os cortou mais caros, porque os cortou a resgates pedidos e mendigados.

Sendo despojados de todos seus bens os fiéis da primitiva Igreja, na perse­guição que se levantou contra eles em Jerusalém, depois da morte de Santo Estêvão, mandou S. Paulo a Corinto seu discípulo Tito, para que dos cristãos daquela opulenta cidade recolhesse algumas esmolas — que depois se chamaram coletas  com as quais fossem socorridos os de Jerusalém. Exortando pois o Apóstolo aos coríntios, para que ajudassem nesta obra de tanta piedade a Tito, propõe-lhes o exemplo de Cristo, admi­rável ao seu intento, e muito mais admirável ao nosso, e diz assim: Scitis enfim gratiam Domini nostri Jesu Christi, quoniam propter vos egenus factus est, cum esses dives, ut illius inopia vos divites essetis[4]O original grego em que foi escrita aquela Epístola, com maior expressão e energia, em lugar de egenus factus est, tem mendicavit[5]E quer dizer o Apóstolo: Para que entendais, ó coríntios, quão gratas serão a Deus as esmolas que vai pedir Tito, lembrai-vos da graça que nos fez o mesmo Senhor, quando por amor de nós mendigou, para que nós fôssemos ricos.

Isto posto, é questão entre os teólogos, se Cristo foi tão pobre, que chegasse a mendigar [6]. E parece que não, porque o Senhor, até a idade de trinta anos, vivia do ofício de S. José, e do trabalho de suas próprias mãos. Depois que saiu em público a pregar, era assistido, sem o pedir, das esmolas de pessoas devotas, das quais se sustentava todo o Colégio Apostólico, e não eram tão escassas estas esmolas, que não abrangessem também a outros pobres, e ainda à cobiça de Judas, como tudo consta do Evangelho. Esta é aopinião de muitos e graves autores. Outros porém têm por mais provável que Cristo verdadeiramente mendigasse, não sempre, mas algumas vezes, e o provam com o lugar do Salmo: Ego autem mendicus sum, et pauper[7] , e com este de S. Paulo. Mas, ou o Senhor mendigasse por este modo ou não, como o Apóstolo diga que mendigou, para com a sua mendiguez e pobreza enriquecer aos coríntios e a todos os homens: Mendicavit, ut ejus inopia divites essetis, bem se vê que não é este o sentido daquelas grandes palavras, senão outro muito mais universal e mais sublime. Qual foi logo a mendiguez e o cabedal mendi­gado, com que o Filho de Deus, fazendo-se pobre, nos fez ricos? S. Gregório Nazianzeno e S. João Crisóstomo, os dois maiores lumes da teologia e eloqüência grega, e que por isso podiam melhor penetrar a força e inteligência do texto escrito na sua própria língua, dizem que falou S. Paulo do mistério altíssimo da Redenção, e que o cabedal mendigado, com que o Filho de Deus nos enriqueceu, foi a carne e sangue que mendigou da natureza humana, e deu e pagou na cruz, pelo resgate do gênero humano: Nostrae salutis causa eo paupertatis devenit, ut corpus etiam acciperet, diz Nazianzeno. E Crisóstomo, ainda com maior expressão: Ut ejus paupertate ditesceremus. Qua paupertate? Quia assumpsit car­nem, et factus est humo, et passus ea quae passus. Ora vede.

Pelo pecado de Adão estava o gênero humano cativo e pobre; como cativo, gemia e padecia o cativeiro; como pobre, não tinha cabedal para o resgate, e como a justiça divina tinha cortado o mesmo resgate não em menor preço que o sangue de seu Unigênito Filho, que fez a imensa caridade deste Senhor? Aqui entra o mendicavit. Não tendo, nem podendo ter, enquanto Deus, o preço decretado para a redenção, mendigou da natureza humana a carne e sangue, que uniu à sua pessoa divina, e por este modo, como altamente diz o Apóstolo, nós, que éramos cativos e pobres, com a pobreza e mendiguez de Cristo, ficamos ricos: Ut ejus inopia divites essetis, porque ele, mendigando como pobre, teve com que ser redentor, e nós, com este cabedal mendigado, tivemos com que ser remidos. De maneira que na obra da redenção, que foi a maior da caridade divina, não se contentou Deus com dar o que tinha, senão com mendigar o que não tinha, para também o dar. Deu a divindade, deu os atributos, deu a pessoa, que é o que tinha, e mendigou a carne e sangue, que não tinha, para o dar em preço da redenção. E isto é o que diz São Paulo: Propter vos mendicavit, ut ejus inopia divites essetis. Mas o que sobretudo se deve notar é que a esta circunstância de mendigar o preço do nosso resgate, chamou o Apóstolo a graça e a excelência do benefício da redenção: Scitis gratiam Domini nostri Jesu Christi, quoniam mendicavit. Como se fizesse mais o Filho de Deus na circunstân­cia, que na obra, e mais no mendigar, que no remir. Para nos remir tinha a Divina Sabedoria e Onipotência muitos modos, mas quis que fosse pelo preço de seu san­gue; e sendo este preço por si mesmo de valor infinito, para que fosse dobradamente precioso, quis, que sobre ser infinito, fosse mendigado: Mendicavit. Tão gloriosa ação é, e tão heróica, mendigar para remir. E tal foi a empresa e instituto de S. Pedro Nolasco: ordenou que seus filhos professassem pobreza, e juntamente redenção de cativos. Para quê? Para que, pelo voto de pobreza, deixassem tudo o que tinham — que é o que fez S. Pedro — e pelo voto da redenção, mendigassem para ela o que não tinham, que é o que fez o Filho de Deus.

E por que nos não falte com o exemplo, como nos assiste com a presença o mesmo Redentor Sacramentado, seja o divino Sacramento a última confirmação e cláusula desta gloriosa fineza. Fala deste divino Sacramento e também dos outros Tertuliano, e diz assim profundamente: In sacramentis suis egens mendicitatibus Crea­toris, nec aguam reprobavit, qua suos abluit, nec oleum, quo suos ungit, nec panem, quo ipsum corpus suum repraesentat. Em nenhuma parte é Cristo mais liberal que nos seus sacramentos, e muito mais no maior de todos: ali está continuamente despenden­do os tesouros de sua graça, e aplicando-nos os efeitos da redenção. Mas, por que modo faz estas liberalidades Cristo? Agora entra a profundidade de Tertuliano. Traz Cristo estas liberalidades como redentor, pedindo primeiro esmola para elas, e mendi­gando-as de si mesmo, como criador: In sacramentis suis egens mendicitatibus Crea­toris. Deus redentor nos sacramentos faz-se mendigo de Deus criador, e, para nos apli­car a redenção no batismo, pede primeiro esmola de água: Aguam, qua suos abluir; para nos aplicar a redenção da unção, pede primeiro esmola de óleo: Oleum, quo suos ungit; para nos aplicar a redenção na Eucaristia, pede primeiro esmola de pão: Panem, quo corpus suum repraesentat. De sorte que é tão alta, tão soberana, tão grata e tão preciosa obra diante de Deus o mendigar para remir, que, não tendo Deus a quem pedir, nem de quem receber, fez distinção de si a si mesmo: de si enquanto redentor, a si mesmo enquanto criador, e mendigando primeiro esmolas da natureza, como pobre, reparte delas liberalidades e liberdades de graça, como redentor: In sacramentis suis egens mendicitatibus Creatoris. E se pedir só por pedir vale tanto, e pedir para remir vale tanto mais, sem fazer agravo a um Pedro nem lisonja ao outro, podemos repetir e assentar o que dissemos: que fez mais S. Pedro Nolasco em pedir, que S. Pedro Após­tolo em deixar: Ecce nos reliquimus omnia.

§ III

Outra grande vantagem da sagrada Religião das Mercês: são maiores reden­tores do que pretendiam ser, e maiores do que se cuida que são. A redenção das esmolas. José, redentor do Egito.

Desta primeira vantagem de S. Pedro Nolasco comparada com S. Pedro Apóstolo, se segue outra grande vantagem à sagrada Religião das Mercês, não com­parada com as outras religiões — como depois faremos — senão comparada consigo mesma. E que vantagem é esta? Que por este liberalíssimo modo de pedir, e por este nobilíssimo modo de mendigar, ficaram os religiosos das Mercês maiores redento­res do que pretenderam ser, e maiores do que se cuida que são, porque não só são redentores dos cativos que estão nas terras dos infiéis, mas são também redentores dos livres, que estão nas terras dos cristãos; não só redentores na África, mas tam­bém redentores na Europa, na Ásia e na América. E isto como? Eu o direi. Os religiosos deste sagrado instituto não pedem esmolas em todas as terras de cristãos, para irem resgatar cativos nas terras de infiéis? Sim. Pois nas terras dos infiéis são redentores pelos resgates que dão, e nas terras dos cristãos são redentores pelas esmolas que pedem. A esmola tem tanta valia diante de Deus, que é uma como segunda redenção do cativeiro do pecado. Assim o pregou o profeta Daniel a el-rei Nabucodonosor, aconselhando-o que, pois tinha a Deus tão ofendido, remisse seus pecados com esmolas: Peccata tua eleemosynis redime (Dan. 4, 24). No cativeiro do pecado estão os cativos atados a duas cadeias, uma da culpa, outra da pena, e é tal o valor da esmola, que não só os rime e livra da cadeia da pena, como obra penal e satisfatória que é, senão também da cadeia da culpa, ou formalmente, se vai infor­mada como deve ir, com ato de verdadeira caridade, ou quando menos dispositiva-mente, porque entre todas as obras humanas é a que mais dispõe a misericórdia divina para a remissão do pecado. Assim o ensina a teologia, e o pregaram depois de Daniel todos os Padres. E como a esmola resgata do cativeiro do pecado a quem a dápor amor de Deus, e destas esmolas, dadas e pedidas por amor de Deus, fazem os religiosos das Mercês os seus resgates, por meio das mesmas esmolas vêm a ser duas vezes redentores: redentores daqueles por quem as dão, e redentores daqueles a quem as pedem. Redentores daqueles por quem as dão, que são os cristãos de Berbé­ria, a quem livram do cativeiro dos infiéis, e redentores daqueles a quem as pedem, que são os fiéis de todas as partes do mundo, a quem, por meio das suas esmolas, livram do cativeiro do pecado: Peccata tua eleemosynis redime.

E é muito para advertir e ponderar que estas segundas redenções, das esmolas que se pedem, são muitas mais em número que as primeiras, dos resgates que se dão. Porque como a esmola respeita a misericórdia de Deus, e o resgate a avareza do bárbaro, bastando para uma redenção uma só esmola, é necessário que se ajuntem muitas esmolas para um só resgate. E assim, ainda que sejam poucos os resgatados, são muitos mil os remidos, porque são resgatados só aqueles por quem se dá o resgate, e são remidos todos aqueles a quem se pede, e dão a esmola. Nem obsta que o preço e merecimento da esmola seja daqueles que a dão, para que os que a procuram e solicitam não sejam também, como digo, seus redentores. Um reden­tor, que primeiro foi cativo, me dará a prova. Quando José livrou da fome ao Egito e aos que do Egito se socorriam, o nome que alcançou por esta famosa ação, foi de Redentor do Egito e do mundo: Vocavit eum língua Aegyptiaca Salvatorem mundi[8]Mas se considerarmos o modo desta redenção, acharemos no texto sagrado, que assim os estrangeiros, que concorriam de fora, como os mesmos egípcios, com­pravam o trigo com o seu dinheiro. Pois se uns e outros remiam as vidas do poder da fome, não de graça, senão pelo seu dinheiro, como se chama José o Redentor, e não eles? Porque, ainda que eles concorriam com o preço, José foi o inventor daquela indústria, e o que a solicitava e promovia. Eles remiam-se a si, cada um com o que dava, e José remiu-os a todos com o que recebia, não para si, senão também para o dar. Por isso dobradamente redentor, não só do Egito, senão do mundo: Redempto­rem mundi. Ó família sagrada, sempre e de tantos modos redentora! Ó redentores sempre grandes e sempre gloriosos! Grandes e gloriosos redentores, quando dais o que pedistes, e maiores e mais gloriosos redentores, quando pedis o que haveis de dar. Para que em vós também, como em vosso fundador, se veja que fazeis mais, segundos apóstolos, em pedir todos, do que fizeram os primeiros, em deixar tudo: Ecce nos reliquimus omnia.

§ IV

S. Pedro Nolasco fez mais que seguir, porque professou emparelhar com Cristo. A redenção dos corpos e a redenção das almas. O comprador do Evangelho e os religiosos das Mercês. Como Cristo no Sacramento, os religiosos das Mercês, por voto, deixam-se encarcerar para remir os cativos.

Et secuti sumus te. São Pedro Apóstolo seguiu a Cristo, e digo que S. Pedro Nolasco fez mais que seguir, porque professou emparelhar. E assim foi. A profissão que fez S. Pedro Nolasco, e a que fazem todos os religiosos do seu institu­to, é resgatar os cristãos cativos em terra de mouros, não só para os pôr em liberda­de, mas, para os livrar do perigo em que estão de perder a fé. De maneira que uma coisa é a que fazem, outra a que principalmente pretendem: o que fazem é libertar os corpos; o que principalmente pretendem é pôr em salvo as almas. Isto é o que pro­fessou S. Pedro Nolasco, e nisto, como dizia, não só seguiu os passos de Cristo: Et secuti sumus te, mas do modo que pode ser, os emparelhou. E digo do modo que pode ser, porque estas parelhas sempre se hão de entender com aquela diferença soberana e infinita que há de Filho de Deus a servo de Deus. Mas vamos a elas.

Falando Cristo dos prodigiosos sinais que hão de preceder ao dia do Juízo, diz que quando virmos estes prodígios, que nos alentemos e animemos, porque então é chegada a nossa redenção: Respicite, et levate capita vestra, quoniam appropinquat redemptio vestra[9]Bem-aviados. estamos! Eu cuidava, e ainda cuido, e não só cuido, mas creio de fé, que a Redenção há mil e seiscentos e cinqüenta anos que veio ao mundo, e que na sua primeira vinda nos remiu Cristo a todos, dando o seu sangue por nós. Pois se o mundo já está remido, e a Redenção é já passada há tantos centos de anos, como diz Cristo que, quando virmos os sinais do dia do Juízo, então entendamos que é chegada a nossa Redenção? A dúvida é boa, mas a resposta será tão boa com ela, porque é a literal e verdadeira. Ora vede. O gênero humano, pela desobediência de Adão, ficou sujeito a dois cativeiros: o cativeiro do pecado e o cativeiro da morte: o cativeiro do pecado pertence à alma, e o cativeiro da morte pertence ao corpo. Daqui se segue que assim como os nossos cativeiros são dois, também devem ser duas as nossas redenções: uma redenção que nos livre as almas do cativeiro do pecado, e outra reden­ção que nos livre os corpos do cativeiro da morte. A primeira redenção já está feita, e esta é a redenção passada, que obrou Cristo, quando com o seu sangue remiu nossas almas; a segunda redenção ainda está por fazer, e esta é a redenção futura, que há de obrar o mesmo Cristo, quando com sua onipotência ressuscitar nossos corpos: Ipsi intra nos gemimus adoptionem filiorum Dei expectantes, redemptionem corporis nostri, diz o apóstolo S. Paulo[10]. E como esta segunda parte da nossa redenção está ainda por obrar, e não estão ainda remidos do seu cativeiro os corpos, posto que já o estejam as almas, por isso diz absolutamente Cristo que, no dia do Juízo, há de vir a redenção, porque a redenção inteira e perfeita, e a redenção que dá a Cristo o nome de perfeito e consumado redentor, não é só redenção de almas, nem é só redenção de corpos, senão redenção de corpos e de almas juntamente.

E se não, vede-o no primeiro efeito, ou no primeiro ato de Cristo Redentor. O ponto em que Cristo ficou redentor do mundo foi o momento em que expirou na cruz; e que sucedeu então? Desceu o Senhor no mesmo momento aos cárceres do Limbo, a libertar as almas que nele estavam detidas, e no tempo que lá embaixo se abriram os cárceres das almas, cá em cima se abriram também os cárceres dos corpos: Monumenta aperta sunt, et multa corpora sanctorum qui dormierant, surrexerunt (Mt. 27, 52), diz S. Mateus: Abri­ram-se as sepulturas, e saíram delas muitos corpos de santos ressuscitados. — Notai que não diz muitos homens, nem muitos santos, senão muitos corpos em correspondência das almas do Limbo. Dos cárceres do Limbo saíram as almas, e dos cárceres das sepulturas saíram os corpos, porque quis Cristo, naquele ponto em que estava libertando as almas do cativeiro do pecado, libertar também os corpos do cativeiro da morte, para tomar inteira posse, e não de meias, do inteiro e perfeito nome de Redentor: não só redentor de almas, nem só redentor de corpos, mas juntamente de corpos e mais de almas.

Tal foi e tal há de ser a consumada redenção de Cristo, e tal é e tal foi sempre a redenção que professou seu grande imitador, S. Pedro Nolasco, e todos os que vestem o mesmo hábito. Perfeitos e consumados redentores, porque são reden­tores de corpos e redentores de almas. Cuida o vulgo erradamente que o instituto desta sagrada religião é somente aquela obra de misericórdia corporal, que consiste em remir cativos, e não é só obra de misericórdia corporal, senão corporal e espiri­tual juntamente: corporal, porque livra os corpos do cativeiro dos infiéis; espiritual, porque livra as almas do cativeiro da infidelidade. Compreende esta obra suprema de misericórdia os dois maiores males e os dois maiores bens desta vida e da outra. O maior mal desta vida é o cativeiro, e o maior mal da outra é a condenação, e destes dois males livram os redentores aos cativos, tirando-os da terra de infiéis. O maior bem desta vida é a liberdade, e o maior bem da outra é a salvação. E estes dois bens conseguem os mesmos redentores aos cativos, passando-os a terras de cristãos. Pelo bem e mal desta vida, são redentores do corpo; pelo bem e mal da outra vida, são redentores da alma; e por uma e outra redenção, são redentores do homem todo, que se compõe de alma e corpo, como o foi Cristo.

É verdade que o que se vende e se paga em Berbéria, o que se desenterra das masmorras, o que se alivia dos ferros, o que se liberta das cadeias, são os corpos; mas o que principalmente se compra, o que principalmente se resgata, o que princi­palmente se pretende descativar, são as almas. Almas e corpos se rimem, almas e corpos se resgatam, mas as almas resgatam-se por amor de si mesmas, e os corpos por amor das almas. São os contratos destes mercadores do céu, como o daquele mercador venturoso e prudente do Evangelho. Achou este homem um tesouro es­condido em um campo alheio, e que fez? Vadit, et vendit universa quae habet, et emit agrum illum (Mt. 13, 44): Foi vender tudo quanto tinha, e comprou o campo. — Não reparo no tudo do preço, porque já fica dito que dão estes liberais compradores mais que tudo. Este comprador do Evangelho deu o que tinha: Omnia quae habet, mas não pediu. Os nossos dão o que têm, e mais o que pedem. O em que reparo é no que se vendeu e se comprou, porque foi com diferentes pensamentos. O que vendeu, vendeu o campo; o que comprou, comprou também o campo, mas não comprou o campo por amor do campo, senão o campo por amor do tesouro. Assim passa cá. O bárbaro vende o corpo que ali tem preso e cativo, e o redentor também compra o corpo, mas não compra principalmente o corpo por amor do corpo, senão o corpo por amor da alma. Sabe que a alma é tesouro, e o corpo terra: compra a terra por amor do tesouro, compra a terra por que o infiel não semeie nela cizânia, com quevenha a arder o tesouro e mais a terra. Assim o fez este homem do Evangelho. Mas quem era, ou quem significava este homem: Quem qui invenit homo[11]Era e signi­ficava aquele, que sendo Deus, se fez homem para resgatar e ser redentor dos ho­mens. A este soberano redentor imitam os nossos redentores, e o acompanham tão par a par — posto que reverencialmente — que bem se vê que os leva seu generoso intento mais a emparelhar que a seguir: Et secuti sumus te.

E para que este glorioso emparelhar se veja não só nos objetos da intenção, senão também no modo e modos de remir, é muito de considerar a diferença que estes redentores fazem no resgate dos corpos e no das almas. Os corpos, resgatam-nos de­pois de cativos, e as almas, antes que o estejam; os corpos, depois de perderem a liberdade, as almas, antes que percam a fé, e para que a não percam. De sorte que a redenção dos corpos é redenção que remedeia; a redenção das almas é redenção que preserva, que é outro modo de remir mais perfeito e mais subido, de que também —posto que uma só vez — usou Cristo. Fazem questão os teólogos se foi Cristo redentor de sua Mãe. E a razão de duvidar é porque remir é resgatar de cativeiro: a Virgem, como foi concebida sem pecado original, nunca foi cativa do pecado: logo, se não foi cativa, não podia ser resgatada nem remida, e por conseqüência, nem Cristo podia ser seu Redentor. Contudo é de fé que Cristo foi redentor de sua Mãe. E não só foi redentor seu de qualquer modo, senão mais perfeito redentor que de todas as outras criaturas. Porque aos outros remiu-os depois, à sua Mãe remiu-a antes; aos outros remiu-os de­pois de estarem cativos do pecado: à sua Mãe remiu-a antes, preservando-a para que nunca o estivesse. E este segundo modo de redenção é o mais subido e mais perfeito. Assim foi Cristo redentor de sua Mãe, e assim são estes filhos da mesma Mãe, redento­res das almas, que livram com os corpos. Redentores são dos corpos, e mais das almas, mas com grande diferença: aos corpos resgatam, às almas preservam; aos corpos li­vram do cativeiro, às almas livram do perigo; aos corpos livram de uma grande desgra­ça, às almas livram da ocasião de outra maior; aos corpos livram do poder dos infiéis, depois que estão já em seu poder, às almas livram do poder da infidelidade, não porque estejam em poder dela, mas por que não venham a estar. E é esta uma vantagem não pequena que faz esta ilustríssima religião às outras que se ocupam em salvar almas. As outras fazem que os fiéis sejam cristãos, e ela faz que os cristãos não sejam infiéis; as outras tiram as almas do pecado, esta tira as almas da tentação; as outras conseguem que Cristo seja crido, esta consegue que Cristo não seja negado: as outras guiam a Zaqueu, para que seja discípulo, esta tem mão em Judas, para que não seja apóstata; enfim, as outras tratam as almas, como Cristo remiu universalmente a todas, esta trata universalmente a todas, como Cristo remiu singularmente à de sua Mãe. Vede, se se­guem, ou se emparelham?

Mas falta por dizer neste caso a maior fineza. Além dos três votos essen­ciais e comuns a todas as religiões, fez S. Pedro Nolasco, e fazem todos seus filhos, um quarto voto, de se deixar ficar como cativos em poder dos turcos, todas as vezes que lá estiver alguma alma em perigo de perder a fé, e não houver outro meio de a resgatar, entregando-se a si mesmos em penhor e fiança dos resgates. Que eloqüên­cia haverá humana que possa bastantemente explicar a alteza deste voto verdadeira­mente divino, nem que exemplo se pode achar entre os homens de fineza e caridade que o iguale? Davi, aquele homem feito pelos moldes do coração de Deus, é nesta matéria o maior exemplo que eu acho nas Escrituras Sagradas, mas ainda ficou atrás muitos passos. Estava Davi, com muitos que o acompanhavam, nas terras de Moab, aonde se recolhera, fugido de Saul, que com grandes ânsias o buscava para lhe tirar a vida. Eis que um dia, subitamente, sai-se com todos os seus daquelas terras, e vem-se meter nas de Judéia, que eram as mesmas de el-rei Saul. Se Davi se não aconse­lhara neste caso, como se aconselhou, com o profeta Gad, ninguém julgara esta ação senão pela mais arrojada e mais cega de quantas podia fazer um homem de juízo, e sem juízo. Está Davi retirado e seguro em terras livres, e vem-se meter dentro em casa de seu próprio inimigo, e de um inimigo tão cruel e inexorável como Saul, que por sua própria mão o quis pregar duas vezes com a lança a uma parede? Sim, diz Nicolau de Lira. E dá a razão: Ne viri, qui erant cum David, declinarent ad idolatriam, si diu manerent in terra idolatriae subdita. A terra dos moabitas era terra dos idóla­tras; os que acompanhavam a Davi era gente pouco segura, que dava indícios e desconfianças de poder inclinar à idolatria. Pois, alto — diz Davi — não há de ser assim: saiam-se eles da terra onde corre perigo a sua fé, e esteja eu embora na terra do meu maior inimigo a todo risco.

Assim o fez aquele grande espírito de Davi, mas, ainda que se arriscou, não se entregou. Os religiosos deste instituto não só se arriscam, mas entregam-se. Quando não têm prata nem ouro com que resgatar os cativos, resgatam-nos com os seuspróprios ferros, passando as algemas às suas mãos, e os grilhões aos seus pés, e fazendo-se escravos dos turcos, por que uma alma o não seja do demônio. Só de S. Paulino, bispo de Nola, celebra a Igreja uma ação semelhante a esta, porque, não tendo com que resgatar o filho de uma viúva, se vendeu e cativou por ele a si mes­mo. Esta façanha fez S. Paulino, mas vede onde a fez. Em Nola. Já isto eram raízes da caridade de Nolasco: em S. Paulino de Nola se semeou, em S. Pedro Nolasco nasceu, em seus gloriosos filhos cresce e floresce. Muitos a executam em Berbéria hoje, e todos em qualquer parte do mundo estão aparelhados para a executar, porque todos o têm por voto.

Sim. Mas onde temos em Cristo a parelha desta fineza, que é a obrigação deste discurso? Cristo, como perfeito redentor, remiu-nos, mas nunca se prendeu, nunca se cativou, nunca se encarcerou por nossa redenção. Que seria, Senhor, se não estivéreis presente nesta custódia? Digo que sim, se prendeu, sim, se cativou, sim, se encarcerou Cristo por nós. Aquela custódia é o cárcere, aqueles acidentes são as cadeias, aquele Sacramento é o estreitíssimo cativeiro em que o piedosíssimo Re­dentor se deixou preso, encarcerado e cativo por libertar nossas almas. No dia do Juízo chamará Cristo aos seus para o reino do céu, e um dos particulares serviços que há de relatar por merecimento de tão grande prêmio, será este: 6i carcere eram, et venistis ad me (Mt. 25, 36): Estava encarcerado, e visitastes-me na minha prisão. — Não é necessário que nós ponhamos a dúvida que trazem consigo as palavras, porque os mesmos premiados a hão de pôr naquele dia. (Domine quando te vidimus in carcere, et venimus ad te (Mt. 25, 39)? Senhor, quando estivestes vós no cárcere, e quando vos visitamos nós nele? — Leiam-se todos os quatro evangelistas, e não se achará que Cristo jamais fosse encarcerado, E se é certo que esteve o Senhor em algum cárcere — pois ele o diz — diga-me alguém: onde? S. Boaventura o disse e afirma, que no Santíssimo Sacramento: Ecce quem totus mundus capere non potest, captivus noster est: Eis ali aquele imenso Senhor, que não cabe no mundo todo, está feito nosso prisioneiro e nosso cativo. — Vós não vedes como o fecham, como o encerram, como o levam de uma para outra parte, preso sempre ao elo dos aciden­tes? E se não, dizei-me: aquela pirâmide sagrada, em que está o divino Sacramento, por que lhe chamou a Igreja custódia? Porque custódia quer dizer cárcere: assim lhe chamam não só os autores da língua latina e grega, senão os mesmos evangelistas. São Lucas, referindo como prenderam aos apóstolos e os meteram no cárcere público, chama ao cárcere custódia: Injecerunt manus in apostolos, et posuerunt eos in custodia publica[12]Assim está aquele Senhor: se exposto, em cárcere público, se encerrado, em cárcere secreto, mas sempre encarcerado, sempre prisioneiro, sempre cativo nosso: Captivus noster est. E como Cristo chegou a se prender e cativar pelo remédio de nossas almas, obrigação era destes gloriosos emuladores dos passos de seu amor, que também se prendessem e se cativassem por elas. Cristo cativo por vontade, eles cativos por vontade; Cristo por remédio das almas, eles por remédio das almas; Cristo como Redentor, eles como redentores; eles acompanhando a Nolasco, e Nolasco emparelhando com Cristo, que chegou a o emparelhar este grande Pedro, quando o outro, mais que grande, fez muito em o seguir: Et secuti sumus te.

§V

Outra grande vantagem da Religião das Mercês, comparada com as outras religiões. O quarto voto, e a opinião dos Sumos Pontífices.

Desta segunda vantagem de S. Pedro Nolasco com S. Pedro Apóstolo, se segue também outra grande vantagem à Sagrada Religião das Mercês, não já compa­rada consigo mesma, senão com as outras religiões. E que vantagem é esta? Que pela perfeição e excelência deste quarto voto — e mais, não é atrevimento — excede esta religiosíssima religião a todas as outras religiões da Igreja. Bem mostra a confiança da proposição, que não é minha nem de nenhum autor particular, senão daquele oráculo supremo, que só tem jurisdição na terra, para qualificar a verdade de todas, Assim o disse o Papa Calixto III, por palavras que não podem ser mais claras nem mais expressas: Ratione quarti voti omissi pro redimendis captivis, quo se fignus esse captivorum Fratres hujus Instituti promittunt, merito potest Ordo iste aliis ordinibus celsior et perfectior judicari. Tenham paciência as outras religiões, que assim o disse o Sumo Pontífice. Querem dizer as palavras, que em respeito do quarto voto, com que os religiosos deste instituto prometem de se entregar aos infiéis, em penhor dos cativos que resgatarem, se pode com muita razão esta Ordem julgar por mais sublime e mais perfeita que todas as outras ordens. — Quando isto escreveu Calixto III, que foi no ano de 1456, ainda a Companhia de Jesus e outras religiões de menos antigüidade ficavam de fora; mas no ano de 1628 Urbano VIII por suas bulas confirmou e repetiu este mesmo elogio da Sagrada Religião das Mercês, com que todas as religiões, sem excetuar nenhuma, ficam entrando nesta conta. E o papa Martinho V, pela altíssima perfeição do mesmo voto, declara que os religiosos das outras religiões se podiam passar para a das Mercês, como mais estreita, e que os religiosos dela se não podiam passar para as outras, como religiões menos aperta­das. Tanto peso fez sempre no juízo dos Supremos Pontífices esta notável obriga­ção, e tanto é atar-se um homem para desatar a outros, e cativar-se para os libertar. Mas nesta vantagem, que reconheceram e aprovaram, nenhum agravo fizeram os pontífices às outras religiões, porque, que muito que esta religião neste voto nos exceda a nós, se nele se emparelhou com Cristo? Assim o diz a mesma constituição sua, posto que com palavras de gloriosa humildade: Exemplo Domini nostri Jesu, qui semetipsum dedit pro nobis, ut nos a potestate daemonis redimeret: Ao exemplo de Nosso Senhor e redentor Jesus Cristo, que para nos remir do poder do demônio, se entregou a si mesmo por nós.

E como as palavras dos Sumos Pontífices são vozes da boca de S. Pedro, as mesmas soberanias que todos concedem e confessam deste sagrado instituto, S. Pedro as concede e as confessa. Concede e confessa S. Pedro que este soberano instituto tem eminência sobre todos os institutos; concede e confessa S. Pedro que seu ilustríssimo fundador foi o primeiro e o maior exemplar dele; concede e confes­sa S. Pedro que vê as glórias do seu nome, não só multiplicadas, mas crescidas; concede e confessa enfim, que em matéria de seguir como de deixar, se vê vencido de outro Pedro: de outro Pedro, que tendo Pedro deixado tudo, fez ele mais que deixar; de outro Pedro, que tendo Pedro seguido a Cristo, fez ele mais que seguir: Ecce nos reliquimus omnia, et secuti sumus te.

§ VI

Parabém à Senhora das Mercês, fundadora do Instituto, pela dedicação da igreja. As três aparições de Cristo para fundar a Igreja, e as três aparições de Maria para fundar a Religião das Mercês. Parabém ao Estado. É a nova Igreja das Mercês do Maranhão, todas as igrejas e santuários que se veneram na Cristandade.

Tenho acabado o sermão, breve para o que pudera dizer, posto que mais largo para o tempo do que eu determinava. E se a vossa devoção e paciência ainda não está cansada, e me pergunta pela conseqüência ou conseqüências de todo ele, concluindo com a de S. Pedro: Quid ergo erit nobis[13]? — seja a conseqüência de tudo, darmos todos o parabém à Senhora das Mercês, e darmo-lo a nós mesmos pela glória que à Senhora, e pelo proveito que a todos nós nos cabe na dedicação desta obra e deste dia.

Sendo este sagrado Instituto tão excelente entre todos, e de tanta glória de Deus e bem universal do mundo, e uma como segunda redenção dele, não me espanto que a mesma Rainha dos Anjos — com privilégio singular desta religião — se quisesse fazer fundadora dela, e que descesse do céu a revelar seu instituto, e a solicitar em pessoa os ânimos dos que queria fazer primeiros instrumentos de tão grande obra. Foi coisa notável, que na mesma noite apareceu a Senhora, primeiro a S. Pedro Nolasco, logo a el-rei D. Jaime de Aragão, logo a S. Raimundo de Penha-forte, declarando a cada um em particular a nova Ordem que queria fundar no mun­do, debaixo de seu nome e patrocínio, porque, comunicando todos três a aparição, não duvidassem da verdade dela, e pusessem logo em execução, como puseram, o que a Senhora lhes mandava, sendo o primeiro que tomou o hábito, e professou nele, o nosso S. Pedro Nolasco. Cristo Senhor nosso, no dia da ressurreição apare­ceu, se bem notarmos, a três gêneros de pessoas diferentes. Apareceu às Marias, apareceu aos apóstolos, apareceu aos discípulos que iam para Emaús. Pois tanta pressa, tantas diligências, tantas aparições, e todas no mesmo dia, e em tal dia? Sim, que o pedia assim a importância do negócio. O fundamento de toda a nossa fé e de toda a nossa esperança é o mistério da Ressurreição: Si Christus non resurrexit, vana est fides vestra[14]  — diz S. Paulo. E como a Cristo e ao mundo lhe não importa­va menos a fé deste mistério, que o fundamento total e estabelecimento de sua Igre­ja, por isso anda tão solícito, por isso faz tantas diligências, por isso aparece uma, duas e três vezes, no mesmo dia, em diversos lugares e a diferentes pessoas. Assim o Filho, assim a Mãe. O que Cristo fez para fundar a sua Igreja, fez a Senhora para fundar a sua religião. Na mesma noite vai ao paço, e fala com el-rei Dom Jaime; na mesma noite vai ao convento de S. Domingos, e fala com S. Raimundo; na mesma noite vai a uma casa particular, e fala com São Pedro Nolasco. Pois a Rainha dos Anjos, a Mãe de Deus, a Senhora do mundo, pelos paços dos reis, pelos conventos dos religiosos, pelas casas dos particulares, e no mesmo dia, e na mesma noite, que é mais? Sim, que tão grande é o negócio que a traz à terra: quer fundar a sua Religião das Mercês, e anda feita requerente, não das mercês que espera, senão das mercês que deseja fazer. E como esta soberana Rainha se empenhou tanto em fundar esta sua religião no mundo, oh! que grande glória terá hoje no céu, em que se vê com nova casa neste estado, e com o seu Instituto introduzido em Portugal depois de quatrocentos anos! Note o Maranhão de caminho, e preze muito e preze-se muito desta prerrogativa que tem entre todas as conquistas do nosso Reino. Todos os esta­dos de nossas conquistas, na África, na Ásia e na América, receberam de Portugal as religiões com que se honram e se sustentam. Só o Estado do Maranhão pode dar nova religião a Portugal, porque lhe deu a das Mercês. Cá começou, e de cá foi, e já lá começa a ter casa, e quererá a mesma Senhora que cedo tenha casa e província.

Mas tomando a esta, que hoje consagramos à Virgem das Mercês, não quero dar o parabém aos filhos desta Senhora, de ter tal Mãe, pois é privilégio este mui antigo; à mesma Senhora quero dar o parabém de ter tais filhos: filhos, que com tão poucas mãos trabalharam tanto; filhos, que com tão pouco cabedal despenderam tanto; filhos, que com tão pouco tempo acabaram tanto; filhos enfim, que, não tendo casa para si, fizeram casa à sua Mãe. Não sei se notais o maior primor de arquitetura desta igreja. O maior primor desta igreja é ter por correspondência aquelas choupanas de palha, em que vivem os religiosos. Estarem eles vi­vendo em umas choupanas palhiças, e fabricarem para Deus e para sua Mãe um templo tão formoso e suntuoso como este, este é o maior primor, e a mais airosa correspondência de toda esta obra; ação, enfim, de filhos de tal Mãe, e que parece-lhe vem à Senhora por linha de seus maiores. Salomão, vigésimo quarto avô da Mãe de Deus, edificou o templo de Jerusalém, e nota a Escritura Sagrada, no modo, duas coisas muito dignas de advertir: a primeira, que enquanto o templo se edificou, não tratou Salomão de edificar casa para si, nem pôs mão na obra; a segunda, que sendo a obra dos paços de Salomão, que depois edificou, de muito menos fábrica que o templo, o templo acabou-se em sete anos, e os paços fizeram-se em treze. Grande caso é que se achasse o juízo de Salomão nos edificadores deste templo, sendo, entre os filhos desta Senhora, não os de maiores anos. Bem assim como Salomão, fizeram primeiro a casa de Deus, sem porem mão na sua, e bem assim como Salomão, acabaram esta obra com tanta pressa, deixando a do convento para se ir fazendo com mais vagar. Digno verdadeira­mente por esta razão, e por todas, de que todos os fiéis queiram ter parte em tão religiosa obra, e tão agradável a Deus e à sua Mãe.

Mas que parabéns darei eu ao nosso Estado e a esta cidade cabeça dele, vendo-se de novo defendida com esta nova torre do céu, e honrada com esta nova Casa da Senhora das Mercês? A Senhora, que tantas raízes deita nesta terra, grande prognóstico é de que a tem escolhida por sua: In electis meis mitte radices[15] Nossa Senhora da Vitória, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora do Desterro, Nossa Senhora da Luz, Nossa Senhora das Mercês, vede que formosa coroa sobre a cabeça de nosso Estado. Que influências tão benignas chove­rão sobre todos nós estas cinco formosas estrelas. Todas são mui resplandecentes, mas, com licença das quatro, a de Nossa Senhora das Mercês promete influências maiores, porque são mais universais. Nossa Senhora da Vitória é dos conquistadores; Nossa Senhora do Desterro é dos peregrinos; Nossa Senhora do Carmo é dos contemplativos; Nossa Senhora da Luz é dos desencaminhados; mas Nossa Senhora das Mercês é de todos, porque a todos indiferen­temente está prometendo e oferecendo todas as mercês que lhe pedirem. Nos tesouros das mercês desta Senhora, não só há para o soldado vitória, para o desterrado da pátria, para o desencaminhado luz, para o contemplativo favores do céu, que são os títulos com que vene­ramos a Senhora nesta cidade, mas nenhum título há no mundo com que a Virgem Maria seja invocada, que debaixo do amplíssimo nome de Nossa Senhora das Mercês não esteja encer­rado, e que a esta Senhora se não deva pedir com igual confiança Estais triste e desconsola­do? Não é necessário chamar pela Senhora da Consolação: valei-vos da Senhora das Mercês, e ela vos fará mercê de vos consolar. Estais aflito e angustiado? Não é necessário chamar pela Senhora das Angústias: valei-vos da Senhora das Mercês, que ela vos fará mercê de vos acudir nas vossas. Estais pobre e desamparado? Não é necessário chamar pela Senhora do Amparo: valei-vos da Senhora das Mercês, e ela vos fará mercê de vos amparar. Estais embaraçado e temeroso em vossas pretensões? Não é necessário chamar pela Senhora do Bom-Sucesso; valei-vos da Virgem das Mercês, e ela vos fará a mercê de vos dar o sucesso que mais vos convém. Estais enfermo e desconfiado dos remédios? Não é necessário chamar pela Senhora da Saúde: acudi à Senhora das Mercês, e ela vos fará mercê de vo-la dar, se for para seu serviço. Estais finalmente para vos embarcar ou para embarcar o que tendes? Não é necessário chamar pela Senhora da Boa Viagem: Acudi à Senhora das Mercês, e ela vos fará mercê de vos levar em paz e a salvamento. De sorte que todos os despachos que a Senhora costuma dar em tão diferentes tribunais, como os que têm pelo mundo e no nosso Reino, todos estão advogados a esta Casa das Mercês, porque nela se fazem todas.

E por que não vos admireis desta prerrogativa da Senhora da Casa, sabei que a Casa da Senhora tem a mesma prerrogativa. Que casa e que igreja cuidais que é esta em que estamos? Padre, é a Igreja nova de Nossa Senhora das Mercês do Maranhão. E é mais alguma coisa? Vós dizeis que não, e eu digo que sim. Digo que esta igreja é todas as igrejas e todos os santuários grandes que há e se veneram na Cristandade, e ainda fora da Cristandade também. Esta igreja é a igreja de Santiago de Galiza, e a igreja de Guadalupe em Castela, e a igreja de Monserrate em Catalu­nha, e a igreja do Loreto em Itália, e a igreja de S. Pedro, e de S. Paulo, e de S. João e Laterano, e de Santa Maria Maior, em Roma. E para que passemos além da Cris­tandade, este é o Templo de Jerusalém, não arruinado, este é o Monte Olivete, este o Tabor, este o Calvário, esta a Cova de Belém, este o Cenáculo, este o Horto, este o Sepulcro de Cristo. Assim o torno a afirmar, e assim é. Sabeis por que modo? Por­que todas as graças e indulgências que estão concedidas a estes templos, a todos estes santuários, a todos esses lugares sagrados de Jerusalém e do mundo todo, todas estão concedidas, por diversos Sumos Pontífices, a sua religião. De modo que, pas­seando de vossa casa a fazer oração nesta igreja, é como se fôsseis a Compostela, a Loreto, a Roma, a Jerusalém. Pode haver maior tesouro, pode haver maior felicida­de e facilidade que esta? O que importa é que nos saibamos aproveitar, e nos apro­veitemos destas riquezas do céu. Não nos descobriu Deus as minas da terra, que este ano com tanta ânsia se buscaram, e descobre-nos as minas do céu, sem as buscar­mos, para que façamos só caso delas. Façamo-lo assim, cristãos, freqüentemos de hoje em diante esta igreja, e de tantas casas de ruim conversação que há em terra tão pequena, esta, que é de conversar com Deus e com sua Mãe, não esteja deserta; seja esta de hoje em diante a melhor saída da nossa cidade, saída que vos fará sair, onde não vos convém entrar, nem estar. Aqui venhamos, aqui continuemos, aqui acudamos, nos trabalhos, para o remédio, nas tristezas, para o alívio, nos gostos, para a perseverança, e em todos nossos desejos e pretensões, aqui tragamos nossos memo­riais, aqui peçamos, aqui instemos, e daqui esperemos todas as mercês do céu, e ainda as da terra, que, sendo mercês da Senhora das Mercês, sempre serão acompa­nhadas de graça, e encaminhadas à glória. Quam mihi, etc.

 

[1] Eis aqui estamos nós, que deixamos tudo e te seguimos; que galardão, pois, será o nosso (Mt. 19, 27)?

[2] Vós até agora não pedistes nada (Jo. 16, 24).

[3] Dá a quem te pede (Mt. 5, 42).

[4] Porque conheceis a liberalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que sendo rico, se fez pobre por vosso amor, a fim de que vós fôsseis ricos pela sua pobreza (2 Cor. 8, 9).

[5] Ita Soares ex versione S. Basilii, et Cornei. ex vers. Erasmi.

[6] D. Thom. in 3 q. 40.

[7] Mas eu sou mendigo e pobre (SI. 39, 18).

[8] Chamou-o na língua egípcia Salvador do mundo (Gên. 41, 45).

[9] Olhai, e levantai as vossas cabeças, porque está perto a vossa redenção (Lc. 21, 28).

[10] Também nós gememos dentro de nós mesmos, esperando a adoção de filhos de Deus, a redenção do nosso corpo (Rom. 8, 23).

[11]  Que quando um homem o acha (Mt. 13, 44).

[12] E fizeram prender os apóstolos, e mandaram metê-los na cadeia pública (At. 5, 18).

[13] Que galardão pois será o nosso (Mt. 19, 27)?

[14] Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé (1 Cor. 15, 17).

[15] Lança raízes entre os meus escolhidos (Eclo. 24, 13).

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística